Você está na página 1de 92

TEORIA DO CRIME

EVOLUÇÃO HISTÓRICA
Só se consegue perceber o conceito atual de crime tendo em conta a evolução histórica da
teoria geral da infração penal – ou seja, porque é que existe uma certa análise lógica do crime, porque
é que certos elementos são considerados constitutivos do crime, como é que se chegou ao conteúdo
desses elementos, etc. Tal resulta, como se irá ver, do contributo de vários autores ao longo dos anos
– com uma especial atenção à evolução deste conceito na doutrina alemão, internacionalizada, tendo
interferência nas várias ordens jurídicas europeias.
Para perceber as várias conceções do crime, será necessário saber as conceções filosóficas por
detrás das mesmas. No entanto, como acrescenta Jescheck, também se consegue perceber tais
conceções partindo das suas raízes culturais, assim como da sua relação com os conceitos da época
precedente. Isto porque, por norma, as escolas novas surgem como crítica à escola anterior, críticas
que podem ou ser refutadas, melhorando-se a ideia antiga; ou não ser refutadas, e é necessário
construir um conceito novo.

Escola Clássica
A teoria geral do crime aparece pela primeira vez nos tratados de direito penal do século XVI,
através de Tiraqueau, que via o crime como facto ilícito punível praticado com dolo ou negligência.
No entanto, a formulação que se denomina de clássica ou positivista naturalista, no sentido de ser a
primeira formulação completa de crime, é a formulação de Liszt, nos finais do século XIX.
Sendo Liszt filosoficamente um positivista, para este, a realidade era dada pela experiência,
negando-se tudo o que vai para além da realidade. Significa isto que, para este, o crime não podia
deixar de ser uma realidade no mundo da experiência, pelo que se deveria fazer uma distinção material
dos elementos que o descreviam, também eles parte desta realidade, nomeadamente:
➔ Ação: Conceito na sua forma naturalística, de acordo com o qual a ação traduzia-se num
movimento corporal dependente da vontade que levava a uma transformação no mundo exterior,
conectados por um nexo de causalidade.

➔ Ilicitude: Contrariedade a uma norma jurídica. Tal ilicitude era constituída, na altura, apenas pelos
elementos objetivos do crime – por exemplo, no crime de homicídio, os elementos objetivos
seriam a ação de matar, o resultado “morte”, e o nexo de causalidade entre esta ação e a morte.

➔ Culpa: Todos os processos espirituais, que se desenrolavam no interior da mente do autor do


crime, faziam parte da culpa – o que significa que o dolo (vontade de realizar o facto) e a
negligência (deficiente tenção da vontade que não permitia ver a realização do facto) eram, na
altura, formas de culpa.

➔ Punibilidade: Conjunto de elementos adicionais a todos estes já referidos, geralmente objetivos,


que permitiam distinguir determinado crime de outros atos ilícitos e culposos – por exemplo, no
crime de falência, era necessário, para haver a punibilidade, uma declaração de falência.
Em 1901, surge, no meio da escola positivista, um autor fundamental, que introduz um novo
elemento do crime: a tipicidade. Em termos gerais, Beling vem dizer que, para haver um crime, é
também essencial que haja uma correspondência ou conformidade do facto praticado com a previsão
da norma incriminadora – ou seja, é essencial haver uma correspondência entre o facto exterior e o
tipo legal de crime.
Beling distingue dois conceitos de tipicidade: 1) conceito de tipo indiciário ou provisório, que abrange
apenas as circunstâncias incluídas ou referidas na norma incriminadora – e, por isso, quando um facto
exterior tiver essas circunstâncias, pode-se afirmar que aquele facto preenche o tipo indiciário –; e 2)
conceito de tipo essencial ou definitivo, que abarca todos os elementos constitutivos do crime – isto
é, todas as circunstâncias de que depende a consequência final do crime: quer as descritas nas normas
incriminadoras, quer as descritas nas normas da parte geral do Código Penal, quer as descritas nas
normas processuais.
➔ Por exemplo, no caso do homicídio, o tipo definitivo, para além de abarcar a ação de matar (artigo
131º CP), também abarca o facto dessa ação não ter sido praticada em legítima defesa (artigo 32º
CP); assim como abarca os pressupostos processuais da aplicação da pena (ex: trânsito em julgado
da sentença).
Ao princípio, quando Liszt acolhe este conceito, ele põe-no no final – isto é, ele passa a definir
crime como ação, ilícita, culposa (dolosa ou negligente), punível, e típica. No entanto, mais tarde,
reposiciona a tipicidade logo a seguir à ação: ou seja, passou de um conceito definitivo (final) para
um conceito indiciário (início), percebendo que o tipo tem mais relevância como segundo elemento
de análise do crime.
Tal é importante porque, atualmente, na análise de casos, utiliza-se o conceito de tipo indiciário; mas
uma versão mais extensa, abarcando, além das circunstâncias descritas na previsão da norma
incriminadora, as circunstâncias descritas nas normas extensivas da tipicidade que estão na parte geral
do Código Penal (ex: normas de omissão, de tentativa, e de comparticipação criminosa). Isto, porque
os tipos descritos na parte especial estão previstos num crime consumado, por ação, praticado por um
autor de ação – só se conseguindo punir por outras formas de realização de crime se existirem normas
extensivas de tipicidade, graças ao princípio da legalidade, no seu subprincípio da tipicidade.
O conceito de tipo também pode estar sujeito a outra classificação, consoante o ponto de
referência. Isto é, pode-se falar no tipo em sentido abstrato, que significa que o ponto de referência é
a previsão da norma; ou no tipo em sentido concreto, em que o ponto de referência é o facto concreto.
Ou seja, se se está a averiguar se, naquele caso concreto, estão presentes os elementos, está-se a referir
ao sentido concreto; mas se já se está a interpretar uma norma para saber quais os seus elementos de
crime típicos, já se está a pensar no sentido abstrato.
Isto é relevante porque uma parte do trabalho dos penalistas é averiguar se as circunstâncias previstas
numa norma incriminadora (na lei) estão ou não presentes no caso concreto – isto é, para poder
afirmar que um determinado facto é típico, ter-se-á de averiguar se aquele facto contém os elementos
descritos na norma incriminadora. Isso implica, por um lado, interpretar a norma, para saber quais os
seus elementos constitutivos; e, por outro, implica interpretar o caso em questão, segundo uma
operação lógica, para perceber se determinado facto é (ou não) conforme uma norma incriminadora.
Chama-se a isto o método subsuntivo, sendo que subsumir significa integrar um facto concreto na
previsão normativa – ou seja, como dizia Kant, distingue-se se algo cai debaixo de uma lei ou não.
No entanto, atualmente, há uma parte da doutrina que acha que este esquema subsuntivo é criticável
– entre nós, Paulo Souza Mendes e Fernanda Palma. Para estes, tal forma de analisar e aplicar o
direito implica uma dissociação analítico-objetiva do facto da norma, não sendo isso possível porque,
na prática, não existe um facto objetivo, mas sim uma construção normativa do facto. Ou seja, quando
se aplica o direito ao caso concreto, já se está a construir normativamente esse caso, logo esta
separação entre facto e norma não é possível. No entanto, esta crítica consegue ser refutada porque o
método subsuntivo não afasta esta ideia: aliás, este vê o caso penal como um caso em construção,
pois implica que se esteja constantemente a passar do caso concreto para a norma, e da norma para o
caso, interpretando os elementos dos dois e ver se estes correspondem.
Além disso, o facto de se falar em método subsuntivo, não significa que essa subsunção resulte,
muitas vezes, de uma série de juízos e raciocínios que não são todos substantivos. Ou seja, esta técnica
da subsunção apenas permite dizer que x facto se subsume à norma y – mas tal conclusão não significa
que apenas só existam facto raciocínios neste método; de facto, muitas vezes, é necessário fazer juízos
de valor para chegar a essa conclusão. No entanto, o facto de se recorrer a estes juízos não é suficiente
para abandonar o termo “subsunção”, visto que esses juízos vão, na mesma, permitir concluir que
aquele facto se integra naquele tipo ilícito.
Denota-se, por fim, que atualmente também existem outros conceitos de tipo, nomeadamente:
o conceito de tipo global, que só abarca os elementos até à punibilidade (não incluindo os
pressupostos processuais); o conceito de tipo ilícito, que inclui os elementos necessários para afirmar
a ilicitude; e o conceito de tipo de culpa, que inclui os elementos necessários para afirmar a culpa.

Escola Neoclássica
A escola neoclássica ou normativista do crime surgiu e era dominante em 1930, sendo um dos
principais autores Mezger – e, entre nós, Eduardo Correia e Cavaleiro Ferreira. Fala-se em escola
neoclássica porque continua, no fundo, a ser algo que advém do sistema clássico, partindo das críticas
feitas à mesma – pelo que, nesse sentido, não é um sistema autónomo do sistema clássico.
Esta escola, do ponto de vista da filosofia, é neokantiana: ou seja, ao contrário dos positivistas,
entende que, ao lado do mundo natural, há o mundo da cultura e dos valores, no sentido de atributos
não descritivos da realidade – sendo que o direito pertence a tal mundo dos valores.
Isto é relevante porque o conceito da ação, de acordo com os neoclássicos, passa a ser um
conceito valorativo, e não apenas uma realidade do mundo natural. Consequentemente, estes
defendem um conceito social de ação, de acordo com o qual a ação é o comportamento humano
voluntário socialmente relevante (sendo esta a última fórmula do conceito social de ação dentro da
escola clássica, que depois irá ter outras evoluções).
➔ Este conceito social de ação ainda é defendido por vários atores atualmente – Fernanda Palma.
Já o tipo deixa de se situar ao lado da ilicitude, limitando-se à missão formal de conter os
elementos da ilicitude. Dito de outra forma, o tipo transformou-se em tipo de ilícito, uma espécie de
fundamentação positiva da ilicitude.
Por sua vez, a ilicitude surge como um desvalor que continua a abarcar fundamentos objetivos;
embora se comece a perceber que, por vezes, para valorar um facto como ilícito, é necessário ter em
conta elementos subjetivos (ex: para estar preenchido o crime do furto, é necessário estar preenchido
a intenção de apropriação).
Mezger distingue, primeiramente, os elementos positivos – os que fundamentam a ilicitude – dos
elementos negativos – causas de exclusão da ilicitude – da ilicitude.
Além disso, distingue-se, ainda, a ilicitude formal, no sentido de contrariedade à norma jurídica; e a
ilicitude material, no sentido de danosidade social ou ofensa material de certos bens jurídicos. Isto
implica que passe a haver uma graduação na ilicitude, de acordo com a gravidade da lesão dos bens
jurídicos – ou seja, existe um interesse em saber, também, o quão desvaliosa é a conduta (material),
e não apenas se é contrária à lei (formal).
Quanto à culpa, surge a teoria normativa da culpa, de Frank. De acordo com este, o essencial
na culpa era um juízo de censura, que só existiria se fosse exigível um comportamento contrário ao
adotado; e se, para além disso, houvesse uma motivação negativa do agente, ou seja, uma espécie de
atitude interior negativa por parte do agente. No entanto, apesar disto, escola neoclássica ainda não
conseguiu ultrapassar o dolo e a negligência como formas de culpa.

Escola Finalista
Segundo Figueiredo Dias, após a Segunda Guerra Mundial, ficou claro que o normativismo
de raiz neokantiana não oferecia garantia bastante de justiça, ou seja, de normas validamente editadas.
Por isso, com esta, houve claramente uma necessidade de substituir um estado de direito em sentido
formal com um em sentido material – nomeadamente, limitando esta formalidade pela via ontológica
e fenomenológica. Isto porque, durante o nazismo, vigoravam não só leis penais do facto, como
também leis penais do agente, em que se pune uma pessoa por ter determinadas características (ex:
raça, opinião), e não por ter praticado determinado facto.
Assim, os finalistas surgem como uma espécie de reação ao que aconteceu na Segunda Guerra
Mundial e à ideia de normativismo do direito, não suficiente para salvaguardar os direitos
fundamentais. Estes defendem que a ação é uma essência que o direito não pode alterar, e que existe
independentemente do direito, tendo uma estrutura própria – sendo que o decisivo passa a ser
determinar essa estrutura. Em última análise, o conceito de direito passa a ser determinado
ontologicamente; sendo a ação, por si, essencialmente finalista – ou seja, a verdadeira essência da
ação humana é o ser um processo causal conduzido pela vontade, para determinado fim.
Ora, se a ação passa a ser uma supradeterminação final do processo causal, o dolo e a
negligência já passam a interessar para a tipicidade: estes têm, então, de ser logo averiguados a nível
da tipicidade, só se podendo afirmar a existência de um tipo de crime se, para além dos elementos
objetivos, se tivesse em consideração estes elementos subjetivos. A tipicidade, na escola finalista,
surge então como valoração autónoma da ilicitude – isto, porque um facto pode ser típico, mas não
ser ilícito (ex: a ação de matar alguém não deixa de ser típico se se demonstrar que foi praticado em
legítima defesa – apenas deixa de ser ilícito).
A ilicitude, necessariamente, também é uma valoração sobre o ato do homem na sua vertente
objetiva e subjetiva – pelo que se passa a falar em dois juízos de desvalor: 1) o desvalor da ação, onde
é mais importante os elementos subjetivos do tipo, nomeadamente a vontade ilícita; e 2) o desvalor
do resultado, onde é mais importante a lesão do bem jurídico. Também ao nível da ilicitude, as causas
de exclusão da ilicitude deixam de ser elementos negativos do tipo de ilícito e passam a ser tipos
permissivos que, quando se verificam, excluem a punibilidade.
A culpa, por sua vez, traduz-se num juízo de censura pelo facto de o agente, podendo agir de
outra forma, não o ter feito. Aqui, já se distingue o dolo da consciência do ilícito: para a culpa, passa
a ser relevante a consciência da ilicitude (que aquela ação é ilícita) e a capacidade de escolha
(escolher, mesmo assim, fazer dita ação).
Escola Pós-Finalista
Atualmente, a maior parte dos autores são considerados pós-finalistas, no sentido de que toda
a doutrina atual considera que quer o dolo, quer a negligência são elementos do tipo – sendo que foi
a escola finalista que introduziu esta alteração. Assim, e segundo Figueiredo Dias, não se pode dizer
que o facto preenche um tipo de crime sem que haja dolo ou negligência, só se podendo fazer um
juízo de ilicitude, no sentido de contrariedade de ação à ordem jurídica, tendo em conta o dolo e a
negligência. É por isso que a maior parte da doutrina atual se insere na chamada doutrina do ilícito
pessoal, visto que dá destaque aos elementos subjetivos.
No entanto, apesar de todos os autores caberem nesta denominação pós-finalismo, existem
várias variações. A doutrina dominante será a teoria teleológico-funcional, ou racional-final, segundo
a qual o sistema do Direito Penal só se pode guiar pelas finalidades do Direito Penal – nomeadamente,
pelas bases político-criminais da moderna teoria dos fins das penas. Tal sistema arranca da conceção
apresentada por Roxin, em 1970, num estudo que fez sobre as relações entre a política criminal e o
sistema de facto punível (sistema de crime).
Dentro desta teoria, existem duas conceções totalmente diferentes: a de Roxin, e a de Jakobs.
➔ Para Jakobs, só se pode determinar o que importa para o Direito Penal segundo as necessidades
da regulação jurídica: ou seja, todos os conceitos que importam ao Direito Penal são
condicionados pela sua teoria dos fins das penas, em que o fim da pena é a prevenção geral
positiva. No entanto, Jakobs leva esta ideia ao extremo, dizendo que a própria culpabilidade está
subjugada à prevenção geral positiva, não tomando em consideração as capacidades do sujeito.

➔ Para Roxin, para além de se ter em consideração as teorias das finalidades das penas, será também
necessário ter em conta todos os outros princípios fundamentais do Direito Penal –
nomeadamente, o da culpabilidade e o da dignidade humana.
o A única falha nesta conceção será o facto de este defender o chamado conceito social de
culpa, nomeadamente a culpa que os outros pensam que o sujeito tem.
Apesar destas diferenças, em última análise, o sistema de Direito Penal baseia-se nas conceções
penais básicas da política criminal: incluindo não só a prevenção geral, mas também todos os outros
princípios do direito penal, que possibilitam uma compreensão do Direito Penal pré-positivado.

Existe, ainda, outra subcorrente (na qual a professora Bárbara Brito se inclui, assim como
Duttge e Kaufman), segundo a qual existe, no conceito de crime, uma estrutura da realidade que tem
um elemento ontológico, e não tem apenas uma finalidade intrasistemática.
Ou seja, esta corrente defende que não se pode chegar ao conceito de crime apenas partindo da tal
política criminal e dos tais valores e princípios fundamentais do Direito Penal (finalidade
intrasistemática). É necessário perceber que o Direito Penal também tem de ter em consideração que
o objeto que trata é constituído por elementos ontológicos – formas de ser que só podem ser
compreendidas se se tiver uma visão interdisciplinar do Direito Penal.
Assim, de acordo com esta corrente, deve-se partir de conceitos normativos; mas esses devem basear-
se em dados ontológicos firmes quando possível – por exemplo, para se saber quando é que há uma
ação em Direito Penal, é necessário ver o que as outras ciências pensam em relação à existência de
uma ação ou não (nomeadamente, com base na psicologia ou na neurocirurgia).
Fernanda Palma, por sua vez, defende que tem de haver uma constante ligação do direito com
a realidade social – sendo esta um instrumento de interpretação do direito. Nas suas próprias palavras,
“a ação não é um problema de definição das características da realidade, mas um problema de
definição de regras da linguagem social que permitam validar como ação certo comportamento.”
Ora, na perspetiva da professora Bárbara Brito, só se pode, também, definir as regras de linguagem
social que permitem validar certa ação como comportamento criminoso SE se tiver em conta as
ciências que estudam esse comportamento – e, nesse sentido, nunca se pode fugir de uma base
ontológica desse conceito. Dito de outra forma, o Direito recorre ao conceito de vida social, que serve
de base a relações jurídicas; mas a própria determinação do conceito de vida social, na sua base,
depende de critérios científicos que não são, geralmente, conhecidos.

Notas Finais
No início, a preocupação dos autores era mais a construção de uma teoria em que se tentava
apenas definir os elementos constitutivos do crime. Atualmente, esta teoria do crime é construída
cada vez mais como uma teoria que tem uma razão prática de existência, onde para além de se definir
tais elementos, também se visa facilitar a aplicação dos tipos de crime por parte do juiz.

AÇÃO
Introdução
O conceito de ação jurídico-penalmente relevante é, para uma parte da doutrina (como Bárbara
Brito e Fernanda Palma), o primeiro elemento da análise do crime – sendo que o artigo 10º CP
também parece concordar com tal posição, falando o legislador na necessidade de uma “ação
adequada”. No entanto, para outra parte da doutrina, o primeiro elemento deve ser não este conceito,
mas sim o conceito de ação típica.
Defendendo esta última posição, Figueiredo Dias vem argumentar, por um lado, que ao Direito
Penal, só importa a ação típica: isto é, num caso prático determinado, só importa se existiu a ação de
matar, de furtar, de violar, etc. – e, por isso, o elemento da ação não deve ser alvo previamente dado
ao tipo. Ou seja, o conceito de ação tem um papel secundário no sistema de análise do crime, porque
vai apenas permitir excluir da tipicidade comportamentos irrelevantes. Por outro lado, este autor
também defende que o elemento da ação não pode ser algo prévio ao tipo, porque não é possível um
conceito de ação material suficientemente amplo, que sirva de base aos demais elementos do crime.
Bárbara Brito critica esta posição. Por um lado, quem defende que a análise do crime deve começar
pelo conceito de ação típica parece não entender que uma das principais funções do conceito de ação
é a função de delimitação: isto é, permitir excluir aqueles comportamentos que não interessam ao
Direito Penal e que, por isso, não são ação. Ora, não sendo ação, também não são ação típica – mas
se a conduta nem é ação, não é necessário ir analisar a sua tipicidade.
Por outro lado, e ao contrário do que Figueiredo Dias defende, este conceito de ação não resulta só
dos tipos existentes de crime – este resulta, sim, de uma compreensão pré-jurídica, no sentido de pré-
típica, do que é a ação. Dito de outra forma, a questão da existência ou não de uma ação jurídico-
penalmente relevante é autónoma face à questão de saber se determinada ação é típica. Ou seja, é
possível existir um conceito de ação que seja suficientemente abstrato ao ponto de abarcar todos os
comportamentos relevantes para o Direito Penal, mas que seja prévio ao conceito de ação típica.
Além disso, quem defende um Direito Penal baseado no princípio da culpa (não é possível punir o
agente por atos não praticados no âmbito da sua autonomia), tem de defender a necessidade de
determinar quando é que um comportamento foi praticado nesse âmbito da autonomia e liberdade.
Este conceito é relevante, tendo aparecido pela primeira vez no manual de Berner de 1857,
como pedra básica do sistema do crime. No entanto, já desde longa data que Jescheck defendia que o
conceito de ação cumpre, fundamentalmente, quatro funções:
1) Função classificatória: O conceito de ação deve abarcar todas as formas do comportamento
humano que possam ser relevantes para o Direito Penal.

2) Função delimitadora: O conceito de ação deve determinar, à partida, os comportamentos que não
podem ser considerados crime – e, portanto, deve permitir por si só excluir todos os
comportamentos irrelevantes para o Direito Penal.

3) Função de definição: O conceito de ação deve ter um conteúdo material suficientemente amplo
para servir de suporte aos restantes elementos. Em última análise, tal significa que todos os outros
elementos do crime assentam no conceito de ação.

4) Função de elemento de ligação: O conceito de ação deve, além de ser amplo, também ser neutral
– ou seja, não qualificar já a ação como sendo típica, culposa, etc. –, para servir de suporte aos
restantes elementos da análise do crime.

Diferentes Conceitos de Ação


CONCEITO CAUSAL:
De todos os conceitos de ação que foram surgidos na história, atualmente, aquele que ninguém
defende é o conceito causal, proveniente da escola clássica. Segundo este, a ação é um movimento
corporal que leva a uma transformação no mundo exterior, estando esse movimento e essa
transformação ligados por um nexo de causalidade. Para além disso, também se pode dizer que este
conceito é causal porque obriga à demonstração de que o movimento corporal depende da vontade –
vontade, no sentido de ser a causa do movimento, não interessando ainda o conteúdo da mesma.
Desde logo, tal conceito é criticado porque não enquadra as omissões. A escola responde a tal
crítica, dizendo que as omissões estão integradas neste conceito, dado que na omissão continua a
haver uma ligação entre a mesma e a vontade do agente – nomeadamente, tendo este a vontade de
“reter” os músculos.

CONCEITO SOCIAL:
O conceito social de ação surgiu na escola neoclássica, e é atualmente defendido por muitos
autores, tais como Fernanda Palma. De acordo com este conceito, a ação traduz-se num
comportamento humano voluntário socialmente relevante.
Um comportamento humano pode ser considerado voluntário sempre que se traduzir numa resposta
do homem a uma exigência situacional reconhecida ou reconhecível mediante a realização de uma
possibilidade de ação, de que o agente dispõe em razão da sua liberdade. Dito que outra forma, o
comportamento humano voluntário traduz-se numa tomada de posição frente às possibilidades de agir
que se oferecem, tendo essa tomada de posição de ser controlada ou controlável pelo sujeito.
Ora, tal significa que só há uma ação jurídico-penalmente relevante se existir uma conduta praticada
por um homem individual, não abrangendo as condutas de pessoas coletivas. De qualquer forma, a
ideia central é a ideia de controlo, ou a ideia de direção: ou seja, tem de ser um comportamento
controlado ou controlável pelo sujeito. Além disso, tem ainda de ser um comportamento socialmente
relevante, no sentido de ter um efeito no exterior e de afetar a relação do indivíduo com a sociedade.
A principal crítica feita a este conceito é a de que não é suficientemente neutral, porque exige
que o comportamento fosse socialmente relevante; ora, há certos comportamentos que só são
socialmente relevantes por causa da sua relevância jurídica (ex: esquecimento de apresentação da
declaração de impostos no prazo legal).
Os defensores deste conceito afastam esta crítica, dizendo que esta característica de neutralidade da
ação não se deve ser tão rigorosa ao ponto de o “ser socialmente relevante” derivar de “ser
juridicamente relevante”. Ou seja, quando se exige a neutralidade, é no sentido de a ação poder servir
de base a valorações como a tipicidade ou a ilicitude, independentemente dessa tipicidade ou ilicitude.
Bárbara Brito concorda com esta contracrítica.

CONCEITO FINAL:
O conceito final de ação surgiu com a escola finalista, segundo a qual a ação é essencialmente
finalista, consistindo num processo causal conduzido pela vontade para determinado fim – existindo,
consequentemente, independentemente do direito.
Assim, na ação é necessário haver sempre três momentos: 1) momento onde se definem os objetivos
(antecipação mental dos fins); 2) momento onde se elegem os meios necessários à prossecução desses
fins; e 3) o momento de pôr em andamento os processos causais, com vista à prossecução dos fins.
Uma das críticas mais relevantes feitas a tal conceito será o facto de, mais uma vez, este não
incluir as omissões, dado que na omissão não existe o momento de pôr em andamento o processo
causal, com vista à prossecução do fim. Além disso, também parece não incluir as condutas
negligentes, nomeadamente na sua forma inconsciente, visto que o que caracteriza essa figura é o
agente nem sequer representar a realização do facto ilícito – assim, tal conceito só inclui as ações
intencionais, onde existe o primeiro e o segundo momento.
Face a estas críticas, os finalistas, numa segunda fase, vêm acrescentar que a tal “finalidade” não
implica uma ação intencional, mas sim uma ação conduzida ou conduzível por parte do agente. Isto
é, para haver uma ação, o agente tem de ter a possibilidade de escolher uma ação alternativa. Ora, tal
resposta acaba com a crítica, porque quer na omissão, quer nas ações negligentes, o agente tem a
possibilidade de um comportamento alternativo, existindo uma ação conduzida ou condutível.

CONCEITO FINAL:
O conceito pessoal de ação foi desenvolvido por Roxin, segundo o qual existe uma ação
jurídico-penalmente relevante quando houver uma exteriorização da personalidade do agente. Aqui,
exteriorização surge no sentido de uma conduta sujeita ao controlo do “eu”, enquanto instância mental
e física – existindo uma realidade ôntica na “exteriorização da personalidade”. Por outras palavras, a
ação tem de revelar a personalidade daquele indivíduo, nomeadamente no sentido de ser sujeito ao
controlo do “eu” – sendo, mais uma vez, a ideia de controlabilidade que está por detrás deste conceito.
Atualmente, Roxin defende que, que para além disso, é também fundamental que esse comportamento
tenha uma valoração social – por isso é que se pode dizer que o conceito pessoal de ação não deixa
de ser um conceito social.

OUTRAS CONCEÇÕES:
Jacobs defende que a ação surge como evitabilidade de uma diferença de resultados: para ele,
todo o comportamento que for evitável pode ser considerado ação, sendo a evitabilidade que vincula
o resultado ao agente. No entanto, o comportamento é evitável se for conhecido ou cognoscível pelo
sujeito, porque só nesse caso o sujeito pode ou tem a possibilidade de interferir nos acontecimentos.
Já Fletcher diz que a ação não deve ser explicada, mas sim compreendida – por isso, o que
importa é o contexto em que ela é realizada.
Bárbara Brito defende, também, um conceito de ação pré-jurídico, no sentido de pré-típico;
no entanto, este será também jurídico, porque parte, por exemplo, do princípio da culpa. Tal ideia
difere do que Fernanda Palma defende: para Bárbara, não existe uma diferenciação entre os autores
normativistas e os ontológicos, achando que tal conceito normativo pode, no entanto, ter bases
ontológicas fortes (não sendo, no entanto, também puramente ontológico – iria respeitar as valorações
do direito). Assim, Bárbara Brito defende uma multidisciplinariedade do Direito Penal sem, no
entanto, desrespeitar as valorações do direito: isto, porque não é pelo facto de se partir de um conceito
normativo, que não se possa densificar o mesmo com outras ciências.

Diferentes teorias científicas – livre-arbítrio


No entanto, é importante perceber que na ciência também não há consenso – sendo que esse
irá expor a parte da ciência com a qual Bárbara Brito concorda, nomeadamente os estudos de
Benjamim Libet. Libet, depois de assistir a várias operações ao cérebro em que o paciente está
acordado, descobriu que havia um atraso entre este tocar na mão do paciente, e o paciente perceber
do toque. Querendo provar que esse intervalo de tempo existia, fez uma experiência: pedia aos
experimentados que dissessem em que ponto estava o relógio quando decidissem levantar o pulso,
enquanto media a atividade elétrica do seu cérebro. Com isto, ele descobriu que a decisão, a atividade
elétrica, surgia meio segundo antes da pessoa dizer que tinha decidido levantar o pulso – ou seja, que
as decisões do ser humano são tomadas de forma inconsciente.
Tal descoberta foi interpretada, por muita gente, no sentido de que, se as decisões eram tomadas de
forma inconsciente, então não existia livre-arbítrio. No entanto, tal interpretação não é correta: apesar
de as decisões serem tomadas de forma inconsciente, existe uma altura em que o ser humano adquire
consciência dessa decisão – altura em que adquire, consequentemente, a possibilidade de vetar tal
decisão ou de continuar com a ação. Assim, Libet tende a acreditar que existe livre-arbítrio (porque
não o consegue provar cientificamente), visto que as decisões são tomadas de forma inconsciente,
mas depois existe um momento posterior em que o ser humano toma consciência dessa decisão, tendo
aí a possibilidade de a continuar ou vetar – pelo que existe, consequentemente, livre-arbítrio.
Já António Damásio defende que não se pode decidir uma questão tão importante como o
livre-arbítrio com base numa experiência que fala em milésimos de segundo, dado que o livre-arbítrio
é caracterizado pela capacidade que o agente tem de deliberar as grandes decisões da sua vida.
Bárbara Brito concorda: por um lado, de facto, o livre-arbítrio está nesta capacidade de antecipar e
de ver os prós e os contras de cada decisão; no entanto, isso não implica negar que não é necessário
preocupar com a questão do livre-arbítrio nas ações em concreto. Ou seja, independentemente do
tempo que se demora a tomar uma decisão, existirá sempre alguma altura em que o agente age – quer
agindo pela sua decisão de fazer, quer agindo pela sua decisão de não o fazer – pelo que é importante
perceber se, nessa altura, existe livre-arbítrio. Isto, porque o Direito Penal baseia-se todo na questão
de livre-arbítrio, não se podendo punir uma pessoa por algo que elas não são responsáveis. Portanto,
como Libet defende, tudo indica para a existência de livre-arbítrio, dado haver esta possibilidade de
continuar ou de vetar a ação quando se tem consciência da tomada da decisão sobre a mesma.

Negligência inconsciente: como é que é possível?


Importa, também, perceber que o Direito Penal não se ocupa só das ações dolosas ou de
negligência consciente; mas também de casos de negligência inconsciente, em que o agente tinha o
dever de representar o facto típico, mas não o fez. Ora, só faz sentido punir uma pessoa que não
representa, mas podia e devia ter representado, se ela podia efetivamente ter realizado essa
concretização do facto típico – pois só aí teria a possibilidade de controlar a sua conduta. Ou seja,
apesar de nas ações de negligência inconsciente não existir o conhecimento da decisão da realização
do facto típico, existe, contudo, a possibilidade desse conhecimento – e, consequentemente, existe a
possibilidade efetiva de tal pessoa controlar a decisão, sendo isso suficiente para lhe atribuir
responsabilidade.
Para perceber melhor este conceito, é necessário ir à neurociência, relativamente à matéria da
consciência sensorial. Ora, com base na ciência, existem dois tipos de sinais objetivos de perigos –
isto é, de fatores que podem levar a pensar na realização do facto-tipo: a visão com consciência; e a
visão sem consciência/deteção. Só no caso da visão com consciência é que se pode aceder às partes
do cérebro que raciocinam e preveem.
Aqui, é dado o exemplo de pais que, estando em stress crónico, foram encarregues pela primeira vez
de levar o filho bebé ao infantário, tendo este depois adormecido no caminho – em vez de o irem
levar ao infantário, os pais seguem para o trabalho e a criança fica fechada no carro o dia todo,
acabando por morrer. Neste caso, os pais nunca tiveram consciências de fatores que os pudessem
levar a pensar na morte do filho, porque o tal sistema atencional estava completamente ocupado,
nomeadamente com o stress. A somar a isto, Rui Costa provou que quando os ratos estão em stress,
eles entram em piloto automático: não fazem nenhuma ação nova, apenas aquelas que faziam antes.
Aplicando isto a este caso, estes pais “ligaram” o seu piloto automático – ou seja, não tiveram a
possibilidade de representar aquela ação, não tendo sinais objetivos de perigo, pelo que não podiam
prever a morte do filho.
Assim, para se poder demonstrar que uma pessoa tinha a possibilidade de prever o facto e,
consequentemente, tinha a possibilidade de controlar, é preciso demonstrar que ela teve consciência
desses sinais objetivos de perigo.
Além disso, é também necessário que ela tivesse a possibilidade de representar o perigo associado a
essa ação, quer em abstrato, quer em concreto – por exemplo, uma mãe tinha um filho raquítico, que
foi convencida pelas pessoas mais cultas da sua aldeia de que, se pusesse o filho em água a ferver,
ele ficaria curado. Ora, aqui, a mãe teve consciência dos sinais objetivos de perigo; mas não tinha a
capacidade de associar o perigo “morte” e a ação numa relação causal – pelo contrário, esta pensava
que ia curar o filho. Assim, não existe ação, pois ela não tinha possibilidade de ação alternativa.
Casos práticos
1. A dá um encontrão a B, e o B cai desamparado sobre um conjunto de peças de loiças, expostos
na loja. Quid Iuris?
O conceito de ação advém, como já se viu, do conhecimento empírico; não podendo, no
entanto, moldar-se apenas pelo mesmo. Assim, consegue-se encontrar, na doutrina atual, três
conceitos de ação que continuam a ser defendidos, nomeadamente: o conceito social, conceito final
e conceito pessoal de ação.
Apesar das suas diferenças, todas elas têm em comum a ideia de controlo. Isso resulta, desde logo,
do princípio da culpa, pois só faz sentido punir uma pessoa se esta tiver atuado no âmbito da sua
liberdade. Consequentemente, para se perceber se o agente, num caso concreto, atua no âmbito da
sua liberdade e autonomia, é necessário verificar se este tinha controlo, ou pelo menos possibilidade
de controlo, da sua ação.
Ora, a ação de B cair não é uma ação controlada por ele, visto que não é pontuada pela sua vontade –
este não tinha alternativa de ação, apenas caiu porque A o empurrou. Estes casos são chamados de
“atos praticados em vis absoluta”, em que o corpo é como uma espécie de massa inerte – pelo que
não oferecem ao agente a possibilidade de controlar a sua conduta, não existindo a tal possibilidade
de ação alternativa. Significa, isto, que existe uma ação no sentido de comportamento humano; mas
não uma ação no sentido jurídico-penalmente relevante.
➔ Outro exemplo será alguém que apanha um choque elétrico e, devido a este, mexe os braços,
dando uma chapada numa pessoa: o corpo do agente é uma massa inerte, não tendo este a
possibilidade de controlar aquele movimento – e, por isso, não há uma ação jurídico-penalmente
relevante.
Já quanto a A, a pessoa que empurrou, existe uma ação jurídico-penalmente relevante, dado
que este tinha a possibilidade de controlar a sua ação e, também, de escolher não agir daquela forma.
Estabelece-se, assim, que A é o autor material do crime de ofensas à integridade física de B; mas
quanto à ação que provoca a loiça partida (ou seja, a ação de B cair), será A um autor mediato ou um
autor material?
O autor mediato é alguém que utiliza outra pessoa como instrumento. Assim, para A ser autor
mediato, era preciso que B fosse instrumentalizado, mas que tivesse, mesmo assim, capacidade de
ação alternativa – por exemplo, na situação de A lhe apontar uma arma e dizer que ou ele parte a
loiça, ou ele dispara. Neste caso, existe de facto uma possibilidade de ação alternativa, dado que B
poderia escolher não partir a loiça – sendo que, depois, poder-se-á argumentar estado de necessidade
desculpante, que exclui a culpa; mas existiria, de facto, uma ação por parte de B.
Assim, no caso em apreço, A vai ser punido como autor direto material do crime de dano, dado que
B não tinha possibilidade de ação alternativa – e, por isso, A não é apenas autor mediato, mas imediato
(sendo punido em concurso efetivo quanto ao crime de ofensas e quanto ao crime de dano).

2. A, condutor de um camião tire, viajava há dois dias seguidos, parando só para comer, com o
intuito de chegar mais cedo. Já perto de Coimbra, deixou-se adormecer ao volante, e acabou
por embater no carro de C, provocando a sua morte. Quid Iuris?
Para perceber se existe uma ação jurídico-penalmente relevante, há que distinguir dois
momentos: 1) o momento em que A embate no carro a dormir; e 2) o momento em que A continua a
conduzir.
No primeiro momento, não existe, de facto, nenhuma ação, dado que, estando a dormir, A não teria
nenhuma possibilidade de ação alternativa. Agora, empiricamente, o problema não é esse; o problema
é que A se apercebeu que estava cansado e, mesmo assim, continuou a conduzir.
Portanto, o momento relevante para decidir se há ou não ação é o momento em que A decide continuar
a conduzir, mesmo sabendo que está cansado – ou seja, antecipa-se o momento relevante em relação
ao momento em que o agente lesa o bem jurídico. Chama-se a isto “ação livre na causa”, porque
quando A se apercebe que está cansado, mas mesmo assim decide continuar, nesse momento, A tinha
possibilidade de ação alternativa – pelo que há uma ação jurídico-penalmente relevante.

3. A vai a conduzir no meio da cidade à velocidade legal e, de repente, surge uma criança à frente
do carro para apanhar a bola. Ele não consegue travar a tempo, e ela acaba com ofensas
corporais. Quid Iuris?
Neste caso, está-se perante um “ato automático”, em que o agente não tem a possibilidade de
uma ação alternativa – isto, apesar de a resposta variar de pessoa para pessoa: por exemplo, do tempo
de reação que tem, da força psicológica, etc. Ou seja, Roxin tende a achar que nos atos automáticos,
continua a existir uma ação, por causa dessa variação – é uma resposta pessoal, sendo isso suficiente
para se poder falar em ação juridico-penalmente relevante.
Bárbara Brito não concorda com Roxin visto que, apesar de ser uma resposta pessoal, tal não é
suficiente para se chegar à conclusão de que é uma ação, porque a ideia por detrás dessa é a de
controlo da ação – ora, nestes casos, não há esse controlo, logo não existe uma ação relevante.
No entanto, estes atos automáticos não podem ser confundidos com os “atos reflexos”: ato que
é sempre o mesmo em todas as pessoas, não existindo uma resposta pessoal – ex: espirrar, bater com
o martelo no joelho, etc. – e, consequentemente, não existindo ação, até para Roxin.
Assim, enquanto o ato reflexo é igual em todas as pessoas; já o automático é flexível, dependendo de
pessoa para pessoa. Esta diferença faz com que parte da doutrina pense que o ato automático é uma
ação relevante, enquanto o ato reflexivo não o é. No entanto, e como já foi visto, o facto de a resposta
ser pessoal não é suficiente para categorizar o ato como ação relevante: o facto ser variável não
significa que haja a tal possibilidade de controlo; sendo tal impossibilidade confirmada pela ciência
– direito interdisciplinar, que se baseia nas outras ciências que estudam o comportamento humano. É
com base nessas que se percebe quando há controlo ou possibilidade de controlo.

Concluindo…
Concluindo, para perceber se existe uma ação jurídico-penalmente relevante, é necessário
averiguar se o agente controlou ou tinha a possibilidade de controlo da sua ação. A resposta a esta
questão, além de ser uma resposta fundamentada (isto é, verdadeira quanto aos factos), é também
uma resposta com eficácia: isto é, para que se consiga efetivamente prevenir a prática de crimes, esta
resposta só pode ser dada tendo em conta o que as outras ciências que estudam o comportamento
humano dizem sobre isso.
No entanto, e apesar de Bárbara Brito defender esta interdisciplinaridade, tal não significa substituir
as valorações do Direito Penal por valorações de facto de outras ciências. Ou seja, a professora
defende que tal ideia não significa a transferência de conceitos de Direito Penal para outras ciências;
defende-se, pelo contrário, que esses conceitos devem-se fundamentar em dados ontológicos firmes
– o que implica, necessariamente, ter em conta os conhecimentos adquiridos pelas ciências que
também se debruçam sobre o conceito de ação.
➔ De entre as várias ciências que se debruçam sobre o comportamento humano, é a neurociência da
ação que tem alcançado os resultados mais importantes, e que tem influenciado decisivamente o
estado da discussão da ação em todas as outras ciências, incluindo o Direito Penal.

A Omissão
A omissão é um comportamento humano?
Normalmente, quando se fala de ação jurídico-penalmente relevante, está-se a pensar não só
nas ações em sentido estrito, mas, também, nas omissões e na inatividade. A este título, importa
referir: será que a omissão faz parte do género “comportamento humano”?
Para uma parte da doutrina (Welzel, José Sousa Brito e Bárbara Brito), a omissão só faz
sentido dentro do género comum à ação e omissão – isto é, o género “comportamento humano”. Por
isso, a omissão deve ser vista como uma realidade que tem existência no mundo exterior ao lado da
ação: trata-se de uma resposta a uma dada situação controlada ou controlável pelo agente.
Para outra parte da doutrina (Mezger, Radbruch, Eduardo Correia e Figueiredo Dias), a
omissão não existe como realidade no mundo exterior; é, sim, um produto, um juízo efetuado por
quem julga o agente, ao relacionar a conduta praticada com a conduta esperada. No entanto, tal é
criticável pelo facto de quem formula o juízo é o julgador – ora, não faz sentido efetuar valorações
sobre juízos (no sentido de ação), mas sim sobre algo que existe na realidade.
Tal posição está na base da “doutrina subjetiva da negação”, que deve ser substituída pela “doutrina
diferenciada da negação”. De acordo com a primeira, a omissão não faz parte do comportamento
humano, mas é sim um juízo de valoração que resulta da comparação entre a ação esperada. Já na
segunda, a negação faz-se sempre dentro do mesmo género – o que significa que a negação da ação
(omissão) deve fazer-se dentro do género “comportamento humano”.
➔ Por exemplo, na frase “A não salva B”, só se pode dizer que há aqui uma omissão – ou seja, que
A omitiu salvar o B – se A teve o comportamento humano de não salvar B quando o poderia ter
feito. Esta também pode ser verdadeira nas situações em que A não teve a possibilidade; mas só
faz sentido ver esta frase como uma omissão juridicamente relevante se se considerar a ação de
omitir como estando dentro do género comportamento humano.
Assim, para a parte da doutrina que entende que os conceitos de Direito Penal se baseiam apenas em
valorações jurídico-criminais, a questão da natureza da omissão ou da ação não interessa. No entanto,
e como foi dito, Bárbara Brito entende que o conceito de ação, apesar de criado pelo Direito Penal,
tem de se basear em dados ontológicos firmes – pelo que será necessário avaliar a natureza da
omissão, ou seja, discutir se esta faz ou não parte do comportamento humano.

Quando é se está perante uma ação ou uma omissão?


De qualquer das formas, independentemente da doutrina adotada, importa, para todos os
autores, saber quando se está perante uma ação ou perante uma omissão. Relativamente a isto, existem
várias posições doutrinais.
Jakobs defende que na ação existe um motivo a mais e, em consequência, um movimento
corporal a mais; enquanto na omissão existe um motivo a menos e, como tal, não há causalidade do
movimento. Tal posição é criticada porque a decisão é resultado de um processo deliberativo, pelo
que o motivo de decidir atuar não significa ter um motivo a mais: significa, apenas, que se decidiu.
Mezger considera, por sua vez, que o que importa é determinar se a censurabilidade jurídico-
penal está no comportamento ativo ou omissivo.
Arthur Kaufmann defende que, nos casos duvidosos, decide-se se há uma ação ou uma
omissão aplicando-se o princípio da subsidariedade: isto é, só se deve encarar aquele comportamento
humano como omissão se não se conseguir perspetivá-lo como ação. Tal é criticado porque acaba por
não ser um critério, na medida em que não permite distinguir objetivamente ação de omissão.
Engesh, assim como Jescheck e Roxin, defendem que na ação há um dispêndio de energia, ou
seja, há uma introdução positiva de energia determinante da produção do resultado, que não existe na
omissão. No entanto, tal posição é criticada porque nos crimes omissivos, às vezes há esse dispêndio
de energia; apesar de, positivamente, o critério apela para alguns dados ontológicos.
Aliás, tal distinção é tão difícil que Roxin cria a figura de “omissão por fazer”, em que a ação
permanece ação, mas deve ser punida dentro de um tipo omissivo, por razões normativas. Dá-se como
exemplo a tentativa interrompida de cumprimento de uma imposição legal, nomeadamente o caso de
o pai, cuja criança está em risco de se afogar, que vai buscar um bote para tentar salvá-la, mas que ao
chegar com o bote à praia interrompe os seus esforços, podendo tê-los continuado, e a criança afoga-
se. Neste caso, Roxin, assim como Figueiredo Dias, afirmam que se o processo salvador ainda não
atingiu a esfera da vítima (no caso exposto, se o bote ainda está na praia e aí fica), o caso deve ser
tratado nos quadros da omissão, não da ação – isto porque, além do mais, não existem razões político-
criminais e teleológicas a justificarem que a situação jurídico-penal de quem interrompe, contra o
dever, um processo causal salvador seja pior (ação) do que a daquele que, ab initio, decide, contra o
dever, não intervir na situação (omissão). Isto é, se o processo salvador ainda não atingiu a esfera da
vítima, o caso deve ser tratado como omissão: há uma ação por parte do sujeito, porque ele apanha o
barco para tentar salvar o filho, mas tal vai ser tratada como uma omissão.
➔ Outro exemplo, o de um nadador-salvador que se embriaga até à inconsciência para tornar
impossível acorrer a uma situação de necessidade a que venha a ser chamado – esta é uma omissão
libera in causa. Mas deve ser tratada como ação ou omissão? Para Roxin, esta deve ser tratada
como omissão se a pessoa que se embriaga tem dever de garante; no entanto, o facto de se
embriagar é uma ação – isto, porque o momento relevante é o momento em que se embriaga, dado
ser este o momento em que ele tem escolha. Ora, a omissão por fazer só faz sentido nos casos em
que há dever de garante, algo que neste caso existe: o agente não diminuiu um perigo que,
independentemente dele, afetava um bem jurídico – apesar de, no plano ôntico-fenomenológico,
o seu comportamento incluir eventualmente atos de “introdução positiva de energia”.
No meio disto, o critério mais defendido será aquele defendido por Stratenwerth, Figueiredo
Dias, Paula Ribeiro de Faria e Bárbara Brito. Segundo este, na ação, o agente cria ou aumenta o
perigo, que se vem a concretizar na ação; enquanto na omissão, o agente não diminui ou não afasta
um perigo já existente. Tal critério é considerado o “correto”, porque consegue explicar porque é que
a omissão é tendencialmente punida mais levemente do que a ação – artigo 10º CP, nº3: esta pena
“especialmente atenuante” só existe porque o agente apenas não afasta um perigo já existente.
➔ Além disso, segundo Figueiredo Dias, a omissão deverá ser estudada como forma especial do
surgimento do crime; não se encaixando perfeitamente na análise da ação.
Omissões puras/próprias e impuras/impróprias:
Existem, mais uma vez, várias doutrinas relativamente à distinção entre omissões puras e
omissões impuras.
O critério misto, defendido por Bárbara Brito, define que as omissões puras são aquelas que,
independentemente do resultado, integram um tipo de crime – e, por isso, encontram-se descritas no
tipo legal de crime (ex: omissão de auxílio – artigo 200º CP). Já as omissões impuras são aquelas que
estão relacionadas causalmente com o resultado e, além disso, não se encontram descritas num tipo
legal de crime – sendo, por isso, indispensável o recurso à cláusula de equiparação do artigo 10º, nº2
CP e à sua cláusula de equiparação. Ou seja, uma pessoa só poderá ser punida por uma omissão
impura se sobre ela recair um dever de garantia – um dever jurídico que pessoalmente a obrigue a
atuar – e, por consequentemente, ter uma posição de garante.
➔ Tal critério é considerado misto, porque mistura o critério mais utilizado na doutrina – segundo o
qual omissões puras não estão relacionadas causalmente com o resultado, enquanto as omissões
impuras estão relacionadas causalmente com o resultado –; e o critério de Figueiredo Dias,
segundo o qual as omissões puras se podem, também, caracterizar por estarem descritas num tipo
legal de crime, enquanto as omissões impuras são construídas conjugando os crimes da parte
especial do CP com este artigo 10º, nº2.

Fontes do dever de garantia


Segundo o critério formal (Feuerbach e Stubel), são fontes do dever de garantia a lei, o
contrato e a ingerência – ou seja, quando o agente tem um comportamento prévio perigoso. No
entanto, este critério foi afastado, dado ser considerado insuficiente, designadamente por não abarcar
situações em que deve existir este garante: por exemplo, segundo esta teoria, a babysitter contratada
por um casal só teria posição de garante até às horas acordadas; no entanto, se estes não chegasse a
essa hora, não seria razoável dizer que a babysitter poderia deixar a criança sozinha em casa, sem
qualquer tipo de supervisão.
Assim, o critério material, adotado por toda a doutrina, permite ligar a infração daquele dever
de garantia a um sentido de ilicitude material face à ordem jurídica portuguesa. Este critério permite
distinguir a relevância jurídica da meramente ética, tendo sido apresentado por Armin Kaufmann.
➔ Muitas variantes foram desenvolvidas com base nesta teoria, nomeadamente por Jakobs,
Shunamann e Roxin; e, ainda, por Figueiredo Dias.
o Este último defende a conceção material formal, segundo a qual deve existir uma conjugação
das teorias material e formal: o dever resulta ou é imposto por força das exigências de
solidariedade para com o outro, apoiado num claro vínculo jurídico – vínculo esse que só
pode ser retirado de um sentido da ilicitude material. Ou seja, para se determinar se há uma
posição de garante, é necessário olhar para o tipo de ilícito e concluir que o desvalor da
omissão corresponde, no essencial, ao desvalor da ação naquela situação em concreto.
A teoria de Armin Kaufmann, chamada de “teoria das funções”, permite ver ao pormenor todas as
situações em que deve haver o especial dever de agir. De acordo com esta teoria, deve existir uma
divisão bipartida da posição de garante – o que significa que é necessário distinguir os casos em que
há a posição de garante de não ofensa de um bem jurídico independentemente da fonte de perigo; das
situações em que se confere a posição de garante relativamente a uma certa fonte de perigo. Dito de
outra forma, segundo esta teoria, ou existe um dever específico de assistência a um titular de bens
jurídicos carecido de amparo, independentemente da fonte de perigo; ou existe um dever de vigiar
uma fonte de perigo, independentemente do titular do bem jurídico em causa.

1. Dever de vigiar o titular:


O dever específico de assistência a um titular de bens jurídicos carecido de amparo,
independentemente da fonte de perigo, pode derivar de várias fontes, nomeadamente: 1) de uma
situação de solidariedade natural para com o titular de bens jurídicos apoiada no vínculo jurídico; 2)
de uma estreita relação de comunidade de vida ou de proximidade; 3) da assunção fática, voluntária
de deveres de custódia; ou 4) de uma relação de comunidade de perigos.
NOTA: Atualmente, Figueiredo Dias entende que, nos três primeiros casos, há relações fáticas entre
aquele sobre o qual a lei faz recair um certo dever, e o bem jurídico lesado pelo resultado –sendo essa
relação fática que fundamenta a posição de garante (variante da teoria).
Relativamente à situação de solidariedade natural, dá-se o exemplo da relação entre pais e
filhos: o pai tem uma posição de garante perante o filho, porque tem um dever específico de assistir
o mesmo, resultante de uma situação de solidariedade natural para com o mesmo (dever esse que,
depois, tem apoio na lei). O mesmo acontece com a relação entre, depois, um filho para com um pai
mais velho.
Relativamente à estreita relação de comunidade de vida ou de proximidade, dá-se o exemplo
das uniões de facto, ou de uma relação de vizinhos com quem haja uma relação de confiança próxima.
Relativamente à assunção fática, voluntária de deveres de custódia, dá-se o exemplo da
babysitter; ou ainda da relação entre um médico e os seus doentes ou de um instrutor de condução
face aos seus alunos; ou, até, do dever de autoridades encarregados da proteção do meio ambiente.
Denota-se, aqui, que quando se fala em assunção, não interessa se a relação contratual é válida: o que
importa é que houve uma assunção de custódia baseada numa relação de confiança – e, por isso, é
que a babysitter não se pode ir embora e deixar a criança sozinha (teria, por exemplo, de ir chamar
um vizinho que ficasse com a criança).
Relativamente à relação de comunidade de perigos, fala-se de situações em que há um
conjunto de pessoas que decidem efetuar uma atividade perigosa, no pressuposto de que se alguém
estiver em perigo, a outra pessoa ajuda. Isto é, são casos em que, por força das relações de confiança
e de dependência mútuas que se estabelece no grupo, essas pessoas correm riscos acrescidos.
Segundo Figueiredo Dias, é necessário verificarem-se três pressupostos para que desta situação
resulte a posição de garante, nomeadamente tem de haver: 1) uma relação estreita e efetiva de
confiança; 2) uma comunidade de perigos real e não presumida; e 3) tem de ficar em perigo um bem
jurídico concreto, que precise de proteção.
➔ Por exemplo, numa excursão de alpinistas, ou numa descida em rafting num rio turbulento, todos
têm o dever de garante uns para com os outros, dado o carácter arriscado do empreendimento
conjuntamente reconhecido e aceite.
Segundo Fernanda Palma, nestes casos de comunidade de perigos, só há posição de garante (e,
consequentemente, responsabilidade pelo resultado) se fosse previsível para o agente a
responsabilidade inerente à sua atividade. Ora, tal só existe se houver uma autovinculação ou uma
assunção de responsabilidades, ainda que implícita, por parte do agente.
➔ Por exemplo, se o agente vai a esquiar com um amigo, e há uma avalanche que soterra este último,
para Fernanda Palma, não houve essa aceitação implícita de deveres inerente à atividade perigosa
– logo, não existe um dever de garante. No entanto, denota-se que, mesmo que se considerasse
que existia um dever de garante, o facto de o agente não salvar o amigo porque corre, também
ele, perigo de vida poderá ser relevante para se excluir a culpa do mesmo.

2. Dever de vigiar uma fonte de perigo:


O dever de vigiar uma fonte de perigo, independentemente do titular do bem jurídico em
causa, pode resultar de várias fontes, nomeadamente: 1) de um comportamento prévio perigoso
(ingerência); 2) de um âmbito social de domínio; 3) de um dever de controlar a ação de terceiro por
parte de quem exerce sobre ele um poder de domínio ou de controlo; e 4) das situações de monopólio
(atualmente discutíveis).
Relativamente ao comportamento prévio perigoso, o exemplo paradigmático dado é: se o
agente for contra um carro, colocando uma pessoa em perigo, este terá uma posição de garante – pelo
que, se fugir e a pessoa morrer, será punido pelo crime de homicídio por omissão.
Há, no entanto, uma discussão na doutrina sobre se este comportamento prévio perigoso pode ser
lícito. Por exemplo, A ataca B com uma navalha, e B dá-lhe um soco – A fica inanimado, e B vai-se
embora, deixando A para morrer. Neste caso, o comportamento de B é lícito, na medida em que ele
age em legítima defesa – terá ele, então, um dever de garante, nomeadamente de socorrer A?
➔ Bárbara Brito defende que, se realmente A ficasse numa situação de perigo e a única forma de a
salvar seria B agir, então este passa a ter posição de garante.

➔ Fernanda Palma defende que, no caso de legítima defesa, não há dever de agir, porque não há
ultrapassagem da esfera de liberdade da ação própria. No entanto, se a ação prévia perigosa não
for de legítima defesa, mas for uma contrariedade objetiva ao dever, que coloca a vítima numa
situação de perigo acidental, o agente já terá uma posição de farante, dado que a esfera da
liberdade de ação do agente interferiu involuntariamente com a dos outros, deixando-os numa
situação de impossibilidade de controlo sobre a sua sobrevivência.
o Por exemplo, se durante a condução, os travões falham e o agente vai contra um peão, este
terá uma posição de garante, dado que coloca o peão nessa situação de impossibilidade.

➔ Figueiredo Dias defende que, no caso de legítima defesa, não existe dever de garante; existindo,
no entanto, nos casos de Estado de Necessidade. Por exemplo, o caso de, para impedir um
incêndio, o agente empurra uma pessoa: apesar de ter existido um comportamento lícito, a pessoa
sobre a qual este se exerceu não tem de suportar a consequência desse mesmo comportamento,
pelo que faz sentido ter o dever de agir.
Relativamente ao âmbito social de domínio, diz-se que se deve poder confiar em quem exerce
o poder de disposição sobre um âmbito de domínio, ou em determinado espaço limitado, que se
encontra acessível a outras pessoas. Por exemplo, os controladores aéreos têm dever de garante
relativamente aos movimentos dos aviões; os donos de industriais têm dever de garante relativamente
à segurança dos seus estabelecimentos; os condutores têm o dever de garante relativamente à
conservação dos seus veículos; os donos de animais têm o dever de os fiscalizar, em vista dos perigos
que deles partem; e os produtores têm dever de garante face aos perigos que os seus produtos possam
criar (ex: polémica da Tesla).
Relativamente ao dever de controlar a ação do terceiro, tal é o que acontece nos casos em que
há o dever de vigiar face a atuação de terceiros que não são responsáveis, ou que têm a sua
responsabildiade diminuída ou limitada (ex: incapazes; pais perante os filhos; instrutores de qualquer
espécie). Pode, no entanto, também haver este dever em caso de terceiros plenamente responsáveis –
por exemplo, no caso de elementos da força armada.
Relativamente às situações ditas de monopólio, são situações instantâneas acidentais, de
limite, em que o agente é a única pessoa que está em posição de evitar o resultado, podendo fazê-lo
com pouco esforço – ou seja, não implicando colocar em perigo bem jurídicos próprios.
Figueiredo Dias entende que, para um monopólio ser fonte de dever de garante, é preciso que: 1) o
agente esteja investido numa situação de domínio fáctico, absoluto e próximo da situação; e 2) o
perigo para o bem jurídico seja iminente e agudo. Consequentemente, para este professor, não é,
sequer, essencial que exista uma única pessoa que detem aquele poder – pelo que daí que a palavra
certa não seja monopólio. Ou seja, se houver uma pluralidade de pessoas determináveis que tenham
esse domínio absoluto da situação, todas elas têm posição de garante; mas já não se poderá dizer que
esta é uma situação de monopólio.
➔ O exemplo dado é o de 4 pessoas, sozinhas na praia, com o mar completamente calmo e sem
ondulação – mas há uma pessoa desconhecida que se está a afogar. A única coisa que os agentes
têm de fazer é entrar na água e dar o braço à pessoa que se está a afogar para a salvar, sendo que
são os únicos que estão em posição de o fazer. Estes terão de agir? Serão punidos se não o fizerem?
Tais perguntas são importantes, dado que o problema de se afirmar a existência de um dever de
garante de alguém é que este acaba por limitar a liberdade da pessoa.

Fernanda Palma considera que o monopólio acidental – no sentido que são situações que surgem por
acaso – pode ou não ser fonte do dever de agir, consoante a possibilidade de ficcionar legitimamente
qualquer aceitação ou autovinculação do agente a um dever de evitar o resultado. Ou seja, só há, nas
situações de monopólio, um dever de garante quando se pode dizer que aquela pessoa aceitaria face
aquele perigo – se soubesse que ia ser posta perante aquele perigo.

➔ No exemplo dado anteriormente, Fernanda Palma já considera que não há um dever de garante,
porque não se pode ficcionar qualquer aceitação ou autovinculação do agente (as 4 pessoas) a um
dever de evitar a morte daquela pessoa – ou seja, o agente não podia contar com esta obrigação;
logo, apenas existe um crime de omissão de auxílio.

➔ Já no caso em que A acompanha B ao hotel para ter relações sexuais contratadas anteriormente,
e A tem um ataque cardíaco, já parece razoável imputar à omissão de B o resultado morte, pois
na relação anteriormente estabelecida contratual, há uma aceitação, ainda que implícita, da
responsabilidade pela vida do outro.
o Este último caso é inspirado no caso do EUA “People vs. BeardSley”, em que o agente passou
o fim de semana com uma mulher com quem não era casado, e durante esse período a mulher
ingeriu uma dose considerável de morfina, não tendo o agente chamado o médico para a
salvar. O agente, em primeira instância, foi condenado por voluntary manslaughter; no
entanto, no recurso, o Supremo Tribunal revogou a decisão, com fundamento na inexistência
de um dever legal de proteção e assistência.
Já André Lamas Leite considera que nestes casos ditos de monopólio, o verdadeiro fundamento
jurídico e pessoal do dever da ação reside na abissal desproporção entre o bem jurídico em perigo e
o esforço exigido ao omitente no decurso do processo salvador. Por isso, para este, os requisitos que
têm de estar preenchidos para existir uma situação de monopólio são: 1) estar em causa bens pessoais;
2) não existir outra fonte aplicável; 3) haver uma desproporção evidente entre o bem jurídico em
perigo e o esforço exigível ao omitente; 4) existir um carácter atual e iminente do perigo; 5) existir
uma proximidade física do agente em relação à vítima; 6) o agente não pode ter provocado o perigo;
7) existir uma razoabilidade da ordem jurídica exigida ao indivíduo, à luz da prevenção geral positiva,
que atue no sentido de evitar a lesão do bem jurídico.

Constitucionalidade do artigo 10º, nº2 CP:


Discute-se a constitucionalidade do artigo 10º, nº2, relativo ao dever de garantia, dentro das
omissões impuras), criticando-se que este poderá pôr em causa o princípio da legalidade, à luz do
qual há a exigência da determinação da norma. Ou seja, para se chegar à ideia destes deveres de
garantia, é necessário recorrer ao critério material, que é demasiado indefinido para não se pôr em
causa o princípio da determinabilidade das normas penais.
Figueiredo Dias responde a esta crítica dizendo que, segundo a sua teoria material formal, a
determinação dos deveres de garantia é rigorosa – sendo esta, por isso, compatível com o princípio
da legalidade.
Já para os autores que defendem que o tipo de crime que proíbe a produção de um resultado inclui
quer as ações, quer as omissões (dado que fazem parte do mesmo género de comportamento humano),
este artigo atua como uma cláusula restritiva da tipicidade – e, por isso, não se aplica a esta o princípio
da legalidade, pelo que a sua violação não estará em causa.

Casos práticos
1. Uma rapariga, tendo ficado grávida, ocultou o facto a todos. Quando sentiu as dores do parto,
fechou-se no quarto da sua residência e não pediu a possível ajuda da sua mãe. Nascida a
criança, não laqueou o cordão umbilical, nem desobstruiu as vias respiratórias do recém-
nascido, o que ocasionou a sua morte. Quid Iuris?
Em primeiro lugar, é preciso saber se há ou não uma ação jurídico-penalmente relevante, algo
que parece haver, já que foi controlada pela vontade – e, mesmo que não se provasse que era
controlada, era pelo menos controlável.
Assim, está-se perante uma ação em sentido estrito ou uma omissão? Ora, na ação, o agente
cria ou aumenta um risco existente; enquanto na omissão, a pessoa não diminui o risco já existente.
Do ponto de vista do tipo de crime, o relevante é o facto da agente não ter ido ao hospital, não ter
chamado pela irmã, não ter laqueado o cordão umbilical e não ter desobstruído as vias respiratórias
do recém-nascido. Chega-se, assim, à conclusão de que houve uma omissão, dado a agente não ter
afastado o perigo existente.
Dito isto, a próxima preocupação é saber se há ou não especial dever de agir. O critério
aplicável neste caso seria o dever de assistência ao bebé por solidariedade natural entre mãe e filho,
apoiada no vínculo jurídico. Havendo este especial dever de agir, e não tendo ela agiu, poderá ser
punida pelo crime de infanticídio por omissão – sendo esta uma omissão impura porque, além de
estar causalmente relacionada com o resultado, a agente tem uma posição de garante que resulta da
solidariedade natural para com o titular de bens jurídicos, neste caso o seu filho. Poder-se-ia,
eventualmente, discutir aqui a aplicação do crime de homicídio privilegiado, com base na “compaixão
ou desespero”, especialmente no desespero de ser descoberta (artigo 133º CP).
2. D e E entram na casa de B. Porém, já lá dentro, dão de caras com este que, percebendo
imediatamente tratar-se de um assalto, dispara na direção de ambos com a arma que trazia
consigo, atingindo D no estômago. E, temendo ser o próximo a ser atingido, foge imediatamente.
B, não obstante ter reparado que D ficou em perigo de vida, decide não fazer nada para o ajudar,
com forma de vingar a tentativa de assalto. D acaba por morrer. Quid Iuris?
Partindo do pressuposto de que há legítima defesa, a discussão a ter aqui seria se existe um
comportamento perigoso ilícito. Nem toda a doutrina tem a mesma posição: uma parte defende que,
quando a ingerência é ilícita, o agente deixa de ter posição de garante; já outra parte defende que tal
posição não desaparece com a ilicitude. Além disso, outra fonte do dever de garante poderia ser a
situação de monopólio, dado B ser o único que estava na posição de salvar D, não se exigindo muito
dele para o fazer.
Já E, que fugiu, também poderia ser punido por crime de homicídio por omissão, por relação
de comunidade de perigo ou de vida (assumindo que E e D eram amigos).

Acórdão nº03P1677:
Neste caso, o relevante foi o agente não ter auxiliado a mãe, nomeadamente não ter levado a
mãe para um sítio onde esta pudesse ser cuidada. Ele deixou comida, mas que claramente não era boa
– 4 garrafas de leite Ucal e várias sandes.
Na decisão recorrida e na opinião que fez vencimento, a posição de garante foi deduzida e
construída (pois a posição de garante na comissão por omissão é um «real construído») muito a partir
do dever de prestar alimentos aos ascendentes, que é um dever jurídico com o sentido e a dimensão
que lhe assinala o artigo 2009º , nº1 , alínea b), do Código Civil (embora com modo de prestação
legalmente fixado – artigo 2005, do mesmo diploma), e da proximidade física do arguido em relação
à mãe («vivia com a mãe desde 1995, e era a única pessoa de família que vivia com a mãe»).
Provando-se que o arguido, antes da ausência, apenas forneceu à mãe «garrafas de leite com
chocolate e algumas sandes» , não se demonstra que este possuísse as qualidades e as capacidades
pessoais minimamente exigidas para prestar os cuidados de alimentação, tratamento e higiene
adequados a evitar o resultado (o concreto resultado, pois apenas esse é relevante na qualificação
aceite), ou seja, no caso, a morte.
Pergunta-se, no entanto, se o dever jurídico também incumbia aos outros dois filhos que,
vivendo na mesma cidade , «não se interessavam com o estado da mãe». Será que o facto de não
existir uma relação de proximidade enfraquecia a posição de garante do arguido? Bárbara Brito
defende que entre os irmãos e a mãe não existia qualquer relação de proximidade capaz de gerar o
dever jurídico de assistência – sendo que, no entanto, em certas situações, o dever de garante não
desaparece necessariamente por estar longe da pessoa. Contudo, se os irmãos sabiam da incapacidade
do irmão para cuidar da mãe, já se pode falar de dever de garante e de omissão impura de homicídio.
A omissão, sendo a abstenção de atuar, pode ser simples ou própria (a que se exprime por um
«comportamento negativo voluntário ou imprudente, ainda que não conduza a um resultado
material») ou comissiva ou imprópria (se materializada numa «abstenção que produz um resultado
material proibido - v.g. a morte provocada pela não alimentação de um filho de tenra idade»). A lei
penal refere que, quando o tipo compreende o chamado evento ou resultado (como por exemplo
acontece com a morte no homicídio), o facto abrange não só a ação como também a omissão
adequadas à sua produção. É o que estatui o art.º 10º, n.º 1, do CP. Ou seja, o que promana do preceito
citado é, por um lado, a equiparação da omissão à ação, e, por outro, que a ligação da conduta ao
resultado tem de ser vista em termos de causalidade adequada, de harmonia com a qual a causa de
determinado resultado é a que for adequada ou idónea para o produzir, segundo as máximas da
experiência e a normalidade do acontecer.
Sintetizando e concluindo, pode-se afirmar que se um comportamento omissivo provocar um certo
resultado típico é de considerá-lo, para efeitos penais, como se tivesse sido produzido por ação (ou
seja, se não fosse a omissão o resultado não se teria produzido).
➔ «A doutrina tradicional era, como se sabe, no sentido de que tal ocorreria quando a posição de
garante derivasse da lei, de um contrato ou de uma situação de ingerência, é dizer, de perigo para
bens jurídicos criados, ainda que não culposamente, pelo próprio omitente. Esta doutrina
fortemente restritiva encontra-se de algum modo em crise e à qual não é estranha, decerto, uma
muito mais afinada sensibilidade que hoje se possui para os valores e experiências de solidarismo
e da comunidade de vida.»
Dito isto, que inegavelmente responde de forma cabal à situação em análise, não se mostra
possível furtar o recorrente à responsabilidade penal tal como ela vem definida no acórdão posto em
crise. De harmonia com o exposto, acordam na Secção Criminal deste Supremo Tribunal de Justiça
em conceder parcial provimento ao recurso, condenando-se o arguido A, pela prática de um crime de
homicídio voluntário consumado, p. e p. pelo artigo 131º do CP, na pena de 10 anos de prisão.

TIPICIDADE
Introdução: Relação entre a tipicidade e a ilicitude
Para grande parte da doutrina, o tipo é o primeiro degrau valorativo na teoria do crime e, por
isso, o primeiro passo autónomo qualificativo da ação. Só depois se poderá negar (ou não) a ilicitude,
caso ocorra uma causa de exclusão da mesma.
Denota-se, no entanto, que Figueiredo Dias considera que esta construção do crime não é a
melhor, defendendo que a prioridade deve ser dada ao ilícito, concebido como ilícito típico ou tipo
de ilícito. Dito de outra forma, para este, o juízo essencial é o da ilicitude, e só por vantagem de
prática é que se trata da sua fundamentação positiva no tipo. Assim, para Figueiredo Dias, o tipo é a
fundamentação positiva da ilicitude.
Ou seja, este defende a teoria do ilícito pessoal, que se caracteriza fundamentalmente por situar os
elementos subjetivos do crime na ilicitude, considerando a tipicidade não como valoração autónoma
da ilicitude, mas como fundamentação positiva da ilicitude. No entanto, na prática, este continua a
achar que importa começar a análise da conduta por perceber esta preenche o tipo – apenas se fala
disto porque os elementos centrais do tipo de ilicitude são os subjetivos.
➔ Bárbara Brito defende que, com esta posição, Figueiredo Dias pretende chamar a atenção para a
ideia de que o juízo de desvalor mais relevante está no ilícito – até porque, na verdade, ele acaba
por, tal como a restante doutrina, começar por analisar se a conduta preenche o tipo indiciário da
ilicitude; e, ao fazer isso, está a dar autonomia ao tipo. A única diferença será, então, considerar
que esse tipo deve ser denominado de tipo ilícito.
Além disso, para Roxin, os elementos do crime são ação, tipo, antijuricidade, responsabilidade
(culpabilidade) e punibilidade. Ora, dentro da antijuricidade, Roxin estuda as denominadas causas de
exclusão da ilicitude: isto é, ele analisa a antijuricidade, averiguando ou não se estas existem no caso
concreto. A palavra “ilícito”, assim, designa a ação típica e antijuricidade – ou seja, Roxin reúne, no
conceito de ilícito, as categorias da ação, tipicidade e antijuricidade.

No entanto, com a posição doutrinária maioritária…


O conceito atual utilizado de tipo foi fundado por Beling, sendo uma extensão do seu conceito
de tipicidade indiciária: ou seja, para além de conter as circunstâncias referidas na previsão da norma
incriminadora, contêm ainda as circunstâncias que vêm descritas nas normas extensivas da tipicidade,
encontradas na parte geral do Código Penal – por exemplo, os artigos 26º e 27º, relativos à
comparticipação; ou o artigo 23º, relativo à tentativa. O artigo 10º já é mais discutível, dado que uma
parte da doutrina (nomeadamente, Bárbara Brito) que defende que este seja uma norma restritiva.
Para perceber se a tipicidade está verificada, aplica-se, então, o método da subsunção. Assim,
em primeiro lugar, averigua-se se naquela ação estão presentes os elementos objetivos do tipo,
nomeadamente: o agente; a ação típica; o objeto da ação; o bem jurídico lesado (sem ser nos casos de
perigo abstrato, em que não é preciso a lesão do bem em questão); o resultado (nos crimes de
resultado); os meios (nos crimes de execução); e a imputação objetiva do resultado à conduta do
agente (nos crimes de resultado).
Em segundo lugar, averigua-se se estão presentes os elementos subjetivos do tipo, nomeadamente o
dolo e a negligência – tendo sempre de existir esta ligação subjetiva para punir alguém a nível penal.
Nos crimes dolosos, por vezes, há um elemento subjetivo especial, nomeadamente a intenção (ex:
crime de furto).

Elementos Objetivos do Tipo


AGENTE:
Aqui, a doutrina distingue dois tipos de crime: os crimes comuns e os crimes específicos. Os
crimes comuns são aqueles que podem ser realizados por qualquer pessoa; ao passo que os crimes
específicos são aqueles que só podem ser realizados por determinadas pessoas, com certas qualidades.
Dentro dos crimes específicos, existem dois subtipos de crimes: os crimes específicos
impróprios e os crimes específicos próprios. Os crimes específicos impróprios são aqueles que têm
correspondência com outro crime que pode ser praticado por qualquer pessoa – ou seja, são uma
variante de um crime comum, sendo o facto de ser praticado por aquela pessoa específica um
agravante da responsabilidade.
➔ Por exemplo, se a violação de domicílio for praticada por qualquer pessoa, é punível pelo artigo
190º; mas se já for praticada por um funcionário, é punível pelo artigo 378º. Ou se o crime de
abuso de confiança for praticado por qualquer pessoa, é punível pelo artigo 205º; mas se já for
praticado por um funcionário, é punível pelo artigo 375º.
Já nos crimes específicos próprios, não existe outro crime paralelo comum, pelo que é a qualidade do
agente que fundamenta (e não agrava) a responsabilidade. Por exemplo, o crime de prevaricação, que
só pode ser praticado por advogado ou solicitador, é punível pelo artigo 270º; ou as omissões impuras,
que só são praticadas por quem tem dever de garante.
➔ Realça-se, ainda os crimes de mão própria, que só podem ser praticados na forma de autoria direta
e singular – ou seja, que só podem ser praticados pelo próprio (ex: crime de bigamia).
AÇÃO TÍPICA:
Aqui, existe a distinção entre crimes de ação e crime por omissão, já falados.

OBJETO DA AÇÃO:
Aqui, não se faz qualquer tipo de diferenciação. De notar, no entanto, que o objeto da ação é
sobre o qual incide/se realiza a ação típica. Ou seja, é o objeto do mundo exterior em relação ao qual
ou sobre o qual se realiza a ação típica (ex: crime de homicídio – o objeto é quem é morto).

BEM JURÍDICO:
O bem jurídico é tudo aquilo que satisfaça uma necessidade ou preferência. Assim, tendo em
conta a lesão deste bem jurídico, distinguem-se dois tipos de crime: os crimes de lesão ou de dano; e
os crimes de perigo. Os crimes de dano são aqueles que, para serem consumados, a lei exige a efetiva
lesão do bem jurídico (ex: crime de homicídio). Já os crimes de perigo não implicam a efetiva lesão
do bem jurídico, sendo que o perigo surge como fundamento da punição.
Dentro dos crimes de perigo, distingue-se os crimes de perigo abstrato e os crimes de perigo concreto.
Os crimes de perigo abstrato são aqueles onde, para o tipo estar preenchido, basta haver uma ação
adequada a produzir o crime – o perigo não é elemento do tipo, mas antes o motivo da proibição (ex:
omissão de auxílio). Já os crimes de perigo concreto são aqueles cuja consumação já exige que um
bem jurídico seja realmente colocado em perigo– sendo que perigo, em Direito Penal, é a
possibilidade ou probabilidade de lesão do bem jurídico (ex: artigo 138º – se uma mãe deixa a criança
à porta do orfanato, é preciso provar que a vida da criança correu efetivamente perigo para essa mãe
ser punida pelo crime consumado).
Destaca-se, ainda, a figura de crime abstrato concreto, onde não é necessária a criação de um
perigo em concreto para o tipo estar preenchido – ou seja, o legislador, no tipo, exige que haja uma
ação adequada abstratamente a produzir o perigo (ex: artigo 139º – crime de propaganda ao suicídio).
Esta figura é diferente da dos crimes de perigo abstrato, na medida em que o legislador exige mais do
que a ação ser abstratamente perigosa – esta tem de ser adequada a produzir o perigo.

RESULTADO:
O resultado é o evento espaço ou temporalmente separado da ação. Com base neste,
distinguem-se os crimes formais dos crimes materiais ou de resultado.
Os crimes formais são aqueles onde não é necessário verificar-se um certo resultado para que o tipo
fique preenchido – e, por isso, basta que se verifique uma certa conduta. Ora, se essa conduta se
traduzir numa ação em sentido estrito, denominam-se de “crimes formais por ação” ou “crimes de
mera atividade” (ex: crime de violação do domicílio, pois não se consegue separar o evento espaço-
temporalmente do resultado). Já num crime formal por omissão, está-se perante situações de omissão
pura – sendo o exemplo mais paradigmático o crime de omissão de auxílio: para este estar preenchido,
basta apenas não auxiliar, mas não é preciso mais nada para estar preenchido o tipo (nomeadamente,
não é preciso que a pessoa não auxiliada morra).
Já os crimes materiais ou de resultado são crimes que pressupõem a verificação de um certo resultado
para o tipo ficar preenchido. Tais crimes também podem ser praticados por ação – crimes materiais
por ação – ou por omissão – crimes comissivos por omissão, nomeadamente das omissões impuras.
Já no que toca ao momento da consumação, distinguem-se os crimes duradouros dos crimes
instantâneos. Os crimes duradouros são crimes cuja execução se prolonga interruptamente no tempo
(ex: crime de sequestro). Já nos crimes instantâneos, o tipo está preenchido e concluído com a
provocação de um determinado estado e, como tal, não são suscetíveis de se manterem no tempo (ex:
homicídio).
NOTA: Quanto ao elemento “resultado”, não se deve confundir “resultado” com “lesão de bem
jurídico” – isto, porque o resultado nem sempre se traduz na lesão de um bem jurídico, podendo
consistir na mera criação de um perigo para um bem jurídico (ex: a mãe que abandona a criança à
porta do convento – se a criança correr perigo de vida, esse perigo concreto para a vida é um
resultado). Além disso, também há crimes de lesão que não são crimes de resultado: por exemplo, no
crime de violação do domicílio, há a lesão do bem jurídico intimidade da vida privada – mas este não
é um crime de resultado, porque não é possível separar a ação de entrar em domicílio alheio do
resultado de entrar em domicílio alheio.

Imputação objetiva do resultado à conduta do agente


Nos crimes de resultado, existindo este elemento objetivo “resultado”, existe, também, outro
elemento do tipo, nomeadamente a imputação objetiva do resultado à conduta do agente. Não
confundir isto com a atribuição da conduta ao agente, que é avaliada na ação, onde se perceber se esta
foi ou não controlada ou controlável pelo sujeito; diferente é imputar o resultado a essa conduta.
Mas como é que esta imputação é, então, aferida? Ora, será necessário passar pela “análise” de três
teorias: 1) teoria da conditio sine quo non ou teoria das condições equivalentes; 2) teoria da
adequação; 3) teoria do risco.

1. Teoria da conditio sine quo non:


Em primeiro lugar, é necessário aferir se há uma relação causal – relação causa-efeito – entre
a ação e o resultado: isto é, tem de se perceber se aquele resultado pode ser considerado um
consequente em relação àquele antecedente.
No entanto, em Direito Penal, a relação causal (que muitas vezes tem por base em leis causais
científicas) não é suficiente para haver a tal imputação objetiva do resultado à conduta do agente. Ou
seja, em Direito Penal, o que interessa é averiguar se o resultado pode ser atribuído àquele sujeito sob
o prisma de uma justa punição – isto é, à luz dos valores e dos princípios que o direito penal defende.
Dito de outra forma, é necessário determinar se o resultado produzido pertence ao universo de
resultados que a norma visa impedir – mais uma vez, entra aqui a ideia de controlo: para se atribuir
um resultado ao agente, é necessário demonstrar que aquele resultado era controlado ou controlável
pelo mesmo, algo que não se vê só com uma relação causal. No fundo, tem de se provar que aquele
resultado está sob a alçada do domínio daquela pessoa e, consequentemente, faz sentido atribuir o
resultado à mesma; pelo contrário, se o resultado cai fora do domínio do sujeito, já não é um resultado
que a norma visa evitar, e, portanto, já não faz sentido esta atribuição, dado que o Direito Penal só
quer responsabilizar as pessoas por algo que elas possam controlar, e não algo ocasional.
Concluindo, a relação causal que se quer é uma relação estabelecida por uma lei causal, entre um
antecedente e um consequente: verificando-se o antecedente, verifica-se o consequente. Esta lei
causal é obtida pelo método de indução, um método de raciocínio que parte do particular para o geral.
Ora, tal raciocínio traduz-se na teoria da conditio sine quo non ou teoria das condições
equivalentes. De acordo com esta, uma ação é causa do resultado quando esta não pode ser suprimida
mentalmente, sem que desapareça o resultado tal como se produziu nas mesmas circunstâncias de
tempo, modo e lugar. Ou seja, para se chegar à conclusão que existe a relação, é necessário fazer um
juízo hipotético, em que se elimina mentalmente a ação, e se questiona se o resultado subsistiria tal
como se produziu: se sim, a ação não é a causa; se não, a ação foi causa do surgimento do resultado
(ex: se A disparou sobre B e B morreu, a ação de disparar foi causa do resultado, porque eliminando
o disparo, B não morria daquele modo).
Tanto Figueiredo Dias como Silva Dias criticam esta ideia, defendendo que tal teoria vai fazer com
que seja impossível diferenciar a causa da condição: será considerada causa de dado efeito todas as
condições que contribuem para a produção do resultado, tendo todas elas valor equivalente. Bárbara
Brito discorda desta crítica, na medida em que nesta teoria, a pergunta é apenas relativamente àquela
ação do sujeito: se se eliminar aquela ação, o resultado desaparece ou subsiste? Por isso, não implica
que não se faça uma separação entre as condições e a causa do resultado.

2. Teoria da adequação:
No entanto, a teoria da conditio não é suficiente para determinar se se deve atribuir
determinado resultado à conduta do agente, uma vez que haverá casos em que há causalidade; mas
em que não deve haver imputação objetiva.
Por exemplo, no caso em que A dispara sobre B, mas B não morre e vai para o hospital. Neste, é
sujeito a uma operação, e devido a um erro de negligência médica por parte do médico, ele morre no
bloco operatório. Neste caso, de acordo com a teoria da conditio, haveria imputação objetiva da morte
de B a A, porque se se eliminar a ação do mesmo, B não morreria – no entanto, tal não faz sentido, a
nível do senso comum. Ora, para corrigir estes “excessos” da teoria da conditio, surgiram várias
teorias, sendo uma delas a teoria da adequação.
De acordo com a teoria da adequação, na sua formulação mais corrente, para se poder imputar
o resultado à conduta do agente, coloca-se um homem conhecedor das leis causais do momento, e fiel
ao direito (médio), na posição do agente – o que significa que se o agente tiver conhecimentos
especiais, o homem médio também os vai ter; e vice-versa. Depois, pergunta-se ao mesmo se ele
podia prever aquele resultado, segundo aquele processo causal: juízo de prognose póstuma, feito no
momento do julgamento, mas ex ante – ou seja, relativamente ao momento em que o agente atuou.
➔ Por exemplo, nos anos 60/70, um conjunto de mulheres grávidas, que tinham certam perturbações
nervosas, tomaram um medicamento que continha talidomida, uma substância tipicamente
prescrita para quem sofria dessas perturbações. No entanto, quando elas deram à luz, descobriu-
se que, devido medicamento, os bebés nasciam com malformações. A dúvida que se colocou, na
altura, foi se se podia atribuir essas malformações ao médico que prescreveu o medicamento.

➔ Ora, o médico médio, colocado na posição do médico que prescreveu, conseguia prever aquele
resultado? Não. O médico médio, para efeitos da análise, só estará munido dos conhecimentos
que existiam na altura em que fez a prescrição, dado ter este carácter ex ante. Assim, se só depois
é que se percebeu esta consequência, não era previsível, para o homem médio, nem aquele
resultado nem aquele processo causal.
o No entanto, de acordo com a teoria da conditio, haveria causalidade: se se retirasse o
medicamento, não haveria aquele resultado. Contudo, apesar de existir esta relação causal,
não se pode imputar o resultado à conduta do médico, pela razão exposta.
No entanto, também a teoria da adequação não consegue resolver, de forma satisfatória, alguns
casos – e, por isso, a doutrina criou uma terceira teoria: a “moderna teoria da imputação objetiva” ou
“teoria do risco”.
NOTA: Analisando o artigo 10º, nº1 CP, o conceito “adequada” poderá ter o objetivo de chamar à
atenção que, em Direito Penal, não basta causalidade – é, ainda, preciso adequação. Isto não significa
necessariamente adotar a teoria da adequação: tal conceito indeterminado pode ser preenchido tanto
pela teoria da causalidade e da adequação, como pela teoria do risco.

3. Teoria do risco:
De acordo com a teoria do risco, o resultado pode ser imputado à conduta do agente quando
ele cria, aumenta ou não diminui um risco proibido, e esse risco se concretiza no resultado. Bárbara
Brito acrescenta a esta definição: “havendo conexão entre o risco criado e o resultado produzido”.
Relativamente aos casos de diminuição do risco, estas são situações em que o agente intervém
num processo causal em curso, reduzindo ou atenuando o risco a que está sujeito o bem jurídico. Ora,
aplicando a fórmula da teoria do risco, nestes casos não haverá imputação objetiva porque o agente
diminuiu o risco para o bem jurídico tutelado pela norma – isto, porque seria absurdo proibir ações
que não pioram, mas, pelo contrário, melhoram o estado do bem jurídico protegido.
Por exemplo, A aponta uma pistola a B, e C, que está próximo, dá um empurrão ao A no braço,
fazendo com que a bala acerte no pé de B, em vez de no seu coração. Ora, de acordo com as teorias
da conditio e da adequação, há causalidade entre a ação de C e o resultado; mas, de acordo com a
teoria do risco, já não pode haver imputabilidade objetiva, porque C não criou ou aumentou um risco
para o bem jurídico protegido – nomeadamente, a vida de B.
➔ De notar que, para Figueiredo Dias, aqui nem seria preciso chegar ao ponto da imputação
objetiva: ele defende que estas ações podem ser consideradas ações de salvamento, destinadas a
evitar um mal maior – e, por isso, à luz do conceito social da ação, não seriam ações jurídico-
penalmente relevantes.
Relativamente aos casos de risco permitido ou casos de criação de um risco que não é
juridicamente desaprovado, estes são situações em que há uma conduta adequada a produzir o
resultado – só que esse resultado não deve ser imputado ao agente, porque a conduta que ele praticou
não é proibida. Esta pode ser lícita ou 1) porque o agente atuou dentro dos limites que a lei impõe,
existindo uma disciplina jurídica da atividade praticada pelo agente, que este respeita; ou 2) porque a
ação ocorre dentro do âmbito de uma atividade social, regulada por regras de cuidado – isto é, a
normalidade do risco é aferida de acordo com juízos acerca da idoneidade geral do comportamento.
Um exemplo disto seriam todas as condutas praticadas no âmbito de um desporto perigoso, como um
jogo de boxe, onde os jogadores sofrem ofensas à integridade física – ora, se os jogadores cumprirem
as regras do desposto, não criam nenhum risco proibido e, por isso, apesar de a sua conduta ter
causado ofensas de acordo com a teoria de conditio e a teoria de adequação, não há imputação
objetiva, porque o risco criado é permitido.
Outro exemplo seria o caso do sobrinho que oferece um bilhete à tia na pior companhia de avião do
mundo, na esperança de que o avião caia – e o avião cai. De acordo com a teoria de conditio e da
adequação, ele iria ser culpado; mas, de acordo com a teoria do risco, não poderia haver imputação
objetiva, pois oferecer bilhetes na pior companhia do mundo é uma ação lícita.
Relativamente aos casos de comportamento lícito alternativo, estes são situações já não são
solucionados pela fórmula da teoria do risco que foi dada inicialmente, mas sim à luz de critérios
complementares da teoria do risco. São, assim, casos em que é possível afastar a imputação objetiva
do resultado à conduta do agente porque se o agente tivesse atuado licitamente, isto é, se ele tivesse
cumprido todas as regras que disciplinam a sua conduta, mesmo assim o resultado ter-se-ia produzido
nas mesmas circunstâncias de tempo, modo e lugar. Ou seja, nestas situações, será injusto punir o
comportamento do agente porque o seu comportamento foi irrelevante para o processo causal que
conduziu ao resultado.
➔ Durante algum tempo, a maior parte da doutrina defendeu que este critério só devia ser aplicado
no caso de crimes negligentes; no entanto, atualmente, entende-se que este deve aplicar mesmo
no caso de crimes dolosos.
Um exemplo paradigmático disto é o caso de um gerente de uma fábrica de pincéis que, para o fabrico
dos mesmos, usava pelos de cabra chineses, que tinham de passar por um processo de desinfeção.
Ora, uma das vezes, tal processo não é feito, e alguns dos trabalhadores da fábrica apanharam uma
bactéria e morreram. No entanto, veio-se a provar em tribunal que, mesmo que o gerente tivesse
passado os pelos de cabra pelo processo de desinfeção, aquela bactéria não teria morrido, porque
ainda era desconhecida pela ciência. Ora, em última análise, de acordo com a teoria da conditio, este
caso resolver-se-ia, porque se se eliminasse a conduta, o resultado subsistiria – e, portanto, significa
que a conduta não foi causal.
➔ Isto não é dar relevância à causa virtual negativa, onde já existem duas causas a funcionar: a real
e a virtual. Neste critério, não existem duas causas a funcionar: o que se faz é um juízo hipotético
– caso o agente tivesse atuado diligentemente, o resultado ter-se-ia verificado nas mesmas
circunstâncias?
o Por exemplo, A dispara sobre B e B morre; mas na autopsia demonstra-se que B sofria de um
cancro em estado avançado e provavelmente viria a morrer. Neste caso, a causa virtual não
tem relevância no Direito Penal e, portanto, A seria punido: não é pelo facto de a pessoa ir
morrer por um cancro daí a um mês (causa virtual), que não se pune A (causa real). Já na
situação em que alguém, mesmo que conduzisse de forma diligente e não de forma dolosa,
iria acabar por atropelar a vítima, já só existe uma causa – não podendo o agente ser punido.
Denota-se que Roxin defende que, para se aplicar este critério, a resposta quanto ao carácter inevitável
do resultado tem de ser segura e concludente, não bastando provar que era provável que o
comportamento adequado não evitaria o resultado. Nestas hipóteses, não há razão nenhuma para se
libertar o autor do risco, porque ele ultrapassou o risco e esse risco concretizou-se no resultado. O
exemplo que Roxin invoca é o do ciclista embriagado: num caso em que um camionista não respeitou
a distância de vida quando ultrapassa um ultrapassou, e o ciclista bêbado morre, fica a dúvida de saber
se, mesmo que o camionista tivesse obedecido às regras de distância de vida, o resultado ter-se-ia
produzido – sendo a resposta foi, em tribunal, que “era provável”. Já Herzberg vem dizer que, nos
casos de dúvida razoável – isto é, numa dúvida de facto sobre o que podia ter acontecido e que será
objeto de prova em processo penal –, terá de se aplicar o princípio in dúbio pro reo: havendo uma
dúvida de facto, decide-se a favor do réu. Assim, nos casos em que não há uma concretização
comprovada, não deve haver uma imputação objetiva.
Silva Dias vem, por sua vez, discutir outra situação. Imagine-se, por exemplo, que A se atira do 10º
andar, e o B, que está no 3º andar a limpar a caçadeira com a janela aberta, sem querer, dispara e
acerta no A, matando-o antes deste chegar ao chão. Ora, neste caso, a causal virtual (morrer no
embate) não ocorreu, pelo que há imputação objetiva ao B. No entanto, Silva Dias não concorda: para
ele, nestes casos, haverá uma substituição do risco em que a causa real atuou (o tiro), mas que apenas
mudou o “como” e não o “se” e o “quando” do resultado – e, por isso, tal como no comportamento
lícito alternativo, a sua conduta não acrescenta nada à lesão do bem jurídico vida. Já Fernanda Palma
considera que se não se imputar o resultado a A, estar-se-á a atribuir relevância à causa virtual – por
isso, nestes casos, a imputação objetiva estará justificada à luz do princípio da legalidade, dado haver
uma correspondência entre a ação do atirador e a ação descrita no tipo de crime.
Relativamente aos casos em que o resultado produzido cai fora do âmbito do fim da proteção
da norma, estes são situações em que não deve haver imputação objetiva visto que o resultado
produzido não é nenhum daqueles que a norma visou salvaguardar ou evitar, ao proibir esse
comportamento. Ou seja, o agente não criou um risco que a norma infringida tenha prevenido.
Por exemplo, estando dois ciclistas um atrás do outro à noite, numa estrada que não está eliminada,
um deles é atropelado por um terceiro ciclista vindo do outro lado, quando se aproximavam de uma
curva. Será que se pode atribuir a morte do terceiro ciclista ao ciclista que vinha atrás, dado que este
também não tinha a luz acesa? De acordo com este critério, a norma que exige que os ciclistas
circulem com uma luz acesa só visa evitar os riscos diretos que advém da violação dessa norma – e,
portanto, só o ciclista da frente podia ser punido pelo crime de homicídio; mas não o ciclista de trás,
dado que o resultado não advém diretamente da sua conduta, não sendo um resultado que a norma
visa evitar – logo não faz sentido imputar.
Outro exemplo será o do condutor A que tentou ultrapassou o condutor B perto de uma passadeira;
mas no decurso da manobra, B vira à esquerda e embate em A, que já se encontrava na outra faixa.
Deste acidente, resulta a morte de C, acompanhante de B. Veio-se a provar em tribunal que A ia a 80
km/h invés dos 50 exigidos; mas essa exigência devia-se ao facto de haver um sinal de aproximação
de travessia de peões. Logo, não tendo o acidente a ver com a travessia de peões e a violação dessa
norma quanto a essa travessia, absolve-se A, pois o resultado morte não é um dos resultados que tal
norma visava proteger. Pelo contrário, o resultado poderá ser atribuído a B, dado este ter feito uma
ultrapassagem sem avisar.

Como articular as várias teorias na resolução de casos práticos?


Para Fernanda Palma, se a teoria do risco for entendida na sua versão mais normativista –
que não parte da causalidade como ponto de partida, mas pensa apenas na dimensão preventiva ou
geral das normas –, esta afasta a necessidade de passar pela teoria da conditio. No entanto, e apesar
de fazer esta nota, Fernanda Palma (assim como Bárbara Brito), considera que o caminho mais
seguro para a decisão penal continua a ser a partir da teoria da conditio – vindo a teoria do risco
funcionar como modo corretivo e limitativo dos resultados da causalidade adequada.
Assim, para Figueiredo Dias (e para a maior parte da doutrina), será necessário passar pelas
três teorias, aplicando-se primeiro a teoria da conditio, depois a teoria da causalidade adequada, e
depois a teoria do risco.
Ao contrário do que às vezes se dá a entender, a perspetiva ontológica de Direito Penal não significa
fugir aos seus conceitos valorativos: apenas significa que se parte e se baseia tais conceitos valorativos
nos mesmo, no sentido de determinar se eles existem, com base em dados ontológicos seguros. Daí
que a primeira teoria a ter em consideração seja a teoria da conditio: esta é uma teoria da causalidade
natural, em que se tem de ver se, à luz de uma lei causal, se aquele consequente é consequência do
antecedente – juízo hipotético. Em última análise, na imputação objetiva, analisa-se se aquele
resultado é dominado ou dominável pela vontade do sujeito, sendo consequência da sua conduta
(enquanto na ação, analisa-se se a conduta era controlada ou controlável por esse sujeito). É, então,
nesse sentido que a teoria conditio a ser útil, permitindo, em termos empíricos, determinar se aquele
resultado foi causa daquela ação.
Mas, e como foi visto, esta não é suficiente; assim, e tal como Figueiredo Dias defende, é fundamental
aplicar as três teorias, sendo que estas conseguem corrigir os resultados umas das outras. O problema
surge quando existem divergências relativamente a que tipo de resultados precisam de ser corrigidos.
➔ Por exemplo, num caso em que A dá uma bofetada a B, provocando-lhe uma comoção cerebral,
dada a debilidade da vítima, que é fatal; ou num caso em que A arranha B que, por ser hemofílico,
morre esvaziado em sangue – isto, não sabendo A destas condições. Nestas situações, aplicando-
se a teoria da adequação, conclui-se que uma pessoa média, com aqueles conhecimentos, não
poderia prever que tal ação iria ter aquele resultado.

➔ No entanto, Fernanda Palma considera que, aqui, a teoria do risco tende a não resolver bem: esta
iria imputar objetivamente o resultado à conduta de A, visto que este criou um risco que se
concretizou no resultado. Só que a teoria do risco terá de ter em conta, no critério de “o agente
criou um risco”, a previsibilidade subjetiva do subjetivo: o risco que A criou é apenas um
arranhão, não sendo passível de se concretizar no resultado morte – assim, não há conexão entre
o risco criado e o resultado obtido.
Bárbara Brito também não vê desvantagens em passar pelos três patamares. A título de exemplo, se
se está perante uma situação em que houve a criação de um risco, é possível dizer que o indivíduo
criou um risco lícito – logo, não há imputação objetiva à luz da teoria do risco. Tal não impede dizer
que a ação foi causa do resultado (pois eliminada a ação, o resulto desparece tal como se produziu
nas circunstâncias); mas apenas diz que há que afastar a imputação objetiva, porque não há criação
de um risco não permitido. A teoria do risco consegue, então, resolver casos que as outras teorias não
conseguem de forma correta – pelo que o mais correto será aplicar as três teorias.

O professor Paulo Sousa Mendes, por sua vez, defende que se devia trazer para a causalidade
penal duas fórmulas lógicas.
A primeira fórmula, trazida por Hart, chama-se INUS: Insufficient but necessary part of a
condition which it’s itself unnecessary but sufficient (“Insuficiente, mas não redundante parte de
uma desnecessária, mas suficiente condição”). Para este, esta fórmula vai permitir excluir da cadeia
causal aqueles elementos que contribuíram para o aspeto, mas não para a ocorrência e gravidade, do
resultado concreto. No entanto, Bárbara Brito critica tal ideia, visto que uma parte da teoria conditio
também faz este juízo hipotético, percebendo se o resultado, eliminando a ação, subsiste nas mesmas
circunstâncias de tempo, modo e lugar – ou seja, já consegue excluir da cadeira causal tais elementos.
A segunda fórmula, trazida por Puppe, chama-se NESS: Necessary element of a sufficient set.
Segundo esta, se várias ações podem ser pensadas alternativamente, mas não cumulativamente, sem
que o resultado seja anulado, cada ação é causal. No entanto, Bárbara Brito, não vê a necessidade
desta fórmula, porque, mais uma vez, a teoria da conditio consegue responder à causalidade de forma
eficaz – podendo ser aplicada em casos m que há mais do que uma ação causal, sendo individualmente
formulado o juízo hipotético perante cada ação.
Concluindo, estas fórmulas tentam, em última análise, prescindir do juízo de necessidade, o que leva
a respostas sem segurança – e, portanto, é necessário continuar a persistir nas teorias anteriormente
faladas, utilizadas atualmente.
Em conjugação com estas fórmulas lógicas de causalidade, há uma linha de pensamento que
tenta resolver o problema subjacente à causalidade através da verificação da contrafactualidade: isto
é, parte do raciocínio em que se faz uma conjetura lógica sobre o que aconteceria se os factos reais
não tivessem acontecido. No entanto, isso é exatamente o que a teoria da conditio faz, partindo
daquele juízo hipotético e eliminando a conduta para ver se o resultado ainda se verificaria.

Outros conceitos importantes


Acabando de discutir todas as fórmulas para determinar a imputação objetiva, fala-se agora
de alguns conceitos no âmbito da imputação objetiva, nomeadamente: a causalidade cumulativa e as
causas alternativas.
A causalidade cumulativa aparece em situações em que há mais do que uma conduta: ambas são causa
do resultado, não conseguindo uma conduta, por si só, produzir o resultado. Por exemplo, A deita
uma dose de veneno num copo, pensando que era suficiente para matar, mas não é; mas B, sem saber
dessa ação de A, deita também uma dose de veneno no mesmo copo – C bebe e morre. Ora, se se
eliminar a conduta de A, o resultado não subsiste, logo tal conduta foi causal (teoria da conditio); e
era previsível a um homem médio, colocado na posição do agente, prever tal resultado, dado ele
pensar que a dose era suficiente matar (teoria da adequação). No entanto, aqui, o caso não é bem
resolvido, visto que o risco que ele criou não é passível de criar o resultado obtido (teoria do risco) –
logo, não existe imputação objetiva.
Já as causas alternativas, ou de dupla causalidade, ou de causalidade redundante, englobam as
situações em que tanto A como B colocam uma dose de veneno suficiente, individualmente, para
matar C. Aqui, já existe imputação objetiva: o resultado persiste mesmo eliminando a ação de um ou
de outro, mas o modo seria diferente (teoria da conditio); o homem médio poderia ter previsto (teoria
da adequação); e o risco seria capaz de se conformar naquele resultado (teoria do risco). Diferente
seria se A desse o veneno, mas, antes de C morrer, B dispara-se contra ele, visto que aí, a morte não
acontece ao mesmo tempo.

Por fim, fala-se ainda da figura de crime agravado pelo resultado (artigo 18º CP), que são
aqueles tipos cuja pena aplicável é agravada em função de um resultado que derivou da realização do
tipo fundamental. Por exemplo, A dá uma bofetada a B, e B cai com a cabeça no bico da cómoda e
morre. Ora, para fazer a tal agravação pelo resultado, é preciso conseguir imputar o resultado mais
grave ao agente – o que implica que haja, pelo menos, negligência em relação ao resultado mais grave.
Assim, se A estivesse num quarto mínimo, onde sabia que a probabilidade de B bater com a cabeça
na cómoda é grande, então poderia ter previsto esse resultado – logo, coloca-se a pessoa média no
lugar do agente para saber se é possível aquele resultado, segundo aquele processo causal.
De notar que da previsibilidade do resultado mais grave depende, também, a imputação objetiva – e
para isso é necessário passar pelas três teorias. O fundamental é que não pode deixar de haver
negligência – sendo que para uma parte da doutrina, é indiferente ser negligência consciente ou
inconsciente (Cavaleiro Ferreira e Bárbara Brito), enquanto outra parte considera que é necessário
ser consciente (Helena Moniz).

Casos práticos
1. João e Luís tiveram uma rixa. No dia seguinte, João, apanhando o Luís distraído, desferiu-lhe
uma facada nas costas. Luís foi transportado ao hospital. Apesar da gravidade mortal das lesões
causadas pela facada, Luís morreu em consequência de um traumatismo craniano resultante do
embate da ambulância com um camião. Esta colisão foi causada pelo facto de o condutor do
camião, além da velocidade excessiva, não ter respeitado o sinal vermelho. Fundamentadamente,
diga a quem deve ser objetivamente imputada a morte de Luís.
Relativamente ao João, segundo a teoria da conditio, existe uma causalidade natural entre a
sua conduta e a morte de Luís: se se eliminar essa conduta, o resultado desaparece tal e qual como se
produziu, nas mesmas circunstâncias de modo, tempo e lugar – juízo hipotético.
Já de acordo com a teoria da causalidade adequada, é necessário fazer o juízo de prognose póstuma:
ou seja, é necessário colocar o homem médio na posição do João, dotado com os especiais
conhecimentos que este tinha na altura, e perguntar-lhe se ele poderia prever o resultado. Ora, apesar
de João, abstratamente, poder prever esse resultado, ele não conseguiria prever que tal resultado se
iria realizar segundo aquele processo causal. Significa isto que já não haveria, aqui, imputação do
resultado (morte por acidente) à conduta do agente (facada nas costas).
Além disso, de acordo com a teoria do risco, o João criou um risco proibido, mas esse risco não se
concretizou no resultado – conexão entre o risco criado e o resultado obtido –, porque, entretanto,
houve uma interrupção no processo causal, com o comportamento de um camionista. Portanto, não
foi o risco proibido que João criou (facada) que se materializou no resultado (morte).
Assim, o resultado “morte de Luís” não poderia ser imputado objetivamente ao João. João poderia
apenas ser punido por tentativa de crime de homicídio, sendo que só há tentativa deste crime quando
ou não há resultado; ou, apesar de haver resultado, não há imputação objetiva.
Relativamente ao camionista, segundo a teoria da conditio, existe uma causalidade natural
entre a sua conduta e a morte de Luís: se se eliminar mentalmente a conduta de violar o sinal vermelho
e andar a uma velocidade acima do limite legal, o resultado de embater na ambulância e provocar a
morte desaparece tal e qual como se produziu, nas mesmas circunstâncias de modo, tempo e lugar –
juízo hipotético.
Já segundo a teoria da causalidade adequada, é necessário fazer o juízo de prognose póstuma: ou seja,
é necessário colocar o homem médio na posição do camionista, dotado com os especiais
conhecimentos que este tinha na altura, e perguntar-lhe se ele poderia prever o resultado segundo
aquele processo causal. Neste caso, a resposta a tal pergunta seria que tal previsão seria possível.
Por fim, de acordo com a teoria do risco, o camionista criou um risco proibido ao violar as regras de
condução, tendo sido o resultado “morte de Luís” uma concretização desse risco – ou seja, existe uma
conexão entre os dois: a morte de Luís foi devido ao embate, em nada afetando o facto de ele ter o
facto acrescido de estar aleijado.
Assim, este poderia ser imputado objetivamente pela morte, sendo punido por homicídio negligente.

2. O 112 recebeu uma chamada pedindo ajuda para combater um incêndio num lar de idosos.
Chegados ao local, os bombeiros dividiram os esforços entre controlar as chamas e a evacuação
dos 5 idosos aí residentes. Abílio foi incumbido de evacuar quem estivesse no rés-do-chão. Como
já passava da hora de jantar, apenas um idoso se encontrava na cozinha, local onde o incêndio
tinha deflagrado. Este idoso, de nome Bento, estava com graves dificuldades respiratórias, mas
ainda semiconsciente. O bombeiro Abílio pensou que a forma mais rápida e porventura única de
o salvar era fazê-lo passar para o exterior pela janela da cozinha, uma vez que a qualquer
momento se podia dar uma explosão, e pôr em risco a vida dos dois. Assim, na aflição de salvar
Bento, Abílio atira-o rapidamente, vindo o idoso, com a queda, a sofrer uma fratura na perna, e
escapando ileso ao incêndio. Diga, fundamentando, se a fratura da perna deve ser juridico-
penalmente imputada à conduta do bombeiro Abílio.
Relativamente ao Abílio, segundo a teoria da conditio, existe uma causalidade natural entre a
sua conduta e a fratura da perna: se se eliminar mentalmente a conduta de atirar Bento da janela, o
resultado de Bento sofrer uma fratura na perna desaparece tal e qual como se produziu, nas mesmas
circunstâncias de modo, tempo e lugar – juízo hipotético.
Já segundo a teoria da causalidade adequada, é necessário fazer o juízo de prognose póstuma:
ou seja, é necessário colocar o homem médio na posição do bombeiro, dotado com os especiais
conhecimentos que este tinha na altura, e perguntar-lhe se ele poderia prever o resultado segundo
aquele processo causal. Neste caso, a resposta a tal pergunta seria que tal previsão seria possível.
Por fim, de acordo com a teoria do risco, o bombeiro diminuiu o risco já existente, na medida
em que incorreu numa ação de salvamento – sendo que estas, segundo o professor Figueiredo Dias,
nem são ações jurídico-penalmente relevante. De qualquer das formas, o bombeiro não criou um risco
proibido; pelo contrário, tentou salvar uma pessoa – ou seja, criou um risco permitido, e diminuiu o
risco à vida de Bento. Conclui-se, assim, que a fratura da perna não pode ser imputada objetivamente
à conduta do bombeiro Abílio.
➔ NOTA: Os bens jurídicos aqui em causa não são bem separados, porque a vida pressupõe a
integridade física – de qualquer das formas, o bombeiro procurou proteger a lesão de um bem
jurídico superior, pelo que tal discussão aqui é insignificante.

3. No dia de Ano Novo, Alberto regressava ao Porto, circulando na A1 a 150 km/h, quando foi
subitamente surpreendido pelo peão João, que atravessava a faixa de rodagem a pé. Incapaz de
travar a tempo, Alberto atropelou João, que sofreu morte imediata. Com devida fundamentação,
diga se a morte de João pode ou não ser objetivamente imputada à conduta de Alberto.
Relativamente ao Alberto, segundo a teoria da conditio, existe uma causalidade natural entre
a sua conduta e a morte de João: se se eliminar mentalmente a conduta de andar a uma velocidade
acima do limite legal, o resultado de João morrer de atropelamento desaparece tal e qual como se
produziu, nas mesmas circunstâncias de modo, tempo e lugar – juízo hipotético.
Já de acordo com a teoria da causalidade adequada, é necessário fazer o juízo de prognose
póstuma: ou seja, é necessário colocar o homem médio na posição do Alberto, dotado com os
especiais conhecimentos que este tinha na altura, e perguntar-lhe se ele poderia prever o resultado.
Ora, defende-se aqui que Alberto não poderia prever esse resultado tal qual como se verificou – ou
seja, não poderia prever que a sua conduta resultaria na morte de um peão, mas apenas na morte de
outros condutores, dado estar a conduzir numa autoestrada. Significa isto que já não haveria, aqui,
imputação do resultado à conduta do agente.
Além disso, de acordo com a teoria do risco, o Alberto criou um risco proibido, que contribuiu
para a morte de João. No entanto, este não é um resultado que cai no âmbito da proteção da norma.
Neste sentido, o Código da Estrada determina como sendo proibida a condução a mais de 120 km/h
na autoestrada, não para prevenir o atropelamentos de peões, mas antes para proteger aqueles que
circulam, de forma legal, na autoestrada – nomeadamente, os ocupantes de outros veículos que
circulam na via rápida. Consequentemente, não deve haver imputação objetiva porque o resultado
produzido não é nenhum daqueles que a norma visou salvaguardar ou evitar ao punir determinado
comportamento – podendo vir Alberto a ser punido, no entanto, pelo crime de condução perigosa.
4. Na autoestrada Lisboa-Porto, António lançou uma pedra sob um automóvel conduzido por Bento.
Bento, atingido no rosto por fragmentos do vidro para-brisas, guinou subitamente, embatendo
num automóvel conduzido por Carlota. Em consequência dos factos descritos, a Carlota foi
conduzida ao hospital, onde viria a falecer, por não ter sido sujeita a uma intervenção cirúrgica,
a. Uma vez que o único médico em serviço estava embriagado.
b. Por os médicos estarem em greve.
Provou-se que, se a intervenção tivesse sido levada a cabo, se teria salvo Carlota. Bento, por
seu turno, sofreu ferimentos graves e foi-lhe extraído um rim. Provou-se que Bento conduzia na
ocasião do acidente, com taxa de 0.8gl no sangue.
Entretanto, António veio a confessar ter lançado ter a pedra, mas nunca pensou que ela pudesse
quebrar o vidro do automóvel, e provocar ferimentos a alguém.
4.1. Bento praticou ou não alguma ação juridico-penalmente relevante?
Para que Bento tivesse praticado uma ação jurídico-penalmente relevante, esta tinha de ser
controlada ou controlável pelo mesmo. Ora, o facto de ter os 0.8 gramas no sangue não muda o facto
de a ação de guinar o volante ser um ato automático (e não reflexo) – ou seja, que não é igual a todos
os seres humanos, mas que é caracterizado pela impossibilidade de controlo por parte da pessoa que
o faz. Ou seja, por norma, no ato voluntário não há controlo, porque não há a possibilidade de prever
a realização do ato que leva à realização do resultado.
No entanto, há uma parte da doutrina (Roxin) que considera que como o ato automático é uma resposta
que varia consoante a pessoa, não deixa de ser uma ação pessoal – uma exteriorização da
personalidade da pessoa – e que, por isso, será considerada como uma ação jurídico-penalmente
relevante. No entanto, de acordo com Bárbara Brito, a pessoa que faz este ato automático não tem
consciência dos chamados sinais objetivos de perigo: ou seja, dos fatores relacionados com a ação e
o seu resultado. Assim, ao não ter tal consciência, não pode aceder às partes do cérebro que preveem,
pelo que não pode representar a ação nem as consequências que dela advém – logo, continua a não
tem a capacidade de controlo da ação.
A ação jurídico-penalmente relevante pode resultar de uma visão global do comportamento
do agente que, muitas vezes, tem várias ações que são vistas como uma só. Neste caso, a ação que
interessa é a ação de guinar o volante, e não o facto de o agente conduzir com 0.8 gramas de álcool
no sangue – isto, porque sendo a primeira ação um ato automático, o agente não teria capacidade de
a controlar independentemente do grau de alcoolemia que tivesse. Consequentemente, neste caso,
como a ação que interessa não é uma ação jurídico-penalmente relevante, Bento não cometeu nenhum
crime. Tal conclusão já seria diferente se, por exemplo, este atingisse o grau de alcoolemia necessário
ao crime de conduzir embriagado (artigo 292º CP).

4.2. A que conduta pode ser objetivamente imputada a morte de Carlota?


Relativamente ao médico embriagado, a dúvida seria se o médico tinha a possibilidade de agir
porque estava embriagado. Ora, o momento para aferir se havia uma ação jurídico-penalmente
relevante – ou seja, em que havia a possibilidade de controlar a ação e agir de forma diferente – é o
momento em que este decide beber, sabendo que é o único médico que está em serviço. Está-se aqui
perante uma ação livre na causa. Assim, este praticou uma ação jurídico-penalmente relevante.
Denota-se que está, aqui, em causa uma omissão impura, dado a omissão estar ligada causalmente a
um resultado. Consequentemente, à luz do artigo 10º, nº2 CP, o médico só poderá ser punido por ela,
se houver uma posição de garante. Ora, de acordo com o critério formal, aqui o dever de agir teria
origem na lei ou na ingerência – no entanto, tal critério é criticado, dado deixar de fora situações em
que há este dever de garantia. Assim, de acordo com o critério material das fontes, o dever de garante
advém, neste caso, do facto de haver um dever específico de assistir aos titulares de bens jurídicos,
independentemente da fonte de perigo. Este, por sua vez, pode advir 1) de uma assunção fáctica de
deveres de custódia; ou 2) da solidariedade natural apoiada no vínculo jurídico.
Tendo analisado a ação, passa-se agora para a tipicidade. De acordo com a teoria da conditio, existiria
imputação objetiva, pois retirando a ação, o resultado não se verificaria. Também de acordo com a
teoria da adequação existiria tal imputação, pois um homem médio nas mesmas condições, sabendo
que era o único médico em serviço, podia ter previsto que aquele resultado se realizasse segundo
aquele processo causal. Por fim, também existiria imputação de acordo com a teoria do risco, dado
que o médico criou um risco com a sua conduta, risco esse ilícito e que se concretizou no resultado,
existindo uma conexão entre a ação e o mesmo. Logo, no caso do médico embriago, poder-se-ia
imputar-lhe a morte da Carlota.
Relativamente aos médicos em greve, assume-se que estão preenchidas as exigências legais e
existem serviços mínimos. Quanto aos restantes médicos, estes podiam não ter possibilidade
alternativa de ação, porque estavam ocupados com outros pacientes e podiam nem saber. No entanto,
se soubessem que C estava à espera e, mesmo assim, escolheram atender outro paciente que chegou
ao mesmo tempo, então existia uma possibilidade alternativa de ação – e, consequentemente, existiria
uma ação jurídico-penalmente relevante.
Passando à análise da tipicidade, de acordo com a teoria da conditio, existiria imputação objetiva,
pois retirando a ação dos médicos em greve, o resultado não se verificaria. Também de acordo com
a teoria da adequação existiria tal imputação, pois um homem médio nas mesmas condições podia ter
previsto que aquele resultado se realizasse segundo aquele processo causal. No entanto, já quanto à
teoria do risco, o risco criado pelos médicos em greve não é novo, na medida em que os serviços
mínimos estavam a ser cumpridos.
Relativamente a António, a ação de atirar a pedra é jurídico-penalmente relevante. Passando
à análise da tipicidade, de acordo com a teoria da conditio, existiria imputação objetiva, pois retirando
a ação dele, o resultado não se verificaria.
Também de acordo com a teoria da adequação existiria tal imputação, pois um homem médio nas
mesmas condições podia ter previsto que aquele resultado se realizasse segundo aquele processo
causal – isto, se soubesse que os médicos estavam em greve. A previsibilidade subjetiva do sujeito
em concreto, condiciona a resposta da imputação objetiva, devido aos “conhecimentos especiais”
adicionados ao homem médio.
➔ Além disso, e mesmo tendo havido um novo risco criado pela greve, este risco é lícito e, por isso,
não há imputação do resultado ao António.
No entanto, António não poderia prever que C morreria porque o único médico presente estava
embriagado – ou seja, não poderia prever aquele processo causal. Assim, neste último caso, não há
imputação objetiva ao António.
➔ Além disso, no caso do médico embriagado, não há conexão entre o risco e o resultado obtido
porque, entretanto, houve uma interrupção no processo causal – sendo que o risco criado pelo
médico não era previsível para António. Logo, mesmo para a teoria do risco não haveria
imputação objetiva.
NOTA: Um acórdão do STJ de 1988 trata de saber se um conjunto de pessoas, que entregou a vítima
à população totalmente enfurecida e que a acabou por matar, pode ser imputada objetivamente por
esse resultado. Segundo este, há imputação objetiva porque a intervenção de terceiros, ou seja, dessa
população, só interrompe o processo causal caso seja imprevisível. Significa, isto, que a
previsibilidade subjetiva não afasta a teoria do risco – tanto as pessoas que mataram, como as pessoas
que entregaram, seriam consideradas “responsáveis”.
➔ “Os réus, que, embora não tenham estado presentes, quando o ofendido foi apanhado e agredido,
colaboraram no seu transporte para o largo de uma povoação e ao chegarem ali previram a
possibilidade de ele ser morto pela população e, não obstante isso, não se retiraram e,
descarregaram-no, entregando-o à população [que o matou], devem ser considerados coautores
do crime de homicídio, sob a forma de ação”.

Elementos Subjetivos do Tipo


Relativamente aos elementos subjetivos do tipo, só se pode responsabilizar penalmente o
agente a título de dolo ou negligência. A lei penal, por regra, requere a existência de dolo; e só em
regime excecional é que se pune por negligência (artigo 13º CP), sendo necessário uma menção
específica sobre essa possibilidade (ex: artigo 137º – homicídio negligente).

DOLO:
Existe dolo quando há conhecimento e vontade da realização do facto típico. Denota-se que
atualmente, há várias conceções quanto ao conteúdo exato do dolo, desde logo porque partem de
visões diferentes do direito penal. Por exemplo, Bárbara Brito defende a conceção funcional-racional,
que não deixa de basear, sempre que possível, os conceitos em dados ontológicos firmes.
Há ainda quem defenda, partindo de razões meramente preventivas, um afastamento do dolo da
representação ou do conhecimento do facto típico e da intenção de realizar o facto típico. Ou seja, há
certos autores que, como consideram que há uma necessidade de antecipar a proteção dos bens
jurídicos, através de uma lógica preventiva – o que pode levar a pôr de parte um direito penal baseado
na culpa –, afastam o dolo dos seus elementos constitutivos, nomeadamente: 1) o conhecimento da
realização do facto típico; e 2) a intenção ou vontade de realizar o facto típico.
No entanto, estes autores acabam por não defender um dolo definido por estes seus elementos; mas,
pelo contrário, defendem que pode haver dolo, mesmo havendo desconhecimento do facto típico – e
bastando haver um conhecimento do risco. Ou seja, o dolo passaria a estar ligado ao risco do
resultado, e não ao núcleo do ilícito.
4. Bárbara Brito não concorda porque, para já, o ordenamento jurídico português não permite tal
definição, ao abrigo do princípio da tipicidade – artigo 14º CP: é necessário “representar o facto
que preenche o tipo de crime”. Além disso, ao deslocar o conhecimento do resultado para o risco,
transformam-se os crimes de resultado em crimes de risco – ora, estes já existem para quando o
legislador quer, ele próprio, antecipar a tutela dos bens jurídicos, pelo que não faz sentido aplicar
esta lógica a situações em que o legislador não fez essa escolha possível.
Há também quem (Amscombe) opte por explicar o comportamento doloso segundo uma lógica
linguística não meramente privada e, por isso, universalizada. Assim, o comportamento doloso é
aquele a que é aplicável, com êxito, uma questão do “porquê?”. A pergunta do que é intencional não
conduz a uma delimitação restritiva da intencionalidade, mas implica a apreensão dos sentidos
comuns do agir – e, por isso, impedem a redução da intencionalidade a estados privados de
consciência dificilmente acessíveis. Em última análise, quem defende esta visão do dolo parece
afastar a filosofia da ação da psicologia da consciência.
➔ A crítica que Bárbara Brito faz é que isto pode levar a uma objetivação jurídica do
comportamento humano, contribuindo para um Direito Penal afastado da culpa em concreto. Se
se conseguir utilizar a filosofia da linguagem para permitir uma espécie de racionalização do agir
intencional sem fugir do elemento subjetivo em concreto do sujeito, então já se poderá ter em
conta a tal filosofia da ação ligada à filosofia da linguagem.
Dito de uma forma mais simples, uma das questões mais complicadas da teoria do dolo é se a
decisão criminosa é um estado psicológico vivido, ou uma mera descrição do significado social do
comportamento. Quem defende esta última ideia, já não está tão preocupado com o poder do sujeito,
mas sim com a descrição do significado social daquele comportamento.
Como se irá perceber, para se chegar à conclusão de que há uma decisão criminosa enquanto estado
mental do indivíduo, não se pode fugir de uma certa linguagem social do comportamento. Assim,
apesar de não se deve afastar nunca o dolo da sua base ontológica, isso não implica que, para descrever
o dolo, não se tenha de utilizar a gramática – e, por isso, há uma descrição do estado psicológico
daquele comportamento. O comportamento humano que o Direito Penal estuda é uma realidade
complexa, em que existem comportamentos exteriores que revelem certos estados do sujeito. Assim,
quando se analisa o tipo subjetivo do crime, não se pode aceder a esses estados mentais; mas, através
dos conhecimentos que existem, é possível chegar o mais próximo possível do que a pessoa pensou.
Daí que a identificação dos estados mentais não deixe de ser um problema linguístico; mas o facto de
também o ser não deve implicar o tentar comprovar a sua existência ontológica.

De qualquer das formas, o legislador chegou a uma definição de dolo, que se traduz no
conhecimento e vontade da realização do tipo objetivo do crime. É por isso que a doutrina, para
facilitar a descrição do dolo, diz que este é composto por dois elementos: 1) o elemento intelectual
ou cognitivo, que se traduz na representação do facto típico; e 2) o elemento volitivo, que consiste na
vontade de realizar o facto típico.
Figueiredo Dias acrescenta que, para além destes dois elementos, há um terceiro elemento: o
elemento emocional – isto é, para haver dolo, é ainda necessário existir uma certa consciência ética,
que permita ao agente resolver o problema da ilicitude do seu comportamento. Dito de outra forma,
este traduz-se numa atitude pessoal do agente face à violação da norma jurídica.
Bárbara Brito está de acordo com a doutrina maioritária, que considera que esta atitude do agente
face à norma jurídica é um elemento comum não só ao dolo, como também à negligência – não sendo,
no entanto, igual nos dois casos. Ou seja, o facto de ser um elemento comum apenas significa que
para grande parte da doutrina, todas as relações do sujeito com a norma jurídica – e o ordenamento
jurídico – devem ser analisadas na culpa, não no tipo. Isto, visto que o que decide que parte da
realidade vai ser analisada são os conceitos de que se parte, de um certo conceito de tipo. Por isso,
esta relação deve ser tida em conta na culpa, e não enquanto elemento autónomo do dolo – como diz
Figueiredo Dias, que estuda o mesmo no tipo.
➔ A imputabilidade enquanto causa de exclusão da culpa é precisamente esta ideia que a relação do
sujeito com o Direito deve ser tida em conta na culpa, e não no dolo – isto, porque um inimputável
pode agir com dolo. A atitude do sujeito face à norma jurídica é mais grave no dolo que na
negligência, o que indicia que a pena do dolo deve ser mais pesada (uma diferença abissal).
Elemento intelectual
Independentemente da posição doutrinária (incluindo Fernanda Palma, que tem alguma
dificuldade em aceitar esta decomposição do dolo de acordo com a doutrina tradicional), não se pode
negar o elemento intelectual. Por um lado, dado que este está previsto pela lei – princípio da
legalidade. Por outro lado, e de acordo com Bárbara Brito, porque tendo em conta a neurociência e
a psicologia cognitiva, a tal necessidade de provar o controlo da ação passa pela previsão do facto
que se vai realizar. Portanto, é algo que decorre das ciências cognitivas, que estudam o
comportamento humano – e o facto de se fazer uma análise com base nessas ciências não significa
que não se pode, também, aplicar uma lógica da linguagem para, eventualmente, descrever esses
elementos subjetivos. Estas ideias não são duas visões diferentes do elemento subjetivo,
complementam-se e devem complementar-se.
O elemento intelectual pressupõe que haja uma representação dos elementos essenciais da
factualidade típica, ou seja, que haja um conhecimento ou consciência dos elementos objetivos do
tipo. Esse conhecimento tem de ser atual e efetivo: isto é, no momento da ação, a pessoa tem de ter
consciência daqueles elementos – sendo que, para certos elementos, basta uma consciência difusa,
não absoluta, mas essencial. Por fim, tem de haver, ainda, uma representação concreta do risco e do
resultado inerente ao risco – por exemplo, quando se está a conduzir, consegue-se perceber que o ato
de conduzir é um risco; mas normalmente não se associa um resultado a esse risco.
Isto é importante porque, por vezes, há situações de erro. Normalmente, a doutrina define erro
como “discrepância entre a representação do autor e a realidade”; mas também se pode definir erro
quando o autor não conhece a realidade – ou seja, quando há uma total falta de conhecimento. Assim,
se houver um erro, exclui-se o dolo, de acordo com o artigo 16º, nº1 CP.
➔ Figueiredo Dias, por sua vez, diz que nem se pode afirmar que se exclui o dolo, porque se houver
essa tal discrepância ou falta de conhecimento, o dolo nem sequer se chegou a formar.
No entanto, para se perceber as consequências do erro – e não apenas do erro em geral –, por norma,
a doutrina maioritária distingue vários tipos de erro consoante o elemento sobre qual ele incide.

1. Erro sobre o objeto da ação:


Dentro deste tipo de erro, existem dois tipos: o erro sobre o objeto 1) onde há uma identidade
típica dos objetos; e 2) onde não há uma identidade típica dos objetos.
Nos erros sobre o objeto onde existe uma identidade típica dos objetos, há uma identidade ao
nível do tipo entre o objeto que o agente representa, e o objeto sobre o qual incide a ação. Por exemplo,
A dispara sobre B porque pensa que ele é o C: aqui, há identidade típica, porque o objeto que ele
representou é uma pessoa e o objeto que ele atingiu é, também, uma pessoa.
Para grande parte da doutrina, este erro é irrelevante, porque o agente representou e quis matar uma
pessoa: se é B, se é C, se é D, etc. é irrelevante – para haver dolo, ao nível do artigo 131º CP, o que
interessa é que a pessoa represente matar alguém e o faça. Portanto, há quem diga que este erro se
coloca ao nível da motivação, ao nível da formação da vontade; e, por isso, não é verdadeiramente
um erro sobre o objeto, mas sobre a identidade do objeto. Concluindo, tal erro não exclui o dolo.
Já os erros sobre o objeto onde não existe uma identidade típica dos objetos existem na
situações em que, por exemplo, A dispara para junto de uma árvore, convencido que está lá um animal
– mas afinal, estava lá B. Neste caso, o agente não representa a morte de uma pessoa, nem representou
a pessoa em questão (mas sim um animal de caça) – pelo que não está preenchido o elemento
intelectual do dolo, que exige que o agente represente matar uma pessoa. Logo, aplica-se o artigo 16º,
nº1 CP, e exclui-se o dolo, dado ser um erro sobre o elemento objetivo do tipo de crime.
No entanto, neste caso, A poderá ser punido pelo crime de homicídio negligente, devido ao artigo
16º, nº3 CP: se se provar que o agente atuou negligentemente (ex: se pela forma da figura que via,
podia ter suspeitado que não era um animal), pode-se eventualmente punir o mesmo a título de
negligência. Mas, não existindo negligência, A não seria punido, dado não existir uma relação
subjetiva do sujeito ao facto.

2. Erro sobre o processo causal:


Quando há este erro, é necessário distinguir entre duas situações, nomeadamente quando
existe um erro sobre o processo causal, mas: 1) não há um desvio essencial entre o processo causal
pensado e o processo causal realizado; e 2) há um desvio essencial entre esses dois processos.
Nas situações de erro sobre o processo causal em que não há um desvio essencial entre o
processo causal pensado e o processo causal realizado, o desvio entre o processo causal representado
pelo agente e o processo causal realizado não é essencial – e, por isso, não só se continua a ter
imputação objetiva do resultado à conduta do agente, como se continua a ter dolo. Este erro não se
pode considerar, assim relevante. Por exemplo, A atira B da ponte e pensa que ele vai morrer do
embate da água, mas ele morre porque bateu com a cabeça no pilar da ponte: B acaba por morrer na
mesma, por vontade de A, logo este será punido na mesma.
Nas situações de erro sobre o processo causal em que há um desvio essencial entre o processo
causal pensado e o processo causal realizado, tal desvio terá de ser imprevisível – desde logo, de
acordo com o critério da causalidade adequada. Ou seja, de acordo com as leis da experiência, não
era possível pensar naquele desvio.
Por exemplo, A atira B da ponte; mas B não morre, sendo levado para o hospital. No entanto, há um
incendio no hospital, e ele morre disso. Ora, aqui, não há causalidade adequada nem imputação
objetiva de acordo com a teoria do risco.
Assim, quando o desvio é essencial, não se vai excluir o dolo (sendo A punido por tentativa de
homicídio). O que se vai excluir é a imputação objetiva: ou porque houve um novo risco que se
concretizou no resultado (teoria do risco); ou porque não era possível ao homem médio, na posição
do agente, prever aquele resultado daquele processo causal (teoria da adequação).
Independentemente de existir desvio essencial, neste erro irá sempre haver uma consequência
ao nível da imputação objetiva, e não da imputação subjetiva (dado ainda haver dolo).

3. Erro sobre os elementos ditos normativos do tipo:


Os elementos descritivos (ou de facto) são aqueles elementos que são imediatamente
apreensíveis pelos sentidos (ex: o corpo, outra pessoa). Já os elementos normativos consistem
naqueles elementos que não são imediatamente apreensíveis pelos sentidos, e que implicam uma certa
valoração para serem apreensíveis – ou seja, são aqueles elementos que só podem ser pensados a
partir da sua compreensão intelectual (ex: só se pode representar um documento, partindo do
pressuposto de que existe uma noção de documento).
Ora, uma parte da doutrina vem acrescentar que, em bom rigor, raramente existem elementos
puramente descritivos e elementos puramente normativos: todos os elementos pressupõe uma
perceção sensorial e uma certa compreensão intelectual. Assim, existem elementos
predominantemente descritivos, quando o mais importante para os representar é a perceção sensorial);
e elementos predominantemente normativos, quando o mais relevante para os representar é a tal
compreensão intelectual desses elementos.
Falando, especificamente agora, dos erros sobre elementos predominantemente normativos,
será necessário fazer uma distinção entre eles.
Se for um elemento predominantemente normativo com uma estrutura iminentemente jurídica, para
afirmar que o agente tem dolo, é preciso que o agente conheça os critérios determinantes da sua
qualificação. Isto acontece, normalmente, com os elementos normativos com o direito penal
secundário (ex: normas em matéria coletável).
Já se for um elemento predominantemente normativo sem tal estrutura, basta que o agente conheça
os seus pressupostos materiais para se poder afirmar que ele os representa e, consequentemente, que
existe dolo. Isto acontece, normalmente, em relação a elementos que exprimem imediatamente uma
valoração moral, social ou cultural decisiva para a ilicitude do facto – ou seja, para haver dolo, basta
que o agente tenha um conhecimento aproximado desse elemento. Por exemplo, para uma pessoa ser
punida pelo crime de falsificação de documento, basta que ela tenha uma imagem social de
“documento”, que seja paralela ao conceito jurídico de “documento” – não sendo o conhecimento
desta última estritamente necessário para existir dolo.
➔ Como dizia já Mezger, basta que o agente possa realizar uma valoração paralela na esfera dos
leigos, sob pena de só o jurista sabedor poder atuar dolosamente.

4. Erro sobre proibições cujo conhecimento for razoavelmente indispensável para que o agente
possa tomar consciência da ilicitude do facto:
Também denominado de erro sobre normas que recaem sobre comportamentos
axiologicamente (valorativamente) neutros, são situações em que o agente está em erro sobre normas
que se debruçam sobre condutas que não têm uma carga ética suficientemente forte para que se possa
afirmar que qualquer pessoa eticamente bem formada tinha obrigação de conhecer ou perguntar, pelo
menos, sobre a ilicitude do seu comportamento, mesmo desconhecendo a norma que o proíbe.
Por exemplo, imagine-se que há uma reunião de Chefes de Estado, e devido a essa reunião, sai um
Decreto-Lei a proibir a conduta de andar com armas de fogo durante o período da visita. Ora, A, que
todos os fins de semana vai à caça com a sua caçadeira, é apanhado por uma patrulha de polícia.
Neste caso, esta proibição de andar com armas (tendo licença de porte) recai sobre um comportamento
axiologicamente neutro: para a pessoa se aperceber da ilicitude do seu comportamento, teria mesmo
de conhecer a norma – é, por isso, um erro de natureza intelectual. Contrariamente, para se saber que
o homicídio é punido, não é necessário conhecer-se a norma específica que pune: o comportamento
em si é eticamente desvalioso – erro de natureza moral –, não sendo um comportamento
valorativamente neutro.
Assim, nestas situações, o dolo será excluído, e A não será punido. Diferente será, por exemplo, no
caso de uma dinamarquesa que vem a Portugal fazer um aborto depois das 13 semanas: como a
proibição já não recai sobre um comportamento axiologicamente neutro, o dolo não será excluído.
➔ Só poderá, depois, excluir a culpa, se o erro não for censurável: ou seja, se ela dinamarquesa fez
o que estava ao seu alcance para averiguar se o comportamento era lícito ou ilícito.
Outras figuras importantes:
Existem, ainda, duas figuras importantes que se estudam a propósito do erro, mas que não
devem ser confundidas como tal, nomedamente: dolo generalis e aberratio ictus.
A aberratio ictus distingue-se do erro porque se trata de uma execução defeituosa. Por
exemplo, A foi contratado para matar B, mas quando este se prepara para disparar, C aparece à frente,
sendo este que leva o tiro. Ora, aqui, o resultado da ação atinge um objeto distinto do elegido pelo
autor; enquanto no erro sobre o objeto, o agente acerta exatamente o objeto que queria acertar, só que
com erro. Dito de outra forma, na aberratio ictus, há sempre dois objetos distintos; no erro sobre o
objeto, há apenas um objeto.
Relativamente ao regime a aplicar, existem duas teorias: a teoria da concretização (doutrina
dominante) e a teoria da equivalência (doutrina minoritária).
De acordo com a teoria da concretização, A deve ser punido em concurso efetivo por tentativa do
homicídio de B e pelo homicídio negligente de C. Bárbara Brito defende que só desta forma é que se
consegue proteger os bens jurídicos que estão em causa, porque com esta conduta, A coloca em perigo
dois bens jurídicos, um deles efetivamente lesados (vida de C).
De acordo com a teoria da equivalência, quando há incidência típica entre o tipo de ilícito projetado
e o tipo de ilícito realizado, o agente deve ser punido por um só crime doloso consumado. Portanto,
neste caso, A seria punido apenas pelo crime de homicídio doloso de C, porque, segundo esta teoria,
a punição está mais garantida se se optar por esta figura.

No dolos generalis, fala-se de situações em que o resultado se consumou em dois atos, mas o
autor previu erradamente criar o resultado com apenas a primeira conduta – por exemplo, A dispara
sobre B e, para esconder o corpo, atira-o ao rio; mas, na autópsia, demonstra-se que o resultado veio
a produzir-se não com a ação de disparar, mas com o afogamento. Questiona-se, então, neste casos,
se estas duas ações devem ser valoradas como uma só, ou se devem ser punidas individualmente.
Jescheck defende que, neste caso, o agente deve ser punido por um crime de homicídio doloso
consumado, dado que essa figura consegue abarcar todo o ilícito da ação.
Stratenvert, por outro lado, defende que, se antes de praticar a primeira ação, o agente já tinha
representado a segunda, pode aplicar-se o dolo generalis: o dolo abarca toda a situação num momento
prévio, e abrange todo o processo causal que conduziu ao resultado – e, por isso, o agente deve ser
punido por um único crime consumado, a título de dolo. No entanto, se o agente não pensou na
segunda ação quando o seu dolo surgiu, não abarca todo o processo causal que conduz à morte – e,
por isso, já não se pode aplicar o dolo generalis, devendo o agente ser punido em concurso efetivo
por tentativa e crime negligente consumado.
Figueiredo Dias e Silva Dias entendem que importa saber se o risco que se concretiza no resultado
pode ser reconduzido ao quadro dos riscos criados pelas primeira conduta – ou seja, o decisivo é
determinar se a segunda ação é, segundo as regras da experiência, previsível e normal; se é, no fundo,
um risco caracteristicamente ligado à ação. Se for, será punido por um só crime doloso consumado
(como no exemplo dado: normalmente, quando uma pessoa mata, quer-se desfazer do corpo, portanto
atirar o corpo ao rio está caracteristicamente associado a matar a pessoa); se não for, será punido por
tentativa em concurso com o crime negligente consumado.
Roxin, assim como a maior parte da doutrina e jurisprudência alemã, já não recorre à figura do dolo
generalis mas, sim, à figura do erro sobre o processo causal para resolver estes casos. Como já se viu,
na figura do erro sobre o processo causal, importa saber se o desvio é essencial ou não: se não for
essencial, não afasta a imputação objetiva e o agente é punido por um só crime dolo consumado; se
for essencial, já não haverá imputação objetiva e o agente será punido, em concurso, pelo crime
tentado e pelo crime realizado, na forma negligente. No entanto, Roxin acrescenta que, para se
recorrer à figura do desvio não essencial, o dolo do agente quanto ao resultado tem de ser direto.
Portanto, nas situações em que o dolo do agente em relação ao resultado era necessário ou eventual,
já não se pode dizer que o desvio não era essencial.
➔ Por exemplo, A quer matar B, mas quando vê a vítima inconsciente arrepende-se e tentar reanimá-
la. Pensando que não conseguiu reanimá-la, enterra-a, e ela acaba por morrer enterrada viva. Aqui,
Roxin diz que houve uma intenção de matar revista, pelo que A já não pode ser punido por um só
crime doloso consumado, mas sim em concurso – não seria previsível que a pessoa se arrependa
e faça tudo aquilo.
o Concluindo, Roxin considera que o agente só pode ser punido por um crime de homicídio
doloso consumado se o dolo inicial abarcar, de modo previsível, a realização da segunda
conduta – algo que, neste caso, não acontece.
Por fim, também se discute na doutrina alemã se se aplica a figura do dolo generalis à situação em
que o sujeito produz o resultado logo na primeira ação; mas queria que ocorresse, segundo a sua
representação, na segunda ação. A doutrina dominante diz que, também nestes casos, o desvio não
era essencial – e, portanto, o agente deve ser punido por um só crime doloso essencial.

Elemento volitivo
O elemento volitivo do dolo corresponde à vontade do agente de praticar o facto típico.
Segundo Figueiredo Dias, o conhecimento (previsão) das circunstâncias de facto e, na medida do
necessário, do decurso do acontecimento não podem, só por si, indicar a contrariedade ou indiferença
ao dever-ser jurídico-penal, manifestada pelo agente no seu facto – que caracteriza a culpa dolosa e,
em definitivo, justifica a punição do agente e título de dolo. O dolo do tipo não pode, assim, bastar-
se com aquele conhecimento; exige, ainda, que a prática do facto seja presidida por uma vontade
dirigida à sua realização – ora, é este elemento que constitui o momento volitivo do dolo do tipo.

Modalidades do dolo
A propósito do dolo, importa agora referir as modalidades do dolo (artigo 14º CP),
nomeadamente: 1) dolo direito (ou dolo intencional ou de 1º grau); 2) dolo necessário (ou dolo direto
necessário ou de 2º grau); e 3) dolo eventual.

Dolo direto vs. Dolo necessário:


No dolo direito, o agente prevê e quer a realização do facto típico como fim último da conduta,
tendo a intenção de o realizar. Ou seja, o que interessa, aqui, é se a finalidade imediata da ação é a
realização do facto típico: o objeto da vontade do agente coincide com a realização do facto típico (já
Fernanda Palma fala mais de “intenção”, apesar de ter o mesmo sentido). Por exemplo, A quer matar
B, seu amigo, e tem intenção de o matar.
Já no dolo necessário, a realização do facto típico surge como consequência inevitável da sua
conduta, embora lateral, relativamente ao fim da sua conduta – ou seja, a realização do facto típico é
vista como consequência necessária da sua conduta. Por exemplo, A coloca uma bomba num jato
particular, com o objetivo de matar B – A prevê, como consequência necessária da sua conduta, a
morte dos outros passageiros.
Bárbara Brito considera que estas duas figuras são muito próximas, porque o resultado surge sempre
como inevitável, assim como há sempre intenção de produzir o resultado – e por isso, haverá
exemplos em que há dificuldade de distinguir se o dolo é necessário ou direto. No entanto, tal
distinção não tem uma relevância prática – o que importa é que, de facto, existe dolo.

Dolo eventual vs. Negligência consciente:


No dolo eventual, o agente prevê a realização do facto típico como possível e conforma-se
com a sua realização. Ou seja, embora o agente não tenha tido intenção de produzir o resultado típico,
teve a intenção relativamente ao risco do resultado.
Esta figura faz fronteira com a negligência consciente. Ora, tal distinção já é mais relevante,
visto que saber se um facto foi praticado a título de dolo ou a título de negligência tem grande
importância prática: segundo o artigo 13º CP, só se pode punir a título negligente se o legislador assim
o expressamente prever. Além disso, se se for comparar as molduras de penas entre crimes dolosos e
crimes negligentes, a diferença é abissal.
Sendo tão importante, surgiram algumas teorias para fazer tal distinção, nomeadamente as
teorias intelectualistas, as teorias volitivas e as teorias emocionais.
Nas teorias intelectualistas, a distinção entre dolo eventual e negligência consciente deve fazer-se
com base no elemento intelectual: isto é, no dolo, é preciso que o agente preveja a realização do facto
típico com uma probabilidade relativamente alta – há uma especial qualidade da representação da
realização típica do dolo eventual. Como refere Figueiredo Dias, no dolo eventual o agente toma a
realização do facto típico como concretamente possível, com base num juízo fundado.
Nas teorias volitivas, no dolo eventual, o agente aprova a realização do facto típico, aceitando
intimamente a sua verificação; já na negligência consciente, o agente repudia intimamente a
verificação do resultado.
Nas teorias emocionais, a distinção é feita com base na atitude do agente face à violação da norma:
no dolo, há uma atitude de indiferença face ao bem jurídico lesado; enquanto na negligência, já não
existe tal atitude.
Atualmente, Roxin considera que o essencial para fazer esta distinção é determinar se o agente
tomou como sério o risco da possível lesão do bem jurídico e, não obstante, se decide pela realização
do facto. Figueiredo Dias também aceita esta distinção: se o agente tomou como sério o risco da
possivel lesão do bem jurídico, pode-se, com razoável segurança, concluir que o propósito que move
a sua atuação vale bem, a seus olhos, o preço da realização do tipo.
Assim, o critério essencial será, agora, o de saber se o agente tomou como sério o risco da possível
lesão do bem jurídico e, não obstante, se decide pela realização do facto. Para aferir se tal risco foi
tomado como sério, subcritérios foram construídos, nomeadamente:
➔ Critério da probabilidade: Se a possibilidade da realização do facto típico é manifestamente
remota ou insignificante, então provavelmente o agente não tomou a sério a realização do facto
típico – a não ser que essa fraca probabilidade seja acompanhada por uma vontade criminosa.
o O exemplo que Figueiredo Dias dá é a transmissão do vírus da SIDA através de contactos
sexuais não protegidos: a possibilidade dessa transmissão, sendo entre 0.1 a 1%, é remota – a
não ser que seja acompanhada por uma vontade criminosa, ou seja, uma vontade de infetar
(sendo um bem indisponível – dolo direto independentemente do consentimento da vítima).
Já se não tiver essa vontade, devido à baixa possibilidade de transmissão, o agente não tomou
o risco a sério: existe, assim, uma negligência consciente (se for punido quanto à morte).

o Já Fernanda Palma, por exemplo, considera que neste caso, continua a haver dolo, porque o
agente não pode deixar de reconhecer que, paralelamente, e em conflito com a lógica
emocional que o orienta (que considera que o risco é remoto), existe uma outra lógica de
significação dos atos social que imporá um significado social à ação – e, por isso, considera
que o agente atuou com dolo eventual.

➔ Critério de Willfull Blindness (cegueira ou ignorância deliberada): Para Figueiredo Dias, naqueles
casos em que o agente revela uma absoluta indiferença pela violação do bem jurídico, apesar de
representar como possível a sua realização, o agente acaba por se decidir pelo risco sério contido
na sua conduta – e, portanto, existe dolo eventual.
o Imagine-se que uma pessoa resolve andar a 20 km/h numa cidade e passar o sinal vermelho,
porque tem uma total indiferença em relação às consequências dessa conduta. Nesses casos,
não se pode dizer que há negligência: apesar de o agente não tomar a sério o risco da realização
do facto típico, é muito difícil dizer que não há dolo, porque em virtude desta completa
indiferença face à violação, pode dizer-se que o agente se decidiu pela realização do risco
inerente à sua conduta – e, nesse sentido, conforma-se.

De qualquer das formas, ao abrigo do princípio da legalidade, segundo o nosso legislador quer
no dolo eventual, quer na negligência consciente, o elemento intelectual é o mesmo: o agente
representa a realização de um facto típico como consequência possível da sua conduta. A diferença é
que no dolo eventual, o agente representa essa realização e conforma-se com a sua realização; já na
negligência consciente, o agente não se conforma com tal realização – teoria da conformação. Ora, o
difícil é, precisamente, ver como é que no caso prático se concluir pela conformação ou não.
Para Bárbara Brito, para se saber se o agente se conformou ou não conformou, o método mais simples
é a fórmula positiva de Frank: se o agente, ao atuar, pensou “aconteça o que acontecer, eu atuo”,
existe dolo eventual; se não pensou assim, existe negligência consciente.
➔ A prova de que esta fórmula é um bom método para, num caso concreto, saber se o agente se
conformou ou não, é o caso dos mendigos russos: uma associação criminosa na Rússia mutilava
crianças para as pessoas terem pena e darem mais facilmente esmolas – no entanto, algumas
dessas crianças morreram, em consequência da ofensa corporal. Ora, em relação à morte das
crianças, havia dolo eventual ou negligência consciente?

➔ Antes, Frank utilizava uma fórmula hipotética: se o agente, ao atuar, pensasse como certo a
realização do facto típico e optasse por não atuar, haveria negligência; se, mesmo assim, atuasse,
havia dolo eventual. No entanto, neste caso, tal fórmula seria injusta: claro que os mendigos
russos, se soubessem hipoteticamente que o seu “sustento” ia morrer, não iriam atuar dessa
maneira. Ou seja, não interessa partir de uma ficção, mas, sim, daquilo que o agente realmente
pensou. Consequentemente, a fórmula positiva foi criada, partindo do que o agente realmente
pensou, no caso concreto: neste caso, os mendigos russos previram como certa a morte; mas,
mesmo assim, atuaram – logo, agiram com dolo eventual.
Outra discussão será perceber quais os critérios para aferir se o agente pensou: “aconteça o que
acontecer, atuo”. Ora, por um lado, existe o critério das motivações, anteriormente defendido por
Fernanda Palma: quanto maior a motivação, maior o indício do dolo eventual. Por exemplo, se o
agente vai a alta velocidade, é necessário olhar e perceber o porquê de este ir a alta velocidade: se for
porque o agente recebeu um telefonema de que o filho estava a morrer no hospital, provavelmente
pensou “aconteça o que acontecer, atuo”; já se for porque queria ver um jogo de futebol, ele não terá
pensado desta forma. Em última análise, este é um critério que vai ajudar a determinar se o agente
tomou como sério a realização do facto típico.
➔ É tão difícil fazer esta distinção que Figueiredo Dias defende que, no futuro, deve have uma
terceira figura “temeridade”, que abarcaria e substituiria o dolo eventual e a negligência
consciente. No entanto, ainda não houve nenhuma reforma penal que tenha feito isto.

Elemento subjetivo especial


Há certos tipos subjetivos que exigem, para além do dolo, um outro elemento subjetivo, sendo
este considerado especial porque não recai sobre os elementos objetivos do tipo (como no dolo, em
que o agente deve conhecer e quer conhecer o facto típico). Assim, para além do elemento intelectual
e volitivo do dolo, o legislador acrescenta mais um elemento subjetivo, que diz respeito à vontade,
mas não recai sobre elementos do tipo objetivo de ilícito. No entanto, apesar de não recair sobre estes,
este elemento subjetivo especial incide ou refere-se a algo relacionado com uma certa tendência
relevante para o ilícito da ação – e, por isso, normalmente refere-se à caracterização da lesão que se
exige, ou ao bem jurídico protegido. Por exemplo, no crime de injúria, tem de haver um elemento
subjetivo especial: a intenção de difamar.
O exemplo mais comum será a figura doutrinária de crimes de resultado cortado ou parcial
(ex: crime de furto). Para haver dolo, é preciso que o agente represente que está perante coisa alheia
e querer, mesmo assim, subtrair tal coisa alheia. No entanto, o legislador, até por razões históricas e
de linguagem social, adiciona como segundo pressuposto o agente ter a intenção de se apropriar –
este é, assim, o elemento subjetivo especial, pois apesar de estar na mesma relacionado com um
elemento volitivo do agente, não incide sobre algo que tem de ocorrer em termos do tipo objetivo.
➔ Por exemplo, alguém pega no computador de uma pessoa com o objetivo de o devolver passados
2 dias – aqui, não há furto, pois não existe a intenção de se apropriar, apesar de haver dolo.
Outro exemplo será o crime de burla. Os elementos objetivos do tipo deste crime são o agente “quem”,
bem jurídico “património”, objeto de ação “património do outro”, ação típica “determinar outrem,
por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, à prática de atos” e o resultado
material “prejuízo patrimonial”. Ora, denota-se aqui que o enriquecimento ilegítimo não é parte do
resultado: apenas a intenção de enriquecer é necessária, sendo essa um elemento subjetivo especial.
Ou seja, para além do resultado típico, o legislador exige, para o tipo estar preenchido, que a pessoa
tenha a intenção de enriquecer.
Outro exemplo será a fraude fiscal (Lei nº 15/2001, artigo 103º), que exige que haja uma intenção de
produzir um resultado lesivo no património fiscal. No entanto, Silva Dias já acha que este resultado
é um perigo concreto que compõe o próprio tipo – e, nesse caso, já não seria um crime de resultado
parcial. Isto, porque aqui o dolo já tem de abarcar esse perigo de prejuízo do património fiscal, e,
portanto, o representar esse perigo já faz parte do dolo exigido. Assim, para o autor, o crime de fraude
fiscal é um crime de perigo concreto, sendo o perigo de lesar o património fiscal um resultado típico
– e, como resultado típico, tem de estar abarcado pelo dolo.
No entanto, existem crimes em que esta distinção é difícil de fazer – por exemplo, no crime
do homicídio qualificado, em que o “motivo fútil” poderá cair na culpa; ou pode ser visto como um
elemento subjetivo especial, dado ser um motivo “adicional” ao motivo de intenção de matar.
Existe, ainda, a figura de crimes agravados pelo resultado ou crimes preter intencionais, que
tem de estar prevista na lei: por exemplo, alguém dá uma bofetada numa pessoa, que cai sobre uma
cómoda, bate no bico da mesma e morre. Este tipo de crimes, previstos no artigo 18º CP, implica a
existência de dois resultados: um menos grave, que neste caso é a ofensa da integridade física; e um
mais grave, que é a morte – ou seja, a pessoa queria ofender a integridade física, mas a outra pessoa
acabou por morrer. Tem, ainda, de haver, pelo menos, negligência em relação ao resultado mais grave.
Assim, o que caracteriza este crime de resultado é que há dolo em relação ao resultado menos
grave e negligência em relação ao resultado mais grave.
No entanto, segundo Rui Pereira, a expressão “pelo menos a título de negligência” significa
que pode tanto haver dolo, como negligência, em relação ao resultado mais grave. Ora, se o agente
tivesse dolo em relação ao resultado mais grave, não se iria aplicar esta figura; mas, sim, o crime de
homicídio. Assim, se o evento agravante representar um crime que foi dolosamente provocado, então
a agravação específica da figura típica em estudo parece tornar-se uma inutilidade (ou, pior ainda,
uma contradição) normativa, na medida em que, segundo as regras gerais, mesmo sem a agravação o
agente deveria ser punido (e acordo com o princípio da culpa) pelo concurso do crime fundamental
com o crime agravante doloso.
Assim, “pelo menos” significa, aqui, que basta haver negligência simples e não grosseira. Esta
distinção entre negligência grosseira e simples é feita pela doutrina, havendo certos fatores que podem
contribuir para que esta deixe de ser simples e passe a ser grosseira, nomeadamente: 1) a importância
do bem jurídico que está em causa; 2) a fácil previsibilidade da realização do facto típico; e 3)
importância do dever de cuidado do agente. Por isso, no crime agravado pelo resultado, a pena é mais
grave do que a que resulta da aplicação das regras de concurso – justificando-se isso através da tal
negligencia ser grosseira (ex: artigo 147º CP – se não existisse essa figura, tal ação seria punida em
concurso de crime doloso de ofensa à integridade física, com o crime de homicídio negligente, sendo
que essa pena seria menor do que a da figura dos crimes agravados).
➔ Silva Dias critica que esta pena seja superior à pena que resulta do concurso, porque nem sempre
esta negligência é qualificada, podendo ser uma negligência simples – assim, este considera que
tal artigo é inconstitucional, por violação do princípio da igualdade e da culpa.
De qualquer das formas, relembra-se que só se pode punir desta forma o agente que teve, pelo
menos, negligência em relação ao resultado mais grave: se este não poderia prever tal resultado, não
haverá crime de resultado agravado (ex: empurrar alguém num espaço aberto, ela cai mal e morre; ou
empurrar alguém que tem uma doença debilitante ao agente desconhecida).
Por outras palavras, não basta à imputação do evento agravante que entre este e o crime fundamental
se verifique um nexo (ainda que particularmente exigente) de causalidade adequada; é sempre
necessário, relativamente à produção do evento agravante, que se comprove a violação pelo agente
da diligência objetivamente devida e, ademais disso, que o agente tivesse capacidade para a observar.

NEGLIGÊNCIA:
A negligência pode ser encarada como elemento subjetivo do tipo, ou como uma ação típica
ilícita negligente – ou seja, um “crime negligente”, estando a negligência fora da tipicidade.
Figueiredo Dias põe a figura da negligência no fim do seu manual, fazendo questão de analisar
todos os elementos gerais do crime a propósito do crime doloso – ou seja, tratando o crime negligente
como uma forma especial de crime, tal como a tentativa. Isto significa que este autor pensa na
negligência não enquanto elemento subjetivo do tipo, mas enquanto ação típica ilícita.
Isto leva a que Figueiredo Dias, assim como Roxin, discutam qual é o elemento caracterizador da
negligência enquanto ação típica ilícita. Para Figueiredo Dias, tal elemento é a violação do dever de
cuidar; já para Roxin, tal elemento é a criação de um perigo não permitido – bastando, por isso, ir à
teoria do risco para a caracterizar.
No entanto, tal ideia acaba por ser errada, porque a violação do dever do cuidado, entendido como a
violação das normas de cuidado a que o agente está adstrito, pode ocorrer num crime doloso ou num
crime negligente. O que decide se o crime é doloso ou negligente não é essa violação, mas sim o
elemento subjetivo: ou seja, a relação mental do agente com o resultado – se o agente, ao violar os
deveres de cuidado, quis aquele resultado (ex: se um doutor quer que, com a sua ação, aquele paciente
morra). O que é realmente essencial é o elemento subjetivo, e não a violação de normas de cuidado.
Assim, na ótica de Bárbara Brito e Jakobs, a negligência é um elemento subjetivo do tipo e,
por isso, deve ser estudada no âmbito dos elementos subjetivos do crime: as suas especificidades não
a autonomizam como um tipo especial de crime.

Negligência inconsciente
Dentro da negligência, é possível ter negligência consciente e negligência inconsciente. Tendo
a negligência consciente já sido falada a propósito da sua fronteira com o dolo eventual, falta apenas
falar sobre a negligência inconsciente.
Como já foi analisado, para haver uma ação, é preciso o controlo ou a possibilidade de
controlo da ação por parte do agente. Para haver essa possibilidade, também é necessário a
possibilidade de prever e representar o perigo: por exemplo, o caso dos pais que deixaram os filhos
na parte detrás do carro – e que não tiveram a possibilidade de representar a omissão e,
consequentemente, a morte do filho – vs. o caso da pessoa que vê o sinal de escola perto, sabe que
são 15h e ouve crianças a rir, mas mesmo assim não adequa a velocidade.
Assim, na negligência inconsciente, ir-se-á punir o agente porque este podia ter representado e,
consequentemente, poderia ter controlado; mas não o fez, como no último exemplo dado – ou seja,
esta pressupõe a cognoscibilidade individual da realização do facto típico por parte do agente (artigo
15º, alínea b) CP).
A existência desta possibilidade é aferida com base nos dados ontológicos daquela pessoa em
concreto – e não do homem médio, dado que não se sabe o que este representaria (sendo necessários
estudos para isso). Assim, para se saber se esta possibilidade existia, é necessário perceber se o agente
teve consciência dos sinais objetivos de perigo – ou seja, de fatores que objetivamente estão
relacionados causalmente com a realização do facto típico.
No entanto, será também necessário que esse agente conseguisse relacionar esses fatores com o
resultado típico – por exemplo, a senhora que pôs o filho raquítico em água a ferver, porque os mais
intelectuais da sua aldeia lhe disseram que assim curaria o filho, não tinha tal possibilidade; logo, não
existe, neste caso, negligência inconsciente.
Casos Práticos
1. Embriagado, de regresso a casa já de madrugada após uma noite de copos, Abílio confundiu o
seu apartamento com o de Beatriz, senhora idosa sua vizinha. Meteu a chave à porta e,
desesperado por não conseguir abri-la, arrombou-a com estrondo, introduzindo-se no que supôs
ser a sua habitação. Entretanto, Beatriz acordou aterrorizada com o “assalto” e morreu a um
devido ataque cardíaco.
1.1. Abílio cometeu os crimes previstos nos artigos 190º e 212º CP?
Relativamente ao artigo 190º, existe o agente (“Abílio”), a ação (“entrar dentro de propriedade
alheia”), e bem jurídico (“propriedade”). Não sendo este um crime de resultado, não é necessário
verificar-se o resultado nem, consequentemente, a sua imputação objetiva.
No entanto, não existe aqui dolo: Abílio não representou que a casa não era dele, até porque estava
embriagado – não estando embriagado para fazer isso com “desculpa”, no entanto, sendo isso toda
uma situação diferente; e estando embriagado, mas com possibilidade ainda de controlo da ação, e
não embriagado “de caixão para a cova” (ou seja, tinha a possibilidade de ação alternativa, não tinha
de arrombar a porta em questão).
Neste caso, não representando “casa alheia”, existe um erro sobre o objeto– ou, segundo outra
doutrina que não a maioritária, existe um erro sobre um elemento predominantemente normativo,
nomeadamente a não representação do carácter alheio da coisa. De qualquer modo, não tendo
representado o objeto do crime, o dolo é excluído nos termos do artigo 16º, nº1 CP: “facto de direito”
= “coisa alheia”.
Fica, no entanto, ressalvada a punibilidade a título de negligência (artigo 16º, nº3 CP), mas apenas se
estiver previsto expressamente na lei (artigo 13º CP). Ora, não existindo tal previsão no artigo 190º
CP, nem existindo outro tipo de crime chamado “violação de domicílio negligente”, Abílio não podia
ser punido por tal crime.
Relativamente ao artigo 212º CPC, segue-se a mesma lógica: os elementos objetivos estão
verificados porque Abílio, de facto, destruiu porta alheia; no entanto, os elementos subjetivos,
também necessários, não estão, dado que Abílio não representou que tal porta era alheia. Assim,
exclui-se o dolo, não sendo Abílio punido por não estar previsto o crime de dano negligente.

1.2. Abílio cometeu o crime previsto no artigo 137º?


Não. O homem médio, com especiais conhecimentos sobre as leis causais do momento, não
conseguiria prever a morte de uma pessoa como consequência daquela conduta – portanto, não há
imputação objetiva de tal resultado a Abílio.

2. Ana, grávida, está na praia com um grupo de amigos. A certa altura, os amigos decidem iniciar
um jogo de volleyball e desafiam-na a participar. Ela começa por rejeitar, invocando que é
perigo, dado o seu estado de gravidez; mas, alguns minutos depois, sem dizer nada, começa a
participar no jogo. Passado pouco tempo, cai e aborta. Pode ser punida pelo crime de aborto?
Denota-se, primeiro, que existe uma ação jurídico-penalmente relevante, sendo o crime em causa o
crime de aborto. Além disso, todos os elementos objetivos da ação estão preenchidos: há agente, há tipo, e há
conexão entre o resultado e ação, de acordo com todas as teorias faladas anteriormente.
Passa-se, então, à análise dos elementos subjetivos: dolo e negligência. Conclui-se que, neste caso,
está em causa a figura da negligência consciente: Ana apenas se queria divertir com os amigos,
pensando que o risco que representou nunca se iria concretizar – na medida em que ela não se
conformou e, consequentemente, não disse “independentemente do que acontecer, irei atuar”
(conceção positiva de Frank). Além disso, segundo Fernanda Palma, rapidamente se conseguiria
concluir que Ana não pensou isto: a motivação de só entrar num jogo com amigos não é forte o suficiente,
assim como a probabilidade de lesão não era, também, grande.

No entanto, tal critério não é unânime: segundo Figueiredo Dias e Roxin, o critério seria se Ana teria
tomado como sério o risco da realização do facto típico – ou seja, se o propósito que move a sua ação
vale bem, a seus olhos, o preço da realização do perigo do facto típico. Aqui, mesmo aplicando esse
critério, continua-se a ter negligência consciente: Ana não queria tanto brincar com os amigos ao
ponto de estar disposta a perder o seu bebé por causa disso.
Assim, existindo negligência consciente, Ana não poderá ser punida, dado que o crime de
aborto não está previsto na forma negligente (artigo 142º CP).

Caso do Acórdão da Relação do Porto de 20-10-2004:

Neste caso, existe um exemplo ou de aberratio ictus ou erro na execução, dado que existem
dois objetos envolvidos: aquele em que o agente acertar; e aquele em que o agente acertou. Ora, se
se defendesse a teoria da equivalência, o agente seria punido pelo crime de ofensas à integridade
física doloso do menor – isto porque, apesar do dolo ser para as ofensas do maior, segundo Rui
Pereira, só se se transferir o dolo é que se abarca todo o ilícito cometido.
Segundo este autor, quando há coincidência típica entre o tipo de ilícito projetado e o tipo de ilícito
realizado, o agente deve ser punido por um só crime doloso consomado. Assim, neste caso, A seria
punido apenas pelo homicídio doloso de C (mesmo não havendo dolo neste crime), porque é a única
forma de garantir a punição adequada.
No entanto, atualmente, a doutrina maioritária é a teoria da concretização, de acordo com a
qual o agente deve ser punido por concurso efetivo – nomeadamente, entre o crime de tentativa de
ofensa à integridade física de D, e o crime de ofensa à integridade física negligente consumado da
criança –, porque estão em causa dois bens jurídicos. É claro que, depois, no caso concreto, será
necessário provar que existe negligência (ex: se for uma pessoa que apareceu do nada, pode nem
negligência haver), ou se estão preenchidos os requisitos para a tentativa (ex: se se estivesse a falar
sobre ofensas à integridade física simples, o agente não poderia ser punido por tentativa).

COMPARTICIPAÇÃO CRIMINOSA
Conceito de Comparticipação
Até agora, as hipóteses resolvidas envolvem apenas um autor – no entanto, existem muitas
outras formas de participar na prática de um crime, sem ser de uma forma singular e direta:
comparticipação criminosa. Tal figura está prevista nos artigos 26º e 27º CP (definição das formas de
comparticipação criminosa existentes), e 28º e 29º CP (esclarecem outros detalhes relativamente à
comparticipação criminosa), sendo necessárias porque os crimes na parte especial do código estão
apenas previstos para uma participação singular e direta – princípio da legalidade e tipicidade.
Em sentido lato, fala-se em comparticipação quando há uma pluralidade de agentes a realizar
o facto típico – sendo que, quando tal acontece, importa determinar o papel que cada um desempenhou
no cometimento desse crime. Normalmente, a distinção mais relevante é se este atuou como autor ou
como participante; sendo depois analisada qual foi a forma de autoria ou a forma de participação. Isto
será relevante porque a punição como autor é diferente da punição como participante.

Autoria vs. participação


TEORIA DO DOMÍNIO DO FACTO:
A primeira distinção importante será entre crimes dolosos e crimes negligentes, visto que o
conceito de autoria e, consequentemente, também o conceito de participação (acessório ao conceito
de autoria, pressupondo sempre a prática do facto por parte de um autor), são diferentes num e noutro.
Nos crimes negligentes, adota-se o conceito unitário de autoria, de acordo com o qual é autor
todo aquele que contribuiu causalmente para o resultado a título de negligência. Aqui, Bárbara Brito
defende que, para se poder punir alguém como autor nos crimes negligentes, além de demonstrar que
a pessoa contribuiu causalmente para a produção do resultado, é preciso, ainda, demonstrar o
elemento subjetivo da negligência – ligação do sujeito com o facto.
Na negligência consciente, este elemento será o facto de ter representado, mas não ter levado a sério
tal representação do facto típico – ou seja, não se conformou. Já na negligência inconsciente, este
elemento será a possibilidade (e não o dever, que é algo diferente: o dever pauta-se pelo poder, no
caso concreto) que o agente tinha de representar a realização do facto típico.
Já para os crimes dolosos, adota-se um conceito restrito (e não unitário) de autor. Segundo
conceito restrito, à luz da teoria do domínio do facto – doutrina dominante para determinar quem é
autor em sentido estrito –, é autor quem tem o domínio do “se” e do “como” da realização do facto
típico. Isto é, é autor quem controla o processo causal que leva ao resultado típico – e, por isso, o
facto surge como obra da sua vontade. Além disso, o elemento objetivo do conceito de autoria em
sentido estrito significa que o autor contribuiu para o acontecimento com determinado peso e
significado objetivo. Ou seja, o facto surge como fruto de uma contribuição por parte daquele agente
para o acontecimento – tendo essa contribuição um determinado peso e significado.
Dentro dos crimes dolosos, para uma grande parte da doutrina, o conceito de autoria varia consoante
o crime seja comum ou crime específico. Aqui, a teoria do domínio do facto de Roxin defende que o
conceito restrito de autor só se aplica aos crimes dolosos comuns, visto que nos crimes específicos
não tem de haver domínio do facto para haver autoria: a única coisa exigida é que a pessoa seja titular
do dever específico, da qualidade necessária do tipo. Por exemplo, um juiz que peça ao irmão que
profira uma sentença pratica o crime de prevaricação de justiça (artigo 369º CP), mesmo que não
domine o facto – isto é, ele não tem de controlar a vontade do irmão; basta ser titular do dever
específico de proferir a sentença, e ter pedido ao irmão para proferir a sentença por ele.
Já Figueiredo Dias e Bárbara Brito consideram que, mesmo nestes casos de crimes específicos, não
basta a violação do dever especial a que ele está adstrito: para além disso, o agente também tem de
ter o domínio do facto – por exemplo, o juiz anterior terá de ter coagido o irmão a proferir a sentença.

Outras teorias anteriores:


No entanto, nem sempre se defendeu esta teoria do domínio do facto – outras teorias foram
surgidas ao longo da história para distinguir autor de participante.
A teoria formal objetiva entendia que só podia ser autor aquele que executava por si mesmo a
conduta descrita no tipo legal de crime. Isto não se coaduna com a visão que a jurisprudência e a
doutrina defende, em que muitas vezes se pode considerar como autor quem instrumentaliza o outro.
Diferentemente, de acordo com a teoria objetiva material, é autor quem dá causa essencial e
participante quem não dá causa essencial.
Já a teoria subjetiva, dominante antes da teoria do facto, distinguia a autoria da participação
com base no mero elemento subjetivo: isto é, era autor quem atuasse com o animus de autor – ou seja,
como se o crime fosse seu –; e era participante quem atuasse com o animus socii de participante. No
entanto, um famoso caso alemão fez despertar a inaplicabilidade desta teoria, chamado Stachynskj:
com base nesta teoria, condenou como cúmplice um espião russo que, a mando da União Soviética,
matou dois conterrâneos seus na Alemanha, visto que este não tinha querido o crime como seu – ou
seja, não tinha animus de autor.
De qualquer das formas, o Código Penal Português, a propósito dos crimes dolosos – e, para
Figueiredo Dias, quer eles sejam comuns ou específicos –, distingue formas de autoria e formas de
participação, adotando a teoria do domínio do facto.
Assim, como formas de autoria – ou formas de domínio do facto –, existe a autoria imediata, a autoria
mediata, e a coautoria. Já são formas de participação a instigação (artigo 26º CP, última parte) e a
cumplicidade (artigo 27º CP).

Formas de Autoria
AUTORIA IMEDIATA (artigo 26º CP):
É autor imediato (ou material, ou direto) quem executar o facto pelas suas próprias mãos, na
medida em que é ele que preenche os elementos objetivos e subjetivos do crime. Dito de outra forma,
o autor imediato é aquele que tem o domínio da ação.

AUTORIA MEDIATA (artigo 26º CP):


Existe autoria mediata quando este “outrem” – que é considerado o autor imediato – é utilizado
como instrumento, sendo que quem o utiliza – autor mediato – não perde o domínio do facto, porque
domina a vontade deste autor imediato e, dessa forma, controla o processo causal que leva ao
resultado. Ou seja, o autor mediato não tem o domínio da ação, na medida em que não a executa; mas
tem o domínio da vontade, dominando a vontade da pessoa que executa a ação.
➔ Por exemplo, A aponta uma arma a B e diz “ou disparas sobre C, ou eu disparo”: aqui, A será
autor mediato, dado que controla a vontade de B, por forma de coação (estando B num estado de
necessidade desculpante).
As formas mais comuns de se dominar a vontade de outra pessoa são: a 1) autoria mediata por
coação, tendo esta de ser tal que exclua a culpa do executor (como no exemplo dado anteriormente);
e a 2) autoria mediata por erro, tendo este de ser tal que exclua ou o dolo, ou a culpa do executor.
Estas duas formas de dominar a vontade são consensuais na doutrina.
Outras formas, como a 3) autoria mediata por domínio da organização – ou no quadro de um aparelho
organizado de poder (ex: mafia, nazismo) –; assim como a 4) autoria mediata por utilização de
inimputáveis, são mais discutíveis. Por último, existe, ainda, a 5) autoria mediata por aliciamento na
forma de ajuste, fundamentalmente defendida por Conceição Valdágua.
1. Autoria mediata por erro que exclua o dolo ou a culpa do agente:
Neste caso, o autor mediado induz o autor imediato em erro, ou explora o erro em que o autor
imediato já está – e, dessa forma, consegue dominar o elemento intelectual do mesmo, passando a ter
a capacidade de dirigir o facto. Este erro pode incidir sobre elementos do facto típico, elementos
justificativos, ou mesmo sobre a ilicitude.
Quanto ao erro sobre elementos do facto típico, dá-se o exemplo de A que, estando à caça
com B, induz o mesmo em erro que por detrás de uma árvore está um veado, quando na verdade sabe
que quem está por detrás da mesma é C. No entanto, B dispara, pensando que A lhe disse a verdade.
Neste caso, A reforça o erro (sobre o objeto) em que B já está: ora, segundo o artigo 16º, nº1 CP, este
exclui o dolo de B – sendo depois necessário perceber se este agiu com negligência (que, neste caso,
só poderia ser inconsciente), para o poder punir como tal.
Quanto ao erro sobre os elementos justificativos: dá-se o exemplo de A que, apesar de saber
que C não se encontra a apontar nenhuma arma a B, diz-lhe isto, fazendo com que B dispare. Neste
caso, A está a induzir B em erro sobre os elementos constitutivos da legítima defesa – ora, quando a
pessoa está em erro sobre os pressupostos de uma causa de exclusão, aplica-se o artigo 16º, nº2 CP:
exclui-se o dolo, podendo B ser punido por negligência, se esta vier a ser provada.
Quanto ao erro sobre a ilicitude, dá-se o exemplo de um médico que, de propósito, diz a uma
dinamarquesa que pode fazer um aborto até à 13ª semana, não sabendo esta que tal é crime em
Portugal. Neste caso, exclui-se a culpa da dinamarquesa, visto que ela fez tudo o que estava ao ser
alcance para esclarecer se a sua conduta era ilícita ou não – artigo 17º CP, erro não censurável da
culpa. Consequentemente, pune-se o médico, dado ser ele o autor mediado do crime, porque
instrumentalizou a dinamarquesa, induzindo-a em erro.
➔ Aqui, existe, ainda, o caso de C cair do barco e B é impedido de o salvar por A, que lhe diz que
C anda com a sua mulher. Neste caso, o erro não recai sobre nada que tenha relevância no sentido
de excluir o dolo ou a culpa, mas sim sobre os motivos da ação – pelo que não se aplica nenhum
dos artigos mencionados.

2. Autoria mediata por coação:


Nestas situações, o domínio do facto ocorre através do domínio do elemento volitivo da
decisão do autor imediato: isto é, o autor mediato, dolosamente e por coação, coloca outrem numa
situação de estado de necessidade desculpante, ou aproveita-se de uma situação de necessidade
desculpante em que o agente está.
Por exemplo, A aponta uma arma à cabeça de B e diz “ou disparas sobre C, ou eu disparo sobre ti”.
Ora, aqui, quando B quando dispara sobre C, atua ao abrigo do estado de necessidade desculpante,
dado estar sob influência de um perigo, não lhe sendo razoável pedir a adoção de um outro
comportamento. Já o A vai ser punido pelo crime de homicídio como autor mediato.
Outro exemplo será o caso de três alpinistas que estão todos presos por uma corda. O terceiro alpinista
escorrega, e o primeiro vira-se para o segundo e diz “ou cortas a corda ao terceiro, ou eu corto-te a
corda”. Aqui, o primeiro alpinista está claramente a aproveitar-se de uma situação de necessidade em
que o terceiro e segundo alpinista já se encontram.
3. Autoria mediata por domínio de organização:
Nestas situações, normalmente, está-se perante organizações estruturadas hierarquicamente,
com uma forte disciplina interna, em que o modo de funcionamento dos seus elementos é quase
automático – isto é, o executor do crime é um elemento fungível: se ele não fizer aquele ato, há outro
que irá fazer por ele.
Além disso, há um terceiro requisito (cada vez mais discutido): o facto de a atuação da organização
se situar fora do quadro da ordem jurídica. Encontram-se, aqui, os casos da mafia – sendo o padrinho
da mafia autor mediato de todos os crimes que os seus homens fizerem –; assim como os casos de
organizações militares ou políticas que se apoderem do aparelho do Estado ilegitimamente (ex:
Alemanha nazi ou as ditaduras militares na América Latina).
Nestes casos de autoria mediata, para Roxin, continua a haver responsabilidade plena por parte
do autor imediato: isto é, apesar de o autor mediato ter o domínio social do facto, o autor imediato
não deixa de atuar com culpa, não existindo nenhuma exclusão do seu dolo ou da sua culpa – este
não está em erro nem sobre coação.
No entanto, para Figueiredo Dias, já só pode haver autoria mediata por domínio de organização se o
autor imediato atuar em erro ou sobre coação: apenas nesses casos existe um domínio do facto, sendo
necessário um domínio intelectual do facto (e não apenas o domínio social, como Roxin defende).

4. Autoria mediata por utilização de inimputáveis:


Para uma parte da doutrina, existirá autoria mediata sempre que se utilize um inimputável, em
razão da idade ou anomalia psíquica, pois haverá um domínio ético-social do facto por parte do autor
mediato – excluindo-se a culpa do autor imediato, nomeadamente o inimputável.
No entanto, para outra parte da doutrina, para haver autoria mediata nestes casos, é necessário
provar que existe um domínio do facto por parte do autor mediato, porque ele domina ou o elemento
intelectual, ou o elemento volitivo do autor imediato. Ou seja, se se demonstrar que há um
discernimento e poder de decisão por parte do autor imediato (inimputável), já não haverá autoria
mediata – haverá instigação, apesar do inimputável continuar a não ser punido.

5. Autoria mediata por aliciamento na forma de ajuste:


Esta posição é defendida pela professora Conceição Valdágua: para esta, em todos os casos
em que o executor imediato se subordina voluntariamente à decisão do “homem de trás”, sendo a sua
decisão de executar o facto, até ao último momento, condicionada pela decisão desse “homem de
trás”, pode-se afirmar que este executor não tem uma vontade autónoma própria, porque faz depender
o fazer ou não fazer do “homem de trás”. No fundo, há uma subordinação à decisão do “homem de
trás”, que não é alcançada nem por erro nem por coação, mas voluntariamente – assim, este deve ser
punido como autor mediato. Esta professora dá muita importância ao facto de o “homem de trás”
conseguir impedir, de forma unilateral, a prática do facto – justificando isto o facto de ele ser punido
como autor mediato.
Os pressupostos para tal figura serão: 1) o consenso entre o “homem de trás” e o executor; 2)
o reconhecimento do “homem de trás” desse consenso a respeito da realização e conteúdo de uma
determinada prestação de coisas que o “homem de trás” proporciona ao executor; 3) o cometimento
do executor de um concreto ilícito típico, planeado e liderado pelo “homem de trás”; e 4) o
estabelecimento de uma relação sinalagmática entre a realização daquela prestação pelo “homem de
trás” e o cometimento deste ilícito típico pelo autor imediato.

NOTAS FINAIS
Quanto às situações em que não há uma ação jurídico-penalmente relevante por parte do autor
imediato, este acaba por não ter a sua vontade dominada pelo autor mediato: este é, aliás, apenas
usado como um puro corpo ou arma – são ações praticadas em vis absoluta por parte do autor
imediato. Não existe, aqui, uma instrumentalização como anteriormente falado: para
instrumentalizar o outro, ele teria de praticar uma ação jurídico-penalmente relevante.

Por exemplo, A hipnotiza B para que, nesse estado, agrida C; ou A empurra B para que este caia por
cima de C. Se se aplicar o conceito de ação jurídico-penalmente relevante a quem atua hispanizada
ou empurrada, este não pratica uma ação jurídico-penalmente relevante. Portanto, quem hipnotiza ou
empurra é autor imediato – o A não domina a vontade do B, porque este nem sequer vontade tem.

Discute-se, ainda, quando é que se pode dizer que se inicia a tentativa para o autor mediato.
Para uma parte da doutrina (Jakobs), a tentativa começa logo com a ação de instrumentalização, por
parte do autor mediato, sobre o executor. Já para Roxin, a tentativa inicia-se com a perda de controlo
sobre o executor instrumentalizado. Por fim, para Stratenwerth, só há tentativa com o início da
execução por parte do autor imediato.
Conceição Valdágua, por sua vez, diz que poderá existir uma tentativa sem haver atos de execução
por parte do autor imediato. Imagine-se que A diz a B que um veado está no lugar de C, sabendo
perfeitamente que ele vai disparar logo a seguir – ora, aqui, há uma tentativa. Ou seja, há uma tentativa
sempre que o autor mediato praticar um ato que é de natureza a fazer esperar que, imediatamente a
seguir, se lhe siga um ato adequado a produzir o resultado esperado.

COAUTORIA (artigo 26º):


Para grande parte da doutrina, deste artigo retira-se que há dois elementos essenciais para a
coautoria, nomeadamente: 1) a decisão conjunta ou acordo; e 2) a execução conjunta, ou colaboração
na fase executiva. Assim, na coautoria, analisa-se o domínio funcional do facto: é-se autor porque,
durante a execução, possui-se a função relevante para a realização típica do facto, juntamente com
outros agentes.
Relativamente ao primeiro elemento – momento subjetivo da autoria –, para haver coautoria,
tem sempre de haver um acordo entre os autores, podendo este ser prévio ou ocorrer durante a
execução: “ação concertada”, que implica uma consciência recíproca de colaboração entre os
executores de facto. Por exemplo, A, B e C não combinam nada; mas, a certa altura, um deles agarra
uma pessoa que está na rua, outro dá-lhe um murro enquanto o terceiro vigia – esta é uma “ação
concertada”.
Por outro lado, este acordo também pode ser expresso ou tácito – sendo o exemplo dado anteriormente
um exemplo de um acordo tácito. Isto é importante, porque se houver excesso por parte de algum
autor, por regra, esse excesso não pode ser atribuído aos restantes coautores. Por exemplo, A, B e C
planeiam bater em D; mas o B, sem dizer nada aos outros, leva uma pistola, e dispara sobre D: neste
caso, a morte de D já não pode ser atribuída a A ou a C, porque eles apenas decidiram bater-lhe, e
não o matar.
➔ No entanto, se A e C já soubessem que B, às vezes, era extremamente agressivo, e tinha tendências
para matar pessoas quando irritado, poderiam ser punidos não como coautores (porque não existe
essa decisão conjunta); mas como autores negligentes, dado terem contribuído causalmente para
o resultado “morte de D”.
Além disso, será também necessário, para grande parte da doutrina, que cada um tenha
contribuído na execução do facto (“tomar parte direta na sua execução”). No entanto, para Roxin,
cada um dos coautores tem de ter ainda, nos termos do plano, um contributo essencial na realização
do facto típico – ou seja, tem o poder de fazer fracassar o plano com a não prestação do seu contributo:
domínio negativo do facto.
➔ Imagine-se que A é a única pessoa que sabe fazer o mapa para chegar ao local do furto: aqui,
supostamente, existiria um domínio negativo do facto. No entanto, mesmo para Roxin, é
necessário que A tome parte direta no facto: ora, aqui, tal não acontece, pelo que mesmo assim A
não poderá ser considerado coautor.
De qualquer das formas, o legislador português não é tão exigente como Roxin, exigindo
apenas que o autor “tome parte direta”: basta que ele execute, com os outros, o facto. Ainda a
propósito deste elemento objetivo, refere-se que o dolo do coautor tem de abranger a consumação da
realização do facto típico.
Imagine-se que A ficou incumbido de levar B e C ao local do assalto, mas, a partir do momento em
que os deixa à porta do banco, vai-se embora. Ora, este não será considerado um coautor, dado não
praticar um ato de execução do facto típico: a execução do mesmo só começa quando A se vai embora
– diferente seria se este ficasse a vigiar. Assim, A apenas será punido como cúmplice.
➔ Se, no entanto, A ficar num sítio a dar instruções a B e C, este será considerado coautor: apesar
de não estar presente no local, ele estará a tomar parte direta na execução, pois os seus atos têm
reflexos diretos na execução.

Formas de Participação
INSTIGAÇÃO (artigo 26º CP):
Dado estar estipulada na última parte do artigo 26º CP, que tem como epígrafe “autoria”, será
necessário perceber se o instigador deve ser encarado como participante ou como autor.

Uma parte da doutrina (Bárbara Brito e Jakobs) considera que não é pelo facto de a instigação vir no
artigo 26º CP que o instigador é um autor – tal significa, apenas, que o instigador deve ser punido
como autor. Isto, porque o fundamento da punibilidade do autor é, à luz da teoria do domínio do facto,
o facto de ele ter o domínio do “se” e do “como” da realização do facto ilícito típico. Ora, o instigador,
para esta parte da doutrina, não tem o domínio do facto: este apenas determina outra pessoa a praticar
o facto, retirando-lhe a autonomia de decidir sobre o mesmo. Este apenas tem o domínio sobre o “se”,
mas não sobre o “como”, sendo por isso que não é autor, apesar de ser punido como tal.

Ou seja, o facto de o instigador ter feito nascer na cabeça do instigado a decisão de praticar o
facto, não retira ao autor imediato o dolo de decidir, ou a intenção de praticar o facto.

➔ Se se considerasse o “homem de trás” como autor, estar-se-ia a retirar o poder de decisão do autor
material: o que não faz sentido, dado este ter todas as capacidades cognitivas e volitivas para
decidir fazer ou não fazer – seria, até, contraprodutivo em termos de prevenção geral.
Já Figueiredo Dias considera que o instigador deve ser considerado como autor se existir uma
verdadeira determinação, no sentido de haver um total domínio da decisão do instigado (o que não
existe para Bárbara Brito, que defende que o instigado pode decidir praticar o facto ou não). Neste
sentido, existirá domínio do facto, logo faz sentido que o instigado seja considerado autor, sendo
punido como tal.

Para existir instigação, terão de estar preenchidos certos requisitos, nomeadamente os


elementos objetivos e subjetivos:

1. Elementos objetivos:

Primeiro, é necessário haver determinação de outrem a executar dolosamente o crime. Esta


determinação implica que alguém produza no executor, ou seja, faça nascer na sua cabeça a decisão
de executar o crime. Significa isto que não basta reforçar uma decisão já tomada, ou influenciar o
mesmo: é preciso ter sido o instigador que fez com que o outro tomasse a decisão de praticar o facto.
Por exemplo, A é assassino profissional e B paga-lhe para ele matar C – aqui, B é instigador, porque
foi o dinheiro que fez nascer na cabeça do autor material A a decisão de praticar o ato.

Além disso, é necessário que haja dolo por parte do agente instigado, após ter sido
determinado pelo autor. Ou seja, apesar de ter sido o instigador que fez nascer no outro a decisão de
praticar, é necessário que, depois disso, o instigado decida livremente sobre atuar – caso contrário,
estar-se-ia perante uma situação de coação ou erro (autoria mediata).

Por fim, tem de haver execução do facto por parte do agente instigado, nem que seja na forma
de tentativa. Ou seja, basta ter-se praticado atos de execução (e não apenas o facto consumado) para
que exista instigação – sendo que, no entanto, o instigado tem de ter praticado algo que seja
considerado relevante tipicamente. Por exemplo, uma pessoa que seja filmada a pedir a um assassino
profissional para matar o marido, e que seja logo denunciada, não pode ser punida como instigadora,
visto que nem sequer houve nenhum ato de execução. Tal não mudaria se esta já tivesse pagado.

2. Elementos subjetivos:
O instigador tem de ter dolo da própria determinação, ou seja, ele tem de querer determinar o
outro a praticar o facto. Aqui, o dolo é duplo: além de ter de ter o dolo de determinar o outro a praticar
o facto, ele tem de ter dolo da ação instigada – isto é, ele tem de representar o ilícito praticado que
vai ser praticado pelo instigado, e querer que esse seja praticado. O dolo não tem, no entanto, de ser
preciso: ou seja, este não tem de saber exatamente quando e como é que o instigado vai executar.
Apenas tem de ter a representação do essencial do ilícito típico.

Se, no entanto, houver excesso por parte do instigado, ele não vai ser imputável ao instigador.
Por exemplo, A contrata B para dar uma sova em C; mas B entusiasma-se e mata C. Neste caso, não
se pode atribuir a morte ao instigador, porque ele só fez nascer na cabeça do agente material a decisão
de praticar o crime de ofensas à integridade física – tendo sido B que, por decisão própria, decidiu
matá-lo. Assim, esta morte não pode ser atribuída a A como instigador, porque não se verificam os
elementos da instigação: nomeadamente, este não representou o essencial do ilícito típico.
No entanto, se A sabia que B era uma pessoa instável, e já tinha conhecido outros casos semelhantes,
então pode-se considerar o mesmo como autor negligente do crime de homicídio.

Se houver erro sobre o objeto por parte do instigado (ex: A contrata B para matar C, mas este
acaba por matar D), para grande parte da doutrina, tal erro equivale a uma aberratio ictus para o
“homem de trás”: ou seja, o instigador deverá ser punido, em princípio, em concurso por tentativa do
crime que ele queria que fosse efetuado e pelo crime realizado na forma negligente. No entanto, como
também é sabido, tal posição é defendida por quem acha que, no caso da aberratio ictus, se deve
punir o agente como concurso (existindo, no entanto, outra parte da doutrina que defende que, nestes
casos, o agente deve ser punido por um só crime doloso).

Se houver uma aberratio ictus por parte do próprio instigado, para grande parte da doutrina, esta
aberratio ictus equivale, também, a uma aberratio ictus para o “homem de trás”: o instigador também
poderá ser, eventualmente, punido por tentativa do crime que visou ser realizado, e por negligência
do crime realizado. No entanto, denota-se que será difícil arranjar um exemplo em que o instigado se
enganasse desta forma.

Instigação em cadeia ou instigação da instigação

Esta figura é caracterizada por situações em que o sujeito não tem contacto direto com o
executor do facto, mas tem contacto com uma pessoa que faz parte do processo conducente à
determinação da prática do facto ilícito típico.

Por exemplo, A, amante de B, convence-o a determinar C a matar o seu marido D. Ora, para uma
parte da doutrina, A não pode ser instigador, dado que não determina diretamente o executor material
C, mas sim B. No entanto, para outra parte da doutrina (Bárbara Brito e Figueiredo Dias), para
determinar quem é instigador importa, apenas, averiguar qual atuação foi determinante à prática do
facto – pelo que A seria, então, considerado instigador.

➔ No entanto, seria diferente se C apenas o fizesse mediante um pagamento: neste caso, o


determinante é o pagamento do dinheiro que vem do primeiro instigador, A. Assim, o que
comunica com o assassino – nomeadamente, B – vai ser apenas punido como cúmplice.
➔ Já no caso em que A contrata B para contratar C (assassino profissional), que só atua em forma
de dinheiro e, também, porque foi contratado por B, pessoa de sua confiança – tanto A como B
são instigadores.

Assim, é necessário partir do executor para decidir o papel do “homem de trás”, e perceber o
que foi determinante para este decidir agir.

CUMPLICIDADE (artigo 27º CP):


O artigo 27º CP enumera não só o cúmplice moral, como o cúmplice material como sendo
passível de ser punido (“é punível como cúmplice quem (…) prestar auxílio material ou moral”). De
qualquer das formas, existem elementos comuns às duas, que devem estar preenchidos.

1. Elementos objetivos:

Em primeiro lugar, tem de haver um contributo direto do cúmplice para facilitar ou preparar
a execução – por isso se diz que esse contributo poderá ser material ou moral. No caso de ser cúmplice
material, este não pode ser essencial ao ponto de o agente tomar parte direta da execução – por
exemplo, a pessoa que leva até ao local do crime e vai embora é cúmplice material; mas aquele que
fica a vigiar já é coautor. Outro exemplo de um cúmplice material será a pessoa que fornece a arma
ou que fornece a bomba que vai explodir. Já no caso de ser cúmplice moral, a sua atuação não pode
criar no executor a decisão de praticar o facto.
Além disso, terá de haver causalidade: ou seja, a atuação do cúmplice tem de ser causal em
relação ao resultado tal como se produziu, tendo de aumentar o risco da realização da ação. A atuação
do cúmplice tem, consequentemente, de aumentar o risco da ofensa do bem jurídico – por exemplo,
A empresta um revólver a B para um furto, mas B não leva a arma, utilizando antes uma navalha.
Neste caso, A não potência a criação do risco para o bem jurídico – não existindo causalidade, não
há cumplicidade.

Por fim, terá de haver a prática, por parte do autor material, do facto doloso.
Consequentemente, terá de haver, também, o próprio dolo do autor material.

2. Elementos subjetivos:
Primeiro, é necessário existir duplo dolo do cúmplice: ou seja, o cúmplice tem de ter dolo
quanto ao auxílio, e quanto ao facto praticado. Mais uma vez, o dolo não tem de ser preciso, não
tendo o cúmplice de saber as circunstâncias concretas nas quais vai ser realizado o ilícito típico. Basta,
apenas, que este tenha uma representação da dimensão essencial do ilícito típico realizado pelo autor
material. Esse dolo pode ser desconhecido pelo auxiliado/executor – por exemplo, A vê o amigo a
furtar uma coisa e, vendo que um polícia vem aí, distrai o mesmo para o seu amigo não ser apanhado.

Importante é, ainda, que o fundamento da punibilidade do cúmplice esteja no seu contributo


para a realização do ilícito-típico por parte do autor. Significa isto que, se o auxílio for efetuado após
a consumação típica, só se deve falar em favorecimento pessoal ou real, e não em cumplicidade.

➔ No entanto, em que medida comportamento quotidianos, à partida valorativamente neutros,


podem ser considerados auxílios punidos pela figura da cumplicidade porque, no caso concreto,
facilitam a realização do crime? Por exemplo, alguém vai a um vendedor de armas e, enquanto
compra uma arma, avisa o mesmo que vai utilizá-la para matar o pai – quid iuris?

Princípio da Acessoriedade Delimitada (artigo 29º CP)


Numa hipótese de participação, deve-se analisar, em primeiro lugar, o autor material; só
depois de determinar a responsabilidade criminal do mesmo, é que se deve e pode determinar a
responsabilidade criminal do participante. Isto, porque existe o chamado princípio da acessoriedade
delimitada, de acordo com o qual a responsabilidade do comparticipante é determinada em função da
responsabilidade do autor material. O participante só é punido se o autor material tiver praticado
um ato típico-ilícito; ao passo que a culpa já é analisada individualmente – artigo 29º CP.

Relacionado com este princípio, mas com outro âmbito de aplicação, existe o artigo 28º CP.
Denota-se, em primeiro lugar, que este artigo só se aplica aos crimes específicos, sendo eles próprios
e impróprios; ao passo que o princípio da acessoriedade delimitada aplica-se a todos os crimes.

Além disso, para a maior parte da doutrina, este artigo aplica-se a toda a comparticipação criminosa,
incluindo as formas de autoria. Mais especificamente, para Figueiredo Dias, este artigo aplica-se quer
nos casos em que o autor material não tem a qualidade necessária para preencher o tipo de crime,
quer nos casos em que é o autor material que detém essa qualidade. Já para Teresa Beleza, no caso
de ser o autor material a deter esta qualidade, não é preciso recorrer ao artigo 28º, podendo-se aplicar
o princípio da acessoriedade limitada (artigo 29º) e estendendo o ilícito típico praticado pelo autor
material ao “homem de trás”. Consequentemente, para a autora, o artigo 28º só se aplica quando o
autor material não detém essa qualidade.
Ainda de acordo com este artigo, são comunicáveis todas as qualidades ou relações especiais do
agente que sirvam para fundamentar ou graduar a ilicitude do facto – isto, exceto se for outra a
intenção de lei. Estas não servem, no entanto, para fundamentar nem graduar a culpa do facto, porque
essas qualidades são individuais, logo analisam-se individualmente.

No fundo, de acordo com o artigo 28º, o extra neus – aquele que não possui a qualidade exigida
pelo tipo – pode ser autor de um crime específico, desde que o intra neus – o que possui a
qualidade – tenha essa qualidade.

Casos práticos

1. Havia já algum tempo que Carlos não gostava de Duarte. Porém, quando ficou a saber que este
começara a namorar com a sua irmã Elsa. C ficou furioso e contou o seu drama a Filipe, um
amigo. Este disse-lhe: “conheço um tipo, o Gustavo, que já limpou o cebo a uns quantos e anda
com dificuldades económicas. Por algum dinheiro, ele faz o que tu quiseres”. C pediu a F que,
em seu nome, contactasse G e lhe oferecesse 500.000€ para dar uma sova a Duarte. Gustavo
aceitou prontamente a proposta. Mais tarde, nessa noite, esperou por Duarte, à porta de uma
discoteca e, vendo sair uma pessoa, de aspeto físico semelhante ao de Duarte, mas que era Hugo,
agrediu-o violentamente. Hugo foi transportada ao hospital, onde acabou por falecer por não ter
sido possível realizar imediatamente uma transfusão de sangue, uma vez que aquele hospital não
disponha em stock sangue do tipo C. Determine a responsabilidade criminal dos intervenientes.

Para avaliar a responsabilidade criminal de cada um dos intervenientes, é essencial começar


sempre com o autor material – princípio da acessoriedade delimitada. Neste caso, o autor material é
Gustavo, dado ser este que faz os atos de execução. No entanto, o único crime que lhe pode ser
imputado será o crime de ofensas de integridade física graves, mas não a morte de Hugo.

Ou seja, apesar de haver causalidade natural, de acordo com a teoria da conditio – visto que, tirando
a ação de G, não há a morte de H –; de acordo com a teoria da adequação, não se consegue prever
que o hospital tivesse uma falha de sangue. A interrupção ou não do processo causal depende, então,
se podia ou não prever que tal iria acontecer: se, por exemplo, não houver sangue devido à logística
do hospital ou de G um tipo de sangue muito raro, não há interrupção do processo causal; mas se não
há sangue porque o diretor da reposição dos stocks atuou negligentemente, então já se pode falar
numa interrupção do processo causal. O resultado morte era previsível, mas não como resultado da
falta de sangue.

Concluindo que, em princípio, tal não era previsível, há interrupção do nexo causal. Logo, G só seria
punido por tentativa de homicídio. Existe, também aqui, um erro no objeto da ação – no entanto, este
é irrelevante, visto que existe identidade típica. No entanto, e mesmo não existindo dolo de matar
(poder-se-ia pensar que G apenas queria gravemente ofender), este poderá ser punido por negligência.

Já Carlos e Filipe serão instigadores, existindo, aqui, uma situação de instigação em cadeia
(instigação da instigação): Carlos fala com Filipe. No entanto, pode-se presumir que o pagamento é
feito por C e quem transmite a mensagem é F OU será que F é um mero núncio? Tal será importante
discutir se se achar que foi só o dinheiro que determinou a aceitação de Gustavo. Assim, se foi isso +
o facto de ter sido F a pedir, então são ambos instigadores; caso contrário, F será considerado como
cúmplice.

No caso em concreto, parece que de facto, o determinante foi apenas o pagamento do dinheiro que
vem do primeiro instigador, ou seja, de C. Consequentemente, F que comunica com o assassino, vai
ser apenas punido como cúmplice. Isto, porque não pode ser considerado que F era um instigador, já
que não houve prática de factos de execução por parte de C.

Existe, no entanto, um excesso na instigação, que neste caso não é imputado ao instigador C; mas que
o poderia ser, a título de negligência, se este conseguisse prever que aquela pessoa fizesse aquilo.

Por fim, o erro sobre o objeto tinha importância para o instigador, atribuindo-se a este a figura da
aberratio ictus: este será punido, em concurso efetivo, pela tentativa de ofensa à integridade física de
Duarte, e pelo crime de tentativa de homicídio negligente de Hugo – se não houvesse a quebra do
processo causal.

2. Amadeu prometeu pagar a Bento e a Carlos uma certa quantia se estes subtraíssem uma pintura
numa galeria de arte. Bento perguntou dadas informações a Duarte, segurança da galeria,
alegando que tencionava candidatar-se a guarda noturno da mesma. Bento e Carlos
introduziram-se, à noite, pelo telhado da galeria. A dada altura, Bento, que levava uma arma
sem dizer nada a Carlos, acerta em Frederico, pensando que era um cão. Bento e Carlos
apoderam-se de um quadro, e só mais tarde se apercebem que não era a pintura pedida por
Amadeu. Carlos telefona a Amadeu, ameaçando que o mataria caso ele não pagasse o valor
acordado pelo mesmo quadro.
Aqui, Bento e Carlos são coautores material do crime de furto qualificado da pintura, na
medida em que tomam parte direta na execução do mesmo, tendo este sido o fruto de uma decisão e
de uma execução conjunta por parte deles. No entanto, estes encontram-se em erro sobre o objeto,
dado terem furtado o quadro errado; mas neste caso, sendo os objetos tipicamente idênticos (são
ambos quadros), o erro não tem qualquer relevância jurídica, pelo que não se exclui o dolo da sua
conduta.
No entanto, este erro terá consequências para Amadeu? Para responder a isto, será necessário
classificar Amadeu e perceber se é possível ligá-lo ao crime cometido. Este é um instigador, dado
que, ao prometer dar dinheiro a B e C pelo quadro a ser furtado, criou na cabeça deles a decisão de
realizar o furto – na medida em que, se ele não tivesse prometido tal quantia, eles nunca teriam tido
a decisão de praticar o crime. Denota-se, aqui, que não é o facto de Amadeu depois não pagar essa
quantia que elimina a sua instigação, dado que a decisão já foi feita pelos autores materiais em
momento anterior.
No entanto, para haver instigação, é necessário haver duplo dolo: além de ter de ter o dolo de
determinar B e C a praticar o facto, A tem de ter dolo da ação instigada – isto é, ele tem de representar
o ilícito praticado que vai ser praticado pelo instigado, e querer que esse seja praticado. Ora, aqui,
poderá ser discutível, na medida em que A representou o furto de outro quadro daquele que realmente
foi furtado:
➔ Ora, para uma parte da doutrina, existindo este erro por parte dos autores materiais, o mesmo deve
ser tratado, no caso do instigador, como se fosse uma aberratio ictus – teoria da concretização.
Consequentemente, A apenas poderia ser punido em concurso efetivo da tentativa do crime de
furto do quadro que ele queria, com o crime de furto na sua forma negligente, do quadro
efetivamente furtado. No entanto, não existindo a possibilidade de se punir um furto negligente
(artigo 13º CP), Amadeu só poderia ser punido pela tentativa do furto.

➔ Outra parte da doutrina (Rui Pereira), não se deve punir Amadeu em concurso efetivo, dado que,
em algumas situações, a teoria da concretização deixa o instigador impune – e, por isso, na prática,
para o punir, ter-se-á de o punir por um só crime, nomeadamente o crime realizado na sua forma
dolosa – teoria da equivalência. Neste caso, Amadeu seria, então, punido pelo crime de furto
qualificado (do quarto efetivamente furtado) mas com dolo (para compensar a tentativa).
Bárbara Brito defende, em geral, a teoria da concretização, na medida em que a figura da aberratio
permite acautelar pelos dois bens jurídicos que estão em causa no caso – isto, dado existir erro sobre
o objeto. No entanto, neste caso específico, estando-se perante a aplicação desta figura ao instigador,
em concreto, não existe uma aberratio relativamente a este – o que se faz é apenas uma equivalência.
Consequentemente, a teoria da equivalência iria prevalecer, na medida em que, caso contrário,
Amadeu não iria ser punido.
Quanto ao homicídio de Frederico, Bento é o seu autor material, dado ter tomado parte direta
na execução do mesmo – não se envolvendo Carlos porque este não decidiu nem executou com Bento
tal crime. No entanto, existe, aqui, outro erro sobre o objeto, dado Bento ter confundido Frederico
com um cão. Não existindo identidade típica entre os dois, o erro torna-se relevante juridicamente,
na medida em que irá excluir o dolo (artigo 16º, nº1 CP). Assim, este só poderia ser punido pelo crime
de homicídio negligente – não podendo, aliás, ser punido pela tentativa de crime de ofensa contra
animal de estimação, dado que este não prevê a possibilidade de ser punido na sua forma tentada, nos
termos do artigo 23º, nº1 CP (sendo o crime consumado punido até dois anos).
Apesar de não existir coautoria, visto que Carlos não decidiu nem executou com Bento a ação de
matar Frederico, este poderia vir a ser punido por homicídio negligente, se se comprovasse que Carlos
poderia ter previsto que Bento, devido à sua personalidade ou ações passadas, se fosse comportar
desta formal. O mesmo se diz relativamente à ação de Carlos de ameaçar Amadeu: apenas Carlos
tomou a decisão e executou a mesma, não tendo Bento interferido para tal, pelo que apenas ele seria
pelos artigos 153º + 155º CP.
Já para o instigador Amadeu, a mesma lógica é usada: o excesso do autor material não pode ser
atribuído ao instigador, visto que este só fez nascer na cabeça do mesmo a decisão de praticar o crime
de furto qualificado – tendo sido Bento que, por decisão própria, decidiu levar uma arma e atirar em
algo. Assim, tal morte não poderá ser atribuída a Amadeu enquanto instigador, porque não se
verificam os elementos da instigação: nomeadamente, este não representou o essencial do ilícito
típico. No entanto, se A sabia que B era uma pessoa instável, e já tinha conhecido de outros casos
semelhantes, em que B agiu desta forma, então poder-se-á considerar o mesmo como autor negligente
do crime de homicídio.
Quanto a Duarte, este não será autor, de acordo com o conceito unitário de autoria (aplicado
aos crimes negligentes): apesar de o mesmo ter causalmente contribuído causalmente para o
resultado, o elemento subjetivo da negligência não está aqui verificado – Duarte não teria a
possibilidade de representar a realização do facto típico, dado Bento ter-lhe dito que se queria
candidatar à posição de guarda noturno, como justificação das suas perguntas. Por outras palavras,
representação da dimensão essencial do ilícito típico.
Além disso, este também não poderá ser considerado instigador, dado não ter colocado na cabeça de
B e C a ideia de cometer o crime de furto: esta decisão já tinha sido tomada quando Bento foi falar
com ele. Por fim, Duarte também náo poderia ser considerado como cúmplice, dado não incorrer em
duplo dolo: este nem tem dolo de ajudar, nem tem dolo quanto ao facto em questão, dado pensar,
mais uma vez, que o outro apenas se queria candidatar a guarda noturno.
3. A faz uma minuta de um documento e o conteúdo do mesmo não corresponde à verdade, e dá esse
documento a B – que o copia, pelas suas próprias mãos, com o propósito de o juntar numa ação
de investigação de paternidade, para que o réu não seja declarado pai de um menor. Os crimes
são falsificação de documento e denegação de justiça? Como se puniria A e B?
Este exercício foi baseado num caso real, julgado pelo Tribunal da Relação de Lisboa. Na
realidade, este considerou que A e B eram coautores do crime de falsificação de documentos e de
denegação de justiça. Isto porque:
➔ Por um lado, no crime de falsificação de documentos, A fabricou o conteúdo do primeiro
documento, então B elaborou o segundo documento com base nesse primeiro documento errado
– assim, ambos tomaram parte direta neste crime. Logo, de acordo com a alínea a) do artigo 256º,
nº1 CP, podem ser os dois punidos como coautores.

➔ Por outro lado, no crime de denegação de justiça (artigo 369º CC), denota-se que este é um crime
específico próprio. Ora, nestes casos, a ilicitude ou o grau de ilicitude do facto dependem de certas
qualidades ou relações especiais do agente – no entanto, neste caso, apenas B tinha a qualidade
de funcionário público, e não A. No entanto, de acordo com o artigo 28º, nº1 CP, neste tipo de
crimes, o facto de um dos coautores ter essa qualidade é suficiente para se punir os restantes
coautores, que não têm essa qualidade, pelo crime específico em concreto. Isto, dado que o auxílio
de A é, neste caso, um ato de execução: existe uma execução conjunta do crime (tendo A
falsificado o documento com o objetivo de B o passar a limpo e o juntar à ação de investigação
de paternidade), pelo que este é considerado um coautor; e não um cúmplice, na medida de ter
dado apenas um contributo direto.

ILICITUDE
Ilicitude ou tipo de ilícito?
Para a maior parte da doutrina, a ilicitude em Direito Penal analisa-se de acordo com a técnica
negativa de exclusão: ou seja, um facto será ilícito se a este não se puder aplicar uma causa de
exclusão de ilicitude e, consequentemente, justificar dito facto.
No entanto, para Figueiredo Dias, a tipicidade não se deve automatizar quanto ao ilícito, pois
o tipo só existe associado ao ilícito: isto, porque os elementos objetivos e subjetivos dos tipos
fundamentam positivamente a ilicitude, tendo as causas de exclusão um carácter meramente negativo.
Figueiredo Dias reconhece, no entanto, que tal ideia apenas poderá ser defendida teoricamente, dado
que, na prática, existem vantagens em fazer esta autonomia do tipo face ao ilícito – nomeadamente,
porque quando ocorre uma causa de exclusão da ilicitude, o comportamento deve continuar a ser
considerado típico, só se excluindo o ilícito.
➔ Isto vem desde Beling e do seu tipo indiciário de ilicitude, que está ligado ao que fundamenta
positivamente a ilicitude – ou seja, aos elementos positivos da ilicitude que, no fundo, são os
elementos subjetivos e objetivos do tipo.
Já Bárbara Brito argumenta que não existe nenhuma vantagem prática, na medida em que, no fundo,
Figueiredo Dias acaba por raciocinar da mesma forma que o resto da doutrina. Ele analisa os
elementos positivos da ilicitude (ou seja, os elementos do tipo), estando aí que a ação é ilícita. No
entanto, estando apenas indiciado, e não confirmado, a ilicitude só será verdadeiramente analisada
através dos elementos negativos da ilicitude – ou seja, só se não existir uma causa de exclusão de
ilicitude é que se pode afirmar (e não apenas indiciar) que a ação é ilícita.
Além disso, denota-se que Figueiredo Dias também cria o ilícito pessoal: ou seja, situa os
elementos subjetivos do tipo (dolo, negligência e elementos especiais) no ilícito, dando-lhes destaque.
No entanto, como já se viu, existe uma vantagem prática em tratar a fundamentação positiva da
ilicitude no tipo – o que, aliás, Figueiredo Dias reconhece, apenas dando mais destaque, a nível
teórico, aos elementos subjetivos (pelo princípio da culpa) que, nessa medida, fariam parte da
ilicitude, na medida em que este elemento constitutivo do crime seria, para este, o mais importante.

De onde se retiram as causas de exclusão?


Ora, para aplicar tal técnica, importa perceber quais as causas de exclusão de ilicitude que
existem. Para isso, importa ter em conta o artigo 31º, nº1 CP, que tem como epígrafe “exclusão da
ilicitude”: este permite dizer, desde logo, que não há apenas as formas de exclusão de ilicitude que
estão expressas no CP – ou seja, este excluir a tese de uma ilicitude restritamente penal, apontando
para a existências de outras causas de exclusão de ilicitude.
Aliás, o artigo 31º vem enumerar, em quatro alíneas, causas de exclusão de ilicitude. No entanto,
estas não são, como já se viu, as únicas que podem ser utilizadas (desde logo, pela escolha da palavra:
“nomeadamente”). Estas causas são meramente exemplificativas, tendo sido escolhidas para estarem
expressas no CP por serem as que mais existem na prática.
Assim, por um lado, existem causas de exclusão de ilicitude previstas noutros ramos de direito,
não tendo estas, por isso, de ter uma natureza apenas penal – por exemplo, a ação direta, prevista no
CC, pode atuar também como causa de exclusão de ilicitude no Direito Penal. A propósito disto,
questiona-se então se existe ou não uma unidade da ilicitude. As duas posições, apesar de irem dar à
mesma conclusão (de que existe), apresentam argumentos diferentes.
Figueiredo Dias entende que o conceito de ilícito determina-se a partir da sua consequência e que,
por isso, o conceito de ilícito irá divergir de ramo para ramo de direito (penas e medidas de segurança
em penal vs. obrigações de pagamento de indemnização em direito civil, por exemplo). Ora, significa
isto que, se poderá excluir o ilícito penal, sem, no entanto, excluir o ilícito civil, dado este ser menos
gravoso a nível de consequências. Dito de outra forma, este princípio da unidade da ordem jurídica
deve ser pensado apenas num plano puramente negativo, no sentido de que sempre uma conduta é
autorizada/permitida, está excluída a possibilidade de, ao mesmo tempo, com base num preceito
penal, esta ser tida como ilícita – consequentemente, se houver uma causa de exclusão da ilicitude no
direito civil, ela terá de se aplicar no Direito Penal (princípio da intervenção mínima do Direito Penal).
No entanto, o inverso não se verifica: ou seja, que sempre que se exclui a ilicitude penal, também se
exclui a ilicitude civil (ex: pode-se excluir a ilicitude penal, mas o agente ainda ter de pagar uma
indemnização à vítima).
Já Fernanda Palma, embora defenda também este princípio da unidade da ordem jurídico, entende
que o mesmo se poderá verificar, também, pela positiva. Ou seja, o facto de poder existir um facto
em que se exclua a ilicitude penal, mas não a ilicitude civil, não significa que esta unidade só exista
pela negativa; pelo contrário, neste caso, continua a existir uma unidade de ilícito, no sentido de ser
harmonizável. Tal será assim, porque esta vê o “ilícito penal” e o “ilícito civil” como conceitos
diferentes, sendo que a unidade vem não do facto de quando um se exclui, o outro também se exclui;
mas, sim, da harmonização destes conceitos diferentes, contribuindo para a coesão da ordem jurídica.
Além destas causas de exclusão da ilicitude provenientes do direito civil, existem, ainda,
causas de exclusão de ilicitude previstas no próprio CP, não na parte geral (artigo 31º CP); mas, sim,
na parte especial do mesmo (ex: artigo 142º CP, relativo ao aborto).
Por último, existem ainda, na doutrina, as causas de justificação supralegais: causas que não
estão expressamente previstas na ordem jurídica, mas que são de admitir face aos princípios
informadores das causas de exclusão de ilicitude existentes (artigo 31º, nº1 CP: “ordem jurídica,
considerada na sua totalidade”).
Por exemplo, há um princípio informador por detrás da legítima defesa: ou seja, o princípio que
justifica a legítima defesa será a proteção da dignidade da pessoa humana ou o de o direito não poder
ceder pelo ilícito. Este irá, então, poder justificar também a figura da legítima defesa preventiva, que
foi usada como argumento para justificar a intervenção do Iraque; outro exemplo será o de uma
pessoa, que está presa a uma cadeira à frente de uma janela com uma mão livre e uma pistola, e vê a
atravessar na rua um homem que sabe ter a intenção de disparar contra si quando entrar no
apartamento (sendo este o modus operandi daquela organização terrorista). A única hipótese que tem
a possibilidade é se ela disparar antes – legítima defesa preventiva.
Outro exemplo de uma causa de exclusão supralegal será o estado de necessidade defensivo. Por
exemplo, numa situação em que 11 pessoas estão no interior de uma gruta, estando a única passagem
impedida por um homem gordo – alguma doutrina defende que os bombeiros poderiam explodir o
homem gordo, provocando uma morte em troca das vidas das 11 pessoas que estão na gruta. Isto,
porque, neste caso, não se pode dizer que se está a atuar a legítima defesa; nem é estado de
necessidade, visto que uma vida vale o mesmo que onze vidas.
➔ Denotar que também se pode sempre excluir não a ilicitude, mas a culpa dos bombeiros, pelo
estado de necessidade desculpante, dado que a ação foi feita para salvar 11 pessoas.

Causas de exclusão da ilicitude do artigo 31º CP


Antes de se desenvolverem as causas de exclusão de ilicitude previstas no artigo 31º CP, é
necessário discutir duas questões prévias, comuns a todas elas. Por um lado, 1) para se aplicar uma
causa de exclusão da ilicitude, para além dos elementos objetivos, será preciso a presença de
elementos subjetivos? Por outro lado, 2) o que acontece se se verifica o elemento subjetivo, mas não
se verificam os elementos objetivos (ou seja, qual é a consequência quando há um erro sobre os
pressupostos de facto de uma causa de exclusão da ilicitude)?

1. Presença dos elementos objetivos, mas não do elemento subjetivo:


Para a maior parte da doutrina atual, para se poder justificar um comportamento, é necessário
verificar-se o elemento subjetivo – por exemplo, para se dizer que alguém agiu em legítima defesa,
não bastam estar presentes os elementos justificativos da sua ação; é preciso que, além disso, o agente
tenha conhecimento desses elementos objetivos, ou seja, desses pressupostos do facto.
Ora, sendo estes necessários, como se pune o agente não conhece os elementos objetivos existentes
e, mesmo assim, age? Não faz sentido punir-se da mesma maneira que se puniria se não houvesse a
causa de exclusão; a existência da situação justificadora tem de ter relevância, mesmo que não
preencha o elemento subjetivo.
Para se responder a esta pergunta, é preciso aprofundar o conceito de ilicitude, por
contraposição ao conceito de culpa. A ilicitude tem a ver com a desconformidade em relação a uma
norma jurídica, objetiva e subjetivamente: esta é, então, um juízo de desvalor que recai sobre o
comportamento – na ilicitude analise-se o ato em si.
Este juízo de desvalor é composto por dois juízos, nomeadamente: 1) juízo do desvalor da
ação; e pelo 2) juízo do desvalor do resultado:
➔ O juízo do desvalor da ação recai sobre o comportamento, traduzindo-se na contrariedade do
mesmo à ordem jurídica. Revela-se, fundamentalmente no facto do agente ter conhecimento de
que está a realizar um facto típico ilícito, e querer praticar esse facto típico ilícito.
Consecutivamente, este juízo fundamenta-se nos elementos subjetivos: o conhecimento e a
vontade do facto típico.

➔ O juízo do desvalor do resultado traduz-se na lesão de um bem jurídico ou no perigo dessa lesão
(nos crimes de perigo concreto) – ou seja, fundamenta-se pelos elementos objetivos. Tal resultado,
neste sentido, continua a estar presente nos crimes de mera atividade (onde não existe um evento
separável espaço-temporalmente da ação e do resultado) como, por exemplo, no crime de violação
do domicílio, onde se lesa o bem jurídico “vida privada”.
o Denota-se que este é o juízo mais importante na ação negligente; daí que os crimes
negligentes sejam crimes de resultado, não se conseguindo punir tentativas negligentes.

Ora, vendo-se a ilicitude como uma espécie de contraparte das causas de exclusão, para se
excluir a ilicitude, é necessário neutralizar estes dois desvalores. Assim, os elementos objetivos
compensam o desvalor do resultado; enquanto os elementos subjetivos neutralizam o desvalor
da ação (isto, porque a pessoa pensou que estava perante essa situação, logo a ação que daí resultou
está atenuada na sua ilicitude). Consequentemente, se os elementos subjetivos não existirem, a única
coisa que se consegue atenuar ou compensar é o desvalor do resultado.
➔ Por exemplo, A mata B, sem saber que B o ia matar primeiro com uma arma escondida. Ora, esta
ação atual e ilícita por parte de B, que ia ser concretizada na morte de A, comporta os elementos
objetivos que compensam o desvalor do resultado da ação de A – nomeadamente, a morte de B.
No entanto, o facto de A não saber que há essa agressão atual e ilícita faz com que não se possa
compensar o desvalor da sua ação, pois ele não agiu motivado por essa agressão.
Assim, existindo os elementos objetivos, mas não os elementos subjetivos da causa de exclusão, como
será o agente punido? Apesar de o CP não ter uma solução expressa, muitos autores defendem a
aplicação analógica a todas as causas de exclusão do seu artigo 38º, nº4: segundo este, não existindo
os elementos subjetivos na causa de exclusão por consentimento do lesado (ou seja, se o agente não
souber desse consentimento), o agente será punido pela pena aplicável à tentativa do crime em que
incorreu. Isto justifica-se pelo facto de, no ordenamento jurídico português, a figura que pune, por
excelências, o desvalor da ação é a tentativa – ou porque não há resultado, ou porque o resultado não
pode ser imputado ao sujeito. Ora, nestes casos em que não existem os elementos subjetivos da causa
de exclusão, permanece esse desvalor da ação, que terá de ser acautelado – nomeadamente, com a
punição pela tentativa.
➔ Segundo Conceição Valdágua, a existência deste artigo 38º, nº4 não seria necessário para
colmatar tal dúvida: bastaria fazer a mesma analogia, mas utilizando como base a previsão legal
para a punição da tentativa. De qualquer das formas, esta analogia será possível, na medida em
que beneficia o agente – analogia bonam parte (artigo 29º, nº1 e nº3 CP).
➔ Já segundo Rui Pereira, nas outras causas de exclusão de ilicitude, a falta de elemento subjetivo
só permite que o agente seja punido por tentativa quando o bem jurídico que foi tutelado através
da causa de justificação é superior ou igual ao lesado com a ação praticada no âmbito da causa de
justificação – dado que só nesses casos está eliminado o desvalor do resultado. Por exemplo, o
agente, em legítima defesa, lesa um bem jurídico maior (ex: vida) do que está a proteger com a
sua ação (ex: propriedade): neste caso, o desvalor do resultado não estaria suficientemente
compensado – logo, não se pode punir o sujeito só por tentativa, mas sim por crime consumado.

“Quem desconhece a situação justificadora, atua com desvalor da ação equivalente do lado
subjetivo ao autor de um facto relativamente ao qual se não se verifica qualquer situação de
justificação” – Figueiredo Dias

No entanto, esta exigência da verificação do elemento subjetivo da causa de exclusão só se


aplicar aos crimes dolosos. Isto porque, nos crimes negligentes, o desvalor da ação é extremamente
diminuto e, por isso, não é necessário compensar o mesmo através dos elementos subjetivos – pelo
que apenas se exige a verificação dos elementos objetivos, para compensarem o desvalor do resultado.
Imagine-se, por exemplo, que A vê uma caixa com a forma de um frigorífico no meio da estrada e
passa-lhe por cima com o seu carro – mas, afinal, estava lá uma pessoa, com o propósito de fazê-lo
parar o carro e, consequentemente, assaltá-lo (car jacking). Partindo do pressuposto que A preencheu
o tipo de homicídio negligente, os elementos objetivos da causa de exclusão estariam previstos; mas
os elementos de subjetivos não. No entanto, sendo um crime negligente, estes elementos não são
necessários, conseguindo-se excluir a ilicitude apenas com os elementos objetivos.
➔ Tal já será discutível nos casos de negligência grosseira – tudo tem a ver com até que ponto é que
se pode dizer que o desvalor da ação é extremamente diminuto (por exemplo, se a indiferença era
tal que ele nem representou).

Falta, por fim, justificar esta necessidade do elemento subjetivo da ilicitude a nível legal, dado
que a sua exigência (nos crimes dolosos) é uma interpretação restritiva a uma norma penal negativa
(ou seja, que exclui a responsabilidade penal).
Há uma parte da doutrina que defende que esta interpretação não será restritiva, mas sim teológica,
segundo a qual será possível retirar a necessidade do elemento subjetivo não só no artigo 38º, nº4,
mas para as restantes causas de exclusão de ilicitude. Por exemplo, no artigo 32º, relativo à legítima
defesa, a palavra “repelir” leva a crer, através de uma interpretação teológica, que o agente saiba da
existência dos elementos objetivos e os queira afastar – isto, sem violar o princípio da legalidade.
Já outra parte da doutrina defende que, sendo uma norma penal negativa, o princípio da legalidade
não se aplica de forma igual como se aplica às normas resultantes dos tipos incriminadores – isto,
dado que as suas finalidades acabam por ser as mesmas: proteger o cidadão do poder punitivo do
Estado, de acordo com a teoria penal. Por isso, tal princípio não deve ser tão limitativo na
interpretação da norma.

2. Presença do elemento subjetivo, mas não dos elementos objetivos:


Nas situações em que o elemento subjetivo está verificado, mas o elemento objetivo não está,
a solução legal está no artigo 16º, nº2 CP (não importando, por agora, a expressão “culpa do agente”).
O legislador, aqui, ao falar “no preceituado”, remete para a estatuição do nº1 anterior, relativo à
“exclusão do dolo” – assim, nas situações em que existe erro sobre os pressupostos de facto de uma
causa de justificação, exclui-se o dolo do agente. Este, consequentemente, será punido a título de
negligência, se se provar que aquele erro era evitável.
➔ Por exemplo, A vê B a retirar a mão no bolso em forma de punho, e pensa que este lhe vai dar um
soco e, por isso, dá-lhe um soco primeiro; mas B estava a segurar apenas uma chave. Aqui, A
representou uma agressão por parte do B que, na verdade, não existia – consequentemente, exclui-
se o dolo na sua ação, podendo A vir a ser punido a título de negligência.
Em termos materiais, pode-se dizer que o dolo é afastado visto que o agente está em erro sobre
uma situação justificante – e, por isso, a ilicitude de um facto doloso deve ser excluída. Defende-se
que o agente não deve ser punido por um facto doloso ilícito, ou pelo ilícito característico de um facto
doloso.
Figueiredo Dias, por sua vez, justifica esta exclusão com o elemento emocional que, para ele, existe
no dolo, fundamentado na relação e a atitude do sujeito face à ordem jurídica. Ora, no exemplo
apresentado anteriormente, exclui-se o “dolo da culpa” porque este elemento emocional não está
presente – esta atitude, face à ordem jurídica, não existe. Rui Pereira, por outro lado, defende que
esta situação de erro não é compatível com a figura do dolo, na medida em que o dolo exige um forte
desvalor da ação: ora, nestas situações, o agente atua com a ideia de que se está a defender, havendo,
por isso, mais uma analogia com as situações de negligência do que com as situações de dolo (ela não
age com a motivação de agir, mas sim com a motivação de se defender, ainda que de forma errada).
Outro argumento, utilizado também por Figueiredo Dias, e que poderá ser aplicado de acordo com a
doutrina maioritária, expressa que o erro aqui presente é muito similar ao erro presente no artigo 16º,
nº1 CP: nomeadamente, ambos são erros intelectuais, onde o agente representa mal a realidade.
Assim, sempre que há um erro intelectual, dever-se-á excluir o dolo e, eventualmente, punir o sujeito
por negligência.
➔ Já o chamado “erro moral” é mais grave do que o erro intelectual: por exemplo, no caso da
dinamarquesa, esta está em erro moral, na medida em que tem a ideia errada sobre a ordem
jurídica portuguesa. Consequentemente, se tal erro for censurável (artigo 17º CP), exclui-se a
culpa, mas não o dolo. Dito de outra forma, a natureza deste erro choca com as valorações da
ordem jurídica portuguesa – pelo que, como já tem a ver com a relação do sujeito com o Direito,
já só poderá excluir a culpa se não for censurável; continuando, no entanto, a ação a ser ilícita.

NOTA: Cavaleiro Ferreira, em vez de falar em elementos objetivos e subjetivos, fala em


pressupostos – condições sem as quais não se verifica a causa de justificação (ou, dito de outra forma,
os elementos integrantes da situação justificadora que têm de ocorrer no momento da ação) –; e
requisitos – elementos intrínsecos que caracterizam o comportamento do agente na causa de
justificação (e, nesse sentido, fixam limites à causa de justificação).
Esta distinção implica outras consequências que não as mencionadas, nomeadamente: quando não se
verificam os pressupostos, a causa de exclusão da ilicitude não existe; quando não se verificam os
requisitos, a causa existe, mas o exercício da mesma não é legítimo, ultrapassando o limite. De
qualquer das formas, em ambos os casos, não se pode aplicar a causa de justificação para excluir a
ilicitude da ação.
LEGÍTIMA DEFESA (artigo 32º CP):
Pressupostos
A legítima defesa é uma agressão atual e ilícita, que ameace interesses juridicamente
protegidos do agente ou de terceiro.

1. Agressão:
Ao utilizar a palavra “agressão”, o legislador quis abarcar apenas os comportamentos
humanos que se traduzem em ações jurídico-penalmente relevantes. No entanto, isto não significa
que uma agressão só possa existir através de uma ação em sentido estrito: pode haver uma agressão
através de uma omissão (ex: caso do pai que não vai salvar o filho, e alguém coage o pai a atuar –
esse alguém já age em legitima defesa alheia).
Deste pressuposto pode-se, sim, retirar que está excluída a legítima defesa contra animais e
coisas; assim como contra ações que não sejam consideradas jurídico-penalmente relevantes (ex: se
se atuar contra um sonâmbulo, não se atua ao abrigo de legítima defesa – mas, sim, ao abrigo do
direito de necessidade, onde se atua contra um comportamento humano que não se traduz numa ação
jurídico-penalmente relevante; ou contra um evento natural; ou contra um ataque de um animal).
Além disso, também só se pode falar em agressão se houver uma possibilidade efetiva de lesão
do bem jurídico – o que significa que não pode haver legítima defesa contra tentativas impossíveis.
Por exemplo, A atua contra C em defesa de B, que, no entanto, já estava morto – ora, aqui, a legítima
defesa não se poderá aplicar.
➔ Nestes casos, apesar de não se aplicar a legítima defesa, poder-se-á aplicar a figura do erro, na
medida em que A pensa que há uma ação ilícita atual, mas não há: assim, exclui-se o dolo da ação
de A, e podendo este apenas ser punido a título de negligência se fosse possível prever que B
estava morto; já se tal fosse totalmente impossível, não poderá ser punido de todo.

2. Atual:
A agressão tem de ser, ainda, atual, o que significa que a ação tem de estar em execução ou
ser iminente – não sendo admissível legítima defesa contra uma agressão já consumada (ou futura).
Há, no entanto, uma discussão na doutrina sobre se é ou não necessário, para que uma agressão
se considere atual, que já haja prática de atos de execução, à luz do artigo 22º da alínea c) CP – que
estabelece o limite a partir do qual se pode considerar que existem atos de execução. Ora, de acordo
com esta norma, há um ato de execução sempre que o agente praticar um ato de natureza a fazer
esperar que, imediatamente a seguir, se lhe siga um ato adequado a produzir o resultado.
Consequentemente, uma parte da doutrina entende que terão de existir já atos de execução praticados
à luz da alínea c); enquanto outra parte da doutrina considera que basta uma expectativa fundada
sobre a prática dos atos da alínea c). Denota-se, no entanto, que Bárbara Brito entende que, para
quem defende que basta esta expectativa, já está a defender a legítima defesa preventiva.

3. Ilícita:
A ação tem de ser ilícita, o que significa que a ação jurídico-penalmente relevante praticada
pelo sujeito (aquela do qual se está a defender) não pode estar justificada: por exemplo, não se pode
atuar em legítima defesa contra alguém que atua, também, em legítima defesa. No entanto, não se
confunde tal necessidade de injustificação com necessidade de violência, dado que pode haver ações
ilícitas não violentas (ex: pode-se atuar em legítima defesa contra um furto).
Além disso, a ação ilícita também não tem de ser dolosa. Por exemplo, A vai atirar sobre algo
que pensa ser um animal, mas que afinal é uma pessoa C, e B atira primeiro para a proteger – aqui,
existe, no máximo, um homicídio negligente por parte de A; mas a ação do mesmo continua a ser
atual e ilícita, pelo que a ação de B, consequentemente, estará justificada.
A agressão ilícita pode, ainda, ser proveniente de um inimputável, visto que a
inimputabilidade só exclui a culpa – mas, como se irá ver mais à frente, grande parte da doutrina
entende que, nestes casos, devem ser impostos limites à legítima defesa.

4. Interesses juridicamente protegidos do agente ou de terceiro:


Destaca-se, em primeiro lugar, que se pode atuar em legítima defesa de terceiro – legítima
defesa alheia. No entanto, discute-se na doutrina se é ou não possível atuar em legítima defesa de
terceiro, quando esse terceiro que se pretende defender dispõe dos meios para o fazer, mas não o quer
fazer. Parte da doutrina considera que, se estiverem em causa bens jurídicos disponíveis pelo titular,
o consentimento da lesão dos mesmos afasta a responsabilidade do autor da lesão – o que significa
que a ação passa, então, a ser lícita. Já se estiverem em causa bens indisponíveis, o agente pode atuar
em legítima defesa alheia quer o terceiro consinta ou não.
Há, também, ainda quem ache que, se o bem jurídico for disponível, e a vítima tiver dado o seu
consentimento, mas o agente que atua tem um dever de garante face a esta, então poderá agir em
legítima defesa alheia independentemente do consentimento (ex: A bate em B, que consentiu, mas o
pai de B está a ver – pode atuar em legítima defesa alheia).
Além disso, a doutrina diverge, também, relativamente se se pode atuar em legítima defesa
sobre bens sociais – ou seja, bens coletivos. Há quem entenda que esta só pode incidir sobre bens
individuais; enquanto outros defendem que esta pode incidir, também, sobre bens coletivos que
atinjam bens individuais. Nesta última posição, apesar de ser mais difícil estabelecer os limites da
legítima defesa, o fundamento desta causa de exclusão continua a existir – pelo que Bárbara Brito
acredita que tal posição faz sentido.

Requisitos
1. Meio de defesa necessário:
Para que meio de defesa utilizado pelo agente seja necessário, é preciso que não seja possível
recorrer à força pública. Além disso, tal meio terá de ser eficaz – no sentido de ser capaz de afastar o
perigo. Por último, está também implícito, nesta ideia, de que o meio utilizado tenha de ser o menos
gravoso entre todos aqueles que o agente tiver ao seu alcance; ao que Bárbara Brito acrescenta, ainda,
“e/ou o único possível”.
Para chegar a esta conclusão, a doutrina propõe fazer um juízo de prognose póstuma: isto é,
deve interrogar-se se era previsível ao homem “médio”, cumpridor do direito e das leis causais,
colocado na posição do agente e com as condições em que ele estava (ou seja, avaliando-se a conduta
no momento em que ele está perante a mesma, e não depois, de forma mais “fria”), se aquele meio
era o menos gravoso entre aqueles que ele tinha à sua disposição.
1.2. Proporcionalidade (discutível):
Para grande parte da doutrina (Fernanda Palma), para além do meio de defesa necessário, é
preciso que haja proporcionalidade entre a agressão e a defesa. Para averiguar tal proporcionalidade,
interessa, fundamentalmente, qual o bem jurídico ameaçado e qual o bem jurídico lesado com a
legítima defesa.
Este elemento foi introduzido visto que existem casos em que se pode concluir que o meio era
o necessário, porque era o único disponível – mas, mesmo assim, não existir esta proporcionalidade
entre a agressão e a defesa. Por exemplo, A, proprietário de um pomar, atinge mortalmente B, que
lhe invadiu o pomar para furtar fruta: ora, aqui, há claramente uma desproporção entre a agressão e a
defesa, não se verificando o requisito da proporcionalidade.
Fernanda Palma dá, no entanto, outro exemplo, mais interessante: A, paraplégico, é dono de um
pomar, e um rapaz, B, todos os dias vai-lhe furtar esse pomar. A já chamou a polícia, já falou com os
pais de B, já comprou um cão – até que chega a um ponto em que a única forma que A tem de evitar
esse roubo será disparar sobre B. Imagine-se, além disso, que A vivia do rendimento que obtinha a
vender essas maçãs. Ora, Fernando Palma, como entende que o fundamento da legítima defesa é a
dignidade da pessoa humana e a insuportabilidade da lesão do bem jurídico para o sujeito, neste caso,
em que só está em causa o furto de maçãs, não existe tal insuportabilidade – e, consequentemente,
não existe proporcionalidade, pelo que não se pode aplicar a legítima defesa.

2. Inexistência de provocação pré-ordenada:


Não pode haver legítima defesa se houver uma provocação pré-ordenada: ou seja, não há
espaço para legítima defesa quando alguém dirige uma agressão a outrem, por forma a provocar uma
reação da mesma e, consequentemente, poder alegar que está a atuar em legítima defesa – tendo,
desde o início, a intenção de utilizar essa desculpa. Isto, porque nestes casos já não estará em causa o
princípio justificador da legítima defesa – especialmente, para quem entende que este pretende
preservar a própria ordem jurídica –; assim como não estará presente o elemento subjetivo da causa
de exclusão, na medida em que o sujeito sabe que a situação justificativa não existe.

3. Animus defendendi (elemento subjetivo da legítima defesa):


É o elemento subjetivo que, para grande parte da doutrina, é composto, por um lado, por uma
componente intelectual: isto é, o agente tem de ter conhecimento da agressão atual e ilícita que
ameaça interesses juridicamente protegidos do agente ou de terceiro. Além disso, há quem diga que
terá de existir uma vontade a acompanhar esta agressão – ou seja, o agente tem de ter vontade de
repelir esta agressão: componente volitiva. No entanto, isto pressupõe que haja uma compreensão
demasiado sistemática da agressão: obviamente que, se a pessoa representar a agressão, terá a vontade
de afastar a mesma – será difícil, assim, fazer esta distinção.
Estas componentes não são incompatíveis com qualquer motivação negativa que o agente
tenha ao atuar em legítima defesa. Por exemplo, A agride B e este, para se defender, agride-o de volta
– no entanto, B já queria agredir A há bastante tempo, e até está “contente” de ter esta “desculpa”.
Isso não significa, no entanto, que não está a atuar em legítima defesa, dado não ter provocado a
agressão inicial.
Limites
Para uma grande parte da doutrina, para que o exercício da legítima defesa seja considerado
legítimo, não basta aferir se o meio de defesa utilizado é necessário; é preciso, ainda, que haja uma
proporcionalidade entre a agressão e a defesa – isto, porque o meio pode ser necessário por ser, por
exemplo, o único possível na altura, mas não ser proporcional.

Relativamente a isto, Figueiredo Dias dá o exemplo de um paraplégico, a quem furtam uma carteira
com 5€, e para evitar esse furto, este não tem outra opção sem ser dar um tiro no agente. Ou, ainda,
o exemplo do paraplégico que dá um tiro num miúdo que lhe furta as maçãs, como último recurso –
a única forma de parar a conduta do jovem é disparar. Em ambos os casos, apesar de os meios serem
necessários, não existe o requisito da proporcionalidade, pelo que esta parte da doutrina defende que
a figura da legítima defesa não deve, aqui, ser aplicada.

A justificação para exigir esta proporcionalidade varia de autor para autor, dentro dos que
defendem esta proporcionalidade. Para Bárbara Brito, a justificação mais correta será a de Fernanda
Palma. Esta considera que o fundamento da legítima defesa é a proteção da dignidade da pessoa
humana – ou seja, o limite que se deve impor à legítima defesa, à luz da ordem jurídica, resulta da
insuportabilidade da lesão do bem para o lesado, ao ponto de lhe retirar a sua dignidade. Assim, nos
casos apresentados, Fernanda Palma explica que a lesão do bem patrimonial do paraplégico não põe
em causa a dignidade do mesmo, pelo que não é insuportável à dignidade dele – consequentemente,
a legítima defesa não poderia, aqui, ser aplicada.

➔ Não é preciso, aqui, ponderar se o bem jurídico agredido é “maior” do que o bem jurídico lesado
– mas, sim, se o bem jurídico lesado teve consequências negativas extremas na dignidade da
vítima. Para Fernanda Palma, não se poderá matar para salvar um bem patrimonial por exemplo;
mas já poderá ser discutível, se a vítima, para viver, precisar daquele património (ex: uma
máquina que precisa para respirar).

Já para Figueiredo Dias, o princípio informador da legítima defesa será o de que o Direito não pode
ceder nunca perante o ilícito – pelo que a legítima defesa atribui ao agente um autêntico direito de
autoproteção. Consequentemente, como direito subjetivo que é, está limitado pela figura do abuso de
direito (artigo 334º CC), tendo assim limites impostos pela boa-fé, bons costumes, fim social e
económico do Direito, etc. Estes limites resultam, também, no requisito da necessidade de defesa:
assim, para Figueiredo Dias, não se fala de proporcionalidade, mas sim da demonstração da
necessidade da defesa. Para que uma defesa seja necessária, além de o meio utilizado ter de ser
necessário, a própria defesa tem de ser vista como uma reafirmação do direito face ao ilícito no
agredido. Assim, nos casos apresentados, Figueiredo Dias defende que não há esta defesa necessária:
há claramente uma desproporção entre o bem jurídico lesado e ofendido, não existindo, por isso, uma
reafirmação do direito.

Existem outros autores que, por outro lado, não vão buscar esta proporcionalidade entre a
agressão e a defesa (ou demonstração da necessidade de defesa) aos fundamentos da legítima defesa.
Pelo contrário, defendem que este requisito da proporcionalidade resulta do sistema de valorações da
ordem jurídica em geral: segundo este, terá de existir uma proporcionalidade entre o bem jurídico
lesado e o bem jurídico ameaçado – logo, para garantir tal proporcionalidade, impõe-se limites ético-
sociais à legítima defesa.

Conceição Valdágua defende esta posição – dizendo, ainda, que só se exige que o meio seja
necessário ao abrigo do artigo 32º CP e, em casos extremos, deve-se exigir esta tal proporcionalidade
vista à luz dos limites ético-sociais. Costa Andrade, por sua vez, defende que a necessidade de
proporcionalidade não está no artigo 32º, e que exigir a mesma viola o princípio da legalidade – o
que acabará por não fazer sentido, visto que o artigo 33º fala de excesso da legítima defesa.

De qualquer das formas, existem casos em que há uma crassa desproporção entre o bem
jurídico lesado e o bem jurídico protegido.

Um deles será casos relacionados com autoridades policiais, em que são usadas armas de fogo. À luz
do Decreto-Lei nº457/99, aplica-se às forças policiais requisitos diferentes da legítima defesa do que
se aplica aos civis – principalmente quando essa legítima defesa resulta do uso de armas de fogo.
Assim, face a este Decreto-Lei, só é permitido o uso de armas de fogo quando houver perigo iminente
de morte ou ofensa grave à integridade física – artigo 3º, nº2. Ora, este limite pode ser considerado
inconstitucional, visto que o legislador não inclui situações em que esteja em causa a liberdade ou a
autodeterminação sexual, sendo assim demasiado restritivo.

Outro caso será relativo ao regime de armas aplicado aos cidadãos em geral. À luz do artigo 41º, nº1,
alínea b) da Lei nº5/2006, os particulares podem usar armas de fogo, fazendo disparos que se limitem
exclusivamente à advertência para defender o património próprio ou de terceiros – sendo, depois,
essencial que se comprove que o meio era necessário. Já quando estiver em causa o perigo iminente
da morte ou ofensa à integridade física, o legislador diz que o disparo deve ser precedido da
advertência verbal – ora, isto é retirar à legítima defesa a sua razão de ser, ainda para mais sendo que
o legislador exige que em caso algum tal disparo pode visar uma parte mortal do corpo humano.

DIREITO DE NECESSIDADE (artigo 34º CP):


Pressupostos
O direito de necessidade implica a existência de um perigo atual e real, que ameace
interesses juridicamente protegidos do agente ou de terceiros.

Significa, isto, que terá de haver um 1) perigo, no sentido de possibilidade ou probabilidade


de dano, traduzido numa lesão de bem jurídico – nomeadamente, lesão de 2) interesses juridicamente
protegidos do agente ou de terceiro. A diferença entre a legítima defesa e o direito de necessidade
está, então, na causa do perigo: na primeira, a origem deste será uma ação jurídico-penalmente
relevante por parte do agressor; na segunda, a origem poderá ser um ataque de animal, um evento
natural, ou ainda um comportamento humano que não se traduza numa ação jurídico-penalmente
relevante (ex: sonambulismo).

Além disso, este perigo tem de ser 3) atual – ou seja, em termos temporais, este terá de se
encontrar próximo da lesão, no sentido de que a própria comunidade já sente que este vai ser colocado
em determinado bem jurídico. Terá, também, de ser 4) real: se a pessoa pensa que há um perigo para
um bem jurídico seu e, afinal, não há, existe erro sobre os pressupostos de facto sobre uma causa de
ilicitude – pelo que se exclui o dolo (artigo 16º, nº2 CP), podendo o agente ser punido a título de
negligencia (artigo 16º, nº3 CP).

Requisitos
1. O meio tem de ser adequado para afastar o perigo:
O meio não poderá ser só necessário – terá de ser, também, adequado. Ou seja, o meio terá de
ser eficaz e, ainda, o menos gravoso entre os disponíveis, segundo um juízo de prognose póstuma
feito ex ante; mas terá, também, de ser adequado, ou seja, terá de ser um meio de resposta socialmente
aceitável à situação.

Por exemplo, R foi apanhado a roubar dois pedaços de queijo e uma lata de salchicha no valor
de 4€, tendo sido condenado em 1ª instância a 6 meses e a uma multa de 100€. O caso subiu até ao
Supremo Tribunal, que conclui que as condições do arguido e as circunstâncias na qual este atuou foi
com o objetivo de fazer face a uma imediata e imprescindível exigência de se alimentar – agindo,
portanto, em estado de necessidade. Assim, quando o furto é feito por necessidade, exclui-se a
ilicitude, sendo que esta terá de ser uma necessidade imprescindível – ou seja, terá de haver a
demonstração da necessidade do meio.

Já outro exemplo mais polémico será a situação de um idoso, que precisa de um medicamento para
sobreviver ou para sobreviver sem dor – no entanto, depois de ter recorrido à Segurança Social e à
sua justa de freguesia, não o consegue obter. Assim, este decide furtá-lo. Ora, apesar de ser uma
necessidade menos básica do que alimento, é na mesma socialmente aceitável que uma pessoa em
dor e perigo de vida furte um medicamento.

2. A situação de perigo não pode ter sido provocada pelo agente:

Por exemplo, A provoca um incêndio para poder entrar na casa de outrem – foi ele que que
provocou a situação de perigo. No entanto, imagine-se que A se apercebe que está uma pessoa dentro
da casa, e vai salvá-la – ora, apesar de ter sido A a criar o perigo, este pode entrar nessa casa de
outrem, para salvaguardar interesses de terceiros (nomeadamente, a vida do outro). Tal ação não
exclui, assim, a ilicitude do incêndio – mas apenas a ilicitude do dano de entrar em casa de outrem.

No entanto, para a maior parte da doutrina, este requisito só se justificada quando a situação de perigo
tenha sido criada dolosamente pelo próprio: se já for por descuido, não estará em causa este requisito
do direito de necessidade e, portanto, o agente pode atuar ao abrigo do estado de necessidade. Uma
coisa é criar dolosamente um situação de perigo e, depois, ter de atuar ao abrigo do estado de
necessidade (exemplo acima dado); outra coisa é criar dolosamente uma situação, especificamente
para atuar ao abrigo do estado de necessidade.

➔ Aqui existe, tal como na figura da legítima defesa, um comportamento humano. No entanto,
enquanto a legítima defesa se aplica quando tal ação é feita contra o agressor, no direito de
necessidade, a ação praticada não é contra o agressor. Assim, por exemplo, se A, para salvar B de
um incêndio, empurra C e parte-lhe uma parte, aplica-se, na mesma, o estado de necessidade,
visto que não se age contra um “agressor”.

3. Tem de haver sensível superioridade do interesse a salvaguardar, face ao interesse lesado:

O legislador, ao utilizar a palavra “interesse”, pretende esclarecer que não basta apenas uma
mera comparação de bens jurídicos entre o do ofendido e o a salvaguardar – este queria aqui chamar
a atenção para outros fatores que não apenas o bem jurídico, nomeadamente o reflexo subjetivo do
bem na esfera do seu titular.

➔ Por exemplo, A para evitar perder o seu ordenado, parte os óculos de B, que têm exatamente o
mesmo valor que o ordenado de A – só que, ao contrário de A, B é multimilionário. Ora, aqui,
apesar de o valor ser exatamente o mesmo, o reflexo subjetivo do bem na esfera de A faz com
que se possa chegar à conclusão de que há uma sensível superioridade do interesse a salvaguardar
do A, face ao interesse lesado do B.

Com esta expressão, chama-se, também, à atenção para a proximidade/intensidade da lesão, ou seja,
o grau de perigo: por exemplo, uma ambulância, para evitar o perigo de morte da pessoa que lá está
dentro, vai em excesso de velocidade, pondo em perigo a vida dos transeuntes – mas esta é uma lesão
longínqua, que só se concretizará se a ambulância efetivamente bater em alguém.

Portanto, o que o legislador exige é que haja uma sensível superioridade do interesse a
salvaguardar face ao interesse do lesado. A palavra “sensível” apela a uma superioridade atendível
pelos sentidos, mas a nível social e cultural: ou seja, trata-se do sentido geral da comunidade,
relativamente a um determinado interesse em relação ao outro. Por isso, para a maior parte da
doutrina, quando o legislador diz que tem de haver uma sensível superioridade, esta será no sentido
de manifesta, inequívoca superioridade do interesse a salvaguardar face ao interesse lesado.

O que acontece, então, quando ambos os bens jurídicos a ser ponderados são vidas? Ora, neste caso,
existe o princípio da igualdade entre vidas, segundo o qual todas as vidas têm o mesmo valor – assim,
mesmo em situações em que uma vida é sacrificada para saltar mais vidas, este princípio impede que
a figura do estado de necessidade seja aplicada: o legislador exige que o interesse salvaguardado seja
manifestamente superior.

O princípio do respeito da igualdade entre vidas mostra-se, assim, extremamente ambíguo, ao permitir
que se possam deixar morrer 10 pessoas para permitir que 1 viva. No fundo, o princípio da igualdade
entre vidas existe para salvaguardar a vida dos mais fracos – assim, para a maior parte da doutrina,
não é manifesto que 1 vida vale menos que 10.

➔ Existem autores que resolvem estes casos através da figura do estado de necessidade defensivo,
indo buscar elementos à legítima defesa e ao direito de necessidade – nomeadamente, a reação
contra um perigo, e não uma pessoa agressor (ex: no caso de matar o “homem gordo”, este não
agrediu ninguém, logo não se pode falar em legítima defesa). No entanto, não se exige o requisito
de “sensível superioridade do interesse a salvaguardar face ao interesse lesado” nem o da
“razoabilidade da imposição do sacrifico” – caso contrário, estar-se-ia a avaliar o homem que
morre como “menos homem”, retirando-lhe assim a sua dignidade humana.
o Outros autores, no entanto, não concordam com esta causa de exclusão supralegal. No
entanto, também não acham que se deve responsabilizar criminalmente o bombeiro que fez
a decisão de matar 1 pessoa para salvar 10 pessoas, visto que este age ao abrigo do estado de
necessidade desculpante – exclui-se a culpa, pois não é razoável exigir-lhe outra conduta.

4. Razoabilidade da imposição do sacrifício que resulta do exercício do direito de necessidade:

Este requisito surge como “critério corretor” para o requisito falado anteriormente: isto é,
mesmo para aquelas situações em que o interesse salvaguardado é sensivelmente superior ao interesse
lesado, pode acontecer que não seja razoável impor ao lesado o sacrifício do seu interesse.

Por exemplo, imagine-se que A está na sala de espera de um hospital, e B entra nas urgências com
lesões graves provocadas por um acidente. É determinado que este precisa de certo tipo de sangue
para sobreviver, e a única pessoa que tem esse tipo de sangue é A. Ora, ao dar sangue, A vai salvar a
vida de B – poderá, então, o médico retirar sangue compulsivamente de A para salvar B, mesmo que
A não consinta? Neste caso, Bárbara Brito concorda que, para determinar o âmbito de aplicação desta
restrição, é necessário ter em conta o princípio da dignidade da pessoa humana – ora, quando é que o
sacrifício dos direitos individuais põe em causa a dignidade da pessoa humana?

A, aqui, é de facto utilizado quase como instrumento, não sido vista como uma pessoa completa, mas
apenas como algo que tem o que é necessário para que outra pessoa, B, viva. No entanto, por outro
lado, não se fala aqui de uma doação de órgãos nem nada de mais: apenas se fala em retirar sangue,
que envolve apenas uma pica e que não implica a lesão da vida, em si, de A – pelo que será discutível
se poderá ser dado a este o direito de defesa face ao médico.

Consequentemente, se se achar que a retirada de sangue não é razoável, não se enquadra a ação do
médico no estado de necessidade. Contudo, mesmo que não se exclua a ilicitude deste
comportamento, poderá depois excluir-se a culpa, na medida em que o médico age ao abrigo do estado
de necessidade desculpante.

5. Elemento subjetivo:

O agente tem de ter conhecimento de que o perigo ameaça interesses juridicamente protegidos
de um agente ou de terceiro – por exemplo, o médico terá de saber que há uma pessoa em risco de
perigo, para que o seu comportamento seja enquadrado no estado de necessidade.

CONFLITO DE DEVERES (artigo 36º):

Figueiredo Dias entende que o princípio justificador quer do direito de necessidade, quer do
conflito de deveres, tem natureza dual. Isto é, por um lado, justifica-se devido a uma razão de utilidade
social, traduzida na proteção de interesse socialmente mais importante entre aqueles que se encontram
em conflito. Por outro lado, justifica-se, também, devido à necessidade de impor um mínimo de
solidariedade entre membros da sociedade – sendo que, no entanto, estas exigências não podem ser
levadas longe demais, ao ponto de tornar cada cidadão em “polícia” da salvaguarda dos interesses
dos outros e/ou da comunidade. Em última análise, o princípio por detrás destes acaba por ser o
princípio da ponderação de interesses, que tem de ter em conta todos estes pontos referidos por
Figueiredo Dias.

Relativamente aos seus pressupostos, o conflito de deveres implica a existência de um


conflito no cumprimento de deveres jurídicos ou de ordens legítimas, de natureza idêntica. No fundo,
terão de existir dois ou mais deveres ou ordens que concorrem numa situação concreta, de tal forma
que nenhum deles pode ser cumprido sem violação do outro.

Assim, a diferença entre o direito de necessidade e o conflito de deveres será que, no conflito de
deveres, o agente não é livre de intervir no conflito – ou seja, a sua ação passará sempre por cumprir
pelo menos um dos deveres em causa.

Relativamente aos seus requisitos, exige-se, por um lado, que o agente cumpra um dever de
valor igual ou superior àquele que se não cumpre – por exemplo, na pandemia, havia situações em
que duas pessoas precisavam de uma mesma máquina para viver. Ora, a conduta do médico, que
escolhe uma delas, não pode ser considerada ilícita, porque claramente há aqui dois deveres –
nomeadamente, o de salvaguardar a vida de cada uma das pessoas –, sendo que é cumprido um dever
de valor igual ao que foi sacrificado. Além disso, o agente terá, também, de saber que existe tal
situação – elemento subjetivo.
No entanto, se a situação fosse um médico que desliga uma pessoa já ligada a uma máquina, para
ligar outra que precisa dessa mesma máquina, já não estará em causa um conflito de deveres porque,
em relação à pessoa que está ligada à máquina, o dever já foi (ou, pelo menos, está a ser) cumprido.
Uma parte da doutrina defende, ainda, que a conduta de desligar a máquina de uma pessoa será matar
por ação, algo que é mais desvaloroso do que matar por omissão (artigo 10, nº3 CP) – como acontece
na situação de não ligar uma pessoa à máquina.

Assim, se se matar por ação, estar-se-á a sacrificar um interesse superior àquele que é protegido; mas
se o médico não ligasse, já não poderia ser punido por homicídio por omissão, visto que atua ao abrigo
do conflito de deveres: ao não ligar, está a cumprir um dever de valor superior a desligar.

➔ Isto tem muita importância na prática, porque se o médico não desliga, a pessoa que precisava de
ser ligada à máquina não pode atuar em legítima defesa, porque a conduta do médico é
considerada lícita, já que atua em conflito de deveres. Já ao médico que desliga a máquina, não
se aplica o conflito de deveres – mas aplica-se o estado de necessidade desculpante, o que
significa, na mesma, que é uma ação ilícita –, a pessoa que estava primeiramente ligada já pode
atuar em legítima defesa.

CONSENTIMENTO DO OFENDIDO (artigo 38º CP):

Aqui, o princípio informador será o princípio da ponderação de interesses em conflito. Não


há consenso, no entanto, na doutrina se o consentimento deve ser encarado como causa de exclusão
da ilicitude ou da tipicidade. A figura do consentimento do ofendido pode, assim, ser considerada um
1) elemento positivo do tipo; um 2) elemento negativo do tipo; ou uma 3) causa de justificação.

Este surge como elemento positivo do tipo quando o tipo de crime não está preenchido se não houver
consentimento – por exemplo, o homicídio a pedido (artigo 134º CP) só está preenchido, enquanto
conduta típica, se houver um pedido por parte da vítima.

Pelo contrário, este irá surgir como elemento negativo do tipo quando a sua existência leva a que não
se possa dizer que está preenchido o tipo – isto é, o consentimento exclui a tipicidade. Aqui, não há
consenso doutrinário, no entanto, sobre se o consentimento deve ser encarado como causa de exclusão
da ilicitude ou da tipicidade: tudo depende da maneira de encarar o que é que o DP tutela.

➔ De acordo com Silva Dias e Conceição Valdágua, o Direito Penal não protege tanto bens jurídicos
em questão, mas sim a relação que existe entre estes e o seu titular: ou seja, o Direito Penal protege
a livre disposição dos bens por parte do seu titular. Consequentemente, o consentimento será
sempre um elemento negativo do tipo e uma causa de exclusão da tipicidade – não há sequer
preenchimento do tipo, porque este pressupõe a livre disponibilidade.
o Ou seja, o consentimento só conta como elemento negativo quando o bem jurídico em causa
só tem valor quando associado à sua livre disposição pelo titular (ex: no caso da
autodeterminação sexual, em que se houver consentimento, não há violação).

➔ Já para Figueiredo Dias, é necessário distinguir entre bens jurídicos que só têm valor quando
estão associados à sua livre disposição; e bens jurídicos que têm valor objetivamente,
independentemente da posição do seu titular face ao mesmo. Assim, relativamente aos bens
jurídicos que valem por si só (ex: propriedade e integridade física), o consentimento só pode surgir
como causa de exclusão da ilicitude; já quando aos bens jurídicos associados à livre disposição,
o consentimento já surgirá como causa de exclusão de ilicitude (ex: autodeterminação sexual).
Pressupostos
1. A existência de bens jurídicos livremente disponíveis:
A vida será um dos bens jurídicos que é indisponível: aliás, se fosse disponível, e se pudesse
pedir a alguém para nos matar, não haveria o crime de homicídio a pedido – consequentemente, da
interpretação do ordenamento jurídico, pode-se concluir pela sua indisponibilidade. Considera-se,
também, que quaisquer outros bens de personalidade elementares são indisponíveis (ex: mesmo que
se consinta que alguém nos torne escravo, esse consentimento não é considerado válido). Também os
bens jurídicos comunitários supralegais não podem ser considerados disponíveis.
Particularmente difíceis são os casos que envolvem a integridade física, dado que este é o bem
jurídico que traz as maiores dúvidas: até onde é que se pode consentir que haja lesão deste bem
jurídico – ou seja, até onde podemos considerar a integridade física como um bem jurídico
disponível? O artigo 149º CP pode, eventualmente, ajudar a decidir.

2. Quem consente possuir discernimento necessário:


É necessário que a pessoa que está a dar o seu consentimento possua discernimento suficiente
para compreender o sentido e alcance do seu consentimento. Assim, se se estiver perante um
inimputável por anomalia psíquica, provavelmente não haverá esse discernimento necessário; assim
como se se estiver perante um menor de 16 anos. No entanto, o facto de a pessoa ter +16 anos não
significa automaticamente que este discernimento exista – será necessário comprovar que, mesmo
com mais de 16 anos, esse discernimento existe.

3. A não ofensa aos bens costumes pelo facto consentido (e não pelo próprio consentimento):
Além disso, o facto consentido (e não o próprio consentimento) não pode ofender os bons
costumes – remetendo-se, assim, para o artigo 149º CP. Neste âmbito, afirma-se, por exemplo, que
alguém não poderá consentir a facto que lhe cause uma lesão irreversível da integridade física, dado
que tal contrariaria os bons costumes. Agora, se se permitir que alguém tire um rim para salvar
outrem, tal facto consentido já não contraria a ordem pública.
Portanto, será necessário olhar para o caso concreto e ver os fins, a motivação, os meios empregues,
a amplitude da ofensa e, casuisticamente, decidir se há ou não uma ofensa dos bons costumes. A
avaliação dos bons costumes é feita à luz de valores supralegais, de forma universal e não tendo em
conta os costumes de um certo país ou etnia – daí a ressalva do artigo 149º, nº3 CP.

Requisitos
Por um lado, o consentimento tem de ser expresso, por qualquer meio, que traduza uma
vontade séria, livre e esclarecida. Logo, por exemplo, se alguém leva outra ao engano, de forma a
fazer com que esta consinta; ou simplesmente a coagir a fazê-lo, tal consentimento já não traduzirá
uma vontade esclarecida. A mesma lógica se aplica a alguém que consente enquanto está num estado
emocional conturbado conhecido.
Existe, no artigo 39º CP, a figura do consentimento presumido, que é equiparado ao consentimento:
o consentimento será presumido quando a situação em que o agente atua permite supor que o lesado
teria, eficazmente, consentido ao facto, se tivesse essa oportunidade – por exemplo, o vizinho que
entra na casa do vizinho porque há uma torneira a inundar a casa: presume-se que este prefira que ele
entre, a ficar com a casa toda inundada.
Esta figura está muito presente no contexto médico, especialmente de situações cirúrgicas de
urgência, em que não há tempo para pedir o consentimento à vítima. Se não houver testamento vital,
o médico presume o consentimento na sua intervenção, porque, considerando a vontade hipotética da
vítima, não tendo esta feito testamento vital contrário quando tinha essa oportunidade, presume-se
que esta daria consentimento para ele fazer o necessário para salvar a sua vida.
➔ Outro caso será se o médico souber que a vítima, que precisa de uma transfusão de sangue, é
testemunha de Jeová – aqui, o médico não poderá presumir que há o consentimento da mesma
(no entanto, se mesmo assim agir, poder-se-ia invocar, em última instância, o estado de
necessidade desculpante).
Relativamente ao elemento subjetivo, o agente tem de conhecer o consentimento e que ele é
sério, livre e esclarecido.

Casos práticos:
1. A e B decidiram assaltar o apartamento de C. Para o efeito, pensaram que a melhor forma seria
oferecerem a D, vizinho de C, 1/3 do que de lá conseguissem subtrair, se D convidasse C para jantar e o
mantivesse afastado de casa durante 2 horas (o tempo necessário para o assalto). D acedeu. Na noite
combinada, durante as 21h, C saiu de casa para jantar com D, e A e B introduziram-se no apartamento
daquele. O assalto, porém, durou mais tempo do que o combinado, pelo que no preciso momento que
saíram do apartamento de C, A e B deram de caras com o dono da casa e desataram a fugir. C percebeu
imediatamente o que tinha acontecido e correu atrás deles.
Poucos metros depois, disparou na direção dos assaltantes, acabando, por falta de pontaria, por acertar
em E que se preparava, quando foi atingido, para matar F com uma facada. Ainda premiu o gatilho uma
segunda vez, mas percebeu depois que a pistola só tinha uma bala. E foi transportado ao hospital onde
acabou por morrer – mas apenas porque G, a única cirurgiã de serviço, se recusou a realizar a operação
que lhe podia salvar a vida, uma vez que reconheceu E como o fornecedor de droga da sua filha. G
acreditava verdadeiramente que a lei não a podia obrigar a salvar a vida do responsável pela morte da
sua filha por overdose poucos meses antes.

Relativamente ao crime de furto, A e B são coautores do furto qualificado (artigo 204º, nº1,
alínea f) CP), dado que entre os mesmos existe não só uma decisão conjunta de praticar este crime;
mas também uma contribuição conjunta na execução do mesmo, na medida em que ambos tomaram
parte direta. Para além disso, estes também serão instigadores de D, na medida em que fazem nascer
na cabeça deste a decisão de praticar o facto – existindo, ainda, uma decisão feita por D, praticando
atos de execução do crime de forma dolosa. Sendo tanto coautores como instigadores, a coautoria
consume a instigação porque é uma forma mais perfeita de punição – pelo que existe um concurso
aparente por subsidiariedade.
Já quanto a D, este foi determinado por A e B a participar, pelo que é instigado. No entanto, se este
não atraísse C para a casa dele, o plano falharia – ou seja, a interferência que tem na execução é
considerada essencial. Especificamente, D tem o domínio negativo do facto, na medida em que ele
tem o poder de fazer fracassar o plano com a não prestação do seu contributo; além de que esse
contributo se dá durante a execução do crime em questão – logo, este toma parte direta no crime de
furto qualificado, pelo que é coautor do mesmo.
Relativamente à ação de C disparar, existe, aqui, uma aberratio ictus, dado que C acerta em E
quando, na verdade, queria acertar em A ou B – assim, existem dois objetos diferentes que, no entanto,
têm a mesma identidade típica. Neste âmbito, será necessário decidir ou pela via da teoria da
equivalência, ou pela via da teoria da concretização. De acordo com a maior parte da doutrina, que
defende a teoria da concretização, C teria de ser punido em concurso real, pela tentativa do crime de
homicídio de A e B; e o homicídio negligente de E.
➔ Poderá a tentativa de homicídio de A e B ser integrada na figura da legítima defesa? A legítima
defesa implica que existe uma agressão atual – no entanto, A e B já estavam a fugir do local com
as coisas roubadas. Discute-se, na doutrina, se a consumação do furto se dá apenas com a
subtração – nomeadamente, quando A e B saem da casa – ou se é necessário, além disso, que haja
posse pacífica. Adotando-se a posição de Figueiredo Dias, o furto só seria consumado com a
posse pacífica da coisa, pelo que a atuação seria atual. Seria, também, discutível se o meio
utilizado foi o necessário, podendo-se, no entanto, argumentar que sim devido a não existir tempo
para chamar as forças policiais – logo, o meio foi o necessário, na medida em que era o único
disponível. Contudo, a análise iria sempre esbarrar no requisito da proporcionalidade, dado que
existe uma crassa desproporção entre o bem jurídico lesado (propriedade) e o bem jurídico
ofendido (vida): dizer o contrário seria pôr em causa traços marcantes da dignidade da pessoa
humana, no entendimento de Fernanda Palma. Assim, havendo este excesso, não se exclui a
ilicitude – podendo-se, no entanto, excluir a culpa, se se provar que C agiu sob um estado
emocional de perturbação, susto ou medo; caso contrário, a pena poderá, apenas, ser atenuada.
o No entanto, se C tivesse dolo apenas relativo ao bem da integridade física de A e B, então já
não se punha tanto em causa a proporcionalidade – era mais difícil dizer que havia excesso.

➔ Relativamente ao homicídio negligente, E acaba, depois, por morrer apenas pela recusa de G a
operá-lo – ou seja, existe uma interrupção do nexo causal por intervenção de terceiro (G).
Consequentemente, C não pode ser punido pelo homicídio negligente de E, mas apenas por
ofensas à integridade física negligente. Por outro lado, esta conduta poderia ser integrada na figura
da legítima defesa alheia, dado que, com o seu tiro, C impede E de matar F: assim, não importa
que o elemento subjetivo não esteja preenchido, visto que nos crimes negligentes, tal elemento
subjetivo não é exigido quando o desvalor da ação já é diminuto.
Concluindo, relativamente ao primeiro disparo, C será punido por tentativa de homicídio de A e B.
Quanto ao segundo disparo que este tenta fazer, tal ação afigura-se como uma tentativa impossível
do crime de homicídio: C tem dolo e faz o ato de execução de premir o gatilho, mas seria impossível
chegar ao resultado pretendido por causa dos meios (nomeadamente, o facto de este só ter uma bala).
Relativamente a G, esta comete o crime de homicídio por omissão – existindo, aqui, uma
omissão impura, visto que está relacionada causalmente com o resultado. Assim, face ao artigo 10º,
nº2 CP, tal crime só pode ser punível se o agente tiver uma posição de garante.
Ora, de acordo com o critério formal, aqui o dever de agir de G teria origem na lei ou na ingerência
– no entanto, tal critério é criticado, dado deixar de fora situações em que há este dever de garantia.
Assim, de acordo com o critério material das fontes, o dever de garante advém, neste caso, do facto
de haver um dever específico de assistir aos titulares de bens jurídicos, independentemente da fonte
de perigo. Este, por sua vez, pode advir 1) de uma assunção fáctica de deveres de custódia; ou 2) da
solidariedade natural apoiada no vínculo jurídico. De qualquer das formas, existiria uma posição de
garante de G, pelo que esta poderia ser punida nos termos acima referidos.
No entanto, esta encontra-se em erro sobre a ilicitude, na medida em que acreditava que a lei não a
podia obrigar a salvar a vida do responsável pela morte da sua filha. Este erro é um erro moral, que
choca com as valorações da nossa ordem jurídica. Assim, de acordo com o artigo 17º CP, a culpa não
pode ser excluída, na medida em que tal erro é censurável, não sendo evitável nem pautado por valores
que a ordem jurídica português também tutela. Consequentemente, G será punida pelo crime de
homicídio por omissão, nos termos descritos acima.

CULPA
A culpa traduz-se num juízo de censura dirigido ao agente, pela prática do facto ilícito. Assim,
enquanto a ilicitude é um juízo de desvalor que recai sobre o comportamento em si, a culpa é um
juízo de censura feito à pessoa que, em questão, praticou o facto típico ilícito.

Para grande parte da doutrina, incluindo Bárbara Brito, a culpa traduz-se num juízo de censura
que se faz ao agente pelo facto de, podendo, não se ter motivado pelo direito – portanto, o que se
analisa na culpa é a capacidade de motivação pelo direito. Não se confunde esta com a capacidade de
adotar uma ação alternativa, que interessa apenas para o conceito de ação. No entanto, ao mesmo
tempo, a culpa, sendo um juízo de censura, envolve uma avaliação moral, o que significa que, por
vezes, chega-se à conclusão de que, apesar de a pessoa ter capacidade de se motivar pelo direito, esta
era diminuída – e, por isso, não era exigível, não sendo razoável que o Direito exige essa motivação.

➔ Fernanda Palma também vai no mesmo sentido quanto ao conceito material de culpa – relevância
da capacidade de motivação pela norma de Direito. No entanto, esta fala, por vezes, do “poder”
agir de outro modo – algo que, para Bárbara Brito, poderá ser contra procedente, dado que se
pode confundir com a avaliação feita relativamente à ação. Como já foi explicado, uma coisa é
ter a capacidade de ação alternativa; outra é ter a capacidade de se motivar pelo Direito – sendo
que esta última já pressupõe a capacidade de ação alternativa.

Já segundo Figueiredo Dias, apesar da culpa também ser um juízo de censura que se faz ao agente
pela prática do facto, tal o é devido a aquele comportamento ser expressão de uma atitude interna
juridicamente desaprovada – e, assim, pelo qual o agente tem de responder, perante as exigências do
dever-ser sociocomunitário. Para este, a culpa é o ter de responder pelas qualidades pessoais,
juridicamente censuráveis que estão expressas no ilícito típico que a pessoa praticou – ou seja,
responder pela atitude manifestada pelo facto, quando essas qualidades são juridicamente
desaprovadas. Por outras palavras, na culpa vê-se um reflexo do agente como ele é, nomeadamente
na forma como ele atua – podendo-se excluir a culpa se se considerar que esta não revela nenhuma
atitude negativa face ao direito (ex: exclui-se a culpa de um inimputável porque, apesar da sua ação
ser contra o Direito, não revela algo negativo face ao direito, porque não tem capacidade de se motivar
quanto ao mesmo).

Para grande parte da doutrina, o critério decisivo será o real psicológico (ou seja, o concreto poder
de se determinar pela norma); enquanto para Figueiredo Dias, o critério é sempre normativo, de
carácter pessoal-objetivo.

Com isto, Figueiredo Dias considera que, na culpa, o homem decide-se sobre si mesmo,
criando o seu próprio ser ou afirmando a sua própria essência. Além disso, acrescenta que a culpa não
deixa de supor a liberdade do agente – não no plano das propriedades de ação, mas sim no plano de
liberdade como característica do ser humano como um todo. Bárbara Brito critica esta posição,
defendendo que não se deve fugir de tentar saber se há uma liberdade de ação – aliás, para esta,
Figueiredo Dias acaba por negar o livre arbítrio, pensando que não é possível prová-lo.

Esta visão é diferente do conceito pessoal de Roxin, na medida em que este último procura, apenas,
saber se há uma ação dominada pela vontade e relevante para o Direito. Ora, uma das críticas feitas
a Figueiredo Dias é precisamente que este, ao dizer que a culpa é uma exteriorização da
personalidade, está a fazer essa ligação sem pensar na personalidade enquanto estando ligada ao
Direito – pelo contrário, está apenas preocupado com a possibilidade de ação alternativa. Assim,
acaba por se fazer a mesma crítica feita anteriormente a Fernanda Palama: na avaliação da culpa,
importa a personalidade ligada pela possibilidade de se motivar pelo Direito, e não pela possibilidade
de ação alternativa.

Roxin criou, ainda, uma categoria nova à qual chama responsabilidade, que adiciona à culpa
tradicional (capacidade do agente de se motivar pelo direito) a ideia de necessidade da pena: ou seja,
para saber se uma pessoa é responsável, averigua-se se a pena é necessária quanto às suas finalidades.

Contudo, este elemento “responsabilidade” vem tentar delimitar algumas figuras que atuam com
causas de exclusão da culpa, mas em que está, também, presente a necessidade da pena. Por exemplo,
quando o excesso da ação é devido a um estado emocional como o medo, susto ou perturbação, tal
excesso não será censurável: a ordem jurídica, como um todo, considera que estes são importantes de
acautelar, na medida em que não são negativos. Consequentemente, nesses casos, a pena será
dispensável. No entanto, se o excesso for feito por vingança, tal emoção já não é tida em consideração.

No entanto, o grande problema de Roxin é que este defende um conceito social de culpa: ou seja, a
culpa do agente é a culpa que os outros pensam que este tem, de forma a assegurar as necessidades
que a sociedade tem, através da pena a aplicar àquele agente em concreto. Ora, sendo o conceito de
culpa essencial para a dignidade da pessoa humana (e vice-versa), o conceito social de culpa acaba
por ser uma contradição a essa ideia defendida.

A culpa, tal como a ilicitude, analisa-se pela técnica negativa da exclusão: isto é, para saber
se há culpa no caso concreto, terá de se averiguar alguma causa de exclusão – verificando-se, exclui-
se a culpa. Teresa Beleza e Conceição Valdágua, no entanto, defendem a divisão entre causas de
exclusão da culpa em sentido amplo e as em sentido estrito.

Há outra parte da doutrina que defende que se deve analisar a culpa começando por verificar se estão
presentes os elementos sem os quais não se pode afirmar que o agente tenha atuado sem culpa –
nomeadamente, a imputabilidade e a consciência da ilicitude. Só depois é que se analisará se se
verificou alguma causa de exclusão em sentido estrito. No entanto, em última análise, ambas as
formas de analisar a culpa vão dar ao mesmo.

Causas de Exclusão da Culpa em Sentido Amplo


Inimputabilidade:
O agente pode ser inimputável em razão de idade, visto que a pessoa só pode ser considerada
responsável criminalmente a partir dos 16 anos (artigos 19º CP). No entanto, denota-se que existe um
regime especial no Decreto-Lei nº401/82, para jovens entre os 16 e 21 anos que tenham praticado um
facto classificado como crime. Este justifica-se pelo facto de ser a faixa etária de transição para a vida
adulta, havendo uma vulnerabilidade psicológica e social – pelo que se deve apostar em medidas que
promovam a socialização, sem os riscos da estigmatização e marginalização relacionados com as
penas de prisão (ex: caso do rapaz de 16 anos que esfaqueou outro rapaz de 14 anos na Pinhal de
Frades, e foi simplesmente enviado para outra escola). Já quando um jovem entre os 12 e os 16 pratica
um facto qualificado como crime, está sujeito à Lei Tutelar Educativa (Lei nº166/99), e também a Lei
de Proteção das Crianças e Jovens em Crime (Lei nº147/99).
O agente também pode ser inimputável em razão de anomalia psíquica (artigo 20º CP). Para
tal, este tem de sofrer, efetivamente, de uma anomalia psíquica – sendo necessário que exista prova
pericial a dizer o mesmo – no sentido de todo e qualquer transtorno ocorrido ao nível psíquico,
adquirido ou congénito. Para além disso, é necessário demonstrar que, por força da anomalia psíquica
que o agente sofre, no momento da prática do facto, ele não tinha ou capacidade de valorar o facto
e/ou não tinha capacidade de se motivar pelo Direito. Logo, o agente não será inimputável por
anomalia psíquica só porque sofre de uma anomalia psíquica; no entanto, não se verificando este
último requisito, claro está que haverá não uma exclusão, mas uma diminuição da culpa, e
consequente atenuação da culpa.

Nos termos do artigo 20, nº1, as anomalias psíquicas que podem resultar na pessoa ser declarada
inimputável são:

➔ As psicoses, caracterizadas por um desvio do comportamento social com fundamento orgânico,


corporal. As psicoses podem ser endógenas – esquizofrenia e outras perturbações efetivas graves
– ou exógenas – provocadas por intoxicações (bebidas ou medicamentos).
➔ As psicopatias (como BPD) cabem nas perturbações de personalidade, ou desvios de
personalidade (do comportamento social), sem fundamento orgânico corporal.
➔ Casos de oligofrenia, isto é, fraqueza intelectual, congénita ou não, como é o caso da idiotia –
quando o indivíduo não atinge o desenvolvimento mental de uma criança de 6 anos – e da
imbelecidade – quando o indivíduo não atinge o desenvolvimento próprio do início da puberdade.
Existe, ainda, a figura de inimputabilidade diminuída (artigo 20º, nº2 CP), usada em casos em
que a pessoa, apesar de sofrer de anomalia psíquica, ainda tem capacidade de avaliação e de se
determinar pelo Direito – sendo esta, no entanto, manifesta, clara e evidentemente diminuída. Já os
casos em que não é manifesta nem clara a diminuição da capacidade da pessoa de perceber e de se
motivar pelo Direito são enquadrados nos crimes privilegiados.

Denota-se, por fim, que a inimputabilidade não é excluída quando a anomalia psíquica tiver
sido provocada pelo agente, com intenção de praticar o facto sob a sua influência. Isto é uma ação
livre na causa, sendo que o momento que interessa a nível penal é o momento que ele decide, por
exemplo, começar a beber para ficar num estado tal que, no momento da prática do facto, ou não tem
capacidade para valorar ou para se motivar. Para a maior parte da doutrina, o agente tem de ter atuado
com dolo direto ou necessário em relação ao facto que pretende praticar – “com intenção” (artigo
20º, nº4 CP). Já se se colocar em tal estado sem qualquer intenção, aplica-se o artigo 295º CP.

Erro sobre a ilicitude não censurável (artigo 17º, nº1 CP):


Este erro, como diz Figueiredo Dias, é um erro moral, ao contrário dos erros previstos no
artigo 16º CP, que são erros intelectuais. Este é, então, um erro moral porque o agente representa
erroneamente a ordem jurídica, estando em erro acerca das suas valorações fundamentais.

Dentro do erro sobre a ilicitude (que não pode ser doloso), distingue-se dois tipos de erro: o
1) erro direto sobre a ilicitude; e o 2) erro indireto sobre a ilicitude.

No erro direto sobre a ilicitude, o agente está em erro sobre proibições cujo conhecimento é
dispensável à tomada de consciência da ilicitude pelo facto. Ou seja, ele está em erro sobre proibições
que transportam consigo uma carga valorativa, uma relevância ético-social. Este distingue-se do erro
sobre normas que recaem sobre comportamentos axiologicamente neutros (artigo 16º, nº1, última
parte CP), dado que esse erro se relaciona com proibições que a pessoa tem mesmo de conhecer para
se aperceber que está perante um facto ilícito – ou seja, nesses casos, o conhecimento é indispensável
para que a pessoa se aperceba da ilicitude do seu facto. Pelo contrário, no erro direto sobre a ilicitude,
o erro já será sobre as valorações que o ordenamento jurídico faz relativamente a certa conduta.

➔ Segundo Figueiredo Dias, cabem aqui os erros de proibições que fazem parte do Direito Penal
secundário, relevantemente a pessoas que não têm contacto ocasionalmente com esse ramo de
direito. Outro erro que é abrangido será aquele sobre norma cujo bem jurídico protegido ainda
não tenha sido acolhido/aceite pela comunidade (ex: crime de tráfico de influências).

Já no erro indireto sobre a ilicitude, a pessoa pensa que existe uma causa de justificação na ordem
jurídica, ou está em erro sobre os limites de uma causa de justificação na ordem jurídica. Dá-se, aqui,
o exemplo da dinamarquesa, que fez um aborto em Portugal sem saber que este era criminalizado: se
esta acha que existe uma norma jurídica que não o proíbe, estará em erro direto; se, pelo contrário,
acha que há uma norma jurídica que o permite, estará em erro indireto.

Por contraposição ao erro intelectual, o erro sobre a ilicitude só exclui a culpa se não for
censurável. Para a maioria da doutrina, tal censurabilidade é aferida pelo critério da evitabilidade:
coloca-se a pessoa média, que cumpre em rigor o direito, na posição do agente, com as
particularidades do mesmo, e pergunta-se-lhe se podia ter evitado o erro. Se sim, é censurável; se não,
não é censurável. Aqui, os menores conhecimentos do agente são tidos em conta – mas estes também
não poderão ser censuráveis. Ou seja, terá de se determinar se o agente tinha o dever de saber que tal
conduta era proibida; ou, pelo menos, se tinha necessariamente de ter uma dúvida quanto à ilicitude
do seu comportamento – ou seja, avaliar-se-á se o agente fez tudo ao seu alcance para perceber se tal
conduta é ou não ilícita (ex: caso da dinamarquesa, se o médico lhe disse que o aborto não é punível).

➔ Concluindo, pergunta-se se a pessoa cumpridora de direito, com as características do agente,


poderia ter evitado aquele erro – incluindo-se, aqui, a subpergunta de se tal pessoa fez tudo o que
estava ao seu alcance para evitar o erro.

Já Figueiredo Dias adota o critério da retitude da consciência errónea, segundo o qual se averigua se
o agente se pautou por motivos que são permitidos pela ordem jurídica, esquecendo-se de outros. Isto
porque, para o professor, o que está na base da falta de consciência da ilicitude, caso se tenha pautado
por valores que a ordem jurídica tutela, não é uma atitude interna, desvaliosa e, nesse sentido,
censurável por parte do agente. Consequentemente, para este, a culpa resulta de haver uma atitude
interna, desvaliosa por parte do agente – elemento emocional do dolo. Assim, no exemplo do holandês
que mata um amigo que lhe pediu, preenchendo o homicídio por pedido, se este acedeu ao pedido do
amigo por solidariedade e compaixão, será mais indicado punir o mesmo pelo homicídio privilegiado.

➔ Não confundir o erro sobre a ilicitude com o erro do artigo 16º, nº2 CP – sendo que este último
tem um elemento intelectual, dado que há uma discrepância entre o que o agente representa, e o
que efetivamente se passa na realidade. Nesse caso, exclui-se o dolo (e não a culpa), só se podendo
punir por negligência se tal erro fosse evitável, e se existir essa hipótese (nº3).
o Denota-se que o artigo 16º, nº2 CP também não avalia a culpa do agente em concreto: o facto
de este estar em erro conta, apenas para se excluir (ou não) o dolo; depois, terá de se ver se,
tendo em conta o erro em que este estava, seria exigível que tivesse agido de forma diferente.
Causas de Exclusão da Culpa em Sentido Estrito (ou Causas de Desculpa)
A ideia por detrás de todas elas é a ideia de inexigibilidade: ou seja, em todas elas, não seria
razoável exigir do agente outro comportamento. Esta ideia será, segundo Conceição Valdágua, uma
causa de desculpa geral, que se aplica a todos os crimes negligentes e, também, aos crimes omissivos.
Além destas, existem outras causas de exclusão da culpa “típicas”, em sentido estrito, que resultam
da ordem jurídica – nomeadamente, da parte especial do CP.

Estado de necessidade desculpante (artigo 35º CP):


É necessário, primeiro, que exista um 1) perigo atual – ou seja, uma possibilidade ou
probabilidade de dano. Além disso, esse perigo terá de se 2) referir a um conjunto de bens jurídicos
elementares do agente ou de terceiro, enumerado no artigo 35º CP, nomeadamente: a vida; a
integridade física; a honra; ou a liberdade. Se estiver em causa o bem jurídico património, apenas se
atenua a culpa, mas não se exclui a mesma (nº2).

Além disso, 3) não poderá ser razoável exigir do agente, face às circunstâncias do caso, outro
comportamento – apesar de ele poder. Aqui, faz-se um juízo ex ante: o que interessa é o momento da
prática do facto, pelo que se coloca a pessoa média na posição do agente, enriquecida com os seus
especiais conhecimentos, e pergunta-se-lhe se era razoável a adoção de outro comportamento.

Por fim, será necessário que 4) o agente, com o seu facto, tenha seguido a finalidade de
salvação do bem jurídico ameaçado – não é, assim, preciso que o agente atue com um motivo nobre;
mas é exigido que este aja com o objetivo de preservar o bem jurídico.

Por exemplo, na situação da tábua de Carnéades, não se irá aplicar o direito de necessidade, dado não
existir sensível superioridade do bem salvaguardado, em função do bem lesado. Assim, este é
enquadrado no estado de necessidade desculpante, dado que a ação tem o único objetivo de preservar
outro bem jurídico, nomeadamente a vida do próprio – não sendo razoável exigir ao agente outra
conduta. Já quanto ao exemplo do médico que tem de escolher entre desligar ou ligar a máquina, o
conflito de deveres implica que exista uma mesma valoração dos bens jurídico, sendo que desligar a
máquina afigura-se como mais desvaloroso (homicídio por ação) do que o não ligar (homicídio por
omissão). Ora, se não se excluir a ilicitude com o conflito de deveres, acabar-se-á por excluir a culpa,
com o estado de necessidade desculpante.

Excesso de defesa devido a medo, susto ou perturbação não censuráveis (artigo 33º, nº2 CP):
Esta causa de exclusão da culpa só funciona nas situações em que 1) o agente se encontra num
estado emocional asténico – isto é, que resulta de uma tensão emocional inconsciente –, não se
aplicando aos estados emocionais esténicos – que não resultam da tensão emocional inconsciente,
mas comportam uma energia em excesso (ex: cólera, ódio ou vingança). Além disso, será necessário
que tal estado emocional asténico 2) não seja censurável: ou seja, não pode ser razoável exigir, de
uma pessoa média normalmente fiel ao direito, colocada na posição do agente, outro estado emocional
que não aquele.

Por fim, estes estados terão de 3) provocar excesso de defesa. Fala-se, aqui, de um excesso
intensivo: ou seja, que leva à utilização de meios superiores aos necessários para a defesa, e/ou
quando não existe proporcionalidade entre a defesa e a agressão.
Já o excesso extensivo refere-se a alguém que se defende de uma agressão que deixou de ser atual
por medo, susto ou perturbação. Nestes casos, ou se aplica a ação direta; ou o excesso de defesa, por
analogia – não se aplicando, diretamente, a figura do excesso de defesa ao excesso intensivo, nos
termos do artigo 33º CP. Quando a agressão ainda não é atual, mas poderá ser, aplica-se a legítima
defesa preventiva (supralegal); ou excesso de defesa, se se verificar os pressupostos do artigo 33º CP.

NOTA: Quando há excesso de defesa e, ao mesmo tempo, o agente está em erro, não se pode aplicar
o artigo 16º, nº2 CP – isto, porque se há excesso, já não se estará perante um estado de coisas que, a
existir, excluiria a culpa do agente. Assim, nestes casos, só se poderá eventualmente excluir a culpa
do agente, mas devido a medo, susto, ou perturbação não censuráveis.

Obediência indevida desculpante (artigo 37º CP):


Esta causa de exclusão ocorre quando alguém cumpre uma ordem, sem saber que ela conduz
à prática de um crime, no sentido de que tal não era evidente (ex: funcionária falsifica documento
porque não sabe que a ordem era falsificadora de documentos). Assim, o legislador dá um regime
especial para quem está em erro sobre a ilicitude e, ao mesmo tempo, a atuar sobre uma ordem.

PUNIBILIDADE
Por norma, tendo um facto típico, ilícito e culposo, este será necessariamente punível – tal
será o que Figueiredo Dias defende: o facto em que se verifica o tipo de ilícito e o tipo de culpa é, em
princípio, também um facto digno de pena e, por isso, punível. No entanto, pode acontecer que,
excecionalmente, o não seja: ou seja, o facto, como um todo, não atinge os limiares mínimos da
exigência preventiva de punição.

Assim, a ideia por detrás disto é que a dignidade penal faz com que a categoria da punibilidade
possa ser analisada autonomamente: em função, fundamentalmente, de ideias preventivas, o facto
concreto fica aquém do limiar mínimo da dignidade penal. Dito de outra forma, apesar da realização
do tipo de ilícito e do tipo de culpa, a imagem global do facto é uma tal que, em função das exigências
preventivas, o facto não é merecedor de pena.

É por isso, então, que podem surgir condições de punibilidade em sentido amplo – isto é,
pressupostos que têm diretamente a ver com a dignidade penal do facto e com as exigências de
prevenção geral e especial. Nomeadamente, pode-se verificar:

➔ Condições objetivas de punibilidade: Circunstância extrínseca ao facto típico ilícito e culposo,


acrescentada pelo legislador, que exige que se verifique para que o facto seja merecedor de pena
– por exemplo, na tentativa, só se pode ser punido quando ao crime consumado seja aplicável
uma pena superior a 3 anos (artigo 23º, nº1 CP) – isto, porque o legislador acha que, quando o
agente só praticou a tentativa de um crime que nem sequer tem pena superior a 3 anos, este não é
merecedor de pena de prisão. Também nem todas as tentativas impossíveis são puníveis: para
além de o crime ter de ter uma pena superior a 3 anos, é necessário que não seja manifesto que o
meio não serve ou que o objeto não existe – pois só aí é que causa choque à sociedade.
o Outro exemplo será o facto de só se punir alguém pelo crime de embriaguez se o agente
praticar um facto típico ilícito (artigo 295º CP).
➔ Causas pessoais de isenção da pena: Condições que ocorrem após a prática do facto ilícito e
culposo, e que podem condicionar a sua punibilidade, nomeadamente impedindo-a – por exemplo,
a figura da desistência voluntária da tentativa (artigo 24ºCP), que leva à exclusão da pena por
tentativa. Ora, se houver esta desistência voluntária, não há razões de prevenção nem geral nem
especial para se aplicar uma pena de prisão, visto que o agente, ao desistir de praticar o facto,
voltou a motivar-se pelo Direito voluntariamente (não sendo exemplo).

➔ Princípio da insignificância: Há dispensa de pena quando não haja, consoante o princípio da


necessidade e adequação do Direito Penal, necessidade de sanção.

TENTATIVA
A tentativa é considerada uma forma especial de surgimento do crime, visto que, ao olhar para
os tipos de crime previstos na parte especial do CP, estes, habitualmente, surgem como feitos de
forma consumada. Ora, tal como para se poder punir outras formas de participação no crime, terá de
haver figuras de comparticipação; também para se poder punir sem ser na forma consumada, terá de
haver normas gerais que punem a tentativa.

Assim, sempre que se tiver no âmbito da tentativa, deve-se conjugar o artigo 22º CP com o tipo de
crime da parte especial – ex: a tentativa de homicídio é construída com os artigos 22º CP + 131º CP.

Elementos Subjetivos e Objetivos da Tentativa


A tentativa pode ser dada a propósito da tipicidade, só tendo de específico o seu tipo objetivo
e o seu tipo subjetivo.

Quanto aos elementos subjetivos, denota-se que só existem tentativas dolosas, e não
tentativas negligentes: o artigo 22º CP fala de “decidiu cometer”. A maior parte da doutrina assume
que tal dolo pode ser direto, necessário ou eventual; no entanto, Faria Costa considera que não deve
haver tentativa em dolo eventual, dado que o agente não decidiu fazer o crime – apesar de, no dolo
eventual, existir uma decisão criminosa de conformação com a possibilidade do facto se verificar.

Nos crimes em que, para além do dolo, o tipo exige o elemento subjetivo especial, este também tem
de estar verificado na tentativa – por exemplo, no caso do furto (artigo 203º CP), para além do dolo,
o agente tem de ter a intenção de se apropriar.

Quanto aos elementos objetivos, discute-se em que o momento começam os atos de execução.
Em regra, os atos preparatórios não são puníveis: terá de haver a prática de atos de execução, não
bastando apenas a prática de atos preparatórios – até porque, quando o legislador quer punir atos
preparatórios, ele individualiza-os como um crime (ex: contrafação de moeda – artigo 262º CP). Tal
é resolvido pelo artigo 22º, nº2 CP, que diz, nomeadamente:

➔ São atos de execução aqueles que preencherem um elemento constitutivo de um tipo de crime,
estando abrangidos pelas palavras da norma incriminadora – alínea a). Isto é apenas aplicado aos
crimes de forma vinculada: isto é, um crime que só pode ser praticado de determinada forma (ex:
homicídio por envenenamento, previsto no artigo 132º CP); furto com introdução em casa alheia,
previsto no artigo 204º CP).
o Aqui, consagra-se a teoria formal objetiva, defendida por Liszt, sobre identificar atos de
execução. No entanto, tal teoria não será suficiente, na medida em que só se aplica a estes
crimes de forma vinculada – quando a maior parte dos crimes não são de forma vinculada.

➔ São atos de execução todos os atos que forem idóneos a produzir o resultado típico: portanto,
tudo o que for considerado adequado a produzir o resultado típico é um ato de execução – alínea
b). Para a maior parte da doutrina, nomeadamente Roxin, isto implica, para além de um ato
adequado a produzir o resultado típico, uma proximidade com a esfera da vítima, na medida em
que haja uma estreita conexão temporal entre o ato e o resultado esperado (ex: disparar sobre
alguém é um ato adequado a produzir o resultado morte; tirar uma carteira de uma mala é um ato
adequado a produzir a subtração). Esta alínea corresponde à teoria material objetiva defendida
por Frank, que já se pode aplicar a crimes que não sejam de execução vinculada.

➔ São atos de execução aqueles que, segundo a experiência comum e salvo circunstâncias
imprevisíveis, forem de natureza a fazer esperar que se lhes sigam atos das espécies indicadas
nas alíneas anteriores. Assim, esta alínea c) estabelece o limite mínimo entre o ato preparatório
e o ato de execução.
o Para a maior parte da doutrina, não basta ser atos que, segundo a experiência comum, sejam
de natureza a fazer esperar atos da alínea a) e/ou b). É preciso, também, ter de ter em conta
o plano concreto do agente: nomeadamente, é preciso olhar para este e ver se são atos de
natureza a fazer esperar que, imediatamente, a seguir se lhes sigam atos das alíneas a) ou b)
– doutrina do último ato parcelar. Só nesses casos se pode dizer que se criou um perigo
concreto da lesão do bem jurídico.

o Para grande parte da doutrina, o fundamento primordial da punibilidade da tentativa é o facto


de ter sido colocado em perigo um bem jurídico. Ora, só se pode dizer que foi criado tal
perigo se se tiver em conta a experiência comum, mas também o plano do agente.
▪ Por exemplo, imagine-se que foi contratado um assassino profissional para matar A. O
assassino arrenda uma casa em frente de onde A mora. e está a fazer a mira no dia antes
para se preparar para, no dia a seguir, matar A – no entanto, é apanhado pela polícia
nesse dia. Ora, se não se tiver em conta o plano concreto do agente, ao nível do ato, o
facto de mirar a casa é um ato preparatório, e não um ato de execução: só o plano concreto
permite dizer se há uma estreita conexão temporal – tal como já exigia a alínea b) –, com
a lesão efetiva do bem jurídico; assim como uma relação direta com a esfera da vítima
ou do tipo (se se estiver a falar de bens jurídicos supraindividuais).

Concluindo, Roxin acrescenta que esta alínea c) só faz sentido se existir 1) uma conexão temporal
estreita com a lesão do bem jurídico (dado que só assim se considera que há o perigo de lesão desse
bem jurídico); e 2) uma atuação sobre a esfera da vítima ou do tipo.

Fundamento da Punibilidade da Tentativa


Como já foi dito, o fundamento da punibilidade da tentativa será a criação de um perigo para
o bem jurídico. Isto vem desde o conceito material de crime, já que um crime tem de ser um
comportamento que lesa bens jurídicos dignos de tutela penal – no sentido de os meter em perigo. A
tentativa é, assim, um crime de perigo-concreto. Por exemplo, uma mãe abandona a filha durante 1
hora e depois volta – já praticou um ato de execução, mas apenas será punida por tentativa e não
crime consumado, já que não houve ainda perigo em concreto para o bem jurídico (no âmbito do
artigo 138º CP – exposição ou abandono).

Uma parte da doutrina, como José Sousa Brito e Bárbara Brito, que outro fundamento da punibilidade
da tentativa, bastante importante, será o dolo do agente: ou seja, o facto de o agente querer praticar
um crime. Portanto, o principal será a vontade do agente que, por norma, está ligada a uma criação
de um perigo concreto para o bem jurídico – o fundamento é, então, fundamentalmente, o desvalor
da ação ligado ao seu elemento subjetivo. Com isto, é muito mais fácil explicar a punibilidade da
tentativa impossível: mesmo que não tenha existido nunca um perigo concreto para o bem jurídico,
tal será punida na mesma, precisamente porque há um desvalor da ação relacionado com o elemento
subjetivo – o agente queria praticar aquele facto, só não conseguido devido a outras circunstâncias
das quais não tinha conhecimento.

Denota-se que a tentativa, para além de ser típica, tem de ser ilícita, culposa e punível – sendo
necessário fazer a mesma análise, e passar por todos os elementos constitutivos que se avaliam nos
crimes consumados. Consequentemente, para a tentativa ser punível, ao crime consumado tem de
ser aplicada uma pena superior a 3 anos, salvo disposição em contrário. No entanto, além disso,
ao avaliar a punibilidade, existem, ainda, duas possíveis condições: 1) tentativa impossível; e 2) causa
pessoal de isenção da pena da tentativa.

Tentativa impossível

A tentativa impossível é uma tentativa que, apesar de estarem presentes os seus elementos
objetivos e subjetivos, nunca poderia levar à produção do resultado: ou porque 1) o meio utilizado
não é idóneo a produzir o resultado (ex: alguém dispara com uma arma que não estava carregada); ou
porque 2) ou o objeto típico do crime não existe (ex: A dispara sobre B que pensa estar a dormir, mas
B já estava morto) – artigo 23º, nº3 CP.
➔ Não confundir tentativa impossível com crime impossível. Enquanto na tentativa impossível estão
presentes os elementos subjetivos e objetivo; no crime impossível, não há elementos objetivos
nem subjetivos de crime nenhum (ex: alguém achar que ser infiel é crime).

Na tentativa impossível, o agente também está em erro, nomeadamente na medida em que


pensa que vai cometer um crime e não o consegue consumar. No entanto, este erro é contrário ao erro
previsto no artigo 16º, nº1 CP: neste, o objeto da ação está lá, mas o agente não representou; enquanto
no erro da tentativa impossível, o objeto não está lá, mas o agente pensa que está.

Para a tentativa impossível ser punível é preciso, ainda, que não seja manifesto/evidente/claro,
à data da prática do facto e para a generalidade das pessoas, que o meio não servia ou que o objeto
não existia. Isto tem a ver com o alarme social: se for manifesto, para o tal observador externo, que o
objeto não existe ou que o meio é idóneo, então não existe a criação de um perigo nem em termos
concretos, nem em termos abstratos para a sociedade. Consequentemente, não vale a pena punir a
tentativa: não faz sentido punir uma conduta que não é percetível para a sociedade como sendo digna
de tal punição. Pelo contrário, se não for manifesto, então já há a criação do alarme para a sociedade.

Causa pessoal de isenção da pena da tentativa – desistência voluntária

Esta figura abarca circunstâncias que ocorrem após a prática do facto, e que impedem a sua
punibilidade – sendo que esta isenção da pena só é aproveitada pela pessoa em que a causa se dá.
Dentro desta, a desistência voluntária é a causa mais falada, prevista nos artigos 24º, nº1 e 2
e 25º CP – no entanto, também há desistências previstas na parte especial (ex: artigo 294º, nº4 CP).
O fundamento da impunibilidade, neste contexto, tem, por base, várias teorias, nomeadamente:

➔ Teoria da ponte dourada em direção à impunibilidade;


➔ Teoria que premeia no sentido de a pessoa ter desistido voluntariamente de ir contra o Direito;
➔ Teoria relacionada com os fins das penas – na medida em que deixa de fazer sentido punir o
agente, dado não haver necessidade de recuperação deste, nem de prevenção geral ou especial;
o Figueiredo Dias defende, ainda, que, há uma convergência de vários pontos de vista.

Ora, todas essas teorias só fazem sentido se a desistência for voluntária: ou seja, de acordo com o
que o agente pensa, ele podia produzir o crime com êxito – mas, mesmo assim, decide não o fazer.
Portanto, a desistência atua como obra sua: o autor diz para ele próprio que não quer alcançar a sua
finalidade, embora o conseguisse – o domínio do “se” e do “como” do abandono da execução do
crime terá de caber só ao agente.

Frederico da Costa Pinto considera que voluntário é o que resulta da vontade do agente, e que não é
imposto nem coagido. Portanto, se o agente abandona a execução em virtude de um receio de ser
apanhado ou, mesmo após a prática do crime, é apanhado com os bens, tais casos são exemplos de
desistência devido uma circunstância externa, que se sobrepõe ao cumprimento das suas intenções –
desistência involuntária: no fundo, o que faz com que o agente desista é algo externo, e não algo que
ele domine. No entanto, o que importa, aqui, é ver o ponto de vista do agente: ou seja, ver se, segundo
o que o agente pensa, este podia prosseguir com êxito e, mesmo assim, decide desistir.

Para além disso, a desistência voluntária também se pode verificar nos termos do artigo 24º,
nº2 CP: ou seja, quando a consumação material do crime é impedida por facto independente e exterior
da conduta do agente, mas prova-se que o agente se esforçou seriamente para impedir a
consumação do crime. Por exemplo, uma mãe abandona a sua criança, mas, passados 30 minutos,
vai buscá-la – sendo que a polícia, 3 minutos antes disso, já a tinha encontrado. Aqui, a mãe esforçou-
se seriamente para impedir a consumação material do crime, apesar de tal consumação já estar
verificada. Assim, como há a possibilidade de salvamento e um esforço sério – no sentido de a pessoa
praticar atos para tentar salvar o bem jurídico –, deve-se premiar o agente, não a punido.

Assim, normalmente, distinguem-se três momentos de desistência:

➔ Desistência após a consumação formal do crime, mas antes da consumação material: O


legislador está a pensar nas desistências nos crimes de perigo concreto, onde o resultado é a
criação de um perigo. Por exemplo, se, após a criação de perigo para a vida da criança, a mãe
desistir e, dessa forma, evitar a morte da mesma, existe uma consumação formal do crime com o
abandono, mas não consumação material, dado que a desistência se deu antes da morte da criança.

➔ Desistência ativa da tentativa acabada ou impedimento da consumação: Abarcam-se os casos


em que já houve a prática de todos os atos de execução a cargo do agente, mas este volta atrás e
evita que o resultado se verifique – por exemplo, A quer fazer explodir o prédio, mas, já depois
de colocar uma bomba para o fazer explodir daí a 1 hora, volta atrás e desmonta a bomba.

➔ Desistência na tentativa inacabada em que se fala em suspensão da execução: Na tentativa


inacabada, o agente ainda não praticou todos os atos de execução a seu cargo – assim, neste caso,
para ele desistir, basta simplesmente não praticar os atos de faltam. Por exemplo, um assassino
profissional é contratado para matar A: este prepara-se, fazendo a mira à casa até A se encontrar
à porta, mas depois não carrega no gatilho – aqui, não praticou o ato de execução que ainda falta.
Sendo a desistência voluntária uma causa pessoal de isenção da pena, interessa ver como esta
se aplica no caso de comparticipação. Ora, segundo o artigo 25º CP, nos casos de comparticipação,
não será punida a tentativa do comparticipante que impedir a consumação formal ou material do
crime; ou que se esforçar seriamente para impedir a consumação do crime, apesar de os outros
comparticipantes prosseguirem na execução do crime e ele se consumir – sendo que só aproveita tal
impunibilidade esse comparticipante. Portanto, numa situação de coautoria em que, por exemplo, 3
pessoas vão assaltar o banco, e um deles decide voluntariamente desistir: para a sua conduta não ser
punível, será necessário que este impeça ou tente impedir a consumação do crime (por exemplo,
ligando à polícia).

➔ Frederico da Costa Pinto critica tal escolha, dizendo que o legislador devia premiar, também,
quem não quer prosseguir o crime, mesmo que seja no âmbito de comparticipação.

Imagine-se, agora, que A, B e C combinam assaltar um banco: A arromba a porta, mas, antes de B e
C conseguirem entrar para extrair o dinheiro, chega a polícia – como se pune B e C? Segundo a
doutrina, existem duas teorias que se podem aplicar:

1. Durante muito tempo, Roxin defendeu a posição que se deveria punir todos por furto – ou seja,
que se aplicaria uma solução global: a tentativa começa para todos a partir do momento em que
é praticado um ato de execução por qualquer um deles. Ou seja, a partir do momento em que os
agentes participaram e elaboraram o plano comum; e, nos termos desse plano, têm um contributo
essencial na execução do crime – isto é, têm a chamada titularidade do domínio funcional do facto
–, tal é suficiente para que, quando um deles pratique o ato de execução da sua responsabilidade,
os restantes sejam punidos por tentativa.
o No entanto, acaba por ser injusto, por um lado, punir apenas o coautor que, no plano, tem
apenas o ato de execução inicial; e, por outro, não punir os restantes que, no plano, têm a
titularidade do domínio funcional do facto – quando, só por acaso, a execução ficou pelo ato
de execução inicial.

2. Posteriormente, Conceição Valdágua convenceu Roxin a mudar de posição, dado vir a defender
uma solução individual: só será punido por tentativa o coautor que praticou atos de execução;
todos os outros vão ser punidos apenas como cúmplices morais. Conceição Valdágua justifica tal
solução argumentando que, para se punir alguém como coautor, não basta demonstrar que a
pessoa tem a titularidade do domínio funcional do facto ao nível do plano: é, também, preciso que
o coautor exerça o seu domínio funcional – ou seja, para além do domínio do seu contributo, o
coautor exerça o domínio negativo do facto, no sentido de haver a possibilidade que este tem de
fazer fracassar o plano, ao não praticar o seu ato de execução.
o Ora, nestes casos, em que só são praticados atos de execução por aquele que atua em primeiro
lugar, os restantes coautores não exercem este domínio negativo do facto – que, na maior parte
das vezes, é apenas o domínio negativo da consumação. Assim, se ele não pratica a sua
“parte”, não exerce o seu domínio negativo e não toma parte direta na execução –
consequentemente, não deve ser punido como coautor, mas apenas como cúmplice. A única
pessoa que exerce o seu domínio funcional é o primeiro, pelo que apenas este será o autor.
Casos práticos:

1. Certa noite, A vê da janela de sua casa que dois indivíduos com mau aspeto arrombam o seu automóvel
arrumado na rua entre os outros – parece que o vão furtar. A sai à rua de pistola na mão e grita “Vão se
embora de ao pé do carro ou dou-vos um tiro”. Os outros (B e C) não tomam a sério a ameaça, quer
porque não pretendiam assaltar o carro, quer porque na escuridão da noite não perceberam que A estava
mesmo armado e continuaram a apreciar o interior do automóvel. A, furioso e convencido que está perante
dois assaltantes, prime por 3 vezes o gatilho da pistola, na direção de B e C.
O primeiro tiro atinge B, causando ferimento ligeiros num braço; o segundo tiro parte os vidros da janela
da cozinha da casa de uma pessoa vizinha. E, a dona da casa que se encontrava na cozinha, acaba por
ser salva da morte quase certa – uma vez que uma fuga de gás já tinha feito com que caísse desmaiada no
chão. Da terceira, nada acontece porque havia apenas colocado 2 balas na arma, ao seu espanto.
C, entretanto, fugiu assustado e, ao atravessar a rua sem sequer olhar, foi atropelado por um automóvel
conduzido por D, que seguia embriago e em excesso de velocidade. C ficou gravemente ferido e em risco
de vida. D, ao ver que acabara de atropelar uma pessoa, preparava-se para parar e auxiliá-la; no entanto
foi convencido por P e PP, que seguiam consigo no carro, a nada fazer e continuar a viagem. Por não ter
sido a tempo assistido, C acaba por falecer.

Relativamente à conduta de A, esta (primeiro tiro) preenche o tipo de tentativa de homicídio


de B e tentativa de ofensas à integridade física de C – artigo 22º CP. Por um lado, existe tipicidade
objetiva relativamente à tentativa de ofensa à integridade física, que feita com dolo eventual, na
medida em que A atuou mesmo sabendo que seria possível falhar o alvo. Por outro lado, também
existe tipicidade objetiva relativamente à tentativa de homicídio; além disso, apesar de B ter ofensas
à integridade física consumadas, o dolo eventual com que A age acaba por consumir essas ofensas –
existindo, aqui, um concurso aparente por subsidiariedade.
No entanto, A agiu pensando que estava a atirar sobre dois ladrões – ou seja, agiu com erro
relativamente aos elementos objetivos da legítima defesa. Contudo, mesmo que estivesse correto
sobre tais elementos, os requisitos da legítima defesa não estão preenchidos: por um lado, o meio não
seria o mais adequado (A poderia, antes de recorrer à sua arma, ligar para a polícia); e, por outro, não
existe proporcionalidade entre o bem jurídico protegido (propriedade) e o bem jurídico lesado (ofensa
à integridade física e vida) – no sentido de haver uma insuportabilidade da lesão para o agredido, ao
ponto de lhe retirar a sua dignidade. Consequentemente, o artigo 16º, nº2 CP não poderia ser aplicado,
dado que este descreve um erro sobre os pressupostos de facto que, a existir, excluiriam a ilicitude –
ora, neste caso, não excluiriam, visto que há excesso.
➔ Mesmo que a figura fosse a legítima defesa preventiva, este excesso também existiria, dado que
esta está aos mesmos pressupostos e requisitos que a legítima defesa.
Não se podendo aplicar o artigo 16º, nº2 CP, seria necessário avaliar o excesso, nos termos do artigo
33º, nº2 CP. No entanto, este também não poderia ser aplicado, visto que o próprio excesso era
claramente censurável. Assim, não se excluindo a culpa, a única hipótese que se teria seria excluir a
culpa por medo ou perturbação, algo que não parece plausível.
Denota-se, no entanto, que o segundo tiro de A acerta na janela da Elsa, o que constitui um
claro crime de dano. Este queria, no entanto, acertar em B e C, pelo que se está aqui perante uma
aberratio ictus – consequentemente, ir-se-ia punir A, de acordo com a teoria da concretização, em
concurso real pelas tentativas contra C e B, e pelo crime de dano negligente.
No entanto, não estando o crime de dano previsto na sua forma negligente, A apenas poderia ser
punido pelas tentativa quanto a C e B, nos termos do artigo 13º CP. Além disso, mesmo que tal
possibilidade estivesse prevista, a ação de A poderia ser justificada pela presença de uma causa de
justificação de ilicitude – ou o consentimento do lesado presumido, ou o estado de necessidade –,
dado que, ao partir a janela de E, acaba por lhe salvar a vida.
➔ Denota-se, no entanto, que apesar de a teoria do risco considerar que, se a conduta provocar uma
diminuição de um risco, não se poderá fazer a imputação objetiva, tal não se aplica neste caso: a
teoria do risco implica que o agente tenha diminuído o risco para o bem jurídico que é tutelado
pela norma – ora, neste caso, a norma relativa ao crime de dano tutela a propriedade, mas a
conduta de A acaba por proteger a vida da pessoa.
Finalmente, o terceiro tiro de A afigura-se como uma tentativa impossível, visto que o bem é
idóneo e não pode levar nunca à produção do resultado. Esta é punível, porque não era manifesto que
o resultado não se viesse a produzir – artigo 23, nº3 CP a contrario.
Quanto ao atropelamento de C, este não poderia ser imputado objetivamente a A, já que houve
interrupção do processo causal por intervenção de terceiro. No entanto, este já poderá ser imputado a
D, que estava embriagado – artigos 292º e 295º CP. Existe um concurso aparente entre os artigos 291º
ou 292º CP, sendo que se iria aplicar o artigo 291º, nº1, alínea a) CP, que consegue abarcar o crime
do 292º e que consagra uma relação de subsidiariedade expressa. Quanto ao artigo 295ºCP, este
também será excluído, dado que pressupõe que o agente esteja num estado de inimputabilidade
completo – ora, neste caso, D até tenta ir ajudar C, pelo que tem intenção e discernimento. No entanto,
poder-se-á discutir se existe, sequer, imputação objetiva – nomeadamente, nos termos do
comportamento ilícito alternativo –, e se há, sequer, negligência inconsciente.
Pode-se, ainda, discutir se D poderia ser punido por ofensas à integridade física, havendo uma relação
de consunção entre os artigo 148º (ofensas à integridade física negligentes) e 291º CP. Ora, a lesão
da integridade física do 148º pressupõe essa lesão, obviamente; mas o perigo para a integridade física
tutelado no 291º já não pressupõe essa lesão. Por isso, provavelmente ter-se-ia, aqui, um concurso
efetivo entre as duas normas, para abarcar a lesão à integridade física.
Quanto à morte de C, D poderá ser responsabilizado por um homicídio por omissão, já que
este não diminui nem afasta um risco existente. Visto que o homicídio por omissão é uma omissão
impura, que se relaciona causalmente com o resultado e que não está prevista em num tipo legal de
crime, para se punir D é preciso que este tenha dever de garante (artigo 10º, nº2 CP). Ora, aqui, D
terá tal dever, porque houve um comportamento seu prévio perigoso que, neste caso, até é ilícito
(violação de regras da estrada); e, também, por situação de monopólio (apesar de, para André Lamas
Leite, a situação de monopólio é apenas aplicável quando não é possível aplicar mais nenhum dos
deveres de garante). Quanto ao elemento subjetivo, D age com dolo, pelo menos eventual. Para além
disso, não há nenhuma causa de exclusão da ilicitude. Logo, D será punido por homicídio por
omissão.
No entanto, D acaba por não parar dado ser instigado por P e PP a não o fazer. Assim, estes podem
ser punidos como instigadores – dado terem feito nascer na cabeça de D que não ajudassem C – do
deste homicídio por omissão. No entanto, neste caso, o dever de garante ser-lhes-ia comunicável nos
termos do artigo 28, nº1 CP; além disso, ao não prestarem auxílio, sendo os únicos que o podiam
fazer, estariam também investidos com o dever de garante pela situação de monopólio. Assim,
existido, de qualquer das duas formas, uma fonte de dever de garante, P e PP seriam, também,
coautores do homicídio por omissão – consequentemente, existiria um concurso aparente entre a
instigação e a autoria, sendo P e PP punidos como coautores, dado ser esta a forma de comparticipação
mais perfeita.
1. A, carteirista, procura as horas de ponta no metro para ganhar a vida. Durante uma viagem nota
que o bolso do passageiro B se encontra particularmente volumoso. Pensando tratar-se de uma
carteira recheada de notas, A introduz a mão no bolso de B, constatando, enojado, que se tratava
apenas de um lenço de assoar em péssimo estado. B, sentindo uma mão no bolso e julgando que
era a de C que se encontrava mesmo atrás de si, desfere-lhe um soco. Vendo que B se preparava
para o agredir de novo, C procura antecipar-se e como este se baixa acaba por agredir D que
no aperto do metro se encontrava muito próximo daquele. Para escapar à enorme barafunda
entretanto gerada na carruagem, E na eminência de também ser agredido foge em pânico em
direção à porta de saída do metro. Na fuga atropela F, pessoa idosa que procurava igualmente
fugir à confusão e que ao ter sido atropelada por E, acabou por ficar com um braço partido.

Você também pode gostar