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EVOLUÇÃO HISTÓRICA
Só se consegue perceber o conceito atual de crime tendo em conta a evolução histórica da
teoria geral da infração penal – ou seja, porque é que existe uma certa análise lógica do crime, porque
é que certos elementos são considerados constitutivos do crime, como é que se chegou ao conteúdo
desses elementos, etc. Tal resulta, como se irá ver, do contributo de vários autores ao longo dos anos
– com uma especial atenção à evolução deste conceito na doutrina alemão, internacionalizada, tendo
interferência nas várias ordens jurídicas europeias.
Para perceber as várias conceções do crime, será necessário saber as conceções filosóficas por
detrás das mesmas. No entanto, como acrescenta Jescheck, também se consegue perceber tais
conceções partindo das suas raízes culturais, assim como da sua relação com os conceitos da época
precedente. Isto porque, por norma, as escolas novas surgem como crítica à escola anterior, críticas
que podem ou ser refutadas, melhorando-se a ideia antiga; ou não ser refutadas, e é necessário
construir um conceito novo.
Escola Clássica
A teoria geral do crime aparece pela primeira vez nos tratados de direito penal do século XVI,
através de Tiraqueau, que via o crime como facto ilícito punível praticado com dolo ou negligência.
No entanto, a formulação que se denomina de clássica ou positivista naturalista, no sentido de ser a
primeira formulação completa de crime, é a formulação de Liszt, nos finais do século XIX.
Sendo Liszt filosoficamente um positivista, para este, a realidade era dada pela experiência,
negando-se tudo o que vai para além da realidade. Significa isto que, para este, o crime não podia
deixar de ser uma realidade no mundo da experiência, pelo que se deveria fazer uma distinção material
dos elementos que o descreviam, também eles parte desta realidade, nomeadamente:
➔ Ação: Conceito na sua forma naturalística, de acordo com o qual a ação traduzia-se num
movimento corporal dependente da vontade que levava a uma transformação no mundo exterior,
conectados por um nexo de causalidade.
➔ Ilicitude: Contrariedade a uma norma jurídica. Tal ilicitude era constituída, na altura, apenas pelos
elementos objetivos do crime – por exemplo, no crime de homicídio, os elementos objetivos
seriam a ação de matar, o resultado “morte”, e o nexo de causalidade entre esta ação e a morte.
Escola Neoclássica
A escola neoclássica ou normativista do crime surgiu e era dominante em 1930, sendo um dos
principais autores Mezger – e, entre nós, Eduardo Correia e Cavaleiro Ferreira. Fala-se em escola
neoclássica porque continua, no fundo, a ser algo que advém do sistema clássico, partindo das críticas
feitas à mesma – pelo que, nesse sentido, não é um sistema autónomo do sistema clássico.
Esta escola, do ponto de vista da filosofia, é neokantiana: ou seja, ao contrário dos positivistas,
entende que, ao lado do mundo natural, há o mundo da cultura e dos valores, no sentido de atributos
não descritivos da realidade – sendo que o direito pertence a tal mundo dos valores.
Isto é relevante porque o conceito da ação, de acordo com os neoclássicos, passa a ser um
conceito valorativo, e não apenas uma realidade do mundo natural. Consequentemente, estes
defendem um conceito social de ação, de acordo com o qual a ação é o comportamento humano
voluntário socialmente relevante (sendo esta a última fórmula do conceito social de ação dentro da
escola clássica, que depois irá ter outras evoluções).
➔ Este conceito social de ação ainda é defendido por vários atores atualmente – Fernanda Palma.
Já o tipo deixa de se situar ao lado da ilicitude, limitando-se à missão formal de conter os
elementos da ilicitude. Dito de outra forma, o tipo transformou-se em tipo de ilícito, uma espécie de
fundamentação positiva da ilicitude.
Por sua vez, a ilicitude surge como um desvalor que continua a abarcar fundamentos objetivos;
embora se comece a perceber que, por vezes, para valorar um facto como ilícito, é necessário ter em
conta elementos subjetivos (ex: para estar preenchido o crime do furto, é necessário estar preenchido
a intenção de apropriação).
Mezger distingue, primeiramente, os elementos positivos – os que fundamentam a ilicitude – dos
elementos negativos – causas de exclusão da ilicitude – da ilicitude.
Além disso, distingue-se, ainda, a ilicitude formal, no sentido de contrariedade à norma jurídica; e a
ilicitude material, no sentido de danosidade social ou ofensa material de certos bens jurídicos. Isto
implica que passe a haver uma graduação na ilicitude, de acordo com a gravidade da lesão dos bens
jurídicos – ou seja, existe um interesse em saber, também, o quão desvaliosa é a conduta (material),
e não apenas se é contrária à lei (formal).
Quanto à culpa, surge a teoria normativa da culpa, de Frank. De acordo com este, o essencial
na culpa era um juízo de censura, que só existiria se fosse exigível um comportamento contrário ao
adotado; e se, para além disso, houvesse uma motivação negativa do agente, ou seja, uma espécie de
atitude interior negativa por parte do agente. No entanto, apesar disto, escola neoclássica ainda não
conseguiu ultrapassar o dolo e a negligência como formas de culpa.
Escola Finalista
Segundo Figueiredo Dias, após a Segunda Guerra Mundial, ficou claro que o normativismo
de raiz neokantiana não oferecia garantia bastante de justiça, ou seja, de normas validamente editadas.
Por isso, com esta, houve claramente uma necessidade de substituir um estado de direito em sentido
formal com um em sentido material – nomeadamente, limitando esta formalidade pela via ontológica
e fenomenológica. Isto porque, durante o nazismo, vigoravam não só leis penais do facto, como
também leis penais do agente, em que se pune uma pessoa por ter determinadas características (ex:
raça, opinião), e não por ter praticado determinado facto.
Assim, os finalistas surgem como uma espécie de reação ao que aconteceu na Segunda Guerra
Mundial e à ideia de normativismo do direito, não suficiente para salvaguardar os direitos
fundamentais. Estes defendem que a ação é uma essência que o direito não pode alterar, e que existe
independentemente do direito, tendo uma estrutura própria – sendo que o decisivo passa a ser
determinar essa estrutura. Em última análise, o conceito de direito passa a ser determinado
ontologicamente; sendo a ação, por si, essencialmente finalista – ou seja, a verdadeira essência da
ação humana é o ser um processo causal conduzido pela vontade, para determinado fim.
Ora, se a ação passa a ser uma supradeterminação final do processo causal, o dolo e a
negligência já passam a interessar para a tipicidade: estes têm, então, de ser logo averiguados a nível
da tipicidade, só se podendo afirmar a existência de um tipo de crime se, para além dos elementos
objetivos, se tivesse em consideração estes elementos subjetivos. A tipicidade, na escola finalista,
surge então como valoração autónoma da ilicitude – isto, porque um facto pode ser típico, mas não
ser ilícito (ex: a ação de matar alguém não deixa de ser típico se se demonstrar que foi praticado em
legítima defesa – apenas deixa de ser ilícito).
A ilicitude, necessariamente, também é uma valoração sobre o ato do homem na sua vertente
objetiva e subjetiva – pelo que se passa a falar em dois juízos de desvalor: 1) o desvalor da ação, onde
é mais importante os elementos subjetivos do tipo, nomeadamente a vontade ilícita; e 2) o desvalor
do resultado, onde é mais importante a lesão do bem jurídico. Também ao nível da ilicitude, as causas
de exclusão da ilicitude deixam de ser elementos negativos do tipo de ilícito e passam a ser tipos
permissivos que, quando se verificam, excluem a punibilidade.
A culpa, por sua vez, traduz-se num juízo de censura pelo facto de o agente, podendo agir de
outra forma, não o ter feito. Aqui, já se distingue o dolo da consciência do ilícito: para a culpa, passa
a ser relevante a consciência da ilicitude (que aquela ação é ilícita) e a capacidade de escolha
(escolher, mesmo assim, fazer dita ação).
Escola Pós-Finalista
Atualmente, a maior parte dos autores são considerados pós-finalistas, no sentido de que toda
a doutrina atual considera que quer o dolo, quer a negligência são elementos do tipo – sendo que foi
a escola finalista que introduziu esta alteração. Assim, e segundo Figueiredo Dias, não se pode dizer
que o facto preenche um tipo de crime sem que haja dolo ou negligência, só se podendo fazer um
juízo de ilicitude, no sentido de contrariedade de ação à ordem jurídica, tendo em conta o dolo e a
negligência. É por isso que a maior parte da doutrina atual se insere na chamada doutrina do ilícito
pessoal, visto que dá destaque aos elementos subjetivos.
No entanto, apesar de todos os autores caberem nesta denominação pós-finalismo, existem
várias variações. A doutrina dominante será a teoria teleológico-funcional, ou racional-final, segundo
a qual o sistema do Direito Penal só se pode guiar pelas finalidades do Direito Penal – nomeadamente,
pelas bases político-criminais da moderna teoria dos fins das penas. Tal sistema arranca da conceção
apresentada por Roxin, em 1970, num estudo que fez sobre as relações entre a política criminal e o
sistema de facto punível (sistema de crime).
Dentro desta teoria, existem duas conceções totalmente diferentes: a de Roxin, e a de Jakobs.
➔ Para Jakobs, só se pode determinar o que importa para o Direito Penal segundo as necessidades
da regulação jurídica: ou seja, todos os conceitos que importam ao Direito Penal são
condicionados pela sua teoria dos fins das penas, em que o fim da pena é a prevenção geral
positiva. No entanto, Jakobs leva esta ideia ao extremo, dizendo que a própria culpabilidade está
subjugada à prevenção geral positiva, não tomando em consideração as capacidades do sujeito.
➔ Para Roxin, para além de se ter em consideração as teorias das finalidades das penas, será também
necessário ter em conta todos os outros princípios fundamentais do Direito Penal –
nomeadamente, o da culpabilidade e o da dignidade humana.
o A única falha nesta conceção será o facto de este defender o chamado conceito social de
culpa, nomeadamente a culpa que os outros pensam que o sujeito tem.
Apesar destas diferenças, em última análise, o sistema de Direito Penal baseia-se nas conceções
penais básicas da política criminal: incluindo não só a prevenção geral, mas também todos os outros
princípios do direito penal, que possibilitam uma compreensão do Direito Penal pré-positivado.
Existe, ainda, outra subcorrente (na qual a professora Bárbara Brito se inclui, assim como
Duttge e Kaufman), segundo a qual existe, no conceito de crime, uma estrutura da realidade que tem
um elemento ontológico, e não tem apenas uma finalidade intrasistemática.
Ou seja, esta corrente defende que não se pode chegar ao conceito de crime apenas partindo da tal
política criminal e dos tais valores e princípios fundamentais do Direito Penal (finalidade
intrasistemática). É necessário perceber que o Direito Penal também tem de ter em consideração que
o objeto que trata é constituído por elementos ontológicos – formas de ser que só podem ser
compreendidas se se tiver uma visão interdisciplinar do Direito Penal.
Assim, de acordo com esta corrente, deve-se partir de conceitos normativos; mas esses devem basear-
se em dados ontológicos firmes quando possível – por exemplo, para se saber quando é que há uma
ação em Direito Penal, é necessário ver o que as outras ciências pensam em relação à existência de
uma ação ou não (nomeadamente, com base na psicologia ou na neurocirurgia).
Fernanda Palma, por sua vez, defende que tem de haver uma constante ligação do direito com
a realidade social – sendo esta um instrumento de interpretação do direito. Nas suas próprias palavras,
“a ação não é um problema de definição das características da realidade, mas um problema de
definição de regras da linguagem social que permitam validar como ação certo comportamento.”
Ora, na perspetiva da professora Bárbara Brito, só se pode, também, definir as regras de linguagem
social que permitem validar certa ação como comportamento criminoso SE se tiver em conta as
ciências que estudam esse comportamento – e, nesse sentido, nunca se pode fugir de uma base
ontológica desse conceito. Dito de outra forma, o Direito recorre ao conceito de vida social, que serve
de base a relações jurídicas; mas a própria determinação do conceito de vida social, na sua base,
depende de critérios científicos que não são, geralmente, conhecidos.
Notas Finais
No início, a preocupação dos autores era mais a construção de uma teoria em que se tentava
apenas definir os elementos constitutivos do crime. Atualmente, esta teoria do crime é construída
cada vez mais como uma teoria que tem uma razão prática de existência, onde para além de se definir
tais elementos, também se visa facilitar a aplicação dos tipos de crime por parte do juiz.
AÇÃO
Introdução
O conceito de ação jurídico-penalmente relevante é, para uma parte da doutrina (como Bárbara
Brito e Fernanda Palma), o primeiro elemento da análise do crime – sendo que o artigo 10º CP
também parece concordar com tal posição, falando o legislador na necessidade de uma “ação
adequada”. No entanto, para outra parte da doutrina, o primeiro elemento deve ser não este conceito,
mas sim o conceito de ação típica.
Defendendo esta última posição, Figueiredo Dias vem argumentar, por um lado, que ao Direito
Penal, só importa a ação típica: isto é, num caso prático determinado, só importa se existiu a ação de
matar, de furtar, de violar, etc. – e, por isso, o elemento da ação não deve ser alvo previamente dado
ao tipo. Ou seja, o conceito de ação tem um papel secundário no sistema de análise do crime, porque
vai apenas permitir excluir da tipicidade comportamentos irrelevantes. Por outro lado, este autor
também defende que o elemento da ação não pode ser algo prévio ao tipo, porque não é possível um
conceito de ação material suficientemente amplo, que sirva de base aos demais elementos do crime.
Bárbara Brito critica esta posição. Por um lado, quem defende que a análise do crime deve começar
pelo conceito de ação típica parece não entender que uma das principais funções do conceito de ação
é a função de delimitação: isto é, permitir excluir aqueles comportamentos que não interessam ao
Direito Penal e que, por isso, não são ação. Ora, não sendo ação, também não são ação típica – mas
se a conduta nem é ação, não é necessário ir analisar a sua tipicidade.
Por outro lado, e ao contrário do que Figueiredo Dias defende, este conceito de ação não resulta só
dos tipos existentes de crime – este resulta, sim, de uma compreensão pré-jurídica, no sentido de pré-
típica, do que é a ação. Dito de outra forma, a questão da existência ou não de uma ação jurídico-
penalmente relevante é autónoma face à questão de saber se determinada ação é típica. Ou seja, é
possível existir um conceito de ação que seja suficientemente abstrato ao ponto de abarcar todos os
comportamentos relevantes para o Direito Penal, mas que seja prévio ao conceito de ação típica.
Além disso, quem defende um Direito Penal baseado no princípio da culpa (não é possível punir o
agente por atos não praticados no âmbito da sua autonomia), tem de defender a necessidade de
determinar quando é que um comportamento foi praticado nesse âmbito da autonomia e liberdade.
Este conceito é relevante, tendo aparecido pela primeira vez no manual de Berner de 1857,
como pedra básica do sistema do crime. No entanto, já desde longa data que Jescheck defendia que o
conceito de ação cumpre, fundamentalmente, quatro funções:
1) Função classificatória: O conceito de ação deve abarcar todas as formas do comportamento
humano que possam ser relevantes para o Direito Penal.
2) Função delimitadora: O conceito de ação deve determinar, à partida, os comportamentos que não
podem ser considerados crime – e, portanto, deve permitir por si só excluir todos os
comportamentos irrelevantes para o Direito Penal.
3) Função de definição: O conceito de ação deve ter um conteúdo material suficientemente amplo
para servir de suporte aos restantes elementos. Em última análise, tal significa que todos os outros
elementos do crime assentam no conceito de ação.
4) Função de elemento de ligação: O conceito de ação deve, além de ser amplo, também ser neutral
– ou seja, não qualificar já a ação como sendo típica, culposa, etc. –, para servir de suporte aos
restantes elementos da análise do crime.
CONCEITO SOCIAL:
O conceito social de ação surgiu na escola neoclássica, e é atualmente defendido por muitos
autores, tais como Fernanda Palma. De acordo com este conceito, a ação traduz-se num
comportamento humano voluntário socialmente relevante.
Um comportamento humano pode ser considerado voluntário sempre que se traduzir numa resposta
do homem a uma exigência situacional reconhecida ou reconhecível mediante a realização de uma
possibilidade de ação, de que o agente dispõe em razão da sua liberdade. Dito que outra forma, o
comportamento humano voluntário traduz-se numa tomada de posição frente às possibilidades de agir
que se oferecem, tendo essa tomada de posição de ser controlada ou controlável pelo sujeito.
Ora, tal significa que só há uma ação jurídico-penalmente relevante se existir uma conduta praticada
por um homem individual, não abrangendo as condutas de pessoas coletivas. De qualquer forma, a
ideia central é a ideia de controlo, ou a ideia de direção: ou seja, tem de ser um comportamento
controlado ou controlável pelo sujeito. Além disso, tem ainda de ser um comportamento socialmente
relevante, no sentido de ter um efeito no exterior e de afetar a relação do indivíduo com a sociedade.
A principal crítica feita a este conceito é a de que não é suficientemente neutral, porque exige
que o comportamento fosse socialmente relevante; ora, há certos comportamentos que só são
socialmente relevantes por causa da sua relevância jurídica (ex: esquecimento de apresentação da
declaração de impostos no prazo legal).
Os defensores deste conceito afastam esta crítica, dizendo que esta característica de neutralidade da
ação não se deve ser tão rigorosa ao ponto de o “ser socialmente relevante” derivar de “ser
juridicamente relevante”. Ou seja, quando se exige a neutralidade, é no sentido de a ação poder servir
de base a valorações como a tipicidade ou a ilicitude, independentemente dessa tipicidade ou ilicitude.
Bárbara Brito concorda com esta contracrítica.
CONCEITO FINAL:
O conceito final de ação surgiu com a escola finalista, segundo a qual a ação é essencialmente
finalista, consistindo num processo causal conduzido pela vontade para determinado fim – existindo,
consequentemente, independentemente do direito.
Assim, na ação é necessário haver sempre três momentos: 1) momento onde se definem os objetivos
(antecipação mental dos fins); 2) momento onde se elegem os meios necessários à prossecução desses
fins; e 3) o momento de pôr em andamento os processos causais, com vista à prossecução dos fins.
Uma das críticas mais relevantes feitas a tal conceito será o facto de, mais uma vez, este não
incluir as omissões, dado que na omissão não existe o momento de pôr em andamento o processo
causal, com vista à prossecução do fim. Além disso, também parece não incluir as condutas
negligentes, nomeadamente na sua forma inconsciente, visto que o que caracteriza essa figura é o
agente nem sequer representar a realização do facto ilícito – assim, tal conceito só inclui as ações
intencionais, onde existe o primeiro e o segundo momento.
Face a estas críticas, os finalistas, numa segunda fase, vêm acrescentar que a tal “finalidade” não
implica uma ação intencional, mas sim uma ação conduzida ou conduzível por parte do agente. Isto
é, para haver uma ação, o agente tem de ter a possibilidade de escolher uma ação alternativa. Ora, tal
resposta acaba com a crítica, porque quer na omissão, quer nas ações negligentes, o agente tem a
possibilidade de um comportamento alternativo, existindo uma ação conduzida ou condutível.
CONCEITO FINAL:
O conceito pessoal de ação foi desenvolvido por Roxin, segundo o qual existe uma ação
jurídico-penalmente relevante quando houver uma exteriorização da personalidade do agente. Aqui,
exteriorização surge no sentido de uma conduta sujeita ao controlo do “eu”, enquanto instância mental
e física – existindo uma realidade ôntica na “exteriorização da personalidade”. Por outras palavras, a
ação tem de revelar a personalidade daquele indivíduo, nomeadamente no sentido de ser sujeito ao
controlo do “eu” – sendo, mais uma vez, a ideia de controlabilidade que está por detrás deste conceito.
Atualmente, Roxin defende que, que para além disso, é também fundamental que esse comportamento
tenha uma valoração social – por isso é que se pode dizer que o conceito pessoal de ação não deixa
de ser um conceito social.
OUTRAS CONCEÇÕES:
Jacobs defende que a ação surge como evitabilidade de uma diferença de resultados: para ele,
todo o comportamento que for evitável pode ser considerado ação, sendo a evitabilidade que vincula
o resultado ao agente. No entanto, o comportamento é evitável se for conhecido ou cognoscível pelo
sujeito, porque só nesse caso o sujeito pode ou tem a possibilidade de interferir nos acontecimentos.
Já Fletcher diz que a ação não deve ser explicada, mas sim compreendida – por isso, o que
importa é o contexto em que ela é realizada.
Bárbara Brito defende, também, um conceito de ação pré-jurídico, no sentido de pré-típico;
no entanto, este será também jurídico, porque parte, por exemplo, do princípio da culpa. Tal ideia
difere do que Fernanda Palma defende: para Bárbara, não existe uma diferenciação entre os autores
normativistas e os ontológicos, achando que tal conceito normativo pode, no entanto, ter bases
ontológicas fortes (não sendo, no entanto, também puramente ontológico – iria respeitar as valorações
do direito). Assim, Bárbara Brito defende uma multidisciplinariedade do Direito Penal sem, no
entanto, desrespeitar as valorações do direito: isto, porque não é pelo facto de se partir de um conceito
normativo, que não se possa densificar o mesmo com outras ciências.
2. A, condutor de um camião tire, viajava há dois dias seguidos, parando só para comer, com o
intuito de chegar mais cedo. Já perto de Coimbra, deixou-se adormecer ao volante, e acabou
por embater no carro de C, provocando a sua morte. Quid Iuris?
Para perceber se existe uma ação jurídico-penalmente relevante, há que distinguir dois
momentos: 1) o momento em que A embate no carro a dormir; e 2) o momento em que A continua a
conduzir.
No primeiro momento, não existe, de facto, nenhuma ação, dado que, estando a dormir, A não teria
nenhuma possibilidade de ação alternativa. Agora, empiricamente, o problema não é esse; o problema
é que A se apercebeu que estava cansado e, mesmo assim, continuou a conduzir.
Portanto, o momento relevante para decidir se há ou não ação é o momento em que A decide continuar
a conduzir, mesmo sabendo que está cansado – ou seja, antecipa-se o momento relevante em relação
ao momento em que o agente lesa o bem jurídico. Chama-se a isto “ação livre na causa”, porque
quando A se apercebe que está cansado, mas mesmo assim decide continuar, nesse momento, A tinha
possibilidade de ação alternativa – pelo que há uma ação jurídico-penalmente relevante.
3. A vai a conduzir no meio da cidade à velocidade legal e, de repente, surge uma criança à frente
do carro para apanhar a bola. Ele não consegue travar a tempo, e ela acaba com ofensas
corporais. Quid Iuris?
Neste caso, está-se perante um “ato automático”, em que o agente não tem a possibilidade de
uma ação alternativa – isto, apesar de a resposta variar de pessoa para pessoa: por exemplo, do tempo
de reação que tem, da força psicológica, etc. Ou seja, Roxin tende a achar que nos atos automáticos,
continua a existir uma ação, por causa dessa variação – é uma resposta pessoal, sendo isso suficiente
para se poder falar em ação juridico-penalmente relevante.
Bárbara Brito não concorda com Roxin visto que, apesar de ser uma resposta pessoal, tal não é
suficiente para se chegar à conclusão de que é uma ação, porque a ideia por detrás dessa é a de
controlo da ação – ora, nestes casos, não há esse controlo, logo não existe uma ação relevante.
No entanto, estes atos automáticos não podem ser confundidos com os “atos reflexos”: ato que
é sempre o mesmo em todas as pessoas, não existindo uma resposta pessoal – ex: espirrar, bater com
o martelo no joelho, etc. – e, consequentemente, não existindo ação, até para Roxin.
Assim, enquanto o ato reflexo é igual em todas as pessoas; já o automático é flexível, dependendo de
pessoa para pessoa. Esta diferença faz com que parte da doutrina pense que o ato automático é uma
ação relevante, enquanto o ato reflexivo não o é. No entanto, e como já foi visto, o facto de a resposta
ser pessoal não é suficiente para categorizar o ato como ação relevante: o facto ser variável não
significa que haja a tal possibilidade de controlo; sendo tal impossibilidade confirmada pela ciência
– direito interdisciplinar, que se baseia nas outras ciências que estudam o comportamento humano. É
com base nessas que se percebe quando há controlo ou possibilidade de controlo.
Concluindo…
Concluindo, para perceber se existe uma ação jurídico-penalmente relevante, é necessário
averiguar se o agente controlou ou tinha a possibilidade de controlo da sua ação. A resposta a esta
questão, além de ser uma resposta fundamentada (isto é, verdadeira quanto aos factos), é também
uma resposta com eficácia: isto é, para que se consiga efetivamente prevenir a prática de crimes, esta
resposta só pode ser dada tendo em conta o que as outras ciências que estudam o comportamento
humano dizem sobre isso.
No entanto, e apesar de Bárbara Brito defender esta interdisciplinaridade, tal não significa substituir
as valorações do Direito Penal por valorações de facto de outras ciências. Ou seja, a professora
defende que tal ideia não significa a transferência de conceitos de Direito Penal para outras ciências;
defende-se, pelo contrário, que esses conceitos devem-se fundamentar em dados ontológicos firmes
– o que implica, necessariamente, ter em conta os conhecimentos adquiridos pelas ciências que
também se debruçam sobre o conceito de ação.
➔ De entre as várias ciências que se debruçam sobre o comportamento humano, é a neurociência da
ação que tem alcançado os resultados mais importantes, e que tem influenciado decisivamente o
estado da discussão da ação em todas as outras ciências, incluindo o Direito Penal.
A Omissão
A omissão é um comportamento humano?
Normalmente, quando se fala de ação jurídico-penalmente relevante, está-se a pensar não só
nas ações em sentido estrito, mas, também, nas omissões e na inatividade. A este título, importa
referir: será que a omissão faz parte do género “comportamento humano”?
Para uma parte da doutrina (Welzel, José Sousa Brito e Bárbara Brito), a omissão só faz
sentido dentro do género comum à ação e omissão – isto é, o género “comportamento humano”. Por
isso, a omissão deve ser vista como uma realidade que tem existência no mundo exterior ao lado da
ação: trata-se de uma resposta a uma dada situação controlada ou controlável pelo agente.
Para outra parte da doutrina (Mezger, Radbruch, Eduardo Correia e Figueiredo Dias), a
omissão não existe como realidade no mundo exterior; é, sim, um produto, um juízo efetuado por
quem julga o agente, ao relacionar a conduta praticada com a conduta esperada. No entanto, tal é
criticável pelo facto de quem formula o juízo é o julgador – ora, não faz sentido efetuar valorações
sobre juízos (no sentido de ação), mas sim sobre algo que existe na realidade.
Tal posição está na base da “doutrina subjetiva da negação”, que deve ser substituída pela “doutrina
diferenciada da negação”. De acordo com a primeira, a omissão não faz parte do comportamento
humano, mas é sim um juízo de valoração que resulta da comparação entre a ação esperada. Já na
segunda, a negação faz-se sempre dentro do mesmo género – o que significa que a negação da ação
(omissão) deve fazer-se dentro do género “comportamento humano”.
➔ Por exemplo, na frase “A não salva B”, só se pode dizer que há aqui uma omissão – ou seja, que
A omitiu salvar o B – se A teve o comportamento humano de não salvar B quando o poderia ter
feito. Esta também pode ser verdadeira nas situações em que A não teve a possibilidade; mas só
faz sentido ver esta frase como uma omissão juridicamente relevante se se considerar a ação de
omitir como estando dentro do género comportamento humano.
Assim, para a parte da doutrina que entende que os conceitos de Direito Penal se baseiam apenas em
valorações jurídico-criminais, a questão da natureza da omissão ou da ação não interessa. No entanto,
e como foi dito, Bárbara Brito entende que o conceito de ação, apesar de criado pelo Direito Penal,
tem de se basear em dados ontológicos firmes – pelo que será necessário avaliar a natureza da
omissão, ou seja, discutir se esta faz ou não parte do comportamento humano.
➔ Fernanda Palma defende que, no caso de legítima defesa, não há dever de agir, porque não há
ultrapassagem da esfera de liberdade da ação própria. No entanto, se a ação prévia perigosa não
for de legítima defesa, mas for uma contrariedade objetiva ao dever, que coloca a vítima numa
situação de perigo acidental, o agente já terá uma posição de farante, dado que a esfera da
liberdade de ação do agente interferiu involuntariamente com a dos outros, deixando-os numa
situação de impossibilidade de controlo sobre a sua sobrevivência.
o Por exemplo, se durante a condução, os travões falham e o agente vai contra um peão, este
terá uma posição de garante, dado que coloca o peão nessa situação de impossibilidade.
➔ Figueiredo Dias defende que, no caso de legítima defesa, não existe dever de garante; existindo,
no entanto, nos casos de Estado de Necessidade. Por exemplo, o caso de, para impedir um
incêndio, o agente empurra uma pessoa: apesar de ter existido um comportamento lícito, a pessoa
sobre a qual este se exerceu não tem de suportar a consequência desse mesmo comportamento,
pelo que faz sentido ter o dever de agir.
Relativamente ao âmbito social de domínio, diz-se que se deve poder confiar em quem exerce
o poder de disposição sobre um âmbito de domínio, ou em determinado espaço limitado, que se
encontra acessível a outras pessoas. Por exemplo, os controladores aéreos têm dever de garante
relativamente aos movimentos dos aviões; os donos de industriais têm dever de garante relativamente
à segurança dos seus estabelecimentos; os condutores têm o dever de garante relativamente à
conservação dos seus veículos; os donos de animais têm o dever de os fiscalizar, em vista dos perigos
que deles partem; e os produtores têm dever de garante face aos perigos que os seus produtos possam
criar (ex: polémica da Tesla).
Relativamente ao dever de controlar a ação do terceiro, tal é o que acontece nos casos em que
há o dever de vigiar face a atuação de terceiros que não são responsáveis, ou que têm a sua
responsabildiade diminuída ou limitada (ex: incapazes; pais perante os filhos; instrutores de qualquer
espécie). Pode, no entanto, também haver este dever em caso de terceiros plenamente responsáveis –
por exemplo, no caso de elementos da força armada.
Relativamente às situações ditas de monopólio, são situações instantâneas acidentais, de
limite, em que o agente é a única pessoa que está em posição de evitar o resultado, podendo fazê-lo
com pouco esforço – ou seja, não implicando colocar em perigo bem jurídicos próprios.
Figueiredo Dias entende que, para um monopólio ser fonte de dever de garante, é preciso que: 1) o
agente esteja investido numa situação de domínio fáctico, absoluto e próximo da situação; e 2) o
perigo para o bem jurídico seja iminente e agudo. Consequentemente, para este professor, não é,
sequer, essencial que exista uma única pessoa que detem aquele poder – pelo que daí que a palavra
certa não seja monopólio. Ou seja, se houver uma pluralidade de pessoas determináveis que tenham
esse domínio absoluto da situação, todas elas têm posição de garante; mas já não se poderá dizer que
esta é uma situação de monopólio.
➔ O exemplo dado é o de 4 pessoas, sozinhas na praia, com o mar completamente calmo e sem
ondulação – mas há uma pessoa desconhecida que se está a afogar. A única coisa que os agentes
têm de fazer é entrar na água e dar o braço à pessoa que se está a afogar para a salvar, sendo que
são os únicos que estão em posição de o fazer. Estes terão de agir? Serão punidos se não o fizerem?
Tais perguntas são importantes, dado que o problema de se afirmar a existência de um dever de
garante de alguém é que este acaba por limitar a liberdade da pessoa.
Fernanda Palma considera que o monopólio acidental – no sentido que são situações que surgem por
acaso – pode ou não ser fonte do dever de agir, consoante a possibilidade de ficcionar legitimamente
qualquer aceitação ou autovinculação do agente a um dever de evitar o resultado. Ou seja, só há, nas
situações de monopólio, um dever de garante quando se pode dizer que aquela pessoa aceitaria face
aquele perigo – se soubesse que ia ser posta perante aquele perigo.
➔ No exemplo dado anteriormente, Fernanda Palma já considera que não há um dever de garante,
porque não se pode ficcionar qualquer aceitação ou autovinculação do agente (as 4 pessoas) a um
dever de evitar a morte daquela pessoa – ou seja, o agente não podia contar com esta obrigação;
logo, apenas existe um crime de omissão de auxílio.
➔ Já no caso em que A acompanha B ao hotel para ter relações sexuais contratadas anteriormente,
e A tem um ataque cardíaco, já parece razoável imputar à omissão de B o resultado morte, pois
na relação anteriormente estabelecida contratual, há uma aceitação, ainda que implícita, da
responsabilidade pela vida do outro.
o Este último caso é inspirado no caso do EUA “People vs. BeardSley”, em que o agente passou
o fim de semana com uma mulher com quem não era casado, e durante esse período a mulher
ingeriu uma dose considerável de morfina, não tendo o agente chamado o médico para a
salvar. O agente, em primeira instância, foi condenado por voluntary manslaughter; no
entanto, no recurso, o Supremo Tribunal revogou a decisão, com fundamento na inexistência
de um dever legal de proteção e assistência.
Já André Lamas Leite considera que nestes casos ditos de monopólio, o verdadeiro fundamento
jurídico e pessoal do dever da ação reside na abissal desproporção entre o bem jurídico em perigo e
o esforço exigido ao omitente no decurso do processo salvador. Por isso, para este, os requisitos que
têm de estar preenchidos para existir uma situação de monopólio são: 1) estar em causa bens pessoais;
2) não existir outra fonte aplicável; 3) haver uma desproporção evidente entre o bem jurídico em
perigo e o esforço exigível ao omitente; 4) existir um carácter atual e iminente do perigo; 5) existir
uma proximidade física do agente em relação à vítima; 6) o agente não pode ter provocado o perigo;
7) existir uma razoabilidade da ordem jurídica exigida ao indivíduo, à luz da prevenção geral positiva,
que atue no sentido de evitar a lesão do bem jurídico.
Casos práticos
1. Uma rapariga, tendo ficado grávida, ocultou o facto a todos. Quando sentiu as dores do parto,
fechou-se no quarto da sua residência e não pediu a possível ajuda da sua mãe. Nascida a
criança, não laqueou o cordão umbilical, nem desobstruiu as vias respiratórias do recém-
nascido, o que ocasionou a sua morte. Quid Iuris?
Em primeiro lugar, é preciso saber se há ou não uma ação jurídico-penalmente relevante, algo
que parece haver, já que foi controlada pela vontade – e, mesmo que não se provasse que era
controlada, era pelo menos controlável.
Assim, está-se perante uma ação em sentido estrito ou uma omissão? Ora, na ação, o agente
cria ou aumenta um risco existente; enquanto na omissão, a pessoa não diminui o risco já existente.
Do ponto de vista do tipo de crime, o relevante é o facto da agente não ter ido ao hospital, não ter
chamado pela irmã, não ter laqueado o cordão umbilical e não ter desobstruído as vias respiratórias
do recém-nascido. Chega-se, assim, à conclusão de que houve uma omissão, dado a agente não ter
afastado o perigo existente.
Dito isto, a próxima preocupação é saber se há ou não especial dever de agir. O critério
aplicável neste caso seria o dever de assistência ao bebé por solidariedade natural entre mãe e filho,
apoiada no vínculo jurídico. Havendo este especial dever de agir, e não tendo ela agiu, poderá ser
punida pelo crime de infanticídio por omissão – sendo esta uma omissão impura porque, além de
estar causalmente relacionada com o resultado, a agente tem uma posição de garante que resulta da
solidariedade natural para com o titular de bens jurídicos, neste caso o seu filho. Poder-se-ia,
eventualmente, discutir aqui a aplicação do crime de homicídio privilegiado, com base na “compaixão
ou desespero”, especialmente no desespero de ser descoberta (artigo 133º CP).
2. D e E entram na casa de B. Porém, já lá dentro, dão de caras com este que, percebendo
imediatamente tratar-se de um assalto, dispara na direção de ambos com a arma que trazia
consigo, atingindo D no estômago. E, temendo ser o próximo a ser atingido, foge imediatamente.
B, não obstante ter reparado que D ficou em perigo de vida, decide não fazer nada para o ajudar,
com forma de vingar a tentativa de assalto. D acaba por morrer. Quid Iuris?
Partindo do pressuposto de que há legítima defesa, a discussão a ter aqui seria se existe um
comportamento perigoso ilícito. Nem toda a doutrina tem a mesma posição: uma parte defende que,
quando a ingerência é ilícita, o agente deixa de ter posição de garante; já outra parte defende que tal
posição não desaparece com a ilicitude. Além disso, outra fonte do dever de garante poderia ser a
situação de monopólio, dado B ser o único que estava na posição de salvar D, não se exigindo muito
dele para o fazer.
Já E, que fugiu, também poderia ser punido por crime de homicídio por omissão, por relação
de comunidade de perigo ou de vida (assumindo que E e D eram amigos).
Acórdão nº03P1677:
Neste caso, o relevante foi o agente não ter auxiliado a mãe, nomeadamente não ter levado a
mãe para um sítio onde esta pudesse ser cuidada. Ele deixou comida, mas que claramente não era boa
– 4 garrafas de leite Ucal e várias sandes.
Na decisão recorrida e na opinião que fez vencimento, a posição de garante foi deduzida e
construída (pois a posição de garante na comissão por omissão é um «real construído») muito a partir
do dever de prestar alimentos aos ascendentes, que é um dever jurídico com o sentido e a dimensão
que lhe assinala o artigo 2009º , nº1 , alínea b), do Código Civil (embora com modo de prestação
legalmente fixado – artigo 2005, do mesmo diploma), e da proximidade física do arguido em relação
à mãe («vivia com a mãe desde 1995, e era a única pessoa de família que vivia com a mãe»).
Provando-se que o arguido, antes da ausência, apenas forneceu à mãe «garrafas de leite com
chocolate e algumas sandes» , não se demonstra que este possuísse as qualidades e as capacidades
pessoais minimamente exigidas para prestar os cuidados de alimentação, tratamento e higiene
adequados a evitar o resultado (o concreto resultado, pois apenas esse é relevante na qualificação
aceite), ou seja, no caso, a morte.
Pergunta-se, no entanto, se o dever jurídico também incumbia aos outros dois filhos que,
vivendo na mesma cidade , «não se interessavam com o estado da mãe». Será que o facto de não
existir uma relação de proximidade enfraquecia a posição de garante do arguido? Bárbara Brito
defende que entre os irmãos e a mãe não existia qualquer relação de proximidade capaz de gerar o
dever jurídico de assistência – sendo que, no entanto, em certas situações, o dever de garante não
desaparece necessariamente por estar longe da pessoa. Contudo, se os irmãos sabiam da incapacidade
do irmão para cuidar da mãe, já se pode falar de dever de garante e de omissão impura de homicídio.
A omissão, sendo a abstenção de atuar, pode ser simples ou própria (a que se exprime por um
«comportamento negativo voluntário ou imprudente, ainda que não conduza a um resultado
material») ou comissiva ou imprópria (se materializada numa «abstenção que produz um resultado
material proibido - v.g. a morte provocada pela não alimentação de um filho de tenra idade»). A lei
penal refere que, quando o tipo compreende o chamado evento ou resultado (como por exemplo
acontece com a morte no homicídio), o facto abrange não só a ação como também a omissão
adequadas à sua produção. É o que estatui o art.º 10º, n.º 1, do CP. Ou seja, o que promana do preceito
citado é, por um lado, a equiparação da omissão à ação, e, por outro, que a ligação da conduta ao
resultado tem de ser vista em termos de causalidade adequada, de harmonia com a qual a causa de
determinado resultado é a que for adequada ou idónea para o produzir, segundo as máximas da
experiência e a normalidade do acontecer.
Sintetizando e concluindo, pode-se afirmar que se um comportamento omissivo provocar um certo
resultado típico é de considerá-lo, para efeitos penais, como se tivesse sido produzido por ação (ou
seja, se não fosse a omissão o resultado não se teria produzido).
➔ «A doutrina tradicional era, como se sabe, no sentido de que tal ocorreria quando a posição de
garante derivasse da lei, de um contrato ou de uma situação de ingerência, é dizer, de perigo para
bens jurídicos criados, ainda que não culposamente, pelo próprio omitente. Esta doutrina
fortemente restritiva encontra-se de algum modo em crise e à qual não é estranha, decerto, uma
muito mais afinada sensibilidade que hoje se possui para os valores e experiências de solidarismo
e da comunidade de vida.»
Dito isto, que inegavelmente responde de forma cabal à situação em análise, não se mostra
possível furtar o recorrente à responsabilidade penal tal como ela vem definida no acórdão posto em
crise. De harmonia com o exposto, acordam na Secção Criminal deste Supremo Tribunal de Justiça
em conceder parcial provimento ao recurso, condenando-se o arguido A, pela prática de um crime de
homicídio voluntário consumado, p. e p. pelo artigo 131º do CP, na pena de 10 anos de prisão.
TIPICIDADE
Introdução: Relação entre a tipicidade e a ilicitude
Para grande parte da doutrina, o tipo é o primeiro degrau valorativo na teoria do crime e, por
isso, o primeiro passo autónomo qualificativo da ação. Só depois se poderá negar (ou não) a ilicitude,
caso ocorra uma causa de exclusão da mesma.
Denota-se, no entanto, que Figueiredo Dias considera que esta construção do crime não é a
melhor, defendendo que a prioridade deve ser dada ao ilícito, concebido como ilícito típico ou tipo
de ilícito. Dito de outra forma, para este, o juízo essencial é o da ilicitude, e só por vantagem de
prática é que se trata da sua fundamentação positiva no tipo. Assim, para Figueiredo Dias, o tipo é a
fundamentação positiva da ilicitude.
Ou seja, este defende a teoria do ilícito pessoal, que se caracteriza fundamentalmente por situar os
elementos subjetivos do crime na ilicitude, considerando a tipicidade não como valoração autónoma
da ilicitude, mas como fundamentação positiva da ilicitude. No entanto, na prática, este continua a
achar que importa começar a análise da conduta por perceber esta preenche o tipo – apenas se fala
disto porque os elementos centrais do tipo de ilicitude são os subjetivos.
➔ Bárbara Brito defende que, com esta posição, Figueiredo Dias pretende chamar a atenção para a
ideia de que o juízo de desvalor mais relevante está no ilícito – até porque, na verdade, ele acaba
por, tal como a restante doutrina, começar por analisar se a conduta preenche o tipo indiciário da
ilicitude; e, ao fazer isso, está a dar autonomia ao tipo. A única diferença será, então, considerar
que esse tipo deve ser denominado de tipo ilícito.
Além disso, para Roxin, os elementos do crime são ação, tipo, antijuricidade, responsabilidade
(culpabilidade) e punibilidade. Ora, dentro da antijuricidade, Roxin estuda as denominadas causas de
exclusão da ilicitude: isto é, ele analisa a antijuricidade, averiguando ou não se estas existem no caso
concreto. A palavra “ilícito”, assim, designa a ação típica e antijuricidade – ou seja, Roxin reúne, no
conceito de ilícito, as categorias da ação, tipicidade e antijuricidade.
OBJETO DA AÇÃO:
Aqui, não se faz qualquer tipo de diferenciação. De notar, no entanto, que o objeto da ação é
sobre o qual incide/se realiza a ação típica. Ou seja, é o objeto do mundo exterior em relação ao qual
ou sobre o qual se realiza a ação típica (ex: crime de homicídio – o objeto é quem é morto).
BEM JURÍDICO:
O bem jurídico é tudo aquilo que satisfaça uma necessidade ou preferência. Assim, tendo em
conta a lesão deste bem jurídico, distinguem-se dois tipos de crime: os crimes de lesão ou de dano; e
os crimes de perigo. Os crimes de dano são aqueles que, para serem consumados, a lei exige a efetiva
lesão do bem jurídico (ex: crime de homicídio). Já os crimes de perigo não implicam a efetiva lesão
do bem jurídico, sendo que o perigo surge como fundamento da punição.
Dentro dos crimes de perigo, distingue-se os crimes de perigo abstrato e os crimes de perigo concreto.
Os crimes de perigo abstrato são aqueles onde, para o tipo estar preenchido, basta haver uma ação
adequada a produzir o crime – o perigo não é elemento do tipo, mas antes o motivo da proibição (ex:
omissão de auxílio). Já os crimes de perigo concreto são aqueles cuja consumação já exige que um
bem jurídico seja realmente colocado em perigo– sendo que perigo, em Direito Penal, é a
possibilidade ou probabilidade de lesão do bem jurídico (ex: artigo 138º – se uma mãe deixa a criança
à porta do orfanato, é preciso provar que a vida da criança correu efetivamente perigo para essa mãe
ser punida pelo crime consumado).
Destaca-se, ainda, a figura de crime abstrato concreto, onde não é necessária a criação de um
perigo em concreto para o tipo estar preenchido – ou seja, o legislador, no tipo, exige que haja uma
ação adequada abstratamente a produzir o perigo (ex: artigo 139º – crime de propaganda ao suicídio).
Esta figura é diferente da dos crimes de perigo abstrato, na medida em que o legislador exige mais do
que a ação ser abstratamente perigosa – esta tem de ser adequada a produzir o perigo.
RESULTADO:
O resultado é o evento espaço ou temporalmente separado da ação. Com base neste,
distinguem-se os crimes formais dos crimes materiais ou de resultado.
Os crimes formais são aqueles onde não é necessário verificar-se um certo resultado para que o tipo
fique preenchido – e, por isso, basta que se verifique uma certa conduta. Ora, se essa conduta se
traduzir numa ação em sentido estrito, denominam-se de “crimes formais por ação” ou “crimes de
mera atividade” (ex: crime de violação do domicílio, pois não se consegue separar o evento espaço-
temporalmente do resultado). Já num crime formal por omissão, está-se perante situações de omissão
pura – sendo o exemplo mais paradigmático o crime de omissão de auxílio: para este estar preenchido,
basta apenas não auxiliar, mas não é preciso mais nada para estar preenchido o tipo (nomeadamente,
não é preciso que a pessoa não auxiliada morra).
Já os crimes materiais ou de resultado são crimes que pressupõem a verificação de um certo resultado
para o tipo ficar preenchido. Tais crimes também podem ser praticados por ação – crimes materiais
por ação – ou por omissão – crimes comissivos por omissão, nomeadamente das omissões impuras.
Já no que toca ao momento da consumação, distinguem-se os crimes duradouros dos crimes
instantâneos. Os crimes duradouros são crimes cuja execução se prolonga interruptamente no tempo
(ex: crime de sequestro). Já nos crimes instantâneos, o tipo está preenchido e concluído com a
provocação de um determinado estado e, como tal, não são suscetíveis de se manterem no tempo (ex:
homicídio).
NOTA: Quanto ao elemento “resultado”, não se deve confundir “resultado” com “lesão de bem
jurídico” – isto, porque o resultado nem sempre se traduz na lesão de um bem jurídico, podendo
consistir na mera criação de um perigo para um bem jurídico (ex: a mãe que abandona a criança à
porta do convento – se a criança correr perigo de vida, esse perigo concreto para a vida é um
resultado). Além disso, também há crimes de lesão que não são crimes de resultado: por exemplo, no
crime de violação do domicílio, há a lesão do bem jurídico intimidade da vida privada – mas este não
é um crime de resultado, porque não é possível separar a ação de entrar em domicílio alheio do
resultado de entrar em domicílio alheio.
2. Teoria da adequação:
No entanto, a teoria da conditio não é suficiente para determinar se se deve atribuir
determinado resultado à conduta do agente, uma vez que haverá casos em que há causalidade; mas
em que não deve haver imputação objetiva.
Por exemplo, no caso em que A dispara sobre B, mas B não morre e vai para o hospital. Neste, é
sujeito a uma operação, e devido a um erro de negligência médica por parte do médico, ele morre no
bloco operatório. Neste caso, de acordo com a teoria da conditio, haveria imputação objetiva da morte
de B a A, porque se se eliminar a ação do mesmo, B não morreria – no entanto, tal não faz sentido, a
nível do senso comum. Ora, para corrigir estes “excessos” da teoria da conditio, surgiram várias
teorias, sendo uma delas a teoria da adequação.
De acordo com a teoria da adequação, na sua formulação mais corrente, para se poder imputar
o resultado à conduta do agente, coloca-se um homem conhecedor das leis causais do momento, e fiel
ao direito (médio), na posição do agente – o que significa que se o agente tiver conhecimentos
especiais, o homem médio também os vai ter; e vice-versa. Depois, pergunta-se ao mesmo se ele
podia prever aquele resultado, segundo aquele processo causal: juízo de prognose póstuma, feito no
momento do julgamento, mas ex ante – ou seja, relativamente ao momento em que o agente atuou.
➔ Por exemplo, nos anos 60/70, um conjunto de mulheres grávidas, que tinham certam perturbações
nervosas, tomaram um medicamento que continha talidomida, uma substância tipicamente
prescrita para quem sofria dessas perturbações. No entanto, quando elas deram à luz, descobriu-
se que, devido medicamento, os bebés nasciam com malformações. A dúvida que se colocou, na
altura, foi se se podia atribuir essas malformações ao médico que prescreveu o medicamento.
➔ Ora, o médico médio, colocado na posição do médico que prescreveu, conseguia prever aquele
resultado? Não. O médico médio, para efeitos da análise, só estará munido dos conhecimentos
que existiam na altura em que fez a prescrição, dado ter este carácter ex ante. Assim, se só depois
é que se percebeu esta consequência, não era previsível, para o homem médio, nem aquele
resultado nem aquele processo causal.
o No entanto, de acordo com a teoria da conditio, haveria causalidade: se se retirasse o
medicamento, não haveria aquele resultado. Contudo, apesar de existir esta relação causal,
não se pode imputar o resultado à conduta do médico, pela razão exposta.
No entanto, também a teoria da adequação não consegue resolver, de forma satisfatória, alguns
casos – e, por isso, a doutrina criou uma terceira teoria: a “moderna teoria da imputação objetiva” ou
“teoria do risco”.
NOTA: Analisando o artigo 10º, nº1 CP, o conceito “adequada” poderá ter o objetivo de chamar à
atenção que, em Direito Penal, não basta causalidade – é, ainda, preciso adequação. Isto não significa
necessariamente adotar a teoria da adequação: tal conceito indeterminado pode ser preenchido tanto
pela teoria da causalidade e da adequação, como pela teoria do risco.
3. Teoria do risco:
De acordo com a teoria do risco, o resultado pode ser imputado à conduta do agente quando
ele cria, aumenta ou não diminui um risco proibido, e esse risco se concretiza no resultado. Bárbara
Brito acrescenta a esta definição: “havendo conexão entre o risco criado e o resultado produzido”.
Relativamente aos casos de diminuição do risco, estas são situações em que o agente intervém
num processo causal em curso, reduzindo ou atenuando o risco a que está sujeito o bem jurídico. Ora,
aplicando a fórmula da teoria do risco, nestes casos não haverá imputação objetiva porque o agente
diminuiu o risco para o bem jurídico tutelado pela norma – isto, porque seria absurdo proibir ações
que não pioram, mas, pelo contrário, melhoram o estado do bem jurídico protegido.
Por exemplo, A aponta uma pistola a B, e C, que está próximo, dá um empurrão ao A no braço,
fazendo com que a bala acerte no pé de B, em vez de no seu coração. Ora, de acordo com as teorias
da conditio e da adequação, há causalidade entre a ação de C e o resultado; mas, de acordo com a
teoria do risco, já não pode haver imputabilidade objetiva, porque C não criou ou aumentou um risco
para o bem jurídico protegido – nomeadamente, a vida de B.
➔ De notar que, para Figueiredo Dias, aqui nem seria preciso chegar ao ponto da imputação
objetiva: ele defende que estas ações podem ser consideradas ações de salvamento, destinadas a
evitar um mal maior – e, por isso, à luz do conceito social da ação, não seriam ações jurídico-
penalmente relevantes.
Relativamente aos casos de risco permitido ou casos de criação de um risco que não é
juridicamente desaprovado, estes são situações em que há uma conduta adequada a produzir o
resultado – só que esse resultado não deve ser imputado ao agente, porque a conduta que ele praticou
não é proibida. Esta pode ser lícita ou 1) porque o agente atuou dentro dos limites que a lei impõe,
existindo uma disciplina jurídica da atividade praticada pelo agente, que este respeita; ou 2) porque a
ação ocorre dentro do âmbito de uma atividade social, regulada por regras de cuidado – isto é, a
normalidade do risco é aferida de acordo com juízos acerca da idoneidade geral do comportamento.
Um exemplo disto seriam todas as condutas praticadas no âmbito de um desporto perigoso, como um
jogo de boxe, onde os jogadores sofrem ofensas à integridade física – ora, se os jogadores cumprirem
as regras do desposto, não criam nenhum risco proibido e, por isso, apesar de a sua conduta ter
causado ofensas de acordo com a teoria de conditio e a teoria de adequação, não há imputação
objetiva, porque o risco criado é permitido.
Outro exemplo seria o caso do sobrinho que oferece um bilhete à tia na pior companhia de avião do
mundo, na esperança de que o avião caia – e o avião cai. De acordo com a teoria de conditio e da
adequação, ele iria ser culpado; mas, de acordo com a teoria do risco, não poderia haver imputação
objetiva, pois oferecer bilhetes na pior companhia do mundo é uma ação lícita.
Relativamente aos casos de comportamento lícito alternativo, estes são situações já não são
solucionados pela fórmula da teoria do risco que foi dada inicialmente, mas sim à luz de critérios
complementares da teoria do risco. São, assim, casos em que é possível afastar a imputação objetiva
do resultado à conduta do agente porque se o agente tivesse atuado licitamente, isto é, se ele tivesse
cumprido todas as regras que disciplinam a sua conduta, mesmo assim o resultado ter-se-ia produzido
nas mesmas circunstâncias de tempo, modo e lugar. Ou seja, nestas situações, será injusto punir o
comportamento do agente porque o seu comportamento foi irrelevante para o processo causal que
conduziu ao resultado.
➔ Durante algum tempo, a maior parte da doutrina defendeu que este critério só devia ser aplicado
no caso de crimes negligentes; no entanto, atualmente, entende-se que este deve aplicar mesmo
no caso de crimes dolosos.
Um exemplo paradigmático disto é o caso de um gerente de uma fábrica de pincéis que, para o fabrico
dos mesmos, usava pelos de cabra chineses, que tinham de passar por um processo de desinfeção.
Ora, uma das vezes, tal processo não é feito, e alguns dos trabalhadores da fábrica apanharam uma
bactéria e morreram. No entanto, veio-se a provar em tribunal que, mesmo que o gerente tivesse
passado os pelos de cabra pelo processo de desinfeção, aquela bactéria não teria morrido, porque
ainda era desconhecida pela ciência. Ora, em última análise, de acordo com a teoria da conditio, este
caso resolver-se-ia, porque se se eliminasse a conduta, o resultado subsistiria – e, portanto, significa
que a conduta não foi causal.
➔ Isto não é dar relevância à causa virtual negativa, onde já existem duas causas a funcionar: a real
e a virtual. Neste critério, não existem duas causas a funcionar: o que se faz é um juízo hipotético
– caso o agente tivesse atuado diligentemente, o resultado ter-se-ia verificado nas mesmas
circunstâncias?
o Por exemplo, A dispara sobre B e B morre; mas na autopsia demonstra-se que B sofria de um
cancro em estado avançado e provavelmente viria a morrer. Neste caso, a causa virtual não
tem relevância no Direito Penal e, portanto, A seria punido: não é pelo facto de a pessoa ir
morrer por um cancro daí a um mês (causa virtual), que não se pune A (causa real). Já na
situação em que alguém, mesmo que conduzisse de forma diligente e não de forma dolosa,
iria acabar por atropelar a vítima, já só existe uma causa – não podendo o agente ser punido.
Denota-se que Roxin defende que, para se aplicar este critério, a resposta quanto ao carácter inevitável
do resultado tem de ser segura e concludente, não bastando provar que era provável que o
comportamento adequado não evitaria o resultado. Nestas hipóteses, não há razão nenhuma para se
libertar o autor do risco, porque ele ultrapassou o risco e esse risco concretizou-se no resultado. O
exemplo que Roxin invoca é o do ciclista embriagado: num caso em que um camionista não respeitou
a distância de vida quando ultrapassa um ultrapassou, e o ciclista bêbado morre, fica a dúvida de saber
se, mesmo que o camionista tivesse obedecido às regras de distância de vida, o resultado ter-se-ia
produzido – sendo a resposta foi, em tribunal, que “era provável”. Já Herzberg vem dizer que, nos
casos de dúvida razoável – isto é, numa dúvida de facto sobre o que podia ter acontecido e que será
objeto de prova em processo penal –, terá de se aplicar o princípio in dúbio pro reo: havendo uma
dúvida de facto, decide-se a favor do réu. Assim, nos casos em que não há uma concretização
comprovada, não deve haver uma imputação objetiva.
Silva Dias vem, por sua vez, discutir outra situação. Imagine-se, por exemplo, que A se atira do 10º
andar, e o B, que está no 3º andar a limpar a caçadeira com a janela aberta, sem querer, dispara e
acerta no A, matando-o antes deste chegar ao chão. Ora, neste caso, a causal virtual (morrer no
embate) não ocorreu, pelo que há imputação objetiva ao B. No entanto, Silva Dias não concorda: para
ele, nestes casos, haverá uma substituição do risco em que a causa real atuou (o tiro), mas que apenas
mudou o “como” e não o “se” e o “quando” do resultado – e, por isso, tal como no comportamento
lícito alternativo, a sua conduta não acrescenta nada à lesão do bem jurídico vida. Já Fernanda Palma
considera que se não se imputar o resultado a A, estar-se-á a atribuir relevância à causa virtual – por
isso, nestes casos, a imputação objetiva estará justificada à luz do princípio da legalidade, dado haver
uma correspondência entre a ação do atirador e a ação descrita no tipo de crime.
Relativamente aos casos em que o resultado produzido cai fora do âmbito do fim da proteção
da norma, estes são situações em que não deve haver imputação objetiva visto que o resultado
produzido não é nenhum daqueles que a norma visou salvaguardar ou evitar, ao proibir esse
comportamento. Ou seja, o agente não criou um risco que a norma infringida tenha prevenido.
Por exemplo, estando dois ciclistas um atrás do outro à noite, numa estrada que não está eliminada,
um deles é atropelado por um terceiro ciclista vindo do outro lado, quando se aproximavam de uma
curva. Será que se pode atribuir a morte do terceiro ciclista ao ciclista que vinha atrás, dado que este
também não tinha a luz acesa? De acordo com este critério, a norma que exige que os ciclistas
circulem com uma luz acesa só visa evitar os riscos diretos que advém da violação dessa norma – e,
portanto, só o ciclista da frente podia ser punido pelo crime de homicídio; mas não o ciclista de trás,
dado que o resultado não advém diretamente da sua conduta, não sendo um resultado que a norma
visa evitar – logo não faz sentido imputar.
Outro exemplo será o do condutor A que tentou ultrapassou o condutor B perto de uma passadeira;
mas no decurso da manobra, B vira à esquerda e embate em A, que já se encontrava na outra faixa.
Deste acidente, resulta a morte de C, acompanhante de B. Veio-se a provar em tribunal que A ia a 80
km/h invés dos 50 exigidos; mas essa exigência devia-se ao facto de haver um sinal de aproximação
de travessia de peões. Logo, não tendo o acidente a ver com a travessia de peões e a violação dessa
norma quanto a essa travessia, absolve-se A, pois o resultado morte não é um dos resultados que tal
norma visava proteger. Pelo contrário, o resultado poderá ser atribuído a B, dado este ter feito uma
ultrapassagem sem avisar.
➔ No entanto, Fernanda Palma considera que, aqui, a teoria do risco tende a não resolver bem: esta
iria imputar objetivamente o resultado à conduta de A, visto que este criou um risco que se
concretizou no resultado. Só que a teoria do risco terá de ter em conta, no critério de “o agente
criou um risco”, a previsibilidade subjetiva do subjetivo: o risco que A criou é apenas um
arranhão, não sendo passível de se concretizar no resultado morte – assim, não há conexão entre
o risco criado e o resultado obtido.
Bárbara Brito também não vê desvantagens em passar pelos três patamares. A título de exemplo, se
se está perante uma situação em que houve a criação de um risco, é possível dizer que o indivíduo
criou um risco lícito – logo, não há imputação objetiva à luz da teoria do risco. Tal não impede dizer
que a ação foi causa do resultado (pois eliminada a ação, o resulto desparece tal como se produziu
nas circunstâncias); mas apenas diz que há que afastar a imputação objetiva, porque não há criação
de um risco não permitido. A teoria do risco consegue, então, resolver casos que as outras teorias não
conseguem de forma correta – pelo que o mais correto será aplicar as três teorias.
O professor Paulo Sousa Mendes, por sua vez, defende que se devia trazer para a causalidade
penal duas fórmulas lógicas.
A primeira fórmula, trazida por Hart, chama-se INUS: Insufficient but necessary part of a
condition which it’s itself unnecessary but sufficient (“Insuficiente, mas não redundante parte de
uma desnecessária, mas suficiente condição”). Para este, esta fórmula vai permitir excluir da cadeia
causal aqueles elementos que contribuíram para o aspeto, mas não para a ocorrência e gravidade, do
resultado concreto. No entanto, Bárbara Brito critica tal ideia, visto que uma parte da teoria conditio
também faz este juízo hipotético, percebendo se o resultado, eliminando a ação, subsiste nas mesmas
circunstâncias de tempo, modo e lugar – ou seja, já consegue excluir da cadeira causal tais elementos.
A segunda fórmula, trazida por Puppe, chama-se NESS: Necessary element of a sufficient set.
Segundo esta, se várias ações podem ser pensadas alternativamente, mas não cumulativamente, sem
que o resultado seja anulado, cada ação é causal. No entanto, Bárbara Brito, não vê a necessidade
desta fórmula, porque, mais uma vez, a teoria da conditio consegue responder à causalidade de forma
eficaz – podendo ser aplicada em casos m que há mais do que uma ação causal, sendo individualmente
formulado o juízo hipotético perante cada ação.
Concluindo, estas fórmulas tentam, em última análise, prescindir do juízo de necessidade, o que leva
a respostas sem segurança – e, portanto, é necessário continuar a persistir nas teorias anteriormente
faladas, utilizadas atualmente.
Em conjugação com estas fórmulas lógicas de causalidade, há uma linha de pensamento que
tenta resolver o problema subjacente à causalidade através da verificação da contrafactualidade: isto
é, parte do raciocínio em que se faz uma conjetura lógica sobre o que aconteceria se os factos reais
não tivessem acontecido. No entanto, isso é exatamente o que a teoria da conditio faz, partindo
daquele juízo hipotético e eliminando a conduta para ver se o resultado ainda se verificaria.
Por fim, fala-se ainda da figura de crime agravado pelo resultado (artigo 18º CP), que são
aqueles tipos cuja pena aplicável é agravada em função de um resultado que derivou da realização do
tipo fundamental. Por exemplo, A dá uma bofetada a B, e B cai com a cabeça no bico da cómoda e
morre. Ora, para fazer a tal agravação pelo resultado, é preciso conseguir imputar o resultado mais
grave ao agente – o que implica que haja, pelo menos, negligência em relação ao resultado mais grave.
Assim, se A estivesse num quarto mínimo, onde sabia que a probabilidade de B bater com a cabeça
na cómoda é grande, então poderia ter previsto esse resultado – logo, coloca-se a pessoa média no
lugar do agente para saber se é possível aquele resultado, segundo aquele processo causal.
De notar que da previsibilidade do resultado mais grave depende, também, a imputação objetiva – e
para isso é necessário passar pelas três teorias. O fundamental é que não pode deixar de haver
negligência – sendo que para uma parte da doutrina, é indiferente ser negligência consciente ou
inconsciente (Cavaleiro Ferreira e Bárbara Brito), enquanto outra parte considera que é necessário
ser consciente (Helena Moniz).
Casos práticos
1. João e Luís tiveram uma rixa. No dia seguinte, João, apanhando o Luís distraído, desferiu-lhe
uma facada nas costas. Luís foi transportado ao hospital. Apesar da gravidade mortal das lesões
causadas pela facada, Luís morreu em consequência de um traumatismo craniano resultante do
embate da ambulância com um camião. Esta colisão foi causada pelo facto de o condutor do
camião, além da velocidade excessiva, não ter respeitado o sinal vermelho. Fundamentadamente,
diga a quem deve ser objetivamente imputada a morte de Luís.
Relativamente ao João, segundo a teoria da conditio, existe uma causalidade natural entre a
sua conduta e a morte de Luís: se se eliminar essa conduta, o resultado desaparece tal e qual como se
produziu, nas mesmas circunstâncias de modo, tempo e lugar – juízo hipotético.
Já de acordo com a teoria da causalidade adequada, é necessário fazer o juízo de prognose póstuma:
ou seja, é necessário colocar o homem médio na posição do João, dotado com os especiais
conhecimentos que este tinha na altura, e perguntar-lhe se ele poderia prever o resultado. Ora, apesar
de João, abstratamente, poder prever esse resultado, ele não conseguiria prever que tal resultado se
iria realizar segundo aquele processo causal. Significa isto que já não haveria, aqui, imputação do
resultado (morte por acidente) à conduta do agente (facada nas costas).
Além disso, de acordo com a teoria do risco, o João criou um risco proibido, mas esse risco não se
concretizou no resultado – conexão entre o risco criado e o resultado obtido –, porque, entretanto,
houve uma interrupção no processo causal, com o comportamento de um camionista. Portanto, não
foi o risco proibido que João criou (facada) que se materializou no resultado (morte).
Assim, o resultado “morte de Luís” não poderia ser imputado objetivamente ao João. João poderia
apenas ser punido por tentativa de crime de homicídio, sendo que só há tentativa deste crime quando
ou não há resultado; ou, apesar de haver resultado, não há imputação objetiva.
Relativamente ao camionista, segundo a teoria da conditio, existe uma causalidade natural
entre a sua conduta e a morte de Luís: se se eliminar mentalmente a conduta de violar o sinal vermelho
e andar a uma velocidade acima do limite legal, o resultado de embater na ambulância e provocar a
morte desaparece tal e qual como se produziu, nas mesmas circunstâncias de modo, tempo e lugar –
juízo hipotético.
Já segundo a teoria da causalidade adequada, é necessário fazer o juízo de prognose póstuma: ou seja,
é necessário colocar o homem médio na posição do camionista, dotado com os especiais
conhecimentos que este tinha na altura, e perguntar-lhe se ele poderia prever o resultado segundo
aquele processo causal. Neste caso, a resposta a tal pergunta seria que tal previsão seria possível.
Por fim, de acordo com a teoria do risco, o camionista criou um risco proibido ao violar as regras de
condução, tendo sido o resultado “morte de Luís” uma concretização desse risco – ou seja, existe uma
conexão entre os dois: a morte de Luís foi devido ao embate, em nada afetando o facto de ele ter o
facto acrescido de estar aleijado.
Assim, este poderia ser imputado objetivamente pela morte, sendo punido por homicídio negligente.
2. O 112 recebeu uma chamada pedindo ajuda para combater um incêndio num lar de idosos.
Chegados ao local, os bombeiros dividiram os esforços entre controlar as chamas e a evacuação
dos 5 idosos aí residentes. Abílio foi incumbido de evacuar quem estivesse no rés-do-chão. Como
já passava da hora de jantar, apenas um idoso se encontrava na cozinha, local onde o incêndio
tinha deflagrado. Este idoso, de nome Bento, estava com graves dificuldades respiratórias, mas
ainda semiconsciente. O bombeiro Abílio pensou que a forma mais rápida e porventura única de
o salvar era fazê-lo passar para o exterior pela janela da cozinha, uma vez que a qualquer
momento se podia dar uma explosão, e pôr em risco a vida dos dois. Assim, na aflição de salvar
Bento, Abílio atira-o rapidamente, vindo o idoso, com a queda, a sofrer uma fratura na perna, e
escapando ileso ao incêndio. Diga, fundamentando, se a fratura da perna deve ser juridico-
penalmente imputada à conduta do bombeiro Abílio.
Relativamente ao Abílio, segundo a teoria da conditio, existe uma causalidade natural entre a
sua conduta e a fratura da perna: se se eliminar mentalmente a conduta de atirar Bento da janela, o
resultado de Bento sofrer uma fratura na perna desaparece tal e qual como se produziu, nas mesmas
circunstâncias de modo, tempo e lugar – juízo hipotético.
Já segundo a teoria da causalidade adequada, é necessário fazer o juízo de prognose póstuma:
ou seja, é necessário colocar o homem médio na posição do bombeiro, dotado com os especiais
conhecimentos que este tinha na altura, e perguntar-lhe se ele poderia prever o resultado segundo
aquele processo causal. Neste caso, a resposta a tal pergunta seria que tal previsão seria possível.
Por fim, de acordo com a teoria do risco, o bombeiro diminuiu o risco já existente, na medida
em que incorreu numa ação de salvamento – sendo que estas, segundo o professor Figueiredo Dias,
nem são ações jurídico-penalmente relevante. De qualquer das formas, o bombeiro não criou um risco
proibido; pelo contrário, tentou salvar uma pessoa – ou seja, criou um risco permitido, e diminuiu o
risco à vida de Bento. Conclui-se, assim, que a fratura da perna não pode ser imputada objetivamente
à conduta do bombeiro Abílio.
➔ NOTA: Os bens jurídicos aqui em causa não são bem separados, porque a vida pressupõe a
integridade física – de qualquer das formas, o bombeiro procurou proteger a lesão de um bem
jurídico superior, pelo que tal discussão aqui é insignificante.
3. No dia de Ano Novo, Alberto regressava ao Porto, circulando na A1 a 150 km/h, quando foi
subitamente surpreendido pelo peão João, que atravessava a faixa de rodagem a pé. Incapaz de
travar a tempo, Alberto atropelou João, que sofreu morte imediata. Com devida fundamentação,
diga se a morte de João pode ou não ser objetivamente imputada à conduta de Alberto.
Relativamente ao Alberto, segundo a teoria da conditio, existe uma causalidade natural entre
a sua conduta e a morte de João: se se eliminar mentalmente a conduta de andar a uma velocidade
acima do limite legal, o resultado de João morrer de atropelamento desaparece tal e qual como se
produziu, nas mesmas circunstâncias de modo, tempo e lugar – juízo hipotético.
Já de acordo com a teoria da causalidade adequada, é necessário fazer o juízo de prognose
póstuma: ou seja, é necessário colocar o homem médio na posição do Alberto, dotado com os
especiais conhecimentos que este tinha na altura, e perguntar-lhe se ele poderia prever o resultado.
Ora, defende-se aqui que Alberto não poderia prever esse resultado tal qual como se verificou – ou
seja, não poderia prever que a sua conduta resultaria na morte de um peão, mas apenas na morte de
outros condutores, dado estar a conduzir numa autoestrada. Significa isto que já não haveria, aqui,
imputação do resultado à conduta do agente.
Além disso, de acordo com a teoria do risco, o Alberto criou um risco proibido, que contribuiu
para a morte de João. No entanto, este não é um resultado que cai no âmbito da proteção da norma.
Neste sentido, o Código da Estrada determina como sendo proibida a condução a mais de 120 km/h
na autoestrada, não para prevenir o atropelamentos de peões, mas antes para proteger aqueles que
circulam, de forma legal, na autoestrada – nomeadamente, os ocupantes de outros veículos que
circulam na via rápida. Consequentemente, não deve haver imputação objetiva porque o resultado
produzido não é nenhum daqueles que a norma visou salvaguardar ou evitar ao punir determinado
comportamento – podendo vir Alberto a ser punido, no entanto, pelo crime de condução perigosa.
4. Na autoestrada Lisboa-Porto, António lançou uma pedra sob um automóvel conduzido por Bento.
Bento, atingido no rosto por fragmentos do vidro para-brisas, guinou subitamente, embatendo
num automóvel conduzido por Carlota. Em consequência dos factos descritos, a Carlota foi
conduzida ao hospital, onde viria a falecer, por não ter sido sujeita a uma intervenção cirúrgica,
a. Uma vez que o único médico em serviço estava embriagado.
b. Por os médicos estarem em greve.
Provou-se que, se a intervenção tivesse sido levada a cabo, se teria salvo Carlota. Bento, por
seu turno, sofreu ferimentos graves e foi-lhe extraído um rim. Provou-se que Bento conduzia na
ocasião do acidente, com taxa de 0.8gl no sangue.
Entretanto, António veio a confessar ter lançado ter a pedra, mas nunca pensou que ela pudesse
quebrar o vidro do automóvel, e provocar ferimentos a alguém.
4.1. Bento praticou ou não alguma ação juridico-penalmente relevante?
Para que Bento tivesse praticado uma ação jurídico-penalmente relevante, esta tinha de ser
controlada ou controlável pelo mesmo. Ora, o facto de ter os 0.8 gramas no sangue não muda o facto
de a ação de guinar o volante ser um ato automático (e não reflexo) – ou seja, que não é igual a todos
os seres humanos, mas que é caracterizado pela impossibilidade de controlo por parte da pessoa que
o faz. Ou seja, por norma, no ato voluntário não há controlo, porque não há a possibilidade de prever
a realização do ato que leva à realização do resultado.
No entanto, há uma parte da doutrina (Roxin) que considera que como o ato automático é uma resposta
que varia consoante a pessoa, não deixa de ser uma ação pessoal – uma exteriorização da
personalidade da pessoa – e que, por isso, será considerada como uma ação jurídico-penalmente
relevante. No entanto, de acordo com Bárbara Brito, a pessoa que faz este ato automático não tem
consciência dos chamados sinais objetivos de perigo: ou seja, dos fatores relacionados com a ação e
o seu resultado. Assim, ao não ter tal consciência, não pode aceder às partes do cérebro que preveem,
pelo que não pode representar a ação nem as consequências que dela advém – logo, continua a não
tem a capacidade de controlo da ação.
A ação jurídico-penalmente relevante pode resultar de uma visão global do comportamento
do agente que, muitas vezes, tem várias ações que são vistas como uma só. Neste caso, a ação que
interessa é a ação de guinar o volante, e não o facto de o agente conduzir com 0.8 gramas de álcool
no sangue – isto, porque sendo a primeira ação um ato automático, o agente não teria capacidade de
a controlar independentemente do grau de alcoolemia que tivesse. Consequentemente, neste caso,
como a ação que interessa não é uma ação jurídico-penalmente relevante, Bento não cometeu nenhum
crime. Tal conclusão já seria diferente se, por exemplo, este atingisse o grau de alcoolemia necessário
ao crime de conduzir embriagado (artigo 292º CP).
DOLO:
Existe dolo quando há conhecimento e vontade da realização do facto típico. Denota-se que
atualmente, há várias conceções quanto ao conteúdo exato do dolo, desde logo porque partem de
visões diferentes do direito penal. Por exemplo, Bárbara Brito defende a conceção funcional-racional,
que não deixa de basear, sempre que possível, os conceitos em dados ontológicos firmes.
Há ainda quem defenda, partindo de razões meramente preventivas, um afastamento do dolo da
representação ou do conhecimento do facto típico e da intenção de realizar o facto típico. Ou seja, há
certos autores que, como consideram que há uma necessidade de antecipar a proteção dos bens
jurídicos, através de uma lógica preventiva – o que pode levar a pôr de parte um direito penal baseado
na culpa –, afastam o dolo dos seus elementos constitutivos, nomeadamente: 1) o conhecimento da
realização do facto típico; e 2) a intenção ou vontade de realizar o facto típico.
No entanto, estes autores acabam por não defender um dolo definido por estes seus elementos; mas,
pelo contrário, defendem que pode haver dolo, mesmo havendo desconhecimento do facto típico – e
bastando haver um conhecimento do risco. Ou seja, o dolo passaria a estar ligado ao risco do
resultado, e não ao núcleo do ilícito.
4. Bárbara Brito não concorda porque, para já, o ordenamento jurídico português não permite tal
definição, ao abrigo do princípio da tipicidade – artigo 14º CP: é necessário “representar o facto
que preenche o tipo de crime”. Além disso, ao deslocar o conhecimento do resultado para o risco,
transformam-se os crimes de resultado em crimes de risco – ora, estes já existem para quando o
legislador quer, ele próprio, antecipar a tutela dos bens jurídicos, pelo que não faz sentido aplicar
esta lógica a situações em que o legislador não fez essa escolha possível.
Há também quem (Amscombe) opte por explicar o comportamento doloso segundo uma lógica
linguística não meramente privada e, por isso, universalizada. Assim, o comportamento doloso é
aquele a que é aplicável, com êxito, uma questão do “porquê?”. A pergunta do que é intencional não
conduz a uma delimitação restritiva da intencionalidade, mas implica a apreensão dos sentidos
comuns do agir – e, por isso, impedem a redução da intencionalidade a estados privados de
consciência dificilmente acessíveis. Em última análise, quem defende esta visão do dolo parece
afastar a filosofia da ação da psicologia da consciência.
➔ A crítica que Bárbara Brito faz é que isto pode levar a uma objetivação jurídica do
comportamento humano, contribuindo para um Direito Penal afastado da culpa em concreto. Se
se conseguir utilizar a filosofia da linguagem para permitir uma espécie de racionalização do agir
intencional sem fugir do elemento subjetivo em concreto do sujeito, então já se poderá ter em
conta a tal filosofia da ação ligada à filosofia da linguagem.
Dito de uma forma mais simples, uma das questões mais complicadas da teoria do dolo é se a
decisão criminosa é um estado psicológico vivido, ou uma mera descrição do significado social do
comportamento. Quem defende esta última ideia, já não está tão preocupado com o poder do sujeito,
mas sim com a descrição do significado social daquele comportamento.
Como se irá perceber, para se chegar à conclusão de que há uma decisão criminosa enquanto estado
mental do indivíduo, não se pode fugir de uma certa linguagem social do comportamento. Assim,
apesar de não se deve afastar nunca o dolo da sua base ontológica, isso não implica que, para descrever
o dolo, não se tenha de utilizar a gramática – e, por isso, há uma descrição do estado psicológico
daquele comportamento. O comportamento humano que o Direito Penal estuda é uma realidade
complexa, em que existem comportamentos exteriores que revelem certos estados do sujeito. Assim,
quando se analisa o tipo subjetivo do crime, não se pode aceder a esses estados mentais; mas, através
dos conhecimentos que existem, é possível chegar o mais próximo possível do que a pessoa pensou.
Daí que a identificação dos estados mentais não deixe de ser um problema linguístico; mas o facto de
também o ser não deve implicar o tentar comprovar a sua existência ontológica.
De qualquer das formas, o legislador chegou a uma definição de dolo, que se traduz no
conhecimento e vontade da realização do tipo objetivo do crime. É por isso que a doutrina, para
facilitar a descrição do dolo, diz que este é composto por dois elementos: 1) o elemento intelectual
ou cognitivo, que se traduz na representação do facto típico; e 2) o elemento volitivo, que consiste na
vontade de realizar o facto típico.
Figueiredo Dias acrescenta que, para além destes dois elementos, há um terceiro elemento: o
elemento emocional – isto é, para haver dolo, é ainda necessário existir uma certa consciência ética,
que permita ao agente resolver o problema da ilicitude do seu comportamento. Dito de outra forma,
este traduz-se numa atitude pessoal do agente face à violação da norma jurídica.
Bárbara Brito está de acordo com a doutrina maioritária, que considera que esta atitude do agente
face à norma jurídica é um elemento comum não só ao dolo, como também à negligência – não sendo,
no entanto, igual nos dois casos. Ou seja, o facto de ser um elemento comum apenas significa que
para grande parte da doutrina, todas as relações do sujeito com a norma jurídica – e o ordenamento
jurídico – devem ser analisadas na culpa, não no tipo. Isto, visto que o que decide que parte da
realidade vai ser analisada são os conceitos de que se parte, de um certo conceito de tipo. Por isso,
esta relação deve ser tida em conta na culpa, e não enquanto elemento autónomo do dolo – como diz
Figueiredo Dias, que estuda o mesmo no tipo.
➔ A imputabilidade enquanto causa de exclusão da culpa é precisamente esta ideia que a relação do
sujeito com o Direito deve ser tida em conta na culpa, e não no dolo – isto, porque um inimputável
pode agir com dolo. A atitude do sujeito face à norma jurídica é mais grave no dolo que na
negligência, o que indicia que a pena do dolo deve ser mais pesada (uma diferença abissal).
Elemento intelectual
Independentemente da posição doutrinária (incluindo Fernanda Palma, que tem alguma
dificuldade em aceitar esta decomposição do dolo de acordo com a doutrina tradicional), não se pode
negar o elemento intelectual. Por um lado, dado que este está previsto pela lei – princípio da
legalidade. Por outro lado, e de acordo com Bárbara Brito, porque tendo em conta a neurociência e
a psicologia cognitiva, a tal necessidade de provar o controlo da ação passa pela previsão do facto
que se vai realizar. Portanto, é algo que decorre das ciências cognitivas, que estudam o
comportamento humano – e o facto de se fazer uma análise com base nessas ciências não significa
que não se pode, também, aplicar uma lógica da linguagem para, eventualmente, descrever esses
elementos subjetivos. Estas ideias não são duas visões diferentes do elemento subjetivo,
complementam-se e devem complementar-se.
O elemento intelectual pressupõe que haja uma representação dos elementos essenciais da
factualidade típica, ou seja, que haja um conhecimento ou consciência dos elementos objetivos do
tipo. Esse conhecimento tem de ser atual e efetivo: isto é, no momento da ação, a pessoa tem de ter
consciência daqueles elementos – sendo que, para certos elementos, basta uma consciência difusa,
não absoluta, mas essencial. Por fim, tem de haver, ainda, uma representação concreta do risco e do
resultado inerente ao risco – por exemplo, quando se está a conduzir, consegue-se perceber que o ato
de conduzir é um risco; mas normalmente não se associa um resultado a esse risco.
Isto é importante porque, por vezes, há situações de erro. Normalmente, a doutrina define erro
como “discrepância entre a representação do autor e a realidade”; mas também se pode definir erro
quando o autor não conhece a realidade – ou seja, quando há uma total falta de conhecimento. Assim,
se houver um erro, exclui-se o dolo, de acordo com o artigo 16º, nº1 CP.
➔ Figueiredo Dias, por sua vez, diz que nem se pode afirmar que se exclui o dolo, porque se houver
essa tal discrepância ou falta de conhecimento, o dolo nem sequer se chegou a formar.
No entanto, para se perceber as consequências do erro – e não apenas do erro em geral –, por norma,
a doutrina maioritária distingue vários tipos de erro consoante o elemento sobre qual ele incide.
4. Erro sobre proibições cujo conhecimento for razoavelmente indispensável para que o agente
possa tomar consciência da ilicitude do facto:
Também denominado de erro sobre normas que recaem sobre comportamentos
axiologicamente (valorativamente) neutros, são situações em que o agente está em erro sobre normas
que se debruçam sobre condutas que não têm uma carga ética suficientemente forte para que se possa
afirmar que qualquer pessoa eticamente bem formada tinha obrigação de conhecer ou perguntar, pelo
menos, sobre a ilicitude do seu comportamento, mesmo desconhecendo a norma que o proíbe.
Por exemplo, imagine-se que há uma reunião de Chefes de Estado, e devido a essa reunião, sai um
Decreto-Lei a proibir a conduta de andar com armas de fogo durante o período da visita. Ora, A, que
todos os fins de semana vai à caça com a sua caçadeira, é apanhado por uma patrulha de polícia.
Neste caso, esta proibição de andar com armas (tendo licença de porte) recai sobre um comportamento
axiologicamente neutro: para a pessoa se aperceber da ilicitude do seu comportamento, teria mesmo
de conhecer a norma – é, por isso, um erro de natureza intelectual. Contrariamente, para se saber que
o homicídio é punido, não é necessário conhecer-se a norma específica que pune: o comportamento
em si é eticamente desvalioso – erro de natureza moral –, não sendo um comportamento
valorativamente neutro.
Assim, nestas situações, o dolo será excluído, e A não será punido. Diferente será, por exemplo, no
caso de uma dinamarquesa que vem a Portugal fazer um aborto depois das 13 semanas: como a
proibição já não recai sobre um comportamento axiologicamente neutro, o dolo não será excluído.
➔ Só poderá, depois, excluir a culpa, se o erro não for censurável: ou seja, se ela dinamarquesa fez
o que estava ao seu alcance para averiguar se o comportamento era lícito ou ilícito.
Outras figuras importantes:
Existem, ainda, duas figuras importantes que se estudam a propósito do erro, mas que não
devem ser confundidas como tal, nomedamente: dolo generalis e aberratio ictus.
A aberratio ictus distingue-se do erro porque se trata de uma execução defeituosa. Por
exemplo, A foi contratado para matar B, mas quando este se prepara para disparar, C aparece à frente,
sendo este que leva o tiro. Ora, aqui, o resultado da ação atinge um objeto distinto do elegido pelo
autor; enquanto no erro sobre o objeto, o agente acerta exatamente o objeto que queria acertar, só que
com erro. Dito de outra forma, na aberratio ictus, há sempre dois objetos distintos; no erro sobre o
objeto, há apenas um objeto.
Relativamente ao regime a aplicar, existem duas teorias: a teoria da concretização (doutrina
dominante) e a teoria da equivalência (doutrina minoritária).
De acordo com a teoria da concretização, A deve ser punido em concurso efetivo por tentativa do
homicídio de B e pelo homicídio negligente de C. Bárbara Brito defende que só desta forma é que se
consegue proteger os bens jurídicos que estão em causa, porque com esta conduta, A coloca em perigo
dois bens jurídicos, um deles efetivamente lesados (vida de C).
De acordo com a teoria da equivalência, quando há incidência típica entre o tipo de ilícito projetado
e o tipo de ilícito realizado, o agente deve ser punido por um só crime doloso consumado. Portanto,
neste caso, A seria punido apenas pelo crime de homicídio doloso de C, porque, segundo esta teoria,
a punição está mais garantida se se optar por esta figura.
No dolos generalis, fala-se de situações em que o resultado se consumou em dois atos, mas o
autor previu erradamente criar o resultado com apenas a primeira conduta – por exemplo, A dispara
sobre B e, para esconder o corpo, atira-o ao rio; mas, na autópsia, demonstra-se que o resultado veio
a produzir-se não com a ação de disparar, mas com o afogamento. Questiona-se, então, neste casos,
se estas duas ações devem ser valoradas como uma só, ou se devem ser punidas individualmente.
Jescheck defende que, neste caso, o agente deve ser punido por um crime de homicídio doloso
consumado, dado que essa figura consegue abarcar todo o ilícito da ação.
Stratenvert, por outro lado, defende que, se antes de praticar a primeira ação, o agente já tinha
representado a segunda, pode aplicar-se o dolo generalis: o dolo abarca toda a situação num momento
prévio, e abrange todo o processo causal que conduziu ao resultado – e, por isso, o agente deve ser
punido por um único crime consumado, a título de dolo. No entanto, se o agente não pensou na
segunda ação quando o seu dolo surgiu, não abarca todo o processo causal que conduz à morte – e,
por isso, já não se pode aplicar o dolo generalis, devendo o agente ser punido em concurso efetivo
por tentativa e crime negligente consumado.
Figueiredo Dias e Silva Dias entendem que importa saber se o risco que se concretiza no resultado
pode ser reconduzido ao quadro dos riscos criados pelas primeira conduta – ou seja, o decisivo é
determinar se a segunda ação é, segundo as regras da experiência, previsível e normal; se é, no fundo,
um risco caracteristicamente ligado à ação. Se for, será punido por um só crime doloso consumado
(como no exemplo dado: normalmente, quando uma pessoa mata, quer-se desfazer do corpo, portanto
atirar o corpo ao rio está caracteristicamente associado a matar a pessoa); se não for, será punido por
tentativa em concurso com o crime negligente consumado.
Roxin, assim como a maior parte da doutrina e jurisprudência alemã, já não recorre à figura do dolo
generalis mas, sim, à figura do erro sobre o processo causal para resolver estes casos. Como já se viu,
na figura do erro sobre o processo causal, importa saber se o desvio é essencial ou não: se não for
essencial, não afasta a imputação objetiva e o agente é punido por um só crime dolo consumado; se
for essencial, já não haverá imputação objetiva e o agente será punido, em concurso, pelo crime
tentado e pelo crime realizado, na forma negligente. No entanto, Roxin acrescenta que, para se
recorrer à figura do desvio não essencial, o dolo do agente quanto ao resultado tem de ser direto.
Portanto, nas situações em que o dolo do agente em relação ao resultado era necessário ou eventual,
já não se pode dizer que o desvio não era essencial.
➔ Por exemplo, A quer matar B, mas quando vê a vítima inconsciente arrepende-se e tentar reanimá-
la. Pensando que não conseguiu reanimá-la, enterra-a, e ela acaba por morrer enterrada viva. Aqui,
Roxin diz que houve uma intenção de matar revista, pelo que A já não pode ser punido por um só
crime doloso consumado, mas sim em concurso – não seria previsível que a pessoa se arrependa
e faça tudo aquilo.
o Concluindo, Roxin considera que o agente só pode ser punido por um crime de homicídio
doloso consumado se o dolo inicial abarcar, de modo previsível, a realização da segunda
conduta – algo que, neste caso, não acontece.
Por fim, também se discute na doutrina alemã se se aplica a figura do dolo generalis à situação em
que o sujeito produz o resultado logo na primeira ação; mas queria que ocorresse, segundo a sua
representação, na segunda ação. A doutrina dominante diz que, também nestes casos, o desvio não
era essencial – e, portanto, o agente deve ser punido por um só crime doloso essencial.
Elemento volitivo
O elemento volitivo do dolo corresponde à vontade do agente de praticar o facto típico.
Segundo Figueiredo Dias, o conhecimento (previsão) das circunstâncias de facto e, na medida do
necessário, do decurso do acontecimento não podem, só por si, indicar a contrariedade ou indiferença
ao dever-ser jurídico-penal, manifestada pelo agente no seu facto – que caracteriza a culpa dolosa e,
em definitivo, justifica a punição do agente e título de dolo. O dolo do tipo não pode, assim, bastar-
se com aquele conhecimento; exige, ainda, que a prática do facto seja presidida por uma vontade
dirigida à sua realização – ora, é este elemento que constitui o momento volitivo do dolo do tipo.
Modalidades do dolo
A propósito do dolo, importa agora referir as modalidades do dolo (artigo 14º CP),
nomeadamente: 1) dolo direito (ou dolo intencional ou de 1º grau); 2) dolo necessário (ou dolo direto
necessário ou de 2º grau); e 3) dolo eventual.
o Já Fernanda Palma, por exemplo, considera que neste caso, continua a haver dolo, porque o
agente não pode deixar de reconhecer que, paralelamente, e em conflito com a lógica
emocional que o orienta (que considera que o risco é remoto), existe uma outra lógica de
significação dos atos social que imporá um significado social à ação – e, por isso, considera
que o agente atuou com dolo eventual.
➔ Critério de Willfull Blindness (cegueira ou ignorância deliberada): Para Figueiredo Dias, naqueles
casos em que o agente revela uma absoluta indiferença pela violação do bem jurídico, apesar de
representar como possível a sua realização, o agente acaba por se decidir pelo risco sério contido
na sua conduta – e, portanto, existe dolo eventual.
o Imagine-se que uma pessoa resolve andar a 20 km/h numa cidade e passar o sinal vermelho,
porque tem uma total indiferença em relação às consequências dessa conduta. Nesses casos,
não se pode dizer que há negligência: apesar de o agente não tomar a sério o risco da realização
do facto típico, é muito difícil dizer que não há dolo, porque em virtude desta completa
indiferença face à violação, pode dizer-se que o agente se decidiu pela realização do risco
inerente à sua conduta – e, nesse sentido, conforma-se.
De qualquer das formas, ao abrigo do princípio da legalidade, segundo o nosso legislador quer
no dolo eventual, quer na negligência consciente, o elemento intelectual é o mesmo: o agente
representa a realização de um facto típico como consequência possível da sua conduta. A diferença é
que no dolo eventual, o agente representa essa realização e conforma-se com a sua realização; já na
negligência consciente, o agente não se conforma com tal realização – teoria da conformação. Ora, o
difícil é, precisamente, ver como é que no caso prático se concluir pela conformação ou não.
Para Bárbara Brito, para se saber se o agente se conformou ou não conformou, o método mais simples
é a fórmula positiva de Frank: se o agente, ao atuar, pensou “aconteça o que acontecer, eu atuo”,
existe dolo eventual; se não pensou assim, existe negligência consciente.
➔ A prova de que esta fórmula é um bom método para, num caso concreto, saber se o agente se
conformou ou não, é o caso dos mendigos russos: uma associação criminosa na Rússia mutilava
crianças para as pessoas terem pena e darem mais facilmente esmolas – no entanto, algumas
dessas crianças morreram, em consequência da ofensa corporal. Ora, em relação à morte das
crianças, havia dolo eventual ou negligência consciente?
➔ Antes, Frank utilizava uma fórmula hipotética: se o agente, ao atuar, pensasse como certo a
realização do facto típico e optasse por não atuar, haveria negligência; se, mesmo assim, atuasse,
havia dolo eventual. No entanto, neste caso, tal fórmula seria injusta: claro que os mendigos
russos, se soubessem hipoteticamente que o seu “sustento” ia morrer, não iriam atuar dessa
maneira. Ou seja, não interessa partir de uma ficção, mas, sim, daquilo que o agente realmente
pensou. Consequentemente, a fórmula positiva foi criada, partindo do que o agente realmente
pensou, no caso concreto: neste caso, os mendigos russos previram como certa a morte; mas,
mesmo assim, atuaram – logo, agiram com dolo eventual.
Outra discussão será perceber quais os critérios para aferir se o agente pensou: “aconteça o que
acontecer, atuo”. Ora, por um lado, existe o critério das motivações, anteriormente defendido por
Fernanda Palma: quanto maior a motivação, maior o indício do dolo eventual. Por exemplo, se o
agente vai a alta velocidade, é necessário olhar e perceber o porquê de este ir a alta velocidade: se for
porque o agente recebeu um telefonema de que o filho estava a morrer no hospital, provavelmente
pensou “aconteça o que acontecer, atuo”; já se for porque queria ver um jogo de futebol, ele não terá
pensado desta forma. Em última análise, este é um critério que vai ajudar a determinar se o agente
tomou como sério a realização do facto típico.
➔ É tão difícil fazer esta distinção que Figueiredo Dias defende que, no futuro, deve have uma
terceira figura “temeridade”, que abarcaria e substituiria o dolo eventual e a negligência
consciente. No entanto, ainda não houve nenhuma reforma penal que tenha feito isto.
NEGLIGÊNCIA:
A negligência pode ser encarada como elemento subjetivo do tipo, ou como uma ação típica
ilícita negligente – ou seja, um “crime negligente”, estando a negligência fora da tipicidade.
Figueiredo Dias põe a figura da negligência no fim do seu manual, fazendo questão de analisar
todos os elementos gerais do crime a propósito do crime doloso – ou seja, tratando o crime negligente
como uma forma especial de crime, tal como a tentativa. Isto significa que este autor pensa na
negligência não enquanto elemento subjetivo do tipo, mas enquanto ação típica ilícita.
Isto leva a que Figueiredo Dias, assim como Roxin, discutam qual é o elemento caracterizador da
negligência enquanto ação típica ilícita. Para Figueiredo Dias, tal elemento é a violação do dever de
cuidar; já para Roxin, tal elemento é a criação de um perigo não permitido – bastando, por isso, ir à
teoria do risco para a caracterizar.
No entanto, tal ideia acaba por ser errada, porque a violação do dever do cuidado, entendido como a
violação das normas de cuidado a que o agente está adstrito, pode ocorrer num crime doloso ou num
crime negligente. O que decide se o crime é doloso ou negligente não é essa violação, mas sim o
elemento subjetivo: ou seja, a relação mental do agente com o resultado – se o agente, ao violar os
deveres de cuidado, quis aquele resultado (ex: se um doutor quer que, com a sua ação, aquele paciente
morra). O que é realmente essencial é o elemento subjetivo, e não a violação de normas de cuidado.
Assim, na ótica de Bárbara Brito e Jakobs, a negligência é um elemento subjetivo do tipo e,
por isso, deve ser estudada no âmbito dos elementos subjetivos do crime: as suas especificidades não
a autonomizam como um tipo especial de crime.
Negligência inconsciente
Dentro da negligência, é possível ter negligência consciente e negligência inconsciente. Tendo
a negligência consciente já sido falada a propósito da sua fronteira com o dolo eventual, falta apenas
falar sobre a negligência inconsciente.
Como já foi analisado, para haver uma ação, é preciso o controlo ou a possibilidade de
controlo da ação por parte do agente. Para haver essa possibilidade, também é necessário a
possibilidade de prever e representar o perigo: por exemplo, o caso dos pais que deixaram os filhos
na parte detrás do carro – e que não tiveram a possibilidade de representar a omissão e,
consequentemente, a morte do filho – vs. o caso da pessoa que vê o sinal de escola perto, sabe que
são 15h e ouve crianças a rir, mas mesmo assim não adequa a velocidade.
Assim, na negligência inconsciente, ir-se-á punir o agente porque este podia ter representado e,
consequentemente, poderia ter controlado; mas não o fez, como no último exemplo dado – ou seja,
esta pressupõe a cognoscibilidade individual da realização do facto típico por parte do agente (artigo
15º, alínea b) CP).
A existência desta possibilidade é aferida com base nos dados ontológicos daquela pessoa em
concreto – e não do homem médio, dado que não se sabe o que este representaria (sendo necessários
estudos para isso). Assim, para se saber se esta possibilidade existia, é necessário perceber se o agente
teve consciência dos sinais objetivos de perigo – ou seja, de fatores que objetivamente estão
relacionados causalmente com a realização do facto típico.
No entanto, será também necessário que esse agente conseguisse relacionar esses fatores com o
resultado típico – por exemplo, a senhora que pôs o filho raquítico em água a ferver, porque os mais
intelectuais da sua aldeia lhe disseram que assim curaria o filho, não tinha tal possibilidade; logo, não
existe, neste caso, negligência inconsciente.
Casos Práticos
1. Embriagado, de regresso a casa já de madrugada após uma noite de copos, Abílio confundiu o
seu apartamento com o de Beatriz, senhora idosa sua vizinha. Meteu a chave à porta e,
desesperado por não conseguir abri-la, arrombou-a com estrondo, introduzindo-se no que supôs
ser a sua habitação. Entretanto, Beatriz acordou aterrorizada com o “assalto” e morreu a um
devido ataque cardíaco.
1.1. Abílio cometeu os crimes previstos nos artigos 190º e 212º CP?
Relativamente ao artigo 190º, existe o agente (“Abílio”), a ação (“entrar dentro de propriedade
alheia”), e bem jurídico (“propriedade”). Não sendo este um crime de resultado, não é necessário
verificar-se o resultado nem, consequentemente, a sua imputação objetiva.
No entanto, não existe aqui dolo: Abílio não representou que a casa não era dele, até porque estava
embriagado – não estando embriagado para fazer isso com “desculpa”, no entanto, sendo isso toda
uma situação diferente; e estando embriagado, mas com possibilidade ainda de controlo da ação, e
não embriagado “de caixão para a cova” (ou seja, tinha a possibilidade de ação alternativa, não tinha
de arrombar a porta em questão).
Neste caso, não representando “casa alheia”, existe um erro sobre o objeto– ou, segundo outra
doutrina que não a maioritária, existe um erro sobre um elemento predominantemente normativo,
nomeadamente a não representação do carácter alheio da coisa. De qualquer modo, não tendo
representado o objeto do crime, o dolo é excluído nos termos do artigo 16º, nº1 CP: “facto de direito”
= “coisa alheia”.
Fica, no entanto, ressalvada a punibilidade a título de negligência (artigo 16º, nº3 CP), mas apenas se
estiver previsto expressamente na lei (artigo 13º CP). Ora, não existindo tal previsão no artigo 190º
CP, nem existindo outro tipo de crime chamado “violação de domicílio negligente”, Abílio não podia
ser punido por tal crime.
Relativamente ao artigo 212º CPC, segue-se a mesma lógica: os elementos objetivos estão
verificados porque Abílio, de facto, destruiu porta alheia; no entanto, os elementos subjetivos,
também necessários, não estão, dado que Abílio não representou que tal porta era alheia. Assim,
exclui-se o dolo, não sendo Abílio punido por não estar previsto o crime de dano negligente.
2. Ana, grávida, está na praia com um grupo de amigos. A certa altura, os amigos decidem iniciar
um jogo de volleyball e desafiam-na a participar. Ela começa por rejeitar, invocando que é
perigo, dado o seu estado de gravidez; mas, alguns minutos depois, sem dizer nada, começa a
participar no jogo. Passado pouco tempo, cai e aborta. Pode ser punida pelo crime de aborto?
Denota-se, primeiro, que existe uma ação jurídico-penalmente relevante, sendo o crime em causa o
crime de aborto. Além disso, todos os elementos objetivos da ação estão preenchidos: há agente, há tipo, e há
conexão entre o resultado e ação, de acordo com todas as teorias faladas anteriormente.
Passa-se, então, à análise dos elementos subjetivos: dolo e negligência. Conclui-se que, neste caso,
está em causa a figura da negligência consciente: Ana apenas se queria divertir com os amigos,
pensando que o risco que representou nunca se iria concretizar – na medida em que ela não se
conformou e, consequentemente, não disse “independentemente do que acontecer, irei atuar”
(conceção positiva de Frank). Além disso, segundo Fernanda Palma, rapidamente se conseguiria
concluir que Ana não pensou isto: a motivação de só entrar num jogo com amigos não é forte o suficiente,
assim como a probabilidade de lesão não era, também, grande.
No entanto, tal critério não é unânime: segundo Figueiredo Dias e Roxin, o critério seria se Ana teria
tomado como sério o risco da realização do facto típico – ou seja, se o propósito que move a sua ação
vale bem, a seus olhos, o preço da realização do perigo do facto típico. Aqui, mesmo aplicando esse
critério, continua-se a ter negligência consciente: Ana não queria tanto brincar com os amigos ao
ponto de estar disposta a perder o seu bebé por causa disso.
Assim, existindo negligência consciente, Ana não poderá ser punida, dado que o crime de
aborto não está previsto na forma negligente (artigo 142º CP).
Neste caso, existe um exemplo ou de aberratio ictus ou erro na execução, dado que existem
dois objetos envolvidos: aquele em que o agente acertar; e aquele em que o agente acertou. Ora, se
se defendesse a teoria da equivalência, o agente seria punido pelo crime de ofensas à integridade
física doloso do menor – isto porque, apesar do dolo ser para as ofensas do maior, segundo Rui
Pereira, só se se transferir o dolo é que se abarca todo o ilícito cometido.
Segundo este autor, quando há coincidência típica entre o tipo de ilícito projetado e o tipo de ilícito
realizado, o agente deve ser punido por um só crime doloso consomado. Assim, neste caso, A seria
punido apenas pelo homicídio doloso de C (mesmo não havendo dolo neste crime), porque é a única
forma de garantir a punição adequada.
No entanto, atualmente, a doutrina maioritária é a teoria da concretização, de acordo com a
qual o agente deve ser punido por concurso efetivo – nomeadamente, entre o crime de tentativa de
ofensa à integridade física de D, e o crime de ofensa à integridade física negligente consumado da
criança –, porque estão em causa dois bens jurídicos. É claro que, depois, no caso concreto, será
necessário provar que existe negligência (ex: se for uma pessoa que apareceu do nada, pode nem
negligência haver), ou se estão preenchidos os requisitos para a tentativa (ex: se se estivesse a falar
sobre ofensas à integridade física simples, o agente não poderia ser punido por tentativa).
COMPARTICIPAÇÃO CRIMINOSA
Conceito de Comparticipação
Até agora, as hipóteses resolvidas envolvem apenas um autor – no entanto, existem muitas
outras formas de participar na prática de um crime, sem ser de uma forma singular e direta:
comparticipação criminosa. Tal figura está prevista nos artigos 26º e 27º CP (definição das formas de
comparticipação criminosa existentes), e 28º e 29º CP (esclarecem outros detalhes relativamente à
comparticipação criminosa), sendo necessárias porque os crimes na parte especial do código estão
apenas previstos para uma participação singular e direta – princípio da legalidade e tipicidade.
Em sentido lato, fala-se em comparticipação quando há uma pluralidade de agentes a realizar
o facto típico – sendo que, quando tal acontece, importa determinar o papel que cada um desempenhou
no cometimento desse crime. Normalmente, a distinção mais relevante é se este atuou como autor ou
como participante; sendo depois analisada qual foi a forma de autoria ou a forma de participação. Isto
será relevante porque a punição como autor é diferente da punição como participante.
Formas de Autoria
AUTORIA IMEDIATA (artigo 26º CP):
É autor imediato (ou material, ou direto) quem executar o facto pelas suas próprias mãos, na
medida em que é ele que preenche os elementos objetivos e subjetivos do crime. Dito de outra forma,
o autor imediato é aquele que tem o domínio da ação.
NOTAS FINAIS
Quanto às situações em que não há uma ação jurídico-penalmente relevante por parte do autor
imediato, este acaba por não ter a sua vontade dominada pelo autor mediato: este é, aliás, apenas
usado como um puro corpo ou arma – são ações praticadas em vis absoluta por parte do autor
imediato. Não existe, aqui, uma instrumentalização como anteriormente falado: para
instrumentalizar o outro, ele teria de praticar uma ação jurídico-penalmente relevante.
Por exemplo, A hipnotiza B para que, nesse estado, agrida C; ou A empurra B para que este caia por
cima de C. Se se aplicar o conceito de ação jurídico-penalmente relevante a quem atua hispanizada
ou empurrada, este não pratica uma ação jurídico-penalmente relevante. Portanto, quem hipnotiza ou
empurra é autor imediato – o A não domina a vontade do B, porque este nem sequer vontade tem.
Discute-se, ainda, quando é que se pode dizer que se inicia a tentativa para o autor mediato.
Para uma parte da doutrina (Jakobs), a tentativa começa logo com a ação de instrumentalização, por
parte do autor mediato, sobre o executor. Já para Roxin, a tentativa inicia-se com a perda de controlo
sobre o executor instrumentalizado. Por fim, para Stratenwerth, só há tentativa com o início da
execução por parte do autor imediato.
Conceição Valdágua, por sua vez, diz que poderá existir uma tentativa sem haver atos de execução
por parte do autor imediato. Imagine-se que A diz a B que um veado está no lugar de C, sabendo
perfeitamente que ele vai disparar logo a seguir – ora, aqui, há uma tentativa. Ou seja, há uma tentativa
sempre que o autor mediato praticar um ato que é de natureza a fazer esperar que, imediatamente a
seguir, se lhe siga um ato adequado a produzir o resultado esperado.
Formas de Participação
INSTIGAÇÃO (artigo 26º CP):
Dado estar estipulada na última parte do artigo 26º CP, que tem como epígrafe “autoria”, será
necessário perceber se o instigador deve ser encarado como participante ou como autor.
Uma parte da doutrina (Bárbara Brito e Jakobs) considera que não é pelo facto de a instigação vir no
artigo 26º CP que o instigador é um autor – tal significa, apenas, que o instigador deve ser punido
como autor. Isto, porque o fundamento da punibilidade do autor é, à luz da teoria do domínio do facto,
o facto de ele ter o domínio do “se” e do “como” da realização do facto ilícito típico. Ora, o instigador,
para esta parte da doutrina, não tem o domínio do facto: este apenas determina outra pessoa a praticar
o facto, retirando-lhe a autonomia de decidir sobre o mesmo. Este apenas tem o domínio sobre o “se”,
mas não sobre o “como”, sendo por isso que não é autor, apesar de ser punido como tal.
Ou seja, o facto de o instigador ter feito nascer na cabeça do instigado a decisão de praticar o
facto, não retira ao autor imediato o dolo de decidir, ou a intenção de praticar o facto.
➔ Se se considerasse o “homem de trás” como autor, estar-se-ia a retirar o poder de decisão do autor
material: o que não faz sentido, dado este ter todas as capacidades cognitivas e volitivas para
decidir fazer ou não fazer – seria, até, contraprodutivo em termos de prevenção geral.
Já Figueiredo Dias considera que o instigador deve ser considerado como autor se existir uma
verdadeira determinação, no sentido de haver um total domínio da decisão do instigado (o que não
existe para Bárbara Brito, que defende que o instigado pode decidir praticar o facto ou não). Neste
sentido, existirá domínio do facto, logo faz sentido que o instigado seja considerado autor, sendo
punido como tal.
1. Elementos objetivos:
Além disso, é necessário que haja dolo por parte do agente instigado, após ter sido
determinado pelo autor. Ou seja, apesar de ter sido o instigador que fez nascer no outro a decisão de
praticar, é necessário que, depois disso, o instigado decida livremente sobre atuar – caso contrário,
estar-se-ia perante uma situação de coação ou erro (autoria mediata).
Por fim, tem de haver execução do facto por parte do agente instigado, nem que seja na forma
de tentativa. Ou seja, basta ter-se praticado atos de execução (e não apenas o facto consumado) para
que exista instigação – sendo que, no entanto, o instigado tem de ter praticado algo que seja
considerado relevante tipicamente. Por exemplo, uma pessoa que seja filmada a pedir a um assassino
profissional para matar o marido, e que seja logo denunciada, não pode ser punida como instigadora,
visto que nem sequer houve nenhum ato de execução. Tal não mudaria se esta já tivesse pagado.
2. Elementos subjetivos:
O instigador tem de ter dolo da própria determinação, ou seja, ele tem de querer determinar o
outro a praticar o facto. Aqui, o dolo é duplo: além de ter de ter o dolo de determinar o outro a praticar
o facto, ele tem de ter dolo da ação instigada – isto é, ele tem de representar o ilícito praticado que
vai ser praticado pelo instigado, e querer que esse seja praticado. O dolo não tem, no entanto, de ser
preciso: ou seja, este não tem de saber exatamente quando e como é que o instigado vai executar.
Apenas tem de ter a representação do essencial do ilícito típico.
Se, no entanto, houver excesso por parte do instigado, ele não vai ser imputável ao instigador.
Por exemplo, A contrata B para dar uma sova em C; mas B entusiasma-se e mata C. Neste caso, não
se pode atribuir a morte ao instigador, porque ele só fez nascer na cabeça do agente material a decisão
de praticar o crime de ofensas à integridade física – tendo sido B que, por decisão própria, decidiu
matá-lo. Assim, esta morte não pode ser atribuída a A como instigador, porque não se verificam os
elementos da instigação: nomeadamente, este não representou o essencial do ilícito típico.
No entanto, se A sabia que B era uma pessoa instável, e já tinha conhecido outros casos semelhantes,
então pode-se considerar o mesmo como autor negligente do crime de homicídio.
Se houver erro sobre o objeto por parte do instigado (ex: A contrata B para matar C, mas este
acaba por matar D), para grande parte da doutrina, tal erro equivale a uma aberratio ictus para o
“homem de trás”: ou seja, o instigador deverá ser punido, em princípio, em concurso por tentativa do
crime que ele queria que fosse efetuado e pelo crime realizado na forma negligente. No entanto, como
também é sabido, tal posição é defendida por quem acha que, no caso da aberratio ictus, se deve
punir o agente como concurso (existindo, no entanto, outra parte da doutrina que defende que, nestes
casos, o agente deve ser punido por um só crime doloso).
Se houver uma aberratio ictus por parte do próprio instigado, para grande parte da doutrina, esta
aberratio ictus equivale, também, a uma aberratio ictus para o “homem de trás”: o instigador também
poderá ser, eventualmente, punido por tentativa do crime que visou ser realizado, e por negligência
do crime realizado. No entanto, denota-se que será difícil arranjar um exemplo em que o instigado se
enganasse desta forma.
Esta figura é caracterizada por situações em que o sujeito não tem contacto direto com o
executor do facto, mas tem contacto com uma pessoa que faz parte do processo conducente à
determinação da prática do facto ilícito típico.
Por exemplo, A, amante de B, convence-o a determinar C a matar o seu marido D. Ora, para uma
parte da doutrina, A não pode ser instigador, dado que não determina diretamente o executor material
C, mas sim B. No entanto, para outra parte da doutrina (Bárbara Brito e Figueiredo Dias), para
determinar quem é instigador importa, apenas, averiguar qual atuação foi determinante à prática do
facto – pelo que A seria, então, considerado instigador.
Assim, é necessário partir do executor para decidir o papel do “homem de trás”, e perceber o
que foi determinante para este decidir agir.
1. Elementos objetivos:
Em primeiro lugar, tem de haver um contributo direto do cúmplice para facilitar ou preparar
a execução – por isso se diz que esse contributo poderá ser material ou moral. No caso de ser cúmplice
material, este não pode ser essencial ao ponto de o agente tomar parte direta da execução – por
exemplo, a pessoa que leva até ao local do crime e vai embora é cúmplice material; mas aquele que
fica a vigiar já é coautor. Outro exemplo de um cúmplice material será a pessoa que fornece a arma
ou que fornece a bomba que vai explodir. Já no caso de ser cúmplice moral, a sua atuação não pode
criar no executor a decisão de praticar o facto.
Além disso, terá de haver causalidade: ou seja, a atuação do cúmplice tem de ser causal em
relação ao resultado tal como se produziu, tendo de aumentar o risco da realização da ação. A atuação
do cúmplice tem, consequentemente, de aumentar o risco da ofensa do bem jurídico – por exemplo,
A empresta um revólver a B para um furto, mas B não leva a arma, utilizando antes uma navalha.
Neste caso, A não potência a criação do risco para o bem jurídico – não existindo causalidade, não
há cumplicidade.
Por fim, terá de haver a prática, por parte do autor material, do facto doloso.
Consequentemente, terá de haver, também, o próprio dolo do autor material.
2. Elementos subjetivos:
Primeiro, é necessário existir duplo dolo do cúmplice: ou seja, o cúmplice tem de ter dolo
quanto ao auxílio, e quanto ao facto praticado. Mais uma vez, o dolo não tem de ser preciso, não
tendo o cúmplice de saber as circunstâncias concretas nas quais vai ser realizado o ilícito típico. Basta,
apenas, que este tenha uma representação da dimensão essencial do ilícito típico realizado pelo autor
material. Esse dolo pode ser desconhecido pelo auxiliado/executor – por exemplo, A vê o amigo a
furtar uma coisa e, vendo que um polícia vem aí, distrai o mesmo para o seu amigo não ser apanhado.
Relacionado com este princípio, mas com outro âmbito de aplicação, existe o artigo 28º CP.
Denota-se, em primeiro lugar, que este artigo só se aplica aos crimes específicos, sendo eles próprios
e impróprios; ao passo que o princípio da acessoriedade delimitada aplica-se a todos os crimes.
Além disso, para a maior parte da doutrina, este artigo aplica-se a toda a comparticipação criminosa,
incluindo as formas de autoria. Mais especificamente, para Figueiredo Dias, este artigo aplica-se quer
nos casos em que o autor material não tem a qualidade necessária para preencher o tipo de crime,
quer nos casos em que é o autor material que detém essa qualidade. Já para Teresa Beleza, no caso
de ser o autor material a deter esta qualidade, não é preciso recorrer ao artigo 28º, podendo-se aplicar
o princípio da acessoriedade limitada (artigo 29º) e estendendo o ilícito típico praticado pelo autor
material ao “homem de trás”. Consequentemente, para a autora, o artigo 28º só se aplica quando o
autor material não detém essa qualidade.
Ainda de acordo com este artigo, são comunicáveis todas as qualidades ou relações especiais do
agente que sirvam para fundamentar ou graduar a ilicitude do facto – isto, exceto se for outra a
intenção de lei. Estas não servem, no entanto, para fundamentar nem graduar a culpa do facto, porque
essas qualidades são individuais, logo analisam-se individualmente.
No fundo, de acordo com o artigo 28º, o extra neus – aquele que não possui a qualidade exigida
pelo tipo – pode ser autor de um crime específico, desde que o intra neus – o que possui a
qualidade – tenha essa qualidade.
Casos práticos
1. Havia já algum tempo que Carlos não gostava de Duarte. Porém, quando ficou a saber que este
começara a namorar com a sua irmã Elsa. C ficou furioso e contou o seu drama a Filipe, um
amigo. Este disse-lhe: “conheço um tipo, o Gustavo, que já limpou o cebo a uns quantos e anda
com dificuldades económicas. Por algum dinheiro, ele faz o que tu quiseres”. C pediu a F que,
em seu nome, contactasse G e lhe oferecesse 500.000€ para dar uma sova a Duarte. Gustavo
aceitou prontamente a proposta. Mais tarde, nessa noite, esperou por Duarte, à porta de uma
discoteca e, vendo sair uma pessoa, de aspeto físico semelhante ao de Duarte, mas que era Hugo,
agrediu-o violentamente. Hugo foi transportada ao hospital, onde acabou por falecer por não ter
sido possível realizar imediatamente uma transfusão de sangue, uma vez que aquele hospital não
disponha em stock sangue do tipo C. Determine a responsabilidade criminal dos intervenientes.
Ou seja, apesar de haver causalidade natural, de acordo com a teoria da conditio – visto que, tirando
a ação de G, não há a morte de H –; de acordo com a teoria da adequação, não se consegue prever
que o hospital tivesse uma falha de sangue. A interrupção ou não do processo causal depende, então,
se podia ou não prever que tal iria acontecer: se, por exemplo, não houver sangue devido à logística
do hospital ou de G um tipo de sangue muito raro, não há interrupção do processo causal; mas se não
há sangue porque o diretor da reposição dos stocks atuou negligentemente, então já se pode falar
numa interrupção do processo causal. O resultado morte era previsível, mas não como resultado da
falta de sangue.
Concluindo que, em princípio, tal não era previsível, há interrupção do nexo causal. Logo, G só seria
punido por tentativa de homicídio. Existe, também aqui, um erro no objeto da ação – no entanto, este
é irrelevante, visto que existe identidade típica. No entanto, e mesmo não existindo dolo de matar
(poder-se-ia pensar que G apenas queria gravemente ofender), este poderá ser punido por negligência.
Já Carlos e Filipe serão instigadores, existindo, aqui, uma situação de instigação em cadeia
(instigação da instigação): Carlos fala com Filipe. No entanto, pode-se presumir que o pagamento é
feito por C e quem transmite a mensagem é F OU será que F é um mero núncio? Tal será importante
discutir se se achar que foi só o dinheiro que determinou a aceitação de Gustavo. Assim, se foi isso +
o facto de ter sido F a pedir, então são ambos instigadores; caso contrário, F será considerado como
cúmplice.
No caso em concreto, parece que de facto, o determinante foi apenas o pagamento do dinheiro que
vem do primeiro instigador, ou seja, de C. Consequentemente, F que comunica com o assassino, vai
ser apenas punido como cúmplice. Isto, porque não pode ser considerado que F era um instigador, já
que não houve prática de factos de execução por parte de C.
Existe, no entanto, um excesso na instigação, que neste caso não é imputado ao instigador C; mas que
o poderia ser, a título de negligência, se este conseguisse prever que aquela pessoa fizesse aquilo.
Por fim, o erro sobre o objeto tinha importância para o instigador, atribuindo-se a este a figura da
aberratio ictus: este será punido, em concurso efetivo, pela tentativa de ofensa à integridade física de
Duarte, e pelo crime de tentativa de homicídio negligente de Hugo – se não houvesse a quebra do
processo causal.
2. Amadeu prometeu pagar a Bento e a Carlos uma certa quantia se estes subtraíssem uma pintura
numa galeria de arte. Bento perguntou dadas informações a Duarte, segurança da galeria,
alegando que tencionava candidatar-se a guarda noturno da mesma. Bento e Carlos
introduziram-se, à noite, pelo telhado da galeria. A dada altura, Bento, que levava uma arma
sem dizer nada a Carlos, acerta em Frederico, pensando que era um cão. Bento e Carlos
apoderam-se de um quadro, e só mais tarde se apercebem que não era a pintura pedida por
Amadeu. Carlos telefona a Amadeu, ameaçando que o mataria caso ele não pagasse o valor
acordado pelo mesmo quadro.
Aqui, Bento e Carlos são coautores material do crime de furto qualificado da pintura, na
medida em que tomam parte direta na execução do mesmo, tendo este sido o fruto de uma decisão e
de uma execução conjunta por parte deles. No entanto, estes encontram-se em erro sobre o objeto,
dado terem furtado o quadro errado; mas neste caso, sendo os objetos tipicamente idênticos (são
ambos quadros), o erro não tem qualquer relevância jurídica, pelo que não se exclui o dolo da sua
conduta.
No entanto, este erro terá consequências para Amadeu? Para responder a isto, será necessário
classificar Amadeu e perceber se é possível ligá-lo ao crime cometido. Este é um instigador, dado
que, ao prometer dar dinheiro a B e C pelo quadro a ser furtado, criou na cabeça deles a decisão de
realizar o furto – na medida em que, se ele não tivesse prometido tal quantia, eles nunca teriam tido
a decisão de praticar o crime. Denota-se, aqui, que não é o facto de Amadeu depois não pagar essa
quantia que elimina a sua instigação, dado que a decisão já foi feita pelos autores materiais em
momento anterior.
No entanto, para haver instigação, é necessário haver duplo dolo: além de ter de ter o dolo de
determinar B e C a praticar o facto, A tem de ter dolo da ação instigada – isto é, ele tem de representar
o ilícito praticado que vai ser praticado pelo instigado, e querer que esse seja praticado. Ora, aqui,
poderá ser discutível, na medida em que A representou o furto de outro quadro daquele que realmente
foi furtado:
➔ Ora, para uma parte da doutrina, existindo este erro por parte dos autores materiais, o mesmo deve
ser tratado, no caso do instigador, como se fosse uma aberratio ictus – teoria da concretização.
Consequentemente, A apenas poderia ser punido em concurso efetivo da tentativa do crime de
furto do quadro que ele queria, com o crime de furto na sua forma negligente, do quadro
efetivamente furtado. No entanto, não existindo a possibilidade de se punir um furto negligente
(artigo 13º CP), Amadeu só poderia ser punido pela tentativa do furto.
➔ Outra parte da doutrina (Rui Pereira), não se deve punir Amadeu em concurso efetivo, dado que,
em algumas situações, a teoria da concretização deixa o instigador impune – e, por isso, na prática,
para o punir, ter-se-á de o punir por um só crime, nomeadamente o crime realizado na sua forma
dolosa – teoria da equivalência. Neste caso, Amadeu seria, então, punido pelo crime de furto
qualificado (do quarto efetivamente furtado) mas com dolo (para compensar a tentativa).
Bárbara Brito defende, em geral, a teoria da concretização, na medida em que a figura da aberratio
permite acautelar pelos dois bens jurídicos que estão em causa no caso – isto, dado existir erro sobre
o objeto. No entanto, neste caso específico, estando-se perante a aplicação desta figura ao instigador,
em concreto, não existe uma aberratio relativamente a este – o que se faz é apenas uma equivalência.
Consequentemente, a teoria da equivalência iria prevalecer, na medida em que, caso contrário,
Amadeu não iria ser punido.
Quanto ao homicídio de Frederico, Bento é o seu autor material, dado ter tomado parte direta
na execução do mesmo – não se envolvendo Carlos porque este não decidiu nem executou com Bento
tal crime. No entanto, existe, aqui, outro erro sobre o objeto, dado Bento ter confundido Frederico
com um cão. Não existindo identidade típica entre os dois, o erro torna-se relevante juridicamente,
na medida em que irá excluir o dolo (artigo 16º, nº1 CP). Assim, este só poderia ser punido pelo crime
de homicídio negligente – não podendo, aliás, ser punido pela tentativa de crime de ofensa contra
animal de estimação, dado que este não prevê a possibilidade de ser punido na sua forma tentada, nos
termos do artigo 23º, nº1 CP (sendo o crime consumado punido até dois anos).
Apesar de não existir coautoria, visto que Carlos não decidiu nem executou com Bento a ação de
matar Frederico, este poderia vir a ser punido por homicídio negligente, se se comprovasse que Carlos
poderia ter previsto que Bento, devido à sua personalidade ou ações passadas, se fosse comportar
desta formal. O mesmo se diz relativamente à ação de Carlos de ameaçar Amadeu: apenas Carlos
tomou a decisão e executou a mesma, não tendo Bento interferido para tal, pelo que apenas ele seria
pelos artigos 153º + 155º CP.
Já para o instigador Amadeu, a mesma lógica é usada: o excesso do autor material não pode ser
atribuído ao instigador, visto que este só fez nascer na cabeça do mesmo a decisão de praticar o crime
de furto qualificado – tendo sido Bento que, por decisão própria, decidiu levar uma arma e atirar em
algo. Assim, tal morte não poderá ser atribuída a Amadeu enquanto instigador, porque não se
verificam os elementos da instigação: nomeadamente, este não representou o essencial do ilícito
típico. No entanto, se A sabia que B era uma pessoa instável, e já tinha conhecido de outros casos
semelhantes, em que B agiu desta forma, então poder-se-á considerar o mesmo como autor negligente
do crime de homicídio.
Quanto a Duarte, este não será autor, de acordo com o conceito unitário de autoria (aplicado
aos crimes negligentes): apesar de o mesmo ter causalmente contribuído causalmente para o
resultado, o elemento subjetivo da negligência não está aqui verificado – Duarte não teria a
possibilidade de representar a realização do facto típico, dado Bento ter-lhe dito que se queria
candidatar à posição de guarda noturno, como justificação das suas perguntas. Por outras palavras,
representação da dimensão essencial do ilícito típico.
Além disso, este também não poderá ser considerado instigador, dado não ter colocado na cabeça de
B e C a ideia de cometer o crime de furto: esta decisão já tinha sido tomada quando Bento foi falar
com ele. Por fim, Duarte também náo poderia ser considerado como cúmplice, dado não incorrer em
duplo dolo: este nem tem dolo de ajudar, nem tem dolo quanto ao facto em questão, dado pensar,
mais uma vez, que o outro apenas se queria candidatar a guarda noturno.
3. A faz uma minuta de um documento e o conteúdo do mesmo não corresponde à verdade, e dá esse
documento a B – que o copia, pelas suas próprias mãos, com o propósito de o juntar numa ação
de investigação de paternidade, para que o réu não seja declarado pai de um menor. Os crimes
são falsificação de documento e denegação de justiça? Como se puniria A e B?
Este exercício foi baseado num caso real, julgado pelo Tribunal da Relação de Lisboa. Na
realidade, este considerou que A e B eram coautores do crime de falsificação de documentos e de
denegação de justiça. Isto porque:
➔ Por um lado, no crime de falsificação de documentos, A fabricou o conteúdo do primeiro
documento, então B elaborou o segundo documento com base nesse primeiro documento errado
– assim, ambos tomaram parte direta neste crime. Logo, de acordo com a alínea a) do artigo 256º,
nº1 CP, podem ser os dois punidos como coautores.
➔ Por outro lado, no crime de denegação de justiça (artigo 369º CC), denota-se que este é um crime
específico próprio. Ora, nestes casos, a ilicitude ou o grau de ilicitude do facto dependem de certas
qualidades ou relações especiais do agente – no entanto, neste caso, apenas B tinha a qualidade
de funcionário público, e não A. No entanto, de acordo com o artigo 28º, nº1 CP, neste tipo de
crimes, o facto de um dos coautores ter essa qualidade é suficiente para se punir os restantes
coautores, que não têm essa qualidade, pelo crime específico em concreto. Isto, dado que o auxílio
de A é, neste caso, um ato de execução: existe uma execução conjunta do crime (tendo A
falsificado o documento com o objetivo de B o passar a limpo e o juntar à ação de investigação
de paternidade), pelo que este é considerado um coautor; e não um cúmplice, na medida de ter
dado apenas um contributo direto.
ILICITUDE
Ilicitude ou tipo de ilícito?
Para a maior parte da doutrina, a ilicitude em Direito Penal analisa-se de acordo com a técnica
negativa de exclusão: ou seja, um facto será ilícito se a este não se puder aplicar uma causa de
exclusão de ilicitude e, consequentemente, justificar dito facto.
No entanto, para Figueiredo Dias, a tipicidade não se deve automatizar quanto ao ilícito, pois
o tipo só existe associado ao ilícito: isto, porque os elementos objetivos e subjetivos dos tipos
fundamentam positivamente a ilicitude, tendo as causas de exclusão um carácter meramente negativo.
Figueiredo Dias reconhece, no entanto, que tal ideia apenas poderá ser defendida teoricamente, dado
que, na prática, existem vantagens em fazer esta autonomia do tipo face ao ilícito – nomeadamente,
porque quando ocorre uma causa de exclusão da ilicitude, o comportamento deve continuar a ser
considerado típico, só se excluindo o ilícito.
➔ Isto vem desde Beling e do seu tipo indiciário de ilicitude, que está ligado ao que fundamenta
positivamente a ilicitude – ou seja, aos elementos positivos da ilicitude que, no fundo, são os
elementos subjetivos e objetivos do tipo.
Já Bárbara Brito argumenta que não existe nenhuma vantagem prática, na medida em que, no fundo,
Figueiredo Dias acaba por raciocinar da mesma forma que o resto da doutrina. Ele analisa os
elementos positivos da ilicitude (ou seja, os elementos do tipo), estando aí que a ação é ilícita. No
entanto, estando apenas indiciado, e não confirmado, a ilicitude só será verdadeiramente analisada
através dos elementos negativos da ilicitude – ou seja, só se não existir uma causa de exclusão de
ilicitude é que se pode afirmar (e não apenas indiciar) que a ação é ilícita.
Além disso, denota-se que Figueiredo Dias também cria o ilícito pessoal: ou seja, situa os
elementos subjetivos do tipo (dolo, negligência e elementos especiais) no ilícito, dando-lhes destaque.
No entanto, como já se viu, existe uma vantagem prática em tratar a fundamentação positiva da
ilicitude no tipo – o que, aliás, Figueiredo Dias reconhece, apenas dando mais destaque, a nível
teórico, aos elementos subjetivos (pelo princípio da culpa) que, nessa medida, fariam parte da
ilicitude, na medida em que este elemento constitutivo do crime seria, para este, o mais importante.
➔ O juízo do desvalor do resultado traduz-se na lesão de um bem jurídico ou no perigo dessa lesão
(nos crimes de perigo concreto) – ou seja, fundamenta-se pelos elementos objetivos. Tal resultado,
neste sentido, continua a estar presente nos crimes de mera atividade (onde não existe um evento
separável espaço-temporalmente da ação e do resultado) como, por exemplo, no crime de violação
do domicílio, onde se lesa o bem jurídico “vida privada”.
o Denota-se que este é o juízo mais importante na ação negligente; daí que os crimes
negligentes sejam crimes de resultado, não se conseguindo punir tentativas negligentes.
Ora, vendo-se a ilicitude como uma espécie de contraparte das causas de exclusão, para se
excluir a ilicitude, é necessário neutralizar estes dois desvalores. Assim, os elementos objetivos
compensam o desvalor do resultado; enquanto os elementos subjetivos neutralizam o desvalor
da ação (isto, porque a pessoa pensou que estava perante essa situação, logo a ação que daí resultou
está atenuada na sua ilicitude). Consequentemente, se os elementos subjetivos não existirem, a única
coisa que se consegue atenuar ou compensar é o desvalor do resultado.
➔ Por exemplo, A mata B, sem saber que B o ia matar primeiro com uma arma escondida. Ora, esta
ação atual e ilícita por parte de B, que ia ser concretizada na morte de A, comporta os elementos
objetivos que compensam o desvalor do resultado da ação de A – nomeadamente, a morte de B.
No entanto, o facto de A não saber que há essa agressão atual e ilícita faz com que não se possa
compensar o desvalor da sua ação, pois ele não agiu motivado por essa agressão.
Assim, existindo os elementos objetivos, mas não os elementos subjetivos da causa de exclusão, como
será o agente punido? Apesar de o CP não ter uma solução expressa, muitos autores defendem a
aplicação analógica a todas as causas de exclusão do seu artigo 38º, nº4: segundo este, não existindo
os elementos subjetivos na causa de exclusão por consentimento do lesado (ou seja, se o agente não
souber desse consentimento), o agente será punido pela pena aplicável à tentativa do crime em que
incorreu. Isto justifica-se pelo facto de, no ordenamento jurídico português, a figura que pune, por
excelências, o desvalor da ação é a tentativa – ou porque não há resultado, ou porque o resultado não
pode ser imputado ao sujeito. Ora, nestes casos em que não existem os elementos subjetivos da causa
de exclusão, permanece esse desvalor da ação, que terá de ser acautelado – nomeadamente, com a
punição pela tentativa.
➔ Segundo Conceição Valdágua, a existência deste artigo 38º, nº4 não seria necessário para
colmatar tal dúvida: bastaria fazer a mesma analogia, mas utilizando como base a previsão legal
para a punição da tentativa. De qualquer das formas, esta analogia será possível, na medida em
que beneficia o agente – analogia bonam parte (artigo 29º, nº1 e nº3 CP).
➔ Já segundo Rui Pereira, nas outras causas de exclusão de ilicitude, a falta de elemento subjetivo
só permite que o agente seja punido por tentativa quando o bem jurídico que foi tutelado através
da causa de justificação é superior ou igual ao lesado com a ação praticada no âmbito da causa de
justificação – dado que só nesses casos está eliminado o desvalor do resultado. Por exemplo, o
agente, em legítima defesa, lesa um bem jurídico maior (ex: vida) do que está a proteger com a
sua ação (ex: propriedade): neste caso, o desvalor do resultado não estaria suficientemente
compensado – logo, não se pode punir o sujeito só por tentativa, mas sim por crime consumado.
“Quem desconhece a situação justificadora, atua com desvalor da ação equivalente do lado
subjetivo ao autor de um facto relativamente ao qual se não se verifica qualquer situação de
justificação” – Figueiredo Dias
Falta, por fim, justificar esta necessidade do elemento subjetivo da ilicitude a nível legal, dado
que a sua exigência (nos crimes dolosos) é uma interpretação restritiva a uma norma penal negativa
(ou seja, que exclui a responsabilidade penal).
Há uma parte da doutrina que defende que esta interpretação não será restritiva, mas sim teológica,
segundo a qual será possível retirar a necessidade do elemento subjetivo não só no artigo 38º, nº4,
mas para as restantes causas de exclusão de ilicitude. Por exemplo, no artigo 32º, relativo à legítima
defesa, a palavra “repelir” leva a crer, através de uma interpretação teológica, que o agente saiba da
existência dos elementos objetivos e os queira afastar – isto, sem violar o princípio da legalidade.
Já outra parte da doutrina defende que, sendo uma norma penal negativa, o princípio da legalidade
não se aplica de forma igual como se aplica às normas resultantes dos tipos incriminadores – isto,
dado que as suas finalidades acabam por ser as mesmas: proteger o cidadão do poder punitivo do
Estado, de acordo com a teoria penal. Por isso, tal princípio não deve ser tão limitativo na
interpretação da norma.
1. Agressão:
Ao utilizar a palavra “agressão”, o legislador quis abarcar apenas os comportamentos
humanos que se traduzem em ações jurídico-penalmente relevantes. No entanto, isto não significa
que uma agressão só possa existir através de uma ação em sentido estrito: pode haver uma agressão
através de uma omissão (ex: caso do pai que não vai salvar o filho, e alguém coage o pai a atuar –
esse alguém já age em legitima defesa alheia).
Deste pressuposto pode-se, sim, retirar que está excluída a legítima defesa contra animais e
coisas; assim como contra ações que não sejam consideradas jurídico-penalmente relevantes (ex: se
se atuar contra um sonâmbulo, não se atua ao abrigo de legítima defesa – mas, sim, ao abrigo do
direito de necessidade, onde se atua contra um comportamento humano que não se traduz numa ação
jurídico-penalmente relevante; ou contra um evento natural; ou contra um ataque de um animal).
Além disso, também só se pode falar em agressão se houver uma possibilidade efetiva de lesão
do bem jurídico – o que significa que não pode haver legítima defesa contra tentativas impossíveis.
Por exemplo, A atua contra C em defesa de B, que, no entanto, já estava morto – ora, aqui, a legítima
defesa não se poderá aplicar.
➔ Nestes casos, apesar de não se aplicar a legítima defesa, poder-se-á aplicar a figura do erro, na
medida em que A pensa que há uma ação ilícita atual, mas não há: assim, exclui-se o dolo da ação
de A, e podendo este apenas ser punido a título de negligência se fosse possível prever que B
estava morto; já se tal fosse totalmente impossível, não poderá ser punido de todo.
2. Atual:
A agressão tem de ser, ainda, atual, o que significa que a ação tem de estar em execução ou
ser iminente – não sendo admissível legítima defesa contra uma agressão já consumada (ou futura).
Há, no entanto, uma discussão na doutrina sobre se é ou não necessário, para que uma agressão
se considere atual, que já haja prática de atos de execução, à luz do artigo 22º da alínea c) CP – que
estabelece o limite a partir do qual se pode considerar que existem atos de execução. Ora, de acordo
com esta norma, há um ato de execução sempre que o agente praticar um ato de natureza a fazer
esperar que, imediatamente a seguir, se lhe siga um ato adequado a produzir o resultado.
Consequentemente, uma parte da doutrina entende que terão de existir já atos de execução praticados
à luz da alínea c); enquanto outra parte da doutrina considera que basta uma expectativa fundada
sobre a prática dos atos da alínea c). Denota-se, no entanto, que Bárbara Brito entende que, para
quem defende que basta esta expectativa, já está a defender a legítima defesa preventiva.
3. Ilícita:
A ação tem de ser ilícita, o que significa que a ação jurídico-penalmente relevante praticada
pelo sujeito (aquela do qual se está a defender) não pode estar justificada: por exemplo, não se pode
atuar em legítima defesa contra alguém que atua, também, em legítima defesa. No entanto, não se
confunde tal necessidade de injustificação com necessidade de violência, dado que pode haver ações
ilícitas não violentas (ex: pode-se atuar em legítima defesa contra um furto).
Além disso, a ação ilícita também não tem de ser dolosa. Por exemplo, A vai atirar sobre algo
que pensa ser um animal, mas que afinal é uma pessoa C, e B atira primeiro para a proteger – aqui,
existe, no máximo, um homicídio negligente por parte de A; mas a ação do mesmo continua a ser
atual e ilícita, pelo que a ação de B, consequentemente, estará justificada.
A agressão ilícita pode, ainda, ser proveniente de um inimputável, visto que a
inimputabilidade só exclui a culpa – mas, como se irá ver mais à frente, grande parte da doutrina
entende que, nestes casos, devem ser impostos limites à legítima defesa.
Requisitos
1. Meio de defesa necessário:
Para que meio de defesa utilizado pelo agente seja necessário, é preciso que não seja possível
recorrer à força pública. Além disso, tal meio terá de ser eficaz – no sentido de ser capaz de afastar o
perigo. Por último, está também implícito, nesta ideia, de que o meio utilizado tenha de ser o menos
gravoso entre todos aqueles que o agente tiver ao seu alcance; ao que Bárbara Brito acrescenta, ainda,
“e/ou o único possível”.
Para chegar a esta conclusão, a doutrina propõe fazer um juízo de prognose póstuma: isto é,
deve interrogar-se se era previsível ao homem “médio”, cumpridor do direito e das leis causais,
colocado na posição do agente e com as condições em que ele estava (ou seja, avaliando-se a conduta
no momento em que ele está perante a mesma, e não depois, de forma mais “fria”), se aquele meio
era o menos gravoso entre aqueles que ele tinha à sua disposição.
1.2. Proporcionalidade (discutível):
Para grande parte da doutrina (Fernanda Palma), para além do meio de defesa necessário, é
preciso que haja proporcionalidade entre a agressão e a defesa. Para averiguar tal proporcionalidade,
interessa, fundamentalmente, qual o bem jurídico ameaçado e qual o bem jurídico lesado com a
legítima defesa.
Este elemento foi introduzido visto que existem casos em que se pode concluir que o meio era
o necessário, porque era o único disponível – mas, mesmo assim, não existir esta proporcionalidade
entre a agressão e a defesa. Por exemplo, A, proprietário de um pomar, atinge mortalmente B, que
lhe invadiu o pomar para furtar fruta: ora, aqui, há claramente uma desproporção entre a agressão e a
defesa, não se verificando o requisito da proporcionalidade.
Fernanda Palma dá, no entanto, outro exemplo, mais interessante: A, paraplégico, é dono de um
pomar, e um rapaz, B, todos os dias vai-lhe furtar esse pomar. A já chamou a polícia, já falou com os
pais de B, já comprou um cão – até que chega a um ponto em que a única forma que A tem de evitar
esse roubo será disparar sobre B. Imagine-se, além disso, que A vivia do rendimento que obtinha a
vender essas maçãs. Ora, Fernando Palma, como entende que o fundamento da legítima defesa é a
dignidade da pessoa humana e a insuportabilidade da lesão do bem jurídico para o sujeito, neste caso,
em que só está em causa o furto de maçãs, não existe tal insuportabilidade – e, consequentemente,
não existe proporcionalidade, pelo que não se pode aplicar a legítima defesa.
Relativamente a isto, Figueiredo Dias dá o exemplo de um paraplégico, a quem furtam uma carteira
com 5€, e para evitar esse furto, este não tem outra opção sem ser dar um tiro no agente. Ou, ainda,
o exemplo do paraplégico que dá um tiro num miúdo que lhe furta as maçãs, como último recurso –
a única forma de parar a conduta do jovem é disparar. Em ambos os casos, apesar de os meios serem
necessários, não existe o requisito da proporcionalidade, pelo que esta parte da doutrina defende que
a figura da legítima defesa não deve, aqui, ser aplicada.
A justificação para exigir esta proporcionalidade varia de autor para autor, dentro dos que
defendem esta proporcionalidade. Para Bárbara Brito, a justificação mais correta será a de Fernanda
Palma. Esta considera que o fundamento da legítima defesa é a proteção da dignidade da pessoa
humana – ou seja, o limite que se deve impor à legítima defesa, à luz da ordem jurídica, resulta da
insuportabilidade da lesão do bem para o lesado, ao ponto de lhe retirar a sua dignidade. Assim, nos
casos apresentados, Fernanda Palma explica que a lesão do bem patrimonial do paraplégico não põe
em causa a dignidade do mesmo, pelo que não é insuportável à dignidade dele – consequentemente,
a legítima defesa não poderia, aqui, ser aplicada.
➔ Não é preciso, aqui, ponderar se o bem jurídico agredido é “maior” do que o bem jurídico lesado
– mas, sim, se o bem jurídico lesado teve consequências negativas extremas na dignidade da
vítima. Para Fernanda Palma, não se poderá matar para salvar um bem patrimonial por exemplo;
mas já poderá ser discutível, se a vítima, para viver, precisar daquele património (ex: uma
máquina que precisa para respirar).
Já para Figueiredo Dias, o princípio informador da legítima defesa será o de que o Direito não pode
ceder nunca perante o ilícito – pelo que a legítima defesa atribui ao agente um autêntico direito de
autoproteção. Consequentemente, como direito subjetivo que é, está limitado pela figura do abuso de
direito (artigo 334º CC), tendo assim limites impostos pela boa-fé, bons costumes, fim social e
económico do Direito, etc. Estes limites resultam, também, no requisito da necessidade de defesa:
assim, para Figueiredo Dias, não se fala de proporcionalidade, mas sim da demonstração da
necessidade da defesa. Para que uma defesa seja necessária, além de o meio utilizado ter de ser
necessário, a própria defesa tem de ser vista como uma reafirmação do direito face ao ilícito no
agredido. Assim, nos casos apresentados, Figueiredo Dias defende que não há esta defesa necessária:
há claramente uma desproporção entre o bem jurídico lesado e ofendido, não existindo, por isso, uma
reafirmação do direito.
Existem outros autores que, por outro lado, não vão buscar esta proporcionalidade entre a
agressão e a defesa (ou demonstração da necessidade de defesa) aos fundamentos da legítima defesa.
Pelo contrário, defendem que este requisito da proporcionalidade resulta do sistema de valorações da
ordem jurídica em geral: segundo este, terá de existir uma proporcionalidade entre o bem jurídico
lesado e o bem jurídico ameaçado – logo, para garantir tal proporcionalidade, impõe-se limites ético-
sociais à legítima defesa.
Conceição Valdágua defende esta posição – dizendo, ainda, que só se exige que o meio seja
necessário ao abrigo do artigo 32º CP e, em casos extremos, deve-se exigir esta tal proporcionalidade
vista à luz dos limites ético-sociais. Costa Andrade, por sua vez, defende que a necessidade de
proporcionalidade não está no artigo 32º, e que exigir a mesma viola o princípio da legalidade – o
que acabará por não fazer sentido, visto que o artigo 33º fala de excesso da legítima defesa.
De qualquer das formas, existem casos em que há uma crassa desproporção entre o bem
jurídico lesado e o bem jurídico protegido.
Um deles será casos relacionados com autoridades policiais, em que são usadas armas de fogo. À luz
do Decreto-Lei nº457/99, aplica-se às forças policiais requisitos diferentes da legítima defesa do que
se aplica aos civis – principalmente quando essa legítima defesa resulta do uso de armas de fogo.
Assim, face a este Decreto-Lei, só é permitido o uso de armas de fogo quando houver perigo iminente
de morte ou ofensa grave à integridade física – artigo 3º, nº2. Ora, este limite pode ser considerado
inconstitucional, visto que o legislador não inclui situações em que esteja em causa a liberdade ou a
autodeterminação sexual, sendo assim demasiado restritivo.
Outro caso será relativo ao regime de armas aplicado aos cidadãos em geral. À luz do artigo 41º, nº1,
alínea b) da Lei nº5/2006, os particulares podem usar armas de fogo, fazendo disparos que se limitem
exclusivamente à advertência para defender o património próprio ou de terceiros – sendo, depois,
essencial que se comprove que o meio era necessário. Já quando estiver em causa o perigo iminente
da morte ou ofensa à integridade física, o legislador diz que o disparo deve ser precedido da
advertência verbal – ora, isto é retirar à legítima defesa a sua razão de ser, ainda para mais sendo que
o legislador exige que em caso algum tal disparo pode visar uma parte mortal do corpo humano.
Além disso, este perigo tem de ser 3) atual – ou seja, em termos temporais, este terá de se
encontrar próximo da lesão, no sentido de que a própria comunidade já sente que este vai ser colocado
em determinado bem jurídico. Terá, também, de ser 4) real: se a pessoa pensa que há um perigo para
um bem jurídico seu e, afinal, não há, existe erro sobre os pressupostos de facto sobre uma causa de
ilicitude – pelo que se exclui o dolo (artigo 16º, nº2 CP), podendo o agente ser punido a título de
negligencia (artigo 16º, nº3 CP).
Requisitos
1. O meio tem de ser adequado para afastar o perigo:
O meio não poderá ser só necessário – terá de ser, também, adequado. Ou seja, o meio terá de
ser eficaz e, ainda, o menos gravoso entre os disponíveis, segundo um juízo de prognose póstuma
feito ex ante; mas terá, também, de ser adequado, ou seja, terá de ser um meio de resposta socialmente
aceitável à situação.
Por exemplo, R foi apanhado a roubar dois pedaços de queijo e uma lata de salchicha no valor
de 4€, tendo sido condenado em 1ª instância a 6 meses e a uma multa de 100€. O caso subiu até ao
Supremo Tribunal, que conclui que as condições do arguido e as circunstâncias na qual este atuou foi
com o objetivo de fazer face a uma imediata e imprescindível exigência de se alimentar – agindo,
portanto, em estado de necessidade. Assim, quando o furto é feito por necessidade, exclui-se a
ilicitude, sendo que esta terá de ser uma necessidade imprescindível – ou seja, terá de haver a
demonstração da necessidade do meio.
Já outro exemplo mais polémico será a situação de um idoso, que precisa de um medicamento para
sobreviver ou para sobreviver sem dor – no entanto, depois de ter recorrido à Segurança Social e à
sua justa de freguesia, não o consegue obter. Assim, este decide furtá-lo. Ora, apesar de ser uma
necessidade menos básica do que alimento, é na mesma socialmente aceitável que uma pessoa em
dor e perigo de vida furte um medicamento.
Por exemplo, A provoca um incêndio para poder entrar na casa de outrem – foi ele que que
provocou a situação de perigo. No entanto, imagine-se que A se apercebe que está uma pessoa dentro
da casa, e vai salvá-la – ora, apesar de ter sido A a criar o perigo, este pode entrar nessa casa de
outrem, para salvaguardar interesses de terceiros (nomeadamente, a vida do outro). Tal ação não
exclui, assim, a ilicitude do incêndio – mas apenas a ilicitude do dano de entrar em casa de outrem.
No entanto, para a maior parte da doutrina, este requisito só se justificada quando a situação de perigo
tenha sido criada dolosamente pelo próprio: se já for por descuido, não estará em causa este requisito
do direito de necessidade e, portanto, o agente pode atuar ao abrigo do estado de necessidade. Uma
coisa é criar dolosamente um situação de perigo e, depois, ter de atuar ao abrigo do estado de
necessidade (exemplo acima dado); outra coisa é criar dolosamente uma situação, especificamente
para atuar ao abrigo do estado de necessidade.
➔ Aqui existe, tal como na figura da legítima defesa, um comportamento humano. No entanto,
enquanto a legítima defesa se aplica quando tal ação é feita contra o agressor, no direito de
necessidade, a ação praticada não é contra o agressor. Assim, por exemplo, se A, para salvar B de
um incêndio, empurra C e parte-lhe uma parte, aplica-se, na mesma, o estado de necessidade,
visto que não se age contra um “agressor”.
O legislador, ao utilizar a palavra “interesse”, pretende esclarecer que não basta apenas uma
mera comparação de bens jurídicos entre o do ofendido e o a salvaguardar – este queria aqui chamar
a atenção para outros fatores que não apenas o bem jurídico, nomeadamente o reflexo subjetivo do
bem na esfera do seu titular.
➔ Por exemplo, A para evitar perder o seu ordenado, parte os óculos de B, que têm exatamente o
mesmo valor que o ordenado de A – só que, ao contrário de A, B é multimilionário. Ora, aqui,
apesar de o valor ser exatamente o mesmo, o reflexo subjetivo do bem na esfera de A faz com
que se possa chegar à conclusão de que há uma sensível superioridade do interesse a salvaguardar
do A, face ao interesse lesado do B.
Com esta expressão, chama-se, também, à atenção para a proximidade/intensidade da lesão, ou seja,
o grau de perigo: por exemplo, uma ambulância, para evitar o perigo de morte da pessoa que lá está
dentro, vai em excesso de velocidade, pondo em perigo a vida dos transeuntes – mas esta é uma lesão
longínqua, que só se concretizará se a ambulância efetivamente bater em alguém.
Portanto, o que o legislador exige é que haja uma sensível superioridade do interesse a
salvaguardar face ao interesse do lesado. A palavra “sensível” apela a uma superioridade atendível
pelos sentidos, mas a nível social e cultural: ou seja, trata-se do sentido geral da comunidade,
relativamente a um determinado interesse em relação ao outro. Por isso, para a maior parte da
doutrina, quando o legislador diz que tem de haver uma sensível superioridade, esta será no sentido
de manifesta, inequívoca superioridade do interesse a salvaguardar face ao interesse lesado.
O que acontece, então, quando ambos os bens jurídicos a ser ponderados são vidas? Ora, neste caso,
existe o princípio da igualdade entre vidas, segundo o qual todas as vidas têm o mesmo valor – assim,
mesmo em situações em que uma vida é sacrificada para saltar mais vidas, este princípio impede que
a figura do estado de necessidade seja aplicada: o legislador exige que o interesse salvaguardado seja
manifestamente superior.
O princípio do respeito da igualdade entre vidas mostra-se, assim, extremamente ambíguo, ao permitir
que se possam deixar morrer 10 pessoas para permitir que 1 viva. No fundo, o princípio da igualdade
entre vidas existe para salvaguardar a vida dos mais fracos – assim, para a maior parte da doutrina,
não é manifesto que 1 vida vale menos que 10.
➔ Existem autores que resolvem estes casos através da figura do estado de necessidade defensivo,
indo buscar elementos à legítima defesa e ao direito de necessidade – nomeadamente, a reação
contra um perigo, e não uma pessoa agressor (ex: no caso de matar o “homem gordo”, este não
agrediu ninguém, logo não se pode falar em legítima defesa). No entanto, não se exige o requisito
de “sensível superioridade do interesse a salvaguardar face ao interesse lesado” nem o da
“razoabilidade da imposição do sacrifico” – caso contrário, estar-se-ia a avaliar o homem que
morre como “menos homem”, retirando-lhe assim a sua dignidade humana.
o Outros autores, no entanto, não concordam com esta causa de exclusão supralegal. No
entanto, também não acham que se deve responsabilizar criminalmente o bombeiro que fez
a decisão de matar 1 pessoa para salvar 10 pessoas, visto que este age ao abrigo do estado de
necessidade desculpante – exclui-se a culpa, pois não é razoável exigir-lhe outra conduta.
Este requisito surge como “critério corretor” para o requisito falado anteriormente: isto é,
mesmo para aquelas situações em que o interesse salvaguardado é sensivelmente superior ao interesse
lesado, pode acontecer que não seja razoável impor ao lesado o sacrifício do seu interesse.
Por exemplo, imagine-se que A está na sala de espera de um hospital, e B entra nas urgências com
lesões graves provocadas por um acidente. É determinado que este precisa de certo tipo de sangue
para sobreviver, e a única pessoa que tem esse tipo de sangue é A. Ora, ao dar sangue, A vai salvar a
vida de B – poderá, então, o médico retirar sangue compulsivamente de A para salvar B, mesmo que
A não consinta? Neste caso, Bárbara Brito concorda que, para determinar o âmbito de aplicação desta
restrição, é necessário ter em conta o princípio da dignidade da pessoa humana – ora, quando é que o
sacrifício dos direitos individuais põe em causa a dignidade da pessoa humana?
A, aqui, é de facto utilizado quase como instrumento, não sido vista como uma pessoa completa, mas
apenas como algo que tem o que é necessário para que outra pessoa, B, viva. No entanto, por outro
lado, não se fala aqui de uma doação de órgãos nem nada de mais: apenas se fala em retirar sangue,
que envolve apenas uma pica e que não implica a lesão da vida, em si, de A – pelo que será discutível
se poderá ser dado a este o direito de defesa face ao médico.
Consequentemente, se se achar que a retirada de sangue não é razoável, não se enquadra a ação do
médico no estado de necessidade. Contudo, mesmo que não se exclua a ilicitude deste
comportamento, poderá depois excluir-se a culpa, na medida em que o médico age ao abrigo do estado
de necessidade desculpante.
5. Elemento subjetivo:
O agente tem de ter conhecimento de que o perigo ameaça interesses juridicamente protegidos
de um agente ou de terceiro – por exemplo, o médico terá de saber que há uma pessoa em risco de
perigo, para que o seu comportamento seja enquadrado no estado de necessidade.
Figueiredo Dias entende que o princípio justificador quer do direito de necessidade, quer do
conflito de deveres, tem natureza dual. Isto é, por um lado, justifica-se devido a uma razão de utilidade
social, traduzida na proteção de interesse socialmente mais importante entre aqueles que se encontram
em conflito. Por outro lado, justifica-se, também, devido à necessidade de impor um mínimo de
solidariedade entre membros da sociedade – sendo que, no entanto, estas exigências não podem ser
levadas longe demais, ao ponto de tornar cada cidadão em “polícia” da salvaguarda dos interesses
dos outros e/ou da comunidade. Em última análise, o princípio por detrás destes acaba por ser o
princípio da ponderação de interesses, que tem de ter em conta todos estes pontos referidos por
Figueiredo Dias.
Assim, a diferença entre o direito de necessidade e o conflito de deveres será que, no conflito de
deveres, o agente não é livre de intervir no conflito – ou seja, a sua ação passará sempre por cumprir
pelo menos um dos deveres em causa.
Relativamente aos seus requisitos, exige-se, por um lado, que o agente cumpra um dever de
valor igual ou superior àquele que se não cumpre – por exemplo, na pandemia, havia situações em
que duas pessoas precisavam de uma mesma máquina para viver. Ora, a conduta do médico, que
escolhe uma delas, não pode ser considerada ilícita, porque claramente há aqui dois deveres –
nomeadamente, o de salvaguardar a vida de cada uma das pessoas –, sendo que é cumprido um dever
de valor igual ao que foi sacrificado. Além disso, o agente terá, também, de saber que existe tal
situação – elemento subjetivo.
No entanto, se a situação fosse um médico que desliga uma pessoa já ligada a uma máquina, para
ligar outra que precisa dessa mesma máquina, já não estará em causa um conflito de deveres porque,
em relação à pessoa que está ligada à máquina, o dever já foi (ou, pelo menos, está a ser) cumprido.
Uma parte da doutrina defende, ainda, que a conduta de desligar a máquina de uma pessoa será matar
por ação, algo que é mais desvaloroso do que matar por omissão (artigo 10, nº3 CP) – como acontece
na situação de não ligar uma pessoa à máquina.
Assim, se se matar por ação, estar-se-á a sacrificar um interesse superior àquele que é protegido; mas
se o médico não ligasse, já não poderia ser punido por homicídio por omissão, visto que atua ao abrigo
do conflito de deveres: ao não ligar, está a cumprir um dever de valor superior a desligar.
➔ Isto tem muita importância na prática, porque se o médico não desliga, a pessoa que precisava de
ser ligada à máquina não pode atuar em legítima defesa, porque a conduta do médico é
considerada lícita, já que atua em conflito de deveres. Já ao médico que desliga a máquina, não
se aplica o conflito de deveres – mas aplica-se o estado de necessidade desculpante, o que
significa, na mesma, que é uma ação ilícita –, a pessoa que estava primeiramente ligada já pode
atuar em legítima defesa.
Este surge como elemento positivo do tipo quando o tipo de crime não está preenchido se não houver
consentimento – por exemplo, o homicídio a pedido (artigo 134º CP) só está preenchido, enquanto
conduta típica, se houver um pedido por parte da vítima.
Pelo contrário, este irá surgir como elemento negativo do tipo quando a sua existência leva a que não
se possa dizer que está preenchido o tipo – isto é, o consentimento exclui a tipicidade. Aqui, não há
consenso doutrinário, no entanto, sobre se o consentimento deve ser encarado como causa de exclusão
da ilicitude ou da tipicidade: tudo depende da maneira de encarar o que é que o DP tutela.
➔ De acordo com Silva Dias e Conceição Valdágua, o Direito Penal não protege tanto bens jurídicos
em questão, mas sim a relação que existe entre estes e o seu titular: ou seja, o Direito Penal protege
a livre disposição dos bens por parte do seu titular. Consequentemente, o consentimento será
sempre um elemento negativo do tipo e uma causa de exclusão da tipicidade – não há sequer
preenchimento do tipo, porque este pressupõe a livre disponibilidade.
o Ou seja, o consentimento só conta como elemento negativo quando o bem jurídico em causa
só tem valor quando associado à sua livre disposição pelo titular (ex: no caso da
autodeterminação sexual, em que se houver consentimento, não há violação).
➔ Já para Figueiredo Dias, é necessário distinguir entre bens jurídicos que só têm valor quando
estão associados à sua livre disposição; e bens jurídicos que têm valor objetivamente,
independentemente da posição do seu titular face ao mesmo. Assim, relativamente aos bens
jurídicos que valem por si só (ex: propriedade e integridade física), o consentimento só pode surgir
como causa de exclusão da ilicitude; já quando aos bens jurídicos associados à livre disposição,
o consentimento já surgirá como causa de exclusão de ilicitude (ex: autodeterminação sexual).
Pressupostos
1. A existência de bens jurídicos livremente disponíveis:
A vida será um dos bens jurídicos que é indisponível: aliás, se fosse disponível, e se pudesse
pedir a alguém para nos matar, não haveria o crime de homicídio a pedido – consequentemente, da
interpretação do ordenamento jurídico, pode-se concluir pela sua indisponibilidade. Considera-se,
também, que quaisquer outros bens de personalidade elementares são indisponíveis (ex: mesmo que
se consinta que alguém nos torne escravo, esse consentimento não é considerado válido). Também os
bens jurídicos comunitários supralegais não podem ser considerados disponíveis.
Particularmente difíceis são os casos que envolvem a integridade física, dado que este é o bem
jurídico que traz as maiores dúvidas: até onde é que se pode consentir que haja lesão deste bem
jurídico – ou seja, até onde podemos considerar a integridade física como um bem jurídico
disponível? O artigo 149º CP pode, eventualmente, ajudar a decidir.
3. A não ofensa aos bens costumes pelo facto consentido (e não pelo próprio consentimento):
Além disso, o facto consentido (e não o próprio consentimento) não pode ofender os bons
costumes – remetendo-se, assim, para o artigo 149º CP. Neste âmbito, afirma-se, por exemplo, que
alguém não poderá consentir a facto que lhe cause uma lesão irreversível da integridade física, dado
que tal contrariaria os bons costumes. Agora, se se permitir que alguém tire um rim para salvar
outrem, tal facto consentido já não contraria a ordem pública.
Portanto, será necessário olhar para o caso concreto e ver os fins, a motivação, os meios empregues,
a amplitude da ofensa e, casuisticamente, decidir se há ou não uma ofensa dos bons costumes. A
avaliação dos bons costumes é feita à luz de valores supralegais, de forma universal e não tendo em
conta os costumes de um certo país ou etnia – daí a ressalva do artigo 149º, nº3 CP.
Requisitos
Por um lado, o consentimento tem de ser expresso, por qualquer meio, que traduza uma
vontade séria, livre e esclarecida. Logo, por exemplo, se alguém leva outra ao engano, de forma a
fazer com que esta consinta; ou simplesmente a coagir a fazê-lo, tal consentimento já não traduzirá
uma vontade esclarecida. A mesma lógica se aplica a alguém que consente enquanto está num estado
emocional conturbado conhecido.
Existe, no artigo 39º CP, a figura do consentimento presumido, que é equiparado ao consentimento:
o consentimento será presumido quando a situação em que o agente atua permite supor que o lesado
teria, eficazmente, consentido ao facto, se tivesse essa oportunidade – por exemplo, o vizinho que
entra na casa do vizinho porque há uma torneira a inundar a casa: presume-se que este prefira que ele
entre, a ficar com a casa toda inundada.
Esta figura está muito presente no contexto médico, especialmente de situações cirúrgicas de
urgência, em que não há tempo para pedir o consentimento à vítima. Se não houver testamento vital,
o médico presume o consentimento na sua intervenção, porque, considerando a vontade hipotética da
vítima, não tendo esta feito testamento vital contrário quando tinha essa oportunidade, presume-se
que esta daria consentimento para ele fazer o necessário para salvar a sua vida.
➔ Outro caso será se o médico souber que a vítima, que precisa de uma transfusão de sangue, é
testemunha de Jeová – aqui, o médico não poderá presumir que há o consentimento da mesma
(no entanto, se mesmo assim agir, poder-se-ia invocar, em última instância, o estado de
necessidade desculpante).
Relativamente ao elemento subjetivo, o agente tem de conhecer o consentimento e que ele é
sério, livre e esclarecido.
Casos práticos:
1. A e B decidiram assaltar o apartamento de C. Para o efeito, pensaram que a melhor forma seria
oferecerem a D, vizinho de C, 1/3 do que de lá conseguissem subtrair, se D convidasse C para jantar e o
mantivesse afastado de casa durante 2 horas (o tempo necessário para o assalto). D acedeu. Na noite
combinada, durante as 21h, C saiu de casa para jantar com D, e A e B introduziram-se no apartamento
daquele. O assalto, porém, durou mais tempo do que o combinado, pelo que no preciso momento que
saíram do apartamento de C, A e B deram de caras com o dono da casa e desataram a fugir. C percebeu
imediatamente o que tinha acontecido e correu atrás deles.
Poucos metros depois, disparou na direção dos assaltantes, acabando, por falta de pontaria, por acertar
em E que se preparava, quando foi atingido, para matar F com uma facada. Ainda premiu o gatilho uma
segunda vez, mas percebeu depois que a pistola só tinha uma bala. E foi transportado ao hospital onde
acabou por morrer – mas apenas porque G, a única cirurgiã de serviço, se recusou a realizar a operação
que lhe podia salvar a vida, uma vez que reconheceu E como o fornecedor de droga da sua filha. G
acreditava verdadeiramente que a lei não a podia obrigar a salvar a vida do responsável pela morte da
sua filha por overdose poucos meses antes.
Relativamente ao crime de furto, A e B são coautores do furto qualificado (artigo 204º, nº1,
alínea f) CP), dado que entre os mesmos existe não só uma decisão conjunta de praticar este crime;
mas também uma contribuição conjunta na execução do mesmo, na medida em que ambos tomaram
parte direta. Para além disso, estes também serão instigadores de D, na medida em que fazem nascer
na cabeça deste a decisão de praticar o facto – existindo, ainda, uma decisão feita por D, praticando
atos de execução do crime de forma dolosa. Sendo tanto coautores como instigadores, a coautoria
consume a instigação porque é uma forma mais perfeita de punição – pelo que existe um concurso
aparente por subsidiariedade.
Já quanto a D, este foi determinado por A e B a participar, pelo que é instigado. No entanto, se este
não atraísse C para a casa dele, o plano falharia – ou seja, a interferência que tem na execução é
considerada essencial. Especificamente, D tem o domínio negativo do facto, na medida em que ele
tem o poder de fazer fracassar o plano com a não prestação do seu contributo; além de que esse
contributo se dá durante a execução do crime em questão – logo, este toma parte direta no crime de
furto qualificado, pelo que é coautor do mesmo.
Relativamente à ação de C disparar, existe, aqui, uma aberratio ictus, dado que C acerta em E
quando, na verdade, queria acertar em A ou B – assim, existem dois objetos diferentes que, no entanto,
têm a mesma identidade típica. Neste âmbito, será necessário decidir ou pela via da teoria da
equivalência, ou pela via da teoria da concretização. De acordo com a maior parte da doutrina, que
defende a teoria da concretização, C teria de ser punido em concurso real, pela tentativa do crime de
homicídio de A e B; e o homicídio negligente de E.
➔ Poderá a tentativa de homicídio de A e B ser integrada na figura da legítima defesa? A legítima
defesa implica que existe uma agressão atual – no entanto, A e B já estavam a fugir do local com
as coisas roubadas. Discute-se, na doutrina, se a consumação do furto se dá apenas com a
subtração – nomeadamente, quando A e B saem da casa – ou se é necessário, além disso, que haja
posse pacífica. Adotando-se a posição de Figueiredo Dias, o furto só seria consumado com a
posse pacífica da coisa, pelo que a atuação seria atual. Seria, também, discutível se o meio
utilizado foi o necessário, podendo-se, no entanto, argumentar que sim devido a não existir tempo
para chamar as forças policiais – logo, o meio foi o necessário, na medida em que era o único
disponível. Contudo, a análise iria sempre esbarrar no requisito da proporcionalidade, dado que
existe uma crassa desproporção entre o bem jurídico lesado (propriedade) e o bem jurídico
ofendido (vida): dizer o contrário seria pôr em causa traços marcantes da dignidade da pessoa
humana, no entendimento de Fernanda Palma. Assim, havendo este excesso, não se exclui a
ilicitude – podendo-se, no entanto, excluir a culpa, se se provar que C agiu sob um estado
emocional de perturbação, susto ou medo; caso contrário, a pena poderá, apenas, ser atenuada.
o No entanto, se C tivesse dolo apenas relativo ao bem da integridade física de A e B, então já
não se punha tanto em causa a proporcionalidade – era mais difícil dizer que havia excesso.
➔ Relativamente ao homicídio negligente, E acaba, depois, por morrer apenas pela recusa de G a
operá-lo – ou seja, existe uma interrupção do nexo causal por intervenção de terceiro (G).
Consequentemente, C não pode ser punido pelo homicídio negligente de E, mas apenas por
ofensas à integridade física negligente. Por outro lado, esta conduta poderia ser integrada na figura
da legítima defesa alheia, dado que, com o seu tiro, C impede E de matar F: assim, não importa
que o elemento subjetivo não esteja preenchido, visto que nos crimes negligentes, tal elemento
subjetivo não é exigido quando o desvalor da ação já é diminuto.
Concluindo, relativamente ao primeiro disparo, C será punido por tentativa de homicídio de A e B.
Quanto ao segundo disparo que este tenta fazer, tal ação afigura-se como uma tentativa impossível
do crime de homicídio: C tem dolo e faz o ato de execução de premir o gatilho, mas seria impossível
chegar ao resultado pretendido por causa dos meios (nomeadamente, o facto de este só ter uma bala).
Relativamente a G, esta comete o crime de homicídio por omissão – existindo, aqui, uma
omissão impura, visto que está relacionada causalmente com o resultado. Assim, face ao artigo 10º,
nº2 CP, tal crime só pode ser punível se o agente tiver uma posição de garante.
Ora, de acordo com o critério formal, aqui o dever de agir de G teria origem na lei ou na ingerência
– no entanto, tal critério é criticado, dado deixar de fora situações em que há este dever de garantia.
Assim, de acordo com o critério material das fontes, o dever de garante advém, neste caso, do facto
de haver um dever específico de assistir aos titulares de bens jurídicos, independentemente da fonte
de perigo. Este, por sua vez, pode advir 1) de uma assunção fáctica de deveres de custódia; ou 2) da
solidariedade natural apoiada no vínculo jurídico. De qualquer das formas, existiria uma posição de
garante de G, pelo que esta poderia ser punida nos termos acima referidos.
No entanto, esta encontra-se em erro sobre a ilicitude, na medida em que acreditava que a lei não a
podia obrigar a salvar a vida do responsável pela morte da sua filha. Este erro é um erro moral, que
choca com as valorações da nossa ordem jurídica. Assim, de acordo com o artigo 17º CP, a culpa não
pode ser excluída, na medida em que tal erro é censurável, não sendo evitável nem pautado por valores
que a ordem jurídica português também tutela. Consequentemente, G será punida pelo crime de
homicídio por omissão, nos termos descritos acima.
CULPA
A culpa traduz-se num juízo de censura dirigido ao agente, pela prática do facto ilícito. Assim,
enquanto a ilicitude é um juízo de desvalor que recai sobre o comportamento em si, a culpa é um
juízo de censura feito à pessoa que, em questão, praticou o facto típico ilícito.
Para grande parte da doutrina, incluindo Bárbara Brito, a culpa traduz-se num juízo de censura
que se faz ao agente pelo facto de, podendo, não se ter motivado pelo direito – portanto, o que se
analisa na culpa é a capacidade de motivação pelo direito. Não se confunde esta com a capacidade de
adotar uma ação alternativa, que interessa apenas para o conceito de ação. No entanto, ao mesmo
tempo, a culpa, sendo um juízo de censura, envolve uma avaliação moral, o que significa que, por
vezes, chega-se à conclusão de que, apesar de a pessoa ter capacidade de se motivar pelo direito, esta
era diminuída – e, por isso, não era exigível, não sendo razoável que o Direito exige essa motivação.
➔ Fernanda Palma também vai no mesmo sentido quanto ao conceito material de culpa – relevância
da capacidade de motivação pela norma de Direito. No entanto, esta fala, por vezes, do “poder”
agir de outro modo – algo que, para Bárbara Brito, poderá ser contra procedente, dado que se
pode confundir com a avaliação feita relativamente à ação. Como já foi explicado, uma coisa é
ter a capacidade de ação alternativa; outra é ter a capacidade de se motivar pelo Direito – sendo
que esta última já pressupõe a capacidade de ação alternativa.
Já segundo Figueiredo Dias, apesar da culpa também ser um juízo de censura que se faz ao agente
pela prática do facto, tal o é devido a aquele comportamento ser expressão de uma atitude interna
juridicamente desaprovada – e, assim, pelo qual o agente tem de responder, perante as exigências do
dever-ser sociocomunitário. Para este, a culpa é o ter de responder pelas qualidades pessoais,
juridicamente censuráveis que estão expressas no ilícito típico que a pessoa praticou – ou seja,
responder pela atitude manifestada pelo facto, quando essas qualidades são juridicamente
desaprovadas. Por outras palavras, na culpa vê-se um reflexo do agente como ele é, nomeadamente
na forma como ele atua – podendo-se excluir a culpa se se considerar que esta não revela nenhuma
atitude negativa face ao direito (ex: exclui-se a culpa de um inimputável porque, apesar da sua ação
ser contra o Direito, não revela algo negativo face ao direito, porque não tem capacidade de se motivar
quanto ao mesmo).
Para grande parte da doutrina, o critério decisivo será o real psicológico (ou seja, o concreto poder
de se determinar pela norma); enquanto para Figueiredo Dias, o critério é sempre normativo, de
carácter pessoal-objetivo.
Com isto, Figueiredo Dias considera que, na culpa, o homem decide-se sobre si mesmo,
criando o seu próprio ser ou afirmando a sua própria essência. Além disso, acrescenta que a culpa não
deixa de supor a liberdade do agente – não no plano das propriedades de ação, mas sim no plano de
liberdade como característica do ser humano como um todo. Bárbara Brito critica esta posição,
defendendo que não se deve fugir de tentar saber se há uma liberdade de ação – aliás, para esta,
Figueiredo Dias acaba por negar o livre arbítrio, pensando que não é possível prová-lo.
Esta visão é diferente do conceito pessoal de Roxin, na medida em que este último procura, apenas,
saber se há uma ação dominada pela vontade e relevante para o Direito. Ora, uma das críticas feitas
a Figueiredo Dias é precisamente que este, ao dizer que a culpa é uma exteriorização da
personalidade, está a fazer essa ligação sem pensar na personalidade enquanto estando ligada ao
Direito – pelo contrário, está apenas preocupado com a possibilidade de ação alternativa. Assim,
acaba por se fazer a mesma crítica feita anteriormente a Fernanda Palama: na avaliação da culpa,
importa a personalidade ligada pela possibilidade de se motivar pelo Direito, e não pela possibilidade
de ação alternativa.
Roxin criou, ainda, uma categoria nova à qual chama responsabilidade, que adiciona à culpa
tradicional (capacidade do agente de se motivar pelo direito) a ideia de necessidade da pena: ou seja,
para saber se uma pessoa é responsável, averigua-se se a pena é necessária quanto às suas finalidades.
Contudo, este elemento “responsabilidade” vem tentar delimitar algumas figuras que atuam com
causas de exclusão da culpa, mas em que está, também, presente a necessidade da pena. Por exemplo,
quando o excesso da ação é devido a um estado emocional como o medo, susto ou perturbação, tal
excesso não será censurável: a ordem jurídica, como um todo, considera que estes são importantes de
acautelar, na medida em que não são negativos. Consequentemente, nesses casos, a pena será
dispensável. No entanto, se o excesso for feito por vingança, tal emoção já não é tida em consideração.
No entanto, o grande problema de Roxin é que este defende um conceito social de culpa: ou seja, a
culpa do agente é a culpa que os outros pensam que este tem, de forma a assegurar as necessidades
que a sociedade tem, através da pena a aplicar àquele agente em concreto. Ora, sendo o conceito de
culpa essencial para a dignidade da pessoa humana (e vice-versa), o conceito social de culpa acaba
por ser uma contradição a essa ideia defendida.
A culpa, tal como a ilicitude, analisa-se pela técnica negativa da exclusão: isto é, para saber
se há culpa no caso concreto, terá de se averiguar alguma causa de exclusão – verificando-se, exclui-
se a culpa. Teresa Beleza e Conceição Valdágua, no entanto, defendem a divisão entre causas de
exclusão da culpa em sentido amplo e as em sentido estrito.
Há outra parte da doutrina que defende que se deve analisar a culpa começando por verificar se estão
presentes os elementos sem os quais não se pode afirmar que o agente tenha atuado sem culpa –
nomeadamente, a imputabilidade e a consciência da ilicitude. Só depois é que se analisará se se
verificou alguma causa de exclusão em sentido estrito. No entanto, em última análise, ambas as
formas de analisar a culpa vão dar ao mesmo.
Nos termos do artigo 20, nº1, as anomalias psíquicas que podem resultar na pessoa ser declarada
inimputável são:
Denota-se, por fim, que a inimputabilidade não é excluída quando a anomalia psíquica tiver
sido provocada pelo agente, com intenção de praticar o facto sob a sua influência. Isto é uma ação
livre na causa, sendo que o momento que interessa a nível penal é o momento que ele decide, por
exemplo, começar a beber para ficar num estado tal que, no momento da prática do facto, ou não tem
capacidade para valorar ou para se motivar. Para a maior parte da doutrina, o agente tem de ter atuado
com dolo direto ou necessário em relação ao facto que pretende praticar – “com intenção” (artigo
20º, nº4 CP). Já se se colocar em tal estado sem qualquer intenção, aplica-se o artigo 295º CP.
Dentro do erro sobre a ilicitude (que não pode ser doloso), distingue-se dois tipos de erro: o
1) erro direto sobre a ilicitude; e o 2) erro indireto sobre a ilicitude.
No erro direto sobre a ilicitude, o agente está em erro sobre proibições cujo conhecimento é
dispensável à tomada de consciência da ilicitude pelo facto. Ou seja, ele está em erro sobre proibições
que transportam consigo uma carga valorativa, uma relevância ético-social. Este distingue-se do erro
sobre normas que recaem sobre comportamentos axiologicamente neutros (artigo 16º, nº1, última
parte CP), dado que esse erro se relaciona com proibições que a pessoa tem mesmo de conhecer para
se aperceber que está perante um facto ilícito – ou seja, nesses casos, o conhecimento é indispensável
para que a pessoa se aperceba da ilicitude do seu facto. Pelo contrário, no erro direto sobre a ilicitude,
o erro já será sobre as valorações que o ordenamento jurídico faz relativamente a certa conduta.
➔ Segundo Figueiredo Dias, cabem aqui os erros de proibições que fazem parte do Direito Penal
secundário, relevantemente a pessoas que não têm contacto ocasionalmente com esse ramo de
direito. Outro erro que é abrangido será aquele sobre norma cujo bem jurídico protegido ainda
não tenha sido acolhido/aceite pela comunidade (ex: crime de tráfico de influências).
Já no erro indireto sobre a ilicitude, a pessoa pensa que existe uma causa de justificação na ordem
jurídica, ou está em erro sobre os limites de uma causa de justificação na ordem jurídica. Dá-se, aqui,
o exemplo da dinamarquesa, que fez um aborto em Portugal sem saber que este era criminalizado: se
esta acha que existe uma norma jurídica que não o proíbe, estará em erro direto; se, pelo contrário,
acha que há uma norma jurídica que o permite, estará em erro indireto.
Por contraposição ao erro intelectual, o erro sobre a ilicitude só exclui a culpa se não for
censurável. Para a maioria da doutrina, tal censurabilidade é aferida pelo critério da evitabilidade:
coloca-se a pessoa média, que cumpre em rigor o direito, na posição do agente, com as
particularidades do mesmo, e pergunta-se-lhe se podia ter evitado o erro. Se sim, é censurável; se não,
não é censurável. Aqui, os menores conhecimentos do agente são tidos em conta – mas estes também
não poderão ser censuráveis. Ou seja, terá de se determinar se o agente tinha o dever de saber que tal
conduta era proibida; ou, pelo menos, se tinha necessariamente de ter uma dúvida quanto à ilicitude
do seu comportamento – ou seja, avaliar-se-á se o agente fez tudo ao seu alcance para perceber se tal
conduta é ou não ilícita (ex: caso da dinamarquesa, se o médico lhe disse que o aborto não é punível).
Já Figueiredo Dias adota o critério da retitude da consciência errónea, segundo o qual se averigua se
o agente se pautou por motivos que são permitidos pela ordem jurídica, esquecendo-se de outros. Isto
porque, para o professor, o que está na base da falta de consciência da ilicitude, caso se tenha pautado
por valores que a ordem jurídica tutela, não é uma atitude interna, desvaliosa e, nesse sentido,
censurável por parte do agente. Consequentemente, para este, a culpa resulta de haver uma atitude
interna, desvaliosa por parte do agente – elemento emocional do dolo. Assim, no exemplo do holandês
que mata um amigo que lhe pediu, preenchendo o homicídio por pedido, se este acedeu ao pedido do
amigo por solidariedade e compaixão, será mais indicado punir o mesmo pelo homicídio privilegiado.
➔ Não confundir o erro sobre a ilicitude com o erro do artigo 16º, nº2 CP – sendo que este último
tem um elemento intelectual, dado que há uma discrepância entre o que o agente representa, e o
que efetivamente se passa na realidade. Nesse caso, exclui-se o dolo (e não a culpa), só se podendo
punir por negligência se tal erro fosse evitável, e se existir essa hipótese (nº3).
o Denota-se que o artigo 16º, nº2 CP também não avalia a culpa do agente em concreto: o facto
de este estar em erro conta, apenas para se excluir (ou não) o dolo; depois, terá de se ver se,
tendo em conta o erro em que este estava, seria exigível que tivesse agido de forma diferente.
Causas de Exclusão da Culpa em Sentido Estrito (ou Causas de Desculpa)
A ideia por detrás de todas elas é a ideia de inexigibilidade: ou seja, em todas elas, não seria
razoável exigir do agente outro comportamento. Esta ideia será, segundo Conceição Valdágua, uma
causa de desculpa geral, que se aplica a todos os crimes negligentes e, também, aos crimes omissivos.
Além destas, existem outras causas de exclusão da culpa “típicas”, em sentido estrito, que resultam
da ordem jurídica – nomeadamente, da parte especial do CP.
Além disso, 3) não poderá ser razoável exigir do agente, face às circunstâncias do caso, outro
comportamento – apesar de ele poder. Aqui, faz-se um juízo ex ante: o que interessa é o momento da
prática do facto, pelo que se coloca a pessoa média na posição do agente, enriquecida com os seus
especiais conhecimentos, e pergunta-se-lhe se era razoável a adoção de outro comportamento.
Por fim, será necessário que 4) o agente, com o seu facto, tenha seguido a finalidade de
salvação do bem jurídico ameaçado – não é, assim, preciso que o agente atue com um motivo nobre;
mas é exigido que este aja com o objetivo de preservar o bem jurídico.
Por exemplo, na situação da tábua de Carnéades, não se irá aplicar o direito de necessidade, dado não
existir sensível superioridade do bem salvaguardado, em função do bem lesado. Assim, este é
enquadrado no estado de necessidade desculpante, dado que a ação tem o único objetivo de preservar
outro bem jurídico, nomeadamente a vida do próprio – não sendo razoável exigir ao agente outra
conduta. Já quanto ao exemplo do médico que tem de escolher entre desligar ou ligar a máquina, o
conflito de deveres implica que exista uma mesma valoração dos bens jurídico, sendo que desligar a
máquina afigura-se como mais desvaloroso (homicídio por ação) do que o não ligar (homicídio por
omissão). Ora, se não se excluir a ilicitude com o conflito de deveres, acabar-se-á por excluir a culpa,
com o estado de necessidade desculpante.
Excesso de defesa devido a medo, susto ou perturbação não censuráveis (artigo 33º, nº2 CP):
Esta causa de exclusão da culpa só funciona nas situações em que 1) o agente se encontra num
estado emocional asténico – isto é, que resulta de uma tensão emocional inconsciente –, não se
aplicando aos estados emocionais esténicos – que não resultam da tensão emocional inconsciente,
mas comportam uma energia em excesso (ex: cólera, ódio ou vingança). Além disso, será necessário
que tal estado emocional asténico 2) não seja censurável: ou seja, não pode ser razoável exigir, de
uma pessoa média normalmente fiel ao direito, colocada na posição do agente, outro estado emocional
que não aquele.
Por fim, estes estados terão de 3) provocar excesso de defesa. Fala-se, aqui, de um excesso
intensivo: ou seja, que leva à utilização de meios superiores aos necessários para a defesa, e/ou
quando não existe proporcionalidade entre a defesa e a agressão.
Já o excesso extensivo refere-se a alguém que se defende de uma agressão que deixou de ser atual
por medo, susto ou perturbação. Nestes casos, ou se aplica a ação direta; ou o excesso de defesa, por
analogia – não se aplicando, diretamente, a figura do excesso de defesa ao excesso intensivo, nos
termos do artigo 33º CP. Quando a agressão ainda não é atual, mas poderá ser, aplica-se a legítima
defesa preventiva (supralegal); ou excesso de defesa, se se verificar os pressupostos do artigo 33º CP.
NOTA: Quando há excesso de defesa e, ao mesmo tempo, o agente está em erro, não se pode aplicar
o artigo 16º, nº2 CP – isto, porque se há excesso, já não se estará perante um estado de coisas que, a
existir, excluiria a culpa do agente. Assim, nestes casos, só se poderá eventualmente excluir a culpa
do agente, mas devido a medo, susto, ou perturbação não censuráveis.
PUNIBILIDADE
Por norma, tendo um facto típico, ilícito e culposo, este será necessariamente punível – tal
será o que Figueiredo Dias defende: o facto em que se verifica o tipo de ilícito e o tipo de culpa é, em
princípio, também um facto digno de pena e, por isso, punível. No entanto, pode acontecer que,
excecionalmente, o não seja: ou seja, o facto, como um todo, não atinge os limiares mínimos da
exigência preventiva de punição.
Assim, a ideia por detrás disto é que a dignidade penal faz com que a categoria da punibilidade
possa ser analisada autonomamente: em função, fundamentalmente, de ideias preventivas, o facto
concreto fica aquém do limiar mínimo da dignidade penal. Dito de outra forma, apesar da realização
do tipo de ilícito e do tipo de culpa, a imagem global do facto é uma tal que, em função das exigências
preventivas, o facto não é merecedor de pena.
É por isso, então, que podem surgir condições de punibilidade em sentido amplo – isto é,
pressupostos que têm diretamente a ver com a dignidade penal do facto e com as exigências de
prevenção geral e especial. Nomeadamente, pode-se verificar:
TENTATIVA
A tentativa é considerada uma forma especial de surgimento do crime, visto que, ao olhar para
os tipos de crime previstos na parte especial do CP, estes, habitualmente, surgem como feitos de
forma consumada. Ora, tal como para se poder punir outras formas de participação no crime, terá de
haver figuras de comparticipação; também para se poder punir sem ser na forma consumada, terá de
haver normas gerais que punem a tentativa.
Assim, sempre que se tiver no âmbito da tentativa, deve-se conjugar o artigo 22º CP com o tipo de
crime da parte especial – ex: a tentativa de homicídio é construída com os artigos 22º CP + 131º CP.
Quanto aos elementos subjetivos, denota-se que só existem tentativas dolosas, e não
tentativas negligentes: o artigo 22º CP fala de “decidiu cometer”. A maior parte da doutrina assume
que tal dolo pode ser direto, necessário ou eventual; no entanto, Faria Costa considera que não deve
haver tentativa em dolo eventual, dado que o agente não decidiu fazer o crime – apesar de, no dolo
eventual, existir uma decisão criminosa de conformação com a possibilidade do facto se verificar.
Nos crimes em que, para além do dolo, o tipo exige o elemento subjetivo especial, este também tem
de estar verificado na tentativa – por exemplo, no caso do furto (artigo 203º CP), para além do dolo,
o agente tem de ter a intenção de se apropriar.
Quanto aos elementos objetivos, discute-se em que o momento começam os atos de execução.
Em regra, os atos preparatórios não são puníveis: terá de haver a prática de atos de execução, não
bastando apenas a prática de atos preparatórios – até porque, quando o legislador quer punir atos
preparatórios, ele individualiza-os como um crime (ex: contrafação de moeda – artigo 262º CP). Tal
é resolvido pelo artigo 22º, nº2 CP, que diz, nomeadamente:
➔ São atos de execução aqueles que preencherem um elemento constitutivo de um tipo de crime,
estando abrangidos pelas palavras da norma incriminadora – alínea a). Isto é apenas aplicado aos
crimes de forma vinculada: isto é, um crime que só pode ser praticado de determinada forma (ex:
homicídio por envenenamento, previsto no artigo 132º CP); furto com introdução em casa alheia,
previsto no artigo 204º CP).
o Aqui, consagra-se a teoria formal objetiva, defendida por Liszt, sobre identificar atos de
execução. No entanto, tal teoria não será suficiente, na medida em que só se aplica a estes
crimes de forma vinculada – quando a maior parte dos crimes não são de forma vinculada.
➔ São atos de execução todos os atos que forem idóneos a produzir o resultado típico: portanto,
tudo o que for considerado adequado a produzir o resultado típico é um ato de execução – alínea
b). Para a maior parte da doutrina, nomeadamente Roxin, isto implica, para além de um ato
adequado a produzir o resultado típico, uma proximidade com a esfera da vítima, na medida em
que haja uma estreita conexão temporal entre o ato e o resultado esperado (ex: disparar sobre
alguém é um ato adequado a produzir o resultado morte; tirar uma carteira de uma mala é um ato
adequado a produzir a subtração). Esta alínea corresponde à teoria material objetiva defendida
por Frank, que já se pode aplicar a crimes que não sejam de execução vinculada.
➔ São atos de execução aqueles que, segundo a experiência comum e salvo circunstâncias
imprevisíveis, forem de natureza a fazer esperar que se lhes sigam atos das espécies indicadas
nas alíneas anteriores. Assim, esta alínea c) estabelece o limite mínimo entre o ato preparatório
e o ato de execução.
o Para a maior parte da doutrina, não basta ser atos que, segundo a experiência comum, sejam
de natureza a fazer esperar atos da alínea a) e/ou b). É preciso, também, ter de ter em conta
o plano concreto do agente: nomeadamente, é preciso olhar para este e ver se são atos de
natureza a fazer esperar que, imediatamente, a seguir se lhes sigam atos das alíneas a) ou b)
– doutrina do último ato parcelar. Só nesses casos se pode dizer que se criou um perigo
concreto da lesão do bem jurídico.
Concluindo, Roxin acrescenta que esta alínea c) só faz sentido se existir 1) uma conexão temporal
estreita com a lesão do bem jurídico (dado que só assim se considera que há o perigo de lesão desse
bem jurídico); e 2) uma atuação sobre a esfera da vítima ou do tipo.
Uma parte da doutrina, como José Sousa Brito e Bárbara Brito, que outro fundamento da punibilidade
da tentativa, bastante importante, será o dolo do agente: ou seja, o facto de o agente querer praticar
um crime. Portanto, o principal será a vontade do agente que, por norma, está ligada a uma criação
de um perigo concreto para o bem jurídico – o fundamento é, então, fundamentalmente, o desvalor
da ação ligado ao seu elemento subjetivo. Com isto, é muito mais fácil explicar a punibilidade da
tentativa impossível: mesmo que não tenha existido nunca um perigo concreto para o bem jurídico,
tal será punida na mesma, precisamente porque há um desvalor da ação relacionado com o elemento
subjetivo – o agente queria praticar aquele facto, só não conseguido devido a outras circunstâncias
das quais não tinha conhecimento.
Denota-se que a tentativa, para além de ser típica, tem de ser ilícita, culposa e punível – sendo
necessário fazer a mesma análise, e passar por todos os elementos constitutivos que se avaliam nos
crimes consumados. Consequentemente, para a tentativa ser punível, ao crime consumado tem de
ser aplicada uma pena superior a 3 anos, salvo disposição em contrário. No entanto, além disso,
ao avaliar a punibilidade, existem, ainda, duas possíveis condições: 1) tentativa impossível; e 2) causa
pessoal de isenção da pena da tentativa.
Tentativa impossível
A tentativa impossível é uma tentativa que, apesar de estarem presentes os seus elementos
objetivos e subjetivos, nunca poderia levar à produção do resultado: ou porque 1) o meio utilizado
não é idóneo a produzir o resultado (ex: alguém dispara com uma arma que não estava carregada); ou
porque 2) ou o objeto típico do crime não existe (ex: A dispara sobre B que pensa estar a dormir, mas
B já estava morto) – artigo 23º, nº3 CP.
➔ Não confundir tentativa impossível com crime impossível. Enquanto na tentativa impossível estão
presentes os elementos subjetivos e objetivo; no crime impossível, não há elementos objetivos
nem subjetivos de crime nenhum (ex: alguém achar que ser infiel é crime).
Para a tentativa impossível ser punível é preciso, ainda, que não seja manifesto/evidente/claro,
à data da prática do facto e para a generalidade das pessoas, que o meio não servia ou que o objeto
não existia. Isto tem a ver com o alarme social: se for manifesto, para o tal observador externo, que o
objeto não existe ou que o meio é idóneo, então não existe a criação de um perigo nem em termos
concretos, nem em termos abstratos para a sociedade. Consequentemente, não vale a pena punir a
tentativa: não faz sentido punir uma conduta que não é percetível para a sociedade como sendo digna
de tal punição. Pelo contrário, se não for manifesto, então já há a criação do alarme para a sociedade.
Esta figura abarca circunstâncias que ocorrem após a prática do facto, e que impedem a sua
punibilidade – sendo que esta isenção da pena só é aproveitada pela pessoa em que a causa se dá.
Dentro desta, a desistência voluntária é a causa mais falada, prevista nos artigos 24º, nº1 e 2
e 25º CP – no entanto, também há desistências previstas na parte especial (ex: artigo 294º, nº4 CP).
O fundamento da impunibilidade, neste contexto, tem, por base, várias teorias, nomeadamente:
Ora, todas essas teorias só fazem sentido se a desistência for voluntária: ou seja, de acordo com o
que o agente pensa, ele podia produzir o crime com êxito – mas, mesmo assim, decide não o fazer.
Portanto, a desistência atua como obra sua: o autor diz para ele próprio que não quer alcançar a sua
finalidade, embora o conseguisse – o domínio do “se” e do “como” do abandono da execução do
crime terá de caber só ao agente.
Frederico da Costa Pinto considera que voluntário é o que resulta da vontade do agente, e que não é
imposto nem coagido. Portanto, se o agente abandona a execução em virtude de um receio de ser
apanhado ou, mesmo após a prática do crime, é apanhado com os bens, tais casos são exemplos de
desistência devido uma circunstância externa, que se sobrepõe ao cumprimento das suas intenções –
desistência involuntária: no fundo, o que faz com que o agente desista é algo externo, e não algo que
ele domine. No entanto, o que importa, aqui, é ver o ponto de vista do agente: ou seja, ver se, segundo
o que o agente pensa, este podia prosseguir com êxito e, mesmo assim, decide desistir.
Para além disso, a desistência voluntária também se pode verificar nos termos do artigo 24º,
nº2 CP: ou seja, quando a consumação material do crime é impedida por facto independente e exterior
da conduta do agente, mas prova-se que o agente se esforçou seriamente para impedir a
consumação do crime. Por exemplo, uma mãe abandona a sua criança, mas, passados 30 minutos,
vai buscá-la – sendo que a polícia, 3 minutos antes disso, já a tinha encontrado. Aqui, a mãe esforçou-
se seriamente para impedir a consumação material do crime, apesar de tal consumação já estar
verificada. Assim, como há a possibilidade de salvamento e um esforço sério – no sentido de a pessoa
praticar atos para tentar salvar o bem jurídico –, deve-se premiar o agente, não a punido.
➔ Frederico da Costa Pinto critica tal escolha, dizendo que o legislador devia premiar, também,
quem não quer prosseguir o crime, mesmo que seja no âmbito de comparticipação.
Imagine-se, agora, que A, B e C combinam assaltar um banco: A arromba a porta, mas, antes de B e
C conseguirem entrar para extrair o dinheiro, chega a polícia – como se pune B e C? Segundo a
doutrina, existem duas teorias que se podem aplicar:
1. Durante muito tempo, Roxin defendeu a posição que se deveria punir todos por furto – ou seja,
que se aplicaria uma solução global: a tentativa começa para todos a partir do momento em que
é praticado um ato de execução por qualquer um deles. Ou seja, a partir do momento em que os
agentes participaram e elaboraram o plano comum; e, nos termos desse plano, têm um contributo
essencial na execução do crime – isto é, têm a chamada titularidade do domínio funcional do facto
–, tal é suficiente para que, quando um deles pratique o ato de execução da sua responsabilidade,
os restantes sejam punidos por tentativa.
o No entanto, acaba por ser injusto, por um lado, punir apenas o coautor que, no plano, tem
apenas o ato de execução inicial; e, por outro, não punir os restantes que, no plano, têm a
titularidade do domínio funcional do facto – quando, só por acaso, a execução ficou pelo ato
de execução inicial.
2. Posteriormente, Conceição Valdágua convenceu Roxin a mudar de posição, dado vir a defender
uma solução individual: só será punido por tentativa o coautor que praticou atos de execução;
todos os outros vão ser punidos apenas como cúmplices morais. Conceição Valdágua justifica tal
solução argumentando que, para se punir alguém como coautor, não basta demonstrar que a
pessoa tem a titularidade do domínio funcional do facto ao nível do plano: é, também, preciso que
o coautor exerça o seu domínio funcional – ou seja, para além do domínio do seu contributo, o
coautor exerça o domínio negativo do facto, no sentido de haver a possibilidade que este tem de
fazer fracassar o plano, ao não praticar o seu ato de execução.
o Ora, nestes casos, em que só são praticados atos de execução por aquele que atua em primeiro
lugar, os restantes coautores não exercem este domínio negativo do facto – que, na maior parte
das vezes, é apenas o domínio negativo da consumação. Assim, se ele não pratica a sua
“parte”, não exerce o seu domínio negativo e não toma parte direta na execução –
consequentemente, não deve ser punido como coautor, mas apenas como cúmplice. A única
pessoa que exerce o seu domínio funcional é o primeiro, pelo que apenas este será o autor.
Casos práticos:
1. Certa noite, A vê da janela de sua casa que dois indivíduos com mau aspeto arrombam o seu automóvel
arrumado na rua entre os outros – parece que o vão furtar. A sai à rua de pistola na mão e grita “Vão se
embora de ao pé do carro ou dou-vos um tiro”. Os outros (B e C) não tomam a sério a ameaça, quer
porque não pretendiam assaltar o carro, quer porque na escuridão da noite não perceberam que A estava
mesmo armado e continuaram a apreciar o interior do automóvel. A, furioso e convencido que está perante
dois assaltantes, prime por 3 vezes o gatilho da pistola, na direção de B e C.
O primeiro tiro atinge B, causando ferimento ligeiros num braço; o segundo tiro parte os vidros da janela
da cozinha da casa de uma pessoa vizinha. E, a dona da casa que se encontrava na cozinha, acaba por
ser salva da morte quase certa – uma vez que uma fuga de gás já tinha feito com que caísse desmaiada no
chão. Da terceira, nada acontece porque havia apenas colocado 2 balas na arma, ao seu espanto.
C, entretanto, fugiu assustado e, ao atravessar a rua sem sequer olhar, foi atropelado por um automóvel
conduzido por D, que seguia embriago e em excesso de velocidade. C ficou gravemente ferido e em risco
de vida. D, ao ver que acabara de atropelar uma pessoa, preparava-se para parar e auxiliá-la; no entanto
foi convencido por P e PP, que seguiam consigo no carro, a nada fazer e continuar a viagem. Por não ter
sido a tempo assistido, C acaba por falecer.