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DIREITO PENAL II
A teoria geral da infração não surge, nas suas formulações tradicionais, como uma teoria da decisão
penal, mas antes como uma teoria sobre a definição do crime. Assim, o que a teoria europeia de
inspiração germânica costuma propor é o estudo da essência do crime a partir das características
comuns a todas as figuras de crime contidas num código penal, propondo que se desenhem através
dessa essência e dessas categorias os passos lógicos que conduzirão o intérprete no processo de
qualificação de um facto concreto como crime.
Admite-se assim que todas as figuras previstas no CP como crimes – homicídios, roubos, violações,
etc. – justificam a aplicação da pena respetiva, na medida em que são espécies de um mesmo género,
o crime.
É assim unânime na doutrina que o Direito penal é hoje um Direito penal do facto, abarcando um
duplo sentido:
a) A partir das qualidades dos entes que integram o conceito – definição em compreensão;
b) Elencando os elementos relacionados com determinada categoria – definição em extensão.
Este grupo de objetos permite a ideia de determinada evolução, uma vez que determinado
ente que surge posteriormente à criação deste grupo pode vir a integrar o mesmo, por
corresponder a uma experiência semelhante à dos grupos originais.
Nesta aceção, deve ser dito que a construção dogmática do conceito de crime é, em última análise, a
construção do conceito de facto punível.
O facto constitui então o fundamento e o limite dogmáticos do conceito geral de crime. A tentativa
de apreensão dogmática do conceito jurídico-penal de facto ocorreu quase sempre, durante os dois
últimos séculos, na base de um procedimento categorial-classificatório, através do qual se toma como
base um conceito geral – o conceito de ação. Tal significa alcançar uma sua compreensão unitária
através da consideração sucessiva dos seus elementos constitutivos através de uma sua compreensão
lógico-sistemática.
Assim se chega à compreensão do facto – e, portanto, de todo e qualquer crime – como conjunto de
cinco elementos:
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Tem uma notória influência naturalista e juspositivista. A conceção clássica assenta numa visão do
jurídico decisivamente influenciada pelo naturalismo positivista que caracterizou o monismo
científico próprio de todo o pensamento da segunda metade do séc. XIX.
O problema de que se ocupava esta escola era o de uma definição de crime que permitisse aos
tribunais a qualificação dos factos como crime – o que está em causa é um conceito aparente (é apenas
uma forma lógica que nos permite integrar e arrumar conteúdos conhecidos e dispersos).
Também o direito teria como ideal a exatidão científica própria das ciências da natureza e a ele
deveria incondicionalmente submeter-se de modo a que, da mesma forma, o sistema do facto punível
haveria de ser apenas constituído por realidades mensuráveis e empiricamente comprováveis,
pertencessem elas à facticidade objetiva do mundo exterior ou antes a processos psíquicos internos
(subjetivos).
A atividade criminal, para a escola clássica assenta no seguinte conceito: o crime deve ser uma ação
típica, ilícita e culposa. A teoria clássica causal-naturalista concebeu este conceito de crime a partir de
um método categorial-classificatório.
Esta definição acaba por se manter no direito penal continental, no entanto, o conteúdo dos elementos
e a forma como os mesmos se relacionam terão mudado, não sendo sempre os mesmos. FERNANDA
PALMA entende que parece ser correta a ideia de crime como conceito prático e funcional e não
estático.
A bipartição defendida pela escola clássica assentava em duas vertentes distintas, que formariam o
conceito de crime:
(a) Vertente objetiva – agrupa os elementos constitutivos da tipicidade e ilicitude, sendo que a
ação seria o movimento corporal determinante de uma modificação do mundo exterior,
ligada causalmente à vontade do agente. Isto é, a vontade seria a chave mestra do conceito de
ação aqui descrito, sendo a ação típica sempre que fosse lógico-formalmente subsumível a
um tipo legal de crime, numa descrição completamente estranha a valores e a sentidos. Ação
essa que se tornaria ilícita se no caso não houvesse uma causa de justificação, ou seja, uma
situação que a título excecional tornasse a ação lícita, aceite ou permitida pelo Direito, como é
o caso da legítima defesa.
(b) Vertente subjetiva – concentra-se na categoria da culpa. A ação típica e ilícita tornar-se-ia em
ação culposa sempre que fosse possível comprovar a existência, entre o agente (imputável) e
o facto objetivo, de um nexo psicológico, suscetível de legitimar a imputação do facto ao
agente a título de dolo (conhecimento e vontade de realização do facto) ou de negligência (a
conduta adotada não foi suficiente para impedir a prática do facto, deficiente vontade
impeditiva de prever corretamente a realização do facto).
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➢ Escola Neoclássica
Os seus fundamentos devem procurar-se no normativismo jurídico de raiz neokantiana das primeiras
décadas do séc. XX. Sustentam que o importante no sistema são os valores por referência aos quais o
sistema é construído e trabalhado; defende então a autonomia dos valores face à realidade empírica.
Defende o tipo como fundamento do ilícito, mas mantém o caráter objetivo do mesmo, isto é, não
inclui momentos de violação do dever, o dolo ou a negligência, senão em certos casos em que o tipo
inclui explicitamente momentos subjetivos, como a exigência de uma especial intenção.
As causas de justificação são elementos negativos do tipo e a culpa tem uma componente psicológica,
contida no dolo ou na negligência, e uma componente normativa, a censurabilidade ético-social do
agente.
Mantém a perspetiva de um tipo indiciador e descritivo da Escola Clássica, mas inclui nele o
momento subjetivo da ação, por força do conceito de ação final que propugna. Retira, assim, da culpa
o dolo e torna a culpa um mero juízo normativo de censurabilidade do agente, esvaziando-a do objeto
factual. A ilicitude é constituída pelo desvalor da ação e do resultado, sendo portanto um juízo
normativo, mas também objetivo-subjetivo.
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Reconduz a negligência
a uma finalidade
potencial (à que
poderia ter existido no
sentido de evitar o
resultado criminoso;
WELZEL indica que a
liberdade poderá ser
potencial (o agente
tinha condições de
evitar aquele resultado)
(*1)
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Típica A ideia de tipicidade não é Já não se faz uma É logo na tipicidade que
totalmente inovadora em descrição formal- tem de se verificar se
BELING; corresponde a um externa de houve dolo;
tipo/ao conceito de comportamentos,
Tatbestand de que BELING mas trata-se de uma A tipicidade vem
fala; Todavia, em BELING, unidade de sentido constatar a finalidade
numa primeira fase (teoria socialmente danoso, da ação. O juízo do tipo
do crime; Die Lehre der como indiciador é sempre um
Tatbestand) que é novo é comportamento tipo descritivo;
uma certa definição de tipo, lesivo de bens contrariamente, aqui o
sendo para BELING o tipo juridicamente tipo é constituído por
um elemento autónomo do protegidos, para os uma vertente objetiva
conceito de crime, quais relevam não só (elementos descritivos
assumindo uma função: a elementos objetivos do agente, da conduta e
verificação da tipicidade é o como subjetivos. do seu
primeiro elemento que se circunstancialismo) e
tem que verificar para se (*4) por uma vertente
dizer que aquele matéria de subjetiva (o dolo ou,
facto corresponde a um eventualmente, a
crime; negligência).
O tipo para BELING é o tipo
ilícito que é a parte objetiva Sobra apenas para a
do tipo que exprime ou que culpabilidade a
descreve a ação proibida – é, censurabilidade – o
basicamente, a tipicidade comportamento é ético-
objetiva; socialmente
Não mistura o objeto da censurável? (não o dolo
valoração com a valoração e negligência uma vez
do objeto (Importante). que os nexos
(*3) psicológicos já estão
tratados); é apenas um
juízo negativo de valor.
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(*1) O conceito de ação causal não tinha as exigências para cumprir o princípio da legalidade (não
incluía omissões); não tinha uma valia sistemática para gerar, por força da sua organização interna,
critérios e soluções para problemas, embora tivesse uma valia classificatória razoável.
Pelo contrário, o conceito de ação final pretendia ser mais racional do ponto de vista das finalidades
da responsabilidade penal porque procurava identificar como base da determinação da
responsabilidade criminal as características do comportamento do humano que justificariam a
responsabilidade penal.
Em termos de valia sistemática e de conceito, que permitia inferir outros conceitos ou critérios que
permitem resolver problemas de responsabilidade penal, era um conceito com mais valia sistemática.
No entanto, os críticos (e até WELZEL o reconheceu) acentuavam que se este conceito assentava na
vontade, ainda assim não abarcava um grande valor classificatório e, nesse sentido, perguntavam
para que é que servia este conceito que parece que se moldava apenas pelo comportamento ativo.
HANS WELZEL entende que talvez não se tivesse exprimido com precisão, uma vez que nunca
utilizou o conceito de fim como conceito associado a uma consciência refletida de um objetivo e à
produção consciente de um objetivo e dá o seguinte exemplo: a criança que constrói castelos de areia,
também há aqui uma ação final MAS na realidade para que é que se está a construir castelos de areia?
Aqui não se pode dizer que não há uma conduta voluntária, mas não estamos diante de um
comportamento com determinado fim ou meta. A ideia de fim para WELZEL era antes uma ideia de
condutibilidade/de autonomia (no sentido de ser o agente que conduz até aos resultados e
consequências o seu comportamento) (de condução final do comportamento). A ação especificamente
humana é aquela que é controlável e conduzível pelo agente (que este controlou ou pode controlar).
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Assim, ambas as Escolas propõem como condição primeira da qualificação de um facto como crime
a sua natureza de comportamento voluntário exteriorizado. A diferença essencial entre as duas
consiste na compreensão da vontade e do conceito de voluntário significativos para o Direito penal:
(a) Para a Escola Clássica, a vontade compreende-se como causa de movimentos corpóreos numa
perspetiva naturalística. O primeiro juízo de verificação do facto basta-se com uma
constatação mínima de voluntariedade.
(b) Para a Escola Finalista, a vontade é uma especificidade do comportamento humano,
correspondendo à condução/condutibilidade para fins ou objetivos concretos previamente
selecionados. O primeiro juízo de verificação do facto exige uma ação final (real ou potencial).
Quanto às omissões, WELZEL viria a concluir que ações reais e possíveis são iguais na respetiva
dignidade ontológica, sendo a possibilidade efetiva de ação o momento pré-valorativo e objetivo em
que se apoiaria o crime omissivo, para além da violação do dever.
(*2) Porque é que a escola neoclássica não se ocupa tanto com o conceito de ação? Há uma fonte
filosófica – o pensamento de BELING e VON LIZST – exprimia um pensamento científico. Esta visão
é completamente posta em causa pela Escola Neoclássica desde meados do séc. XIX
a) Conceção racionalista – tem o seu apogeu em DESCARTES, que explica todo o conhecimento
em função da razão. Os racionalistas fazem uma separação total entre a razão e a experiência.
b) Tradição de LOCKE – toda a fonte do conhecimento é a experiência. Os empiristas dão um
papel bastante limitado à razão, dando ênfase à experiência.
KANT demonstra que o conhecimento depende de vários fatores, defendendo que o conhecimento
não se pode alcançar nem sem a razão nem sem os dados da experiência. Na teoria da razão pura
vem defender que o conhecimento depende de determinadas fórmulas, como o espaço e o tempo.
A ideia fundamental de KANT é a de que não podemos saber se existe Deus a partir da experiência,
nem a partir das formas da razão pura. Temos antes de recorrer a uma razão prática que é chamada
a intervir e a decidir como decidir a vida. É esta razão prática que estimula a necessidade de conduzir
a vida e que suscita determinadas formas. Há um certo pragmatismo.
Os neokantianos vêm reconhecer que o conhecimento no Direito não tem a ver com a realidade
sensível diretamente, mas também acabam por admitir que todo o conhecimento, seja nas ciências da
natureza, seja nas ciências do espírito, normativas, é configurado pela razão do sujeito do
conhecimento, mas esta configuração é produtiva e constitutiva, são as formas da razão prática que
vêm retirar do pensamento de Kant esta ideia de autonomia da razão.
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BELING teorizou, numa primeira fase, a tipicidade como um verdadeiro juízo autónomo; o crime
seria, antes de mais, o facto (ação) análogo ou correspondente ao facto descrito na norma, que se
idealizou como ilícito e culposo. A tipicidade seria uma qualificação lógica e classificatória do facto
criminoso.
O tipo era também descritivo, de modo que a constatação da adequação do facto à lei era um mero
juízo de facto sem ponderação valorativo.
A escola clássica entendia então o crime como um comportamento externo-objetivo, que fosse
adequado à descrição do facto na lei penal, relativamente ao qual não existisse qualquer norma
permissiva e em que o agente tivesse vontade, num sentido psicológico, de realizar o facto. A
tipicidade seria então um elemento do crime, a par da ilicitude e da culpa.
BELING veio entender a tipicidade, numa segunda fase, não como uma valoração ou qualidade do
facto criminoso, mas apenas um enquadramento ou delimitação da ilicitude; o tipo passou então a
ser visto como a necessária referência de ilicitude (contrariedade ao Direito), um quadro legal da
descrição do facto; MAS de facto na primeira fase – a mais marcante – realmente a tipicidade era um
elemento do conceito de crime que correspondia à parte objetiva da ação.
(*4) Os neoclássicos reconstroem toda a definição do crime a partir da fusão entre a tipicidade e
ilicitude. O ponto de partida dos neoclássicos é a contrariedade a normas jurídicas.
Os autores neoclássicos consideram que o tipo legal não é mais do que uma valoração de
comportamentos lesivos de bens jurídicos e que é através da descoberta dessas valorações que se
atinge o resultado final da qualificação jurídica do facto.
Estes autores, contudo, tiveram que reconhecer que há determinados casos em que esta visão só é
possível em determinados tipos de crime, uma vez que em bom rigor, os elementos subjetivos não
estão todos na culpa (exemplo típico: crime de furto – este tipo inclui desde logo a própria intenção
de apropriação).
As causas de exclusão de ilicitude têm como papel, uma vez justificado o facto, excluir a valoração
desse facto como contrário à OJ.
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homicídio e, num segundo momento, esses indícios podem ser não confirmados mas sim infirmados
porque, por exemplo, há uma legítima defesa.
MAS: para os neoclássicos, as causas de exclusão de ilicitude figuram na análise da tipicidade e assim,
são elementos negativos do tipo.
FERNANDA PALMA sustenta que a tipicidade já contém um momento de imputação que pressupõe
uma avaliação comparativa do sentido do facto legal e o facto concreto; contudo, é também verdade
que a tipicidade não pode ser utilizada apenas como produto de uma valoração em concreto. Deve
haver um primeiro momento, na qualificação de um facto como crime, em que se averigua a própria
possibilidade de uma ulterior imputação. Afirmar a tipicidade não deve, assim, ser o mesmo que
imputar definitivamente, mas verificar simplesmente os pressupostos lógicos e fáticos de uma
possível (e ulterior) imputação, realizando uma leitura social do facto e analisando a sua coincidência
lógica e social com o facto descrito na norma.
Em comum às três Escolas ficaram os tipos de categoria, a arrumação dos elementos psicológicos no
tipo e a aceitação do ilícito pessoal.
❖ O CONCEITO DE AÇÃO
1. Ação Final:
A ação final é então baseada num relacionamento entre o indivíduo e a norma, tendo esta a função
de o orientar para respeitar os valores jurídicos. assim, só as ações finais seriam objeto possível de
proibição.
A ação final não dependerá, pois, de contextos culturais ou sociais, sendo antes vista como estrutura
empiricamente observável, sendo o juízo de culpa dependente de critérios ético-sociais.
FIGUEIREDO DIAS critica este conceito final de ação, por não cumprir a sua função primária de
classificação e por não abarcar a totalidade das formas básicas de aparecimento do facto punível –
abrange apenas crimes dolosos de omissão, excluindo os crimes de omissão e de negligência.
2. Conceito Funcionalista:
O funcionalismo está preocupado em trabalhar o crime por referência aos fins do sistema. O
pensamento funcionalista, aplicado à teoria geral da infração como uma nova opção de pensamento
sistemático, reconstrói a lógica dos sistemas (clássico, neoclássico e finalista) através da ideia de
adaptação funcional da própria definição de crime à tarefa de integração no sistema dos seus
destinatários.
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(1) Teleológico (ROXIN e FIGUEIREDO DIAS) – para ROXIN, os fins do sistema são os fins das
penas, sobretudo os fins de prevenção, à luz dos quais as categorias vão ser pensadas e
trabalhadas. Assim, por exemplo, a inclusão do dolo no tipo justifica-se pela função
(preventiva) de motivação de condutas atribuída à norma que justifica um ilícito pessoal.
Doloso será o comportamento adequado à pena de dolo e cujas características são fixadas na base
de decisões valorativas político-criminais e não resultam de quaisquer características ontológicas
ou mesmo definidas socialmente do agir humano. Assim, o dolo eventual fronteiriço da
negligência, corresponde a uma decisão pela possível lesão do bem jurídico, como expressão de
uma superior motivabilidade pela norma e de uma consequente justificação de uma prevenção
especial e geral mais intensa.
Este funcionalismo teleológico que, numa vertente mais moderada, integra o pensamento de
FIGUEIREDO DIAS, tende a não extrair qualquer operatividade para as categorias de imputação
penal de outros sistemas de construção ou definição da realidade.
(2) Sistémico (JAKOBS) – já para JAKOBS, o fim essencial é o de garantir a vigência das próprias
normas. O ilícito pessoal já não tem a ver com a ação final. Para JAKOBS, o comportamento
doloso define-se pela avaliação feita pelo agente, no momento de ação, de que a realização do
tipo como consequência da ação não é improvável, prescindindo de qualquer relevância
autónoma de momentos psicológicos (desejos ou estados mentais) ou, ainda, de momentos de
atitude (decisão pela lesão de bens jurídicos); ou seja, a imputação objetiva exige que o agente
crie um risco proibido.
JAKOBS afirma ainda que os autores negligentes afetam menos a validade da norma do que os
dolosos, pois a negligência resulta da incompetência do autor para servir a sua própria esfera, não
podendo avaliar, dada a sua desatenção, as próprias consequências do seu agir. Já para o autor
doloso, as consequências fáticas e lesivas da sua ação são aceitáveis e a norma jurídica reguladora
é diretamente posta em causa pela natureza da própria conduta.
O que resulta do critério de JAKOBS é que a função de preservação da validade das normas
justificará, em situações concretas, que se prescinda de qualquer avaliação da atitude segundo
critérios de valor (bem/mal) próprios da ética, admitindo-se a qualificação do comportamento
como doloso, em última análise, onde a atitude do agente não revele uma carga ética muito
intensamente negativa (como, por exemplo, não seria excluído o dolo eventual no homicídio
provocado por um foguete mal lançado para o ar, numa festa desportiva, que mata, com um grau
de probabilidade baixo, o espectador no outro extremo do estádio, num contexto motivacional
próprio de uma festa de claque).
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maneira diferente da que atuou?”. Os comportamentos penalmente relevantes são aqueles que a
pessoa podia ter evitado; os que não podia ter evitado não colocam a norma em causa.
Não se trata de uma anteposição do ser ao dever-ser (como pretende o ontologismo), nem do dever-
ser ao ser (como pretendeu o neokantismo), mas sim de uma determinação do ser, neste caso a
realidade das normas, pela adscrição de papéis e funções.
Mas o funcionalismo, tal como o finalismo e o sistema neoclássico, tem uma lógica sistemática
totalitária e reducionista quanto aos critérios de determinação da responsabilidade. O funcionalismo
criou o seu modelo de soluções a partir da ideia de que uma solução disfuncional (que não serve a
estabilização das expectativas do sistema) não é racionalmente defensável e não deve ser proferida.
O funcionalismo não apela a uma legitimação extrínseca ao sistema, como um conjunto de valores
superiores, mas apenas à necessidade pressuposta de preservação do sistema.
3. Conceito Negativo:
Alguns autores pretenderam, partindo dos mais diversos supostos básicos, alcançar um conceito
geral negativo de ação: “a ação no Direito penal é o não evitar evitável de um resultado”. Pensaram
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assim ter conseguido uma base sobre a qual se pode construir uma doutrina geral do facto, do ativo
como do omissivo, do doloso como do negligente.
Parece claro, contudo, que sob qualquer uma das múltiplas formulações que o aludido pensamento
pode assumir, a caracterização só abrange os chamados “crimes de resultado” e não os de “mera
atividade” ou “mera omissão”, não cumprindo assim a função de classificação (pois não abrange
todas as formas possíveis de aparecimento do comportamento punível).
O conceito, deste modo delineado, tem a ver com a doutrina da imputação objetiva e, por conseguinte,
com problemas do tipo e não com a ação como tal. Poder-se-ia ainda apontar que este conceito
operaria a pré-tipicidade da ação e faria perder a esta por inteiro a sua função de ligação.
ROXIN veio ensaiar uma nova tentativa de construção de um conceito geral de ação capaz de realizar
a totalidade das funções sistemáticas que dele se esperam. Um tal conceito pessoal de ação residiria
em ver esta como “expressão da personalidade”, em abarcar nela “tudo aquilo que pode ser
imputado a um homem como centro de ação anímico-espiritual”.
a) O comportamento só pode muitas vezes, sobretudo ainda uma vez no campo da omissão,
constituir-se como “expressão da personalidade” na base de uma sua prévia valoração como
juridicamente relevante, também aqui se antecipando, nesta parte, a sua tipicidade e
perdendo o conceito, nesta precisa medida, a sua função de ligação.
b) Não parece seguro que o conceito pessoal de ação possa cumprir capazmente a sua função de
delimitação, uma vez que não é o conceito apriorístico de ação que cumpre a função de
delimitação, antes são os resultados da delimitação que se reputam corretos, as mais das vezes
obtidos em função das exigências normativas dos tipos, que depois vão ser atribuídos ao
conceito, ao seu conteúdo e aos seus limites.
Existe ainda um esforço para suscitar um novo impulso epistemológico no pensamento penal
europeu, a partir dos desenvolvimentos da filosofia da ação e da teoria da sociedade.
A ação não é vista como um puro facto, uma substância ou um substrato físico-comportamental, mas
não é também uma mera construção do sistema jurídico. Surge como interpretação normativa ou
construção normativa (através das regras sociais) do mundo.
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Aparentemente, este conceito de ação não é mais do que a ação social que a teoria neoclássica viria a
adotar. Todavia, neste entendimento de ação social está implicada uma inversão entre o método e o
objeto do conhecimento relativamente à teoria da ação social neoclássica: o objeto do conhecimento
não é já a determinação das características essenciais comuns a todo o comportamento com o valor
de ação a partir de significado social, mas antes as regras da linguagem social (e dos respetivos
contextos) que permitem designar validamente como ação (ou ação de um determinado tipo) um
certo comportamento, num dado contexto.
Assim, tal como quanto à conceção de ação social, investigar-se-á quais as regras sociais que
distinguem uma ação de um determinado tipo (ofensa corporal) de um puro facto ou de uma ação de
um outro tipo (por exemplo, de uma intervenção cirúrgica); todavia, serão essas mesmas regras
sociais, o seu modo de produção e a sua relatividade, a principal finalidade da análise e não a dedução
a partir delas das características em geral dos comportamentos humanos.
A teoria da ação com interesse para o Direito penal seria, neste sentido, a teoria sobre as lógicas, as
regras e as condições da comunicação entre os sujeitos sobre o que acontece, bem como a teoria da
comunicação pelo Direito de tais lógicas, da qual derivariam as condições de validade das próprias
designações das condutas penais como condutas de um certo tipo (ação, omissão, dolo, negligência,
autoria, comparticipação, etc.).
Quando se fala em sistemas, fala-se num sentido lógico. Estes não pretendem dizer o que é o crime,
mas sim fazer uma escalpelização jurídica e uma organização lógica dos vários elementos para
construírem um método para prossecução de determinados fins.
“Realidade” surge já com um sentido próprio e autónomo da perspetiva do Direito, mas que se impõe
à perspetiva do Direito. A ideia de o nosso sistema estar dependente de uma estruturação da própria
realidade social que se impõe aparece já um pouco em WELZEL: ação final é a estrutura ontológica
em que assenta o agir humano livre e responsável e pode ser suporte de um conceito de crime
destinado à censurabilidade das penas.
O estado psíquico interno dos agentes não é importante, na medida em que o que é essencial é o
comportamento livre e responsável dos agentes
O ponto essencial numa teoria dos sistemas contemporânea é o de que os sistemas são formas de
organização da própria realidade, quer no mundo natural quer no mundo social, que são
independentes do sujeito do conhecimento; são, muitas vezes, espontâneas. A realidade constitui
sistemas organizativos. A realidade organiza-se, por si, em sistemas, independentemente do nosso
conhecimento; ou seja, a realidade tem padrões, formas de organização espontâneas.
LUHMANN propõe que se possa reduzir a complexidade dos outros sistemas através do Direito. Se
o Direito é visto como um subsistema social, tendo como papel a redução da complexidade dos outros
sistemas, então os elementos que constituem o Direito deverão ser identificados na medida em que
sejam orientados para essa função do Direito.
O conceito de ação vai ser definido ou procurado, não para apreender uma realidade ontológica ou
para estabelecer a relação entre as finalidades do Direito penal e o mundo social, mas como um
conceito basilar no sistema que permita identificar a distinção entre ações legais e ilegais; essas
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distinções são as que exprimem a função do próprio sistema penal na sociedade. É uma espécie de
estabilização contrafática das expectativas: as normas servem para assegurar as expectativas dos
agentes que agem num sistema.
Problema: um conceito base de ação deve incluir elementos de causalidade, de consciência? Ou tem
antes de ser configurado a partir de outra perspetiva?
Duas ideias:
1. Mesmo que o observador não utilize estas categorias, o que é certo é que não vai compreender
a realidade social, nem vai fornecer ao sistema respostas que permitam que se mantenha ou
que evolua.
2. Os sistemas em que a vida se organiza são fechados. Quanto mais complexos são, mais
fechados são. Ou seja, são autopoiéticos. Os sistemas têm como principais características a
comunicação e a ação; e quando atingem um determinado nível de complexidade, tornam-se
sistemas de organização autoconscientes.
Um sistema evoluído, consciente, autorreferencial, é aquele que não tem nenhuma relação direta
causal com as condições gerais exteriores da vida (económicas, políticas, etc.). No caso do Direito,
este cria conceitos desligados de outros sistemas, tem os seus procedimentos próprios (procedimento
legislativo, etc.) e resolve os conflitos sociais através da sua própria linguagem, dos seus próprios
procedimentos.
Em alguns casos, a função de delimitação leva a respostas iguais por todas as Escolas relativamente
à exclusão de certos comportamentos do conceito de ação: atos reflexos e coação física (não são
comportamentos relevantes).
Não podemos resolver um problema suscitado apenas com um conceito de ação: antes de
procedermos a uma classificação, temos de saber o que pretendemos com a atribuição de
responsabilidade penal; há um diálogo entre os valores do sistema e uma certa organização da
realidade socialmente significativa, não em função do Direito, mas sim para além do Direito.
Um comportamento a que se justifique uma atribuição de censura pessoal requer que tenha um
determinado conjunto de requisitos que não são criados ou atribuídos pelo sistema, mas que imperam
noutras abordagens em termos de linguagem social. O Direito tem de comunicar com outras
linguagens sociais, com outros critérios de interpretação dos comportamentos sociais. Esta é uma
visão anticlassificatória e antissistemática.
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Atos reflexos:
São reações imediatas em que não intervém a consciência; são atos em que intervêm aspetos
periféricos do sistema nervoso, em que o cérebro apenas superficialmente intervém. É quase como
uma reação fisiológica Ex: agitar o braço na sequência de uma picada de abelha.
Distinguem-se dos atos instintivos – atos em que há uma possibilidade, ainda que remota, de
controlo. Há um querer primitivo, e uma possibilidade de inibição pelo agente. O agente pode
“treinar” para não reagir de determinada forma.
Sonambulismo e hipnotismo:
A questão em torno dos sonambulismos e hipnotismos trata de saber até que ponto as ações durante
a hipnose e o sonambulismo podem ainda ser expressivas de uma vontade do agente.
Relativamente ao hipnotismo, os autores tendem a aceitar que existe ação penalmente relevante. Há
quem não acredite em estados de hipnose, afirmando que há sempre consciência. Também para
ROXIN existe no hipnotismo um comportamento penalmente relevante, uma vez que o agente nunca
fará nada sob hipnose que não faria se não estivesse hipnotizado.
Quanto ao sonambulismo, a doutrina tende a entender que não existe ação penalmente relevante.
Para ROXIN, não há uma manifestação da personalidade, pois o agente está a agir num mundo que
está na sua cabeça, ou seja, não está a interagir com o mundo exterior.
Para FERNANDA PALMA, inexiste aqui uma vontade do agente, a não ser nas situações em que o
próprio agente se coloca nesse estado de sonambulismo ou hipnotismo para alcançar o seu fim;
assim, por força do art. 20º/4 CP, não deixa de existir ação (actiones liberae in causa).
Automatismos:
Os automatismos são atos adquiridos pela experiência e pela repetição, como falar, conduzir, etc.
Correspondem a um domínio do corpo sobre a vontade, dependente do grau de previsibilidade da
situação ou do estímulo que suscita o ato.
1. Uma questão que se levanta a propósito dos automatismos é a de saber se, nos casos em que
o automatismo intervém em lugar do comportamento controlado pela consciência, existirá ou
não ação; ou seja, se em atos desta natureza existirá ainda o substrato comportamental exigido.
É pacífico na doutrina que tem de haver uma direção mínima do agente conducente àquele
resultado, tem de haver uma aceitação do risco para que se possa falar numa ação.
Os automatismos são geralmente mais complexos e, prima facie parecem não ser controláveis, mas,
num segundo momento, percebe-se que poderão ser controlados pela intervenção da consciência.
Estão preparados para um agir final mais rápido, mais eficaz. Os automatismos são ações finais (na
teoria de WELZEL), pois para os finalistas a finalidade da ação não exigiria uma consciência reflexiva
e controladora de todo o desenrolar de um comportamento.
2. Outra questão que se levanta é a de saber até quando se poderá recuar a comportamentos
anteriores para justificar a responsabilização penal, sem que se esteja a incorrer numa
antecipação da criminalização, caso em que se estaria a violar o princípio da legalidade:
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Para STRATENWERTH, a justificação assenta no pensamento do ato como uma globalidade, ou seja,
desde que o processo de formação do ato se enquadre, esteja determinado ou seja explicável pela
experiência, relacionada com a situação e eventualmente acessível a uma dirigibilidade consciente.
Para JAKOBS, seria já a evitabilidade do comportamento, ou seja, o agente teria de poder evitar o
automatismo para que ele tivesse relevância penal.
Para FERNANDA PALMA, os automatismos não poderão ser considerados ações onde não exista
desde logo uma reconhecibilidade dos atos como elemento de um processo. A imprevisibilidade de
um estímulo não permitirá orientar a ação que lhe dá resposta para a direção contrária; assim, torna-
se critério a previsibilidade do estímulo externo e a sua contextualização para aferir se é ou não uma
ação. Um comportamento só é minimamente voluntário se a pessoa podia ter feito outra coisa.
A fronteira entre o automatismo que é integrável numa conduta voluntária e aquele que corresponde
apenas a um domínio do corpo sobre a vontade há de depender do grau de previsibilidade da
situação ou do estímulo que suscita o ato.
Inconsciência:
Nos casos de embriaguez, em princípio, teremos ação penalmente relevante (a não ser que se trate de
uma embriaguez extremíssima). De acordo com a teoria de ROXIN (conceito pessoal de ação), ainda
há, no estado de embriaguez uma manifestação da personalidade.
Ação e Omissão
» FERNANDA PALMA – a relevância penal da omissão tem de ser construída a partir de uma
analogia com o comportamento ativo. Na linguagem normativa, as proibições podem
integrar comandos de ações.
Há uma constituição comportamental de todo o crime a que se tenham de referir os comportamentos omissivos
penalmente relevantes?
MFP: Sim, temos um Direito Penal do facto e nega-se a pura ordem de obediência, correspondendo a
uma vinculação do Direito às estruturas comportamentais identificáveis comunicacionalmente.
Todavia, a questão fundamental será a determinação do quid comportamental exigível para que a
omissão possa ser uma espécie de comportamento penalmente relevante. Como a definição da ação
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que importa à teoria da imputação não é naturalística, centrando-se antes na significação social dos
comportamentos, a descoberta desse quid comportamental integrará uma problemática comum da
relevância penal da ação e da omissão, tal como, por exemplo, a da evitabilidade das consequências.
A questão prévia, portanto, é se ações e omissões devem ser distinguíveis? O que nos permite distinguir uma
da outra?
FIGUEIREDO DIAS: na senda da doutrina germânica, naturalisticamente, existe ação quando há uma
introdução positiva de energia, por parte do agente, que causalmente determina a produção do
resultado típico. Este critério tem de ser complementado com uma postura valorativa do sentido
social do comportamento, distinguindo se o ponto de conexão da censurabilidade jurídico-penal se
encontra num comportamento ativo ou omissivo.
O ponto de vista de diferenciação entre ações e omissões cabe no art. 10º CP. Como afirma
FERNANDA PALMA, a lei considera relevante uma diferenciação, sendo uma questão de lógica.
Este autor defende uma indiferenciação entre ação e omissão nas situações em que se ultrapassem
os limites gerais da liberdade no que se refere à configuração exterior do mundo. Ex: é equivalente
atropelar uma pessoa por não travar ou por acelerar. A responsabilidade inerente à liberdade de
configuração do mundo é que definiria os deveres de agir ou de evitar os resultados danosos. O que
é importante é aferir se, ao organizar a sua própria liberdade, o agente interferiu na liberdade de
outrem; ou seja, se violou um dever negativo. Como exemplo, não interessará, no caso de o cão de A
morder B, se foi A que incitou o cão a morder B, ou se o ouviu rosnar e nada fez: o que é relevante é
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que o cão é de A (ou seja, é meio de que A dispõe para organizar a sua liberdade) e este não evitou o
resultado.
A tese de JAKOBS conduz à fundamentação mais precisa das posições de garante em setores em que
o agente tem um dever especial de organização do mundo exterior, sendo-lhe atribuídos deveres
positivos mais específicos de atuação, que decorrem do seu estatuto específico para garantir a
confiança na instituição que ele representa. Assim, é equiparável que o médico responsável pelo
doente ligado à máquina a desligue ou pura e simplesmente não a volte a ligar: o que interessa é saber
se, em função do seu estatuto, violou um dever negativo ou violou um dos deveres positivos que lhe
eram especialmente impostos.
Esta tese não aceitará a equiparação da omissão à ação nos casos em que nem haja uma competência
geral pela organização do mundo, da qual se possa derivar a responsabilidade pelo risco, nem um
estatuto especial de que decorra uma específica competência para a proteção de bens jurídicos. Tal
leva a admitir a ausência de relevância jurídico-penal da ação quando não exista posição de garante,
no caso de um terceiro ou de um médico não responsável pelo serviço que desliga a máquina de um
doente terminal (porque nesse caso não tem um estatuto específico que lhe impõe determinados
deveres). Este ponto da tese de JAKOBS levanta problemas, uma vez que o terceiro, mesmo não tendo
um dever positivo especialmente imposto, tem ainda assim um dever negativo, que neste caso estaria
a ser violado.
MFP: independentemente de se aceitar as teses de JAKOBS, não se pode utilizar uma teoria não
naturalista sobre a ação, em geral, e simultaneamente praticar uma distinção entre ação e omissão
naturalista, para o efeito de aplicação do art. 10º/2, remetendo para esse preceito tudo o que seja um
“não fazer” em termos físicos ou naturalistas.
o Critério relacionado com a tipicidade: aumentou ou diminuiu o risco que já existia. Este é o
critério de FIGUEIREDO DIAS e PAULA RIBEIRO FARIA;
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Direito Penal II Leonor Branco Jaleco
Nem todas as omissões têm de ter uma estrutura passiva. Pode acontecer que, dada a configuração
da norma concreta, um comportamento ativo possa ser visto como uma omissão.
Tal sucede quando o agente viola uma norma que impõe um comando de ação por comportamento
ativo, mas esse comportamento ativo tem significado de omissão. O exemplo paradigmático é o de
alguém que impede, mediante uma atuação positiva, o cumprimento do salvamento que ele mesmo
já tinha posto em marcha: uma pessoa lança uma corda salvadora a quem se está a afogar, mas no
último momento resolve retirá-la. Tem-se entendido que:
1. Se a pessoa no mar não conseguia alcançar a corda, não mudava nada no estado inicial dessa
situação o retirar da corda, portanto este comportamento não prejudica a situação de corda
lançada, havendo equivalência normativa a omissão. Ou seja, a situação aqui consiste na
anulação de intenção de salvar pela própria pessoa que atua, originando uma situação
semelhante à que existiria se a pessoa estivesse inativa desde o princípio.
2. Já será equiparável a ação se o agente tiver posição jurídica que o obrigue a agir (como ser
nadador salvador, por exemplo). Se não tiver essa posição de garante, a omissão não cabe no
art. 10º/2 e é apenas omissão. No caso de interrupção de salvamento, já é ação e a posição de
garante já não é relevante.
(1) Omitir por comissão (tentativa interrompida de cumprimento de uma posição legal) – trata-
se de caso semelhante ao atrás mencionado: alguém com uma obrigação de agir impede,
mediante uma atuação positiva, o cumprimento do imperativo que ele mesmo já tinha posto
em marcha – ex: uma pessoa com a obrigação de auxílio lança uma corda salvadora a quem
se está a afogar, mas no último momento resolve retirá-la.
Neste caso existe uma ação que teoricamente se podia punir como facto comissivo (concretamente
como homicídio). A circunstância de que não se pôs em movimento uma cadeia causal que
conduzisse diretamente ao resultado, mas apenas se interrompeu um processo causal que adivinhava
a salvação, não impediria a subsunção num tipo comissivo. Contudo, neste exemplo, a situação
consiste na anulação de intenção de salvar pela própria pessoa que atua, originando uma situação
semelhante à que existiria se a pessoa estivesse inativa desde o princípio.
Deste caso deduz-se o princípio geral de que um “fazer” que se apresenta como desistência da
tentativa de cumprir um imperativo, deve subsumir-se no tipo de crime por omissão, cujo imperativo
fracassa pela atuação ativa.
Contudo, pode existir um momento a partir do qual a mudança de resolução já não aparece como
omitir através de fazer, mas como um puro crime comissivo: se a vítima já agarrou a corda salvadora,
a ação de arrancá-la realizada por quem está obrigado a agir deve encarar-se, caso acarrete a morte,
como crime de homicídio, pois nesse momento a pessoa que deve ser salva tinha alcançado uma
posição na qual podia prosseguir valendo-se de si própria, e destruí-la pesa mais que a mera
inatividade.
Ou seja, omitir através de fazer transforma-se num crime comissivo logo que o cumprimento do
imperativo passou do estádio da tentativa para o da consumação, ou seja, logo que o processo causal
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salvador alcançou a esfera da vítima. Para tal, nem é sequer necessário que a pessoa em perigo tenha
fisicamente “na mão” o instrumento salvador, bastando que a pessoa se pudesse agarrar à corda
salvadora sem ajuda alheia.
Assim, se o agente interrompe o processo de salvamento alheio, estará em causa uma ação (ex:
chocar com a ambulância). Quando o processo já se tornou alheio, a vítima já se consegue salvar. A
ideia central é saber se já atingiu a esfera da vítima.
(2) Omissio libera in causa – o caso paradigmático é o de uma pessoa que, juntamente com
outras, conhece o plano de homicídio e se embriaga até perder o conhecimento, para não estar
em condições de ir à polícia.
ROXIN sustenta que aqui, pese embora o “fazer” ativo, não se pode aceitar que exista cumplicidade
no homicídio, mas sim autoria, ou seja, punição pelo tipo de um crime de omissão própria, pois para
efeitos de punição, é indiferente o modo como a pessoa obrigada a denunciar consegue que não se
efetue tal denúncia – quer atue ou omita uma atuação.
O sujeito que primeiro atua ativamente e depois se mostra incapaz de ação não omite nada e, não
obstante, deverá ser punido pelo crime de omissão.
Este grupo de casos, contudo, coloca problemas de delimitação mais difíceis, sobretudo quando a
ação de frustrar de antemão a própria colaboração também tem efeito sobre outra pessoa disposta
a socorrer. Por exemplo, X está a afogar-se, A quer salvá-lo com o único barco disponível, pertencente
a B; contudo, B impede que A se faça ao mar, retendo o barco com a consequência, por ele prevista,
de que X se afoga, sendo certo que de contrário se teria salvo.
RANFT nega aqui um crime de homicídio, na medida em que B apenas impediu a “ingerência na
sua esfera de domínio”: reter o barco era apenas o meio de não o entregar, ou seja, de uma omissão.
Contudo, como afirma ROXIN, idêntico pressuposto de facto seria qualificado de homicídio se B
impedisse violentamente A de realizar o seu propósito de salvar a vítima com o seu próprio barco
(de A), na medida em que neste pressuposto se destrói, com consequências mortais, uma cadeia
causal exclusivamente alheia que evitaria o resultado.
Ora, tal como existe um homicídio se B consegue violentamente fazer afundar o seu próprio barco
com o qual A se aproximava da pessoa que se afogava, impossibilitando desse modo o salvamento,
também se terão ultrapassado os limites de omissão própria se B destruir com dolo de homicídio o
seu barco, que é o único existente para a ação de auxílio, antes que dele se aproxime um terceiro
disposto a empreender o salvamento, com o objetivo de o subtrair do alcance deste – as
consequências do facto e a energia criminosa de ambos são idênticas.
Nos casos de ingerência nos esforços de terceiros para impedir o resultado, somente existirá uma
omissão através de fazer punível se existissem outros meios de salvação disponíveis, já que em tal
caso a atividade dirigida contra um terceiro apenas poderia servir para negar auxílio, mas não
impediria que outros salvassem a vítima.
(3) Participação ativa num crime de omissão – exs: quem instiga outrem a não remeter a carta
secreta onde se planeia uma traição contra certo país; quem desencoraja o médico a ligar a
uma chamada de socorro para sua casa; ou quem, em ambos os casos, fortalece com palavras
persuasoras a decisão criminosa de quem permanece inativo.
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Direito Penal II Leonor Branco Jaleco
Nestes casos, o agente é punido, se se seguir a opinião dominante, por instigação ou cumplicidade,
pelo tipo de um crime de omissão. Ainda que a participação seja uma causa de extensão da pena e,
portanto, não seja típica em sentido estrito (ROXIN), em qualquer caso a punibilidade que aqui se
aplica a quem atua positivamente é a punibilidade do crime por omissão.
KAUFMANN não admite estes casos de participação ativa no crime de omissão, pretendendo que
seja punida como facto comissivo causador do resultado.
Este autor imaginou o seguinte caso: A altera a sua opinião depois de enviar a denúncia do crime,
contudo não retira por si próprio a carta dos correios, mas serve-se para tal de B, a quem pôs ao
corrente das circunstâncias. KAUFMANN sustenta que se deve punir B pelo crime de homicídio.
ROXIN discorda: a circunstância de pedir a outro que retire a carta não pode indiretamente converter
o agente, por meio da instigação, em autor. Apenas no caso em que B, contra a vontade de A, retira a
carta dos correios, deveria ser punido por crime comissivo. Mas apenas quando age por sua própria
iniciativa.
Não se trata de uma delimitação subjetiva: o que sente ou o que pretende quem interrompe o processo
causal salvador é indiferente; decisivo é saber se atua junto e para a pessoa obrigada a auxiliar ou se
o faz sob a sua própria responsabilidade e contra essa pessoa.
(4) Omitir impune através de fazer – este grupo de casos está “um passo à frente”, já não se fica
pelo passo de distinção entre ação e omissão, mas já se prende com a tipicidade, saber se é
punível ou não. Exemplo: se apenas se pune o remetente da denúncia juridicamente
obrigatória de um crime que retira a carta antes que chegue ao destinatário, quem proceder
da mesma forma face a um crime que não é obrigatório denunciar terá que permanecer
impune, pese embora a causalidade da sua conduta para a produção do resultado.
Nestes casos, a pessoa limita-se a não fazer algo a que não está obrigada, sendo jurídica e penalmente
irrelevantes tanto a sua atuação de impedir como a sua desistência. Quem não sendo obrigado a
denunciar, se impossibilita de antemão de relatar o crime mediante uma atuação positiva, é em
princípio impune (segundo grupo de casos); igualmente, fica impune quem, como participante,
consegue que se deixe de fazer algo não requerido (terceiro grupo de casos).
Diversa é a situação dos comportamentos se atribuíram aos tipos comissivos: tais comportamentos
não são impunes, já que, independentemente da existência de um dever de agir, continuam a ser
puníveis do mesmo modo que o eram antes. Por exemplo, quem voltar a arrancar das mãos de um
doente o medicamento salvador que antes lhe tinha dado, de modo a provocar a morte da vítima,
comete um homicídio, mesmo que originalmente não se tivesse obrigado a entregar o medicamento
(primeiro grupo de casos). O terceiro que, contra a vontade do remetente, impede que uma carta
chegue ao destinatário com a denúncia do plano de roubo, é responsável por cumplicidade nesse
crime, independentemente da não existência da obrigação jurídica de denúncia em tal crime (segundo
e terceiro grupo de casos).
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Direito Penal II Leonor Branco Jaleco
❖ CRIME DE OMISSÃO
Se há uma omissão, há um passo intermédio, antes da tipicidade, que é saber se existia um dever de
atuar. Porque se não existia um dever de atuar, a omissão não é tipicamente relevante. Para sabermos
se havia dever de atuar, devemos primeiro ver se havia dever/posição de garante.
O crime de omissão traduz-se numa violação de uma imposição legal de atuar, pelo que, em qualquer
caso, só pode ser cometido por pessoa sobre a qual recaia um dever jurídico de levar a cabo a ação
imposta e esperada.
Só numa minoria de casos (puros) é que a lei, de forma integral, descreve os pressupostos fácticos
donde resulta o dever jurídico de atuar. Na maioria (impuros), basta-se com a cláusula geral de
extensão da tipicidade do art. 10º/2 CP.
É com base nisto que surge a distinção entre Crimes Omissivos Puros e Impuros:
• ROXIN critica, afirmando que assim se encobre aquilo que verdadeiramente confere sentido
à distinção. Puras são aquelas omissões típicas que não têm correspondência num delito de
ação. Impuras aquelas outras para cuja tipicidade se torna necessária uma cláusula de
equiparação à ação correspondente.
• Doutrina tradicional – devem considerar-se delitos puros ou próprios de omissão aqueles cujo
tipo objetivo de ilícito se esgota na não realização da ação imposta pela lei (crime de mera
atividade) e impuros ou impróprios aqueles outros em que o agente assume a posição de
garante da não produção de um resultado típico (crime de resultado).
Deve concluir-se que o critério fundamental de distinção entre crimes de omissão puros e impuros
passa pela circunstância decisiva de os impuros, diferentemente dos puros, não se encontrarem
descritos num tipo legal de crime, tornando-se indispensável o recurso à cláusula de equiparação
contida no art. 10/2º.
As omissões puras e as omissões impuras são subsidiárias: primeiro vamos ver se se pode punir por
omissão impura, e só depois, se não for possível, se passa para omissão pura.
Assim:
Nestes crimes de omissão, o próprio tipo integra a omissão, descrevendo os pressupostos fácticos de
onde deriva o dever jurídico de atuar. É o caso da omissão de auxílio, prevista no art. 200º CP e da
recusa de médico, prevista no art. 284º CP. Nunca se pode dizer que violação de dever de auxílio (art.
200º CP) é uma fonte de posição de garante. Essa violação apenas corresponde à tipicidade de violação
do dever de socorro.
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Direito Penal II Leonor Branco Jaleco
Não estão especificamente descritos na lei como tais, mas em que a tipicidade resulta de uma cláusula
geral de equiparação da omissão à ação, nos termos da cláusula de equiparação do art. 10º/1 e 2. Ou
seja, temos tipos que parecem descrever/estar pensados apenas para ações (como o homicídio – art.
131º CP). Se esses tipos só preveem ações, então parece que esses crimes nunca poderão ser punidos
por omissão (violaria o princípio da legalidade). É por isso que é fundamental o art. 10º/2, que
estende a tipicidade.
O fundamento desta equiparação é que, para certo tipo de ilícito, o desvalor da omissão corresponde
no essencial ao desvalor da ação. E isto quando sobre o agente recai um dever de evitar ativa ou
positivamente a realização típica, i.e., obstar à verificação do resultado típico (que é o que significa ter
um dever de garantia/dever de garante).
A norma constante do art. 10º/2 impõe a explicitação das condições em que é possível a equiparação
prevista no art. 10º/1 das situações omissivas não compreendidas diretamente na descrição da ação
típica (devido ao seu imediato significado social) ao descrito na ação típica.
O art. 10º/2 afirma que tem de haver um dever de garante, mas não diz em que casos é que existe
esse dever.
1. Fontes formais (teoria formal). Esta teoria está ultrapassada, estas fontes podem servir apenas
como pontos de apoio, mas não é daqui que decorre a posição de garante.
o Lei
o Contrato
o Ingerência – situação que alguém provoca situação de perigo para um bem jurídico e, por
esse facto, fica investida na posição de garante (ex: provoca acidente, ajuda a vítima). Ou
seja, alguém se intrometeu na esfera jurídica de outrem e por via dessa intervenção fica
obrigada a evitar certo resultado.
• Ingerência a partir de ato ilícito corresponde a uma situação de perturbação
de delimitação das esferas de organização da vida de cada pessoa em que o
agente assume, sem lhe ser permitido, o controlo sobre os bens jurídicos
alheios, retirando até, à vítima do primeiro comportamento ilícito, um poder
de controlo sobre os seus bens jurídicos.
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Direito Penal II Leonor Branco Jaleco
1. O agente não reparou que empurrou a pessoa, nem reparou que ela caiu e se afogou – neste
caso há apenas um crime: homicídio negligente por ação.
2. O agente empurra sem querer, vê que empurrou, vê que a pessoa se está a afogar e não faz
nada. Há um primeiro momento em que existe um homicídio negligente por ação; e um
segundo momento de omissão dolosa – neste caso, há dever de garante e prevalece o segundo
momento – homicídio doloso por omissão (arts. 131º + 10º/1 e 2).
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3. O agente empurra de propósito e vai embora – há só um crime: homicídio por ação doloso.
2. Fontes materiais – existem porque as fontes formais não eram suficientes (teoria das funções).
o Guarda de Bem Jurídico Concreto – geram-se deveres de proteção e assistência:
• Familiares ou análogos:
o Pais-Filhos – não só tomando a lei (art. 1874º CC) em consideração, mas também
a unívoca relação de solidariedade natural entre o omitente e o titular do bem
jurídico. Esta relação altera-se, contudo, quando o filho abandona o âmbito de
proteção dos pais. Também se incluem avós-netos (se é o avô que cuida do neto)
e, mais duvidosamente, irmãos, cunhados e unidos de facto.
FIGUEIREDO DIAS: têm de estar preenchidos dois requisitos,
cumulativamente:
1. Relação de proximidade fática;
2. Traduzida numa relação de dependência – à medida que o filho vá
crescendo, a relação de dependência irá esbater-se, ficando apenas um
dever moral de ajudar os filhos, mas desaparece a posição de garante.
o Cônjuges – têm uma relação de proximidade fática, mas não tem de se traduzir
necessariamente numa relação de dependência (pelo que aí não existe posição de
garante). O que existe é uma relação de confiança. O que interessa para que haja
uma posição de garante é a facticidade material que faz surgir a confiança legítima
de que podem contar um com o outro.
o Namorados – são relações mais esporádicas, mais informais, pelo que não se
pode afirmar que haja aqui posição de garante. FIGUEIREDO DIAS faz a ressalva
do caso em que os namorados estejam em união de facto, caso em que há
reprovabilidade moral, mas não jurídica (pelo que há dever de garante).
• Contrato material: proteção material e não meros regimes formais. O que oferece
fundamento à posição de garante é a assunção fática de uma proteção materialmente
baseada numa relação de confiança. Ex: babysitter, chefe de excursão dos escuteiros.
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Direito Penal II Leonor Branco Jaleco
extravasamos o âmbito dado pela nossa competência geral, tanto releva a ação como
a omissão.
o Monopólio (dos meios de salvamento) – casos em que uma pessoa dispõe das condições
para evitar o resultado e capazes de garantir o bem jurídico. Só se deve recorrer a esta fonte
em último caso, se nenhuma outra se puder aplicar.
o FIGUEIREDO DIAS: inclui como fonte de posição de garante, mas exige 3 condições:
• Domínio fáctico e absoluto da fonte de perigo – possibilidade de intervir, evitando a
lesão do bem jurídico. Não quer dizer que o agente tenha de estar sozinho, só tem de
haver possibilidade de intervir;
• Perigo agudo e iminente – o perigo está prestes a concretizar-se;
• Ação de salvamento não pode implicar perigo para o agente – desproporção entre o
esforço mínimo e a lesão.
• Aceitação do dever de proteção – tem de haver base para dizer que implicitamente
se aceitou proteger bens jurídicos de outro;
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Concluindo:
FERNANDA PALMA sustenta que há que encontrar os princípios unificadores das várias teorias de
posição de garante:
Tem de haver um mínimo de juridicidade na atribuição ao agente do dever de agir. O agente tem de
poder contar com a atribuição desse dever e, assim, a forma de poder contar com essa atribuição é ele
próprio autovincular-se.
O art. 10º/3 CP consagra a faculdade de o tribunal atenuar especialmente a pena no caso dos crimes
impuros de omissão.
Essa atenuação regular-se-á pela maior ou menor intensidade do dever jurídico em causa – será mais
grave entre pais e filhos do que, por exemplo, entre irmãos.
ROXIN excetua este princípio quando a ação imposta se enquadra numa situação normal da vida,
como uma mãe não alimentar os filhos.
Esta graduação não se aplica aos crimes puros de omissão, pois aí a pena está no tipo.
❖ TIPICIDADE
Para FIGUEIREDO DIAS, a tipicidade não tem uma total autonomia de ilicitude, tendo que se
delimitar a figura de delito em função dos interesses protegidos pela norma. Em sentido contrário,
FERNANDA PALMA autonomiza a tipicidade da ilicitude, tal como BELING.
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Numa primeira fase, trata-se de verificar, se o comportamento tem a relevância da figura de crime,
em termos de uma adequação social (como refere WELSEL): quando há comportamentos adequados
socialmente, estes não são classificados como crime. Para este autor, tipos penais são os quadros
jurídicos de descrição das estruturas concretas de comportamentos, em que a atribuição do nome
de uma certa figura comportamental estaria associada à mesma estrutura.
FERNANDA PALMA não concorda com a associação da adequação social a adequações culturais
(como refere SILVA DIAS); o conceito de adequação social não foi pensado para o tipo de situações
em que não existe consenso (ex: mutilação genital feminina), mas sim para os comportamentos em
que não existe dúvida nas sociedades quanto ao tipo legal de crime. Quando se invocam tipos sociais,
estamos a subverter as decisões do legislador, acabando por violar o princípio da legalidade.
Em suma, MFP critica a invocação de ideias como o tipo social, para fazer uma restrição do tipo
criminal, em questões que estão em discussão. Para MFP, o instrumento correspondente aos critérios
de relevância no comportamento típico não se situa no plano dos costumes ou tradição, mas apenas
no plano usual. Os tipos inovadores que procuram contrariar a tradição poderão ser designados
como delimitação razoável das esferas de liberdade ou ação, como critérios de cidadania.
O comportamento típico tem de ser filtrado por sentidos socialmente vigentes que integram os nossos
conceitos linguísticos e se impõe ao legislador – o objeto da proibição típica seria compreendido
sempre como um comportamento já não tolerado socialmente.
❖ TIPICIDADE OBJETIVA
• Crimes de mera atividade – a sua consumação (preenchimento integral do tipo) basta-se com
um certo comportamento que está lá descrito. É o caso do crime de condução sob estado de
embriaguez (art. 292º CP).
• Crimes de resultado – não basta o agente praticar certa ação (ou omissão), é necessário que se
verifique um determinado resultado (evento típico que se distingue no espaço e no tempo da
conduta do agente e que, contudo, lhe pode ser atribuível) para que o crime se tenha por
consumado. É o caso dos crimes de homicídio e de ofensa à integridade física e do art. 291º.
Apenas estes são relevantes para efeitos de imputação objetiva.
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Direito Penal II Leonor Branco Jaleco
Como já se referiu, a afirmação da tipicidade do agente envolve o ato de imputar, i.e., de atribuir o
acontecimento lesivo de bens protegidos pela norma ao agente, como manifestação do seu poder ou
controlo subjetivo.
A tipicidade objetiva é assim um conceito estático, no sentido de que é preciso fazer uma
correspondência entre o comportamento concreto e o comportamento descrito na norma.
A imputação dos factos ao agente deve começar pela verificação da imputação objetiva.
Surge no pensamento penal como importação de ideias desenvolvidas pelo pensamento filosófico e
mais tarde científicos. A ideia é a de que a causalidade é um problema de juízo e não de causalidade
fática.
Assenta no facto de a verificação da tipicidade (preenchimento do tipo objetivo) pressupor que o facto
descrito na norma (crime de resultado) estabelece uma relação de causa e consequência entre a
conduta do agente e o resultado.
Fórmulas como a conditio também pressupõem leis causais de cariz científico. A conditio é um juízo
de verificação, mas que pressupõe o conhecimento científico de certas ligações entre factos: por
exemplo, só podemos estabelecer que uma pessoa espetou uma faca e por isso a outra morreu porque
conhecemos o processo causal de espetar uma faca e quais as suas consequências:
Quando temos uma lei científica, em que sabemos, neste caso, que o medicamento tem determinados
efeitos secundários, poderemos utilizar com alguma potencialidade o raciocínio da conditio, mas não
temos de concluir necessariamente que há causalidade: se esse comportamento for suprimido e o
resultado se verificar novamente, significa que há outra circunstância que está a causar o resultado.
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Direito Penal II Leonor Branco Jaleco
Neste sentido, será necessário fazer uma verificação e análise de todas as circunstâncias antecedentes
à verificação do resultado.
A primeira ideia que foi a da delimitação da mesma – procurou-se introduzir critérios de delimitação
do âmbito da conditio. É neste contexto que surge a próxima doutrina:
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Direito Penal II Leonor Branco Jaleco
Não prescinde da conditio, mas procura limitá-la, propondo que apenas sejam relevantes os
comportamentos que passam pelo crivo do juízo de prognose póstuma feito pelo julgador – um
comportamento será causa adequada sempre que, colocada uma pessoa média no lugar do agente,
antes da prática do crime, seja previsível aquele resultado como consequência do seu comportamento.
Se for imprevisível, ainda que haja causalidade (ditada pelas leis da natureza), não há imputação.
De acordo com esta teoria, só serão relevantes os processos causais que as pessoas poderiam dirigir.
Saberemos quando isso acontece através do tal juízo de prognose póstuma.
Esta teoria é muito importante porque já entra no campo normativo, de valorações – é uma teoria da
imputação.
Adotando um critério de previsibilidade, esta teoria consegue resolver bem os casos de interrupção
do nexo causal e das características especiais da vítima, mas na causalidade hipotética ou nas causas
paralelas, enquanto parte da conditio, não consegue obter uma resposta satisfatória.
Devem ser tidos em conta os especiais conhecimentos do agente? Sim, a Teoria da Causalidade veio
a ser desenvolvida de forma a abranger os conhecimentos especiais do agente: numa primeira análise,
procede-se a um juízo de previsibilidade objetiva, mas posteriormente ter-se-á de fazer um juízo de
previsibilidade subjetiva.
Exemplos:
(3) Afirma a causalidade nos casos em que o agente não ultrapassa o risco permitido ou até o
diminuiu. Ex: o agente, para evitar que a vítima venha a ser atingida por uma pedra, empurra-
a, acabando por lhe provocar um arranhão; de acordo com um juízo de prognose póstuma,
seria previsível que, pelo comportamento (empurrar a vítima), se atingiria aquele resultado
(arranhão). Contudo, o agente diminuiu aqui o risco proibido de outrem.
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3. Teoria do risco
Noutra formulação, conclui-se que a imputação objetiva não pode ser reduzida à causalidade, na
medida em que o comportamento típico é apenas aquele que é juridicamente relevante entre os
comportamentos causais relativamente ao resultado, isto é, suficientemente ameaçador para os bens
jurídicos.
A imputação objetiva impor-se-ia apenas em função do perigo para os bens jurídicos realizado pela
conduta concreta. Segundo esta teoria, o Direito Penal teria uma função preventiva relativamente aos
bens jurídicos, não sendo por isso de sustentar a imputação objetiva senão em face de perigosidade
efetiva da conduta para o concreto resultado.
O princípio da legalidade impõe que, para que se possa dizer que o comportamento é típico, haja
uma base do ponto de vista lógico para se poder dizer que há uma controlabilidade daquelas
consequências.
→ ROXIN vem desenvolver esta teoria com a Teoria da Imputação Objetiva: não rejeita a
causalidade e considera útil fazer o juízo de prognose póstuma, mas não basta, pois há casos
em que há causalidade e se calhar não é assim tão imprevisível. Por exemplo, oferecer bilhetes
para companhia com muitos acidentes e caindo depois o avião; não se pode imputar a conduta
ao tipo porque a conduta não é proibida.
i. Num crime de ação, o agente criou ou potenciou risco para o bem jurídico – assim, não serão
imputáveis ao agente:
(a) Situações em que o agente diminui ou atenua o perigo para o bem jurídico (ex:
empurrar alguém para fora da estrada para evitar atropelamento causando leves
lesões);
(b) Quando há uma coatuação da vítima ou de terceiro – nestes casos, há uma
interrupção do nexo de imputação, pois o risco transfere-se para a vítima/terceiro.
(c) Omissão – avalia-se se não houve atuação que diminuísse o perigo para o bem
jurídico (ou seja, um risco proibido). Como é que se afere se há perigo para um bem
jurídico? Se há posição de garante. Tem de se conseguir provar que a atuação que foi
omitida teria com (quase) toda a certeza garantido a não verificação do resultado.
o ROXIN: teria de se provar que a atuação do garante teria, pelo menos,
diminuído o risco de produção do resultado. Tal garantiria o desvalor da ação
e o desvalor do resultado.
• Alguma doutrina discorda que se possa extrair daqui o desvalor do
resultado. Na prática, está a dispensar a imputação, bastando-se com
o primeiro passo (a criação ou não diminuição do risco) – será
necessário comprovar-se a conexão entre o risco proibido criado ou
não diminuído e o resultado. Caso assim não seja, violam-se os
princípios da legalidade, in dúbio pro reu e do direito penal do facto e
convertem-se crimes de dano em crimes de resultado.
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Direito Penal II Leonor Branco Jaleco
ii. O risco é proibido (segundo uma norma de cuidado – o agente viola norma de cuidado) – não
se inclui o risco geral de vida: riscos de que não nos podemos desligar mesmo cumprindo as
regras, por exemplo, condução consoante as regras, mas devido a dilúvio perde-se o controlo
do carro; caso se ultrapasse os limites de velocidade já não estamos dentro do risco geral de
vida (STRATENWERTH) que é socialmente adequado.
iii. O risco proibido criado concretizou-se no resultado (conexão de risco entre conduta do agente
– criação ou aumento do risco proibido – e o resultado) – demonstrando-se que o resultado
teria tido seguramente lugar, sensivelmente no mesmo tempo, do mesmo modo e nas mesmas
condições, ainda que a ação ilícita não tivesse sido levada a cabo, parece que a imputação
objetiva deve ser negada, seja porque não torna possível comprovar aqui verdadeiramente
uma potenciação do risco já autonomamente instalado seja porque se não pode dizer que o
agente criou um risco não permitido
MFP – para que possa haver imputação objetiva, a acusação tem de demonstrar que a criação do
risco proibido se veio a desenvolver ao ponto de ser ele que explica o resultado. Tem de haver uma
ação controlável pelo agente em sentido normativo.
• Quando é claro que não existe a concretização do risco proibido criado/aumentado pelo
agente no resultado típico?
a) Situações em que é o próprio fim da norma violada que revela que esse nexo não pode
existir. Ex: automóvel que, violando regras de velocidade, vem a bater num motociclista,
fazendo-o projetar para campo lateral, onde, por azar, vai cair dentro de um poço que
não estava devidamente tapado. O proprietário do poço, pelo seu comportamento de
não tapar o poço, incorre num crime negligente, criando um risco proibido; a questão é
saber se a norma de cuidado tem no seu âmbito evitar todos os riscos possíveis e, neste
caso, o de evitar que alguém caísse no poço, em consequência da projeção decorrente de
um acidente de automóvel: neste caso, a reposta será negativa.
b) Situações do comportamento lícito alternativo – verifica-se que, para além do
comportamento do agente, há outros comportamentos e fatores acidentais provocados
pela própria vítima.
Quando há certeza de que o resultado se iria produzir na mesma: a esmagadora maioria da doutrina
diz que nestes casos se afasta a imputação.
1. ROXIN – ex: um empresário tinha uma fábrica de pincéis de pelo de cabra e entregou os pelos
infetados aos trabalhadores; mas provou-se que a desinfeção não tinha eliminado aquele bicho
que provocou a infeção, pelo que os trabalhadores iriam morrer na mesma mesmo que o
empresário os tivesse desinfetado.
ROXIN diz que há desvalor da ação (deveria ter desinfetado os pelos), mas não pode haver conexão
de risco proibido, porque a desinfeção tinha sido inútil, o que quer dizer que a norma de cuidado que
serve para prevenir o risco, neste caso servia para afastar o risco mas não o risco que se produziu na
morte das pessoas. Então não foi o risco proibido que o empresário criou que se verificou no
resultado. Assim, não pode haver imputação objetiva. A norma não era eficaz para afastar o risco que
se concretizou no resultado, assim, o risco que se produziu foi outro, que não serve de base para a
imputação.
Estes casos distinguem-se da causalidade virtual, porque a causa virtual é um evento que nunca
coloca em dúvida a conexão de risco proibido.
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Havendo dúvida sobre qual dos riscos proibidos operou para a verificação do resultado:
1. A maioria da doutrina entende que, se existe dúvida, então in dúbio pro reu: tem de valorar a
dúvida a favor do arguido, logo, nega-se a imputação objetiva.
2. ROXIN – não faz sentido falar em in dúbio pro reu porque tal é para verificação de factos e neste
caso não há dúvidas quanto aos factos. Trata-se de saber se existe uma conexão de risco –
existe criação de risco proibido: se segundo um juízo ex post tivermos a certeza de que o agente
aumentou o risco para a produção do resultado, então existe base para a imputação (teoria do
incremento do risco).
3. MFP – a posição de ROXIN não pode proceder, pois com isso transformar-se-ia os crimes de
resultado em crimes de perigo. não podemos afirmar com mero incremento do risco que existe
conexão do risco; não se pode confundir desvalor de ação com desvalor do resultado. Se não
há certeza de que o resultado se produziria na mesma, não pode haver conexão.
4. BN – não pode haver imputação objetiva porque se não há certeza se se o camionista tinha
atropelado o ciclista se tivesse respeitado a distância de segurança, não se sabe se o risco
produzido por ele se concretizou no resultado e, por isso, não pode haver conexão. É verdade
que, ao não respeitar a distância de segurança, cria um risco proibido ex ante e produz o
resultado atropelamento: mas não sabemos se o risco proibido criado por ele foi o que se
verificou no resultado. Não é a parte proibida do risco que explica o resultado.
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▪ Não se pode converter a dúvida sobre o que poderia ter acontecido num
fundamento de ativação da função normativa.
▪ Critica TRE, 10/12/13 que seguiu esta alternativa (devido a uma “prova
diabólica” do caso concreto) o que deu abertura a uma imputação sem prova
do facto, em que se considerou bastante a potenciação do risco e a sua
materialização no resultado típico.
Segundo este princípio, uma pessoa, em princípio, pode confiar que os outros vão cumprir as regras.
Ex: se A está a conduzir e tem prioridade, não terá de parar para se certificar de que os outros
condutores vão respeitar a prioridade; em princípio, poderá confiar que o farão. Se o outro não
respeitar, houver um embate e morrer, A pode fazer-se valer do princípio da confiança para afastar a
imputação.
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O princípio da confiança não vale, contudo, quando o agente não respeita a norma de cuidado, ou
quando há sinais evidentes de que o outro não vai respeitar a norma (ex: o agente vê claramente que
o outro não vai respeitar a prioridade).
Caso de fronteira:
A conduz desrespeitando os limites de velocidade, atropelando uma criança; contudo, a mãe não
estava a vigiar a criança. Poderá A aqui fazer-se valer do princípio da confiança, afirmando que
confiava que a mãe iria vigiar a criança? Ora, a verdade é que A viola a norma de cuidado; a mãe
também poderia argumentar que confiava que A ia respeitar os limites de velocidade.
❖ TIPICIDADE/IMPUTAÇÃO SUBJETIVA
Analisado o tipo objetivo de ilícito, cumpre agora analisar o tipo subjetivo de ilícito, cujo elemento
irrenunciável é o dolo.
O conteúdo do tipo subjetivo de ilícito não se esgota no dolo do tipo: temos também de considerar a
negligência e em muitos tipos legais de crime existem ainda especiais elementos subjetivos, que não
pertencem ao dolo do tipo – enquanto conhecimento e vontade de realização do tipo objetivo – e que,
todavia, de forma essencial, codeterminam o desvalor da ação e definem a área de tutela típica.
Dolo vs Negligência:
O art. 13º determina que “só é punível o facto praticado com dolo ou, nos casos especialmente
previstos na lei, com negligência”. Isto significa que o art. 13º tem ínsito que é mais grave a
criminalidade dolosa.
A dogmática do dolo é político-criminalmente condicionada por esta diferente relevância dos delitos
dolosos e dos negligentes; concretamente, pelo desvalor jurídico mais alto atribuível ao dolo.
o Tal deve-se ao facto de o Direito Penal ser regido pelo princípio da culpa e estes casos serem
aqueles em que o agente revela no facto uma posição ou atitude de contrariedade ou
indiferença perante o dever-ser jurídico-penal.
o O agente doloso revela uma maior perigosidade que o agente negligente.
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Direito Penal II Leonor Branco Jaleco
Porque é que estes comportamentos, intencionais ou em que há decisão de realização do facto típico, são mais
gravemente puníveis que os comportamentos negligentes?
o MFP: comportamento doloso é um comportamento em que era mais fácil evitar a lesão do
bem jurídico, pois ele tinha uma vontade dirigida para a violação desse bem jurídico.
• É mais intensa a vontade – a intencionalidade é o mais elevado grau de racionalidade
comportamental.
• Vivencia de forma mais clara o conflito entre violar a norma ou não.
• O desvalor da ação é superior pois o agente está em conflito direto com a norma – o
agente optou por violar a norma; motivou-se contra a Ordem Jurídica.
No caso da negligência (violação de um dever de cuidado) o agente não pode ter vivido esse conflito
entre violar a norma ou não:
A negligência só é punida quando esteja especialmente previsto na lei – é o que resulta do art. 13º.
(a) Negligência consciente – está presente um elemento em comum com o dolo – o elemento
intelectual (o agente representou a realização do tipo objetivo); não é dolo porque falta o
elemento volitivo.
(b) Negligência inconsciente – o agente nem sequer verificou a realização do tipo objetivo.
Numa fórmula geral, o dolo pode ser concetualizado como o conhecimento (momento intelectual) e
vontade de realizar o tipo objetivo de ilícito (momento volitivo): é o elemento volitivo, quando
ligado ao elemento intelectual, que verdadeiramente serve para indiciar (embora ainda não para
fundamentar) uma posição ou atitude do agente contrária ou indiferente à norma de conduta, i.e.,
uma culpa dolosa e a consequente possibilidade de o agente ser punido a título de dolo.
1. ELEMENTO INTELECTUAL:
A ideia subjacente é a de que a forma específica de vontade correspondente ao dolo requer um certo
nível de consciência ou conhecimento do facto descrito na lei penal e ainda uma determinada
posição afetiva ou emocional perante esse facto (momento mental suis generis ou mera interpretação
objetiva da conduta, reveladora da sua racionalidade).
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Direito Penal II Leonor Branco Jaleco
• Corresponde à concetualização jurídica possível do que poderá e deverá ser objeto de prova
como indício de uma ação dolosa.
(a) Representação da realização do facto típico como possível – tem de haver pelo agente uma
representação, ao menos como possível, da realização do facto típico. Ex: no caso de uma
pessoa que dispara a uma distância muito elevada, não sendo provável que acerte na pessoa,
mas sendo configurado pelo agente como possível, há dolo.
(b) Consciência atual – vivência psicológica atual; no momento em que realiza o facto. Pode não
ser uma vivência plenamente efetiva – ex: sexo com adolescente, sendo que durante o ato não
repara que é adolescente; ex2: médico que se esquece que o doente era alérgico – falha
elemento intelectual do dolo. Para haver decisão pela realização do facto típico tem de haver
luz intelectual sobre o assunto.
Requer-se que o agente represente a totalidade da factualidade típica e a atualize de forma efetiva.
Contudo, “consciência atual” não é o mesmo que consciência refletida, ponderada, clara ou
demorada.
Como PLATZGUMMER defendeu, a consciência requerida das circunstâncias do facto será atual do
próprio ponto de vista psicológico, para afirmação do dolo do tipo, não apenas quando aquelas são
assumidas pelo agente sob a forma de representação mas também quando são “co-
consciencializadas”, i.e., assumidas por uma consciência que não é considerada explicitamente, mas
que é atendida com outros conteúdos conscientemente considerados e tem assim também de ser
implicitamente tomada em conta de forma necessária.
Assim, por exemplo, no caso do funcionário que não pensa nessa qualidade no momento em que
pratica corrupção, estende-se sobre ele um “permanente saber acompanhante”, que basta para a
afirmação do dolo do tipo.
Situações em que estão em causa qualidades do agente, à partida será esta a solução.
Contudo, havendo dúvidas quanto a esse conhecimento, ele não deve ser presumido, valendo aqui o
princípio in dúbio pro reo (STRATENWERTH).
(c) Representação do perigo concreto – tem de haver consciência de que aquele comportamento
é perigoso (crimes de perigo concreto = provocação de dano) e de que os danos são possíveis,
i.e., o agente não pode configurar um perigo remoto, mas sim um perigo concreto.
A função deste elemento é a de assegurar que o agente, ao atuar, conheça tudo quanto é necessário
a uma correta orientação da sua consciência ética para o desvalor jurídico que concretamente se liga
à ação intentada, para o seu caráter ilícito.
o MFP: este elemento não deve ser apenas compreendido como conhecimento ou representação
do facto como uma pura relação entre sujeito do conhecimento e objeto do conhecimento, e
sim globalmente como reconhecimento de si, da sua racionalidade e experiência anterior, ao
agir daquele modo naquele contexto concreto, i.e, como relação do sujeito consigo mesmo.
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Direito Penal II Leonor Branco Jaleco
A compreensão do elemento intelectual a partir da função de motivação pela norma que justifica a
exigência de dolo permite evitar o excessivo alargamento da exclusão do dolo a situações em que o
não conhecimento de alguns factos não impede ainda a apreensão do significado do comportamento.
o Ideia de que o conhecimento é uma certa vivência dos factos, uma certa compreensão do
contexto da situação e um reconhecimento do papel desempenhado pelo próprio agente que
justifica uma nova perspetiva na distinção entre espécies de erros relevantes para efeitos de
exclusão do dolo.
o MFP: interpretação meramente normativista, que não se vincule a uma função de concreta e
efetiva motivação pela norma, não é uma leitura interpretativa sustentável, porque conflitua
com o princípio da responsabilidade por culpa: a mera possibilidade de representação do
agente em comparação com a que teria um agente médio, a que a conceção normativista quer
reduzir o elemento intelectual do dolo, não permite sequer afastar do âmbito do dolo as
situações em que o agente, no caso concreto, estava em erro segundo uma avaliação comum,
para além de absorver, no dolo, todas as situações de confiança na não produção do resultado,
em que o agente “irracionalmente” e a partir de um conhecimento defeituoso pondera mal o
desfecho da sua atuação.
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Sempre que o agente não represente, ou represente erradamente um qualquer dos elementos da
factualidade típica, o dolo terá de ser negado – princípio da congruência entre o tipo objetivo e o
tipo subjetivo de ilícito doloso.
Nesses casos, poder-se-á estar perante um caso de erro, previsto no art. 16º/1 CP, o qual impede o
crime doloso.
Espécies de erro:
FD: o erro do art. 16º é de tipo intelectual e o do art. 17º é de tipo moral: significa que há um erro em
que é a própria perceção dos factos existentes que não é atingida e um outro em que apenas estará
em causa a compreensão da sua valoração, documentando um desfasamento das valorações
subjetivas do agente relativamente às do legislador.
o MFP: este critério é exemplo de uma boa dogmática penal mas tem muitos problemas.
No caso do art. 16º, o erro incide sobre a correspondência da representação dos factos verificados e
existentes, sendo sempre a asserção do agente em si mesmo correta no plano semântico.
• Exclui o dolo = o dolo do tipo não chega a constituir-se, por faltarem os seus pressupostos
No caso do art. 17º, o erro incide sobre o correto uso da linguagem aplicada ao caso concreto – o
agente descreve a realidade atribuindo-lhe um sentido incorreto de acordo com os normais usos
linguísticos.
Da análise de KINDHÄUSER resulta que a fronteira entre erros não depende de uma qualidade do
sujeito ou de uma motivação ou posição prévia perante os valores do Direito, mas do modo de ser do
erro, na perspetiva de alternativas de comportamento do agente. É de facto a natureza do erro que
suscita um impedimento ou uma falta de oportunidade de motivação pela norma ou, em alternativa,
apenas revela a falta de correto processo de motivação, que seria possível.
A distinção entre o erro que exclui o dolo e o erro que apenas pode, em certas circunstâncias, excluir
a censura de culpa não depende de aspetos constitutivos do sujeito; depende, tanto no plano da
perceção como ao nível da compreensão de sentido, das condições efetivas e factuais de
oportunidade para decidir segundo uma livre escolha entre a conduta típica e a ação lícita.
→ Só exclui o dolo o erro que incide efetivamente sobre os aspetos da conduta que constituam o
objeto do dolo, ou seja, os aspetos que a vontade do agente pode dominar e que sejam
constitutivos do comportamento proibido.
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Direito Penal II Leonor Branco Jaleco
Quando se exclui o dolo do tipo (art. 16º/1) tem de se indagar se o crime pode ser imputado a título
de negligência (art. 16º/3). Tal remete para o art. 15º, art. 13º e norma da PE que admita concretamente
esse crime por negligência.
Este é um erro de representação. Ex: uma pessoa quer matar outra, mas acaba por matar o sósia dessa
pessoa. A pessoa realizou o facto de homicídio de X e veio a acontecer o homicídio de Y. Existe aqui
um erro na formação da vontade: o agente encontra-se em erro quanto à identidade do objeto ou da
pessoa a atingir; o agente, por exclusivo erro de perceção, atinge pessoa ou objeto diverso para o qual
tinha dirigido a sua ação.
• A resposta é unânime – este caso não está abrangido no art. 16º. Isto porque o elemento
essencial da factualidade típica é matar uma pessoa: aquele que dispara sobre outrem,
pensando que é X e é Y, na realidade não representou o outro em concreto, mas este erro é
irrelevante, pois ainda assim representou uma pessoa, sendo este o elemento essencial da
factualidade típica: a lei proíbe a lesão de um bem jurídico e não de um bem jurídico
específico de alguém; assim, não se exclui o dolo.
• O único caso que pode levar a outras soluções é quando o agente erra sobre as qualidades
tipicamente relevantes do objeto por ele atingido, apenas se podendo imputar por
tentativa. Ex: o agente desconhece que está a agredir uma autoridade pública.
➢ Outro exemplo, A pensa que mata B mas acaba por matar C que é pai de A – pode
A ser punido por homicídio qualificado (de C)? Não, porque não representa que
está a matar o seu pai. Neste caso, o erro sobre a identidade é relevante.
É um erro que se situa ao nível da execução. Por exemplo, uma pessoa quer matar outra, dirigindo o
seu comportamento para tal, mas, por deficiência da execução ou por um motivo exterior (ex: rajada
de vento), vai atingir um terceiro. Na verdade, acabou por matar uma pessoa, pelo que se poderia
aplicar aqui a solução prevista para o error in personam. Contudo, o problema que se coloca é diferente:
não se trata, como na primeira, de um problema de representação, mas sim de uma espécie de
descontrolo da ação final, uma falta de domínio/condução sobre a ação concreta que se veio a
realizar.
Nestes casos, verifica-se uma alteração da própria produção causal da ação iniciada e o próprio
resultado atingido. Não é alterado só o desenvolvimento causal, mas também o próprio resultado.
o FD: Sim, a produção de outro resultado, que tanto podia não ter lugar ou ser de outra
gravidade, só pode eventualmente conformar um crime negligente. A punição deve por isso
ter lugar só por tentativa ou por concurso desta com crime negligente: teoria da concretização.
• HELENA MORÃO discorda e só pune por tentativa.
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Direito Penal II Leonor Branco Jaleco
Mesmo incidindo sobre objeto típico idêntico, há, no entanto, uma natureza causal do erro que torna
a parte concretizadora do comportamento do agente como menos controlável ou até não controlável
e dirigível pela vontade.
o MFP: tem sentido excluir o dolo e qualificar o comportamento do agente como tentativa por
dois motivos:
i. Agente pratica uma ação controlada pela vontade que não consegue consumar e
consuma outra que não é controlada finalisticamente – logicamente, o facto
realizado depende do facto típico em abstrato projetado.
ii. O merecimento penal do agente em aberratio ictus sobre o objeto típico idêntico
pode ser muito diferente do merecimento do agente em erro sobre a pessoa ou
sobre o objeto.
Para além disso, a exclusão do dolo depende de o erro retirar ao agente a oportunidade factual de
confronto e motivação com a norma incriminadora. É precisamente essa ideia que impõe um critério
de base factual e descritivo na aberratio ictus, apoiado na verificação da pluralidade de ações e na
autonomia da decisão de agir inicial relativamente à ação concretizada: existe uma ação dolosa
dirigida a um objeto e uma ação negligente dirigida a outro.
Nos casos em que se atinge uma terceira pessoa, questiona-se se existe um homicídio consumado:
• MFP – não existe um homicídio consumado. O agente deverá antes ser punido por um
concurso efetivo de crime de tentativa de crime doloso e de homicídio negligente
consumado. Poderá haver aqui três hipóteses:
a) Concurso de tentativa do crime e crime consumado
b) Apenas tentativa
c) Concurso de crime doloso tentado e crime doloso consumado – a título de dolo
eventual, se o agente prevê e aceita que pode acontecer o resultado da segunda
conduta.
Esta figura pode surgir em situações complexas em que é difícil distinguir de outras:
➢ Situações em que é difícil perceber se é erro de execução ou perceção – quando agente não
executa diretamente o facto mas fá-lo através de outra pessoa e em que, por isso, há da parte
do agente uma certa falta de domínio da execução. Ex: uma pessoa contrata um assassino
profissional para matar outra pessoa. O contratado está em erro sobre a pessoa, que é
irrelevante.
o O autor material manifesta-se como uma arma desviada ou maquinismo avariado que
galha o alvo.
o Contudo, o agente (instigador – art. 26º) cria um risco muito intenso do autor material,
que deveria evitar e que torna previsível o resultado.
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Direito Penal II Leonor Branco Jaleco
o MFP: melhor solução é a que qualifica como erro sobre a pessoa e pune o instigador pelo
crime doloso consumado do autor material, pois o agente tem domínio sobre o facto e tem
igualmente um dolo especialmente intenso.
➢ Situações de dolo alternativo – o agente pretende atingir A, sendo-lhe indiferente que venha
a atingir B; casos em que, mesmo que o agente prefira acertar num agente, conforma-se com
a possibilidade de acertar no outro. Verifica-se um dolo que admite uma ação imprecisa e
sem um desenvolvimento concreto assegurado a priori, relativamente a uma de duas vítimas,
embora se possa preferir atingir a vítima quanto à qual se falha. Nestes casos, a dúvida que se
coloca é saber se estamos também perante uma tentativa e um crime doloso consumado ou se
apenas perante um só crime doloso consumado, por se ter atingido apenas uma das vítimas:
o MFP: a solução preferível é reconhecer o concurso efetivo de dois crimes: o crime
tentado e o crime doloso consumado. A ação promovida pelo agente era bivalente –
encerrava em si, em alternativa, uma possibilidade de atingir qualquer uma das
vítimas e era sustentada numa decisão de atingir qualquer uma delas; ambas as
vítimas foram objeto da ação e ambos os concretos bens jurídicos (a vida de cada
pessoa) foram postos efetivamente em perigo.
o Esta solução tem sido criticada: em bom rigor, trata-se de um dolo com objeto
alternativo – o agente não se conformou com a possibilidade de acertar nos dois, mas
com a possibilidade de acertar num deles. Punir o agente com dois crimes dolosos é
ficcionar duas ações dolosas quando só existiu uma – viola-se o princípio ne bis in idem
(não se pode valorar o mesmo conteúdo de ilícito mais do que uma vez). Só há base
para afirmar o desvalor de ação dolosa numa das ações.
• Assim, pune-se pelo crime doloso consumado (FD).
• SILVA DIAS – A passeia a cavalo e B, querendo acertar em A acaba por
acertar no cavalo. Se B não acertar em ninguém, FD dirá que se pune por
tentativa de homicídio. Se acertar, é punido por crime de dano. Ora, não faz
sentido ser punido menos gravemente se acertar do que se não acertar.
O dolo alternativo distingue-se, assim, do erro sobre a execução na medida em que nos casos de dolo
alternativo o agente conforma-se, ainda que num nível mínimo, com a possibilidade de acertar noutro
alvo.
A questão que se coloca é de saber se a não correspondência entre o processo causal concreto e o
processo causal representado pelo agente é suficientemente significativa para se excluir, nos crimes
de resultado, o dolo relativo ao resultado.
Por exemplo, o agente concebe matar outra pessoa com um disparo e a vítima, ferida, vem a morrer
num desastre a caminho do hospital devido ao acidente: o processo causal desencadeado pelo
comportamento do agente conduziu à morte, mas por uma forma diferente e anómala em relação à
projetada.
Também é necessário e em que termos, o conhecimento pelo agente da conexão entre ação e resultado, i.e., do
risco por ele querido e vazado no resultado que fundamenta a imputação objetiva?
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Direito Penal II Leonor Branco Jaleco
o FD: à partida sim, pois só dessa maneira a realização do tipo objetivo de ilícito no seu todo
surgirá não como “obra impessoal”, mas como “obra do agente”, como pela “sua própria
realização”.
a) Como o resultado tem lugar por concretização de um risco não previsto, não pode afirmar-se
a congruência entre o tipo objetivo e o tipo subjetivo doloso – JAKOBS.
b) O erro sobre processo causal é irrelevante, exceto nos crimes de execução vinculada, pois só
nesses casos o processo causal constitui um elemento do tipo objetivo de ilícito, e, por isso,
uma circunstância do facto – MFP e EDUARDO CORREIA.
O agente pode ser responsabilizado por uma alteração do modo concreto de produção do resultado que não esteve
plenamente sob o seu controle inicial nem corresponde à sua decisão, em face da descrição legal da ação típica?
o Resposta tradicional: de algum modo, o resultado deixa de ser relativo a uma ação do agente
e, por isso, o dolo deve ser excluído.
Se o tipo de ilícito for de execução vinculada, então este erro é puro erro sobre a factualidade típica e
é claramente relevante – a forma como a agente atua é importante para preencher o tipo – relevante
pois se não fizer exatamente o que está descrito no tipo não está a cometer o crime.
Se o tipo de ilícito for de “execução livre”, então torna-se difícil configurar uma imputação objetiva
comandada pela conexão de risco e o dolo do tipo deve ser negado – quando se configure tal hipótese,
este erro leva à não afirmação dolo e o agente só pode ser punido a título de tentativa.
Existem outros casos, em que se entende que o desvio é irrelevante: casos em que o processo causal
concreto não dominado pelo agente não só poderia facilmente ser previsto como decorre em
sequência do processo posto em movimento pelo agente.
» A dá uma facada a B, que desenvolve uma septicémia e vem a morrer da mesma. Este desvio
não é relevante e, por isso, não deixa de haver dolo.
» Caso do agente que quer matar a vítima, atirando-a da ponte, concebendo que a mesma vai
morrer do embate na água, mas acontece que a vítima, ao ser atirada, morre logo por embater
contra um pilar. Nestes casos, semelhante ao anterior, entende-se que este é um desvio
irrelevante, porque ainda é o perigo típico contido no comportamento do agente que atua para
a verificação do resultado.
o MFP: esta alteração do processo causal concreto não foi prevista, mas ainda é uma
consequência imediata e normal da ação do agente e de um processo causal que cabe
no espaço ou área de risco intenso derivado da conduta do agente e incluído na sua
decisão, que o tipo pretende abarcar.
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Dolus generalis:
O agente executa, sem o saber, o facto típico por um modo diverso do projetado ou representado, sem
consciência disso, verificando-se o resultado em circunstâncias concretas de tempo, lugar ou modo
diversas. Por exemplo, mata a vítima num segundo momento, achando que o matou num primeiro
momento.
a) Ex1: o agente pretende matar a vítima por enforcamento e esconder o cadáver atirando-o ao
poço; o agente acaba por causar a morte da vítima somente quando a atira ao poço. Neste
caso, o agente, por erro, pensa que realiza o facto típico quando tenta, sem conseguir,
consumar o crime. O dolo antecede o momento da produção do resultado.
b) Ex2: o agente planeia matar a vítima por afogamento no rio, mas mata-a logo que desfere
pancadas na cabeça e não apenas quando a atira ao rio. Neste caso, o agente realiza o facto
típico, quando, na sua representação, apenas o prepara. Produz o resultado
inconscientemente. O dolo sucede ao momento da produção do resultado.
1º Momento em que o agente pensa erroneamente ter produzido, com a sua ação, o resultado
típico;
2º Momento, fruto de uma nova atuação do agente (quase sempre com fins de encobrimento),
em que o resultado vem efetivamente a concretizar-se.
A realização objetiva do facto, sem uma orientação da ação pela vontade não corresponde, de acordo
com o art. 14º CP, a um comportamento doloso. Ao produzir-se o resultado inconscientemente,
apenas poderia conceber-se uma ação negligente, já que o agente sempre poderia prever que a morte
da vítima pudesse ocorrer daquele modo.
Assim, nestes casos, a ação suportada pelo dolo do facto não determina (imediatamente) o resultado,
enquanto a ação que causa o resultado não é mais suportada pelo dolo do facto.
A questão que se coloca, nestas situações, é saber se o comportamento deve ser qualificado como um
concurso de tentativa de homicídio (doloso) e homicídio consumado (negligente) ou se, seguindo a
lógica de que o dolo tem apenas como objeto o resultado e é um dolo geral relativamente às
circunstâncias concretas em que este ocorre, deve ser considerado simplesmente como um homicídio
doloso consumado:
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Direito Penal II Leonor Branco Jaleco
facto típico com um desvio não essencial sobre o processo causal; o agente planeou todo o
processo desde o início – erro não essencial, não excludente de dolo. Este é o verdadeiro
caso de dolus generalis.
b) Nos casos em que a decisão de praticar a ação que redunda (inconscientemente) na morte
da vida não foi projetada como sequencial, mas foi fruto de uma decisão momentânea
(posterior à ação que deveria produzir o resultado típico), a diferenciação entre uma ação
dolosa tentada e uma ação negligente consumada qualifica mais corretamente o
comportamento do agente – exclui-se o dolo (agente pensa estar a atirar um cadáver, não
uma pessoa viva). Aqui já não se trata de um caso de dolus generalis. A resposta depende
de se o agente podia representar a morte da vítima através do seu comportamento.
Erro excludente do dolo exigiria a falta de apreensão exata pelos sentidos. Ex: não perceção que o
objeto da ação seria uma pessoa, confundindo-a com um animal (para ser homicídio). Nestes casos,
em que há uma total confusão por parte do agente, existe uma incapacidade de os sentidos
apreenderem o objeto da ação, pelo que não existe o conhecimento razoavelmente indispensável para
que o agente se possa motivar pela norma, tendo, nesses casos, de se excluir o dolo.
Não basta o conhecimento de meros factos, pois é indispensável a apreensão do seu significado
correspondente ao tipo – “factos valorados” em função do sentido de ilicitude presente no tipo.
Essa exigência não coloca dificuldades quanto aos elementos descritivos, mas sim quanto aos
elementos normativos (aqueles que só podem ser representados e pensados por referências a normas,
jurídicas ou não jurídicas):
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Direito Penal II Leonor Branco Jaleco
➢ Ao agente não se exige uma exata subsunção jurídica, mas sim uma apreensão do sentido ou
significado correspondente, no essencial e segundo o nível próprio das representações do
agente, à valoração do facto.
O relevante para o erro não é saber se os elementos do tipo são descritivos ou normativos, mas se
a deficiência do conhecimento se refere à relação da norma com os factos concretos ou à própria
compreensão da intencionalidade da norma.
→ Dúvida relativamente à realização do facto típico quanto ao significado que o Direito atribui ao
comportamento:
Vem reclamar uma certa articulação entre o elemento intelectual e o elemento volitivo do dolo.
O art. 14º parece diferenciar os aspetos da representação dos da ação. Se é débil o elemento intelectual,
é o elemento volitivo que vem dar consistência unitária ao comportamento enquanto realização do
facto típico.
Assim, é o próprio CP que nos “obriga” a diferenciar os aspetos intelectuais dos aspetos volitivos.
Como é que a dúvida do agente (incerteza em termos de representação) pode então ser valorada, sobretudo em
casos de dolo eventual?
Caso alemão em que dois bandidos assaltam uma casa e, para roubar dinheiro, pensam em pôr
inconsciente o dono da casa. Contudo, não conseguem com que o dono fique inconsciente, mas
também não querem que ele morra; então, lembram-se de por umas correias de couro à volta do
pescoço do dono da casa e vão apertando até que, sem quererem, o matam.
Devem aqui ser considerados agente dolosos ou negligentes, uma vez que não queriam aquele resultado?
o MFP – não sabe se o objeto do dolo eventual é completamente reconduzível esta formulação.
Tal solução levaria a uma prova muito difícil do objeto do dolo, ter-se-ia de provar o que o
agente pensou, que o quis. Tem de haver um critério de significado, uma linguagem pública,
não podendo ser valorável uma linguagem privada, o mundo privado do agente sem mais,
pois tal seria deturpar o conteúdo dos estados mentais e da identidade das ações.
o Fórmulas de Frank – o agente, na hipótese de ter previsto o resultado como consequência
necessária da ação, teria ainda assim agido? Se a resposta for afirmativa, há dolo; se for
negativa, não há (fórmula hipotética). A outra fórmula orienta-se pela comprovação de uma
aceitação íntima de um resultado pelo agente e, deste modo, acentua menos o processo
indiciário de conhecimento e mais o objeto substancial do conhecimento (uma posição de
vontade) (fórmula positiva).
• Mas esta fórmula é duvidosa porque toma por base a personalidade do agente,
violando o princípio da legalidade.
o A solução que tem tido a aceitação pela doutrina pugna pela ideia de aceitação do risco (tomar
em compra). Aceitando o risco, o agente opta por dar preferência às vantagens do que às
desvantagens do seu comportamento, conformando-se, realizando o facto típico ainda assim.
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Direito Penal II Leonor Branco Jaleco
» Proibição legal:
A ausência de conhecimento sobre uma proibição legal de que depende o ilícito típico esvazia o
elemento intelectual do dolo e não coloca o agente perante as devidas condições e oportunidades de
motivação de acordo com o comando emanado da norma penal.
Isto é contrabalançado com o facto de existir uma espécie de responsabilidade especial do agente
pela autocolocação numa posição de ignorância perante o facto, tal como acontece nas situações de
indiferença perante o resultado típico.
Um agente que desconhece uma proibição legal estará, na perspetiva de uma responsabilidade
pessoal (responsabilidade por culpa), em circunstâncias semelhantes às do agente que representa
efetivamente a realização do facto típico, quando seja evidente que uma atividade regulada possa
estar sob o alcance de uma proibição legal.
Ou seja, tanto preenche o elemento intelectual do dolo o agente que representa como possível, embora
possa duvidar, que o seu alvo é uma pessoa e não uma peça de casa, não resolvendo a dúvida, como
o agente que representa a necessidade de se informar sobre se a sua atividade viola a lei e não é apenas
uma conduta neutra, mas não o faz, não se colocando em condições de esclarecer o sentido legal da
sua atividade.
2. ELEMENTO VOLITIVO – associado à ideia de querer. Note-se que querer não é o mesmo
que desejar. Está relacionado com o dolo eventual (art. 14º/3) – racionalidade do
comportamento em termos de decisão.
Esta racionalidade é bem manifestada numa ideia que os alemães expressaram na jurisprudência:
tomar em conta – quando se faz uma compra, muitas vezes aceitamos que há uma certa margem de
avaria ou de imperfeição da coisa (principalmente nos saldos); há uma aceitação de riscos. A grande
racionalidade é das empresas e empresários, e esses têm um comportamento pautado numa lógica
de ponderação custos-benefícios, que leva a que muitas vezes se aceitem riscos, elevados ou não.
➢ Caso dos mendigos russos, que estropiavam as crianças para as levar para o mundo da
mendicidade – havia aqui uma lógica empresarial, de aceitação do risco: os benefícios globais
deste comportamento são aqueles que prevalecem, por escolha dos agentes. A fórmula
hipotética de Frank resolveria a situação no sentido de, se ele tivesse a certeza que a criança
morria, não tinha interesse em fazer isso e por isso, não o faria e, por isso, não há dolo – tal
não solucionaria convenientemente este caso.
➢ Caso Guilherme Tele: herói nacional suíço, funcionário preso e condenado à morte; como
alternativa, é levado a ser ele a disparar a flecha para atingir uma maçã que está na cabeça do
filho. Ele aceita o risco de matar o filho. Do ponto de vista da tipicidade subjetiva, ainda há
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Direito Penal II Leonor Branco Jaleco
dolo eventual (mas talvez tenha havido aqui uma diminuição do risco, devendo ser punido
apenas por tentativa?; podia também haver causa de exclusão da ilicitude).
a) Dolo direto (art. 14º/1) – o agente orienta o seu comportamento para a realização do facto
típico. O agente quer a verificação do facto, sendo a sua conduta dirigida diretamente a
produzi-lo. A realização do tipo objetivo de ilícito surge como o verdadeiro fim da conduta
(dolo intencional).
b) Dolo necessário (art. 14º/2) – o agente não dirige a sua atuação diretamente a produzir a
verificação do facto, mas aceita-o como consequência necessária da sua conduta. O agente
aceita todo o custo em razão do seu benefício. Ex: Ex: põe bomba no avião para matar inimigo
(dolo direito face a este), o que faz com que morram os outros passageiros (dolo necessário).
c) Dolo eventual (art. 14º/3) – a realização do tipo objetivo de ilícito é representada pelo agente
apenas como “consequência possível da conduta”. O fim da sua ação não é a realização do
facto típico mas o agente representa tal como possível e mesmo assim não deixa de realizar a
ação. Ex: querendo ficar com o dinheiro do seguro, pega fogo à casa, não sabendo que lá está
a dormir alguém; mas sabendo que pode estar. O agente prevê como possível a realização do
facto típico (elemento intelectual) e tem uma posição volitiva ao conformar-se com aquela
realização.
• MFP: É a compreensão da posição volitiva do agente que se torna o cerne da
caracterização como dolo.
O art. 16º/1 CP exclui o dolo, mas não porque não haja conhecimento da ilicitude do dolo. O que se
exige é um conhecimento potencial (e não atual) da ilicitude do ato, que não está presente nas
situações abrangidas pelo art. 16º.
Relativamente aos crimes negligentes, para haver responsabilidade, o agente tem de ter
conhecimento potencial, tem de ter confrontado o seu comportamento com uma norma de cuidado,
tem de ter condições de saber se o seu comportamento não obedeceu aos procedimentos adequados
para evitar riscos para bens jurídicos.
Teremos de recorrer ao art. 17º para saber se essa falta de conhecimento não é censurável.
No plano teórico não se levantam grandes problemas: ambos contêm o elemento intelectual, mas
apenas o dolo eventual contém também o elemento volitivo.
No plano prático, é mais difícil, pelo que temos de procurar critérios que permitam, com alguma
segurança, fazer a distinção entre dolo e negligência.
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Direito Penal II Leonor Branco Jaleco
A. Teoria da Probabilidade: distinção tem de ser feita num plano cognitivo (do elemento
intelectual).
Para o dolo eventual exige-se uma representação qualificada – não basta a mera representação da
possibilidade, mas requer-se que essa representação assuma a forma de probabilidade.
• MFP acentua o elemento intelectual do dolo apenas como indício objetivo e suscetível
de prova de uma realidade afetiva ou volitiva relativamente ao ato (pelo que não se
diferencia necessariamente das teorias volitivas).
Formulações mais recentes procuram ancorar o dolo numa especial qualidade da representação da
realização típica como possível: exige-se que o agente tome a realização como concretamente
possível, que não a considere improvável segundo juízo fundado, sobretudo, que parta de um ponto
de vista pessoalmente vinculante.
CASO LACMAN: A aposta com B que é capaz de quebrar com um tiro um copo que C segura na mão
sem a atingir; acaba por ferir C. Mesmo que A sinta como um mal a realização típica, ele, estando
consciente de que pode errar o tiro, espera que não aconteça e considera essa possibilidade como um
mal menor, de que de todo o modo se dispõe a aceitar (dolo do tipo contra a norma de
comportamento) – jurisprudência alemã referiu-se a aceitação em sentido jurídico nestes casos em
que o agente se resigna com a possibilidade de que a sua ação venha a ter o efeito indesejado.
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Direito Penal II Leonor Branco Jaleco
Parte da ideia de que o dolo pressupõe algo mais do que o conhecimento do perigo de realização
típica.
O agente pode, apesar de tal conhecimento, confiar, embora levianamente, que o preenchimento do
tipo se não verificará e age então só com negligência (consciente).
o Por isso, EDUARDO CORREIA avançava como critério do dolo eventual o facto de o agente
atuar não confiando em que o resultado se verificará.
• FD discorda: a dupla negação não permite perceber com clareza o elemento positivo
que deve arvorar-se como critério do dolo eventual; conotação extremamente
psicologista da confiança pode conduzir a privilegiar infundadamente o otimista
impenitente (que confia que tudo correrá pelo melhor) face ao pessimista depressivo.
O relevante é que o agente tome a sério o risco de (possível) lesão do bem jurídico, que entre com
ele em contas e que, não obstante, se decida pela realização do facto.
➢ O propósito que move a atuação do agente vale, aos seus olhos, o “preço” da realização do
tipo, ficando deste modo indiciado que o agente está intimamente disposto a arcar com o seu
desvalor.
➢ O agente, em vista da autêntica finalidade da sua ação, conforma-se/resigna-se com a
verificação das consequências típicas.
E. FERNANDA PALMA:
Sobrevalorização do interesse do agente face à tutela do bem jurídico: há uma ponderação entre dois
interesses: (i) interesse do agente em fazer o que quer e (ii) proteção do bem jurídico em concreto, que
pode ser lesada pela atuação do agente. O critério é saber se o agente achou mais importante fazer o
que queria ou não lesar o bem jurídico.
O agente conforma-se com o perigo de realização do facto típico quando, perante um dilema – fazer
algo que implica lesão de um bem jurídico ou não – o agente decide realizar uma ação. Aí, há dolo
eventual. Aqui, o interesse na realização da conduta é superior a um eventual interesse de não lesão
do bem jurídico.
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Direito Penal II Leonor Branco Jaleco
Voltando ao Caso Lacman, o que a pessoa quer é acertar no copo e nem se conforma com a
possibilidade de acertar na pessoa pois tem a confiança que não o vai fazer. Ele tem tanta confiança
que até aposta – temos negligência consciente.
• A não ser que, pelos dados da situação concreta, se pudesse concluir que a fundamental
motivação do agente seria o próprio “prazer do risco” e não ganhar a aposta (lógica
empresarial).
• A linguagem social que nos permite discernir o que é um comportamento doloso não
pode deixar de ser a linguagem de que o agente dispõe para representar e
compreender o significado dos seus atos e através da qual se orienta no mundo e que
também para si próprio é inultrapassável.
• Para podermos descrever um comportamento como voluntário (doloso), será
necessário que seja intencional, e isso acontece com as decisões que obedecem a uma
lógica de silogismo aristotélico: o agente escolhe um fim que quer atingir, escolhe os
meios adequados para atingir esse fim e age para atingir esse fim, com esses meios
escolhidos. Se isto não sucede, significa que o agente agiu sem vontade, agiu
negligentemente.
o O problema é que isto parece limitar demasiado os casos de voluntariedade,
restringindo-os aos casos de intencionalidade. Assim, acrescenta-se aqui o
elemento da aceitação do risco da verificação do resultado: aceita-se os
meios para atingir os fins. Mas note-se que o agente tem de representar o
risco.
F. Indícios:
Quando há dúvida se estamos perante dolo eventual ou negligência consciente vamos verificar os
elementos objetivos, que não são tão dependentes de uma interpretação subjetiva, e ver ser eles
suportam as conclusões tiradas.
2º indício: atuação do agente na redução do risco – se agente procurar evitar produção do resultado
é indício de negligência (pois o grau de conformação é menor – ele não está a conformar com possível
resultado); tomada de medidas de precaução
3º indício: contexto motivacional – faz-se apelo ao critério MFP e se agente sobrevalorizou o seu
interesse face à proteção do bem jurídico no contexto em que se insere. Não tem necessariamente de
se aplicar.
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Direito Penal II Leonor Branco Jaleco
❖ ILICITUDE
A ilicitude do facto significa a sua contrariedade a uma norma do Direito Penal, no pressuposto de
que não se verifique simultaneamente uma autorização por qualquer outra norma do Direito Penal
ou pertencente à restante OJ.
Assim, a ilicitude é uma demonstração coerente, em face de todo o Direito, de que o facto é desvalioso
– é isso que o art. 31º CP postula ao referir que “o facto não é punível quando a sua ilicitude for
excluída pela Ordem Jurídica considerada na sua totalidade”.
A afirmação da ilicitude do facto não é algo meramente lógico-formal mas uma afirmação de sentido
valorativo sobre o facto.
O juízo de ilicitude destina-se a asseverar que o desvalor da ação e o desvalor do resultado do facto
típico o tornam um facto proibido:
Revela que o agente, por ter agido com dolo ou pelo menos com negligência (violação de dever de
cuidado), contrariou uma proibição de ação que lhe impunha que se abstivesse de praticar tal facto,
ou comando de ação que impusesse esse comportamento.
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Direito Penal II Leonor Branco Jaleco
Foi a Escola Finalista que contribuiu para o entendimento atual de ilicitude – só as ações humanas,
real ou potencialmente finais, é que podem ser significativamente proibidas, motivando os seus
potenciais autores a evitá-las.
A justificação do facto constitui um aspeto essencial do juízo de ilicitude, que revela a específica
autonomia daquele juízo relativamente à tipicidade.
FIGUEIREDO DIAS fala em tipos justificadores, realçando que não existe verdadeira continuidade
entre fundamentação e exclusão da ilicitude:
➢ MFP – uma causa de justificação do facto não é mera delimitação negativa do desvalor da ação
e é, em princípio, uma compensação ou neutralização da lesão do bem jurídico protegido pela
norma, através da realização de um outro bem ou interesse que suscita razão específica para
não proibir uma conduta típica.
A favor da ideia de que uma ação lícita face a um qualquer ordenamento jurídico não pode constituir
um ilícito jurídico-penal, invoca-se frequentemente o princípio da unidade da ordem jurídica, do
qual a doutrina dominante (TAIPA DE CARVALHO, OLIVEIRA ASCENSÃO) retira a ideia de
unidade da ilicitude: uma vez qualificada como ilícita uma ação por um qualquer ramo de direito,
ela é ilícita face à totalidade da OJ; inversamente, se ela é lícita face a um qualquer ramo de direito, é-
o face à totalidade da OJ.
• FD discorda desta visão – o ilícito não é uma “coisa em si”, mas algo que parcial mas
decisivamente se determina já a partir da consequência, no caso da norma penal, a
partir da especificidade da pena e da medida de segurança criminais. Tal não significa
a morte do princípio da unidade da ordem jurídica, mas apenas que este princípio
deve:
a) Por um lado, pensar-se no plano puramente negativo e, portanto, no sentido de
que sempre que uma conduta é, através de uma disposição do direito, imposta ou
considerada como autorizada ou permitida, está excluída sem mais a possibilidade
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Direito Penal II Leonor Branco Jaleco
de, ao mesmo tempo, e com base num preceito penal, ser tida como antijurídica e
punível.
b) Ao que acresce a especificidade do ilícito penal, derivada já da especificidade das
sanções que a ele se ligam, determinantes pela sua severidade, gravidade e lesão
que implicam de direitos, liberdades e garantias fundamentais do condenado, do
princípio político-criminal da intervenção mínima e de ultima ratio.
c) Assim, conclui FD que não é correto negar em bloco a possibilidade de se pensar a
ilicitude penal como uma ilicitude especificamente penal, devendo, pelo
contrário, acompanhar-se no essencial a tese de EDUARDO CORREIA da
possibilidade de uma específica exclusão ou justificação do ilícito penal – ilicitude
penal qualificada.
1- LEGÍTIMA DEFESA
“Constitui legítima defesa o facto praticado como meio necessário para repelir a agressão atual e
ilícita de interesses juridicamente protegidos do agente ou de terceiro.”
Nas palavras de FERNANDA PALMA, a legítima defesa é um modo de resolução de conflitos entre
os participantes num sistema social, através do qual é conferido aos indivíduos, em casos específicos
ou subsidiariamente, o poder de efetivar as regras do sistema sem recurso à autoridade das
instituições.
De acordo com a doutrina dominante (ROXIN, SILVA MARQUES, FD), são dois os fundamentos da
força justificativa da legítima defesa:
1. Necessidade de defesa da OJ, através da qual se justificará que se sacrifiquem bens jurídicos
de valor superior aos postos em causa pela agressão. É por isto que se justifica que a legítima
defesa não esteja limitada por uma ideia de proporcionalidade. Não há fundamento para
uma ação de legítima defesa quando, no caso, se verifique um interesse na preservação do
Direito, mas inexista a necessidade de proteção de um bem jurídico.
2. Necessidade de proteção dos bens jurídicos ameaçados pela agressão – à defesa de um bem
jurídico acresce o propósito da preservação do Direito na esfera de liberdade pessoal do
agredido, tanto mais quanto a ameaça resulta de um comportamento ilícito de outrem. Esta é
a razão pela qual a defesa é legítima ainda quando o interesse defendido seja de valor
inferior ao interesse lesado pela defesa: o interesse defendido é aquele que prepondera no
conflito, porque ele preserva do mesmo passo o Direito na pessoa do agredido – conceção
intersubjetiva.
• TAIPA DE CARVALHO – seria injusto impor ao agredido por um agressor doloso e
censurável uma limitação da sua liberdade de estar ou da defesa ativa dos seus bens.
É essa injustiça que constitui para este autor o fundamento da legítima defesa, pois só
aquela especial situação, a de uma agressão atual, ilícita, dolosa e censurável, e a
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Direito Penal II Leonor Branco Jaleco
injustiça de impor ao agredido um dever de suportar essa agressão fará cessar o dever
de solidariedade do agredido para com o agressor e permitir que sobre ele recaia uma
ação de legítima defesa, que não deverá ser limitada pelo princípio da
proporcionalidade.
• FERNANDA PALMA – a legítima defesa deve ser caracterizada por uma exigência de
proporcionalidade qualitativa: o defendente pode, em legítima defesa, lesar um bem
essencial (que manifesta a dignidade da pessoa humana – art. 21º) do agressor – bens
esses como os relativos à vida, à integridade física, etc. – se for para se defender de
uma agressão pelo agressor a um também bem essencial seu – são os casos da
insuportabilidade da não defesa. Art. 34º/c). Há, então, que hierarquizar bens
jurídicos a partir do valor da própria pessoa. O poder privado de defesa radica na
necessidade de preservar a dignidade e a autonomia da pessoa e os seus direitos.
o FD critica: desvaloriza o facto de a agressão ser sempre ilícita, minimizando a
função preventiva do instituto e leva muito longe o fundamento, quase
identificando com o estado de necessidade, alegando uma eminente violação
da dignidade da pessoa.
Estes dois fundamentos interligam-se na ideia de uma preservação do Direito na pessoa do agredido
(STRATENWERTH).
1. Ilimitada – seria insuportável exigir que a pessoa não se defendesse, pois está em causa um
bem do núcleo de essencialidade da dignidade da pessoa humana. Significa defesa ilimitada
dos bens associados à dignidade da pessoa humana.
i. MFP não exclui logo à partida o património – esses bens patrimoniais podem ser
justificativos, em situações específicas (condições da subsistência e dignidade de
uma pessoa).
ii. Defesa da ordem constitucional – interpreta-se como a ordem de bens jurídicos
associadas aos direitos fundamentais, havendo hierarquia entre direitos
fundamentais (ex: na CRP o património não está como direito fundamental).
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Direito Penal II Leonor Branco Jaleco
2. Limitada – bens sem o significado anterior, para os quais a defesa tem de ser moderada e não
se justifica uma legítima defesa a todo o custo.
a) Essa agressão tem de ser voluntária, exigindo um estado de consciência em que a vontade
esteja presente.
• FD – a agressão pode provir de entes coletivos. Contra, ROXIN.
b) Engloba uma defesa contra condutas dolosas ou negligentes – o agredido muitas vezes tem
dificuldade em saber se a agressão é dolosa ou negligente. Esta possibilidade não é
contraditória com a consideração do fundamento da legítima defesa como necessidade de
manutenção de exigências de prevenção geral.
c) Engloba tanto o comportamento ativo como o omissivo – abrange tanto as omissões impuras
como as omissões puras?
• FD – sim. Existe um omitir do qual resulta um perigo para bens jurídicos, individuais
e supra-individuais, e relativamente ao qual, portanto, deve ser afirmada a
possibilidade de legítima defesa.
• ROXIN – não, o conceito de agressão e a consequente legitimidade da defesa é
restringido às omissões impuras, pois na omissão pura não há a colocação em perigo
de bens jurídicos individuais (LUZÓN) e a omissão pura não é punível como lesão
desses bens jurídicos.
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Direito Penal II Leonor Branco Jaleco
• MFP: Não pressupõe necessariamente uma natureza penal do ilícito e pode ser o repelir de
agressões que não correspondem a factos legalmente incriminados.
Apenas bens individuais ou também bens supra-individuais podem constituir objeto de agressão?
Hoje, com a referida tendência para uma cada vez mais acentuada individualização da
legítima defesa, uma doutrina privilegiada resolve a questão no sentido da primeira
alternativa (apenas bens individuais) – TAIPA DE CARVALHO e MFP (que limita a defesa
aos bens pessoais ou ainda patrimoniais essenciais à manutenção e desenvolvimento da
dignidade humana).
FD – defende a segunda alternativa:
a) O art. 32º pode sugerir que a agressão deve pôr em causa bens pessoais, ao referir
“interesses do agente ou de terceiro” e não também do Estado ou da comunidade, se bem
que, de um ponto de vista formal, sempre pudesse retorquir-se que o Estado surge como
“terceiro” em relação ao agressor.
b) Não há razão para distinguir o Estado das pessoas físicas e jurídicas quando estejam em
causa bens jurídicos de fruição individual por ele tutelados (ex: pode assim defender-se
legitimamente um furto de material de uma escola ou a danificação de um banco de um
jardim público).
c) A justificação da legítima defesa deve ter lugar relativamente a bens supra-individuais
sempre que a agressão a estes ponha em sério perigo bens das pessoas (ex: será suscetível
de justificação por legítima defesa a ação daquele que impede pela força um indivíduo
completamente embriagado de se fazer à estrada com o seu automóvel).
d) O que justifica a legítima defesa alheia é que o defendente, como membro da comunidade,
é ele próprio “agredido” quando um outro indivíduo o é, pois essa agressão é ilícita.
Questão discutida é a de saber como deve decidir-se o caso em que o agredido não quer ser
defendido ou quer ser ele próprio a defender-se:
o Na Alemanha entende-se que o agredido não deve nunca ser defendido contra a sua vontade
expressa, pois de outro modo ultrapassa-se em toda a sua dimensão o pensamento da
prevalência do Direito sobre o ilícito na pessoa do agredido.
o Hoje estão a tornar-se mais comuns as considerações “diferenciadoras”, consoante a agressão
vise bens jurídicos disponíveis ou indisponíveis.
A agressão é atual quando é iminente (FD e ROXIN), já se iniciou ou ainda persiste. Para MFP, a
agressão é atual quando já há a prática de algum ato de execução.
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Direito Penal II Leonor Branco Jaleco
Mais discutido têm sido os casos em que a agressão não é ainda sequer iminente, mas já se sabe
antecipadamente, com certeza ou elevado grau de segurança, que ela vai ter lugar. Ex: o dono de uma
estalagem ouve, ao jantar, três hóspedes combinarem entre si o assalto ao estabelecimento durante a
noite. Haverá justificação por legítima defesa se o dono da estalagem coloca soníferos nas bebidas
dos clientes?
o Uma doutrina minoritária defende que a agressão já é atual no momento em que se sabe que
ela vai ter lugar se o adiamento da reação para o momento em que ela fosse iminente tornava
a resposta impossível, mediante um grave endurecimento dos meios – teoria da defesa mais
eficaz /teoria da legítima defesa preventiva.
• FD, ROXIN e TAIPA DE CARVALHO: esta teoria não deve ter acolhimento, pois
alarga em demasia o conceito de atualidade e pode trazer consequências nefastas, ao
legitimar formas privadas de defesa em substituição da atuação das autoridades
competentes.
o FD – a legítima defesa deve ser negada nestes casos, por não estarmos em presença de
agressões atuais. Uma eventual exclusão da ilicitude só poderá verificar-se através da figura
do direito de necessidade defensivo, uma vez verificadas determinadas condições (máxime, a
impossibilidade ou ineficácia de uma intervenção policial).
o FP – Não poderá haver nestes casos analogia com a legítima defesa defensiva, pois estaríamos
a inverter os papéis: o agente que ainda não agrediu seria já considerado agressor e aquele
que vai efetivamente agredir alguém (supostamente em legítima defesa) vai ser considerado
defendente. A única figura que se poderá aplicar aqui por analogia é a da provocação de
legítima defesa.
b) Término da atualidade da agressão – a defesa pode ter lugar até ao último momento em que
a agressão ainda persiste.
O momento em que a agressão deixa de ser atual é aquele em que se alcança o último momento em
que há a consumação dos crimes:
• Na maior parte dos crimes tal momento é o da consumação, mas, há numerosos crimes em
que a agressão ou o estado de antijuridicidade perdura além da consumação. É o caso do
crime de ofensas à integridade física (art. 143º), que se consuma logo que A desfere o primeiro
murro em B, mas nem por isso B está impedido de responder em legítima defesa contra os
murros e pontapés seguintes (mas não já se B recebe uma bofetada de A e responde com outra,
se não houver nenhuma razão para crer que a bofetada de A se insere num processo
continuado de ofensa à integridade física de B).
• O momento relevante é aquele até ao qual a defesa é suscetível de pôr fim à agressão. É à luz
deste critério que devem ser resolvidos os casos que mais dúvidas levantam: o dos crimes
contra a propriedade, nomeadamente o do crime de furto. Isto porque o objetivo da legítima
defesa é o de repelir a agressão; não se trata de uma lógica de vingança ou de fazer justiça
repressiva que cabe ao Estado.
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Direito Penal II Leonor Branco Jaleco
Afere-se à luz da totalidade da ordem jurídica, não tendo de ser especificamente penal: pode repelir-
se em legítima defesa agressões violadoras não apenas do direito penal, mas também do direito civil,
do direito de mera ordenação social, etc. Contudo, a agressão não será ilícita para este efeito em
relação a interesses para cuja agressão a lei prevê procedimentos especiais, como será o caso dos
direitos de crédito e dos de natureza familiar.
• Não tem de existir dolo ou uma violação subjetiva do dever de cuidado pelo agressor, bastando
uma objetiva contrariedade aos deveres jurídicos derivados da norma.
• Se agente estiver em erro não tem dolo, mas a vítima pode agir em legítima defesa contra este.
Isto porque objetivamente há facto ilícito e basta isto para se afirmar que não é suportável a não
defesa.
Não sendo ilícitas as agressões justificadas, não pode ser exercido contra elas legítima defesa – a quem
atua ao abrigo de uma causa de justificação é concedido um verdadeiro direito da intervenção na
esfera de terceiros, que faz impender sobre estes um dever de suportar aquela conduta e impossibilita
uma reação em legítima defesa.
NOTA: a situação de legítima defesa pressupõe a ilicitude da agressão, mas não a culpa do agressor.
Podem, assim, ser repelidas em legítima defesa agressões em que o agente atue sem culpa, devido a
inimputabilidade, à existência de uma causa de exclusão de culpa ou a um erro sobre a ilicitude não
censurável.
O art. 32º fala na exigência de um “meio necessário para repelir a agressão”, parecendo deste modo
que a ação de defesa é caracterizada exclusivamente através da necessidade do meio nela utilizado;
não há defesa legítima se ela for desnecessária. (FD).
1- Necessidade do meio:
Para a ação de defesa estar justificada, devem ser usados os meios necessários para repelir a agressão
atual e ilícita.
Só verificando-se estas circunstâncias se poderá afirmar que o meio foi indispensável à defesa e,
portanto, necessário.
Sem quaisquer outras limitações, a interpretação literal do art. 32º CP levava a que se permitissem
lesões elevadamente desproporcionais à defesa de certos bens – o artigo não limita, como faz o art.
337º CC:
➢ MFP: uma interpretação jurídica do art. 32º de acordo com o fundamento da legítima defesa,
numa ordem jurídico-constitucional que impõe uma salvaguarda de bens jurídicos e
interesses de valor superior no conflito com outros de menor valor, implica o relacionamento
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Direito Penal II Leonor Branco Jaleco
O juízo de necessidade reporta-se ao momento da agressão, tem natureza ex ante e nele deve ser
avaliada objetivamente toda a dinâmica do acontecimento, merecendo especial atenção as
características pessoais do agressor, os instrumentos de que dispõe, a intensidade e a surpresa do
ataque, em contraposição com as características pessoais do defendente e os instrumentos de defesa
de que poderia lançar mão.
Não explícito no art. 32º CP, mas decorrente da sua correta interpretação e especialmente atendendo
à necessidade do meio, em conjugação com o art. 21º/1 CRP, temos o critério de não ser possível
recorrer às forças de autoridade.
➢ MFP – se a autoridade pública nada faz, pode haver legítima defesa, pois a inoperabilidade
da autoridade pública dá legitimidade à legítima defesa, devido à insuportabilidade da
agressão.
O uso de meio não necessário à defesa representa um excesso, que determina a não justificação do
facto por legítima defesa. Um meio será considerado desnecessário sempre que fosse razoavelmente
de supor que outro meio não agressivo pudesse ter sido utilizado com êxito.
• Excesso de meios ou excesso intensivo de legítima defesa – leva à ilicitude do facto praticado
(art. 33º).
A determinação do meio necessário à defesa é algo que na prática suscita dificuldades porque muitas
vezes só depois de utilizado se fica a saber se ele bastaria à defesa.
• Esta realidade dá azo a que muitas vezes sejam usados meios mais gravosos para o agressor
do que aqueles que teriam sido necessários para a defesa – tal não impede a afirmação da
ilicitude, mas pode determinar uma diminuição da culpa ou até a exclusão da culpa.
2- Necessidade da defesa:
A própria defesa tem de se revelar como normativamente imposta, para que possa ser vista como
exigência de reafirmação do Direito face ao ilícito na pessoa do agredido.
De acordo com FIGUEIREDO DIAS, há agressões que não se apresentam como uma ofensa
socialmente intolerável dos direitos do agredido, pelo que a legítima defesa pode não surgir como
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Direito Penal II Leonor Branco Jaleco
FD fala em:
Agressões não culposas – a agressão é ilícita e atual, mas o agressor age sem culpa, seja porque
é inimputável, porque não tem consciência do ilícito não censurável ou porque está a agir
numa situação de inexigibilidade legalmente prevista ou situação análoga.
Nestes casos, quanto menos responsável for o agressor pela sua atuação, tanto mais restritos serão os
limites de necessidade da defesa; por isso, a defesa agressiva não é necessária se o agredido pode
esquivar-se à agressão, por exemplo, afastando-se do doente mental que o insulta em vez de o ofender
corporalmente. Se nenhuma hipótese deste género se verifica, porém, a defesa será necessária e o
direito de legítima defesa persiste, embora deva manter-se dentro dos limites da compressão objetiva
imposta perante atuações não culposas.
Se o terceiro não sabe disto e intervém em defesa alheia do defendente provocador, este terceiro já
detém elemento subjetivo de causa de exclusão da ilicitude porque ele está a impedir que haja
agressão do (falso) defendente.
Nos casos em que o agredido provocou a agressão através de atos que não são considerados ilícitos,
fará sentido que o Direito lhe permita fazer isso e depois, em função da prática desses atos, lhe venha
retirar a possibilidade de defesa? BN – isso parece ser contraditório.
FD – pugna por uma comparação objetiva do significado jurídico-social da defesa com o peso da
agressão para o agredido: a necessidade da defesa deve ser negada sempre que se verifique uma
insuportável (do ponto de vista jurídico) relação de desproporção entre ela e a agressão pois uma
defesa inadmissivelmente excessiva é abusiva e não se representa como uma defesa do Direito contra
o ilícito na pessoa do agredido. Não pode ser legítima a defesa que se revela notoriamente excessiva
face aos bens agredidos e que, nessa medida, representa um abuso do direito de legítima defesa.
MFP – ideia de proporcionalidade dos bens jurídicos em conflito: é condição de justificação que a
lesão derivada da defesa não seja sensivelmente superior à resultante da agressão, pois a agressão a
bens que não os definidores da dignidade essencial da pessoa exclui a legitimidade da defesa quando
esta determine a morte ou lesões graves à integridade física do agressor.
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Direito Penal II Leonor Branco Jaleco
o Posições especiais:
Há um dever de defender, mas tal tem de ser dentro dos parâmetros da legítima defesa. Comprovada
a efetiva proximidade existencial, proveniente da verificação de uma relação real entre os indivíduos,
está justificada uma maior compressão da agressão: o ameaçado deve sempre que possível evitar a
agressão, escolher o meio menos gravoso de defesa, ainda que ele se apresente menos seguro para
repelir a agressão e renunciar a uma defesa que ponha em perigo a vida ou a integridade física
essencial do agredido.
o Atos de autoridade:
O problema que se coloca é o de saber se a autoridade pública exerce uma verdadeira legítima defesa
ou apenas se limita a cumprir deveres quando responde a agressões.
MFP – não se pode deixar de reconhecer que o cumprimento de deveres como a manutenção da
ordem pública ou a detenção de suspeitos de crimes ou condenados que se subtraem ao cumprimento
da pena – sonegados, em princípio, aos particulares – há de permitir possibilidades de atuação
justificadas pelos valores a atingir no exercício da competência específica dos agentes da autoridade.
Lei que regula a intervenção da autoridade pública e que resulta numa concomitância entre
cumprimento de deveres e uma legítima defesa da autoridade pública: DL 457/99 (uso de armas de
fogo).
Além do requisito subjetivo que vale para a generalidade das causas de justificação (o do
conhecimento da situação de legítima defesa), desde há muito que se discute se é necessário um
animus defendendi, i.e., uma atuação com vontade de defender os bens jurídicos ameaçados pela
agressão.
A verdadeira razão por que se impôs a exigência de elementos subjetivos da justificação reside em
que os elementos objetivos do tipo justificador só apresentam virtualidade para excluir o desvalor do
resultado, enquanto os elementos subjetivos servem para caracterizar a falta do desvalor da ação.
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Direito Penal II Leonor Branco Jaleco
O que diferencia a causa de exclusão da ilicitude das restantes causas de justificação é a ideia de que
existe uma espécie de autorização da OJ, uma revaloração de um facto que era antinormativo e passa
a ser neutralizado ou passa mesmo a haver a prevalência de um valor sobre outro, como sucede no
caso de legítima defesa: quando seja intolerável a não defesa de um direito ou interesse, então
predomina, para o Direito, a proteção desse direito sobre a violação de direitos do agressor.
• Contra um comportamento que é merecedor de uma exclusão de ilicitude não pode ser oposto
um outro direito; daí que não possa haver legítima defesa sobre legítima defesa.
O que se passa nas causas de exclusão de culpabilidade é outra coisa (art. 35º CP): casos em que o
agente não tem as condições necessárias/suficientes para se motivar pela norma – estados de
necessidade desculpante.
A grande diferença prática entre estas duas é a de que, ao contrário do que sucede na causa de
exclusão da ilicitude (legítima defesa), nos casos de exclusão da culpabilidade (estado de necessidade
desculpante), em que apenas está em causa a censurabilidade do agente e a sua falta de
oportunidade/liberdade para se motivar pela norma, é possível opor-se a esse comportamento
através de legítima defesa. Nos casos de exclusão de culpabilidade não se faz nenhuma
avaliação/ponderação objetiva dos valores do sistema.
Em certos casos, contudo, o agente está a agir sob domínio de uma causa de exclusão da ilicitude
(legítima defesa, por exemplo); mas, por medo ou outro tipo de emoção, o agente utiliza um meio
que não é necessário. Ex: mata o agressor quando pode apenas agredi-lo. Estes são os casos de
excesso da causa de justificação.
O art. 33º CP define a figura do excesso de legítima defesa, embora possamos alargar a aplicação deste
art. a outras causas de exclusão da ilicitude, por analogia (mas sempre a favor do arguido). Há excesso
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Direito Penal II Leonor Branco Jaleco
de legítima defesa quando os pressupostos da legítima defesa estão preenchidos mas os requisitos
não.
No nº 2 deste artigo temos uma figura que já se prende com a exclusão da culpabilidade e não com a
exclusão da ilicitude.
Quando há excesso de legítima defesa, a agressão é ilícita e, nesse caso, pode ser-lhe oposta outro
comportamento em legítima defesa: sobre excesso de legítima defesa há legítima defesa.
No caso da legítima defesa, costuma caracterizar-se situações de excesso de caso de justificação (neste
caso, de legítima defesa) putativa: casos em que o agente está em erro sobre o pressuposto de facto
de uma causa de justificação e, para responder àquela situação que ele representa como uma tal
justificação, utiliza um meio não necessário. Combina-se aqui a figura do excesso com a figura do
erro.
NOTA: nos casos em que o excesso provém de erro, aplica-se por analogia o art. 16º/2. Ex: o agente
utiliza uma arma que tem uns dardos tranquilizadores, tendo outro menos gravoso ao seu dispor (ou
seja, usa um meio desnecessário), mas não sabe que a arma tem esses dados tranquilizadores.
A partir de 1886 reconheceu-se a teoria diferenciada do estado de necessidade e é de acordo com ela
que o CP regula complexamente o estado de necessidade: como causa de justificação (art. 34º) e como
causa de exclusão da culpa (art. 35º).
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Direito Penal II Leonor Branco Jaleco
Se o não for, o facto é ilícito, mas o agente poderá, dentro de certos e estritos pressupostos, ver a sua
culpa excluída.
o MFP: A lógica desta figura é o conflito de interesses relacionado com valores do bem jurídico
– há um certo valor objetivo dos interesses relacionados com os bens jurídicos em causa. Esta
relação fundamenta um dever de solidariedade. Não é, contudo, uma lógica de solidariedade
absoluta (agente não precisa de pôr em causa os seus interesses) nem objetiva absoluta.
A situação de necessidade pressupõe que um perigo atual que ameace interesses juridicamente
protegidos do agente ou de terceiro só possa ser afastado se outro bem jurídico for lesado ou posto
em perigo.
O legislador evitou a expressão “bens jurídicos” pois a ponderação de grandezas conflituantes não se
reduz a uma comparação “seca” de bens jurídicos, mas sim de bens jurídicos projetados no contexto
global da situação – os bens jurídicos conflituantes constituem apenas uma perspetiva de entre várias
relevantes para a ponderação.
3) Atualidade do perigo
Tem de se tratar, assim, de um perigo atual: deverá considerar-se atual mesmo quando não é ainda
iminente, mas o protelamento do facto salvador representaria uma potenciação do perigo; e também
no caso dos “perigos duradouros”, por exemplo quando existe um edifício em perigo de
desmonoramento, se bem que não possa determinar-se se e quando tal ocorrerá (FIGUEIREDO
DIAS).
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Direito Penal II Leonor Branco Jaleco
NOTA: ainda assim, FD sustenta que a partir daqui não se pode construir a figura do estado de
necessidade preventivo.
REQUISITOS:
1- A “provocação” do perigo
Nos termos do art. 34º/a), é necessário à justificação “não ter sido voluntariamente criada pelo agente
a situação de perigo, salvo tratando-se de proteger o interesse de terceiro”.
Deve entender-se que a justificação só será afastada se a situação foi intencionalmente provocada
pelo agente, isto é, se ele premeditadamente criou a situação para poder livrar-se dela à custa da lesão
de bens jurídicos alheios.
A própria provocação intencional do agente do perigo não deverá servir, porém, para negar a
justificação do estado de necessidade quando se trata de proteger interesses de terceiro: seria
inadmissível que da provocação do agente pudesse resultar uma lesão não justificada para bens
jurídicos do terceiro posto em perigo, se depois o provocador os salva à custa de um outro terceiro
não implicado.
A lei exige que se pondere o valor dos interesses conflituantes, nomeadamente dos bens jurídicos em
colisão e o grau do perigo que os ameaça.
De acordo com MFP, o art. 34º/b) tem previsto um conflito de interesses que não engloba todos os
interesses emergentes na situação, englobando apenas os interesses gerais da Ordem Jurídica. Se
assim não fosse, não se compreenderia a introdução de um critério corretor no art. 34º/c) em atenção
à natureza ou valor do interesse a ser sacrificado pelo estado de necessidade.
Conceito de Interesse:
MFP refere-se a uma posição de vontade sobre uma coisa de que se carece e não pode abranger todo
e qualquer valor defensável na situação de conflito, mas não atribuível a uma vontade. Só
simbolicamente se pode utilizar a expressão interesse da Ordem Jurídica.
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Direito Penal II Leonor Branco Jaleco
mundo do merecimento pessoal de todos os intervenientes possíveis num conflito de interesses (i.e.,
de coerência global das expetativas de todos os sujeitos ante a Ordem Jurídica), numa lógica de
valores da ação e do resultado, o que sobressai no art. 34º.
➢ Indícios de Hierarquia:
A. Molduras penais
Recorrer à medida legal da pena é um dos pontos de apoio mais importantes para a determinação da
hierarquia dos bens jurídicos conflituantes (sendo jurídico-penalmente protegidos).
Este critério tem de penetrar a ordem axiológica constitucional e a correspetiva ordem legal dos bens
jurídicos (prevalecendo os bens jurídicos pessoais sobre os patrimoniais – embora não havendo
dúvidas de que, para afastar um grave prejuízo patrimonial de um incêndio, deve ter-se por
justificado o empurrão que o bombeiro dá a um “mirone” que lhe provoca uma pequena lesão
corporal).
Nos casos em que os interesses conflituantes são, em abstrato, da mesma ou de semelhante hierarquia,
a ponderação terá de ter sobretudo em conta a intensidade previsível da lesão.
C. Grau do perigo
Este indício tem um papel fundamental quando a violação do bem jurídico não surge como
absolutamente segura mas sim como mais ou menos provável.
De acordo com ROXIN, quem, para evitar um dano que seguramente se produzirá se não atuar, leva
a cabo uma ação salvadora que só em pequena medida põe em perigo outro bem jurídico, prosseguirá
em regra o interesse substancialmente preponderante. Mas este será sobretudo o caso quando, para
fazer face a um perigo concreto de uma certa importância, seja aceite a produção somente de perigos
abstratos.
Assim, a corrida de uma ambulância que ponha de algum modo em perigo a vida de um transeunte,
sob a forma de negligência (art. 291º/2), pode porventura justificar-se se ela transporta um ferido
grave, cujo tratamento é urgentíssimo, mas seguramente já não se o ferido tem apenas umas
escoriações ligeiras ou mesmo uma perna previsivelmente partida.
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Direito Penal II Leonor Branco Jaleco
Com uma redução objetivista do conceito, interesse deve ser aquilo que se entende e reconhece como
tal, sendo, por isso, juridicamente protegido.
Existe aqui uma acentuação subjetivista conexionada com o conceito de interesse, de forma a que a
importância do dano não possa ser desligada da sua relevância para o lesado, desde que corresponda
a um interesse juridicamente protegido.
O conceito de interesse possibilita uma dimensão subjetivista do dano que leva a uma redefinição do
conteúdo dos bens jurídicos e do dano objetivo.
MFP suscita a questão de saber se o confronto dos interesses exige uma especial (quantitativa ou
qualitativa) superioridade de um dos interesses ou a expressão “sensível” tem somente um
significado processual, i.e., de indicar que a maneira pela qual se chega à conclusão de que um
interesse é superior a outro é através de um processo de apreensão pelos sentidos (a referida
superioridade só existira se fosse sensível, porque só nesse caso poderia ser conhecida).
a) A justificação baseia-se num princípio utilitarista de mera realização do interesse mais valioso
numa perspetiva social;
b) A justificação pretende realizar aquele entre os interesses que não só é mais valioso do que o
que lhe opõe, como também surge como essencial, i.e., cuja lesão implica danos difíceis ou
impossíveis de suportar.
o MFP: o significado da diferença sensível é, obviamente, o da seleção de um certo tipo
de fatores de ponderação, orientados não por pontos de vista estritamente de ordem
(interesse do legislador) mas por pontos de vista que correspondam a uma normal
sensibilidade aos valores (cultural e socialmente determinada).
• Apreensível pelos sentidos – qualquer pessoa consegue
conceber/representar; não é só uma diferença compreensível por qualquer
pessoa e sim uma diferença justificada pela ordem jurídica constitucional –
superioridade indiscutível nos termos da hierarquia de valores
constitucionais.
o FD: o que a lei se propõe, ao exigir esta superioridade sensível não é só que o
interesse salvaguardado se situe muito acima do interesse sacrificado, mas que a
justificação ocorra apenas quando é clara, inequívoca, indubitável ou terminante
a aludida superioridade à luz dos fatores relevantes de ponderação.
3- Cláusula da limitação pela dignidade humana / autonomia pessoal do lesado (art. 34º/c))
Casos em que o bem jurídico ofendido é de caráter eminentemente pessoal – pode ser justificado
mediante certas ponderações. Ex: C é forçado, sem prejuízo para si, a doar sangue pois é a única
pessoa com o tipo de sangue que salva D. É inadmissível, devido ao pequeno perigo ou mesmo
ausência de perigo para C, invocar a violação da autonomia pessoal de C ou, nos termos do art. 34º/c),
da irrazoabilidade de impor ao lesado o sacrifício do seu interesse para salvar a vida de outrem.
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Direito Penal II Leonor Branco Jaleco
A possibilidade de impor sacrifício ao lesado significa que o lesado não pode estar numa posição
que é insuportável:
Haverá alguma vida que valha mais ou, estando duas em perigo, não se salva nenhuma?
o Caso do homem gordo – homem gordo está entalado num buracão que constitui a
saída de uma caverna, não podendo sair nem podendo deixar os outros
acompanhantes fazê-lo, pelo que o caso só se resolve com uma explosão que liberte
a saída da caverna, estoirando simultaneamente o homem gordo.
o Caso do balão de ar quente – estão dois homens num balão e se um não saltar,
morrem ambos, sendo impossível salvarem-se os dois.
FD levanta a questão de saber se o sacrifício da vida humana de pessoa já nascida deve entrar na
ponderação própria do estado de necessidade justificante ou, pelo contrário, dela ser pura e
simplesmente excluída.
o MFP: Existem ideias de justiça que nos levam a “tomar partido”, de certo
modo, em situações de conflitos entre vidas, permitindo, em certos casos,
uma argumentação jurídica, que conduz à necessidade de identificar uma
causa de justificação.
Em caso de vida contra vida, deve assentar-se o princípio da imponderabilidade da vida para efeito
do estado de necessidade justificante. Ex: não é estado de necessidade quando um agulheiro desvia
um comboio de uma linha, que ia embater noutro comboio cheio de passageiros, para outra linha
onde estão 2 trabalhadores que são esmagados. Não é, na senda do utilitarismo, a “utilidade” que
aqui está em causa, mas sim o valor “ético” da preservação da vida dos outros.
Tendo em conta que o Estado de Necessidade não se aplica a conflitos entre puros bens jurídicos mas
sim no quadro mais complexo dos interesses conflituantes da situação global, a única forma de por o
problema é: no contexto complexo da situação global, será possível descortinar casos em que o interesse na
preservação de uma ou mais vidas prepondera sobre o sacrifício de outra ou outras?
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Direito Penal II Leonor Branco Jaleco
o MFP: mesmos nestes casos, a admitir a exclusão da ilicitude, nunca será por
direito de necessidade, mas sim por uma causa de justificação supralegal.
Não há aqui um interesse sensivelmente superior, pelo que continuará a
haver insuportabilidade da não defesa por parte do lesado, pelo que aqui
poderia haver causa de justificação contra causa de justificação (poder-se-ia
defender, por exemplo, por legítima defesa).
É duvidosa a solução dos casos, como direito de necessidade, em que a salvação de algumas vidas
implica o exercício do direito do mais forte ou a escolha da vida a ser sacrificada face às outras a
serem salvas. Ex: caso dos náufragos (em que só há espaço para um, o que nadar melhor e chegar
primeiro), caso do bote (em que 2 praticam canibalismo sobre 1).
REQUISITOS SUBJETIVOS:
O agente deve conhecer a situação de conflito e atuar com a consciência de salvaguardar o interesse
preponderante.
o FD – não, pois não teria sentido nem fundamento negar a justificação a quam
salva outrem de um perigo para a sua vida ou o seu corpo à custa, por
exemplo, da danificação de uma coisa, só porque a sua intenção não foi
autenticamente solidária mas motivada pelo desejo de aparecer na TV e
assim se tornar célebre e ganhar dinheiro. Outra coisa seria conferir valor
decisivo, neste enquadramento, aos motivos da ação, o que é de repudiar.
O agente que atua em estado de necessidade defende-se de um perigo que tem origem na pessoa
que vai ser vítima da ação necessitada – o perigo foi criado pela futura vítima do estado de
necessidade.
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Direito Penal II Leonor Branco Jaleco
Isto ocorre em termos tais que o agente não pode louvar-se de uma legítima defesa, que não existe
por falta de um requisito de facto perigoso, ou porque este nem sequer configura uma agressão – ex:
A, em pleno ataque epilético, vai quebrar um jarrão de porcelana chinesa de B, se não for afastada à
força – ou porque não é ilícito, ou porque não é atual – ex: C a quem D furtou uma bicicleta, encontra-
o com ela no dia seguinte e ofende levemente a sua integridade física com um empurrão como única
forma de recuperar o objeto furtado.
Alguma doutrina considera que existe uma figura especial de estado de necessidade, entre a legítima
defesa e o estado de necessidade justificante, em que o critério de ponderação de interesses é
específico.
Naquelas situações em que alguém fica exposto a um perigo criado pela futura vítima do estado de
necessidade, haverá argumentos convincentes contra a atribuição do desvalor da ação ao agente que
causou a morte para se manter vivo a si próprio.
MFP: um ponto de vista irrebatível é que aquele que ficou exposto a um perigo para
a vida causado por outrem não tem de suportar a lesão da própria vida, sendo-lhe
permitido defender-se.
i. Via que pretende reconduzir ainda a uma situação de direito de necessidade justificante.
ii. Via que se cinge à hierarquia dos bens jurídicos conflituantes e defende que a via
anterior é inaplicável e que a única solução reside em criar uma causa supralegal de
justificação – a do estado de necessidade defensivo, cujos pressupostos seriam:
a) Situação de defesa à qual falta um pressuposto indispensável para se configurar como
legítima defesa;
b) Impossibilidade para o agente de evitar o perigo;
c) Necessidade do facto para o repelir, desde que
d) O bem lesado pela defesa não seja muito superior ao bem defendido.
O apelo a uma causa de justificação específica do estado de necessidade defensivo é pensado como
remédio para colmatar eventuais lacunas deixadas por uma certa conceção. Para FD, a criação de
causas de justificação supralegais é extremamente perigosa.
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Direito Penal II Leonor Branco Jaleco
O art. 36º CP assume como justificada a conduta do agente que atuar no cumprimento de um dever
de valor igual ou superior a um outro que a própria conduta viola. O que acontece é que recai sobre
o mesmo indivíduo mais do que um dever de atuar e está em situação tal que não consegue cumprir
os dois, tendo de optar.
a) Estar em causa o confronto entre deveres e não diretamente entre interesses, bens ou valores;
b) A possibilidade de existir igualdade de valor entre os deveres conflituantes em contraste com
a exigência de uma “sensível superioridade” do interesse protegido na previsão o art. 34º,
apesar da inclusão de critérios de valor de ação naquela cláusula.
Apesar de os deveres jurídicos terem como objeto a proteção de valores, bens ou interesses, segundo
o legislador a solução do conflito ou colisão não pode ser orientada em absoluto pelo mero critério
da importância relativa desses valores para os destinatários. A impossibilidade fáctica de ser
exigível a realização simultânea de 2 deveres de igual valor é condição suficiente para justificação –
o próprio Direito não pode dar a indicação ao agente sobre qual o dever que deve cumprir, pois
reconhece igual valor aos deveres, deixando assim um espaço de livre decisão do agente na escolha
do dever que deve cumprir.
A única exigência é que ele cumpra pelo menos um dos deveres conflituantes. No conflito de
deveres, o agente não é livre de se imiscuir ou não no conflito, ele é obrigado a imiscuir-se e a
cumprir um dos deveres. Se, com isto, ele torna impossível o cumprimento do outro dever, em todo
o caso o seu comportamento, porque correspondente a uma imposição jurídica, não pode ser ilícito.
Já se os deveres não tiverem igual valor, deve atender-se à ponderação concreta dos interesses em
conflito no quadro da situação global.
Para FD, a única solução materialmente justa – e correspondente ao sentido jurídico do lícito e do
ilícito, uma vez que a situação exclui em absoluto a possibilidade de uma conduta que não lese
nenhum dos bens jurídicos em conflito – é considerar justificado o facto correspondente ao
cumprimento de um dos deveres em colisão, mesmo à custa de deixar o outro incumprido, supondo
que o valor do dever incumprido seja pelo menos igual ao daquele que se sacrifica.
Autêntico conflito de deveres, suscetível de conduzir à justificação, existe apenas quando na situação
colidem distintos deveres de ação, ambos vinculativos de igual modo para o agente , dos quais só
um pode ser cumprido. Ex: pai vê 2 filhos a afogarem-se e só consegue nadar para salvar 1.
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Direito Penal II Leonor Branco Jaleco
mantendo, porém, o seu papel de causa de justificação, pois a eventual responsabilização do agente
não é determinada pelo art. 36º, uma vez que este artigo não é fundamento para nenhum dos deveres
que conflituam. Enquadrar os casos de conflito entre dever de omissão e dever de ação no âmbito do
art. 34º implicaria uma ponderação entre os deveres em causa já feita à partida: o dever de omissão
teria sempre, pelo menos, igual valor relativamente ao dever de ação, pelo que a opção do agente de
omitir a ação a que estava obrigado (segundo a lógica presente no art. 34º, a ação passaria a ser vista
apenas como permitida, e já não como exigida, mesmo tratando‐se de um dever de garante) seria
sempre lícita, mesmo tratando‐se do incumprimento de um dever de garante.
A opção do agente em conflito de deveres não é, à partida, livre. A preferência, para ser lícita, terá de
incidir sobre aquele dever que a Ordem Jurídica apresenta – quando apresenta – como o mais
valioso. Isto é, se o Direito impõe um critério de preferência que tem aplicação na concreta situação
de conflito, deve o agente seguir esse critério e optar pelo bem que a Ordem Jurídica prefere, no
sentido de se prosseguir, na medida possível, a realização da Ordem Jurídica.
A opção do agente deixa de estar condicionada, porém, se a Ordem Jurídica não indica nenhum dos
deveres em causa como mais valioso. A escolha passa então a ser livre. Não obstante, ele continua a
não poder deixar de optar, isto é, nestas situações, o agente pode escolher cumprir o dever que quiser,
mas não pode deixar de escolher um deles.
O facto de o valor dos deveres jurídicos em confronto depender de uma apreciação sobre o grau de
vinculatividade dos mesmos, em função da relação do agente com o sistema, leva a que se questione
se o que determina a vinculatividade depende de alguma racionalidade deôntica; isto é se os deveres
de omissão têm necessariamente de ser mais vinculativos do que os de ação em função da sua lógica
intrínseca, na linguagem das normas.
Podem admitir-se que há critérios de vinculatividade que não se fundamentam estritamente no valor
objetivo para o Direito dos bens, mas numa lógica de valor não dos bens mas dos próprios
imperativos em função de certos aspetos factuais em causa.
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Direito Penal II Leonor Branco Jaleco
As regras de vinculatividade dos deveres não se baseiam estritamente no valor dos bens ou dos
interesses, mas antes nos critérios de responsabilidade social baseados numa administração ou
distribuição dos bens em termos de justiça, que têm de ser lidos à luz dos princípios fundamentais
(constitucionais) do sistema jurídico.
2) Intensidade da lesão;
5) Dever de garante sobre dever genérico de auxílio – contudo, se o dever genérico de auxílio é um
dever de salvar a vida e o dever de garante seja impedir que o estado febril se agrave, nesse caso o
dever genérico de auxílio é mais vinculativo;
Se o agente tiver escolhido o dever que não é o mais vinculativo, não está justificado por conflito de
deveres e, consequentemente, o seu comportamento continuará a ser ilícito.
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Direito Penal II Leonor Branco Jaleco
O consentimento é uma espécie de condição negativa da tipicidade e não se chega a configurar como
uma causa de justificação.
O art. 38º (conjugado com art. 149º) estabelece os requisitos gerais da relevância do consentimento:
a) Caráter pessoal e disponibilidade do bem jurídico lesado – o bem lesado pelo facto consentido
só poder ser um bem jurídico pessoal, pois só este tem um portador ou um titular
individualizável e também porque, se a relevância do consentimento advém do respeito pelo
valor da auto-realização pessoal, só a pessoa pode prestar de forma eficaz o seu
consentimento.
Os bens indisponíveis serão, por exemplo, os bens jurídicos comunitários, a vida e a dignidade.
b) Não contrariedade do facto consentido aos bons costumes – o art. 149º/2 concretiza, quanto
às ofensas corporais.
Bons costumes não pode ser interpretado no sentido de moralidade – terá antes de ser conforme ao
princípio da igualdade, do estado de Direito democrático, etc.
Quando é que a ofensa vai contra os bons costumes? O art. 149º/2 aponta alguns critérios:
(a) Temos de analisar os motivos do agente;
(b) Temos de analisar a amplitude previsível da ofensa – haverá ofensa aos bons costumes
quando a ofensa em causa for grave e irreversível.
Imagine-se, contudo, que A consente em ser o cinzeiro de B. Será este um
consentimento válido? A verdade é que as marcas dos cigarros eventualmente
desaparecem; contudo, isto implica uma degradação tal da pessoa, ao reduzi-la a
cinzeiro, e fere de tal forma a dignidade da pessoa, que não se pode aceitar que este
seja um consentimento que exclua a ilicitude.
Por este motivo, alguma doutrina entende que este critério dos bons costumes tem
de ser compatibilizado com a dignidade da pessoa humana, considerado no seu
nível mais básico.
BN – no caso de mutilação genital feminina: se uma mulher, tendo mais de 16 anos,
consentir na mutilação, porque quer integrar os significados culturais que tal
implica, porque se sente mais bonita assim, etc., não pode deixar de ser válido (desde
que verificados os pressupostos do consentimento).
Correspondem a uma relevância ético-social da conduta a partir da conjugação de vários fatores. São
expressão de uma dimensão de ofensa desrazoável do bem jurídico (ex: alguém consentir em ser o
cinzeiro de outrem, ou a ser o burro de carga de outrem).
Para MFP, uma interpretação correta retira o caráter puramente moralista e subjetivo por relacionar
com valores constitucionais, tornando-a uma cláusula com funcionalidade jurídica e adaptada à
linguagem e aos fins do Direito.
Para FD, o entendimento correto deste requisito é o de que o facto consentido constitui ofensa aos
bons costumes sempre que ele possua uma gravidade e, sobretudo, uma irreversibilidade tais que
fazem com que, nesses casos, apesar da disponibilidade do bem jurídico, a lei valore a sua lesão mais
altamente do que a auto-realização do seu titular.
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Direito Penal II Leonor Branco Jaleco
• Imagine-se que A e B são um casal e estão a jantar. A acaba de cometer um ato de infidelidade
e sente-se com remorsos e pensa “eu mereço um estalo, se B me der um estalo eu não me
importo, eu mereço”, mas B não sabe disto. B acaba por dar um estalo a A por outro motivo,
não sabendo que A iria consentir. Haverá aqui um crime de integridade física? É preciso que
o agente tome conhecimento de que está a haver consentimento?
o Como já sabemos, há dois juízos diferentes: o juízo de desvalor da ação e o juízo de
desvalor do resultado. Ora, não há ilícito sem desvalor da ação, mas pode haver ilícito
sem desvalor de resultado (aí será uma tentativa).
• Numa causa de justificação, o facto típico é o facto em relação ao qual há boas
razões para afirmar o juízo de desvalor da ação e o juízo de desvalor do
resultado. Quando intervém uma causa de justificação, significa que, ainda que
a conduta tivesse as condições para ser punida por haver desvalor da ação e do
resultado, a conduta vai ser permitida, pois há boas razões para mudar a leitura
do que aconteceu.
• Contudo, a justificação tem de explicar tanto porque é que não há desvalor da
ação e porque é que não há desvalor do resultado: no caso que vimos, o facto de
a lesão ter sido autorizada pelo titular, o Direito deixa de desaprovar a lesão
(motivo para afastar o desvalor do resultado), mas não há nenhum motivo para
afastar o desvalor da ação, mantendo-se este. Uma boa razão para não haver
desvalor da ação seria ela saber que estava autorizada a dar o estalo. Não
sabendo ela que está a haver consentimento, há desvalor da ação doloso, mas
não há desvalor do resultado, devendo ser punida por tentativa.
Quando o art. 38º/4 é aplicado, será que ele remete para o regime integral da
tentativa na sua totalidade ou apenas para a pena que é prevista para os crimes
de tentativa? Art. 23º/1.
Faz sentido aplicar o art. 38º/4 às restantes causas de justificação? Sim, porque não existe motivo para
afastar o desvalor da ação.
Questão diferente: esta analogia é permitida? Sim, é, porque estamos a punir o agente mais
favoravelmente, punindo-o apenas por tentativa em vez de por crime consumado (que é o que
aconteceria, pois o desvalor da ação não é afastado).
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Direito Penal II Leonor Branco Jaleco
Outra questão ainda que se tem levantado: o art. 38º/4 remete para a aplicação do regime da tentativa ou
somente para a pena que à tentativa seria aplicada?
➢ É importante ter aqui em causa que nem toda a tentativa é punida – só a tentativa dos crimes
que são punidos com mais de 3 anos.
➢ Se a remissão for feita para o regime todo, vai abranger as regras todas da tentativa, inclusive
a de que o agente não é punido por tentativa no caso de crimes que não têm uma pena superior
a 3 anos;
➢ Se a remissão é só para a pena que é aplicável para a tentativa, punimos por tentativa do crime
em causa.
➢ FD – constituindo a aplicação da pena aplicável ao crime consumado uma pena especialmente
atenuada (art. 23º/2), sendo este o traço mais relevante do regime da tentativa, dir-se-á
exagerado sustentar que em qualquer caso de falta de elementos subjetivos de uma causa de
justificação o facto será sempre punido, embora com pena especialmente atenuada. Isto
porque a tentativa só é punível, salvo disposição em contrário, nos termos do art. 23º/1, se ao
crime consumado respetivo corresponder pena superior a 3 anos de prisão;
Imagine-se que A convida B a ir ver o jogo de futebol a sua casa. Quando B vai a casa de A, convidado
por A, quando entra em sua casa está a incorrer em violação de domicílio, mas justificado pelo
consentimento de A? Claro que não; o consentimento é uma causa de exclusão de ilicitude, que
apenas serve para excluir a ilicitude de factos típicos; ora, neste caso em que há
autorização/concordância, não há sequer um facto típico, não há ofensa de um bem jurídico – este é
um caso de acordo, de atipicidade.
Já quando A dá um estalo ao B que é consentido, já há um facto típico, mas que está justificado pelo
consentimento – aqui, sim, já há uma causa de justificação.
NOTA: Não confundir o erro do art. 38º/4 com o do art. 16º/2: neste último não estão preenchidos
os pressupostos para a exclusão da ilicitude, mas o agente supõe que estão; nos casos do art. 38º/4 é
o inverso: é um erro de ignorância, estão preenchidos todos os pressupostos para a exclusão da
ilicitude, mas o agente desconhece isso.
Que tipo de elementos subjetivos são necessários? É necessário que o agente conheça o preenchimento
dos pressupostos ou precisa ainda de se motivar por eles?
A doutrina tende a entender que basta que ele saiba, não é preciso haver um animus defendendi. Esse
tipo de exigência já parece corresponder mais a um Direito penal do agente.
O ofendido não manifesta expressa e atualmente a vontade de permitir a lesão dos bens jurídicos
de que pode dispor, por se encontrar numa situação de incapacidade para tal. Existe aqui uma
situação em que o titular do bem jurídico lesado não consentiu na ofensa, mas nela teria
previsivelmente consentido se lhe tivesse sido possível pôr a questão.
Deste modo, é o recurso aos indícios objetivos de qual seria a vontade do ofendido, através de
indicações por ele dadas anteriormente ou através de pessoas próximas, que sustenta uma espécie
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Direito Penal II Leonor Branco Jaleco
de reconstrução da vontade do agente – aquela que ele teria manifestado se estivesse ao seu alcance
exprimi-la no momento da lesão do bem jurídico.
Uma vez que o consentimento presumido se equipara ao consentimento efetivo, naquele hão de, em
princípio, concorrer os mesmos requisitos de eficácia:
Quanto à vontade real do interessado, deve fazer-se um juízo hipotético razoável sobre a vontade do
ofendido, de acordo com uma inferência lógica que qualquer pessoa retiraria sobre os indícios
existentes acerca da vontade real do ofendido, entendida como vontade esclarecida.
Trata-se de causas de justificação não explícitas, que constituem figuras de contornos precisos, para
além das próprias figuras legais.
Há casos em que há defesa contra uma agressão futura, mas altamente provável, ou contra agressão
lícita provocada pelo agressor – são formas de exercício do direito de defesa embora não cumpram
os requisitos das figuras legais.
Mas, por outro lado, a defesa preventiva anula a potencialidade de lesão de bens jurídicos que
atinge o agente e incrementa a segurança em torno daqueles. Nesta medida, existe algum
favorecimento da posição do autor. A igualdade na proteção jurídica e a realização material dos fins
da Ordem Jurídica imporá que a lesão, numa certa medida, dos bens do futuro agressor seja menos
importante do que a promoção da segurança em relação aos bens do defendente.
O merecimento da conduta do defendente preventivo não resulta do valor social dos interesses
conflituantes ou da solidariedade social, mas apenas da proteção equitativa dos sujeitos jurídicos
de tal conflito.
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Direito Penal II Leonor Branco Jaleco
Raciocínio semelhante para o Estado de Necessidade Defensivo, em que o princípio de igual proteção
das esferas jurídicas obsta a que alguém seja impedido de evitar um mal que se lhe impõe como um
acontecimento natural, a partir de outra esfera jurídica.
Aqui enquadra-se uma nova situação, guiada pela expressão genérica de causa justa ou de realização
de um interesse legítimo. Este conceito parece estar desligado de uma ponderação de interesses como
a do Estado de Necessidade e são condutas que surgem como promoção ou incremento de valores ou
de interesses, alterando a perspetiva teórica subjacente às causas de justificação clássicas.
Exemplo enquadrável na figura do interesse legítimo é o das gravações ilícitas para fins de defesa
processual em crimes contra a honra ou extorsão. O conceito ganha o seu espaço entre uma
justificação que apenas se caracteriza pela defesa-proteção do status quo dos bens jurídicos e uma
outra, inovadora, que se assume como defesa-promoção de interesses relacionados com direitos
fundamentais, a justa causa ou a fórmula do interesse legítima sugere a evolução do próprio conceito
de justificação.
Estas situações acrescentam ao princípio positivo das causas de justificação clássicas um outro aspeto,
para além da insuportabilidade da não defesa de interesses ou bens (construída a partir do princípio
da igualdade) – a insuportabilidade da não promoção de interesses ou bens, no desempenho de
algumas atividades de utilidade social.
❖ CULPA
Causas de exclusão de culpa vs causas de desculpa: nas causas de exclusão da culpa, estamos a dizer
que alguém não reúne os pressupostos para poder ser capaz de culpa (ex: inimputáveis); na desculpa,
estamos a pensar em pessoas que são capazes de culpa, mas que naquela situação concreta podem
ser desculpadas. A pessoa agiu em desconformidade ao Direito.
EFEITO PRÁTICO RELEVANTE DA DISTINÇÃO: A uma pessoa que está a agir ao abrigo de uma
causa de desculpa, eu posso opor legítima defesa. A uma pessoa que está agir em legítima defesa não
posso.
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Direito Penal II Leonor Branco Jaleco
Conceção da culpa pelo caráter/pela condução da vida (defendida, nomeadamente, por Bockelman)
Vai atribuir fundamento da culpa ao facto de a pessoa não ter preparado a sua personalidade para
evitar lesar bens jurídicos. Esta conceção é criticada por violar o princípio da legalidade, na medida
em que vai procurar a documentação do facto do agente num plano anterior ao facto.
o MFP – esta conceção é inadmissível, pois remete para um plano exterior ao facto a
fundamentação da responsabilidade.
Ideia de culpa na formação da personalidade: a pessoa tem culpa por se ter tornado quem é
(EDUARDO CORREIA): uma pessoa que desrespeita o direito.
FD: culpa pela personalidade que fica expressada no facto: a pessoa no facto manifesta qualidades
desvaliosas. Essas qualidades expressam-se no posicionamento face ao Direito:
Esta conceção sustenta que, para haver responsabilidade do agente, este teria de violar uma norma
de culpa. Para além de violar uma norma de ilicitude (plano de antinormatividade – lesão de um bem
jurídico), teria de violar também uma norma de culpa (violação de deveres de cidadania, de se
motivar pela norma penal). A norma de culpa é uma norma ideal implícita, nos termos da qual as
pessoas teriam o dever de se motivar pelas normas e adquirir a consciência de ilicitude, para evitar a
lesão de bens jurídicos; esses seriam deveres médios, reportados a situações normais.
Ainda de acordo com esta conceção, a culpa concretiza-se na violação da ética social moral dominante.
o MFP – a ideia de uma norma de culpa é uma magnífica ideia, pois revela-nos o que o Estado
pode exigir ao juiz. Considera, contudo, que para concluirmos que há uma violação da
norma culpa, temos de utilizar um critério de justiça: para se tratar da questão da
culpabilidade, ter-se-á de averiguar se houve suficiente oportunidade para o agente se
motivar pela norma, sendo esta uma condição de igualdade, que se prende com a justiça.
A sua conceção de culpa dá importância a uma norma de culpa, o que para si significa conceber se
aquele agente teve as condições mínimas necessárias para se motivar pela norma.
Culpa como censura da pessoa concreta pelo facto, eticamente fundamentada, argumentada e
justificada perante um non liquet na comprovação do livre arbítrio na ciência e na filosofia.
Culpa como censura da pessoa pelo facto a partir da capacidade de motivação pela norma em
concreto, na base de uma tripla liberdade (pressuposta pela linguagem ética orientada para uma
sociedade de pessoas igualmente livres e responsáveis numa medida reconhecivelmente, por elas,
justa):
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Direito Penal II Leonor Branco Jaleco
Nos casos em que essas condições são diminuídas por razões sociais externas ou internas, é aceitável
que não possamos dizer que a norma de culpa foi violada da mesma forma que teria sido por um
agente considerado normal.
Podemos, assim, fazer um juízo de culpa quando haja as condições mínimas de motivação pelas
normas e não haja fatores que revelem uma falta de motivação pelas mesmas, quando haja condições
para o agente adquirir uma consciência potencial de ilicitude e não haja elementos internos que sejam
obstáculos emocionais.
Art. 20º - este artigo, que trata da inimputabilidade por anomalia psíquica, ao dizer que não há
capacidade de culpa, estabelece os casos de incapacidade.
A anomalia psíquica permite que se considere a pessoa num estado de inimputabilidade, nos casos
enunciados no art. 20º CP.
Paradigma Compreensivo
JASPERS vem apresentar o paradigma compreensivo. De acordo com este paradigma, a psiquiatria
não é uma ciência meramente deontologista; a psiquiatria é uma ciência humana e, por isso, utiliza
uma lógica de interpretação dos fenómenos que não é meramente explicativa, orientando-se para a
interpretação do significado dos significados, a qual é feita por um reconhecimento da consciência e
da orientação desta para os fenómenos.
JASPERS vem entender que grande parte dos problemas psiquiátricos seria tratados através da
empatização, da compreensão e da comunicação entre o psiquiatra e o paciente. Reconhece, contudo,
que existem casos em que a empatização já não é possível. Nesses casos, em que a compreensão não
é possível, ter-se-á de remeter para a explicação.
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Direito Penal II Leonor Branco Jaleco
Quando já não conseguimos encontrar pontos de contacto entre a experiência de uma pessoa dita
normal e o comportamento do agente, já não estamos no plano da compreensão, mas sim no da
explicação – é inimputável.
• MFP – FD aqui estabelece a fronteira entre a capacidade penal (de culpa) e a inimputabilidade,
o que é duvidoso.
Se não há nenhum facto real (não houve realmente traição), ou seja, a vítima não deu azo a nenhuma
situação justificadora de ciúme, e o comportamento do agente não está dentro das conexões entre a
experiência e comportamento do agente, pode ser um caso de delírio do ciúme e pode haver
inimputabilidade.
Mas se realmente a vítima deu azo a uma situação de ciúme (realmente traiu o agente), então não
poderemos dizer que se trata de um caso de inimputabilidade; o agente não está em delírio, é
imputável.
Existe um duplo fundamento para a desculpa a partir de uma lógica de reconhecimento da pessoa
concreta destinatária de uma responsabilidade reconhecível:
a) Relevância de um sistema ético-afetivo para além dos valores jurídicos abstratos, que
privilegia as ligações imediatas ao projeto existencial (sentimentos de proteção dos próximos
e de si mesmo perante ameaças à sobrevivência, mas que ainda são próprias de uma pessoa
eticamente dialogante e cooperante).
b) Relevância de razões de oportunidade no acesso a valores na situação concreta e no
desenvolvimento da identidade pessoal – pensa-se aqui em meios desfavorecidos,
comunidades opressivas, criminosas.
Circunstâncias exógenas, exteriores, que levam a que qualquer pessoa nas mesmas circunstâncias
poderia igualmente não se motivar pela norma.
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Direito Penal II Leonor Branco Jaleco
FIGUEIREDO DIAS – culpa como o ter que responder pelas qualidades juridicamente
desvaliosas da personalidade que fundamentam um facto ilícito-típico e nele se exprimem.
Em todos estes casos, MFP admite a exclusão da culpa. Nos casos em que não é possível arranjar uma
alternativa, deve excluir-se a culpa.
Apenas no caso da testemunha de jeová que impede a transfusão de sangue de um filho por motivos
religiosos, MFP tem dúvidas quanto à exclusão da culpa. A sobreposição de fundamentalismos
religiosos ao bem vida não parece admitir a exclusão da culpa.
A ideia da Professora é a de que há valores de proteção de proximidade que ainda têm cidadania.
Pressupostos:
Quando é exigível?
Era exigível que a pessoa respeitasse o bem jurídico, se se puder concluir que, naquelas mesmas
circunstâncias, se poderia exigir o respeito pelo bem jurídico a uma pessoa normalmente fiel ao
direito (padrão médio de exigência: pessoa normalmente fiel ao direito).
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MFP: quaisquer valores só são valores para as pessoas numa base de adesão afetiva; quando há uma
ligação emocional, não se motivando as pessoas por respeitarem os bens em abstrato, sendo
necessário que aquilo tenha um significado para elas na vida real. Tem de se ter em conta a estrutura
ética-afetiva da pessoa, mas sempre à luz dos valores do Direito.
As pessoas formam os seus códigos de conduta com base numa adesão afetiva ao valores aceites na
sociedade. Acontece que as pessoas formam códigos de aceitação diferentes. Isso pode traduzir-se na
situação concreta em que as pessoas têm condições diferentes para a justa oportunidade de
comportamento da norma (estrutura ético-afetiva individual daquela pessoa não podia ter sido
diferente quando a pessoa não teve condições).
No art. 17º vamos ver se a pessoa manifesta a sua personalidade desvaliosa ou não para o direito. A
pessoa engana-se e avaliou mal – tem uma consciência de ilicitude errónea. Apesar disso, temos de
avaliar se isso é um erro de uma pessoa normalmente fiel ao direito OU de uma pessoa que
normalmente desrespeita o direito. Requisitos:
a) A questão em causa é controvertida? (exemplo: quando o aborto era punível), sendo que
ambos os pontos de vista no conflito são relevantes para o direito;
b) O agente protege o outro ponto de vista relevante para o direito;
c) Ele age diretamente para proteger esse outro ponto de vista relevante para o direito.
Se estiverem preenchidos estes três requisitos, temos que o agente, apesar de ter uma consciência de
ilicitude errónea, tem uma consciência da ilicitude reta.
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