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4º CAPÍTULO – A FUNÇÃO DO DIREITO PENAL

Rita Jorge – páginas 45-86

A função do direito penal no sistema dos meios de controlo social e na ordem jurídica total haverá de apreender-
se não só através da natureza do seu objeto (o facto ou comportamento criminoso), como também da
especificidade das consequências jurídicas que àquele são associadas – as penas e as medidas de segurança.
Dentre estes dois aspetos, assumem primazia as segundas por razões metodológicas e materiais porque é a sua
especificidade – conferida pelo seu fundamento, pelo seu sentido e pelas suas finalidades – que reage sobre o
conteúdo material do crime e a definição dos seus elementos integrantes. Importa ainda referir que da
conjugação das sanções criminais com o conceito de crime resultam os limites materiais do direito penal.

FINALIDADES E LEGITIMAÇÃO DA PENA CRIMINAL

I. O problema dos “fins” da pena criminal


Tratamos aqui de um problema tão antigo como o próprio direito penal, que tem sido discutido sem soluções
de continuidade pela filosofia (tanto pela geral, como pela filosofia do direito), pela doutrina do Estado e pela
ciência conjunta do direito penal. Tal interesse reside no facto de, à sombra do problema do fim das penas se
discutir no fundo toda a teoria penal, com particular incidência em questões fundamentais como a legitimação,
fundamentação e função da intervenção penal estatal. Deste modo, a questão dos fins das penas constitui a
questão do direito penal e do seu paradigma.

De um ponto de vista lógico-hermenêutico, questões como as mencionadas acima podem certamente ser
cindidas do problema dos fins das penas. Tais questões mostram-se relevantes para a conclusão sobre aquilo
que deve ser considerado crime e consequentemente ameaçado com uma pena criminal, mas não têm
necessariamente de se ligar à essência desta e às suas finalidades. Contudo, a perspetiva correta pode e deve
ser outra, na medida em que o sentido, o fundamento e as finalidades da pena criminal são determinações
indispensáveis para decidir de que forma deve aquela atuar para cumprir a função do direito penal. Assim, estas
questões reagem sobre o conceito material de crime e codeterminam a resposta à questão da função do direito
penal.

As respostas dadas ao longo da história ao problema dos fins das penas (seja pela ciência do direito penal, pela
teoria do Estado ou pela filosofia) reconduzem-se a duas (rectior, a três) teorias fundamentais. As teorias
absolutas de um lado, ligadas essencialmente às doutrinas da retribuição ou da expiação; as teorias relativas
de outro lado, que se analisam em dois grupos: as doutrinas da prevenção geral, de uma parte; e as doutrinas de
prevenção especial ou individual, de outra parte. Toda a interminável querela dos fins das penas é recondutível
a uma destas posições ou a uma das múltiplas variantes que têm tentado a sua combinação.

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II. Teorias absolutas: a pena como instrumento de retribuição
Com este grupo de teorias a essência da pena criminal reside na retribuição, expiação, reparação ou
compensação do mal do crime, e nesta essência se esgota. Se ainda assim a pena pode assumir efeitos reflexos
ou laterais socialmente relevantes (de intimidação da generalidade das pessoas, de neutralização dos
delinquentes, de ressocialização), nenhum deles se prende com a sua essência ou natureza, nem se revela
suscetível de a modificar. Essa essência e natureza é função exclusiva do facto que se cometeu e é a justa paga
do mal que com o crime se realizou. É o justo equivalente do dano causado pelo facto e da culpa do agente.

Por isso, a medida concreta da pena não pode ser encontrada em função de outros pontos de vista (por mais
que eles se revelem socialmente desejáveis ou valiosos) que não sejam o da correspondência entre a pena e o
facto. Assim, qualquer outra teoria dos fins das penas (entendendo-os como os efeitos socialmente úteis que
com elas se pretenda alcançar) torna o facto o mero ensejo de aplicação da pena, falhando a sua vera essência e
natureza: pune-se porque se pecou. Só assim se corresponde à dignidade histórica que a pena desde tempos
imemoriais assumiu, tal como só assim se está em sintonia com o sentimento comunitário generalizado que
sempre entendeu a pena como um castigo e uma expiação do mal do crime.

Esta conceção da pena, para além da indiscutível dignidade histórica que lhe assiste e da correspondência a
sentimentos profundamente ancorados na comunidade, pode legitimamente reivindicar-se da fundamentação
que desde sempre lhe foi atribuída por um certo pensamento filosófico. Basicamente, partindo do princípio do
talião “olho por olho, dente por dente”, que se deixou penetrar durante a Idade Antiga e Média de
racionalizações religiosas, as teorias absolutas louvam-se na ideia de que a realização da justiça no mundo
(como mandamento de Deus) conduz à legitimação da aplicação da pena retributiva pelo juiz como
representante terreno da Justiça divina. Por sua vez, na Idade Moderna, esta doutrina sustenta-se através da
filosofia do idealismo alemão de Kant, que qualificava a pena como um “imperativo categórico”. Hegel, por sua
vez, considerava o crime como a negação do direito e a pena como a negação da negação, como “anulação do
crime” e consequente “restabelecimento do Direito” e acrescenta ainda que inquinar esta consideração absoluta
com considerações de fins preventivos seria como “levantar um pau a um cão e não tratar o ser humano de
acordo com a sua honra e liberdade”.

A discussão acerca do fundamento das teorias absolutas centrou-se muito sobre a forma como deveria ser
determinada a compensação, a igualação a operar entre o mal cometido e a pena (e o mal que esta inflige).
Ultrapassado o período do talião, generalizou-se a ideia de que esta compensação não poderia ser alcançada no
plano dos factos mas sim no plano normativo.

Ainda assim, resta aqui um largo campo para dúvidas, nomeadamente quanto a saber se a pena assumia o
carácter de reparação do dano real, do dano ideal ou de qualquer outra grandeza, se ela ocorria mediante o
desvalor do facto ou a culpa do agente. Neste plano a controvérsia pode hoje considerar-se terminada: a
compensação que a retribuição visa operar só pode ser função da ilicitude do facto e da culpa do agente. Logo
porque esta doutrina se reivindica das exigências da “Justiça”, que implicam que cada pessoa seja tratada
segundo a sua culpa e não segundo a lotaria em que na vida se jogam os comportamentos humanos. Depois,

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porque tratamos aqui o Homem segundo a sua liberdade e a sua dignidade pessoais, somos diretamente
conduzidos ao princípio da culpa como máxima de todo o direito penal humano, democrático e civilizado: não
pode haver pena sem culpa e a medida da pena não pode em caso algum ultrapassar a medida da culpa. Aqui
reside precisamente o mérito das doutrinas absolutas: estas levantaram um veto incondicional à aplicação de
penas criminais que violem a eminente dignidade da pessoa.

Contudo, note-se que a obrigatória correspondência entre a pena e a culpa não é biunívoca. Deste modo, se toda
a pena pressupõe a culpa, nem toda a culpa pressupõe a pena, mas só aquela culpa que acarrete a carência de
pena. Assim, a culpa é pressuposto e limite, mas não fundamento da pena.

Como teoria dos fins da pena, a teoria da retribuição deve ser recusada. Ela não é uma teoria dos fins da pena.
Ela visa justamente o contrário, ou seja, a consideração da pena como entidade independente dos fins. A
doutrina da retribuição deve ainda ser recusada pela sua inadequação à legitimação, à fundamentação e ao
sentido da intervenção penal. Estas podem apenas resultar da necessidade, que ao Estado incumbe satisfazer,
de proporcionar as condições de existência comunitária. Só isto pode justificar que o Estado furte a cada pessoa
o mínimo de direitos, liberdades e garantias para assegurar os direitos da comunidade. Ora, considerando esta
função, a retribuição ou expiação do mal crime constituem meios inidóneos e ilegítimos. O Estado democrático
dos nossos dias não pode arvorar-se em entidade sancionadora do pecado e do vício, tendo antes de limitar-se
a proteger bens jurídicos. Para tal não pode servir-se de uma pena conscientemente dissociada de fins tal como
acontece na teoria absoluta.

Para além disso, uma pena retributiva esgota o seu sentido no mal que faz sofrer ao delinquente como
compensação pelo mal do crime: nesta medida, estamos perante uma doutrina puramente social-negativa, que
se revela estranha e até inimiga de qualquer tentativa de socialização do delinquente e de restauração da paz
jurídica da comunidade (de qualquer atuação preventiva na verdade).

III. Teorias relativas: a pena como instrumento da prevenção


1. Consideração geral
Contrariamente às teorias absolutas, as teorias relativas são em plena propriedade teorias de fins. Também elas
reconhecem que a pena se traduz num mal para quem a sofre. Porém, como instrumento político-criminal
destinado a atuar no mundo, não pode a pena bastar-se com essa característica, em si mesma destituída de
sentido social-positivo. Ela tem de usar esse mal para prosseguir a finalidade precípua (principal) de toda a
política criminal – a prevenção ou a profilaxia criminal.

A crítica geral proveniente dos defensores das teorias absolutas é a de que aplicar a seres humanos penas em
nome de fins utilitários ou pragmáticos que se visam alcançar no plano social é transformar a pessoa humana
em objeto e dela servir-se para a realização de finalidades heterónomas, violando a sua eminente dignidade. De
forma simples, seria o carácter relativo das penas que se ergueria como violação do absoluto da dignidade
pessoal. Nesta medida dá-se razão aos ideais de Hegel e Kant expostos acima.

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Um tal criticismo é desprovido de fundamento. Houvesse razão na crítica e teria de concluir-se pela
ilegitimidade de todos os instrumentos destinados a atuar no campo social e a realizar finalidades socialmente
úteis (desde que tais instrumentos pudesse limitar liberdades da pessoa). A verdade é que para o
funcionamento da sociedade, cada pessoa – embora só na medida indispensável – tem de prescindir de direitos
que lhe assistem e que lhe são atribuídos em nome da sua eminente dignidade. Logo, a questão da preservação
da dignidade da pessoa é estranha à questão das finalidades da pena, devendo permanecer independente da
desta. Problema é saber se não a pena, mas a sua aplicação não devem fazer-se em termos que respeitem aquela
intocável dignidade, e aqui a resposta impõe-se afirmativa. Mas este é já um problema não relacionado com os
fins das penas, mas sim com os limites que, sejam quais forem aqueles fins, à pena têm necessariamente de ser
postos pelas condições da sua aplicação.

2. A pena como instrumento de prevenção geral


Nas teorias preventivas há que distinguir entre as doutrinas de prevenção geral e as doutrinas de prevenção
especial ou individual. O denominador comum das doutrinas de prevenção geral radica na conceção da pena
como instrumento político-criminal destinado a atuar (psiquicamente) sobre a generalidade dos membros da
comunidade, afastando-os da prática de crimes através da ameaça penal estatuída pela lei, da realidade da sua
aplicação e da efetividade da sua execução. A referida atuação estatal sobre a sociedade assume porém uma
dupla perspetiva. A pena pode ser vista como forma estatalmente acolhida de intimidação das outras pessoas
através do mal que ela inflige ao delinquente e cujo receio levará as pessoas a não cometer factos puníveis –
prevenção geral negativa ou de intimidação. Mas a pena pode ainda ser concebida como forma de que o Estado
se serve para manter e reforçar a confiança da comunidade na validade e na força de vigência das suas normas
de tutela de bens jurídicos, e assim, no ordenamento jurídico-penal (como instrumento por excelência
destinado a assegurar perante a comunidade a inquebrantibilidade da ordem jurídica apesar de todas as
violações que tenham lugar, e a reforçar os padrões de comportamento adequados às normas). Neste sentido
falamos hoje de prevenção geral positiva ou de integração. Nesta se tornou comum distinguir diversos “efeitos”,
nomeadamente o “efeito de confiança”, o de “aprendizagem” (resultante da demonstração dos custos do facto
punível) e o de “integração verdadeira e própria” (resolução do conflito social suscitado pelo crime).

A primeira formulação acabada de uma doutrina da prevenção geral fica a dever-se a um dos fundadores do
direito penal moderno, Paul von Feuerbach: a doutrina da coação psicológica, segundo a qual a finalidade
precípua da pena residiria em criar no espírito dos criminosos um contra-motivo suficientemente forte para os
afastar da prática do crime. O essencial da doutrina da prevenção geral veio a receber até certo ponto
confirmação das doutrinas da psicologia da profundidade, bem como das doutrinas psicanalíticas: quer através
da ideia de que muitas pessoas só são capazes de dominar as suas tendências criminosas face ao
reconhecimento de que quem se decide pela prática do crime acaba por sofrer mais danos pessoais do que
vantagens; quer pela conclusão de que a pena tem como função principal a legitimação da ordem vigente e a
manutenção da estabilidade e da paz jurídica. Um contributo determinante para o reforço das doutrinas da
prevenção geral é oferecido pelas atuais teorias sistémico-sociais: seja pela reacentuação da função do direito

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penal como tutela subsidiária de bens jurídicos; seja pela redução da função da pena à sua expressão simbólica
de reafirmação contrafáctica da fidelidade devida às normas de um dado ordenamento jurídico.

O ponto de partida das doutrinas de prevenção geral é prezável porque (ao contrário do que acontece com as
doutrinas da retribuição) ele se liga direta e imediatamente à função do direito penal de tutela subsidiária de
bens jurídicos. De acordo com esta, é compreensível que se exija da pena uma atuação preventiva sobre a
generalidade dos membros da comunidade seja no momento da sua ameaça abstrata, no da sua aplicação
concreta ou no da sua execução. Contra isto de nada vale argumentar com os índices de criminalidade por toda
a parte crescentes (sendo que estes não se referem à criminalidade real que continua uma grandeza
desconhecida, mas sim à criminalidade conhecida ou registada pela polícia), pois é indiscutível que a finalidade
das penas se mostra como cumprida relativamente à esmagadora maioria da sociedade, para além de que a
demonstrar alguma coisa, esta crescente criminalidade diria respeito a uma falta de efetividade da pena, nada
contra a sua finalidade.

O grande argumento que se levanta contra as doutrinas de prevenção geral é aquele que já abordámos
relativamente a todas as doutrinas da prevenção, tendo nós já demonstrado a improcedência do mesmo.
Improcedente embora, ele aponta uma indiscutível fragilidade teorética e prática das doutrinas da prevenção
geral, quando consideradas exclusivamente no seu cariz negativo: quer porque não se torna possível determinar
empiricamente o quantum de pena necessário para alcançar tal efeito; quer porque, não logrando a erradicação
do crime, fica próxima a tendência para se usarem para o efeito penas cada vez mais severas e desumanas, a
ponto de o direito penal poder descambar (como historicamente já o fez por várias vezes) para o direito penal
do terror, absolutamente desproporcional e por isso, este sim, direta e imediatamente violador da eminente
dignidade da pessoa.

Este argumento perde a procedência se perspetivarmos a prevenção geral na sua vertente positiva, como
prevenção de integração, de tutela da confiança geral na validade e vigência das normas do ordenamento
jurídico, ligada à proteção de bens jurídicos e visando a restauração da paz jurídica. Primeiramente, este critério
permite encontrar uma pena (não necessariamente uma pena exata, mas um espaço ou moldura punitivos) que
em princípio se revelará justa e adequada à culpa do delinquente. Seguidamente, já dissemos que a medida
concreta da pena a aplicar, sendo embora fruto de considerações de prevenção geral positiva deve ter limites
inultrapassáveis ditados pela culpa, que se inscrevem na vertente liberal do Estado de Direito e se erguem em
nome da inviolável dignidade pessoal. Deste ponto de vista, a doutrina da prevenção geral oferece um
entendimento racional e político-criminalmente fundado ao problema dos fins das penas.

3. A pena como instrumento de prevenção especial ou individual


As doutrinas da prevenção especial ou individual têm por denominador comum a ideia de que a pena é um
instrumento de atuação preventiva sobre a pessoa do delinquente com o fim de evitar que no futuro ele cometa
novos crimes. Fala-se aqui de uma finalidade de prevenção de reincidência. Neste corpo teórico unitário
surgem contudo divergências quando se discute de que forma deve a pena cumprir a sua finalidade.

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Para uns, a correção do delinquente não passa de uma utopia, reconduzindo a ideia de prevenção especial à
intimidação individual do delinquente, atemorizando-o até ao ponto em que ele não cometa mais crimes. Já para
outros, a prevenção especial visa alcançar efeitos de pura defesa social através da separação ou segregação do
delinquente, procurando atingir-se a neutralização da sua perigosidade social. Em qualquer uma destas
hipóteses, falamos de prevenção especial negativa ou de neutralização.

No extremo oposto temos aqueles que vêm na prevenção individual um modo de alcançar a reforma interior
(moral) do delinquente, uma metanóia (arrependimento) através da sua adesão íntima aos valores que
conformam a ordem jurídica. Ainda num extremo oposto em relação ao apresentado no parágrafo anterior
temos aqueles que veem como finalidade da pena não a emenda moral mas o verdadeiro tratamento das
tendências individuais que conduzem ao crime, segundo um modelo estritamente médico ou clínico.

No fundo, no efeito de prevenção especial deve tratar-se de – com respeito pelo modo se ser do delinquente –
criar as condições necessárias para que no futuro ele possa continuar a sua vida sem cometer mais crimes. Neste
último sentido pode afirmar-se que a finalidade preventivo-especial da pena se traduz – e só se traduz – na
“prevenção de reincidência”. Todas estas doutrinas comungam de objetivos de reinserção social, ressocialização
(ou talvez melhor, de inserção social e socialização porque pode muito bem tratar-se de alguém que sempre foi
dessocializado) do delinquente e merecem assim ser consideradas doutrinas de prevenção especial positiva
ou de socialização.

As doutrinas da prevenção especial afirmaram-se particularmente na segunda metade do séc. XIX, por força
nomeadamente das escolas positivistas sociológicas italiana e alemã. Uma consideração histórica do direito
penal português obriga, no entanto, a corrigir esta ideia e coloca a época de maior vigor destas doutrinas num
momento historicamente anterior, em que na Península Ibérica se instauraram as teses da chama escola
correcionalista. Teses que convergiam na ideia de que todo o homem pode ser corrigido, pelo que a pena deve
antes que tudo propor-se à correção do delinquente, vendo esta como única forma de evitar que ele volte a
cometer crimes no futuro. Em Portugal estas teses foram sustentadas por Levy Maria Jordão e Ayres de Gouvêa.

O pensamento da prevenção especial – sobretudo na sua vertente de prevenção positiva ou de socialização –


revela-se tão prezável como indispensável. Este pensamento denota uma particular sintonia com a função do
direito penal (tutela subsidiária de bens jurídicos). Acresce a esta ideia ainda o facto de o Estado só encontrar
legitimidade para o exercício do poder punitivo sobre o delinquente quando o mal infligido pela pena traz com
ele um carácter social-positivo, e até de defesa social (nos casos em que a socialização se revele inalcançável ou
desnecessária). Importa que, no fim de contas, prevaleçam os interesses de segurança da generalidade sobre o
mal que a pena faz sofrer ao delinquente. Mais, cabe ainda ao Estado auxiliar os membros da comunidade
colocados em situação de maior carência, fornecendo (e de certo modo impondo até) os meios necessários à
sua (re)inserção social.

Apesar de tudo isto, o pensamento de prevenção especial debate-se com algumas dificuldades que, quando não
corretamente ultrapassadas, podem levar à sua condenação. Para já, é hoje de recusar uma conceção de

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prevenção especial ligada à emenda moral do delinquente, dado que para tanto carece o Estado em absoluto de
legitimação. É também de pôr de parte o paradigma médico da prevenção especial sempre que ele se mostre
como um tratamento coativo das inclinações do delinquente para o crime. Também aqui não cabe ao Estado tal
tarefa, que se revela como violadora da liberdade de autodeterminação da pessoa e consequentemente, de
princípios jurídico-constitucionais imperativos como a preservação da eminente dignidade humana. Daqui
decorre que só o mínimo de socialização – a prevenção de reincidência – pode passar a prova de fogo de um
direito penal próprio de um Estado de Direito.

Contudo, nem nesta aceção pode a prevenção especial assumir-se como finalidade única da pena. Aliás, se assim
fosse teria de concluir-se que a pena deveria durar enquanto subsistisse a perigosidade social do delinquente
(pena de duração absolutamente indeterminada). Ligando esta ideia à incorrigibilidade de alguns delinquentes,
poderíamos chegar à aplicação a pequenos delitos – para cuja prática repetida o delinquente apresenta uma
tendência incontornável – de penas de segurança ou neutralização (maxime, penas de prisão) perpétuas.

Finalmente, o pensamento de prevenção especial positiva encontra dificuldades de aplicação nas situações em
que a socialização se revela desnecessária, em que o delinquente não carece de socialização (casos dos “crimes
de colarinho branco”). Daqui se retira que a prevenção especial positiva não se pode apresentar como solução
integral para o problema dos fins das penas. Nos casos em que esta desnecessidade realmente se verifique só
há lugar (a haver) para uma prevenção especial negativa de pura defesa social.

4. A “concertação agente-vítima” e a reparação dos danos


Assinala-se hoje como autónoma e nova finalidade da pena a possível concertação entre o agente e a vítima
através de uma reparação de danos – tanto patrimoniais como morais – causados pelo crime. Aliás, Roxin tenta
até frutificar esta ideia através de propostas legislativas, procurando erigir um sistema penal tripartido de
sanções penais: penas, medidas de segurança e reparação de danos.

O direito penal português confere a todo este pensamento político-criminal um relevo muito particular, seja
considerando a reparação do dano como condição de legitimidade da aplicação de certas “penas de
substituição”, ou como condição de “dispensa da pena”, para além de permitir ao lesado pedir a reparação dos
danos civis no próprio processo penal. Contudo note-se que esta ideia não pode valer para as sanções aplicáveis
a certos tipos de crime. Assim, como ideia geral, a concertação agente-vítima só pode almejar o contributo
(valiosíssimo) para o restabelecimento da confiança e da paz jurídica, o que constitui o cerne da prevenção geral
positiva.

IV. Teorias mistas ou unificadoras


Nas últimas décadas, a maioria das doutrinas dos fins das penas radica nas mais variadas tentativas de combinar
os diversos pontos de vista acima referenciados. Todavia, há dois grupos de teorias mistas ou unificadoras que
se autonomizam.

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1. Teorias em que reentra ainda a ideia de retribuição
Reduzindo a multiplicidade de pontos de vista que visam combinar a tese fundamental da retribuição com a do
pensamento preventivo (geral e especial) a um corpo doutrinal dominante poderá este ser definido como o de
uma pena retributiva ao seio da qual procura dar-se realização a pontos de vista de prevenção, geral e
especial; ou, diferentemente, no que toca à hierarquização das perspetivas integrantes, como o de uma pena
preventiva através de justa retribuição. Numa e noutra formulação, a pena é vista como retribuição da culpa,
e subsidiariamente como instrumento de intimidação da generalidade e, na medida do possível, de
ressocialização do agente. Esta conceção pode ligar-se a uma outra designada por teoria diacrónica dos fins da
pena: no momento da sua ameaça abstrata, a pena seria instrumento de prevenção geral; no momento da sua
aplicação ela serviria finalidades retributivas; na sua execução, visaria predominantemente fins de prevenção
especial.

Todo este grupo de teorias unificadoras é, enquanto teorias dos fins das penas, inaceitável. Isto porque fazendo
entrar na composição desejada a ideia retributiva, chamamos para o problema das finalidades da pena um vetor
que não deve aqui ser considerado. Deste modo, valem aqui todas as críticas já apontadas à ideia retributiva.

Mais, doutrinas relativas e absolutas provêm de conceções básicas diferentes, quando não antagónicas (Roxin
designa e bem estas conceções como “doutrinas unificadoras aditivas”), logo, estamos aqui perante oscilações
inadmissíveis entre convicções fundamentais. Isto vale de igual forma para a teoria diacrónica dos fins das
penas. Ela pode revelar-se adequada da perspetiva isolada do destinatário da pena, mas esquece que esta
constitui uma figura unitária em qualquer momento da sua existência, assim devendo ser encarada quanto à
sua finalidade.

2. Teorias de prevenção integral


O ponto de partida correto é o de que a combinação das finalidades da pena só pode ocorrer a nível da
prevenção, geral e especial, com exclusão de qualquer ressonância retributiva. Assim se tem tentado lograr a
concordância prática possível das ideias de prevenção geral e especial e a sua otimização à custa da mútua
compreensão, de modo a atribuir a cada uma a máxima incidência na prossecução de um ideal de prevenção
integral. Mas também esta conceção deve ser recusada. Ora, se todas estas teorias negam à conceção retributiva
legitimidade para entrar na composição das finalidades da pena, elas concluem pela recusa do princípio da
culpa como limite deste problema: ou porque visam substituí-la pela perigosidade; ou, modernamente, pela
ideia de proporcionalidade, ou ainda pela manipulação da culpa como derivado da prevenção. Com esta perda,
retira-se à intervenção penal o seu pressuposto e limite irrenunciável (o respeito pela eminente dignidade da
pessoa), perdendo-se não só o problema da culpa jurídico-penal mas falhando na plenitude a questão das
finalidades da pena.

Desta crítica não é passível uma conceção como a de Roxin. O Autor conclui que a pena serve exclusivamente
finalidades de prevenção geral e especial mas nem por isso perde consciência que recusar a intervenção da
retribuição na querela das finalidades da pena não significa abandonar nem minimizar o princípio da culpa
enquanto legitimador da intervenção penal. A culpa é, com efeito, pressuposto e limite inultrapassável da

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medida da pena. A pena pode ser fixada abaixo desse limite máximo se tal for exigido por motivos de prevenção
especial, desde que não se oponham as exigências mínimas de prevenção geral enquanto necessidade
irrenunciável de tutela do ordenamento jurídico.

Só que, do mesmo passo Roxin afirma ainda que a pena não corresponde a uma medida exata de culpa mas antes
se enquadra numa moldura da mesma, sendo dentro desta moldura que o juiz deve fixar a medida concreta da
pena.

V. O problema dos fins das penas e a doutrina do Estado, nomeadamente à luz da sua evolução em
Portugal
O problema dos fins das penas só ganhou explícito relacionamento com a doutrina do Estado desde que se
iniciou a história da codificação em sentido moderno; quando precisamente se começou a questionar a
fundamentação e legitimação do poder punitivo estatal. Até aí procurava compreender-se a pena como
instrumento de realização da justiça divina delegada, destinando-se a mesma a cumprir (muitas vezes pelo
terror) a vontade e os propósitos políticos do soberano.

1. As finalidades e a justificação da pena na época das Luzes e no CP de 1852


No domínio do direito penal, foi a Constituição portuguesa de 1822 que veio pôr termo aos ideais do ancien
régime, propiciando a introdução de novos princípios humanísticos e racionais do Iluminismo. Com isto, a Lei
Fundamental portuguesa dissociava definitivamente o direito penal das suas origens místicas (ligadas àquilo
que se entendia ser a vontade divina) para o tomar na sua correta veste de instituição humana estatal,
subordinada a uma política criminal imanente e a uma teleologia racional. Resumindo, o nosso direito penal era
colocado no poderoso movimento (ainda hoje longe de se considerar esgotado) do Iluminismo Penal. A
legitimação do poder de punir só podia provir agora dos termos do contrato social e assinalava-se à pena uma
finalidade primária de prevenção geral de intimidação, limitada por uma ideia de proporcionalidade com a
gravidade do crime e a culpa do agente. Basicamente, podia assinalar-se à pena uma finalidade de prevenção
geral indispensável através do que se considerasse uma justa retribuição.

Em Montesquieu, a justa proporcionalidade entre o crime e a pena constituía o ponto nevrálgico da aferição de
um direito penal humano. Não porque a proporcionalidade se impusesse como ideia absoluta, mas porque ela
se revela funcionalmente justificada na medida em que limita a intimidação ao quantum necessário de
compressão das liberdades para o bom funcionamento da sociedade. Já Beccaria recorre ao contrato social
para justificar uma pena de finalidades exclusivamente preventivas, mais especificamente, de finalidades de
prevenção geral negativa (“retrair os demais cidadãos da prática de outros crimes”), embora subsidiariamente
complementada por finalidades de prevenção especial. Todas estas ideias vêm culminar na obra de Feuerbach.

Em 1833, José Manuel da Veiga apresentou um Projeto de Código Criminal que – atenuando o rigor punitivo das
Ordenações e mesmo do Projeto de Mello Freire, eliminando as penas bárbaras e centrando na pena de prisão
todo o sistema sancionatório – introduziu a primeira manifestação legislativa coerente e concertada do
Liberalismo Penal. Contudo, este projeto nunca chegou a ser posto em execução. Assim, a primeira codificação

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penal portuguesa data de 1852, acabando de vez com a vigência do direito penal medieval das Ordenações.
Note-se que este Código foi considerado pelos seus principais comentadores como uma cópia (pouco mais que
uma tradução) do Código Napoleónico de 1810. Tal juízo é de considerar exagerado, mas já é certo que o nosso
Código deriva do mesmo património ideológico que esteve subjacente ao Código Napoleónico – o património
ideológico do Iluminismo Penal. Contudo, apresentava notáveis diferenças, nomeadamente na área do sentido
e finalidades da pena.

Deste modo, e na linha do código napoleónico, o CP de 1852 atribuía à pena finalidades de prevenção geral, mais
concretamente de prevenção geral de intimidação. Não se pode porém dizer tratar-se de um código de penas
fixas, estranho a ideias de limitação do intervencionismo estatal. Contrariamente, e com as influências dos
Códigos Brasileiro de 1830 e Espanhol de 1848, se de facto havia algumas penas fixas, a generalidade delas eram
antes temporárias ou flexíveis, cuja medida abstrata se encontrava entre um mínimo e um máximo estabelecidos
por lei, sendo a fixação da medida concreta tarefa do juiz e não do legislador. E apesar de faltar no código um
critério geral de procedimento judicial para a determinação da medida concreta da pena, ele continha já uma
extensa lista de agravantes e atenuantes que serviam para graduar a pena conforme a influência que exercessem
na culpa do agente.

Assim, a conceção das finalidades da pena deste código não se pode classificar de prevenção geral de
intimidação sem limites (como defendiam Montesquieu e Beccaria), mas sim uma prevenção geral limitada
por um princípio estrito de proporcionalidade, e segundo a sua forma mais perfeita, pela ideia de culpa
(embora não relacionada com considerações de retribuição). Finalmente, sendo muito mais do que uma
tradução do código napoleónico, este nosso código representa a expressão mais pura do património
ideológico-cultural do Iluminismo Penal.

2. As finalidades e a justificação da pena na época liberal e no CP de 1886


As críticas ao CP de 1852 foram de tal ordem, que ainda nesse ano se constituiu uma Comissão encarregue de
proceder à sua revisão. Assim se elaborou um Projeto em 1861, que depois de corrigido haveria de ser
oficialmente proposto aos poderes públicos em 1864. Influenciado pelas doutrinas correccionalistas de Roeder,
o projeto revelava uma clara orientação de prevenção especial, privilegiando a inclinação do direito penal para
a correção e o melhoramento do delinquente. Daqui se retira o adoçamento das penas e a eleição da pena de
prisão como núcleo de todo o sistema punitivo, erigindo-se pela primeira vez um sistema penitenciário coerente
– “Sistema de Filadélfia”, que consiste no isolamento quanto possível total do indivíduo, com trabalho celular,
como forma ótima de alcançar a sua reforma interior. Propõe-se ainda a criação de estabelecimentos
correcionais e institutos como a liberdade condicional, a detenção suplementar, o patronato e o registo criminal.
Nenhum dos projetos de reforma chegou a entrar em vigor, o que não impede que algumas das soluções
inovadoras neles consagradas não tenham tido acolhimento em leis especiais – destacando-se aqui a Lei de 1
de Julho de 1867 que aboliu até hoje as penas de morte e os trabalhos forçados. Todo este sistema se
manteve em vigor até 1913.

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Apesar das reformas assinaladas, o CP de 1852 manteve-se em vigor, assinalando uma funda dessintonia entre
os pressupostos em que repousava (nomeadamente ao nível dos fins da pena) e uma nova compreensão dos
pressupostos filosóficos e jurídico-políticos em que assentava a doutrina do Estado. Sem abandono dos
princípios fundamentais que haviam sido introduzidos pelo constitucionalismo na esteira do Iluminismo Penal
e haviam conduzido a um estádio que mais tarde seria designado como Escola Clássica da ciência penal, esta
assume agora uma nova caracterização essencial, que lhe é emprestada pela elevação da conceção ético-
retributiva a elemento essencial das finalidades da pena. O mesmo aconteceu no pensamento jurídico-penal
português, com duas notas características: a circunstância de essa mesma elevação se dever a uma influência
hegeliana, antes que kantiana; e a que deriva do acolhimento que em Portugal tiveram as teses correccionalistas
de prevenção especial (teses que levariam à substituição do referente ético-retributivo pelo especial-
preventivo em matéria de justificação e finalidades da pena).

Assim se compreende que toda esta evolução tivesse levado à morte do CP de 1852. Mas não se conduziu aqui
à substituição da conceção da pena por uma conceção ético-retributiva, mas antes a um ponto de vista eclético
(que seleciona o melhor das várias doutrinas) quanto aos fundamentos do direito de punir, onde a ideia ético-
retributiva se procurava juntar às novas orientações de prevenção, sobretudo da prevenção especial
correccionalista. Foi isto que aconteceu na Nova Reforma Penal de 1884, que culminou com o CP de 1886. Esta
reforma aproximou as finalidades da pena da teoria da reparação moral de Welcker, que visava harmonizar na
sanção criminal a retribuição, a prevenção especial e a prevenção geral.

A ideia de que se imputa ao CP de 1886 de erigir a retribuição como fundamento e finalidade da pena não pode
aceitar-se. Contrariamente, não é difícil censurar-lhe uma regressão em relação ao CP de 1852 relativamente ao
pensamento da culpa, devido à generosidade de penas fixas que consagra (sendo estas insuscetíveis de
considerações acerca da culpa do agente). Com isto eliminavam-se praticamente as vantagens de se consagrar
pela primeira vez um critério de medida (de determinação concreta ou judicial) da pena em função da
“gravidade do crime”. Por isto se deve concluir que a afirmação das doutrinas retributivas não passava da
afirmação de um princípio (que nem conduziu à eliminação da responsabilidade objetiva ou sem culpa) de
fundamentação da pena; enquanto que na questão concreta da finalidade da pena persistia uma orientação
preventiva, nomeadamente de prevenção especial de correção.

A conclusão a tirar relativamente à longa época do Estado liberal português (1820-1926) é a de que a doutrina
da pena e das suas finalidades (apesar de correspondente aos pressupostos da Escola Clássica) nunca assumiu
o carácter rígido e intolerante que caracterizou a ciência jurídico-penal de outros países que marcaram esta
orientação. Isto deve-se à permeabilidade da ciência e legislação jurídico-penais portuguesas ao pensamento de
prevenção especial positiva (pensamento correccionalista). Pensamento este contudo que não se
autonomizou no sentido de transformar todo o direito penal português num direito de prevenção especial de
tratamento do delinquente, livre das barreiras ético-jurídicas da culpa, como seria pretensão da Escola Positiva;
mas antes se manteve sempre dentro dos limites garantísticos e de respeito pelos direitos individuais que
constituíram património inalienável do Iluminismo e Liberalismo penais e da chamada Escola Clássica.

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3. As finalidades e a justificação da pena do Estado corporativo
Não é legítimo afirmar que os pressupostos antidemocráticos e antiliberais que caracterizaram o Estado
Corporativo ou Estado Novo influenciaram a doutrina ou a legislação jurídico-penais portuguesas no sentido de
as aproximar das que se consolidaram em Estados totalitários como a Alemanha, a Itália ou a URSS. Neste
período, os pressupostos garantísticos essenciais como o princípio da legalidade, da culpa e da humanização do
sistema punitivo foram mantidos (e em certas épocas mesmo acentuados). Para isto contribuiu a pretensão de
se assumir aquilo que se considerava o carácter e a missão éticos do Estado e que levaram a que a conceção
retributiva da pena nunca tivesse sido posta em causa; como levaram a que nunca fossem abandonados os
limites que todo o pensamento preventivo tem de impor a si mesmo em nome da dignidade da pessoa humana.
Assim, o que caracterizou a evolução da conceção da pena não foi uma conversão às teses puramente especial-
preventivas da escola positiva, mas antes o desejo de compatibilizar uma fundamentação ético-retributiva
da pena e uma sua finalidade de prevenção especial positiva ou de socialização.

A questão fulcral era a de saber como poderiam articular-se, sem contradição, as exigências de que a culpa (que
se pensava ligada a uma conceção ético-retributiva de pena) continuasse a ser considerada fundamento da
punição; e de que à prevenção, sobretudo na forma de prevenção especial de socialização, fosse dado o espaço
mínimo para que o sistema punitivo desse resposta às necessidades político-criminais. Esta articulação foi
tentada (com reflexos na legislação) através da referência da culpa, antes que (ou não só) ao facto, à (ou também
à) personalidade do agente.

Sinal da tentativa acima apresentada é constituída pelo tratamento legislativo da designada criminalidade
especialmente perigosa. Foi a Reforma Prisional de 1936 (que teve em Beleza dos Santos o seu mentor) que
criou uma possibilidade de prorrogação da pena aplicável a imputáveis especialmente perigosos que duraria
até que cessasse a perigosidade (sem limites determinados portanto).

Concluindo, o sentido e a finalidade da pena que se destacaram neste período aproximam-se de uma pena
retributiva com finalidades de prevenção especial. Prevenção especial que, relativamente a casos
particulares (como os de especial perigosidade) assumia valor autónomo, sem prejuízo de ser limitada na
medida do possível por uma ideia de culpa referida à personalidade do agente.

4. A evolução posterior à institucionalização do Estado de Direito


Em linha do que dissemos anteriormente, não é de esperar que a democratização da vida pública portuguesa
após o 25 de Abril de 1974 introduza uma modificação sensível nas matérias de fundamentação e finalidade da
pena. Consta do Art. 2.º do Projeto da Parte Geral de um novo CP elaborado em 1963: “Quem age sem culpa não
é punível. A medida da pena não pode exceder essencialmente a da culpa do agente pelo seu facto ou pela sua
personalidade criminalmente perigosa”. Esta conceção era concordante com os princípios do Estado de
Direito, tomando este na sua vertente liberal e social; embora não o seja totalmente, porque aqueles princípios
impõem que em caso algum a pena exceda (essencialmente ou não) a medida da culpa. A referida entorse
encontra-se contextualmente justificada na medida em que na maioria do direito penal legislado das mais
consolidadas democracias o princípio da culpa não tinha ainda ganho ilimitada validade; além disso, esta

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entorse não era contrabalançada por razões de prevenção geral negativa, mas pelo vasto campo que se
pretendia ceder à prevenção especial de socialização. Aqui se encontram as razões pelas quais o Projeto de
Eduardo Correia não conseguiu consagração legislativa nos tempos da ditadura.

Quando foi publicado o CP de 1982, dado o carácter ainda não definitivamente institucionalizado da democracia
portuguesa e as ainda estreitas margens dos consensos comunitários alcançados, visou-se com este código
apresentar um diploma descomprometido, na medida do possível, em matéria político-criminal e dogmática. Isto
fez desaparecer o supracitado Art. 2.º do Projeto, sem que fosse substituído por outro preceito que clarificasse
o problema em causa. Isto facilitou o processo político de aprovação, mas dificultou bastante a interiorização
das opções político-criminais e dogmáticas que ao novo código continuaram a presidir. De tal forma que se
verificaram erros de aplicação relativamente à pena (na sua fundamentação, sentido e finalidades), resultando
num processo ilegal de desaplicação da lei.

O descomprometimento aqui referido foi de tal ordem que, em matéria de fundamentação e finalidades da pena,
tiveram lugar os entendimentos substancialmente mais díspares. Por exemplo, enquanto Eduardo Correia
continuou a entender a pena como uma instituição, como justa retribuição com finalidades preventivas
(nomeadamente de prevenção especial de socialização), já nós considerámos o CP de 1982 baseado numa pena
exclusivamente preventiva, com finalidades de proteção de bens jurídicos e visando alcançar na medida do
possível a socialização do delinquente, sendo aqui a culpa um elemento estranho ao fundamento e finalidade da
pena, embora constitua o seu limite inultrapassável.

A Comissão Revisora de 1991 (de cujas propostas resultou a Reforma do CP de 1995) trabalhou num quadro
sociocultural e político completamente diverso do que aquele que caracterizou a parte final da elaboração e
aprovação do CP de 1982. Trabalhou-se agora num quadro típico de uma democracia e de um Estado de Direito
estabilizados e consolidados. Mais, esta Comissão pôde ainda aproveitar-se das dificuldades, êxitos e fracassos
que marcaram a primeira década da vigência deste código. Assim se reuniram as condições para uma
apresentação clara do programa político-criminal e dogmático (nomeadamente em matéria de fundamentação,
sentido e finalidades da pena).

VI. Finalidades e limite das penas criminais


1. A natureza exclusivamente preventiva das finalidades da pena
A solução aqui defendida para o problema dos fins das penas consiste nestas só poderem ter natureza
preventiva (seja de prevenção geral, positiva ou negativa; seja de prevenção especial, positiva ou negativa),
não podendo ter natureza retributiva. O direito penal e o seu exercício pelo Estado fundam-se na necessidade
estatal de retirar a cada pessoa o mínimo dos seus direitos, liberdades e garantias indispensável ao
funcionamento da sociedade e à preservação dos seus bens jurídicos essenciais; permitindo a realização mais
livre possível da personalidade de cada um enquanto indivíduo e membro da comunidade. De acordo com esta
lógica, também a pena criminal – na sua ameaça, na sua aplicação concreta e na sua execução específica – só
pode perseguir a realização daquela finalidade prevenindo a prática de futuros crimes.

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Daqui se retira que não é conveniente nem eficaz assinalar à pena exclusivamente finalidades de prevenção
geral ou exclusivamente finalidades de prevenção especial. Umas e outras devem coexistir e combinar-se da
melhor forma porque ambas comungam do propósito comum de evitar a prática de futuros crimes. Aliás, se em
muitos casos se trata aqui de finalidades aditivas (em que a pena visa atingir, simultaneamente e sem
contradição, finalidades de prevenção geral e especial; outros existirão em que estas duas espécies de
finalidades podem entrar em conflito. Mais, em todos os casos há que saber como devem comportar-se
mutuamente as duas espécies de finalidades no momento em que o juiz determina a medida concreta da pena,
vindo por isso a doutrina mais recente afirmar que o conflito dos fins das penas é na verdade um problema
de determinação do modelo de medida da pena.

2. Ponto de partida: as exigências de prevenção geral positiva ou de integração


Primordialmente, a finalidade da pena será a da tutela necessária dos bens jurídico-penais no caso
concreto, sendo esta também a ideia mestra da medida da pena. Tutela esta que não é vista num sentido
retrospetivo, face a um crime já ocorrido, mas sim num sentido prospetivo, corretamente traduzido pela
necessidade de tutela da confiança (de que falava Beleza dos Santos) e das expectativas da comunidade na
manutenção da vigência da norma violada. Resumindo, podemos afirmar como finalidade primária da pena o
restabelecimento da paz jurídica comunitária abalada pelo crime. Esta finalidade prende-se com a ideia de
prevenção geral positiva ou de integração, que dá conteúdo ao princípio da necessidade da pena consagrado no
Art. 18.º/2 CRP de forma paradigmática.

A Jakobs se fica a dever a fórmula segundo a qual a finalidade primária da pena reside na estabilização
contrafáctica das expectativas comunitárias na validade da norma violada. Para o Autor, esta função
estabilizadora da pena diferia da função de proteção de bens jurídicos, que na sua ótica não caberia (pelo menos
de forma primordial) ao direito penal. Neste ponto, a nossa conceção é toda uma outra: função primária do
direito penal é a tutela subsidiária de bens jurídicos, sendo a ideia de estabilização das expectativas
comunitárias apenas uma forma de tradução daquela ideia essencial.
Afirmar que a prevenção geral positiva ou de integração constitui a finalidade primordial da pena e o ponto de
partida para a resolução de eventuais conflitos entre as diferentes finalidades preventivas traduz a convicção
de que existe uma medida ótima de tutela dos bens jurídicos e das expectativas comunitárias que se deve
propor alcançar, medida esta que não pode ser excedida (princípio da necessidade) por considerações de
prevenção especial derivadas de uma particular perigosidade do delinquente. Contudo, também é verdade que
esta medida ótima não fornece ao juiz um quantum exato de pena. Abaixo deste ponto ótimo outros existirão em
que aquela tutela é ainda efetiva e consistente e onde a pena concreta ainda mantém a sua função primordial de
tutela dos bens jurídicos. Isto até se atingir um limiar mínimo – denominado de defesa do ordenamento jurídico
– abaixo do qual já não é comunitariamente suportável a fixação da pena sem se comprometer a função tutelar
de bens jurídicos. Assim, pode concluir-se dizendo que é a prevenção geral positiva que fornece uma moldura
de prevenção dentro da qual podem e devem atuar considerações de prevenção especial, e não a culpa, que
como tradicionalmente e ainda hoje se pensa, que fornece uma “moldura de culpa”. Morre aqui a questão de
uma possível elevação da pena em nome de exigências de prevenção geral negativa ou de intimidação: a

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intimidação da generalidade, sendo um efeito a considerar dentro da moldura da prevenção geral positiva, não
constitui por si só uma finalidade autónoma da pena, podendo somente surgir como efeito lateral da tutela de
bens jurídicos.

3. Ponto de chegada: as exigências de prevenção especial, nomeadamente da prevenção especial


positiva ou de socialização
Dentro da moldura consentida pela prevenção geral positiva ou de integração, devem atuar, na medida do
possível, pontos de vista de prevenção especial, sendo estes que vão determinar em última instância a
medida da pena. Isto significa que releva aqui qualquer das funções associadas ao pensamento da prevenção
especial (seja a função positiva de socialização, seja a função negativa de advertência
negativa/segurança/inocuização). A medida da necessidade de socialização do agente é no entanto, em
princípio, o critério decisivo das exigências de prevenção especial, constituindo o vetor mais importante daquele
pensamento. Contudo, ele só entra em jogo se o agente se revelar carente de socialização; não acontecendo tal,
em termos de prevenção especial confere-se à pena uma mera função de advertência, o que permitirá que a pena
desça até perto do limite mínimo, podendo coincidir com a “defesa do ordenamento jurídico”.

4. A culpa como pressuposto e limite da pena


Não entrando a retribuição no âmbito das finalidades da pena, a ela pertence o mérito de ter posto em evidência
a essencialidade do princípio da culpa e do seu contributo em matéria de finalidades da pena. Segundo aquele
princípio “não há pena sem culpa e a media da pena não pode em caso algum ultrapassar a medida da culpa”. A
verdadeira função da culpa no sistema punitivo reside numa incondicional proibição de excesso. Assim, a culpa
não é fundamento da pena, mas constitui o seu pressuposto necessário e o seu limite inultrapassável: limite
este que é inultrapassável por quaisquer considerações preventivas. A função da culpa, inscrita na vertente
liberal do Estado de Direito é a de estabelecer o máximo da pena ainda compatível com as exigências de
preservação da dignidade da pessoa e da garantia do livre desenvolvimento da sua personalidade nos quadros
próprios de um Estado de Direito Democrático. A culpa constitui assim uma barreira intransponível ao
intervencionismo punitivo estatal e um veto incondicional aos apetites abusivos que ele possa suscitar.

Na realidade, conflitos frequentes podem surgir entre a culpa e a prevenção especial (positiva ou negativa),
bem como entre a culpa e a prevenção geral de intimidação. Mas já não será fácil arranjar situações em que o
ponto ótimo ou ainda aceitável de tutela dos bens jurídicos venha a situar-se acima daquilo que a adequação à
culpa permite. Como refere Roxin, as razões de diminuição da culpa são em princípio também
comunitariamente aceitáveis e determinam que, no caso concreto, as exigências de tutela dos bens jurídicos e
de estabilização das normas sejam menores. De toda a exposição aqui feita resulta que tratamos aqui de várias
realidades diferentes, que possuem diferentes fundamentos e exercem funções diferenciadas dentro do sistema
e do problema das finalidades da pena.

Parece-nos agora dispensável a ideia de que (não o fundamento) mas a legitimação da pena repousa
substancialmente num duplo fundamento: o da prevenção e o da culpa, e que por isso só seria legítima quando
fosse necessária de um ponto de vista preventivo e, para além disso, justa; não se tratando então de uma “união

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eclética de elementos heterogéneos” mas sim de uma “justificação cumulativa”. Ora esta acumulação, no ponto
em que é exata, já se encontra plasmada na ideia da culpa como limite inultrapassável e pressuposto
indispensável da pena, não sendo necessário turvar a clareza da natureza exclusivamente preventiva das
finalidades da pena com exigências (que todavia são justificadas) de justiça e merecimento da sua aplicação.
Assim, toda a pena que responda adequadamente às exigências preventivas e não exceda a medida da
culpa é uma pena justa.

5. Conclusão
Resumindo a teoria penal aqui defendida: toda a pena serve finalidades exclusivas de prevenção, geral e
especial; a pena concreta é limitada, no seu máximo inultrapassável, pela medida da culpa; dentro deste limite
máximo ela é determinada no interior de uma moldura de prevenção geral de integração, cujo limite superior
consiste no ponto ótimo de tutela dos bens jurídicos e cujo limite inferior se prende com as exigências mínimas
de defesa do ordenamento jurídico; dentro desta moldura de prevenção geral de integração, a medida da pena
é encontrada em função de exigências de prevenção especial (em regra positiva ou de socialização;
excecionalmente negativa, de intimidação ou de segurança individuais).

O programa político-criminal que na sua enorme extensão se consubstancia nas proposições acima
apresentadas decorre diretamente do Art. 18.º/2 CRP e foi coerentemente assumido pelo legislador penal
português de 1995 nos nºs 1 e 2 do Art. 40.º CP. A acusação de que disposições deste teor inscritas num CP
excederiam a competência de qualquer legislador (dada a pretensão de decidir da milenar controvérsia
filosófico-doutrinal dos fins das penas) tem de ser repudiada e dada como infundamentada. Isto porque é ao
legislador democraticamente legitimado (entre nós, exclusivamente à AR – Art. 165.º/1/c CRP) que compete
vazar proposições de política criminal no modus da validade jurídica.

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6º CAPÍTULO – O COMPORTAMENTO CRIMINAL E A SUA
DEFINIÇÃO: O CONCEITO MATERIAL DE CRIME
Inês Bastos – páginas 106-131
Carol Diniz – páginas 132-144
Adriana – páginas 144-154

I. O conteúdo material do conceito de crime


1. A perspetiva positivista-legalista: do conceito “formal” ao conceito “material” de crime.
Quando se fala em conceito “material” de crime, estamos a falar de tudo e só aquilo que o legislador considerou
como tal, sendo que este ameaça a prática de determinado facto com uma pena criminal. Este conceito “material”
viria a corresponder afinal ao conceito “formal”.

1. Esta conceção é inaceitável, pois quando se questiona por este conceito (material), questiona-se a
legitimação material do direito penal, ou seja, à questão de saber qual a fonte de onde promana a
legitimidade para considerar certos comportamentos humanos como crimes e aplicar aos infratores
sanções de espécies particular, não havendo resposta com a mera observância do princípio da
Legalidade em sentido amplo (identificação da legitimação material com a observância do
procedimento formal adequado ao Estado de Direito). O legislador tem a plena capacidade de dizer o
que é e o que não é crime, mas nada fica a saber-se sobre quais as qualidades que o comportamento deve
assumir para que o legislador se encontre legitimado a submeter a sua realização a sanções criminais.

2. A conceção exposta não permite ligar a questão do conceito material do crime ao problema da função e
dos limites do direito penal. Este conceito é previamente dado ao legislador e constitui-se em padrão
crítico tanto do Direito Vigente, como do Direito a Constituir, indicando ao legislador: (1) aquilo que ele
pode e deve criminalizar; e (2) aquilo que ele pode e deve deixar fora do âmbito do direito penal.

Funções – com este conceito deve poder medir-se:


1. A correção ou incorreção político-criminal de cada uma das incriminações constituídas ou a constituir;
2. Alimentar a discussão científica sobre a criminalização e a descriminalização;
Lograr a ligação entre os 3 domínios da ciência penal global: Política criminal, Dogmática jurídico-penal
e criminologia.

Todas estas funções tornam-se inalcançáveis. A autonomização do conceito material face ao conceito formal
de crime, constitui uma necessidade científica já sentida desde os tempos de Beccaria e do seu fundamental
Dei delliti e delle pene (1764).

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2. A perspetiva positivista-sociológica
A conceção positivista-legalista do crime, trouxe várias deficiências notórias. Por isso, houve um esforço de
tentar encontrar o conteúdo desta última conceção numa noção sociológica. O que importa seria divisar aquilo
que em termos de objetividade e universalidade pudesse, à luz da realidade social, ser como tal considerado.
Segundo Garófalo, o crime devia corresponder à violação de sentimentos altruísticos fundamentais: a piedade
(sentimento violado pelo crime contra pessoas) e a probidade (sentimento violado pelos crimes contra o
património). Desta forma, corresponde a noção de delito natural, possuindo na sua base a característica de
uma conduta socialmente danosa. A única característica comum a todos os crimes residiria no facto de
“constituírem atos universalmente reprovados pelos membros de cada sociedade” (Durkheim). E V. Liszt
afirmou: “crime é agressão, tida na perspetiva do legislador como especialmente danosa para uma dada
ordenação social, a interesses juridicamente protegidos, pelo lado da perigosamente social revelada em tal
agressão por uma personalidade responsável”.

Acentua-se para o facto de Garófalo chamar a atenção para a circunstância de, na generalidade das ordens
jurídico-penais, coexistirem crimes cujas condutas são axiologicamente relevantes (preexiste uma valoração
negativa do ponto de vista social, moral ou cultural) antes e independentemente de serem considerados como
crimes pelo legislador, com outros crimes (os delicta mere prohibita) cujo comportamento é constituído em
ilícito somente através da sua proibição pela lei, uma vez que as condutas consideradas são axiologicamente
neutras. Chama-se a atenção que só o primeiro grupo deveria ser elevado à categoria de verdadeiro crime.
A ideia básica que se adquiriu da dogmática do direito penal foi a definição do crime como uma unidade de
sentido sociológico. A doutrina italiana traduz aquela unidade através da ofensividade.

O pensamento penal anglo-americano vê no crime em sentido material a expressão de um princípio do dano,


que Stuart Mill colocava como princípio fundamental da criminalização e da consequente limitação do poder
estadual. É em favor de toda esta orientação que se procura estabelecer um conceito pré-legal de crime.
Nas conceções acabadas de referir revelam, no entanto, uma imprecisão, pois não foram capazes de determinar
com um mínimo de segurança em que consistiria a ofensividade ou a danosidade sociais determinantes da
“essência” do crime. Revelam-se também demasiado largas para por elas se alcançarem.
Mesmo que possa concordar-se que todo o crime se traduz num comportamento determinante de uma
danosidade ou ofensividade social, nem toda aquela danosidade deve legitimamente constituir um
crime. Isto terá compreendido o legislador português de 1995 ao adscrever à pena e à medida de segurança
criminais a função de tutela de bens jurídicos e não de proteção perante uma qualquer ofensividade ou
danosidade social.

Exemplos: o comportamento mentiroso, que acarreta consigo danosidade social, mas é seguro que nem toda a
mentira socialmente danosa deve constituir um crime. Comportamento socialmente grosseiro ou mal-educado,
comportamento desleal (mesmo em matéria negocial). Os critérios da ofensividade ou da danosidade social não
auxiliam a resolver os casos de fundada dúvida sobre a legitimidade de incriminações de condutas como p. Ex,

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o mero consumo de drogas, incesto entre adultos, etc., quando não apontam para uma solução incorreta do
problema.

3. A perspetiva moral (ético)-social


À passagem do Estado de Direito formal ao Estado de Direito material correspondeu a introdução no conceito
material de crime de um ponto de vista moral (ético)-social que leva a ver na “essência” daquele a violação de
deveres éticos-sociais elementares ou fundamentais.
Segundo a lição de Welzel, a tarefa do direito penal residia em “assegurar a validade dos valores ético-sociais
positivos de ação”: a tarefa primária deste direito (segundo ele), consiste na proteção dos valores elementares
de consciência, de carácter ético-social, e só por inclusão na proteção dos bens jurídicos particulares”; é a
“proteção dos bens jurídicos mediante a proteção dos elementares valores de ação ético-sociais”.
Esta conceção estava enraizada no espírito da generalidade das pessoas para as quais o direito penal significaria
pecado e castigo (vigentes na ordem religiosa) e imoralidade e censura da consciência (ordem moral).

Porém, não é função do direito penal tutelar a virtude ou a moral (imposta, dominante ou específica de
qualquer grupo social). Não está legitimado este direito como ordem que tem de respeitar a liberdade de
consciência de cada um (art 41 CRP). Acontece o mesmo com os instrumentos de que se serve a sua atuação,
penas e medidas de segurança criminais, que não se revelam adequados para fazer valer no corpo social as
normas da virtude e da moralidade.

Uma conceção deste teor é absolutamente inadequada à estrutura e às exigências das sociedades democráticas
e pluralista dos nossos dias, ou seja, não se adequa ao pluralismo ético-social das sociedades contemporâneas
onde coexistem zonas de consenso com zonas de conflito, o que não permite que uma tal conceção possua hoje
capacidade para se arvorar em padrão crítico de um ordenamento jurídico-penal positivo constituído ou a
constituir.

4. A perspetiva racional: a função da tutela subsidiária de bens jurídicos dotados de dignidade penal
(bens jurídico-penais)
A controvérsia anterior gerou, na temática da função do direito penal ligada ao conceito material de crime, uma
perspetiva que se qualifica de teleológico-funcional e racional.
❭ Teleológico-funcional, pois reconheceu-se que o conceito material de crime não podia ser deduzido das
ideias vigentes a se em qualquer ordem extrajurídica e extrapenal, mas tinha de ser encontrado no
horizonte de compreensão imposto ou permitido pela própria função que ao direito penal se adscrevesse
no sistema jurídico-social.
❭ Racional, pois o conceito material de crime vem a resultar da função atribuída ao direito penal de tutela
subsidiária (ou de ultima ratio) de bens jurídicos dotados de dignidade penal (ou de “bens jurídico-
penais”), ou seja, de bens jurídicos cuja lesão se revela digna e necessitada de pena.

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4.1. Uma primeira aproximação à noção de bem jurídico. Evolução
A noção de bem jurídico não pode, até ao momento presente, ser determinada. Porém, há, todavia, um consenso
largo sobre o seu núcleo essencial. Define-se como a expressão de um interesse, da pessoa ou da
comunidade, na manutenção ou integridade de um certo estado, objeto ou bem em si mesmo
socialmente relevante e por isso juridicamente reconhecido como valioso.

Esta noção assumiu primeiramente um conteúdo individualista, identificador do bem jurídico com os interesses
primordiais do indivíduo, nomeadamente a sua vida, o seu corpo, a sua liberdade e o seu património (direitos
subjetivos fundamentais da pessoa individual).

A partir da segunda década do nosso século, apareceu um conceito metodológico do bem jurídico de raiz
normativa que reage contra a compreensão legalista e positivista do direito, e acentuando nele a vertente
teleológica. Esta conceção faz dos bens jurídicos meras fórmulas interpretativas dos tipos legais de crimes,
capazes de resumir o seu conteúdo e de exprimir o ”sentido e o fim dos preceitos penais singulares” (Honig),
em suma, expressões da ratio legis que lhes preside (Schwinge).

Uma tal compreensão deve ser hoje rejeitada. O legislador, ao editar um preceito, tem sempre com ele vista a
tradução de um sentido e a obtenção de uma finalidade quaisquer, pelo que, com a mera existência do preceito,
ficaria dada a existência de um bem jurídico.

Em suma, a atribuição ao bem jurídico de uma função puramente hermenêutica significaria o seu
esvaziamento de conteúdo e a sua transformação num conceito legal-formal que nada adianta face à fórmula
conhecida da interpretação teleológica da norma.

Uma conceção teleológica-funcional e racional do bem jurídico exige dele que obedeça a uma série mínima,
mas irrenunciável, de condições:
(1) O conceito deve traduzir, em primeiro lugar, um conteúdo material, arvorando-se num indicador útil
do conceito material de crime.
(2) Em segundo lugar, deve servir como padrão crítico de normas constituídas ou a constituir, porque
só assim pode ter a pretensão de se arvorar em critério legitimador do processo de criminalização e
descriminalização. Nesta aceção ele só pode surgir como noção transcendente, trans-sistemática,
relativamente àquele.
(3) Finalmente, deve ser político-criminalmente orientado, intra-sistemático relativamente ao sistema
social, mais concretamente ao sistema jurídico-constitucional. O problema é determinar de que forma
pode o conceito obedecer a todas a estas exigências e lograr a materialidade e a conceção
indispensáveis para a viabilidade na tarefa prática de aplicação do direito penal.

4.2. Bem jurídico, sistema social e sistema jurídico-constitucional


Teremos uma resposta ao problema acima referido com a invocação da teoria da sociedade, seja sob forma da
teoria crítica, seja sob a da teoria do sistema social.

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Baseado na análise sociológica de Jurgen Habermas, Augusto Silva Dias levou a cabo uma tentativa de traduzir
diretamente da teoria social em termos de validade/legitimação jurídico-penal, onde esta assenta nos
seguintes pressupostos: o “mundo da vida”, por contraposição à “função”, de um lado, a “interação
comunicativa” ligada ao “reconhecimento pessoal recíproco”, do outro. O que conduziria a definir o bem jurídico
como objeto de valor que exprime o reconhecimento intersubjetivo e cuja proteção a comunidade considera
essencial para a realização individual do cidadão participante.

Fora da validade jurídico-penal (com a consequência da sua inconstitucionalidade material) ficariam todos
os delicta mere prohibita que não pertenceriam ao mundo da vida e da experiência prática consensualmente
assumida pela comunidade, mas revelam unicamente de uma razão de ser sistémica e contemplam lesões de
meros interesses funcionais.

Uma construção deste teor revela os perigos de recurso direto a uma (qualquer) teoria da sociedade para
definição imediata dos termos da validade/legitimação jurídico-penal.

Primeiro, um tal discurso só poderia servir o processo legitimador de todo o Direito e não especificamente do
direito penal ou só mesmo de uma parte do direito penal positivo (delicta in se).

Segundo, esquece-se que o “sistema” é simultaneamente “ambiente” e constitui nesta medida uma dimensão do
próprio modo-de-ser pessoa: não existe um mundo da vida sem sistema, pelo que a proteção do sistema
participa da própria proteção da dignidade da pessoa.

Finalmente, por esta via retira-se à Constituição (de forma inadmissível) o papel diretor que materialmente lhe
cabe da ordem legal dos bens jurídico-penais. A ordem económica ou financeira, como a ordem política, a
fiscalidade, o mercado, conformam valores jurídico-constitucionalmente reconhecidos e, nesta medida,
fundamentos de uma criminalização legítima e válida.

Crítica: É a sua irremediável insuficiência para os efeitos práticos da aplicação do direito. Com o apelo direito
a um tal sistema é absolutamente impossível emprestar ao conceito de bem jurídico a indispensável
concretização. Com uma via para a alcançar só se depara quando se toma em conta que os bens do sistema social
se transformam e se concretizam em bens jurídicos dignos de tutela penal (bens jurídico-penais) através da
“ordenação” axiológica jurídico-constitucional, como o vem reconhecendo, desde os anos 70 do séc. XX, uma
parte da doutrina italiana que procura ler a categoria da ofensividade à luz da proposição segundo a qual só
bens jurídicos de nível jurídico-constitucional podem ser legitimamente protegidos pelo direito penal.

Conclusão: um bem jurídico político-criminalmente tutelável existe apenas onde se encontre refletido num
valor jurídico-constitucionalmente reconhecido em nome do sistema social total e que, deste modo, se
pode afirmar que “preexiste” ao ordenamento jurídico-penal. Ou seja, entre a ordem axiológica jurídico-
constitucional e a ordem legal jurídico-penal) dos bens jurídicos há uma relação de mútua referência, uma
relação de analogia material, fundada numa essencial correspondência de sentido e, do ponto de vista da sua
tutela, de fins. Correspondência que deriva de a ordem jurídico-constitucional constituir o quadro obrigatório

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de referência e, ao mesmo tempo, o critério regulativo da atividade punitiva do Estado. É nesta aceção que os
bens jurídicos protegidos pelo direito penal devem considerar-se concretizações dos valores constitucionais
expressa ou implicitamente ligados aos direitos e deveres fundamentais e à ordenação social, política e
económica, ou seja, bens jurídicos dignos de tutela penal ou com dignidade jurídico-Penal - bens jurídico-
penais.

Esta relação entre a ordem axiológica constitucional e a ordem legal dos bens jurídicos permite distinguir entre
o direito penal de justiça (direito penal “clássico” ou primário) correspondente àquele que se encontra contido
nos códigos, e o direito penal secundário ou direito penal extravagante, contido em leis avulsas não
integradas nos códigos penais.

Diferença entre as duas categorias: Enquanto os crimes do direito penal de justiça se relacionam em ultimo
termo, direta ou indiretamente, com a ordenação jurídico-constitucional relativa aos direitos, liberdades e
garantias das pessoas (ou seja, visa proteger a esfera de atuação especificamente pessoal, embora não
necessariamente “individual”, do homem), já os do direito penal secundário (exemplo: direito penal
económico - da empresa, mercado de trabalho, segurança social) relacionam-se com a ordenação jurídico-
constitucional relativa aos direitos sociais e à organização económica (ou seja, visa proteger a sua esfera de
atuação social - do homem “como membro da comunidade”).

Entre as duas categorias, há, também, uma relação de codeterminação recíproca entre o bem jurídico e a
conduta típica. Nestas hipóteses, a matéria proibida assume uma relevância sistémica e funcional muito maior
do que em crimes definitivamente consolidados à escala planetária (como o caso do homicídio) e essa relevância
não deve ser desatendida ou minimizada em sede de hermenêutica e de aplicação do direito. Mas nem por isso
o bem jurídico deixa de ser o fundamento e o padrão-crítico do ilícito constituído e serve essencialmente às
mesmas funções dos bens jurídicos do direito penal de justiça.

O bem jurídico não constitui um conceito fechado e apto à subsunção. Relativamente a certas incriminações
(homicídio a pedido da vítima, propaganda do suicídio, interrupção voluntária da gravidez, poluição ou cultivo
para consumo de drogas), o que sucede é que não estará tanto em causa a preexistência ou não de um bem
jurídico, quanto o grau legítimo de antecipação da sua proteção e, consequentemente, o momento a partir do
qual o direito penal deve sentir-se autorizado para intervir em seu favor.

Tarefa exclusiva do direito penal: preservação das condições fundamentais das mais livre realização possível
da personalidade de cada homem na comunidade.

A esta conclusão conduz uma correta solução da questão da legitimação do direito de punir estatal: esta
provém muito simplesmente da exigência (inscrita no paradigma do contrato social) de que o Estado só deve
tomar de cada pessoa o mínimo dos seus direitos e liberdades que se revele indispensável ao funcionamento
sem entraves da comunidade.

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Por outro lado, conduz, também, a regra do Estado de Direito democrático, segundo a qual o Estado só deve
intervir nos direitos e liberdades fundamentais na medida em que isso se torne imprescindível ao
asseguramento dos direitos e liberdades fundamentais dos outros ou da comunidade enquanto tal.
E, em terceiro lugar, conduz o carácter pluralista e secularizado (laico) do Estado de Direito
contemporâneo, que o vincula a que só utilize os seus meios punitivos próprios para tutela de bens de
relevante importância da pessoa e da comunidade e nunca para a instauração ou reforço das ordenações
axiológicas transcendentes. É isto que significa o art 18/2 CRP ao dispor que as restrições de direitos, liberdades
e garantias devem “limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses
constitucionalmente protegidos”. Em consonância com o referido normativo constitucional, também o art 40
CP estatui que a “aplicação de penas e medidas de segurança visa a proteção de bens jurídicos”.

4.3. Consequências da orientação defendida


1. Desde logo, puras violações morais não conformam como tais a lesão de um autêntico bem jurídico e
não podem, por isso, integrar o conceito material de crime. A evolução do direito penal sexual constitui
um exemplo paradigmático desta asserção: àquela luz ele tem por força de deixar de ser (como era
designado pela generalidade dos códigos penais anteriores à segunda metade do séc. XX) um direito
tutelar da “honestidade” ou “bons costumes” - onde por isso caberia a punibilidade de práticas sexuais
que, à luz dos “sentimentos gerais de moralidade sexual”, devessem ser consideradas “anormais”,
“viciosas”, “contra a natureza”, ou seja, “imorais” (homossexualidade e a prostituição incluídas). Para se
tornar num direito tutelar de um bem jurídico perfeitamente definido e que reentra no capítulo dos
crimes contra as pessoas: o bem jurídico da liberdade e autodeterminação da pessoa na esfera sexual. Há
que fazer uma crítica, neste ponto de vista, ao crime de lenocínio (L 99/2001, 25-8) do art 170/1,
eliminando a exigência de que o favorecimento da prostituição se ligasse necessariamente à “exploração
de situações de abandono ou de necessidade económica”. Só por aqui, o facto podia referir-se ao bem
jurídico da liberdade ou autodeterminação sexual da prostituta. Agora, uma tal ligação perdeu-se,
surgindo a incriminação referida à tutela de puras situações tidas pelo legislador como imorais. Deste
modo, contra o que julgou o TC, a incriminação tornou-se, na opinião do curso, materialmente
inconstitucional.

2. Não conformam também autênticos bens jurídicos proposições (ou imposições de fins) meramente
ideológicas. Por exemplo, pôr em causa a pureza da raça, propagar doutrinas contrárias a uma certa
religião ou a uma determinada conceção do Estado, ou fazer a apologia de uma qualquer doutrina
religiosa, moral, política, económica, social ou cultural (ressalvada a eventual ilicitude penal dos meios
utilizados) são condutas que não podem legitimamente constituir objeto de criminalização. Nesta
categoria reentrariam, segundo Roxin, casos como o da criminalização da aquisição ou posse de droga
para consumo, em nome da “existência de uma sociedade livre de drogas”, por exemplo.

3. O objeto de criminalização não deve ainda constituir, por igual motivo, a violação de valores de mera
ordenação. A questão toca aqui o problema mais amplo e discutível da distinção entre direito penal e

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direito de mera ordenação social ou das contraordenações. Para os direitos que não conhecem a categoria
“não-penal” (antes administrativa) das “contraordenações”, mas diferentemente mantêm dentro do seu
ordenamento penal a categoria das “contravenções”, dir-se-ia que o problema mencionado não se suscita,
não sendo exato, tendo que se questionar, à luz da orientação aqui defendida, se os bens jurídicos
tutelados pelas contravenções constituem, materialmente, bens jurídico-penais. Por esta razão, não se
pode concordar com quem defende ser impossível delimitar os crimes e as contraordenações na base de
que os primeiros, mas já não as segundas, tutelariam bens jurídicos.

É certo que a categoria jurídico-administrativa das contraordenações tem atrás de si bens jurídicos (como o tem
toda a ilicitude administrativa, disciplinar ou mesmo civil. A verdade é que não se pode dizer aqui, como nos
crimes, que estes bens são bens jurídico-penais, que preexistem à proibição e possuem uma referência
obrigatória à ordenação axiológica jurídico-constitucional. Antes se tratam de bens jurídico-administrativos
que são constituídos através da proibição e por força dela.

A distinção entre crimes (bens jurídico-penais) e contraordenações (bens jurídico-administrativos) deve ser
levada a cabo em função do Princípio da Subsidiariedade e, também, ao nível do bem jurídico.

Toda a norma incriminatória na base da qual não seja suscetível de se divisar num bem jurídico-penal
claramente definido é nula, por materialmente inconstitucional, e como tal deve ser declarada pelos tribunais
competentes.

4.4. A jurisprudência do TC
Como se escreveu no Ac. do TC 211/95, “o que justifica a inclusão de certas situações no direito penal é a
subordinação a uma lógica de estrita necessidade das restrições de direitos e interesses que decorrem da
aplicação de penas públicas” (art 18/2 CRP). E é também a censurabilidade imanente a certas condutas, isto é,
prévia à normativização jurídica, que as torna aptas a um juízo de censura pessoal.
Em suma, é a exigência de dignidade punitiva prévia das condutas enquanto expressão de uma elevada
gravidade ética e merecimento da culpa (art 1 CRP - proteção da dignidade da pessoal humana) que se exprime
no principio constitucional da Necessidade de Penas (e não só da subsidiariedade do direito penal e da
máxima restrição das penas que pressupõem apenas, em sentido estrito, a ineficácia de outro meio
jurídico).

5. O critério da “necessidade” (ou “carência”) de tutela penal


5.1. Necessidade de tutela penal e princípio jurídico-constitucional da proporcionalidade em sentido
amplo
Se na conceção teleológica-funcional e racional que vimos, não pode haver criminalização onde se não divise o
propósito de tutela de um bem jurídico-penal, já a asserção inversa não se revela exata: a asserção, isto é,
segundo a qual sempre que exista um bem jurídico digno de tutela penal aí deve ter lugar a intervenção
correspondente. O que significa que o conceito material de crime é essencialmente constituído pela noção de

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bem jurídico dotado de dignidade penal. A esta noção deve acrescer um outro critério que torne a
criminalização legítima que é o da necessidade (carência) de tutela penal (art 18/2 CRP).

A violação de um bem jurídico-penal não basta por si para desencadear a intervenção, antes se
requerendo que esta seja absolutamente indispensável à livre realização da personalidade de cada um
na comunidade. Nesta aceção, o direito penal constitui a ultima ratio da política social e a sua
intervenção é de natureza definitivamente subsidiária (limitação da intervenção penal).

Esta limitação, derivaria sempre do princípio jurídico-constitucional da proporcionalidade em sentido


amplo, que faz parte dos princípios inerentes ao Estado de Direito. Uma vez que o direito penal utiliza, com o
arsenal das suas sanções específicas, os meios mais onerosos para os direitos e liberdades das pessoas, ele só
pode intervir nos casos em que todos os outros meios da política social (política jurídica não-penal) se revelem
insuficientes ou inadequados. Quando assim não aconteça, aquela intervenção pode e deve ser acusada de
contrariedade ao princípio da proporcionalidade, sob a forma de violação dos princípios da subsidiariedade e
da proibição em excesso.

Tal sucederá quando, por exemplo, se determine a intervenção penal para a proteção de bens jurídicos que
podem ser suficientemente tutelados pela intervenção dos meios civis (legitimidade ou ilegitimidade de
criminalização do cheque sem provisão - cheque cuja conta não dispõe de fundos para o seu pagamento, cheque
sem cobertura -, quando não constitua um crime de burla, constitui um exemplo instrutivo), pelas sanções do
direito administrativo (entrando aqui toda a controvérsia sobre as fronteiras que devem separar o direito penal
do direito de mera ordenação social ou da contraordenações ou do direito disciplinar).

O mesmo sucederá sempre que se demonstre a inadequação das sanções penais para prevenção de
determinados ilícitos, nomeadamente sempre que a criminalização de certos comportamentos seja fator da
prática de muitíssimas mais violações do que as que se revela suscetível de evitar (exemplo: “crimes sem
vítima”, consumo de álcool ou drogas, prostituição, pornografia); caso em que fica próxima a afirmação de que
a prevenção e controlo de tais comportamentos, quando se repute socialmente desejável , deve ser deixada por
inteiro à intervenção de meios não penais de controlo social. Neste sentido afirma-se, em definitivo, que a
função do direito penal - e desta deriva o conceito material de crime - reside na tutela subsidiária (de
ultima ratio) de bens jurídico-penais.

5.2. A questão das imposições constitucionais implícitas de criminalização


Relativamente ao relacionamento material entre direito penal e direito constitucional à relação entre a ordem
axiológica constitucional e a ordem legal dos bens jurídicos, disse-se ter de existir entre as duas ordens uma
relação de implicação, no sentido de que todo o bem jurídico penalmente relevante tem de encontrar uma
referência, expressa ou implícita, na ordem constitucional dos direitos e deveres fundamentais. Mas, em nome
do critério da necessidade e da consequente subsidiariedade da tutela jurídico-penal, a inversa não é
verdadeira: não existem imposições jurídico-constitucionais implícitas de criminalização.

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Onde o legislador constitucional aponte expressamente a necessidade de intervenção penal para tutela de bens
jurídicos determinados, tem o legislador ordinário de seguir esta injunção e criminalizar os comportamentos
respetivos, sob pena de inconstitucionalidade por omissão (embora aqui fique uma larga e incontornável
margem de liberdade à legislação ordinária no que toca ao exato âmbito e à concreta forma da criminalização,
bem como às sanções com que os comportamentos devem ser ameaçados e à sua medida).

Onde não existem tais injunções constitucionais expressas, da existência de um valor jurídico-
constitucionalmente reconhecido como integrante de um direito ou de um dever fundamentais não é legítimo
deduzir sem mais a exigência de criminalização dos comportamentos que o violam, pois não pode ser
ultrapassado o inevitável entreposto constituído pelo critério da necessidade ou da carência da pena.
Critério que em princípio, caberá ao legislador ordinário utilizar e que só em casos gritantes poderá ser jurídico-
constitucionalmente sindicado, nomeadamente por violação eventual do princípio da proporcionalidade em
sentido restrito.

Exemplo: quando o legislador ordinário entendesse sancionar o homicídio doloso apenas com sanções jurídico-
civis; ou quando ele decidisse subverter por completo a ordenação axiológica constitucional, descriminalização
totalmente a lesão de valores pessoais e criminalizando a lesão de valores patrimoniais.

Interrupção voluntária da gravidez: do ponto de vista doutrinal, o TC alemão declarou inconstitucional um puro
método de prazos, com o argumento de que o legislador ordinário não está constitucionalmente autorizado a
renunciar completamente (embora apenas dentro de um certo prazo) à tutela penal de um bem jurídico como
o do produto da conceção. Ele pode apenas “nos casos mais excecionais, quando nomeadamente a proteção
imposta pela Constituição não possa ser alcançada por outra forma, ser obrigado a usar o meio do direito penal
para tutela da vida em desenvolvimento”. Sempre será questão de a competência do legislador ordinário decidir
se uma tal tutela (mesmo no caso de um bem jurídico como o da vida intrauterina ou do produto da conceção)
não será melhor lograda através da restrição do âmbito da criminalização e da sua “compensação” por meios
não penais de política social. O mesmo se dirá do reconhecimento de um direito geral dos cidadãos à segurança
e dos correspondentes deveres de tutela estatal que daquele resultariam.

5.3. O princípio da não-intervenção moderada e o movimento da descriminalização


A restrição da função do direito penal à tutela de bens jurídico-penais e o carácter subsidiário desta tutela em
sintonia com o principio da necessidade, conduzem à justificação de uma proposição político-criminal
fundamental: para um eficaz domínio do fenómeno da criminalidade dentro de cotas socialmente suportáveis,
o Estado e o seu aparelho formalizado de controlo do crime devem intervir o menos possível; e devem intervir
só na medida requerida pelo asseguramento das condições essenciais do.. funcionamento da sociedade. A esta
proposição dá-se o nome de princípio da não-intervenção moderada (corrigindo em parte o princípio da
não-intervenção radical avançada por Schur).

26
Deve-se destacar duas implicações:
1. Do âmbito deste conceito têm de ser expurgados todos os comportamentos que não acarretem lesão
(ou perigo da lesão) para bens jurídicos claramente definidos, ou que, quando a acarretem, possam
razoavelmente ser contidos ou controlados por meios não penais de política jurídica ou mesmo de
política social não jurídica - implicação que está na base do movimento de descriminalização.
2. Processos novos de criminalização (processos de neocriminalização) só devem ser aceites como
legítimos onde novos fenómenos sociais, anteriormente inexistentes, raros, revelem agora a emergência
de novos bens jurídicos para cuja proteção se torna indispensável fazer intervir a tutela penal em
detrimento de um paulatino desenvolvimento de estratégias não criminais de controlo social.

[Carol]
A restrição da função do direito penal à tutela de bens jurídico-penais, por um lado, e o caracter subsidiário
desta tutela em sintonia com o principio da necessidade, por outro, conduzem à justificação de um propósito
politico-criminal fundamental: a de que para um eficaz domínio do fenómeno da criminalidade, o estado e o seu
aparelho formalizado de controlo de crime devem intervir o menos possível, e devem intervir só na precisa
medida requerida pelo asseguramento das condições essenciais de funcionamento da sociedade. Dá-se a esta
proposição o nome de princípio da não intervenção moderada.

II – A definição social de crime


Ficaram expostas as notas essenciais constitutivas do conceito material de crime – daquilo que “em si” constitui
crime.

A realidade do crime, porém, não resulta apenas do seu conceito, ainda que material, mas depende também da
construção social daquela realidade. Ora, a realidade do crime não deriva exclusivamente da qualidade
“ontológica” de certos comportamentos, mas da combinação de determinadas qualidades materiais do
comportamento com o processo de reação social àquele, conducente à estigmatização dos agentes respetivos
como criminosos.

A verdade, é que o comportamento criminal tem duas componentes irrenunciáveis – a do comportamento em


si e a da sua definição como criminal, pelo que qualquer doutrina que a ele se dirija, não pode esquecer nenhuma
delas – na síntese final tem de entrar o comportamento e a sua definição social – por outras palavras: o conceito
material de crime tem de ser completado pela referencia aos processos sociais de seleção determinantes em
ultimo termo daquilo que é concreta e realmente (e também juridicamente) tratado como crime.

III – A crise atual do “direito penal do bem jurídico”


1. O paradigma penal das sociedades democráticas contemporâneas, o direito penal do bem jurídico e
os desafios da “sociedade de risco”
O paradigma penal das sociedades democráticas do nosso tempo, consubstancia-se na função exclusiva do
direito penal de tutela subsidiária de bens jurídico-penais. No momento presente, começa a questionar-se se
um tal paradigma terá capacidade para persistir, ou se, pelo contrário, existem sinais da necessidade de uma

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nova revolução nas conceções básicas, nomeadamente e sobretudo no que toca a compreensão da função do
direito penal no sistema social, e, por conseguinte, à manutenção, alteração, ou superação do modelo do direito
penal do bem jurídico.
Esta questão está ligada ao conceito da “sociedade de risco”, assim designada pelo sociólogo Ulrich Beck, ligada
às problemáticas da pós-modernidade e da globalização. Esta ideia suscita ao direito penal problemas novos, a
pôr em evidencia uma transformação radical da sociedade em que vivemos.

Anuncia o fim de uma sociedade industrial em que os riscos para a existência, individual, e comunitária
provinham de acontecimentos naturais (para a tutela dos quais o direito penal é incompetente), ou derivavam
de ações humanas próximas, e definidas, para a contenção das quais era bastante a tutela dispensada a clássicos
bens jurídicos como: a vida, a saúde, propriedade, património, em suma, o catálogo próprio de um direito penal
liberal e extremamente antropocêntrico.

Anuncia ainda, a substituição desta sociedade por uma outra exasperadamente tecnológica, massificada e
global, onde a ação humana, se revela suscetível de produzir riscos globais ou tendendo para tal, suscetíveis de
serem produzidos em tempo e em lugar largamente distanciados da ação que os originou, e poderem ter como
consequência, pura e simplesmente, a extinção da vida.

Para a tutela destes riscos não está preparado o direito penal de vertente liberal – não o está desde logo no
plano da legitimação substancial, fundamentado em princípios politico-criminais como o da função do direito
penal exclusivamente protetora de bens jurídicos, o da intervenção mínima, e de última ratio. Manter estes
princípios significa dizer que ao direito penal não pertence nenhum papel na proteção das gerações futuras –
tal como demonstram os temas dos atentados ao ambiente, da desregulação da atividade produtiva, e da
manipulação genética.

A adequação do direito penal à sociedade de risco, implica por isso uma nova política criminal, que abandone a
função minimalista de tutela de bens jurídicos e aceite uma função promocional e propulsora de valores
orientadores da ação humana na vida comunitária.

Ora, a impreparação do direito penal para a contenção dos novos riscos, revela-se não apenas no plano da
legitimação substancial, mas ainda no plano que contende com o próprio modelo de racionalidade. Este modelo
parece revelar-se insuficiente ou inadequado, desde logo no que toca ao modelo de imputação objetiva e
subjetiva que lhe está na base.

Fica-se a um passo de preconizar o aparecimento de uma nova dogmática jurídico-penal disposta a abandonar
e substituir os princípios ate aqui tao essenciais como os da individualização da responsabilidade penal, e a
considerar a nova luz, questões como as da causalidade, imputação objetiva, do erro, e da culpa, da autoria. E,
assim, a um passo de se propugnar o abandono do direito penal do bem jurídico, ou pelo menos, a sua
complementação por um outro modelo capaz de responder as novas exigências assinaladas.

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A ciência do direito penal começa a reagir a estas dificuldades, reconhecendo que não pode ficar à espera que
se verifiquem resultados lesivos das condições de vida da humanidade – lesões ecológicas, genéticas, económico
financeiras, terroristas – para só então fazer intervir o arsenal punitivo. Ora, este deverá ser chamado, de modo
a que seja minimamente eficaz, logo relativamente a qualquer contributo significativo para o potencial perigo,
do qual o resultado lesivo irá, num futuro porventura longínquo, derivar.

Problema que se agrava quando as condutas perigosas têm lugar no seio de empresas, grupos ou equipas, com
complexa divisão de tarefas e a suspeita da sua prática recair sobre um grande e indeterminável numero de
pessoas, cuja interação, é fonte de perigo que, por sua vez, contribui para a verificação de um risco global.
Particularmente aqui, perante aquilo que se vai chamando já o fenómeno atual da irresponsabilidade
organizada, o modelo tradicional da imputação jurídico-penal parece falhar rotundamente; como também
quando se persista em manter um modelo puramente individual de responsabilidade penal. Por isso, a ciência
do direito penal começa a perguntar-se por possíveis soluções.

2. Tentativas de resolução do problema


2.1. A conceção antropocêntrica (monista-pessoal) do bem jurídico-penal
Perante as dificuldades apontadas, traduzidas nas aporias que a tutela dos novos riscos parece apresentar ao
direito penal, há quem defenda que o Direito penal não pode, nem deve arvorar-se em instrumento de tutela
dos novos e grandes riscos próprios da sociedade presente, e futura. Pelo contrario, sustentam que há que
guardar o património ideológico do iluminismo penal, reservando ao direito penal o seu âmbito clássico de
tutela (os direitos fundamentais dos indivíduos), e os seus critérios de aplicação. E, inclusivamente reforçar a
ideia de que se está perante um autêntico bem jurídico-penal somente quando ele se possa conceber como
expressão de um interesse do individuo - pensamento este que surge como denominador comum da chamada
escola de Frankfurt.

Deste ponto de vista, para proteção perante os ricos da sociedade pós-industrial, só pode ser pedido auxílio a
outros ramos de direito (não penal) e, porventura sobretudo, a meios não jurídicos de controlo social.
Outra conceção, como a que preside às tentativas de estabelecimento de um “direito penal de risco”, conduziria
a uma excessiva antecipação de tutela, através da eleição de bens jurídicos vagos, incapazes de cumprir a função
critica que lhe é reconhecida, e suporte de um aumento excessivo de crimes de perigo abstrato.

Pode por isso, afirmar Hassemer que são imensos os riscos de um “direito penal de risco” para a função de
garantia do direito penal. Ao aceitar-se generosamente os bens jurídicos universais, corre-se o risco de aceitar
o direito não já como ultima ratio, mas como prima ou mesmo sola ratio da proteção de bens jurídicos.

2.2. A funcionalização intensificada da tutela penal: o abandono do “direito penal do bem jurídico” em
favor de um “direito penal de risco”
No outro extremo se perfilam aqueles que preconizam a criação de um direito penal por inteiro funcionalizado
às exigências próprias da sociedade do risco. E, que implicariam, antes de tudo: uma alteração do modo próprio
de produção legislativa em matéria penal – retirando aos Parlamentos a reserva de competência, para a atribuir

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aos Executivos; depois, uma antecipação decidida da tutela penal para os estados prévios, da lesão de interesses
socialmente relevantes, mesmo correndo o risco de assim se perder a ligação, percetível aos destinatários das
normas de proibição, entre a conduta proibida e o bem jurídico tutelado; enfim, e em consequência, alterações
dogmáticas radicais no sentido da atenuação ou mesmo do abandono de princípios básicos que presidem à
individualização da responsabilidade penal, à imputação objetiva e subjetiva, à autoria, entre outros.

Conduzindo a um abandono puro e simples do direito penal do bem jurídico e da sua base de legitimação, agora
procurada na máxima eficiência do sistema em matéria, segundo a justa analise de Pedro Caeiro, “de redução
dos danos globais inerentes ao crime através de uma adequada redistribuição dos riscos tanto do plano da
prevenção, como no plano da repressão”.

2.3. O direito penal de tutela de “relações da vida como tais”


Merecedora de particular atenção se afigura a posição de Stratenwerth no problema que nos ocupa. Este autor
imputa a situação problemática ao domínio ilimitado na sociedade atual de uma “razão técnico-instrumental
moderna” – reconhecendo-se embora os benefícios que a tecnociência permitiu, é cada vez maior a consciência
dos perigos e ameaças que desabam sobre a humanidade e põem em perigo a própria sobrevivência do planeta.

Ora, Stratenwerth, aceita e proclama, a função irrenunciável que cabe ao direito penal na tutela das gerações
futuras. Função relativamente a qual parece, porém, impossível falar-se em tutela de bens jurídico-penais na
aceção tradicional e ainda hoje dominante.

A circunstância de uma tal tutela das gerações futuras perante ricos globais, implica o afastamento de um direito
penal do resultado, para se tornar em um direito penal do comportamento, através do qual se penalizem puras
relações de vida como tais. Por outras palavras, o desempenho da função penal passa pela tutela de “normas de
comportamento”, afastando-se do dano e mesmo do perigo de dano, pois de perigo só pode falar-se com
referência a bens jurídicos concretos. Justamente, a categoria do bem jurídico-penal, enquanto figura ligada à
tutela de interesses individuais e concretos, falha completamente nos crimes referidos ao futuro.

Uma tutela eficaz das potencias vítimas do futuro, deve ser prosseguida também pelo direito penal, mas deve
sê-lo, não tanto através da estrutura típica dos crimes de perigo, nomeadamente de perigo abstrato - referida à
proteção de bens jurídicos - mas através de normas que assegurem o controlo do comportamento. A categoria
de bem jurídico, deve por isso, pelo menos nestes casos, ser abandonada e substituída pela tutela direta de
relações ou contextos de vida enquanto tais.

2.4. Posições intermédias:


2.4.1. A “expansão do direito penal”
Perante as posições extremas que imputamos, por um lado à “escola de Frankfurt” e por outro lado, ao “direito
penal do risco”, vêm surgindo diferentes vias intermédias. Uma delas, que corre na doutrina sob a epígrafe da
“expansão do direito penal” – pretende responder ao problema através de uma política e de uma dogmática
criminais dualistas.

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Deve, segundo esta doutrina, manter-se a existência de um cerne do direito penal, relativamente ao qual valham,
imodificados, os princípios do direito penal clássico, dirigido a proteção subsidiaria de bens jurídicos
individuais, assente na individualização da responsabilidade e consequentemente na ação, na imputação
objetiva e subjetiva, na culpa e na autoria também puramente individuais.

Mas, deve existir também, uma periferia jurídico-penal, especificamente dirigida à proteção contra os grades e
novos riscos, onde aqueles princípios se encontram amortecidos ou mesmo transformados, dando lugar a
outros princípios, de “flexibilização controlada”, assentes na proteção antecipada de interesses coletivos mais
ou menos indeterminados, sem espaço, nem tempo, nem autores, nem vitimas, definidos ou definíveis, e, por
conseguinte, numa palavra, de “menor intensidade garantística”. Princípios estes ainda formalmente
pertencentes ao direito penal, embora substancialmente aparentados com os princípios do direito
sancionatório de caracter administrativo. Com a reserva absoluta, em todo o caso, de que todos os
comportamentos ameaçados com penas privativas de liberdades deveriam ser imputados, por razões claras de
defesa dos direitos, liberdades e garantias, ao núcleo duro (clássico) do direito penal, não à sua flexível periferia.

2.4.2. Os bens jurídicos dotados de “referente pessoal”


Uma outra conceção intermedia, muito difundida, ainda próxima dos pressupostos da escola de Frankfurt,
reconhece que nem toda a intervenção do direito penal dos novos riscos é ilegítima ou tem de reconduzir a
substituição da categoria do bem jurídico por um conjunto de perigos indeterminados.
Neste domínio, é ainda possível comprovar a existência de bens jurídicos, pessoais e patrimoniais, possuidores
de novas características, mas dotados de um núcleo essencial capaz de atuar como padrão critico da
incriminação. Trata-se de bens que têm ainda um referente pessoal e por isso, se mostram capazes de conceder
materialidade à ideia de dano e de ofensividade: também um ataque a estes bens jurídico-penais há de ser
experimentado como uma perda ou dano pessoal, e não como lesão de um mero interesse funcional. Muito
próximo de uma conceção deste tipo, se situa entre nos, Augusto Silva Dias, para quem um bem jurídico-penal
há de possuir necessariamente um referente pessoal.

Assim, se alcança uma conceção dualista de bens jurídico-penais: os bens jurídicos individuais, por um lado, e
por outro os bens jurídicos supraindividuais dotados de referente pessoal e de base antropocêntrica, na media
em que, apesar de não serem de uso exclusivo de um individuo, são suscetíveis de serem fruídos
individualmente (ex.: o ambiente). Do domínio penal deveria excluir-se, por isso, a lesão dos interesses
funcionais pela ausência de algo que possa ser intersubjetivamente experimentado como uma perda ou dano
pessoal: é a incapacidade de ser consumível individualmente, e consequentemente, a ausência de referência
pessoal, que transparece nos chamados bens coletivos, e que impediriam a sua tutela penal.

2.4.3. Os bens jurídico-penais “instrumentais”


Partindo da noção de bem jurídico-penal como portador de valores essenciais à existência humana, há autores
que, ao lado dos valores essenciais como a vida, a integridade física, a liberdade e a propriedade, colocam outros
“valores-meios ou instrumentos”, sustentáculos da efetivação daqueles valores essenciais.

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Tratar-se-ia neles de bens jurídicos cujo domínio de eleição se situa as mais das vezes no direito de mera
ordenação social, mas que, tendo em conta o seu valor instrumental na proteção das condições essenciais
necessárias à existência humana, assumiriam relevância penal, constituindo como que uma técnica de tutela
antecipada dos “valores-fins” essenciais.

Uma solução deste teor é proposta entre nós por Almeida Costa. Este autor toma por base a contraposição entre
os bens que possuem um “valor em si” e os que têm um “valor deduzido” ou “emprestado”.

Longe de integrarem um fim em si mesmos, aqueles valores respeitam um simples fim-meio, cujo significado se
esgota no estabelecimento de uma proteção mediata ou, de uma guarda avançada em relação à defesa de outros
bens jurídicos fundamentais. Os delitos que ofendem estes bens valores-meios não seriam simples crimes de
perigo, uma vez que se trata neles de bens jurídico-criminais independentes: ao contrario do que acontece nos
crimes de perigo, onde este integra uma nota caracterizadora da conduta do agente, o “perigo” converte-se
agora no elemento fundamentador e constitutivo do próprio bem jurídico.

[Adriana]
3. A subsistência do modelo do direito penal do bem jurídico na sociedade do risco
De um ponto de vista político-criminal, a questão básica reside em saber se a introdução do topos da sociedade
do risco no direito penal tem por força significar o fim da proteção de bens jurídicos. Ora, para se
circunscrever exatamente, logo à partida, o âmbito problemático, deverá afirmar-se que reconhecer como
função exclusiva do direito penal a tutela subsidiária de bens jurídicos não implica limitar a intervenção da
sanção criminal apenas aos casos em que se verifique uma efetiva lesão do bem jurídico. De acordo com esta
ideia, surge-nos a punição da tentativa, também chamada entre nós de “tentativa impossível” em que, por
definição, não chega a lesar-se o objeto da ação, isto é, uma punição que em nada contradiz a função penal da
tutela dos bens jurídicos. Vem atestá-lo, também, a circunstância de muitas vezes, o legislador antecipar a tutela
penal, criando crimes de perigo cuja realização típica não pressupõe a lesão, mas antes a mera colocação em
perigo do bem jurídico protegido.

É assim nos crimes de perigo concreto, em que o perigo surge como elemento do tipo de ilícito (ex.: art.138º);
mas é-o igualmente nos crimes de perigo abstrato, em que o perigo não constitui elemento do tipo, mas apenas
motivo da proibição penal (ex.: art.292º).
A “antecipação” da tutela penal justifica-se e é legítima, como muito bem formulou e decidiu o nosso TC, desde
que com ela não se perca de vista “a função de proteção dos bens jurídicos que constitui o fundamento legitimador
de qualquer sistema jurídico- penal, característico de um Estado de direito”. Neste sentido e nesta medida, a
punição da tentativa, como dos crimes de perigo, está ainda ao serviço da tutela de bens jurídicos.
Apesar disto, deve questionar-se diretamente: constituirá a tutela dos grandes e novos riscos da sociedade pós-
industrial o fim do modelo do direito penal do bem jurídico?

32
3.1 Para uma análise das conceções expostas
Sem dúvida que sim. Contudo, mesmo para além da questão mais funda que suscita- a questão da legitimação, a
cujo entendimento iluminista importa guardar fidelidade- o que nela avulta é a verdadeira inimizade pelo
axioma anto-antropológico do direito penal e por uma ordem axiológica que daí por força há-de resultar. Nem a
“eficiência”, descarnada daquele axioma, pode constituir base de legitimação democrática; nem pode aceitar-se
uma revolução do paradigma penal que passe por pôr em perigo a defesa consistente dos direitos humanos, o
pluralismo ideológico e axiológico, a secularização. Por isso deve manter-se a recusa de qualquer conceção penal
baseada na extensão da criminalização, que transforme o direito penal em instrumento diário de governo da
sociedade e em promotor ou propulsor de fins de oura política estadual.

Mas um direito penal do bem jurídico terá igualmente de ser abandonado na sociedade do risco se se considerar
que, para que o bem jurídico cumpra a função de critério legitimador e de padrão crítico da incriminação, se
torna indispensável guardar um seu caráter extremadamente antropocêntrico, que dele só permite falar
quando estão em causa interesses reais, tangíveis e, portanto, também atuais do indivíduo. Para além de que
esta via de resolução da crise não parece dar o lugar devido à necessidade de superação do dogma da razão
técnico-instrumental, ela minimiza em medida inaceitável, a função do direito penal no corpo social. Para
controlo das fontes dos novos riscos tornam-se indispensáveis normas de comportamento cuja violação, nos
casos mais graves, exige uma punição penal. Exemplos como o fomento de formas de autoproteção da vítima
ou das forças autorreguladoras do mercado afiguram-se como expectativas inconscientes.

Hipóteses diversificadas bem presentes nos dias de hoje como é o caso da danificação da camada de ozono, dos
lixos tóxicos, etc., mostram como a punição dos agentes responsáveis não pode bastar-se com sanções civis ou
mesmo administrativas, ainda que intensificadas. Uma tal solução significaria pôr o princípio jurídico-penal
de subsidiariedade e de ultima ratio de pernas para o ar, ao subtrair à tutela e às sanções penais
precisamente as condutas tão gravosas que põem do mesmo passo em causa a vida planetária, a dignidade das
pessoas e a solidariedade com as outras pessoas, com as que existem e com as que hão-de nascer.

Igualmente terá de ser abandonado o direito penal do bem jurídico quando se defenda que bens jurídicos da
comunidade só podem ser reconhecidos se e na medida em que eles se constituam em meros mediadores
também com bens jurídicos individuais. Claro que também os bens jurídicos coletivos só existem por causa do
Homem. Mas isto é uma coisa, outra é pretender que, entre os supraindividuais, só possam ser erigidos em bens
jurídicos aqueles cuja razão de tutela seja em último termo reconduzível à proteção de bens jurídicos
individuais e que, portanto, se encontrem “dotados de referente pessoal”, possuam um “núcleo personalizável”
ou sejam “unicamente… dedutíveis a partir de bens jurídicos individuais”: com a inevitável consequência de que
tais bens jurídicos estariam sempre hierarquicamente subordinados aos bens jurídicos individuais, sendo a sua
violação, por princípio, menos gravosa.

No seio do direito penal, deve distinguir-se o direito penal clássico, primário ou de justiça e o direito penal
secundário ou administrativo, este dotado de alguns princípios político-criminais e dogmáticos autónomos. Mas
um tal direito penal administrativo não tem o que quer que seja a ver com a contenção dos mega-riscos da

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sociedade pós-industrial, antes sim com os problemas económico-sociais típicos da sociedade industrial. Seriam
por esta via, porventura, flanqueadas algumas das dificuldades dogmáticas que se suscitam quando ao direito
penal se queira assinalar uma função de contenção dos mega-riscos que ameaçam a humanidade. Mas persistiria
a contradição de impedir a aplicação das penas mais graves e de maior eficácia preventiva precisamente às
condutas dotadas de maior potencial de risco para os bens mais importantes da humanidade. Além de que,
quando pensada para a sociedade do risco, a sugestão agora em análise acaba por trazer para o direito penal
dois paradigmas diferentes e incompatíveis, que a breve prazo haverá de conduzir ao domínio de um sobre
o outro quando não ao esmagamento de um pelo outro.

3.2. Um princípio de solução: os “bens jurídicos coletivos”


Se pretender conferir-se ao direito penal uma função de tutela perante os mega-riscos ameaçadores da
subsistência da humanidade, ainda aí é preciso assentar em que o problema jurídico-penal é modestamente um
problema de ordenação social; em concreto, o de saber como é possível promover ou conservar os bens públicos
relativos aos fundamentos naturais da vida perante, sobretudo, a natureza trágica da relação entre o agente
racional em seu próprio proveito e os bens coletivos. Podendo, aliás, convocar-se a este respeito a noção de bem
jurídico instrumental, bem jurídico-meio ou bem jurídico de perigo, entre nós trabalhada por António Manuel
Almeida Costa e que aplica a crimes como os de corrupção e de moeda falsa. Em todos estes domínios a
criminalização é legítima (porque tais bens encontram refração legitimadora expressa na ordem axiológica
constitucional relativa aos direitos sociais, económicos, culturais e ideológicos) e pode afigurar-se como
necessária (porque será razoável esperar que a punibilidade se revele suscetível de influenciar o cálculo
vantagem/prejuízo de modo a promover a obediência à norma).

Os bens jurídicos coletivos devem, por conseguinte, ser aceites como autênticos bens jurídicos. O caráter
coletivo do bem jurídico não exclui a existência de interesses individuais que com ele convergem: se todos os
membros da comunidade se veem prejudicados por condutas pesadamente poluidoras, por exemplo, cada um
deles não deixa, individualmente, de sê-lo também e de ter um interesse legítimo na preservação das condições
vitais. Mas, por outro lado se, por exemplo, uma descarga petrolífera causa a morte de milhares de aves
marinhas e leva, inclusivamente, à extinção de uma espécie rara das mesmas, também aí se verifica a lesão de
um bem jurídico coletivo merecedor e carente de tutela penal- as aves referidas, se bem que não “utilizáveis”
por quem quer que seja, constituem um património de todos.
A verdadeira característica de um bem jurídico coletivo ou universal reside pois em que ele pode ser gozado
por todos e por cada um, sem que ninguém deva poder ficar excluído desse gozo: nesta possibilidade de gozo
reside o interesse individual legítimo na integridade do bem jurídico coletivo. A relevância autónoma dos bens
jurídicos coletivos provirá precisamente da potencial multiplicação indeterminada de interesses de toda e
qualquer pessoa, se bem que não individualizáveis em concreto. A circunstância de o direito penal ser chamado
a tutelá-los não impõe uma mudança ou qualquer abrandamento na proposição penal básica segundo a qual é
função exclusiva do direito penal a tutela subsidiária de bens jurídico-penais; porque também neste âmbito é
de verdadeiros bens jurídico-penais que se trata.

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Resta a objeção de que a multiplicidade de condutas perigosas para a manutenção das condições gerais da vida,
na complexidade que podem chegar a assumir e na constante modificação a que, por força da evolução
tecnológica, estão submetidas, conduz a que o delito coletivo perca a sua determinabilidade numa medida
insuportável face ao princípio da legalidade e que o bem jurídico por aquele protegido se torne imperscrutável
para os seus destinatários. Foi isto que terá levado Stratenwerth a preconizar a substituição da função de
proteção de bens jurídicos pela tutela direta de “relações da vida como tais”. O que significaria, no fundo, um
regresso a um direito penal protetor da moral ou de uma certa moral e, assim, a um pequeno passo de se tornar
em promotor ou propulsor de fins puramente ideológicos.

Não cremos que tenha de ser assim. Em conta tem de se ter que o conteúdo integral do ilícito dos delitos
coletivos terá frequentemente de se exprimir em função de normas extrapenais, nomeadamente
administrativas; terá de se encontrar sujeito a uma cláusula de acessoriedade administrativa. Esta suscita à
dogmática jurídica-penal um conjunto de problemas para os quais ainda mal se divisam soluções consensuais,
mas estas dificuldades têm de ser assumidas.

Quanto à questão da construção típica dos delitos coletivos, é igualmente verdade que, seja qual for a
arquitetura típica que acabe por ser eleita, ela não pode eliminar a aludida distância entre condutas na sua
singularidade insignificantes e lesões certas ou muito prováveis de bens jurídicos coletivos. Isto só significa,
porém, que em sede de construção típica, estes delitos têm uma natureza matéria análoga à dos delitos de perigo
abstrato, cuja legitimidade deve aceitar-se, suposto que se encontrem respeitados em espécie os parâmetros
mínimos de determinabilidade do tipo de ilícito e a referência ao bem jurídico que em última instância se visa
proteger.

Se é certo que muitas das ofensas coletivas jurídico-penalmente relevantes terão de ser consideradas no quadro
dos tipos chamados aditivos ou acumulativos, a sua punição só se revelará legítima se as condutas que venham
somar-se às do agente e contribuem assim para a lesão forem, mais que possíveis, indubitavelmente previsíveis
e muito prováveis, para não dizer certas. A partir daqui é ao legislador ordinário e só a ele que, dentro dos
referidos parâmetros constitucionais, pertence ponderar e decidir a questão político-legislativa de saber se,
para uma tutela dos bens jurídicos coletivos, minimamente eficaz, se torna necessário punir comportamentos
em razão da sua provável acumulação e quais deles devem ser puníveis.
Entre nós, veio Augusto Silva Dias insistir na invalidade e consequente inconstitucionalidade material da
incriminação e punição de contributos acumulativos. E isto porque, as incriminações acumulativas radicariam
inevitavelmente num puro contexto sistémico-funcional, conducente por um lado a uma inválida
administrativização do direito penal, por outro a uma flexibilização das categoriais centrais da imputação,
nomeadamente a violações dos princípios da ofensividade e da culpa.

Discordamos desta alegação, se bem que no presente contexto não tenhamos ainda de nos ocupar de
considerações dogmáticas, mas unicamente do discurso legitimador subjacente. O que reafirmamos é por isso
tão-só a inteira legitimação do legislador para, nomeadamente face à necessidade coletiva de contenção de
mega-riscos globais, criar, se indispensável, incriminações acumulativas, protetoras de bens jurídicos coletivos.

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Por exemplo, o legislador, baseado nos conhecimentos científicos disponíveis, conclui que a utilização maciça de
produtos (mesmo que um simples perfume) sob a forma de spray pode aumentar os danos da camada de ozono,
está absolutamente legitimado para criminalizar o fabrico, a venda, a utilização, etc., de quaisquer produtos sob
aquela forma.

Conclusão
Nesta medida, acabamos por nos aproximar de certo modo, é verdade, da ideia de Stratenwerth segundo a qual
a tutela dos grandes riscos e das gerações futuras pode, em certos casos, passar pela assunção de um direito
penal do comportamento em que são penalizadas e punidas puras relações da vida como tais. Não se trata com
isto, porém, de uma alternativa ao direito penal do bem jurídico: ainda aqui a punição imediata de certas
espécies de comportamentos é feita em nome da tutela de bens jurídicos coletivos e só nesta medida se
encontra legitimada. Desta maneira se manterá a fidelidade possível ao paradigma jurídico-penal iluminista que
nos acompanha e se espera possa continuar a ser fonte de desenvolvimento e de progresso; e possa continuar
assim a assumir o seu papel insubstituível na contenção dos mega-riscos da sociedade pós-industrial e na função
tutelar dos interesses também das gerações futuras.

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7º Capítulo – Os Limites do Direito Penal
Dani – páginas 155-176

Da função do direito penal derivam os Limites Materiais do Direito Penal; limites estes que ganham particular
relevo sob perspetivas: as jurídico-constitucionais (dizendo respeito ao modo de produção de leis); as jurídico-
processuais e outras (que são o produto das especiais exigências da indispensável garantia dos cidadãos em
matéria penal).

Contudo, estes mesmos limites deparam-se com graves dificuldades em zonas penumbrosas de distinção,
levando a que o legislador se sirva de “penas” que não assumem todavia o caráter de penas não criminais,
derivando das circunstâncias de envolvência de outros ramos do direito que não o penal, como por exemplo, o
direito administrativo, o direito disciplinar e o direito processual;

Assim verificamos que a natureza das consequências jurídicas, seja esta derivada do seu fundamento ou das
suas finalidades, terá que recorrer-se à fronteira da delimitação.

I – Direito Penal e direito de mera ordenação social (direito das contraordenações): penas criminais e
coimas
1. Direito Penal administrativo ao Direito de mera ordenação social
Historicamente: A complexa organização da ordem jurídica dos Estados contemporâneos ultrapassa o âmbito
das normas respeitante aos fundamentos ético-sociais da vida em comunidade, que contribui para o significado
crescente da Ordem Administrativa.

No tempo do Estado de Policia iluminista surgiu então uma ampla esfera da Administração e um profuso
ordenamento policial mas sem subordinação a preceitos jurídicos; contudo, com a Revolução Francesa a
Administração juridifica-se e submete-se a legalidade, simultaneamente à atividade policial que se concentra
na proteção antecipadas de perigos indeterminados para a consciência dos direitos subjetivos (direitos estes
que demarcavam a função protetiva do direito penal) do cidadão.

Surge então pela necessidade de enquadramento jurídico das ofensas ao exercício da referida atividade policial
da administração, um conceito que o traduzisse, a Contravenção.

Após as duas grandes guerras as coisas alteram-se um pouco, ganhando e perdendo relevância certos e
determinados pontos que anteriormente estavam em questão; onde o legislador se foi-se deixando seduzir pela
ideia de pôr o aparato das sanções criminais ao serviço dos mais diversos fins de politica social, dando enfâse
ao fenómenos da hiper-criminalização e ao surgimento daquilo que se chamou Direito Penal Administrativo.

Tal situação não poderia persistir, não à luz de uma política criminal, como a dos nossos dias, comandada pelo
movimento da descriminalização. A consequência foi, no âmbito complexo daquilo que se denomina de Direito
Penal Administrativo, de se fazer uma profunda distinção consoante as condutas por ele proibidas – caso essas

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condutas se mantivessem dentro do domínio do direito penal, como constitutivas do que veio a ser chamado de
direito penal secundário; ou caso em que condutas foram atiradas para fora do direito penal e consideradas
constitutivas de um ilícito administrativo.

Assim, deste modo, surgiram as Contraordenações que no seu conjunto formavam, o que se passou a chamar de
Direito (administrativo, e não penal!) de Mera Ordenação Social e que coincidira com o cariz assumido pela
velha categoria (penal) das Contravenções. Assim, a história das contravenções jurídico-penais chegava ao fim,
com a substituição destas pela categoria jurídico-administrativa das Contraordenações.

A 1º consagração legislativa desta conceção teve lugar na República Federal Alemã, pós 2º GM, em 1952 com
Lei das Contra-Ordenações; assim se deu valor aos estudos de Schmidt no sentido da criação da Contraordenação
como uma categoria que visaria a satisfação de 3 objetivos: (a. Exigência de retirar do quadro do direito penal
um vasto número de infrações de nula ou duvidosa relevância ético-social, remetendo-os para o quadro do
direito administrativo; b. a necessidade de que essas mesmas infrações fossem ameaçadas com meras
“advertências” sociais como sanções ordenativas e coimas e nunca com penas criminais, apenas e somente com
caráter unicamente pecuniário; c. permissão de aplicação dessas mesmas sanções pelos agentes administrativos
encarregados de fiscalização e controlo dessas infrações;). Contudo, este modelo alemão das contraordenações
pouco tempo durou.

Entre nós, foi então pela 1º vez consagrado o ilícito de mera ordenação social no DL 232/79, de 14-7. Contudo,
após reformulações e alterações do mesmo, foi este DL revogado e substituído pelo DL 433/82, de 27-10, que
instituiu um novo regime geral de direito de mera ordenação social e do seu respetivo processo. Sendo também,
posteriormente este diploma, em pontos pouco significativos, pelo DL 356/89,de 17-10, depois por DL 244/95,
de 14-9 e pela L 109/2001, de 24-12; a reformulação destes últimos que pretende cobrir -se a necessidade de
uma mais consistente defesa dos direitos e garantias dos arguidos, que lamentavelmente se aproxima de uma
“contra revolução contraordenacional” com surgir do regresso aos tempos passados do modelo das
contravenções.

Importa assim assinalar de uma perspetiva politico-criminal que a persistência da categoria penal das
contravenções a par do ilícito de mera ordenação social legalmente institucionalizado é contraditório: ou um
comportamento possui dignidade punitiva e deve constituir crime, pertença este ao direito penal primário ou
secundário; ou não possui e deve ser descriminalizado e passar, se for casso disso, a constituir uma
contraordenação punível com uma coima.

No entanto, a solução encontrada pelo legislador, que ainda hoje subsiste, desde 1982, pode ser
justificada/explicada por ter tido o legislador receado os efeitos práticos nocivos que poderiam ligar-se a uma
global e automática transformação da multidão de contravenções então ainda vigentes em contraordenações.
(não podendo nunca ser total essa mesma conversão, pois as penas de prisão não poderiam (nem deveriam) ser
automaticamente convertidas em contraordenações.
Então resulta daqui para o Legislador português a sujeição ao cumprimento de 2 condições:

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1º. Não criar mais nenhuma contravenção, remetendo a totalidade das infrações criadas (1) ou para o
domínio dos crimes e do Direito Penal primário ou secundário; (2) ou para o domínio das
contraordenações e do direito administrativo;
2º. Teria de proceder a um levantamento sistemático das contravenções ainda subsistentes no sistema e,
posteriormente, decidir quais a que deveria revogar e quais as que deveria transformar em
contraordenações ou em crimes;

Assim foi este o levantamento levado a cabo pelo Governo que culminou com a apresentação a Ar de 3 propostas
de lei que tinham como objetivo a conversão em Contraordenações de todas as contravenções e todas as
transgressões ainda subsistentes no ordenamento jurídico português;
− L 28/2006, de 30-6, conversão das transgressões em matéria de infraestruturas rodoviárias onde seja
devido o pagamento de taxas de portagem, em contraordenações;
− L 28/2006, de 4-7, conversão das transgressões ocorridas em matérias de transportes coletivos de
passageiros, em contraordenações;
− L 30/2006, de 11-7, artigo 35º, conversão de todas as restantes contravenções e transgressões previstas
na legislação anterior em vigor, em contraordenações;

Deste modo, o legislador português revogou em definitivo as normas relativas a contravenções, pondo termos
à situação jurídico-criminalmente inadmissível, continuando apenas e somente em vigor, até 2006, as normas
penais e processuais relativas a contravenções.

2. Fundamentos e sentidos da autonomização do Direito de Mera Ordenação Social


Em tempos anteriores, Schmidt apontou como fundamentos da autonomização do direito de mera ordenação
social e qualificação deste como Direito Administrativo, permanecem intocados a este respeito, seja relacionado
com a natureza do ilícito, ou com a natureza das sanção ou até com as especificidades processuais.

No disposto do artigo 1º/1 do DL 433/82 é contraordenação: “todo o facto ilícito e censurável que preencha um
tipo legal no qual comine uma coima” → é então através de um índice conceitual-formal que o Legislador decidiu
operar a distinção entre crimes e coimas. (não implicando que por trás da atuação legislativa não se encontrem
razões de ordem substancial que a comandam e que ela deva respeitar.)

2.1 A Autonomia do material ilícito


Para o Doutor Figueiredo Dias a diferença entre os dois ramos é substancial/material; distinguindo-se na
mediada em que no direito penal lidamos com condutas que em si mesmas são eticamente relevantes - o critério
de distinção é o chamado critério ético-social das condutas que são abrangidas por um e por outro; estão em
causa condutas que em si mesmas são avaliadas como desvaliosas do ponto de vista ético e social; lidamos,
assim, com condutas que são em si mesmas portadoras de um desvalor e, por isso mesmo, a censura ética que
a comunidade lhe dirige está como que “entranhada”.
Por outro lado, no caso do direito das contraordenações, lidamos com condutas acéticas (por exemplo: é errado
passar um sinal vermelho na estrada) – estas condutas só são erradas ou certas porque o legislador assim o dita,

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ou seja, no direito das contraordenações a ilicitude é criada pela proibição penal, é quando o legislador intervém
que aquele comportamento passa a ser visto como algo desvalioso e esta diferença, segundo o Dr. Figueiredo
Dias, faz toda a diferença. A ilicitude contraordenacional não tem uma ligação tão forte ao bem jurídico como
acontece no direito penal.

Assim, no direito penal estamos perante condutas eticamente relevantes em si mesmas e no direito
contraordenacional não e isto faz com que haja consequências (por exemplo, ao nível da culpa). A censura penal
é uma censura ética que atinge a personalidade do agente, é o facto que mostra o que a pessoa é enquanto
pessoa, com a sua personalidade interna. Assim, a sanção penal tem uma finalidade diferente da coima. A coima
tem uma finalidade inibitória, enquanto a pena tem uma finalidade de prevenção geral.

Deste modo, perde-se alguma importância esta mesma questão: “saber se o critério de distinção dentre o ilícito
penal e o ilícito contraordenacional é qualitativo (como defendia Schmidt e Eduardo Correia) ou meramente
quantitativo?”

Postas as coisas como foram colocadas então a distinção é sempre material e não meramente formal, e que o
ilícito de mera ordenação social não tem de ser deduzido a infrações bagatelares, não obsta contudo que o
legislador com base no critério material acrescente em certos casos critérios adicionais de distinção; e ou
critérios de “quantidade”, como quando esta se converte em qualidade, ou seja, quando seja condição de
relevância axiológico-social de uma conduta o facto de que ela assuma então um limiar de gravidade objetiva-
como exemplo: temos o caso da alcoolemia ao volante: Se o condutor circula com um grau de alcoolemia entre 0,5
e 0,8 g/l, constitui juridicamente isto uma contraordenação grave; mas se o condutor circular com grau de
alcoolemia igual ou superior a 1,2g/l a respetiva conduta constitui então crime; Aqui em causa não está
puramente em causa um critério formal-quantitativo; o que está aqui em causa é que a consideração decisiva
de que perante 1,2 g/l ou valor superior de álcool no sangue a conduta torna-se ético-socialmente relevante,
passando a constituir uma ligação à respetiva criminalização, atendendo ao facto de que sofre um salto
“qualitativo”, que neste caso sofre perigosidade social da conduta tal como a censurabilidade ética,
independentemente de qualquer juízo jurídico de ilicitude. (exemplo relevante)

Esta discussão pede ainda uma referência no âmbito constitucional; isto é, não é à Constituição que devemos
pedir que decida em cada caso, de forma imediata e definitiva, se uma certa conduta pode constituir um crime
ou antes um contraordenação; Mas contudo é a esta que devemos recorrer em casos duvidosos, quanto ao
respeito ou não do critério material que haverá de estar na base da decisão da qualificação jurídica daquela
conduta em dúvida.

Os princípios jurídico-constitucionais materiais e orgânicos a que submetem a legislação penal e a legislação


das contraordenações – artigo 165º/1 c) e d)- deste modo, poderia o legislador ordinário, perante uma
qualificação em todos os aspetos injustificada e desconexa, subtrair-se à incidência dos preceitos jurídico-
constitucionais que ao caso devessem caber. Contudo, sempre sob o respeito do critério fundamental de
distinção substantiva entre os dois ilícitos; tornando-se assim possível individualizar, a partir da ordem

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axiológica constitucional, conduta que indiscutivelmente pertencem ao direto penal ou aos direito de mera
ordenação social e sindicar consequentemente, pela via da fiscalização constitucional, uma decisão em contrária
do legislador ordinário.

No que toca à culpa, é discutível a eliminação levada a cabo pelo DL 244/95, segundo a qual a lei “determinará
os casos em que uma contraordenação pode ser imputada independentemente do caráter censurável do facto”;
consideração esta que tem sido criticada como se nos nosso pensamento estivesse que as contraordenações
poderiam ser imputadas independentemente da culpa, e por isso, a título de responsabilidade objetiva- esta é
uma interpretação possível sim, mas não é de todo esta a ideia que se quer transmitir; querendo, deste modo,
transmitir a ideia de que a culpa contraordenacional não pode ser igualada a culpa jurídico-pena;
reconhecemos, assim, que em matéria de culpa contraordenacional a última palavra pertence à ciência do
direito administrativo.

Não significa isto, que estejamos a por em causa o princípio de que a exigência de culpa constitui, obviamente,
uma garantia em princípio válida para todo o domínio sancionatório.

2.2. Autonomia da Sanção


Como já referido, a natureza da sanção das contraordenações, a coima. Trata-se de uma sanção exclusivamente
patrimonial; aqui, no âmbito da coima como sanção podem estar apenas finalidades preventivas. Certo, é que a
coima não é conexa à personalidade do agente, contrariamente ao que acontece com a pena criminal, serve aqui
a coima como mera admonição, como especial advertência ou reprimenda relacionada com a observância de
certas proibições ou imposições legislativas. Deste ponto de vista, pode-se afirmar que as finalidades da coima
são em larga medida estranhas a sentidos positivos de prevenção, mais precisamente em prevenção especial de
socialização.

Há todavia o DL 433/82 artigo 89º-A, acrescentado pelo DL 244/95, que veio permitir que o tribunal possa
ordenar a coima aplicada sena total ou parcialmente substituída por “prestação de trabalho a favor da
comunidade”, sendo a correspondência entre as duas sanções “regulada por legislação especial”- contudo não
passa de uma possibilidade como mera law in the book.

Problemática esta abastante discutível pois poe em risco a racionalidade e a funcionalidade da distinção entre
sanções penais e sanções administrativas.

3. Um Juízo Conclusivo
A distinção entre ilícito penal e ilícito administrativo é clara e fundamentada, adequando-se ao devir histórico,
ideológico, social e político dos 2 ramos de direito desde o séc. XVIII. Mesmo que com a vigência pacifica do
ilícito de mera ordenação social e das contraordenações, não significa isto que desconheçamos os perigos que
se perfilam para aquela evolução e desenvolvimento e que, se avaliarmos de forma concreta e correta a situação,
provêm então 2 fontes:

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1º. Fonte inscrita na “ Escola de Frankfurt”, que radica na tendência de alargar o âmbito de incidência do ilícito
administrativo à custa do ilícito penal; para que sobre o ilícito administrativo recaia a responsabilidade
pós-industrial através da construção de um “direito de intervenção preventivo” dotado de sanções
(administrativas) mais fortes, pesadas e diversificadas relativamente às coimas- contudo a crítica
acentuada prende-se com o facto de se correr sério risco de misturar inextricavelmente (não se pode
desenredar/muito embaraçado) as duas espécies de ilícito, tanto na media em que o ilícito administrativo
passe a assumir a competência exclusiva para sancionar certos ilícitos dignos e carente de penas, como na
medida em que as sanções administrativas aplicáveis deixem de ser coima para constituir, com diferente
etiqueta, verdadeiras penas ou medidas criminais;

2º. Fonte diretamente relacionada com a apetência dos Executivos para a criação de contraordenações e de
coimas em lugar da via correta da criminalização (que são apenas controláveis pelas jurisprudências
constitucionais e não com meios políticos) – deve-se isto ao propósito de utilização de meios sancionatórios
para diuturno (de longa duração) governo da sociedade e de subtração ao sempre custoso e demorado
processo parlamentar de produção legislativa em matéria penal. Se o legislador se deixar então seduzir
pela aplicação de princípios garantísticos especificamente penas à matéria administrativa
(contraordenações) a que são substancialmente estranhos e ainda pela criação de verdadeiras sanções
penais, principais ou acessórias, travestidas de meras sanções contraordenacionais → Então a distinção
entre ilícito penal e ilícito administrativo será de novo seriamente posta em causa e , por via dela, serão os
direitos fundamentais das pessoas que sofrerão grave e irreparável dano.

II – Direito Penal e Direito Disciplinar: penas criminais e sanções (medidas) disciplinares


O direito disciplinar e as respetivas sanções conformam o domínio que, de um ponto de vista mais teorético,
mais se aproxima do direito penal e das penas criminais; diferentemente no que se passava com o direito das
contraordenações; os comportamentos integrantes do ilícito disciplinar não só não podem dizer-se
axiologicamente neutros como tão pouco o podemos afirmá-lo como ilícito constituído também pela proibição.

A essência do ilícito disciplinar e das medidas disciplinares encontra justificação no especial significado e função
que o serviço público (agentes, empregados ou funcionários públicos) assume nos quadros do Estado de Direito
Democrático; é hoje o serviço público perspetivado pelo cumprimento de uma função própria e insubstituível
no processo dinâmico de integração das funções específicas do Estado, estritamente subordinado ao Princípio
da Legalidade da Administração.

Um agente administrativo assume uma série de direitos profissionais a par da imposição de especiais deveres
no interesse da comunidade jurídica, numa relação de dever que serve o interesse público em nome da
integridade e da confiança- se certo comportamento do agente viola esta relação de dever, então a integridade
e a confiança de que o serviço deve gozar, comete sob determinados pressupostos, um ilícito disciplinar e torna
passível de medidas/sanções disciplinares.

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Atendendo agora aos critérios fundamentais de distinção entre ilícito disciplinar e ilícito penal; O ilícito
disciplinar, é contrariamente ao penal, um ilícito interno, exclusivamente virado para o serviço, que se pode
constituir ainda quando com ele não se tenha verificado um abalo da autoridade estadual ou da Administração;
diversamente sucede com o ilícito penal próprio dos “crimes cometidos no exercício de funções públicas” que
se constitui quando se verifica uma lesão ou perigo de lesão daquela autoridade (Estado).

E por aqui pode já afirmar-se fundadamente que o ilícito disciplinar não é simplesmente um minus, mas
verdadeiramente um aliud relativamente ao ilícito penal.

Em segundo lugar, o que fica dito não afeta a conclusão de ser a distinção um âmbito largamente dominado pelo
princípio da subsidiariedade.

Posições e divergências doutrinais não faltaram acerca desta dicotomia entre Direito Disciplinar e Direito Penal
(e as particularidades de ambos). Mas segundo o direito disciplinar vigente português; deve reconhecer-se que
o direito disciplinar é, em maior medida que o direito penal, orientado para o agente, sem esquecer que aqui se
trata de direito sancionatório e que por isso impõe-se que sejam respeitados no essencial os princípios
garantísticos que presidem no direito penal.

Verificamos assim, que não se pode fazer uma contraposição entre os dois ilícitos com base de que o ilícito penal
seria orientado para a lesão do bem jurídico, enquanto o ilícito disciplinar se constituiria através da violação do
dever; mas em definitivo nem o ilícito disciplinar deve considerar-se estranho a função de tutela dos bens
jurídicos; e muito menos, o ilícito penal é exclusivamente fundado no desvalor do resultado, abrangendo
também o desvalor de ação que se verifica em muitos casos na violação de um dever (chamados crimes
específicos).

Os fundamentos apontados de autonomia do ilícito disciplinar e perante o ilícito penal dão todavia que ainda
hoje se possa defender que relativamente ao mesmo facto, a medida disciplinar seja cumulável com a pena
criminal – como sempre a doutrina portuguesa dominante pensou.

III – Direito Penal e Direito Processual: penas criminais e sanções(medidas) de ordenação ou


conformação processual
O Processo Penal é o conjunto de regras que permitem verificar se, em determinada situação concreta, existiu
ou não a prática de um facto previsto e proibido pela Lei Penal. É contudo, ainda mais do que isto, é uma
manifestação do poder sancionatório do Estado- por isto, há várias disposições na CRP atinente ao Processo
Penal.

Por outro lado, o Processo Penal é também o modo de fazer aplicar as penas e as medidas de segurança
previamente prescritas pelo Direito Penal.

Como se relaciona o direito penal e o processo penal?

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As relações entre ambos são de estrita conexão, contudo não podem ser vistas através de uma lógica finalista,
isto é de que o processo penal serve o direito penal; este último só tem sentido se existir o direito processual
penal, e vice-versa. Quer um, quer outro servem objetivos e finalidades próprias, que desenvolvem através de
normas próprias; não impedindo isto, que os dois direitos se relacionem estritamente.

A finalidade do processo penal é então determinar: o facto criminal, o autor do facto criminal e a consequência
jurídica (pena que dever caber ao autor do facto criminal).

Sanções de ordenação processual são medidas aplicadas a comportamentos que violam a ordenação legal-
formal de um processo ou então representam um abuso intolerável de poderes ou de situações processuais;
assim no que diz respeito ao processo penal variadas sanções. Às sanções processuais aqui em questão são em
princípio estranhas a finalidades de prevenção positiva, geral e especial; ficando por isso simplesmente uma
ameaça- uma intimidação- que esgota a sua finalidade na observância das formalidades legais do processo.

IV – Direito Penal e Direito Privado: penas criminais e penas privadas


A distinção entre ilícito civil e o ilícito penal não apresenta particular interesse no contexto das nossas
preocupações, contudo uma breve contextualização e referência revelam utilidade aquando do estudo da nossa
disciplina.

Deste modo, o interesse revela-se no enquadramento de: distinção entre penas criminais e penas privadas.
Todas as sanções não criminais até agora consideradas têm em comum com as sanções criminais a circunstância
de serem sanções jurídico-públicas, nas quais o sancionada se apresenta perante o poder sancionatório numa
relação de sujeição ou de infra ordenação.

Diferentemente, o direito privado conhece sanções análogas as sanções criminais, baseadas numa relação
paritária ou igualitária, são estas, as sanções privadas fundadas na submissão voluntária dos interessados ao
poder sancionatório, por exemplo: a cláusula penal do direito civil: “as partes podem (…) fixar por acordo o
montante de indemnização exigível por (…)”- qualquer que seja a natureza jurídico-civil desta medida
(indemnizatória, punitiva, mista), a sua distinção relativamente às penas criminais torna-se absolutamente
segura por força da circunstância apontada.

A aplicação de penas privadas, em certos casos, em vez de penas criminais não tem parado de crescer nos nossos
tempos; talvez por isso as tentativas de reforma não tenham sido até hoje reconhecidas pelos legisladores.

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TÍTULO III – A LEI PENAL E A SUA APLICAÇÃO

8º CAPÍTULO – O PRINCÍPIO DA LEGALIDADE DA INTERVENÇÃO PENAL


Cici – páginas 177-193
Cat – páginas 194-206

I. O princípio nullum crimen, nulla poena sine lege


1. Função, sentido e fundamentos
O princípio do Estado de Direito conduz a que a proteção dos direitos, liberdades e garantias seja levada a cabo
não apenas através do direito penal, mas também perante o direito penal. Até porque uma eficaz prevenção
do crime, que o direito penal visa em último termo atingir, só pode pretender êxito se à intervenção estadual
forem levantados limites estritos- em nome da defesa dos DLG’s das pessoas- perante a possibilidade de uma
intervenção estadual arbitrária ou excessiva. A esta possibilidade de arbítrio ou de excesso se ocorre
submetendo a intervenção penal a um rigoroso princípio de legalidade, cujo conteúdo essencial se traduz em
que não pode haver crime, nem pena que não resultem de uma lei prévia, escrita, estrita e certa (nullum crimen,
nulla poena sine lege).

NOTA: O princípio da legalidade da intervenção penal encontra a sua consagração, em termos modernos, pela
primeira vez (fruto dos princípios do Iluminismo Penal e, em especial, da doutrina do “contrato social”) na
Constituição de alguns dos Estados Unidos da América no ano de 1776 e encontra a sua expressão definitiva da
Déclaration des droits de l’homme et du citoyen francesa de 1787, daí tendo derivado, pode dizer-se, a totalidade
dos instrumentos internacionais de proteção dos direitos humanos (Declaração Universal dos Direitos do Homem,
Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos) e das
Constituições dos Estados democráticos.

Entre nós, o princípio encontra hoje consagração no art 29º/1 CRP- “ninguém pode ser sentenciado
criminalmente senão em virtude de lei anterior que declare punível a ação ou omissão, nem sofrer medida de
segurança cujos pressupostos não estejam fixados em lei anterior”- aliás, materialmente corresponde ao art 1º CP
(nomeadamente aos seus números 1 e 2).

A norma contida no art 29º/2 CRP confere jurisdição aos tribunais portugueses para conhecerem de certos
crimes contra o direito internacional (os crimina iuris gentium), mesmo que as condutas visadas não sejam
puníveis à luz da lei positiva interna. Necessário é, porém, que se trate de crimes à luz dos “princípios gerais de

A ideia de que o direito internacional pode impor diretamente deveres de natureza penal aos indivíduos
consolidou-se a partir dos julgamentos de Nuremberga e de Tóquio, onde as potências aliadas julgaram e
condenaram membros das forças do Eixo por violações graves do direito internacional (crimes contra a paz e a
Humanidade e crimes de guerra) que não eram punidas pela lei interna desses países.

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direito internacional comummente reconhecidos”- art 8º CRP- e a punição só pode ter lugar “nos limites da lei
interna”, que define os termos do processo e as sanções aplicáveis.
Deste modo, no art 29º/2 CRP parece ter-se adotado a conceção segundo a qual a responsabilidade por crimes
contra o direito internacional não se encontra sujeita ao princípio da legalidade previsto no art 29º/1, válido
apenas para a lei estadual. Porém, hoje é seguro que o princípio nullum crimen sine lege constitui um princípio
geral de direito internacional, embora o seu “modo” seja diverso, uma vez que no termo “lege” se inclui também
o direito (internacional) costumeiro: o que não deixará de trazer problemas graves quanto à exigência de
determinabilidade das condutas puníveis. De toda a maneira, a importância do problema tem vindo a
reduzir-se progressivamente deste o fim da II Guerra Mundial, por força da cristalização positiva do direito
costumeiro em várias convenções internacionais, cujas normas os Estados vão incorporando no seu direito
interno. Nesses casos, a lei interna deve servir a proteção do direito internacional.

O princípio da legalidade da intervenção penal possui uma pluralidade de fundamentos, uns externos
(isto é, ligados à conceção fundamental do Estado), outros internos (de natureza especificamente jurídico-
penal):

FUNDAMENTOS EXTERNOS FUNDAMENTOS INTERNOS


PRINCÍPIO LIBERAL – de acordo com este PREVENÇÃO GERAL E PRINCÍPIO DA CULPA – não
princípio, toda a atividade intervencionista do pode esperar-se que a norma cumpra a sua função
Estado na esfera dos direitos, liberdades e motivadora do comportamento da generalidade dos
garantias das pessoas tem de ligar-se à existência cidadãos- seja na sua vertente “negativa” de
de uma lei e mesmo, entre nós, de uma lei geral, intimidação, seja sobretudo na sua vertente “positiva”
abstrata e anterior (art 18º/2,3 CRP). de estabilização das espectativas- se aqueles não
puderem saber, através de lei anterior, estrita e certa,
por onde passa a fronteira que separa os
comportamentos criminalmente puníveis dos não
puníveis. Tal como não seria legítimo dirigir a alguém a
censura por ter atuado de certa maneira se uma lei com
aquelas características não considerasse o
comportamento respetivo como crime.
PRINCÍPIO DEMOCRÁTICO E PRINCÍPIO DA PREVENÇÃO ESPECIAL – contra o que ainda
SEPARAÇÃO DE PODERES – na compreensão maioritariamente se pensa, também a própria função
atual destes princípios (onde a separação é de prevenção especial positiva ou de ressocialização, no
pensada nos quadros da interpenetração e da seu entendimento atual, confirma a exigência do
corresponsabilização), para a intervenção penal, princípio da legalidade: o comportamento que indicia a
com o seu particular peso e magnitude, só se perigosidade não é (não pode ser) apenas sintoma ou
encontra legitimada a instância que represente o índice da carência de socialização e ensejo para que esta
Povo como titular último do ius puniendi. De onde intervenha, mas tem de ser co-fundamento e limite da

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surge a exigência, uma vez mais, de lei, e na intervenção criminal, nesta medida, ressurgindo a
verdade, entre nós, de lei formal emanada do exigência da legalidade estrita daquela.
Parlamento ou por ele competentemente
autorizada (art 165º/1/c) CRP).

2. Nullum crimen sine lege


O princípio segundo o qual não há crime sem lei anterior que como tal preveja uma certa conduta significa que,
por mais socialmente nocivo e reprovável que se afigure um comportamento, tem o legislador de o considerar
como crime (descrevendo-o e impondo-lhe como consequência jurídica uma sanção criminal) para que ele
possa como tal ser punido. Esquecimentos, lacunas, deficiências de regulamentação ou de redação funcionam,
por isso, sempre contra o legislador e a favor da liberdade, por mais evidente que se revele ter sido intenção
daquele (ou constituir finalidade da norma) abranger na punibilidade também certos (outros)
comportamentos. Neste sentido, tornou-se célebre a afirmação de V. Liszt, segundo a qual a lei penal constitui
a “Magna Charta do criminoso”. Tem-se argumentado que, sendo assim, a lei penal representa uma espécie de
carta de alforria para o agente mais hábil, mais refinado e (às vezes) mais rico e poderoso, para o agente dotado
de maior “competência de ação”. Importa fazer, neste contexto, 2 precisões: (1) um tal agente não é, em
definitivo, um “criminoso” se não for como tal considerado por uma sentença transitada em julgado e (2) esta
segunda precisão vem clarificar o facto de este constituir, apesar de tudo, um preço razoável a pagar para que
se possa viver numa democracia que proteja minimamente o cidadão do arbítrio, da insegurança e dos excessos
de que de outro modo inevitavelmente padeceria a intervenção estadual.

Por exemplo: no CP de 1886 dispunha o art 451º (relativo ao crime de burla ou defraudação) que “será
punido…aquele que defraudar a outrem, fazendo que se lhe entregue dinheiro ou móveis, ou quaisquer fundos ou
títulos, por algum dos seguintes meios…”. Isto só podia significar que era unicamente punível a burla a favor do
próprio agente, já não a burla a favor de terceiro, por exemplo, a favor de pai, da mulher, de filho ou de um sócio
ou amigo do agente. Restrição esta que nem teleológica, nem funcional, nem racionalmente se podia justificar e
que revelava, na verdade, pura e simplesmente uma lacuna grave de punibilidade, só explicável por um erro do
legislador, sendo que a consequência jurídico-constitucionalmente imposta só podia ser a de deixar impune a
burla a favor de terceiro.

3. Nulla poena sine lege


A fórmula “não há crime sem lei” é complementada pela fórmula “não há pena (ou melhor, não há sanção
criminal, pena ou medida de segurança) sem lei”. Na interpretação desta fórmula verificam-se, todavia, algumas
dificuldades que devem ser consideradas. Desde logo, cumpre dizer que- diversamente do que sucede em
muitas outras ordens jurídicas, onde a conclusão tem de ser alcançada por via interpretativa- entre nós, também
este segmento do princípio tem expressa consagração jurídico-constitucional e legal. Nesse sentido, afirma logo
o art 29º/3 CRP que “ não podem ser aplicadas penas ou medidas de segurança que não estejam expressamente
cominadas em lei anterior”:
• No que toca às penas, esta exigência de lex praevia corresponde à doutrina internacional dominante;

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• Já não é assim no que toca às medidas de segurança, relativamente às quais se pensava que o seu
fundamento de estrita prevenção especial deveria conduzir a que pudesse aplicar-se a medida de
segurança vigente ao tempo da aplicação, porque isso seria apenas sinal de um entendimento
legislativo “melhor” (mais favorável) para o agente.

Uma tal conceção foi recusada pela CRP e, na sua esteira, pelo art 2º/1 CP. Em detrimento da ideia paternalista
de que ao legislador pertenceria dizer o que seria “melhor” para o agente, porquanto só considerações ilimitadas
de prevenção especial estariam na base das medidas de segurança, veio a legislação constitucional e ordinária
portuguesa dar prevalência a uma consistente proteção dos direitos, liberdades e garantias das pessoas também
face à aplicação de medidas de segurança, conferido assim ao facto uma função de co-fundamento da respetiva
aplicação. E, por esta via, veio assegurar a extensão do princípio da legalidade às medidas de segurança
com âmbito análogo àquele que ele tradicionalmente assume para as penas.

O princípio em exame significa, por outro lado, ser completamente vedado ao juiz criar instrumentos
sancionatórios criminais que não se encontrem estritamente previstos em lei anterior. Um exemplo real: o
CP de 1982, antes da Reforma de 1995, previa por uma parte uma pena de substituição da suspensão da execução
da prisão, com ou sem condições, e por outra, sob diferentes e mais estritos pressupostos formais, a pena de
substituição do regime de prova. Mas, não previa a possibilidade de “combinação” destas duas penas. Ora, uma
parte da nossa jurisprudência, motivada pelo desejo de poder aplicar a substância do regime de prova à pena de
suspensão da execução da prisão em casos em que, todavia, os pressupostos formais daquela o não permitiam,
condenava por vezes na pena de suspensão, mas submetida a condições específicas do regime de prova. O que, no
fundo, constituía uma violação ilegal e inconstitucional do princípio nulla poena sine lege. A situação foi resolvida
pela Reforma de 1995, ao eliminar o regime de prova como pena de substituição autónoma e ao fazer dele uma
modalidade da pena de substituição da suspensão da execução da prisão.

O princípio da legalidade assume consequências ou efeitos em 5 planos diferentes: (1) plano do âmbito ou da
extensão, (2) plano da fonte, (3) plano da determinabilidade, (4) plano da proibição da analogia e (5)
plano da proibição da retroatividade. Cada um deles será, em seguida, considerado.

II. O plano do âmbito de aplicação


Neste plano, cumpre assinalar que o princípio da legalidade não cobre, segundo a sua função e o seu sentido,
toda a matéria penal, mas apenas a que se traduza em fundamentar ou agravar a responsabilidade do agente.
Sob pena, de outra forma- isto é, se abrangesse também a matéria da exclusão ou da atenuação da
responsabilidade- de o princípio passar a funcionar contra a sua teleologia e a sua própria razão de ser: a
proteção dos direitos, liberdades e garantias do cidadão face à possibilidade de arbítrio e de excesso do poder
estatal. Por isso, o princípio cobre toda a matéria relativa ao tipo de ilícito ou ao tipo de culpa, mas já não
a que respeita às causas de justificação ou às causas de exclusão da culpa. Esta restrição do âmbito do
princípio da legalidade é de tal forma importante que se estende a todas as suas consequências- seja no plano
da fonte, seja no plano da determinabilidade, seja nos planos das proibições de analogia e de retroatividade.

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III. O plano da fonte
Neste plano, o princípio conduz à exigência de lei formal: só uma lei da AR ou por ela competentemente
autorizada pode definir o regime dos crimes, das penas e das medidas de segurança e seus pressupostos.
A este propósito podem, todavia, suscitar-se alguns problemas que não devem deixar de ser referidos:

1) Desde logo, o de que, em rigor, o conteúdo de sentido do princípio da legalidade, também aqui, só deveria
cobrir a atividade de criminalização ou de agravação e não a de descriminalização ou de atenuação.
O que deveria conduzir, por seu lado, a considerar que o Governo possui competência concorrente com
a da AR para descriminalizar ou atenuar a responsabilidade criminal.

OBJEÇÃO A ESTE ARGUMENTO: Posto perante a questão, o TC respondeu-lhe negativamente, interpretando


a “definição de crimes, penas, medidas de segurança e respetivos pressupostos” no sentido de abranger
tanto a função de criminalização (ou me maior criminalização), como a de descriminalização (ou de
menor criminalização). Não é impossível excogitar razões jurídicas de política geral, relacionadas
nomeadamente com a definição dos círculos de competência de órgãos de soberania dotados de poderes
legiferantes, que ofereçam um qualquer fundamento a esta doutrina. O que sempre será errado é invocar, ainda
aqui, o princípio da legalidade penal na sua teleologia e na sua funcionalidade específicas.

2) Outro problema é o de saber se a exigência de legalidade no plano da fonte deverá abranger só a lei
penal sensu strictu ou ainda também a lei extrapenal, na medida em que esta venha a ser chamada
pela lei penal à fundamentação ou à agravação da responsabilidade criminal.

Para esta fundamentação ou agravação serve-se muitas vezes a lei penal, com efeito, de procedimentos de
reenvio para ordenamentos jurídicos não penais (como o civil, administrativo, fiscal, etc.), ordenamentos estes
onde não vale, logo no plano da fonte, um princípio de legalidade equivalente ao que aqui se considera e onde,
por isso, o Governo e a Administração têm competência geral, ou mais lata do que em matéria penal, para
legislar. O que acaba por fazer crise nas chamadas normas penais em branco, sobretudo abundantes no âmbito
do direito penal secundário, que cominam uma pena para comportamentos que não descrevem, mas se
alcançam através de uma remissão da norma penal para leis, regulamentos ou inclusivamente atos
administrativos autonomamente promulgados em outro tempo ou lugar. Pressupondo-se, evidentemente, que
a norma penal em branco consta de lei formal, não se veem razões teleológico-funcionais decisivas para
considerar em causa, no plano da fonte, o respeito pelo princípio da legalidade.

O que foi dito no parágrafo anterior vale também para os casos em que um regulamento comunitário (diretamente aplicável
na ordem jurídica portuguesa – art 8º/4 CRP) é chamado a preencher, por remissão, o “espaço em branco” de uma norma
penal interna: para este efeito, o regulamento encontra-se no mesmo plano dos instrumentos legislativos nacionais não
legitimados para criar proibições penais. O problema já não se põe relativamente às diretivas comunitárias e às decisões-
quadro, pois estes instrumentos carecem sempre de uma atividade de transposição por parte dos legisladores nacionais, a
quem caberá proceder de acordo com o princípio da legalidade. É jurisprudência firme do TJ que as diretivas comunitárias
não transpostas não são eficazes nos ordenamentos internos e não podem, por isso, criar deveres de índole penal para os
cidadãos. Parece, além disso, que no caso de um Estado transpor incorretamente uma diretiva, o juiz não pode recorrer àquela
para fazer uma interpretação “corretiva” da norma interna que a transpôs, se assim ampliar a área da punibilidade.
Relativamente às decisões-quadro, o art 34º/2/b) do Tratado da União Europeia nega-lhes expressamente “efeito direto”.

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IV. A determinabilidade do tipo legal
No plano da determinabilidade do tipo legal ou tipo de garantia- precisamente, o tipo formado pelo conjunto de
elementos cuja fixação se torna necessária para uma correta observância do princípio da legalidade- importa que
a descrição da matéria proibida e de todos os outros requisitos de que dependa, em concreto, uma punição seja
levada até a um ponto em que se tornem objetivamente determináveis os comportamentos proibidos e
sancionados e, consequentemente, se torne objetivamente motivável e dirigível a conduta dos cidadãos.
Considerar crime as condutas que ofendem o “são sentimento do povo” ou a “ordem os operários e agricultores”
tornaria supérfluo um grande número de incriminações dos códigos penais; mas não cumpriria minimamente
as exigências de sentido ínsitas no princípio da legalidade. Do mesmo modo, se é inevitável que a formulação
dos tipos legais não consiga renunciar à utilização de elementos normativos, de conceitos indeterminados,
de cláusulas gerais e de fórmulas gerais de valor, é indispensável que a sua utilização não obste à
determinabilidade objetiva das condutas proibidas e demais elementos de punibilidade requeridos, sob pena
de violação irremissível, neste plano, do princípio da legalidade e, sobretudo, da sua teleologia garantística. Nas
aceção se afirma, com razão, que a lei penal fundamentadora ou agravadora da responsabilidade tem de
ser uma lei certa e determinada, chamando-se à atenção de que é mais aqui do que no plano da proibição da
analogia e da retroatividade que reside o grande perigo para a consistência do princípio nullum crimen, ou seja,
que é neste ponto que reside o verdadeiro cerne do princípio da legalidade.

➢ Os exemplos de hipóteses duvidosas multiplicam-se por mais perfeita e cuidadosa que seja a técnica
legislativa. O seu campo de eleição será o do direito penal secundário. Mas, não faltam exemplos mesmo
no âmbito do direito penal primário: elementos como os dos “bons costumes” (art 38º/1 CP), do “motivo
torpe ou fútil” ou do “meio insidioso” (art 132º CP), do “censurável” (art 154º/3/a) CP), do “abuso
grosseiro dos poderes” (art 158º CP), são apenas alguns dos mais citados. O critério decisivo para aferir
do respeito pelo princípio da legalidade (e da respetiva constitucionalidade da regulamentação) residirá
sempre em saber se, apesar da indeterminação inevitável resultante da utilização destes elementos, do
conjunto da regulamentação típica deriva ou não uma área e um fim de proteção da norma claramente
determinados.

V. A proibição da analogia
Toma-se, neste contexto, o conceito de analogia como aplicação de uma regra jurídica a um caso concreto não
regulado pela lei através de um argumento de semelhança substancial com os casos regulados: a chamada
analogia legis, não a analogia iuris. Depois do que foi dito, torna-se evidente que o argumento de analogia,
largamente admitido na generalidade dos ramos de direito como procedimento adequado à aplicação da
lei, tem em direito penal de ser proibido, por força do conteúdo de sentido do princípio da legalidade,
sempre que ele funcione contra o agente e vise servir a fundamentação ou a agravação da sua
responsabilidade. Esta conclusão já resultaria evidente do texto do art 29º/1 CRP e também do art 1º/1 CP,
porque nestas hipóteses se não pode afirmar que a lei declara punível o ato ou a omissão. Mas, o CP entendeu-
e bem- reforçar a proibição, estatuindo expressis verbis, no art 1º/3 que “não é permitido o recurso à analogia

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para qualificar um facto como crime, definir um estado de perigosidade ou determinar a pena ou a medida de
segurança que lhes corresponde”.

1. Interpretação e analogia em Direito Penal


A proibição de analogia pressupõe a resolução do problema dos limites da interpretação admissível em direito
penal. Está hoje afastada definitivamente a convicção iluminista de que o princípio da separação de poderes
conduziria logo à proibição de qualquer processo de interpretação jurídica (Beccaria: “para qualquer delito
deve o juiz construir um silogismo perfeito: a premissa maior deve ser a lei geral; a menor, a ação conforme ou não
à lei; a conclusão, a liberdade ou a pena”) e a conceção da função judicial que lhe subjazia. E aceita-se, pelo
contrário, que praticamente todos os conceitos utilizados na lei são suscetíveis e carentes de interpretação: não
apenas os conceitos “normativos”, mas mesmo aqueles que, à primeira vista, se diria caracterizadamente
“descritivos” e, por isso, apreensíveis através dos sentidos. Deste modo, torna-se inarredável a questão de saber
o que pertence ainda à interpretação permitida e o que pertence já à analogia proibida em direito penal pelo
princípio da legalidade.

O critério de distinção teleológica e funcionalmente imposto pelo fundamento e pelo conteúdo de sentido do
principio da legalidade só pode ser o seguinte: o legislador penal é obrigado a exprimir-se através de palavras,
as quais todavia nem sempre assumem um único sentido, mas, pelo contrário, se apresenta quase sempre
polissémicas. Por isso, o texto legal se torna carente de interpretação, oferecendo as palavras que o compõem,
segundo o seu sentido comum e literal, um quadro (e, portanto, uma pluralidade) de significações dentro do
qual o aplicador da lei se pode mover e pode optar sem ultrapassar os limites legítimos da interpretação. Fora
deste quadro, o aplicador encontra-se já inserido no domínio da analogia proibida - um tal quadro não constitui,
por isso, critério ou elemento, mas limite da interpretação admissível em direito penal.

NOTA: De alguma forma pode afirmar-se que o critério proposto não estará muito afastado do entendimento que
a doutrina civilista faz do disposto no art 9º/2 CC- “ não pode porém ser considerado pelo intérprete o pensamento
legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal” – se bem que seja diversa a
teleologia, a função e o fundamento do critério jurídico-penal aqui em causa.

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(1) Um caso exemplar e outrora muito discutido foi o de saber se a energia elétrica poderia considerar-se uma “coisa móvel”
para efeito do crime de furto (art 203º/1 CP) consistente na manipulação dos contadores. Em Portugal, a jurisprudência
prevalente respondeu afirmativamente à questão: na Alemanha, a jurisprudência, seguida pela doutrina, considerou que
se trataria aqui e analogia proibida, não de interpretação permitida. Aceitando esta opinião, o legislador alemão criou
uma específica incriminação da subtração de energia elétrica. A ser assim também no nosso direito, e na falta de uma
incriminação correspondente, parece que as condutas conducentes ao desvio de energia elétrica alheia só poderiam ser
punidas por via da (eventual) falsificação, danificação ou subtração de notação técnica (arts 258º/1 e 2 e 259º/1) e
(eventualmente também) da burla (arts 217º e ss).
(2) A jurisprudência portuguesa terá praticado uma violação da proibição da analogia no domínio do CP de 1886, ao
considerar como burla por defraudação, punível nos termos do art 451º, o atear fogo a coisa própria a fim e receber o
seguro respetivo. Não parecia, com efeito, que coubesse no teor literal da expressão típica “artifício fraudulento”- como,
porventura, mesmo no atual “erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou”” do art 217º/1- a simples
comunicação do incêndio (realmente existente e por conseguinte verdadeira). Considerando que aqui se verificava,
efetivamente, uma lacuna da lei que não podia ser preenchida por recurso à analogia, o CP de 1982 veio colmatá-la
incriminando expressamente a burla relativa a seguros (art 219º CP).
(3) Hoje muito discutida, entre nós e lá fora, é a questão de saber se pode ser considerados como armas, por exemplo, um
ácido ou uma seringa (possivelmente infetada com o vírus da SIDA).

A doutrina aqui defendida não é, ao contrário do que poderia pensar-se, arbitrária, nem muito menos, filha de
uma metodologia crassamente positivista. É, pelo contrário, a posição teleológica e funcionalmente imposta
pelo conteúdo de sentido próprio do princípio da legalidade. Fundar ou agravar a responsabilidade do agente
em uma qualquer base que caia fora do quadro de significações possíveis das palavras da lei não limita o poder
do Estado e não defende os direitos, liberdades e garantias das pessoas. Por isso, falta a um tal procedimento
legitimação democrática e tem de lhe ser caluniada violação da regra do Estado de Direito. É claro que, dito isto,
não ficam ainda apontados os critérios de que o intérprete se deve servir para eleger, de entre os sentidos
possíveis das palavras, aquele que deve reputar-se jurídico-penalmente imposto. Se o caso couber em um dos
sentidos possíveis das palavras da lei nada há, a partir daí, a acrescentar ou a retirar aos critérios gerais de
interpretação jurídica. O que simplesmente sucede pois “há de facto. Em toda a construção- e muito
particularmente na aplicação- do direito penal um momento “inicial” de mera subsunção formal, imposta por
aquele princípio (da legalidade) e pela função de garantia ou, se quisermos, pelo “tipo de garantia” de que daquele
princípio resulta. Ultrapassado, porém, este momento inicial, correspondente à operação lógico-jurídica da
incriminação, toda a posterior construção e aplicação não está submetida àquelas exigências e deve integrar-se,
completamente, nas duas ideias fundamentais da imposição metodológica sugerida”. Decisivo será assim, por um
lado, que a interpretação seja teleologicamente comandada, isto é, em definitivo determinada à luz do fim
almejado pela norma; e, por outro lado, que ela seja funcionalmente justificada, quer dizer, adequada à função
que o conceito assume no sistema.

Ultrapassada por esta via fica a velha querela hermenêutica e metodológica entre interpretação subjetivista-
acolhida à (real ou pretensa) vontade do legislador histórico- e interpretação objetivista- fundada nos sentidos
que a regulamentação assume no momento em que o processo hermenêutico é levado a cabo. Que o intérprete está
indissoluvelmente ligado aos juízos de valor, aos sentidos, às finalidades ou ao thelos – não às representações
fácticas! – do legislador histórico, é coisa que deve ter-se por adquirida e fora de questão. mas, igualmente óbvio é
que o intérprete pode (e deve) tomar em conta novas realidades , novas descobertas, novos instrumentos e mesmo
novas conceções que não poeriam ter estado no campo de representação do legislador histórico, desde que o tomá-

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las em conta não implique ultrapassar o teor literal da regulamentação e o seu campo e significações adequadas
ao entendimento comum das palavras que naquela foram utilizadas.

Perante a conceção aqui defendida, parecem improceder as objeções que se seja tentado a opor-lhe. E, desde
logo, a velha objeção segundo a qual não é logicamente possível, nem metodologicamente legítimo distinguir
entre interpretação e analogia. Decerto que o processo lógico é o mesmo; decerto que a interpretação e
integração são momentos, ambos, de um processo metodológico de aplicação fundamentalmente unitário. Mas
nada disto ofusca a circunstância de que existem processos hermenêuticos cuja conclusão se mantém no quadro
dos significados comuns atribuídos às palavras utilizadas pelo legislador e processos cuja conclusão o
ultrapassa: e é isto o essencial para observância do conteúdo de sentido legitimador do princípio da legalidade.
Todo o resto acaba por reduzir-se a uma questão terminológica desinteressante, qual seja a de saber se em vez
de distinguir a “interpretação” da “analogia”, não se torna preferível distinguir uma interpretação jurídico-
penalmente permitida de uma outra proibida.

Não parece, por outro lado, que deva substituir-se a função limitadora que aqui se assinala ao teor literal da
norma incriminadora pelo sentido e finalidade da lei, em suma, pelo apelo à ratio legis. Claro que este sentido e
finalidade assume na interpretação uma função primordial. Mas, antes de ele entrar em jogo, a interpretação
admissível tem de passar a “prova de fogo” da sua admissibilidade face ao teor literal da lei e dos significados
comuns que ele comporta. De outo modo, esfuma-se a função de garantia da lei penal – a proteção das pessoas
perante a lei penal- e o disposto no art. 29º/1 CRP perde inteiramente a sua função e o seu significado.

O que acaba de dizer-se não significa, porém, que deva aceitar-se uma cisão entre o princípio da legalidade e a
sua função político-criminal, sujeito a uma compreensão metódica estritamente lógico-formal, por um lado, e a
dogmática do crime, orientada por uma consideração substancial, de outro; de tal modo que àquele princípio,
uma vez ultrapassado o momento inicial de subsunção incriminatória, não mais houvesse que reverter. Antes o
conteúdo e a função político-criminal do princípio da legalidade devem, a cada momento, estar presentes na
construção dogmática do crime. E, antes de tudo, no seu elemento constitutivo que se acolhe sob a epígrafe da
tipicidade ou, mais concretamente, do tipo de ilícito, sendo neste que se fazem sentir de forma mais intensa e
devem, portanto, encontrar tradução mais cabal, as exigências de determinabilidade inerentes ao princípio da
legalidade. Temas como os da exigência de uma “conexão de risco” em matéria de imputação objetiva, de
determinação do que sejam “atos de execução” em matéria de tentativa, ou de preferência pelas doutrinas do
“domínio do facto” em matéria de autoria, são só alguns exemplos que esperamos tornarem claro aquilo que
aqui se quis significar.

2. Âmbito da proibição de analogia


Face ao fundamento, à função e ao sentido do princípio da legalidade, a proibição da analogia vale
relativamente a todos os elementos, qualquer que seja a natureza, que sirvam para fundamentar ou
agravar a responsabilidade. A proibição vale pois contra reum ou in malem partem, não favore reum ou
in bonam partem. Vejamos:

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• Concretamente, a proibição abrange, antes de tudo, os elementos constitutivos dos tipos legais de
crime descritos na parte especial do CP ou em legislação penal extravagante. Como vale
relativamente às leis penais em branco não só no que toca à parte sancionatória da norma, mas ainda
mesmo na parte em que esta remete para a regulamentação externa. Coisa diferente só deverá dizer-se
relativamente a conceitualizações extrapenais utilizadas pelo legislador penal que, princípio, este terá
querido usar de forma puramente acessória e por conseguinte, com o sentido que elas possuem no ramo
de direito a que pertencem- caso em que se compreende que devam “aceitar-se os resultados a que
legitimamente se chegue pelos métodos de interpretação permitidos nesse ramo de direito”;

• Também relativamente à matéria das consequências jurídicas do crime vale a proibição da


analogia em tudo quanto possa revelar-se desfavorável ao agente, isto é, no fundo, em tudo o que
signifique restrição (acrescida) da sua liberdade no sentido mais compreensivo. Por isso, não tem
hoje razão de ser uma doutrina, outrora dominante, segundo a qual a proibição valeria em matéria de
penas, mas já não em matéria de medidas de segurança, por estarem aqui em causa finalidades estritas
de prevenção especial positiva. O mesmo se diga, de resto, para a parte sancionatória das leis penais em
branco;

• A proibição da analogia vale ainda para certas normas da parte geral do CP: para aquelas que
constituem alargamentos da punibilidade de comportamentos previstos como crimes na parte especial,
nomeadamente:
o Em matéria de tentativa (art 22º CP- por exemplo- não é admissível o recurso à analogia para
qualificar um certo ato como ato de execução);
o Em matéria de comparticipação (art 26º CP e ss- por exemplo- não é admissível o recurso à
analogia para qualificar como doloso o auxílio);
o Um problema especial é aqui constituído pelas causas de justificação e pelas causas de
exclusão (ou atenuação) da culpa e da punibilidade. Tratando-se nelas de situações que não
fundamentam ou agravam a responsabilidade do agente mas, pelo contrário, a excluem ou
a atenuam, o recurso à analogia é legítimo sempre que o resultado seja o do alargamento do
seu campo de incidência; mas já será ilegítimo se tiver como consequência a diminuição
daquele campo, se bem que haja aqui razões para determinar de forma mais restritiva os limites
da analogia proibida.

RESUMINDO… (ENQUADRAMENTO DAS AULAS TEÓRICAS E PRÁTICAS)


Em que termos é que uma determinada conduta pode ser qualificada enquanto crime? Nesta matéria rege o
princípio da legalidade criminal - “nullum crimen, nulla poena sine lege”, ou seja, “não há crime, nem há pena
sem lei”. Assim, um comportamento só pode ser qualificado como crime e o agente só pode ser sancionado com
uma pena/ medida de segurança criminal com base na lei- art 29º/1 e 9 CRP e art 1º e 2º do código penal.

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Este é um princípio que visa proteger o cidadão face ao Estado. Está consagrado no capítulo da CRP relativo aos
diretos, liberdades e garantias e visa proteger o cidadão perante o poder punitivo e perante a tentação sempre
presente nos órgãos do Estado de extremar e levar o mais longe possível a punição e aquilo que se procura
assegurar é que o exercício do poder punitivo do Estado seja equilibrado, previsível, para respeitar a segurança
jurídica dos cidadãos. Antes deste princípio, que depois foi erigido a princípio fundamental, as pessoas eram
castigadas com base no costume, sem que houvesse normas escritas específicas, havendo uma grande
arbitrariedade no exercício do poder punitivo. Com o advento do iluminismo e com a necessidade de garantir a
segurança das pessoas, o princípio da legalidade criminal foi instituído nos mais variados domínios e foi
levado aos mais diversos Tratados e Convenções sobre os Direitos Humanos. O princípio da legalidade criminal
é visto como uma conquista civilizacional para disciplinar o exercício do poder punitivo do Estado e para servir
como arma do cidadão.

Enquanto que há princípios que estão sujeitos a transações, a exercícios de concordância prática, este não. Neste
caso, independentemente da gravidade do facto, da má índole do indivíduo, por mais necessário que seja punir
o crime, só é possível punir se o crime estiver previsto na lei. O princípio da legalidade criminal é a “Magna
Charta” do criminoso- ele sabe onde pode pôr o pé e onde não pode e sendo esta a razão de ser do princípio da
legalidade (proteção do indivíduo face ao Estado), compreende-se que ao seu âmbito de aplicação se
circunscreva aquelas normas penais que sejam prejudiciais ao individuo. Quando uma lei penal seja favorável
ao indivíduo, então o princípio da legalidade não é chamado e, por isso, se diz que o princípio da legalidade só
vale quando esteja em causa a fundamentação ou a agravação da responsabilidade criminal, ou seja, quando
esteja em causa a previsão de um certo comportamento como crime ou a agravação da punição de um crime já
existente - este é o âmbito de aplicação normativa do princípio da legalidade.

Se, pelo contrário, estiver em causa a exclusão ou a atenuação da responsabilidade criminal, então não há
razão para invocar o princípio da legalidade criminal – aplicação retroativa da lei penal mais favorável. Este
princípio radica na ideia do Estado de direito e da exigência de segurança jurídica, mas há fundamentos ditos
externos que são de natureza que transcende o direito penal (organização política e do Estado)- entre os
fundamentos externos contam-se o princípio liberal, de acordo com o qual restrições de direitos fundamentais
das pessoas têm de basear-se na lei – quando o legislador tipifica um crime, daí resulta mediata ou
imediatamente uma restrição de direitos fundamentais (art 27º/1 CRP). Para além deste, temos o princípio
democrático e o princípio da separação de poderes- só o povo, através dos seus representantes reunidos no
parlamento, tem legitimidade democrática para decidir o que deve ser punido com uma pena e restringir os
direitos fundamentais da pessoas num contexto criminal- se, por exemplo, fosse admitido que alguém fosse
punido criminalmente sem base na lei, no fundo, quem estaria a criar o crime não seriam os representantes do
povo, mas sim os juízes, o que levava a uma violação do princípio da separação de poderes.
No plano interno, ligado ao próprio direito penal, o princípio da legalidade criminal baseia-se ainda no
princípio da culpa (que também pressupõe o princípio da legalidade) e na própria finalidade das sanções
criminais ( que também pressupõe o princípio da legalidade)- de acordo com o princípio da culpa, só pode ser
punido com uma pena aquele que for censurável por um ato que ele próprio tenha feito e que represente uma

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obra sua (feito com vontade, responsabilidade objetiva), algo seu- por exemplo, violaria o princípio da culpa
punir-me a mim por algo que outra pessoa fez. No entanto, só se pode sancionar alguém por fazer alguma coisa
se essa conduta já tiver sido qualificada como um crime e, por isso, o princípio da culpa pressupõe o princípio
da legalidade e a própria finalidade das sanções criminais (seja prevenção geral ou adesão aos valores
fundamentais das normas penais e prevenção da reincidência) só fazem sentido se houver uma lei prévia que
as estabeleça. Assim, o legislador deve, na feitura das normas penais, obediência a este princípio.

Este princípio dirige-se aos 2 polos fundamentais do direito penal: a infração e a sanção. Tanto um, como outro,
têm de estar previstos na lei- art 29º/1 CRP. De acordo com o princípio da legalidade, a lei penal deve ser uma
lei escrita, certa, estrita e prévia – estes são os 4 subprincípios do princípio da legalidade criminal.
1) SUBPRINCÍPIO DA LEI ESCRITA – de acordo com o princípio da lei escrita, só pode qualificar-se como
norma penal aquela que resulte de uma lei formal e, nesse medida, proíbe-se o costume como fonte
incriminatória do direito penal. Pode discutir-se se não poderá ser tido em conta para afastar a
responsabilidade penal- exemplo: praxes académicas- algumas delas ofendem os direitos
fundamentais das pessoas. O art 165º/c) CRP estabelece que toda a matéria penal em sentido amplo é
de competência reservada relativa da Assembleia da República e, por isso, a generalidade das normas
penais são aprovadas por lei da AR. O Governo também tem competência para legislar no caso de lhe
ser dada autorização pela AR, mas é cada vez mais raro os DL de autorização em matéria penal-
antigamente isto acontecia mas suscitavam-se muitas questões de inconstitucionalidade orgânica, o
que levou a que se deixasse de fazer isso.

2) SUBPRINCÍPIO DA LEI CERTA- o segundo corolário do princípio da legalidade é o princípio da lei


certa- fala-se aqui de uma lei precisa, clara, determinada. A lei penal deve ser precisa. Deste modo,
impõe-se ao legislador penal uma exigência de determinabilidade por razões de segurança jurídica
para que os cidadãos saibam aquilo com que podem verdadeiramente contar, estando cientes daquilo
que podem fazer à luz do direito penal e, neste sentido, não deverão admitir-se à luz do princípio da
legalidade penal, leis de conteúdo ambíguo, incerto, indeterminado, que não precisem aquilo que se
pode ou não fazer à luz da lei. A circunstância de a lei dever ser certa e precisa não significa que tenha
de ser redigida de um modo tal que qualquer cidadão consiga entender perfeitamente, (mas sim que
as pessoas com conhecimentos na área do direito consigam entender claramente o que está escrito na
lei, de forma a poder explicar às outras pessoas o que a lei pretende).

A lei penal tem de ser uma lei escrita e isto impede, desde logo, a analogia. A utilização da analogia no direito
penal, a utilização deste procedimento que nos outros ramos é um procedimento comum e legítimo, está
dependente de requisitos e regras específicas, precisamente por causa da função do direito penal- art 29º/1
CRP-sendo que este artigo nos diz logo que ninguém pode ser punido através do método da analogia (analogia
in malem partem).

O art 1º/1 CP diz-nos que é preciso uma previsão legal para que um facto possa ser punido, sendo que o nº 3 do
mesmo artigo nos remete para a existência de uma proibição expressa e específica relativamente à analogia

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incriminadora- no entanto, nem a CRP nem o CP proíbem a analogia em todo o caso, mas sim em alguns casos-
proíbe-se a analogia contra reum ou in malem partem, ou seja, contra a pessoa do arguido. Assim, a analogia
fabor reum é permitida e é empregada num sentido favorável à pessoa do arguido. Muitas vezes não se entente
o sentido profundo da proibição da analogia- o princípio da legalidade criminal tem a finidade de proteger a
pessoa contra os excessos punitivos do Estado- o princípio da legalidade deve ser entendido a partir da proteção
dos direitos da pessoa. É preciso reduzir o poder do Estado àquilo que todos combinámos, que é a lei, que é a
expressão da vontade da comunidade. Assim, não admira que o sentido da proibição da analogia se refira à
qualificação de um facto como um crime, à qualificação de um estado como um estado de perigosidade ou para
determinar uma pena ou uma medida de segurança correspondente a um certo facto.

Na altura do positivismo jurídico, o juiz devia ser apenas a boca da lei, devia aplicar a lei numa operação quase
automática, não existindo qualquer interpretação, porque a lei era um objeto de subsunção por parte do juiz.
Claro que hoje isto está completamente ultrapassado, defendendo-se que todos os elementos do crime e todos
os elementos das normas penais têm de ser objeto de interpretação- mesmo aqueles que são mais normativos.
Por exemplo: o termo “coisa alheia” - temos de saber o que é coisa alheia e para isso o juiz tem de fazer a
interpretação desse conceito- tem de haver a concretização da norma por parte do aplicador.
Também em relação a elementos descritivos muitas vezes é preciso interpretar:
• EXEMPLO 1 - “quem matar outra pessoa é punido com pena de prisão de 8 a 16 anos de prisão”- para se
poder matar uma pessoa é preciso que essa pessoa esteja morta- mas aqui surge um problema- quando
é que uma pessoa está morta? O que é que determina a morte de uma pessoa- é a paragem respiratória,
paragem cardíaca, paragem da atividade cerebral? Mesmo estes elementos precisam de interpretação.
• EXEMPLO 2- “ é punido com 4 anos de prisão o furto cometido de noite”- quando é que começa a noite?
Às 19h, 20h, 21h? Tudo isto são questões de interpretação.

Esta complexificação do pensamento metodológico levou-nos a dizer que não há fronteiras fixas entre
procedimentos de interpretação e analogia. Todo o pensamento interpretativo é um pensamento analógico e,
por isso, não se sabe traçar a fronteira entre interpretação e analogia. Em relação a isto pode-se dizer que
praticamente todas as palavras são polissémicas, mas ao dizer isto podemos logo não definir quais são esses
sentidos possíveis, mas sabemos que há sempre um quadro de sentidos possíveis que é restrito (por exemplo:
quando se fala em pessoa, não podemos considerar um animal, como um cão). E é dentro desse quadro que o
aplicador do direito penal tem de aplicar a norma, porque se o não fizer ele já está a recorrer à analogia, o que
é proibido- o fundamental é que ele entenda qual é o quadro limite de significações e aplicar a norma dentro
desse quadro.

Houve vários casos no direito português de tentativa de aplicação de normas penais por analogia que depois
levaram a remodelações na lei- descobriram-se lacunas de punibilidade – situações em que a punição se faria
necessária, mas que não estava prevista na lei e, nesses casos, o tribunal tinha de absolver a pessoa e o legislador
tinha de reparar a lacuna da norma. Por exemplo: crime de burla do código de 1886- “quem empregar artifício
fraudulento com intenção de enriquecimento para si será punido com a pena X”- entretanto surgiu um caso em

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que uma pessoa efetivamente burlou, mas não com a intenção de enriquecer para si, mas para outrem- isto era
uma lacuna de punibilidade, uma vez que, independentemente de quem fosse enriquecer com a burla (fosse o
agente ou terceiro), a burla teria sempre se ser punida. Assim, o legislador alterou esta disposição e mudou a
intenção de enriquecimento próprio para enriquecimento próprio e para outrem.

A proibição da analogia é particularmente importante quando analisamos o tipo de ilícito, a conduta proibida
por lei. O que é que então pode ser abrangido pela proibição da analogia? Para além das normas da parte
especial, temos também as normas da parte geral do código penal. Por exemplo: art 22º CP “há tentativa quando
o agente praticar atos de execução de um crime que decidiu cometer, sem que este chegue a consumar-se” - define-
se o que é uma tentativa- nós não podemos aplicar as normas que ali estão a realidades análogas, não podemos
expandir a definição de tentativa para outras situações que não estão consagradas. Assim, podemos
compreender a proibição da analogia como uma proteção da pessoa contra o Estado, mas a proibição da
analogia já não abrange as causas de justificação ou de exclusão de ilicitude, ou seja, causas que justificam
os factos, que excluem a ilicitude de um dado facto, apesar de esse facto preencher o tipo legal de crime.
Por exemplo: A mata B em legítima defesa- isto é uma causa de justificação- ora, nada impede que se aplique
estas normas por analogia a casos semelhantes- no caso da legítima defesa não é muito fácil encontrar casos
análogos, mas, já no caso do estado de necessidade, podemos logo pensar no caso de estado de necessidade
defensivo. Este juízo de verificação da analogia é particularmente importante.

HIPÓTESE PRÁTICA:
CASO PRÁTICO 1 (Ac. TC 397/2012)
A Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira aprovou a seguinte norma:
1. Quem anunciar ou publicitar, vender ou ceder por qualquer forma, substâncias psicoativas é punido com
pena de prisão até 3 anos.
2. Consideram-se substâncias psicoativas todas as substâncias de origem natural ou sintética, em qualquer
estado físico ou de um produto, planta cogumelo, ou parte dela contendo substância, com ação direta ou
indireta sobre o sistema nervoso central, sem indicação específica para uso humano e cujo fabrico ou
introdução no comércio não seja regulado por disposições próprias.
Pronuncie-se sobre a validade constitucional destas normas.

RESOLUÇÃO: coloca-se a questão de saber se uma norma destas é ou não admissível à luz do direito penal.
A questão do acórdão põe-se não no plano penal, mas no plano contraordenacional- suscitou-se a
constitucionalidade das normas contraordenacionais e quando se visa a inconstitucionalidade da norma
temos de ter um parâmetro, um princípio, uma regra que foi violada. Tipificam-se não crimes, mas sim
contraordenações. O TC tem aquela tendência para distinguir de forma muito extremada o direito penal do
direito de mera ordenação social.

No nosso caso prático, é tipificado um crime- olhando para esta norma que consta do caso prático, podemos
dizer que está em causa um crime, uma vez que aquele comportamento é punido com uma pena. No caso

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prático, pede-se que nos pronunciemos sobre a validade constitucional da norma. Isto leva-nos para o
princípio da legalidade criminal. E porquê? O princípio da legalidade criminal prevê que não há crime nem
há pena sem lei e aqui a questão é a de saber se esta lei regional que tipifica um crime é conforme ao princípio
da legalidade criminal. Tem de se saber se a Assembleia Legislativa da Madeira tem competência para
tipificar crimes- e vamos chegar à conclusão de que não, não tem.

Há aqui um problema da competência legislativa da AL da Madeira para tipificar crimes porque o princípio
da legalidade criminal tem logo um corolário que é o da lei escrita que se manifesta em várias vertentes: 1º
proíbe-se a tipificação de crimes com base no costume, ninguém pode ser punido com base no costume, a
punição não pode decorrer do costume, tendo sim de decorrer de uma norma legal, geral e abstrata e essa
norma tem de ser emanada pela AR por força do art 165º/1/c) CRP. A AR tem uma competência relativa
nesta matéria e, por isso, em regra, só ela pode tipificar crimes, prever penas e medidas de segurança e
legislar em matéria penal, sendo que a Assembleia da Madeira não o pode fazer- aqui viola-se este princípio
na sua vertente de reserva de lei. Em regra, só a AR é que pode legislar em matéria penal- vale a ideia de que
que é no parlamento que está representado o povo e só os representantes do povo é que têm legitimidade
democrática para tipificar como crimes determinados comportamentos socialmente reprováveis.

A CRP admite, em todo o caso, que o Governo também legisle em matéria penal se receber autorização da AR
para o efeito. Não é de excluir a possibilidade de normas penais serem aprovadas pelo Governo, desde que
previamente autorizadas pela AR. Se o Governo legislar em matéria penal sem autorização da AR, então será
violado o art 165º/1/c) CRP e essa norma será inconstitucional. Durante algum tempo acontecia que muitas
vezes era o Governo que legislava em matéria penal com autorização da AR, mas depois surgiam alguns
problemas- as normas caducavam, não tinham o impacto que era suposto, etc. – e para pôr cobro a essa
litigância por razões de segurança jurídica, os Governos da República começaram a passar esse processo para
a AR e a colocar essa competência na AR.

Uma questão controvertida é a de saber se o Governo tem ou não legitimidade para revogar normas penais
ou atenuar as penas nelas tipificadas aprovadas pela AR, ou seja, para descriminalizar condutas antes
tipificadas como crimes pela AR. O princípio da legalidade criminal obsta a uma ação legislativa desta
natureza? Este princípio é um princípio de proteção do cidadão e, por isso, não pode ser invocado contra o
cidadão. Por isso, se o Governo revoga uma lei da AR que prevê um crime, em princípio essa revogação é
favorável para o cidadão em geral ou para os potenciais agentes do crime ou para o agente que já o cometeu
e, por isso, essa ação legislativa não é proibida pelo princípio da legalidade. Mas vem-se entendendo que, por
força das razões de equilíbrio de poderes da AR e do Governo (razões de organização política do Estado), não
pode o Governo revogar uma norma penal da AR, descriminalizando uma conduta que antes era tipificada
como crime, não por força do princípio da legalidade, mas sim por razões de equilíbrio e poderes entre os
órgãos de soberania e por força do princípio democrático.

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Uma outra exigência/corolário deste princípio é o corolário da lei certa. A lei penal diz-se que deve ser
certa. Uma lei determinada, precisa, clara, que permita aos seus destinatários saber com rigor aquilo que lhes
é permitido fazer ou não, sob ameaça de pena- vale aqui o chamado princípio da determinabilidade ou da
tipicidade. O princípio da legalidade impõe que as normas penais sejam precisas e determinadas sobretudo
por razões de segurança jurídica, para que os cidadãos saibam aquilo com que podem contar, de modo a
poderem orientar a sua vida e definir os seus comportamentos. As leis imprecisas, vagas, genéricas, além de
não cumprirem a função de orientação dos comportamentos que a lei penal deve exercer, abrem a porta ao
arbítrio do Estado. Perante uma lei vaga e ambígua torna-se difícil a sua interpretação e torna-se difícil de
entender o que é permitido e proibido, o que é crime e o que não e perante leis desta natureza decorre uma
grande arbitrariedade.

Importa atentar no facto de que para que uma norma penal cumpra o princípio da determinabilidade não é
necessário que o legislador utilize uma linguagem que seja percetível pra a generalidade das pessoas. O que
ele tem de fazer é tipificar uma certa conduta de um modo tal que seja claramente percetível o que é proibido
e o que não é, mas as palavras não têm de ser necessariamente compreensíveis para a generalidade das
pessoas. É muito normal que o legislador utilize termos técnico-jurídicos que algumas pessoas não entendem,
mas conseguem entender o sentido da norma. Por exemplo: crime de abuso e confiança- encontra-se
expressões jurídicas que algumas pessoas não entendem como “constituição translativa da propriedade”.

No nosso caso prático estava em causa uma norma, e pergunta-se se uma formulação deste tipo é ou não
consentânea com o princípio da legalidade criminal, se perante uma norma destas fica claro quais as
substâncias que não se pode vender sob ameaça de pena. E o que o TC veio entender é que esta norma não
era constitucionalmente admissível, uma vez que era muito vaga, ambígua e não era suficientemente densa
para que seja percetível que substâncias eram efetivamente proibidas. O conceito usado pelo legislador
abrange substâncias que são lícitas – como são o chocolate, café, nicotina, assim, o TC entendeu que só através
de uma tabela que especificasse de forma clara e precisa quais as substâncias que o legislador tinha em vista
com aquela formulação é que ficaria cumprida esta exigência de determinabilidade.

HIPÓTESE PRÁTICA
CASO PRÁTICO 2
A foi submetido a julgamento sob a acusação de, no ano 2014, ter guardado no seu computador 3 vídeos
pornográficos envolvendo crianças menores de 10 anos, sendo-lhe imputada a prática do crime previsto no n.º
4 do art. 176.º do CP, na redação então vigente, introduzida pela Lei n.º 59/2007 (“Quem adquirir ou detiver os
materiais previstos na alínea b) do n.º 1”). Em julgamento apurou-se que, afinal, os vídeos não estavam gravados
no referido computador, tendo-se antes provado que A a eles acedia através de streaming.

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1. Em alegações, o Ministério Público impugnou pela condenação de A, argumentando que, do ponto de vista
da necessidade de proteção dos menores, é indiferente se as imagens são visualizadas a partir de um ficheiro
guardado no computador ou através de um site na internet.
2. Mais argumentou que, fosse como fosse, a conduta de A é atualmente punível nos termos do n.º 5 do art.
176.º do CP, na redação introduzida pela Lei n.º 130/2015.
Quid iuris?
[Artigo 176.º (Pornografia de menores)
CP 2007: 4 - Quem adquirir ou detiver os materiais previstos na alínea b) do n.º 1 é punido com pena de prisão
até um ano ou com pena de multa. [Lei 59/2007]
CP 2015: 5 - Quem, intencionalmente, adquirir, detiver, aceder, obtiver ou facilitar o acesso, através de sistema
informático ou qualquer outro meio aos materiais referidos na alínea b) do n.º 1 é punido com pena de prisão
até 2 anos. [Lei 103/2015]

RESOLUÇÃO: temos um caso de pornografia de menores. Em 2007, com a lei 53/2007, o crime de pornografia
foi alterado e passou a punir-se criminalmente a aquisição e materiais previstos no número 1 desta lei. A
aquisição ou a detenção de fotos, filmes ou gravações de menores passou a constituir um crime de pornografia
de menores. Em 2014, temos um indivíduo que foi acusado deste crime e diz-se na acusação que ele tem
guardados 3 vídeos pornográficos. Em 2018 há o julgamento. No entanto, em 2015 a lei alterou-se e veio
acrescentar mais conteúdo- art 176º/5 CP. Em 2018, no julgamento, chegou-se à conclusão que o homem
estava acusado de ter guardado no seu PC vídeos pornográficos mas, mais tarde, vem-se a saber que afinal o
que aconteceu foi que ele viu na net 3 vídeos pornográficos, através de streaming.

A questão que se põe é esta: pode este indivíduo ser ou não condenado pelo crime de pornografia de menores?
Neste caso, o Ministério Público vem dizer que independentemente de o vídeo estar guardado no PC ou não,
para os menores isso é indiferente. Tão mal faz aquele que vê um vídeo no seu PC ou aquele que vê
diretamente da net. Não há aqui diferença material. Lesa-se sempre a imagem do menor, a sua identidade e
determinação sexual, etc. Aqui, o que o MP pretende através deste argumento é uma analogia, uma vez que
defende que materialmente não há aqui qualquer diferença, sendo esta situação análoga à que está na lei. Um
argumento destes violaria o princípio da legalidade criminal. No direito penal, proíbe-se a analogia contra o
arguido.

O art 1º/3 CP, que consagra o princípio da legalidade, estabelece que não é permitido o recurso à analogia de
um crime para tipificar um outro facto como crime- a lei penal deve ser aplicada estritamente, não se podendo
recorrer à analogia para punir um comportamento que não tinha cobertura legal. Aqui, no fundo, temos um
problema de interpretação da lei penal: quando é que ainda estamos perante uma interpretação extensiva ou
quando é que já estamos perante a analogia? Tudo dependerá dos sentidos possíveis das palavras usadas pelo
legislador. Perante uma certa norma penal, ela deve ser interpretada havendo naturalmente vários elementos
de interpretação (sistemático, literal, teleológico). Na interpretação das normas penais tem antes de mais

61
procurar-se o sentido possível as lavras que o legislador empregou- há casos em que certas interpretações
não são cobertas no sentido linguístico que se pode dar a certos termos utilizados pelo legislador.

Discute-se muito se a expressão “coisa” utilizada em muitos preceitos legais, como no crime de furto, tem de
ter necessariamente uma natureza corpórea e fungível. Tem de se ver qual é o sentido possível das palavras.
Se as palavras permitirem uma determinada interpretação, temos de mobilizar os critérios da interpretação.
Mas há casos em que por muitas voltas que se dê, o caso não cabe lá.

Em 2007, falava-se em deter e adquirir pornografia mas, no caso deste senhor, ele não faz isso, ele vê, mas
não a detém. Assim, a única maneira de introduzir este termo na letra da lei seria através da analogia, o que
é proibido. Assim, em 2007 ver pornografia online não era tipificado como crime, o que era uma lacuna. No
entanto, esta lacuna não poderia ser suprida pela analogia. Aqui a proibição é estrita. Se não fosse assim,
estava a ser quebrada a segurança jurídica que o princípio da legalidade tenta assegurar e, além disso, seria
violado o princípio da separação de poderes, pois seriam os tribunais que, na prática, criavam as normas
penais e não o legislador. Neste sentido, este é um corolário fundamental. Esta proibição vale para o direito
penal, mas o TC tomou uma posição no sentido de que esta proibição se estende ao processo penal.

A proibição da analogia vale quando através da analogia se pretenda afirmar, fundamentar ou agravar a
responsabilidade penal- isto em prejuízo do agente, in malem partem. Coloca-se a questão de saber se se
pode recorrer à analogia em benefício do agente. E a resposta é afirmativa- há casos em que se identifica uma
lacuna e poderá lançar-se mão do método da analogia, mas desta não vai resultar algo de mau para o agente,
mas sim algo de bom para ele (analogia in bonam partem). O pensamento dominante defendido por
Figueiredo Dias vai no sentido de que esta analogia em favor do agente não é proibida pelo direito penal
nem pelo princípio da legalidade penal. No entanto, esta questão é muito controvertida.

Mais à frente, em casos de legítima defesa, esta questão pode ser problemática- quando se recorre à analogia
excluindo a responsabilidade do agente, daí pode resultar que a responsabilidade seja afastada no plano da
ilicitude mas, por vezes, esse agente está em confronto com o outro, o que pode restringir o direito de legítima
defesa do outro- há aqui um conflito que vai implicar que sobre essa pessoa não seja possível exercer legítima
defesa. Costa Andrade suscita muitas dúvidas quanto a este tema e vê como uma problemática a
analogia a favor do arguido porque pode implicar-se a responsabilidade de alguém por via de se
defender por legítima defesa.

Quanto ao 2º argumento do caso prático: o MP dizia que fosse como fosse, o comportamento do senhor A é
atualmente tipificado como crime. Neste caso, temos aqui um problema quanto ao corolário da lei prévia, que
determina que a lei penal que fundamenta ou agrava a responsabilidade penal só pode aplicar-se a factos ou
comportamentos futuros, só pode aplicar-se para a frente, não se pode aplicar retroativamente, daí que se
diga que a lei deve ser prévia, anterior ao comportamento que se pretende prevenir e punir. Por força do
princípio da legalidade não pode punir-se criminalmente um comportamento que não era crime ao tempo em
que foi praticado- a lei penal incriminadora ou que agrava a responsabilidade penal só pode aplicar-se a

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condutas futuras, só vale para o futuro, isto decorre da CRP, nomeadamente do art 29º/1. As sanções também
devem ser anteriores, só se podem aplicar a um certo crime sanções que fossem aplicáveis a esse
comportamento de acordo com uma lei anterior. Há aqui uma proibição da retroatividade da lei penal
incriminadora ou que agrava a responsabilidade penal.

Neste caso, claro que o argumento do MP é improcedente. O facto é de 2014, e a lei é de 2015, ela não pode
aplicar-se a este comportamento, uma vez que, no momento em aquele senhor praticou aquele facto ele não
pode contar com a possibilidade de ser punido criminalmente por o fazer. Portanto, não pode sofrer uma
punição penal por esse comportamento, neste sentido, a lei penal vale para o futuro e a relevância criminal
de um certo comportamento deve ser aferida em função da lei em vigor ao tempo em que o facto foi praticado-
decorre dos arts 1º/1 e 2º/1 CP. Há uma certa tendência na prática judiciária de se ir ao CP que está agora
em vigor. A lei que se tem agora não é a mesma que estava em vigor ao tempo da prática do facto-logo, tem
sempre de se verificar a data em que o facto ocorreu e tem de se ver o regime legal que se aplicaria nesse
tempo. Neste caso, o arguido/agente não podia ser punido pelo crime de pornografia infantil, nem de acordo
com a lei que estava em vigor ao tempo em que ele atuou, nem de acordo com a lei que entrou depois em
vigor.

[Cat]
VI. A proibição da retroatividade. O âmbito da validade temporal da lei penal ou o problema da
“aplicação da lei penal no tempo”
1. Aplicação da lei penal no tempo e princípio da irretroatividade
O princípio de proibição de irretroatividade in malem parte (contra o agente) é uma reflexão do princípio da
legalidade.

Pode suceder que, após a prática de um facto que ao tempo não constituía crime, uma lei nova venha criminaliza-
lo; ou sendo o facto já crime ao tempo da sua prática, uma lei nova venha prever para ele uma pena mais grave
(ou quantitativamente – pena de prisão de 6 anos quando antes era apenas 3 anos; ou qualitativamente – pena
de prisão quando antes era apenas multa). Posto isto, devemos saber que o problema da aplicação da lei penal
no tempo resolve-se através das chamadas normas de direito inter-temporal, sendo que estas como que se
reduzem (no âmbito penal) ao princípio da retroatividade em tudo quanto funcione contra reum ou in malem
parte.
 Através destas normas de direito inter-temporal satisfaz-se a exigência constitucional e legal de que só
seja punido o facto descrito e declarado, passível de pena por lei anterior ao momento da prática do
facto.

2. Determinação do tempus delicti


Pressuposto de atuação do princípio da irretroatividade é, pois, a determinação do tempus delicti, isto é, aquele
que deve considerar-se o momento da prática do facto.

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 O art.3 do CP esclarece que “o facto se considera praticado no momento em que o agente atuou ou, no caso
de omissão, deveria ter atuado, independentemente do momento em que o resultado típico se tenha
produzido”.

− Daqui resulta que importante será a conduta e não o resultado, o que se justifica à luz da função e do
sentido do princípio da legalidade. Se repararmos, caso o resultado fosse o elemento decisivo, estaria
aberta a porta ao arbítrio e ao possível excesso da ação punitiva do estado.

− A segunda conclusão a retirar da regulamentação é que ela vale para todos os comparticipantes no facto
criminoso, venha a sua responsabilização a ter lugar a título de autores ou a título de cúmplices (pois
tanto estes como aqueles são credores da proteção e garantia que o princípio da irretroatividade se
propõe oferecer).

− Problema especial é constituído por todos aqueles crimes em que a conduta se prolonga no tempo de tal
modo que uma parte ocorre no domínio da lei antiga outra parte no da lei nova: são os chamados crimes
duradouros (ex: sequestro, art.158). A melhor doutrina parece ser aqui a de que qualquer agravação
da lei ocorrida antes do término da consumação só pode valer para aqueles elementos típicos do
comportamento verificados após o momento de modificação legislativa. Solução paralela parece
defender-se para o chamado crime continuado (art.30/2).

3. Âmbito de aplicação da proibição


Tal como a proibição da analogia, também a proibição da retroatividade funciona apenas a favor do agente,
não contra ele (por isso a proibição vale relativamente a todos os elementos da punibilidade, à limitação de
causas de justificação, de exclusão ou de diminuição da culpa e às consequências jurídicas do crime, qualquer
que seja a sua espécie).

Em muitas ordens jurídicas vigora ainda hoje a ideia de que a proibição da retroatividade vale relativamente às
medidas de segurança, na base de que uma vez mais se trata aí de medidas de prevenção especial positiva
comandadas pelo “verdadeiro bem” do agente. Esta ideia teve curso entre nós até à atual CRP e ao CP de 1982.
Hoje, porém, existem injunções legais, constitucionais (art.29/1-3 CRP) e ordinárias (art.1/2) que afastam
claramente esta doutrina.

Também relativamente às medidas de segurança se fazem sentir exigências de proteção dos DLG’s das pessoas
atingidas que substancialmente se identificam com as que se fazem sentir ao nível das penas. De considerar é a
doutrina diferenciadora proposta por Maria João Antunes: “se no tocante ao pressuposto ‘prática de facto ilícito
típico’ vale a lei vigente no momento da prática do facto, já quanto ao pressuposto ‘fundado receio de que o agente
venha a cometer outro factos ilícitos típicos’ poderá valer a lei vigente no momento de formulação desse juízo de
perigosidade”. Por isso, a medida de segurança a aplicar em concreto determina-se pela lei vigente no momento

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da decisão (o momento do preenchimento do pressuposto de perigosidade criminal do agente), excluindo-se,
portanto, a lei vigente no momento da execução. Isto é, a medida de segurança a aplicar, em concreto,
determina-se pela lei vigente no momento da decisão, ainda que a lei vigente no momento da prática do
facto ilícito típico não determinasse a mesma medida.

Questão interessante é a de saber se também a jurisprudência fica submetida à proibição da retroatividade. Deverá
admitir-se que uma corrente de aplicação jurisprudencial definida e estabilizada possa ser alterada – mesmo sem
alteração da lei – contra o agente? A aplicação da nova corrente jurisprudencial que determina a punição do facto
praticado ao tempo da jurisprudência anterior, que o considerava irrelevante, não constitui propriamente uma
violação do princípio da legalidade, mas como conclui também Nuno Brandão num estudo recente, não deixa de
pôr em causa valores que lhe estão associados, pela frustração das expectativas quanto À irrelevância penal da
conduta (formadas com base numa interpretação judicial).

Além de parecer ser esta a solução que de jure constituto resulta da lei processual penal, devem ser os tribunais
extremamente cuidadosos na modificação de uma corrente jurisprudencial contra o agente.

Deverá assinalar-se ainda que o cidadão que atuou com base nas expectativas fundadas numa primitiva corrente
jurisprudencial não estará completamente desprotegido, já que poderá por vezes amparar-se numa falta de
consciência do ilícito não censurável, que determinará a exclusão da culpa e da punição.

Outra questão discutida é a de saber se a proibição da retroatividade se estende aos pressupostos da punição
(positivos e negativos) e aos pressupostos processuais, sendo que o problema concretamente mais relevante situa-se
em matéria de prazos de prescrição: consideramos que, por um lado, o art.5 CPP dispõe o princípio da aplicação
imediata da lei nova, contudo são introduzidas a este artigo decisivas limitações quando dele derive um “agravamento
sensível e ainda evitável da situação processual do arguido, nomeadamente uma limitação do direito de defesa.

4. O princípio da aplicação da lei mais favorável


A consequência teórica e praticamente mais importante do princípio segundo o qual a proibição de
retroatividade só vale contra o agente consubstancia-se no princípio da aplicação da lei (ou do regime) mais
favorável (lex mellior), assumindo este princípio expressão não só ao nível da lei ordinária (art.2/4 CP), como
da lei constitucional (art.29/4, 2ª parte CRP). Este princípio possui natureza autónoma diretamente decorrente
do princípio da necessidade, no entanto a sua fixação no texto constitucional trouxe alguns problemas que
importa considerar:

4.1 As hipóteses de descriminalização


A 1ª situação será aquela em que uma lei posterior à prática do facto deixe de considerar este como crime
(descriminalização em sentido técnico). Esta situação cabe em rigor dentro do princípio da aplicação da lei
mais favorável e não exigiria, portanto, a sua consagração expressa: ou porque a lei mais favorável é aqui a lei
revogatória da criminalização ou porque à conclusão se chegaria através do argumento da analogia (permitida).
Todavia, analisando art.2/2 CP de acordo com o que acaba de dizer-se, a primeira parte deste mesmo preceito
seria indispensável mas já não o é a segunda parte, que traduz a ideia de a eficácia do princípio da aplicação da
lex mellor ser tão forte que, quando se analise em uma descriminalização direta do facto, ela se impõe no que
toca à execução e aos seus efeitos penais, ainda no caso de a sentença condenatória já ter transitado em
julgado.

65
Esta regulamentação fez surgir entre nós sérias e numerosas dúvidas. Exemplo disso são as dúvidas relativas às
situações em que uma conduta deixa de ser crime e passa a constituir contraordenação.

Há quem defenda que nestes casos o facto deixa de ter relevância jurídica, não podendo ser objeto nem de punição
penal nem de punição contraordenacional. Isto porque, atendendo à autonomia material do direito contraordenacional
face ao direito penal, ao tempo da sua prática ainda não existia uma norma legal que para ele cominasse uma coima. O
que deve perguntar-se é se a proteção do cidadão face ao poder punitivo estadual e a tutela das suas expectativas são
substancialmente postas em causa com uma eventual punição contraordenacional nestas circunstâncias, e a resposta
parece ser negativa, pois no momento da prática do facto não existiam razões para que o agente pudesse esperar ficar
impune, acabando isso sim com a aplicação da sanção contraordenacional por beneficiar de um regime que lhe é
concretamente mais favorável (relativamente a uma sanção penal).

→ Encontra-se nesta linha de pensamento a regulamentação constante da lei 25/2006 de 30 de junho; da lei
28/2006 de 4 de julho e da lei 30/2006 de 11 de julho: as condutas nestas consideradas deixam de ser
contravenções e passam a ser contraordenações. Nestas leis estatui-se que as condutas praticadas antes da
entrada em vigor do novo regime são já sancionadas como contraordenações (sem prejuízo da aplicação do
regime mais favorável nomeadamente quanto à medida da sanção). Os processos que se encontrarem
pendentes nos tribunais continuam aí a sua tramitação, mas a sanção aplicada será a coima; já se o processo
ainda não tiver sido instaurado, correrá perante as autoridades administrativas.

Outros casos em que deverá ser dada análoga solução são aqueles em que a lei nova mantém a incriminação de uma
conduta concreta embora sob um novo ponto de vista político-criminal, mesmo que ele se traduza numa modificação
do bem jurídico protegido.

4.2 As hipóteses de atenuação de consequência jurídica


O mesmo que se expôs para as hipóteses de descriminalização deve valer para os casos em que a nova lei atenua
as consequências jurídicas que ao facto se ligam, nomeadamente a pena, medida de segurança e os efeitos
penais do facto. Também nestes casos a lex mellior deve ser retroativamente aplicada, todavia de acordo com
o art.2/4 ficam ressalvados os casos julgados. Tem-se pretendido que a diferença aqui existente relativamente
à lei descriminalizadora seria inconstitucional por a restrição não constar do art.29/4, última parte CRP. Mas
esta posição não parece de aceitar: não só ou não tanto porque a lei fundamental tem, na sua interpretação, de
ser submetida a uma cláusula de razoabilidade; mas também porque não compete à lei constitucional regular
as condições de aplicação dos seus comandos, devendo limitar-se a regular os limites deste âmbito, definindo
os requisitos a que devem submeter-se as leis restritivas de direitos fundamentais.
A conformidade com o art.29/4 CRP da ressalva de casos julgados prevista no art.2/4 CP não significa que a
mesma não possa ser eliminada ou restringida, fruto de uma nova opção legislativa. Nesse sentido vai a
alteração do regime do art.2/4 prevista no Anteprojeto 2007 – desta proposta resulta somente um limite à
execução da pena concreta aplicada na condenação transitada em julgado, que coincide com o limite máximo da
pena aplicável pela nova lei mais favorável. Da nova redação do art.2/4 resulta que a ressalva dos casos julgados
só é afastada em caso de execução de uma pena principal e já não de uma pena de substituição (uma vez que só
é possível avaliar se o tempo de execução corresponde à pena máxima aplicável pela lei posterior se ambas
forem da mesma espécie).

→ Questão discutida na doutrina alemã e que se colocou entre nós com a reforma de 1995 é a de saber se
existe uma lei mais favorável para efeito de retroatividade quando a lei nova vem eliminar uma
qualificação e substituí-la por outra que no caso também se verifica. A resposta afirmativa basear-se-ia
na ideia de que, mesmo neste caso o “cerne do ilícito” persiste e é comum às duas leis. Mas não parece

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ser esta boa doutrina se as duas qualificações não tiverem nada em comum. Assim vemos que o mais
acertado será deduzir que o desaparecimento de uma qualificação se traduz na existência de lei mais
favorável que deve ser retroativamente aplicável; já a introdução de uma nova qualificação significa uma
alteração contra o agente submetida à proibição da retroatividade.

4.3 As leis intermédias


O princípio da aplicação da lei mais favorável vale ainda mesmo naquilo que a doutrina chama de leis
intermédias, isto é, leis que entram em vigor posteriormente à prática do facto, mas já não vigoravam ao tempo
da apreciação judicial deste. Esta solução aparece prevista no art.29/4,2ª parte CRP e no art.2/4,1ª parte CP.

4.4 O regime
Não é fácil e isento de dúvidas delimitar o que será o regime que concretamente se mostra mais favorável
ao agente (art.2/4 CP). Desta questão se ocupou a jurisprudência portuguesa nos primeiros anos posteriores à
entrada em vigor do CP de 1982, e os principais resultados a que chegou merecem concordância. Assim, deve
entender-se que uma pena de multa (mesmo elevada) é em princípio mais favorável do que uma pena de prisão
(mesmo leve). No resto, deve aceitar-se que o juízo complexivo de maior ou menor favor não deve resultar
apenas da contemplação isolada de um elemento do tipo legal ou da sanção, mas da totalidade do regime a
que o caso se submete. Como seguro é que o sopeso da gravidade dos dois regimes não pode fazer-se só na
consideração abstrata da lei, mas tem de ser feito depois de conexionada aquela consideração com as
circunstâncias concretas do caso.

4.5 As chamadas “leis temporárias”


Uma exceção ao princípio da aplicação da lei mais favorável está consagrada no art.2/3 CP, para as chamadas
leis temporárias: que devem considerar-se ser apenas aquelas que, a priori, são editadas pelo legislador para
um tempo determinado, seja porque este período é desde logo apontado pelo legislador em termos de
calendário ou em função da verificação/cessação de um certo evento (leis temporárias em sentido estrito); seja
porque aquele período se torna reconhecível em função de certas circunstâncias temporais (leis temporárias
em sentido amplo). Comum é a circunstância de a lei cessar automaticamente a sua vigência uma vez decorrido
o período de tempo para o qual foi editada.

 A razão que justifica o afastamento da lei mais favorável reside em que a modificação legal se operou
em função não de uma mera alteração da conceção legislativa (esta é sempre a mesma), mas unicamente
de uma alteração de circunstâncias fáticas que deram base à lei. Não existem por isso, aqui, expectativas
que mereçam ser tuteladas, enquanto, por outro lado, razoes de prevenção geral persistem.
 O que deve ser reforçada é a necessidade, a que começou por aludir-se, de interpretação rigorosa daquilo
que na verdade constitui uma lei temporária; com consequência de, em caso de dúvida, fazer valer as
regras de proibição de retroatividade e da aplicação da lei mais favorável nos termos gerais.

Uma vez mais não falta quem entenda que a exceção feita pelas leis temporárias à proibição da retroatividade
(prevista no art.2/3) é inconstitucional por não constar expressamente do art.29 CRP. Uma vez mais deve este
entendimento ser contestado pelas razões acima explanadas a propósito da limitação (em certos casos) da

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aplicação da lei mais favorável pelo trânsito em julgado da sentença; e nomeadamente porque nem mesmo as
leis constitucionais devem em caso algum ser interpretadas contra a sua teleologia e a sua funcionalidade
específicas.

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9º CAPÍTULO – ÂMBITO DE VALIDADE DA LEI PENAL
Bea Abreu – páginas 207-216
Joana Gonçalves – páginas 216-224
Margarida – 224-232

I. O sistema de aplicação da lei penal do espaço e os seus princípios


Todos os códigos penais contêm disposições sobre o âmbito de validade espacial das suas normas. O conjunto
dessas disposições é vulgarmente chamado direito penal internacional, analisando-se o seu conteúdo em
regras ou critério de aplicação da lei penal no espaço. Tradicionalmente, a expressão direito penal
internacional, com o sentido dado, era utilizada para distinguir este conjunto de regras, vigente apenas na ordem
jurídica nacional, do direito internacional penal enquanto ramo do direito internacional público que tem por
objeto a matéria penal. Assim, o critério que subjazia à distinção era o da fonte de onde promanavam tais normas
– interna no primeiro, internacional no segundo. Além disso, o direito penal internacional tem um objeto muito
mais específico do que o direito internacional penal, dado que abarca apenas as regras de aplicação espacial da
lei penal interna, enquanto que este último abrange indistintamente todas as normas de direito internacional
que versam sobre matéria penal. Não se deve esquecer que o direito internacional penal leva, por vezes, à
consagração de certas soluções no âmbito do direito penal internacional, no que toca ao se e ao como da
competência estadual para conhecer de certos crimes, nomeadamente através da vinculação dos Estados em
convenções internacionais sobre o assunto. Tornou-se hoje corrente – sobretudo depois da criação do Tribunal
Penal Internacional – usar da expressão direito penal internacional mesmo para nomear aquilo que
tradicionalmente se designava por direito internacional penal, tendo, por isso, a distinção formal praticamente
perdido o sentido.

A conformação do sistema estadual de aplicação da lei penal no espaço baseia-se em diversos princípios e num
certo modelo da sua combinação. Estes princípios não assumem, todos eles, igual hierarquia, antes existindo um
princípio-base e princípios acessórios ou complementares.

O princípio-base do nosso sistema é o princípio da territorialidade, segundo o qual o Estado aplica o seu
direito penal a todos os factos penalmente relevantes que tenham ocorrido no seu território, com indiferença
por quem ou contra quem foram tais factos cometidos.

Um princípio acessório é o princípio da nacionalidade, segundo o qual o Estado pune todos os factos
penalmente relevantes praticados pelos seus nacionais, com indiferença pelo lugar onde eles foram praticados
e por aquelas pessoas contra quem o foram.

Outro princípio complementar é o princípio da defesa dos interesses nacionais, segundo o qual o Estado
exerce o seu poder punitivo relativamente a factos dirigidos contra os seus interesses nacionais específicos, sem
consideração do autor que os cometeu ou do lugar em que foram cometidos.

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Depois, o princípio complementar da aplicação universal ou da universalidade manda o Estado punir todos
os factos contra os quais se deva lutar a nível mundial ou que internacionalmente ele tenha assumido a
obrigação de punir, com indiferença pelo lugar da comissão, pela nacionalidade do agente ou pela pessoa da
vítima. Este princípio assume cada vez maior importância no mundo atual, não só devido à crescente
preocupação internacional com certo tipo de infrações (crimes de genocídio, violações graves do direito
humanitário, terrorismo, etc.) – que deram lugar à criação de jurisdições internacionais para o conhecimento
desses crimes, através dos Tribunais Penais Internacionais para a antiga Jugoslávia e para o Ruanda e do
Tribunal Penal Internacional Permanente –, como também por foça do caráter global de certos riscos dotados
de potencial lesivo transnacional em matéria do ambiente, manipulação genética, criminalidade altamente
organizada.

A revisão do CP de 1998 introduziu na alínea e) do art.5º/1 o princípio da administração supletiva da


justiça penal, pondo termo a uma lacuna para a qual havíamos alertado. Assim, a lei portuguesa passa a ter
competência para conhecer de factos que, não se encontrando sujeitos às regras anteriores, foram praticados
no estrangeiro, por estrangeiros que se encontram em Portugal e cuja extradição, tendo sido requerida, não
pode ser concedida (v.g., em virtude da pena aplicável ao crime pela lei do Estado requerente).

II. Conteúdo e sistema de combinação dos princípios aplicáveis


1. O princípio básico da territorialidade
1.1 Justificação e conteúdo
A generalidade dos sistemas legislativos penais dos nossos dias assume como princípio basilar de aplicação da
sua lei penal no espaço o princípio da territorialidade, não o da nacionalidade. É esta a posição tradicional do
direito penal português. Nesta preferência convergem, por um lado, razões próprias de direito penal e de política
criminal (razões de índole interna) e, por outro, razões de direito internacional e de política estadual (razões de
índole externa).

Começando pelas razões jurídico-internacionais e de política estadual, deve conceder-se que a assunção do
princípio da territorialidade como base do sistema de aplicação da lei penal no espaço é a via que facilitará em
maior medida a harmonia internacional, o respeito pela não ingerência em assuntos de um Estado
estrangeiro. Se a aplicação da lei penal nacional é rigorosamente demarcada por fronteiras de cada Estado, e se
a generalidade dos Estados aceita este princípio, está então descoberto o melhor caminho para que não se gerem
conflitos internacionais para que não se gerem conflitos internacionais de competência interestadual. Num
momento, como o presente, em que a política criminal tende a universalizar-se, a consagração da nacionalidade
como princípio básico de aplicação no espaço não poderia deixar de ser considerada como internacionalmente
disfuncional.

Quanto às razões jurídico-penais e de política criminal, deve dar-se ênfase à circunstância de ser na sede do
delito que mais vivamente se fazem sentir as necessidades de punição e de cumprimento das suas finalidades,
nomeadamente, de prevenção geral positiva. É a comunidade onde o facto teve lugar que viu a sua paz jurídica
por ele perturbada e que exige, por isso, que a sua confiança no ordenamento jurídico e as suas expetativas na

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vigência da norma sejam estabilizadas através da punição. A estas razões (“substantivas”) acresce (razão
“processual”) que o lugar do facto é também aquele onde melhor se pode investigá-lo e fazer a sua prova e onde,
por conseguinte, existem mais fundadas expetativas de que possa obter-se uma decisão judicial justa.

O princípio geral da territorialidade encontra-se consagrado no art.4º/a CP, segundo o qual “... a lei penal
portuguesa é aplicável a factos praticados no território português, seja qual for a nacionalidade do agente”.
Torna-se, assim, indispensável determinar, por um lado, o que é “território português” e, por outro, qual o locus
delicti, isto é, qual o lugar onde o facto é praticado. Quanto à primeira questão, ela não releva em princípio do
direito penal, mas do direito constitucional (art.5º CRP). Por isso, só a segunda deve ser aqui tratada.

1.2 O problema da “sede do delito”


Para determinação do locus ou sedes delicti – do lugar ou sede do delito – rege o art.7º, nos termos do qual “o
facto considera-se praticado tanto no lugar em que, total ou parcialmente, e sob qualquer forma de
comparticipação, o agente atuou, ou no caso de omissão, devia ter atuado, como naquele em que o resultado
típico ou o resultado não compreendido no tipo de crime se tiver produzido” (nº1); dispondo, ainda, que “no
caso de tentativa, o facto considera-se igualmente praticado no lugar em que, de acordo com a representação
do agente, o resultado se deveria ter produzido” (nº2). Diferentemente do que sucede com a determinação do
tempus delicti, em que o legislador optou pelo critério da conduta em desfavor do resultado, aqui ele cumulou
os dois critérios no sentido daquilo que doutrinalmente corre como solução mista ou plurilateral. Dada a
circunstância de diversos países poderem assumir nesta matéria critérios diferentes (uns, o critério da conduta;
outros, o critério do resultado), daí derivariam insuportáveis lacunas de punibilidade que uma política criminal
minimamente concertada não poderia admitir, bastando que o país onde a conduta teve lugar seguisse o critério
do resultado típico, enquanto o outro país onde o resultado se verificou aceitasse o critério da conduta. (Ex. de
escola: A é ofendido corporalmente em Portugal por B, mas vem em consequência falecer em Espanha; se
Portugal aceitasse o critério do resultado e Espanha o da conduta, B não poderia ser punido por homicídio, por
nenhuma das leis concorrentes poder ser aplicada em nome da territorialidade).

A revisão do CP de 1998 veio aditar ao art.7º duas conexões que, em rigor, não seriam exigidas pela solução
plurilateral: o local onde se produziu “o resultado não compreendido no tipo de crime” e, em caso de tentativa,
o local onde o resultado se deveria ter produzido “de acordo com a representação do agente”.

A primeira conexão – o local onde se produziu o “resultado não compreendido no tipo de crime” – diz
respeito aos chamados “crimes tipicamente formais mas substancialmente materiais”, que atingem a
consumação típica sem que se tenha verificado ainda a lesão que, em última análise, a lei quer evitar,
proporcionando uma tutela antecipada do bem jurídico (v.g., crime de fraude na obtenção de crédito – art.38º
DL 28/84). Em segundo lugar, ela abrange os “crimes de atentado” ou de “empreendimento”, que, embora
pressuponham um resultado que transcende a factualidade típica, se consumam no estádio de tentativa (v.g.,
crime de alteração violenta do Estado de direito – art.325º). Aquela conexão vale também para ou resultados
ou eventos agravantes nos “crimes agravados pelo resultado”. Em todos estes casos, a ocorrência em território
português do “resultado não compreendido no tipo do crime” fundamenta a competência da lei portuguesa,

71
assim se retomando o entendimento da nossa doutrina já à luz do CP de 1886. Duvidosa é a questão de saber se
podem reconduzir-se àquela expressão as meras “condições objetivas de punibilidade”. Parece de acolher a
formulação segundo a qual é necessário para tanto que tais condições “tenham sido causadas pela conduta e
sirvam para fixar o sentido antijurídico do facto”. Assim, a simples circunstância de um tribunal português
reconhecer juridicamente a insolvência do agente não torna a lei portuguesa competente para conhecer de um
eventual crime de insolvência dolosa (art.227º) cometido no estrangeiro por um estrangeiro, porque não pode
ver-se na decisão judicial, sequer num sentido lato, um “resultado não compreendido no tipo de crime”; mas a
lei portuguesa já será competente para conhecer do crime de embriaguez e intoxicação (art.295º) se a
autocolocação em estado de inimputabilidade se der no estrangeiro e a condição objetiva de punibilidade (a
prática de um facto ilícito típico) ocorrer em Portugal.

O art.7º/2, introduzido pela revisão do CP de 1998, acrescentou uma segunda inovação aos critérios de
determinação do locus delicti: local do facto é também, em caso de tentativa, o local onde o resultado deveria
ocorrer segundo a representação do agente. Deste jeito, cai sob a alçada da lei portuguesa o envio por agente
estrangeiro, a partir de país estrangeiro, de uma carta armadilhada destinada a explodir em Portugal e a matar
um cidadão aqui residente, que é, todavia, desativada pelas autoridades do Estado estrangeiro (se a carta
penetrar em território português há uma parcela do iter criminis que decorre em território nacional, o que
fundaria logo a competência da lei portuguesa no critério geral da territorialidade). A norma portuguesa limita
a competência da lei nacional aos casos em que a infração configura já uma tentativa. Na prática, a grande
maioria dos casos regulados por esta norma seria também punível através das regras da nacionalidade passiva
e da proteção dos interesses nacionais. De toda a maneira, no plano dogmático, não deixa de ser estranho
considerar como local da prática do facto o lugar onde o facto não chegou, efetivamente, a praticar-se.

O critério misto ou plurilateral não deixará de ser fonte de dificuldades práticas assinaláveis do ponto de vista
político-criminal. Quando a fixação da competência espacial da lei penal portuguesa tiver lugar em função do
lugar do “resultado”, haverá quase sempre uma pluralidade de pessoas a quem a nossa lei se aplica, mas não se
encontrarão em Portugal. Por outro lado, se o resultado se tiver verificado no estrangeiro, a competência
espacial da lei penal portuguesa torna-se, no mínimo, questionável, se o facto não for punível segundo a lei penal
do lugar do resultado.

1.3 Problemas particulares


Apesar da aparente clareza da solução plurilateral, alguns problemas ficam ainda em aberto. Desde logo, os
chamados “crimes continuados” (art.30º/2), em que uma pluralidade real de factos (que podem ser
cometidos em países diferentes) é juridicamente considerada uma unidade normativa. Na linha da solução
plurilateral – e coberta pelo texto do art.7º – está a solução de que deve, nestes casos, considerar-se bastante
que um dos factos se encontre abrangido pelo princípio da territorialidade.

Expressamente coberto pelas razões apontadas encontra-se o caso da comparticipação – que tenha lugar em
Portugal sob qualquer forma e, portanto, também sob a mera cumplicidade – num facto praticado no
estrangeiro; bem como a hipótese inversa de o facto se verificar em Portugal, mas a comparticipação ter lugar

72
no estrangeiro. A qualquer destas hipóteses é aplicável a lei penal portuguesa em nome do princípio da
territorialidade. Igualmente coberto encontra-se o caso da omissão, relativamente à qual vale como lugar do
delito aquele em que deveria ter tido lugar a ação esperada ou em que teve lugar o resultado típico.

Duvidosa é a solução que por vezes se aponta para os delitos itinerantes ou de trânsito; factos que, pelo seu
modo específico de execução, se põem em contacto com diversas ordens jurídicas nacionais (ex.: um pacote
contendo droga é enviado por navio na Colômbia, descarregado em Portugal, onde parte de comboio para o seu
destino, a Holanda). Uma certa doutrina entende, também aqui, que qualquer das ordens jurídicas contactadas
se torna aplicável em nome do princípio da territorialidade. A solução é político-criminalmente conveniente,
mas nem sempre de fácil compatibilização com o texto do art.7º.

Em via de princípio, a “nacionalidade” dos interesses que a norma visa proteger não deve assumir relevo para
o funcionamento do princípio da territorialidade, se aquela nacionalidade não encontrar tradução por forma
bastante no texto da lei portuguesa. Assim, ao estrangeiro que em Portugal viola a obrigação de alimentos
relativamente a pessoa residente no estrangeiro, deve ser aplicado o disposto no art.250º. Outra coisa
significaria uma limitação do princípio da territorialidade em função do princípio da defesa de interesses
nacionais, quando este é um princípio “complementar”, não um princípio limitador do princípio base.

1.4 O chamado “critério do pavilhão”


O princípio da territorialidade sofre um alargamento que se contém no art.4º/b e parifica com os factos
cometidos em território português, os que tenham lugar a bordo de navios ou aeronaves portugueses. Fala-
se de um “critério do pavilhão”, justificado pela consideração tradicional de que aqueles navios e aeronaves são,
ainda, ao menos para efeitos normativos, “território português”. Parece dever entender-se que, sempre que o
navio ou aeronave estejam surtos em porto ou aeroporto (em águas ou espaços aéreos territoriais) de país
diferente do do pavilhão, isso não retira competência à lei do lugar em nome do princípio da territorialidade; o
que só favorecerá a necessidade, eventualmente imperiosa, de intervenção imediata de autoridades policiais ou
mesmo judiciárias. Quando tal suceda, dar-se-á, no máximo, um conflito positivo de competências.

1.5 Uma nova extensão da competência da lei penal portuguesa: certos factos praticados a bordo de
aeronaves civis
O DL 254/2003, de 18-10, prevê, nos seus art.3º e 4º uma extensão da competência da lei penal portuguesa,
que passa a poder aplicar-se aos crimes contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e
autodeterminação sexual, a honra ou a propriedade (assim como os crimes previstos no art.4º/3 e 4º daquele
diploma), que sejam praticados a bordo de aeronave alugada a um operador que tenha a sua sede em território
português; ou, tratando-se de uma aeronave estrangeira que se não encontre nessas condições, se o local de
aterragem seguinte à prática do facto for em território português e o comandante da aeronave entregar o
presumível infrator às autoridades portuguesas. Esta extensão, assente na conjugação do critério formal do
pavilhão e de um critério material (limitação a certos crimes), deriva da tendência moderna da expansão das
jurisdições penais para uma prevenção e uma repressão eficazes dos crimes internacionais. Trata-se de uma
conexão de competência que se releva subsidiária relativamente à conexão territorial (v.g., caso a aeronave se

73
encontre, no momento da prática do facto, em espaço aéreo nacional), mas que parece dever preferir às
restantes, pois não está sujeita a condição alguma, nomeadamente ao requisito da dupla incriminação.

[Joana]
2. O princípio complementar da nacionalidade
2.1. Justificação e conteúdo
A complementaridade do princípio da nacionalidade relativamente ao princípio da territorialidade logo
significa que se não pretende, por meio dele, obviar a todo e qualquer crime que possa ser cometido por um
português fora do seu país.

Apenas se reconhece existirem casos perante os quais, se tudo repousasse no princípio português da
territorialidade, podem abrir-se lacunas de punibilidade indesejáveis para uma política criminal internacional
concertada e eficiente. E isto porque existe uma, máxima, aceite pelo direito internacional e comummente
seguida, atinente de forma imediata a toda a matéria da aplicação da lei penal de um país a factos cometidos por
um nacional no estrangeiro: a máxima da não-extradição de cidadãos nacionais. Se os não extradita, então os
princípios da conveniência internacional devem conduzir a que, uma vez que eles se encontrem de novo no país
da nacionalidade, o Estado nacional os puna: “dedere aut punire”, o Estado ou extradita (entrega) ou, quando
não extradita, pune (julga). Esta é a principal justificação deste princípio como complementar do da
territorialidade.

O que fica dito corresponde ao conteúdo tradicional do princípio da nacionalidade que, de acordo com o
fundamento e a teleologia que lhe foram apontados, surge como princípio da personalidade ativa: o agente é
um português. Fala-se, todavia, hoje também, a justo título, de um princípio da personalidade passiva, para
efeito de aplicação da lei penal portuguesa a factos cometidos no estrangeiro por estrangeiros contra
portugueses.

É óbvio, porém que este princípio da personalidade passiva radica num fundamento e numa teleologia que –
pode afirmar-se sem exagero – nada tem em comum com aqueles em que vimos assentar o princípio da
personalidade ativa. Com efeito, a máxima da não extradição de nacionais não desempenha aqui qualquer papel,
uma vez que relevante é a nacionalidade da vítima, não do agente. O que oferece fundamento ao princípio da
personalidade passiva é a necessidade, sentida pelo estado português, de proteger os cidadãos nacionais; é dito
por outras palavras, a exigência de proteção de nacionais perante factos contra eles cometidos por estrangeiros
no estrangeiro e, neste sentido, a proteção de interesses nacionais. O princípio da personalidade passiva possui
por isso um fundamento e uma teleologia que o identificam como princípio da defesa de interesses nacionais,
concretamente sob a forma de proteção pessoal (individual) daqueles interesses.

Sendo assim, a consideração teórica do princípio da personalidade passiva deveria ser levada a cabo, em rigor,
no âmbito do princípio da defesa dos interesses nacionais. Se assim não procedemos, antes a sua consideração
se faz conjuntamente com a do princípio da personalidade ativa, é porque o mesmo sucede no nosso CP. E ainda
e sobretudo porque as condições a que a nossa lei submete o principio da personalidade passiva são exatamente

74
as mesmas de que depende o principio da personalidade ativa e diferentes das que valem para o principio da
defesa (não individual, mas real) dos interesses nacionais; na medida em que para o principio da personalidade
ativa, mas não para o da proteção real dos interesses nacionais, valem as condições postas nos três apartados
da al. C) do artigo 5º/1.

O princípio da nacionalidade encontra-se consagrado, na forma normal do seu aparecimento –, e na verdade


tanto na sua vertente ativa, como na passiva – artigo 5º/1/c. De acordo com ele a lei penal portuguesa é aplicável
a factos cometidos fora do território nacional, por portugueses (principio da personalidade ativa) ou por
estrangeiros contra portugueses (principio da personalidade passiva), sob uma tríplice condição: a de os
agentes serem encontrados em Portugal; a de tais factos serem puníveis pela legislação do lugar em que tiverem
sido praticados, salvo quando nesse lugar se não exercer poder punitivo; e a de constituírem crime que admita
extradição e esta não possa ser concedida. Português para os efeitos em causa é todo aquele que como tal deva
ser considerado no momento do facto e segundo as normas da lei da nacionalidade.

2.2. Condições de aplicação


2.2.1. Que o agente seja encontrado em Portugal
A primeira condição – a de o agente ser encontrado em Portugal, inciso I do artigo 5º/1/c) – explica-se, quanto
ao princípio da personalidade ativa, por ser nela que se caracteriza a razão que lhe dá fundamento: a não
extradição de nacionais; e quanto ao principio da personalidade passiva por nele se tratar de uma extensão do
princípio da nacionalidade justificada por razões de índole muito especial. Tem-se muitas vezes apontado esta
condição, na nossa doutrina, como exemplo de uma condição objetiva de punibilidade. Tomada esta expressão
no seu teor literal, a afirmação é correta. Como correta se mostra quando com ela se pretende significar que tal
exigência não constitui elemento do tipo objetivo de ilícito e não precisa, por isso, de ser abrangida pelo dolo e
pela culpa do agente. Dogmaticamente, porém, ela nada possui de comum com o fundamento e a teleologia das
verdadeiras condições objetivas de punibilidade, antes constitui uma condição de aplicação no espaço da lei
portuguesa. Resta saber se uma tal condição, em definitivo, se justifica totalmente, na medida em que ela
condiciona, porventura em medida demasiado lata, a proteção penal que o Estado português se dispõe a
oferecer aos seus nacionais, isto é, afinal, a amplitude do principio da personalidade passiva; sobre tudo num
momento em que a figura do julgamento de ausentes em processo penal regressou ao sistema legal (CPP, art.
232º e ss).

2.2.2. Que o facto seja também punível pela legislação do lugar em que tiver sido praticado
A exigência de que o facto seja também punível pela legislação do lugar em que tiver sido praticado (inciso II do
art. 5º/1/c)) é a condição materialmente mais importante de aplicação do princípio da nacionalidade e que mais
claramente o converte em princípio subsidiário.

Uma tal exigência é, pelo menos em via de princípio, política-criminalmente justificada e teleologicamente plena
de sentido. Não é em regra razoável estar a submeter ao poder punitivo alguém que praticou o facto num lugar
onde ele não é considerado penalmente relevante e onde, por isso, não se fazem sentir quaisquer exigências
preventivas quer sob a forma de tutela das expetativas comunitárias na manutenção da validade da norma

75
violada – norma que, em definitivo, não existe –, quer sob a forma de uma socialização de que, segundo a lei do
lugar, o agente não carece. Só considerações de retribuição do crime como um mal absoluto, sem localização
espacial, poderiam levar a conclusão diferente. Pelo menos no que tange o princípio da personalidade ativa. Já
considerando o fundamento da personalidade passiva, a exigência torna-se menos clara, uma vez que o que aí
está em causa é um propósito de proteção de interesses (pessoais) especificamente nacionais.

2.2.3. Que o facto constitua crime que admita extradição e esta não possa ser concedida
O inciso II do artigo 5º/1/c) põe como última condição de aplicação do princípio da personalidade, ativa ou
passiva, que o facto constitua crime que admita extradição e esta não possa ser concedida. Trata-se aqui
claramente de uma reafirmação da conceção do legislador segundo a qual o princípio da territorialidade deva
não apenas no conspecto nacional, mas internacional constituir o princípio-base, e o princípio da nacionalidade
o complemento. Se a extradição fosse jurídica e faticamente possível ela deveria ser concedida e o princípio
pessoal deveria regredir: do ponto de vista do princípio-base da territorialidade antes dedere que punire. Se
estiver em causa o princípio da nacionalidade ativa, a extradição só é possível nos apertados limites do regime
previsto no art. 33º/3 da CRP e no art. 32º/2, da Lei 144/99 (lei de cooperação judiciária internacional em
matéria penal). Com efeito, rompendo com uma tradição plurissecular, a Lei Constitucional 1/97 introduziu no
nosso ordenamento jurídico a possibilidade de extradição de nacionais, até então absolutamente proibida pela
constituição; a causa imediata da modificação deveu-se por certo à vontade de dar cumprimento à regra posta
pelo art. 7º/1 da Convenção relativa à extradição entre os estados-membros da união europeia, assinada em
27-9-1996. Embora esta norma admitisse a formulação de reservas – e, portanto, a manutenção da proibição de
extradição de nacionais –, O Estado Português optou por “abrir” o seu direito à extradição de nacionais em certos
casos contados e taxativamente descritos, de acordo com a faculdade concedida no art. 7º/2 da Convenção.
Assim, o atual art. 33º/3 da CRP (só) permite a extradição de nacionais desde que se verifiquem os seguintes
requisitos (cumulativos):
a) Existência de reciprocidade de tratamento por parte do Estado requerente;
b) Consagração desse reciprocidade em convenção internacional;
c) Tratar-se de casos de terrorismo ou de criminalidade internacional organizada;
d) Consagração de garantias de um processo justo e equitativo pela ordem jurídica do
Estado requerente.

Crime que admita extradição é qualquer um à exceção da “infração de natureza política ou infração conexa a
infração política segundo as conceções do direito português” e do “crime militar que não seja simultaneamente
previsto na lei comum” (art. 7º/1/a) e b) da Lei da cooperação judiciaria internacional). Porém, a própria lei
retira, no art.7º/2, a natureza política a um extenso leque de crimes (genocídio, crimes contra a humanidade,
etc.), independentemente da motivação que lhes presida. Alem disso, há que ter em conta, nas relações com os
restantes estados-membros da União Europeia, que o art. 5º da Convenção de extradição de 1996 exclui
expressamente a natureza política do crime como fundamento da recusa de extradição. Ora dada a prevalência
das normas contidas em convenções internacionais, sobre a lei ordinária interna, a eventual natureza política
de certa infração não permitirá ao Estado Português recusar a extradição no âmbito de aplicação da referida
Convenção.

76
Se o crime é, pela sua natureza, passível de extradição, pode, todavia, esta não ser concedida, seja porque, pura
e simplesmente não foi requerida – aqui se diferenciando o regime do previsto no art. 5º/1/e) –, seja por efeito
das normas, substantivas e adjetivas, em matéria de extradição. Algumas das quais se inscrevem logo no texto
constitucional: justamente a que proíbe a extradição de nacionais fora dos casos previstos (art. 33º/3); a que
impede a extradição pedida por motivos políticos (artigo 33º/4); e as que vedam a extradição por crimes a que
correspondam certas reações criminais segundo o Direito do Estado requerente: a pena de morte e a pena de
que resulte lesão irreversível da integridade física (art. 33º/4), bem como a pena ou medida de segurança
privativa ou restritiva da liberdade de caráter perpétuo ou de duração indefinida (art. 33º/5). No que diz
respeito às duas primeiras proibições de extraditar, elas cessam apenas se o Estado requerente previamente
comutar essas penas ou medidas ou se aceitar a conversão das mesmas por um tribunal português, segundo a
lei portuguesa (art.6º/2/a) e c) da Lei 144/99).

A terceira proibição cessa, para além destes casos, se existirem condições de reciprocidade estabelecidas em
convenção internacional e se o Estado requerente der garantias de que tal pena ou medida não será aplicada ou
executada (art. 33º/5 da CRP e art. 6º/2/b) da Lei 144/99).

A prevalência da extradição sobre a competência da lei portuguesa em razão da nacionalidade vale, também,
para a entrega efetuada ao abrigo da Lei 65/2003, de 23-8, relativa ao mandado de detenção europeu,
aprovada em cumprimento da Decisão – quadro 2002/584/JAI, do conselho, de 13-6. Assim, a competência
extraterritorial da lei portuguesa em virtude da nacionalidade (ativa ou passiva) só deve exercer-se na ausência
de um pedido de entrega formulado por um estado da União, ou na impossibilidade de lhe dar cumprimento
quando subsista, apesar dela, uma pretensão penal do estado português (art.11/d) e e), bem como os casos de
ausência das garantias previstas no art.13º daquele diploma). Esta regra não é, todavia, absolutamente rígida,
devendo ressalvar-se o fator de flexibilidade introduzido pelo art. 12º/1/b) da lei 65/2003, que admite a
possibilidade de recusa do pedido de entrega com fundamento na pendência, em Portugal, de um procedimento
penal, pelos mesmos factos, contra a pessoa procurada. Assim, razões pragmáticas poderão levar as autoridades
portuguesas a recusar um pedido de entrega para, julgamento da pessoa procurada quando o procedimento
penal nacional se encontre já em fase de julgamento ou mesmo de recurso.

2.3. Extensão do princípio da nacionalidade


Como uma extensão do princípio da nacionalidade depara-se no art. 5º/1/d), segundo o qual a lei penal
portuguesa é ainda aplicável a factos cometidos fora do território nacional “contra portugueses, por
portugueses que viveram habitualmente em Portugal ao tempo da sua prática e aqui forem encontrados”.
Extensão que deriva de se não fazerem nesta sede as exigências constantes dos incisos II e III do art. 5º/1/c).
Uma tal extensão foi justificada com a consideração de que importaria impedir a impunibilidade nos casos –,
que, por serem excecionais, não seriam menos chocantes – em que um português se dirige ao estrangeiro para
aí cometer um facto que, se bem que ilícito segundo a lex loci, constitui todavia um crime segundo a lex patrioe,
com a agravante de um tal crime ser cometido contra um português; e em que, uma vez o crime cometido, o

77
agente volta a Portugal provavelmente para aqui continuar a viver tranquilamente. Em casos tais – argumentou-
se – o agente teria adquirido, se a extensão em causa não existisse, um verdadeiro “direito à impunidade”
através de uma fraude à lei penal. Por isso uma tal lacuna devia ser incondicionalmente preenchida.

A referida lacuna foi exemplificada com o caso da mulher portuguesa que se dirigisse a uma clínica estrangeira
para aí levar a cabo uma interrupção da gravidez lícita segundo a lex loci, mas em condições que, em Portugal,
conduziriam à punição por aborto (art.140º e 142º). Ou o caso do português que se dirigisse a país estrangeiro
para auxiliar outro português a suicidar-se (art. 135º), se a ajuda ao suicídio não fosse punível nesse país (ex.
Alemanha).

A ser assim, pode duvidar-se da necessidade político-criminal desta extensão do princípio da nacionalidade.
Sobre tudo na medida em que, não sendo o facto punível segundo a lei do lugar, isso seja sinal de que a sua
incriminação releva mais de conceções éticas discutíveis também para a comunidade nacional, ou se traduz num
“crime sem vítima” ou figura jurídica penal próxima. Não parece, por outro lado, que, possa argumentar-se com
a ideia de fraude à Lei, que não tem qualquer tradução no texto legal e provavelmente nem se dará nos casos
em que a extensão aparece porventura mais justificada. A sua justificação – com eventuais consequências no
seu âmbito de aplicação – parece, pois, só poder ser vista na fidelidade do agente e da vitima aos princípios
fundamentais de vista na fidelidade do agente e da vitima aos princípios fundamentais de uma comunidade a
que pertencem e onde o agente habitualmente vive.

[Margarida]
2.3 Extensão do Princípio da Nacionalidade
Em termos de conexão processual no âmbito da aplicação do direito penal português é relevante ter em conta
a competência do sistema judiciário nacional para processar certos casos. Coloca-se, assim, a questão de se
saber em que circunstancias é que a lei portuguesa pode ser aplicada, ou seja, em que medida é que pode ser
aberto um processo, em Portugal sobre um crime cometido no estrangeiro. É certo que está aqui em causa o
Princípio da Territorialidade, que tem como princípio complementar o Princípio da Nacionalidade.

O Princípio da Nacionalidade está consagrado no art. 5º-1/e) CP, quer na sua forma ativa- crimes cometidos
no estrangeiro por portugueses- como na sua forma passiva- crimes cometidos no estrangeiro contra
portugueses. Contudo, houve uma necessidade de extensão deste, expressa no art. 5º-1/d): segundo este, a lei
penal portuguesa é ainda aplicável a factos cometidos fora do território nacional “contra portugueses, por
portugueses que viverem habitualmente em Portugal ao tempo da sua prática e aqui forem encontrados”. Esta
extensão foi justificada com a consideração de que importaria impedir a impunidade nos casos em que um
português se dirige ao estrangeiro para aí cometer um facto que, se bem que lícito segundo a lei local, constitui
um crime segundo a lei nacional, com a agravante de um tal crime ser cometido contra um português e em que,
uma vez o crime cometido, o agente volta a Portugal provavelmente para continuar a viver tranquilamente.
Existiria, sem esta extensão, um verdadeiro “direito à impunidade”.

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Pode-se duvidar da necessidade político-criminal desta extensão do Princípio da Nacionalidade, por se pôr em
questão se a punição do facto seria por questões éticas discutíveis (pela comunidade nacional e global) ou se
traduzir num “crime sem vítima”.

Alguns autores referem-se ao “direito à impunidade” nestas situações derivada por fraude à lei penal, mas esta
ideia não tem qualquer tradução no texto legal e não se adequar a certos casos a que a extensão parece mais
justificada. Assim, parece ser mais plausível que a justificação desta seja pelo dever de fidelidade do agente e da
vítima aos princípios fundamentais da comunidade a que pertencem/vivem.

3. O Princípio complementar da defesa (proteção) dos interesses nacionais


O princípio da proteção dos interesses nacionais trata da específica proteção que deve ser concedida a bens
jurídicos portugueses, independentemente da nacionalidade do agente, de os crimes serem cometidos no
estrangeiro e mesmo do que a seu respeito disponha a lei do lugar (onde foram cometidos). A nível internacional
foram feitos esforços de aproximação e de cooperação entre as diversas leis nacionais, pois muitas delas não
punem factos, ainda que praticados no seu âmbito territorial, exclusivamente dirigidos à lesão de bens jurídicos
próprios de outro país. É o que sucede com a generalidade de crimes contra o Estado (terrorismo, por ex.), onde
a área de tutela típica cobre apensas os interesses do Estado Português. Por isso, os estados nacionais veem-se
na necessidade de fazer intervir a proteção penal dos seus interesses específicos perante factos cometidos no
estrangeiro, mas diretamente dirigidos à lesão de bens jurídicos nacionais. Esta intervenção é fundamentada
pela relação que o próprio agente estabeleceu com a ordem jurídico-penal portuguesa ao dirigir o seu facto
contra interesses especificamente portugueses. Em adição, se o Estado em cujo o crime foi praticado não estiver
em condições para perseguir os infratores ou não tiver vontade de o fazer, está claro que o Estado Português
terá de munir-se dos instrumentos necessários para defender os seus interesses e, daí, intervir.

Este princípio tem a ver com a defesa de bens jurídicos nacionais segundo a sua natureza especifica, ou seja,
segundo a sua substância (o que o torna em interesse nacional), o que o torna num princípio de proteção real.
Deste modo, a lei enumera taxativamente os típicos factos que carecem de defesa nacional – o art 5º-1/a) que
remete para os arts. 221º, 262º a 271º, 308º a 321º e do 325º ao 345º. Como resultado, o aplicador terá de
investigar se os crimes justificam a proteção real referida. Assinale-se que, em casos em que o facto tenha sido
praticado por um português, o princípio da proteção real é preferido ao princípio da personalidade ativa quando
ambos sejam convocados no caso concreto- não se torna necessária para aplicação da lei penal portuguesa a
verificação dos requisitos do art. 5º-1/c).

4. O Princípio complementar da universalidade


Nesta linha e com fundamento na “solidariedade do mundo cultural face ao delito” e a “luta contra a delinquência
internacional perigosa” (Jescheck), surge-nos o principio da universalidade que visa permitir a aplicação da lei
penal portuguesa a factos cometidos no estrangeiro que atentam contra os bens jurídicos carecidos de proteção
internacional ou que o Estado português se obrigou internacionalmente a proteger. Trata-se, assim, do
reconhecimento do carater supranacional de certos bens jurídicos que apelam para a sua proteção a nível
mundial (explicito no art 5º.-1/b)), nomeadamente, os crimes dos arts. 159º, 160º, 169º, 172º, 173º, 176º e

79
237º. Além destes, o art. 5º-1/d) alarga o princípio da universalidade aos crimes de ofensas corporais graves,
coação sexual e violação, sempre que a vítima for menor.

Para se aplicar a lei penal portuguesa à luz deste princípio são necessárias duas condições (dupla condição): o
agente seja encontrado em Portugal e que não possa ser extraditado. Nesta última condição é necessário que
tenha havido um pedido de extradição que não pode ser entendido (segundo uma interpretação teológica
especifica do princípio da universalidade ao art 5º-1) CP).

Uma das fontes do princípio pode ser o direito internacional convencional a que Portugal se tenha obrigado.
Nesse sentido, dispõe o art 5º-2, sem quaisquer requisitos gerais de que dependa a aplicação do mesmo que
não estejam nos concretos tratados ou convenções em que aquele se plasme. (ex. terrorismo, trafico de droga,
etc.)

5. O princípio complementar da administração supletiva da justiça penal


Ao contrário do que sucede com todos os princípios anteriormente indicados, este princípio não se trata de um
princípio de conexão do poder punitivo do Estado nacional com o crime cometido. Trata-se antes de uma
atuação do juiz português em vez ou em lugar do juiz estrangeiro, é um princípio fundamentalmente
administrativo supletivo. O seu objetivo é colmatar a grande lacuna que existira no sistema de aplicação da lei
penal no espaço: Se um cidadão estrangeiro, tendo praticado um crime, normalmente grave, no estrangeiro,
viesse procurar refúgio em Portugal, não podia ser julgado por falta de conexão relevante com a lei portuguesa.
Por outro lado, também não podia ser extraditado, dada as proibições de extradição impostas pelo sistema
nacional.

Este princípio tomou grande importância pelo aumento exponencial da mobilidade de pessoas nos últimos anos
e veio resguardar Portugal de se tornar um “valhacouto de criminosos estrangeiros”.

Contudo, para se poder aplicar a lei portuguesa a factos cometidos por estrangeiros no estrangeiro, à luz do
princípio da administração supletiva, são precisas três condições: que o agente seja encontrado em Portugal, a
sua extradição tenha sido requerida e que o facto constitua crime que admita extradição e esta não possa ser
concedida. É de notar que Extradição aqui engloba a entrega a Tribunais Penais Internacionais e extradição que
resulte de um mandado de detenção europeu nos termos da lei., mas só nos casos em que um desses pedidos de
entrega não seja satisfeito e não se aplique nenhuma das conexões precedentes é que a lei portuguesa é
competente para conhecer os factos em virtude, segundo o art 5º-1/e).

III. Condições gerais de aplicação da lei penal portuguesa a factos cometidos no estrangeiro Uma
condição fundamental da aplicação extraterritorial da lei portuguesa passa pelo respeito ao princípio jurídico-
constitucional ne bis in idem, segundo o qual “ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática
do mesmo crime” (art. 29º5 CRP), garantindo que todas as pessoas e todos os tribunais sejam abrangidos por
este princípio. Portanto, a aplicação da lei portuguesa só terá lugar se o agente não tiver sido julgado no país da
prática do facto ou se houver subtraído ao cumprimento total ou parcial da condenação.

80
Segundo a nossa constituição politico-criminal, o critério de territorialidade deve, efetivamente, constituir um
princípio prioritário e todos os outros devem ser meramente supletivos, a fim de prevenir a impunidade que
poderia resultar de conflitos negativos de jurisdição (conflitos de competências, por ex.)

Ora, esta solução pode suscitar dúvidas no que toca à sua aplicação aos casos em que intervenha o princípio da
defesa dos interesses nacionais na sua vertente real; tem-se dito, por conseguinte, que não se deve confiar a
apreciação de ofensas a interesses nacionais específicos a tribunais estrangeiros. Contudo, é possível pôr em
causa a validade deste argumento, por se denotar uma certa desconfiança de princípio perante sentenças de
tribunais estrangeiros, o que será inadmissível à luz dos esforços de cooperação judiciária internacional. Este é
refutado porque os interesses dignos de proteção ou são correspondentes aos interesses protegidos pela lex
loci e a proteção local pode abrangê-los ou não são protegidos e o problema nem se suscita, porque o agente
não será julgado no país estrangeiro.

Outra condição fundamental será que o facto deve ser julgado pelos tribunais portugueses “segundo a lei do país
em que tiver sido praticado sempre que esta seja concretamente mais favorável ao delinquente”. Trata-se aqui de
uma verdadeira aplicação da lei penal estrangeira pelo tribunal português, por respeito ao princípio da
aplicação do regime mais favorável.

No âmbito deste principio do regime mais favorável, dois problemas são suscitados: o de saber se há certas
categorias de crimes que não devem ser afastadas do âmbito deste principio e o de saber como se devem
resolver as dificuldades práticas que possam resultar da aplicação da lei estrangeira no que respeita à
assimilação das sanções previstas por esta. Ao primeiro, acrescenta-se, para o resolver, a ideia de que os crimes
que são ofensas aos interesses nacionais reais também serão excluídos da abrangência do regime mais
favorável, segundo o art 6º-3 CP. O segundo problema não possui acuidade entre nós, porque nos casos como
a pena de morte (não admitida no nosso sistema), o que valerá será a lex melior. Daí o CP português consagrar
penas substitutivas das que não são admitidas no sistema, através de uma clausula geral de conversão
consagrada no art 6º/2 CP.

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PARTE II – A DOUTRINA GERAL DO CRIME
TÍTULO I – A CONSTRUÇÃO DA DOUTRINA DO CRIME (DO FACTO PUNÍVEL)

10º CAPÍTULO – QUESTÕES FUNDAMENTAIS


Rita Figueiredo – páginas 235-251

I. Sentido, método e estrutura da conceitualização do facto punível


Todo o direito penal é direito penal do facto, e não direito penal do agente – num duplo sentido:
❭ Toda a regulamentação jurídico-penal liga a punibilidade a tipos de factos singulares e à sua natureza;
não a tipos de agentes e às caraterísticas da sua personalidade.
❭ As sanções aplicadas ao agente constituem consequências daqueles factos singulares e neles se
fundamentam; não são formas de reação contra uma certa ou um tipo de personalidade.

Nesta aceção pode e deve logo ser dito que a construção dogmática do conceito de crime é, em última análise, a
construção do conceito de facto punível. O facto, e só ele, constitui o fundamento e o limite dogmáticos do
conceito geral de crime. Assim, perguntar por este é o mesmo que perguntar pelo conceito de facto punível ou
de facto criminoso.

A tentativa de apreensão dogmática deste conceito jurídico-penal do “facto” ocorreu quase sempre na base de
um procedimento metódico categorial-classificatório, através do qual se toma como base um conceito geral –
neste caso, o conceito de ação. Isto não significa desagregar o conceito de crime, mas sim alcançar a sua
compreensão unitária através da consideração sucessiva dos seus elementos constitutivos.

Assim se chega à compreensão do facto (e, portanto, de todo e qualquer crime) como conjunto de 5 elementos:
1. Ação (conceção tripartida)
2. Tipicidade
3. Ilicitude
4. Culpa
5. Punibilidade

II. Sobre a evolução histórica da doutrina geral do facto punível


Distinguir-se-ão, de seguida, três grandes fases de evolução da doutrina do facto punível:
1º. Conceção clássica – naturalismo e juspositivismo
2º. Conceção neoclássica – normativismo jurídico de raiz neokantiana
3º. Conceção finalista – conceção ôntica ou regional-ontológica do direito, ligada à fenomenologia e a uma
filosofia material dos valores

Cada uma destas conceções, mais do que substituir, tentou superar as anteriores. No entanto, nenhuma das
teorias conseguiu afastar completamente as outras, continuando, ainda hoje, vivos pensamentos dos três
sistemas.

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1. A conceção “clássica” (positivista-naturalista)
1.1 Exposição sumária
A conceção “clássica” do facto punível assenta numa visão influenciada pela então dita Escola Moderna e, de
forma geral, pelo naturalismo positivista que caraterizou o monismo cientifico próprio do pensamento da
segunda metade do séc. XIX.
↳ O direito teria como ideal a exatidão científica própria das ciências da natureza
↳ O sistema do facto punível haveria de ser apenas constituído por realidades mensuráveis e
empiricamente comprováveis, pertencentes à facticidade (objetiva) do mundo exterior ou antes a
processos psíquicos internos (subjetivos)

Assim, esta corrente apresenta-nos uma bipartição do conceito de crime:


1. Elementos constitutivos na vertente objetiva – a ação típica e ilícita
2. Elementos constitutivos na vertente subjetiva – a ação culposa

Nota: conceção ainda hoje muito presente na doutrina francesa que se limita a distinguir no conceito de crime
o elemento material e elemento moral da infração.

Vertente Objetiva:
❭ Esta conceção via a ação como o movimento corporal determinante de uma modificação do mundo exterior,
ligada causalmente à vontade do agente. Por exemplo: dou um pontapé a uma pedra e com esse movimento causei
um dano – parti uma janela. Temos aqui um conceito de ação naturalista, não há aqui qualquer valoração.

❭ Essa ação tornar-se-ia uma ação típica desde que fosse lógico-formalmente subsumível num tipo legal de
crime (numa descrição puramente externo-objetiva da realização da ação), indiferente a valores e a
sentidos. Isto é, a conduta é típica quando surja a descrição dessa ação numa lei penal.
❭ E, por sua vez, essa ação típica tornar-se-ia ilícita se, no caso, não interviesse uma justificação (ou seja, uma
situação – legítima defesa, estado de necessidade, obediência devida, etc. – que excecionalmente tornasse
a ação típica em ação lícita aceite/permitida pelo direito). No caso dessa justificação não existir, fica
definitivamente determinada a contrariedade da ação ao ordenamento jurídico. Isto significa que, para esta
conceção, a ilicitude afere-se em resultado da contrariedade à ordem jurídica, mas, na prática, traduz-se
em ausência de causas de justificação de exclusão da ilicitude.

Vertente Subjetiva:
❭ A ação típica e ilícita tornar-se-ia culposa sempre que fosse possível comprovar a existência de um nexo
psicológico, entre o agente e o facto objetivo, suscetível de legitimar a imputação do facto ao agente a título
de dolo (conhecimento e vontade de realização do facto) ou de negligência (deficiente tensão de vontade
impeditiva de prever corretamente a realização do facto).

1.2 Apreciação crítica


A partir de certo momento entendeu-se que este sistema, assim delineado, não podia prevalecer. Porquê?

83
1. O conceito de ação, ao exigir um movimento corpóreo e uma modificação do mundo exterior, restringia de
forma inadmissível a base de toda a construção. Se aceitássemos essa ideia, poderíamos chegar a afirmações
muito estranhas, para além de que teríamos graves problemas nos casos de omissão.
↪ Exemplo 1: no crime de injúria, a ação consistiria na emissão de ondas sonoras dirigidas aparelho auditivo do
recetor
↪ Exemplo 2: no crime por omissão, o que relevaria como ação seria a ação precedente, ou seja, no caso de uma
mãe que deixa morrer o seu bebé à fome, ela seria punida não por isso mas por ter ido passar o fim de semana
fora em vez de amamentar a criança. Aqui, ainda que haja uma modificação do mundo exterior (o bebé morreu),
não existe um movimento corpóreo que leve a esse resultado.
2. Para além disso, esta conceção reduz a tipicidade a uma operação lógico-formal de subsunção a um certo tipo
de crime, esquecendo o sentido social da ação. Faz-se uma apreciação puramente formal.
↪ Exemplo: esta conceção levaria a que igualássemos o ato do cirurgião que salva a vida do paciente e o ato do
faquista que esventra a sua vítima.
3. Por outro lado, reduzir o juízo de ilicitude à “simples” ausência de uma causa de justificação do facto típico
constituiria uma compreensão paupérrima e inexata daquilo em que consiste a contrariedade à ordem
pública.
4. Por último, a conceção psicológica de culpa esqueceria que também o inimputável (por definição, incapaz de
culpa) pode agir com dolo ou negligência. Esqueceria que na negligência, ao menos na inconsciente (onde
não há previsão do resultado), não existe qualquer relação psicológica comprovável entre o agente e o facto,
antes ausência dela. Por exemplo: o faroleiro que se deixa adormecer e não dá o sinal devido. E esqueceria também,
por outro lado, que independentemente da verificação do dolo ou da negligência, existem circunstâncias que
devem excluir a culpa, nomeadamente situações de falta de consciência do ilícito ou de inexigibilidade de
outro comportamento.

No entanto, não deixamos de reconhecer o mérito da conceção da escola clássica, positiva em certos aspetos:
✓ Pela primeira vez, erigiu um sistema do crime assente numa rigorosa metódica categorial-
classificatória, dotado de uma notável clareza e simplicidade;
✓ Sistema esse baseado numa preocupação de segurança e de certeza, requerida pela ideia do Estado de
Direito
✓ E que consistiu numa realização prática do princípio da legalidade.

Ainda assim, as suas insuficiências não puderam ser mais escondidas:


☓ O Direito não participa do monismo das ciências naturais, trata com realidades que excedem a
experiência psicofísica e que não se inscrevem de modo exclusivo no mundo do ser;
☓ O pensamento jurídico não se deixa comandar por uma metodologia de cariz positivista bem se esgota
em operações de pura lógica formal.

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2. A conceção neoclássica (normativista)
2.1 Exposição sumária
A conceção neoclássica funda-se na filosofia dos valores de origem neokantiana (desenvolvida no inicio do séc.
XX, pela Escola do sudoeste alemão).
↳ Pretende retirar o direito do mundo naturalista do “ser” e, ao invés, enquanto “ciência do espírito”, situá-
lo numa zona intermediária entre esse mundo e o do puro “dever-ser” – mundo da axiologia e dos
sentidos

Assim, passou a considerar-se:


❭ O ilícito como “danosidade social”, apresentando-se como um conglomerado de elementos objetivos e
subjetivos, indispensável para a partir dele se concluir pela contrariedade material do facto à ordem
jurídica. Exemplo: nem toda a subtração de coisa móvel alheia é ilícita no sentido do tipo de furto, mas só aquela
que ocorrer com ilegítima intenção de apropriação

❭ A culpa como “censurabilidade” do agente por ter agido como agiu, quando podia ter agido de forma
diferente. Passou a funcionar como um juízo de censura (conceção normativa da culpa), sendo constituída
por três elementos:
1) imputabilidade – como capacidade do agente de avaliar a ilicitude do facto e de se determinar por
essa avaliação
2) dolo ou negligência – como formas ou graus de culpa
3) exigibilidade de um comportamento adequado ao direito
❭ A tipicidade como uma descrição formal-externa de comportamentos, mas materialmente como uma
unidade de sentido socialmente danoso, como comportamento lesivo de bens juridicamente protegido,
para a qual relevavam não só elementos objetivos mas também subjetivos

A ação continuou a ser concebida, no essencial, como comportamento humano causalmente determinante de
uma modificação do mundo exterior ligada à vontade do agente.

2.2 Apreciação crítica


Muitas das aquisições desta conceção permanecem hoje irrenunciáveis, mas outras são ainda discutidas.

☓ Os seus fundamentos ideológicos e filosóficos devem considerar-se ultrapassados: a essência do direito


já não se considera compatível com a profunda cisão entre o mundo do ser e o mundo do dever-ser que
as correntes neokantiana supunham. Para além de que essa cisão, pensada até ao fim, se torna suscetível
de reeditar muitas das teses do naturalismo positivista que com ela se tinha procurado ultrapassar.
☓ A crítica dirigiu-se sobretudo ao facto de esta conceção continuar a partir de um conceito mecânico-
causalista da ação, esquecendo que não é aí que reside a essência do atuar humano. Assim, todos os erros
na construção posterior do sistema teriam aqui a sua origem:

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− O ilícito continuaria, apesar de nele se terem já introduzido elementos subjetivos, a constituir uma
entidade fundamentalmente objetiva, que esquecia/minimizava a sua carga ético-pessoal; não
podendo, por isso, servir para caraterizar corretamente a contrariedade da ação à ordem pública;
− A culpa, apesar de se dizer concebida como um juízo de censura, continuava a submeter ao mesmo
denominador caraterísticas que são na verdade elementos de puro juízo (como a imputabilidade
e a exigibilidade) e características que são elementos do substrato que deve ser valorado como
censurável (como o dolo e a negligência).

3. A conceção finalista (ôntico-fenomenológica)


3.1 Exposição sumária
Dá-se a substituição do Estado de Direito formal pelo Estado de Direito material. Agora tentava-se limitar toda
a normatividade por leis estruturais determinadas do “ser” (pela “natureza das coisas”), as quais, uma vez
estabelecidas, serviriam de fundamento vinculante às ciências do homem, e, por isso, também ao direito.

Agora, vemos o conceito de ação como um conceito pré-jurídico que teria de ser ontologicamente determinado
e que, uma vez aceite pelo legislador, não poderia por ele ser reconformado, antes teria de ser aceite, não só em
si mesmo, como em todas as suas implicações.

Welzel encontrou a verdadeira “essência” da ação humana, ao verificar que o homem dirige finalisticamente os
processos causais naturais em direção a fins mentalmente antecipados, escolhendo para o efeito os meios
correspondentes: toda a ação humana é, assim, supradeterminação final de um processo causal.

É a partir desta conceção “ontológica” de ação que é construído todo o sistema do facto punível:
1. O dolo passa agora a conformar um elemento essencial de tipicidade. Não basta então dizer que o tipo
pode ser constituído, em certos casos, por elementos subjetivos, ao lado do seu núcleo essencial de
elementos objetivos. É necessário afirmar que, a par destes (elementos objetivos – os elementos
descritivos do agente, da conduta e do seu circunstancialismo), o tipo é sempre constituído por uma
vertente subjetiva também: o dolo ou, eventualmente, a negligência.
2. Só da conjugação destas duas vertentes pode resultar o juízo de contrariedade da ação à ordem jurídica –
o juízo de ilicitude, esta também não causal, mas pessoal. Assim, substituem-se as anteriores conceções
causais-objetivas pela conceção pessoal-final do ilícito.
3. Só assim também se atinge uma verdadeira conceção normativa da culpa, como era objetivo da orientação
neoclássica. O erro desta foi continuar a juntar na categoria da culpa a valoração (o juízo de culpa) com o
objeto da valoração (o dolo e a neglicência). Se retirarmos este objeto da valoração da categoria da culpa
e o pusermos no tipo de ilícito, então “reduzimos” a culpa àquilo que verdadeiramente ela deveria ser: um
“puro juízo de (des)valor”, um autentico juízo de censura – que inclui os elementos da imputabilidade, da
consciência (ao menos potencial) do ilícito, e da exigibilidade de outro comportamento.

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3.2 Apreciação crítica
Por mais cerrada crítica que se possa fazer à escola finalista, ela conduziu a aquisições científicas às quais ainda
hoje não se deve renunciar.

Independentemente dos supostos ideológicos e filosóficos da escola finalista, a sua postura metodológica não
pode ser aceite. O pretenso ontologismo que estaria na base do sistema (e que o tornaria imutável, válido para
todos os tempos e lugares) acabou por relevar um refinado e inflexível conceitualismo, face ao qual pouco resta
para as opções jurídico-políticas (e neste âmbito, político-criminais) do legislador e para a atividade
concretizadora do intérprete e aplicador. Assim, tudo residiria, afinal e só, em determinar as estruturas lógico-
materiais contidas nos conceitos usados pelo legislador, e a partir delas deduzir a regulamentação ou a solução
aplicáveis ao caso.

Isto seria simplesmente repetir o erro do direito natural clássico – ao preencher os conceitos do direito positivo
com os conteúdos considerados normativamente mais corretos, para depois os deduzir do corpo do direito
natural e os apresentar assim como vinculantes e livres de discussão.

☓ A supradeterminação final de um processo causal é tão estranha a sentidos e a valores como o conceito causal
de ação que a conceção finalista pretendeu refutar. Assim se defende que a determinação finalista do
conceito de ação radica num falso ontologismo (porque a ciência biológica sustenta que também alguns
animais antecipam fins e escolhem os meios para os alcançar com a sua ação). Para além disso, revela-se
insuscetível de oferecer uma base unitária a todo o atuar humano que importa para o direito penal.

✓ No que respeita à conceção do ilícito pessoal, as aquisições da doutrina finalista apresentam-se ainda hoje
cheias de valor e reforçadas pela discussão posterior que suscitaram. É certo que se não for realizado com
dolo ou negligência o facto não pode dizer-se contrário à ordem jurídica e, por isso, ilícito. Tal como também
não se pode dizer que preencha materialmente um tipo de crime no seu aspeto substancial, enquanto
unidade de sentido social juridicamente desvaliosa, da mesma forma que isso não se pode dizer de um facto
natural (inundação ou seca) ou animal, ou de qualquer processo humano imprevisível ou incontrolável.
Assim sendo, todo o ilícito é ilícito pessoal e dele fazem parte o dolo (como vontade de realização de um
facto) e a negligência (como violação do cuidado objetivamente imposto).

☓ O mesmo já não se dirá quanto à doutrina finalista da culpa, que é alvo de várias críticas fundadas. A
afirmação de que a culpa é um mero juízo de (des)valor, expurgada de todo o objeto de valoração e reduzida
à pura valoração do objeto, não é compatível com a função político-criminal que a culpa deve exercer no
sistema. Esse função ficaria reduzida a muito pouco se a culpa se traduzisse num “puro juízo existente na
cabeça do juiz” e se a sua materialidade for imputada outras categorias do sistema.

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⊛ Se o princípio da culpa é um princípio político-criminal e dogmático verdadeiramente essencial do
sistema penal
⊛ E se as sanções penais para o mesmo tipo de crime são distinguidas primordialmente em função do dolo
e da negligência
Então o dolo e a negligência têm de ter significado também como graus, formas ou tipos de culpa.

III. Fundamentos de uma construção teleológico-funcional e racional do conceito de facto punível


1. Preliminares
Na doutrina hoje mais avançada, já mal nos deparamos com construções que, por um lado, continuem a assentar
num conceito finalista ortodoxo de ação, como supradeterminação final de um processo causal; e, por outro,
que se disponham a ver em tal conceito um princípio ontológico ou ôntico (uma “natureza das coisas”) dos quais
o intérprete e o aplicador só teriam de desimplicar logicamente os restantes níveis e elementos do conceito
integral do facto punível.

Para além disso, hoje encontra-se generalizada a convicção de que o ilícito típico não é, como pretendiam os
neoclássicos, uma entidade eminentemente objetiva (que traduza um desvalor de resultado e para o qual só
excecionalmente releva o desvalor da ação). É, pelo contrário, como sustentou Welzel e a conceção finalista, um
ilícito pessoal.

Quanto à culpa, a generalidade dos autores contemporâneos concorda que os elementos da imputabilidade e
da consciência do ilícito relevam para o juízo de culpa – restando saber sob que forma e em que medida (o que
suscita grande controvérsia). No entanto, opõem-se, em regra, à alegação finalista de que a culpa se esgotaria
naquele “juízo” (de censura) e de que toda a sua “materialidade” caberia a outros elementos anteriores do
sistema (nomeadamente à ação ilícita-típica).

Perante isto, a nossa conceção atual do conceito de facto punível reconduz-se a uma certa “normativização da
finalidade” ou, inversamente, a uma certa “finalização da normatividade”, ainda que esteja errada qualificar a
nossa posição como de intermédia face às construções normativistas e finalistas, enquanto tentativa de cortar
ao meio entre dois extremos. A nossa posição radica, antes, num cético relativismo:
→ tanto sobre a estrutura, naturalística ou ôntica dos conceitos jurídicos
→ como sobre o domínio ilimitado das valorações normativas

Neste sentido, podemos afirmar que as posições metodológicas da escola neoclássica – por vagas e insuficientes
que fossem – se encontravam essencialmente na razão. Estamos, assim, perante um sistema emergente,
comandado pela convicção de que a construção do conceito de facto punível deve apresentar-se como
teleológico-funcional e racional, possuindo os seus próprios postulados e determinando os seus específicos
desenvolvimentos; comandado, nomeadamente, pela convicção de que aquele sistema e os seus conceitos
integrantes são formados por valorações fundadas em proposições político-criminais imanentes ao quadro
axiológico e às finalidades jurídico-constitucionais.

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TÍTULO II - OS FACTOS PUNÍVEIS DOLOSOS DE AÇÃO
SUBTÍTULO I – O TIPO DE ILÍCITO
SECÇÃO I – OS TIPOS INCRIMINADORES

11º CAPÍTULO – O TIPO OBJETIVO DE ILÍCITO


Margot – páginas 283-299
Sofi – páginas 300-315

No sistema do facto punível da construção da teoria do crime, ela está organizada como um sistema
classificatório: por categorias que são comuns a todos os crimes. Tanto os tipos incriminadores, como os tipos
justificadores concorrem na concretização de um sentido de ilicitude material de que se reveste uma concreta
conduta. Porém, não deixam de ter diferenças de sentido e conteúdo.

− Tipo justificador: Integram o plano da ilicitude para a generalidade dos autores.


− Tipo incriminador: Portador do sentido da ilicitude do facto, é nele que se exprime a ilicitude do facto.
Estes tipos de ilícito apresentam, nos delitos dolosos de ação, uma estrutura complexa, composta por
elementos de natureza objetiva e subjetiva, com os quais se constrói um tipo objetivo e um subjetivo.

✓ No tipo objetivo importa, por um lado, (A) identificar um certo nº de problemas gerais relacionados com
a função e o sentido da tipicidade; e, por outro lado, (B) sublinhar procedimentos usados pelo legislador
na construção sistemática dos tipos incriminadores.

A. QUESTÕES GERAIS DE TIPICIDADE


I. Determinações conceituais: tipo de garantia, tipo de erro e tipo de ilícito
Importa clarificar a pluralidade de sentidos com que na dogmática penal se utiliza a categoria tipo – introduzida
pela 1ª vez por Beiling. Este errou em pensar que o mesmo conjunto de elementos poderia cumprir
simultaneamente as diversas funções implicadas na tripla conceitualização. Sabe-se, hoje, que a distinção é
absolutamente essencial para uma correta aplicação da lei penal.

✓ O tipo apresenta-se como tipo de garantia/tipo legal de crime: conjunto de elementos que a lei tem
de referir para que se cumpra o conteúdo essencial do princípio nullum crimen, nulla poena sine lege
(não há crime nem pena sem lei escrita) – arts.29º CRP e 1º CP. Estes elementos distribuem-se pelas
categorias da ilicitude, da culpa e da punibilidade (e, em certa medida, dos pressupostos processuais):
nestas, há requisitos de que depende a punição do agente. Este é o conteúdo e a função que ao tipo de
garantia cabem dentro do sistema da justiça penal.

✓ Tipo de erro: conjunto de elementos que o agente tem de conhecer para que se possa afirmar o dolo do
tipo, dolo do facto ou ‘dolo natural’. Este tipo não se confunde nem com o tipo de garantia, nem com o
tipo ilícito: dele fazem parte os pressupostos de uma causa de justificação ou de exclusão de culpa; e
proibições cujo conhecimento é indispensável para que o agente tome consciência da ilicitude do facto

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(art.16º/1/2 CP), no sentido de que a sua não representação ou representação incorreta pelo agente
exclui o dolo ou a punição.

✓ Tipo de ilícito: figura sistemática (daí também a possível designação ‘tipo sistemático’) de que a
doutrina penal se serve para exprimir um sentido de ilicitude, individualizando uma espécie de
delito e cumprindo, assim, a função de dar a conhecer ao destinatário que tal comportamento é
proibido pelo OJ. Isto sem prejuízo da questão do relacionamento entre tipicidade e ilicitude: o
‘primado’ cabe à ilicitude; a tipicidade constitui apenas a concretização ou individualização de um
sentido de ilicitude em uma espécie de delito.

II. Desvalor de ação e desvalor de resultado


Após as investigações de Welzel e o advento da doutrina da ação final, tornou-se corrente a distinção, relevante
em sede de ilícito típico:

• Desvalor de ação: conjunto de elementos subjetivos que conformam o tipo de ilícito (subjetivo) e o tipo
de culpa, nomeadamente a finalidade delituosa, a atitude interna do agente que preside ao facto e a parte
do comportamento que exprime este conjunto de elementos.

• Desvalor de resultado: criação de um estado juridicamente desaprovado e, assim, o conjunto de


elementos objetivos de tipo ilícito (eventualmente também do tipo de culpa) que perfecionam a figura
de delito.

Poderá dizer-se que o desvalor da ação se revela de forma exemplar na tentativa de crime e o desvalor de
resultado no crime consumado. Percebemos que a distinção se cobre com a que intercede entre uma conceção
pessoal e uma conceção puramente objetiva do ilícito.

Os adeptos da construção clássica (positivista) da doutrina do facto punível – que pretendiam distinguir o ilícito
da culpa (fazendo daquele o reino da totalidade dos elementos objetivos; e desta o campo de convergência da
totalidade dos elementos subjetivos) –, tentaram uma construção de toda a dogmática do tipo a partir do
desvalor de resultado. Esta conceção (fortalecida pela conceção da norma como norma de valoração) ficou
prejudicada com a descoberta da relevância essencial dos elementos subjetivos para a caracterização do ilícito;
e foi definitivamente condenada por todos os que aceitavam que nunca o ilícito se poderia caracterizar
exclusivamente através do tipo objetivo, antes se lhe acrescenta sempre o subjetivo. Embora a proteção
subsidiária de bens jurídicos seja a função primária da intervenção penal, não se pode deduzir que o ilícito se
caracteriza apenas pelo desvalor do resultado. Fosse assim e era difícil justificar-se a punibilidade da tentativa;
e não há praticamente nenhum OJ penal que a não consagre (art.23º CP).

Também não tem êxito a tentativa de perspetivar toda a construção dogmática do facto punível (nomeadamente
do tipo de ilícito) simplesmente a partir do desvalor de ação, negando ao desvalor de resultado significado
autónomo para o ilícito. Tal seria fruto da essência imperativa da norma e da ideia consequente de que só as
ações podem ser objeto da proibição, não resultados. Porém, é indiscutível que, na maioria dos casos, não se

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pode ver nos elementos objetivos do crime (nomeadamente no resultado) momentos estranhos à valoração da
ilicitude e, daí, irrelevantes para o respetivo tipo de ilícito e reduzidos a meras condições objetivas de
punibilidade. Fosse assim: a tentativa seria tão punida como a consumação do crime – e não o é, apenas é
especialmente atenuada (art.23º/2 CP) –; a negligência devia ser punida logo aquando um comportamento
contrário ao dever de cuidado – e não o é, antes apenas quando sobrevem o resultado. Assim, a ilicitude e o seu
conteúdo são diferentes consoante se verifique ou não lesão efetiva do bem jurídico.

O relevo do desvalor de ação foi enfatizado pelo finalismo: se a finalidade do atuar constitui o elemento
essencial da ação, então ela tem de ser ao mesmo título integrante do tipo e do ilícito, começando a falar-se um
de ilícito pessoal. Welzel: ‘O ilícito não se esgota na causação do resultado (lesão do bem jurídico) dissociada
da pessoa do agente, antes antijurídica é a ação apenas como obra de um determinado agente: quais os objetivos
que este conferiu finalisticamente ao facto objetivo, a partir de que posição cometeu, quais os deveres que em
consequência o obrigam – tudo isto determina o ilícito do facto ao lado da eventual lesão do bem jurídico.
Antijuridicidade é sempre a desaprovação de um facto referido a um determinado agente.

Esta conceção é de subscrever pois é independente das premissas de uma conceção final de ação e pode fundar-
se em considerações de outro teor. Concluindo, a constituição de um tipo de ilícito exige tanto um desvalor de
ação como um desvalor de resultado; sem prejuízo dos casos em que o desvalor de resultado predomina
(sobretudo crimes de negligência) e o inverso (sobretudo casos de tentativa). Nesta matéria são decisivas as
opções legislativas de conformação dos tipos de ilícito. Só é necessário prevenir que, aqui, a expressão
‘resultado’ valha como afetação da situação de tranquilidade do bem jurídico protegido, e não enquanto
modificação do substrato do bem jurídico, temporal e espacialmente cindida da ação.

III. Elementos típicos descritivos e normativos


Para concretização da ilicitude, os tipos incriminadores servem-se de elementos de dupla natureza:

• Descritivos: elementos apreensíveis através de uma atividade sensorial, isto é, referem aquelas realidades
materiais que fazem parte do exterior e por isso podem ser conhecidas, captadas de forma imediata, sem
necessidade de uma valoração – ou que exigem uma atividade valorativa, mas em que ainda é
preponderante a dimensão naturalística.

Exs.: pessoa (art.131º CP), mulher grávida (art.140º CP), corpo (art.143º CP);

• Normativos: elementos que só podem ser pensados sob a pressuposição de uma norma ou de um valor,
sejam especificamente jurídicos ou simplesmente culturais, legais ou supralegais, determinados ou a
determinar; não são sensorialmente percetíveis, mas só podem ser espiritualmente avaliáveis.

Exs.: caráter alheio da coisa (art.204º CP), documento para efeito do crime de falsificação de documentos
(arts.256º e 255/a) CP), dívidas ainda não vencidas (art.229º CP).

91
Esta distinção já foi considerada impossível por normativistas exasperados: todos os elementos constitutivos
de um tipo de ilícito seriam normativos, enquanto todos concorrem para a expressão do integral juízo de valor
que ele traduz. Porém, isto não deve impedir que ‘estruturalmente’ se distingam, consoante sejam ou não
entidades relacionadas com uma norma ou um valor distintos dos que presidem à valoração da ilicitude.
Recentemente, AA. que consideram a distinção impraticável pois nenhum elemento pode ser puramente
descritivo ou normativo. Assim, Roxin – exemplificando com elementos que apesar de descritivos impõe uma
valoração jurídica, ou ‘documento’, que tem sempre um suporte percetível aos sentidos – conclui que não
importa nem a distinção nem o reconhecimento dos elementos como mistos. Porém, apesar da pertinência desta
observação, a distinção fará sempre sentido e é indispensável, quando tenha importância para a resolução de
casos concretos e para a correta determinação do regime jurídico a aplicar. Por isso, e porque a distinção
também será usada na matéria de dolo e erro, não a devemos abandonar.

IV. Tipos abertos, elementos valorativos globais e adequação social

1. A Construção de Welzel
Deve-se a Welzel a atenção aos tipos abertos: tipos a partir de cujo teor se não lograria deduzir por forma
completa, mas apenas parcial, os elementos constitutivos do ilícito respetivo. Nestes, os elementos definidores
da espécie de delito teriam de ser completados, para determinação da matéria proibida – não descrita de forma
esgotante na definição legal de conduta, mas de determinação necessária para integral preenchimento do tipo
de ilícito –, por uma valoração autónoma pelo aplicador; valoração que se encontrava fora do tipo e
constituiria uma pura regra de ilicitude. Esse seria o caso mais evidente dos tipos omissivos impróprios e
dos tipos negligentes, mas também de muitos tipos dolosos de ação, onde a esgotante determinação típica não
é possível sem uma completação da matéria proibida quando muito só sugerida pelo legislador no teor literal
(ex: ‘abusivamente’ – art.306º CP).

É indiscutível o relevo destes tipos nas relações entre ilicitude e tipicidade, e em matérias de erro e de falta de
consciência do ilícito. A sua consideração teve como efeito chamar a atenção para a existência de elementos
típicos que, apesar da sua base fáctica individualizável, revelam-se como juízos de valor gerais ou elementos
valorativos globais; possuindo um cunho de tal modo normativo que quase arrastam consigo um juízo de
valor global sobre a ilicitude da conduta. Ex: art.154º/3/a) CP: a valoração como censurável da utilização do
meio serviria para completar a matéria de proibição descrita no tipo objetivo de ilícito da coação.

Welzel também acentuou que todos os tipos incriminadores têm de ser interpretados como contendo uma
cláusula restritiva (implícita) de inadequação social, que excluiria do tipo de ilícito todas as ações que não
estivessem fora da ordenação ético-social da comunidade. Exs.: quem apanha, por engano, um transporte que
vai para um destino diferente do desejado tem de sofrer a privação da liberdade durante todo o tempo da
viagem; quem, na ausência do empregado, come uma sandes que estava no balcão e deixa o dinheiro
correspondente, subtrai coisa móvel alheia. Porém, em nenhum destes casos se dirá que as ações preenchem os
tipos de ilícito de sequestro ou furto. Isto porque se considera que em todos os tipos de ilícito vive
(implicitamente) uma cláusula de ilicitude como a da inadequação social.

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2. Apreciação crítica
Estas três construções são fruto de uma das maiores análises ao conceito de tipo de ilícito e apontam para
realidades que têm de ser tomadas em conta do ponto de vista dogmático e construtivo-sistemático.

✓ Pode alegar-se (como é hoje dominante) que a existência de tipos ‘abertos’ representa uma contraditio in
adjecto, porque o tipo supõe uma indicação esgotante, através de elementos descritivos ou normativos,
da matéria proibida;

✓ Pode alegar-se que os pretensos elementos de valoração global ou são meros elementos normativos; ou
constituem às vezes puras ‘menções redundantes de ilicitude’, que servirão apenas para assinalar a
frequência que no caso intervirão singulares causas de justificação, menções que não possuem qualquer
relevo a nível do tipo incriminador e deveriam ser eliminadas do respetivo teor literal;

✓ Pode alegar-se teríamos resultados praticamente coincidentes, com a cláusula de (in)adequação social,
através de uma correta interpretação de singulares elementos típicos; a cláusula não representaria mais
do que um critério hermenêutico que nada teria de particular; ou, noutros casos, através da doutrina do
‘risco permitido’.

E, todavia, persiste a circunstância ineliminável de o teor do objeto da proibição não integrar ab initio o sentido
de ilicitude que vive no tipo questionado; isto é, sendo o tipo o portador de um sentido de ilicitude – sendo um
tipo de ilícito –, em todas estas hipóteses deve ser logo negada a tipicidade da ação. O que só confirma a ideia
de que que, em sede de relações entre ilicitude e tipicidade, a prioridade ôntica, normativa e teleológica
pertence ao ilícito, não ao tipo, e que este é só uma concretização daquele. Assim, juízos de ilicitude como os
presentes nos tipos abertos, nos elementos de valoração global, na cláusula de (in)adequação social, só podem
ser momentos e critérios do juízo de ilicitude jurídico-penal, prévios à tipificação, mas seus pressupostos
e, por isso, substrato material do tipo. Se a valoração da conduta concreta como ilícita constitui o essencial da
sua relevância jurídico-penal, então todos os critérios materiais que determinam a sua relevância ou
irrelevância hão de ser, antes de mais, critérios de ilicitude, só por esta fundamentados e só a partir dela
compreensíveis e determináveis.

Porém, tal não significa concordar com a ideia de Welzel, segundo a qual se trataria aqui de elementos que não
fariam parte da categoria sistemática da tipicidade, mas unicamente do da ilicitude ou antijuridicidade. Não
cremos que seja assim: estas cláusulas só poderiam constituir causas justificativas à luz de um tipo
valorativamente neutro, não de um tipo que exprime um sentido jurídico-social de desvalor. Por isso, se as
regras de ilicitude, os elementos valorativos globais e a inadequação social dizem respeito a uma concreta
espécie de delito, então a circunstância de eles constituírem em 1º lugar critérios de ilicitude não significa que,
uma vez concretizados, não passem a fazer parte constitutiva do tipo de ilícito respetivo como seus elementos
normativos. Se o tipo de ilícito é sempre individualização de um sentido de ilicitude numa concreta
espécie de delito, não fica espaço para elementos do facto que, participando do conteúdo de ilicitude de uma
espécie de delito, não pertençam ao tipo; com indiferença pela forma como o legislador tenha concretizado tal

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conteúdo. Só não sendo assim nas menções redundantes de ilicitude, onde elas infelizmente persistam: só
estas – inúteis e perniciosas – são insuscetíveis de tradução em elementos individualizadores e não pertencem,
por isso, ao tipo. Assim, o legislador deve decompor aqueles elementos nos seus pressupostos materiais que
devem ser levados ao tipo; e na sua avaliação ou valoração que não pertence ao tipo. Com isto terá prestado um
serviço ao tratamento do erro e da falta de consciência do ilícito, e à sua correta distinção nos termos dos
arts.16º e 17º CP.

B. CONSTRUÇÃO DOS TIPOS INCRIMINADORES


Em qualquer tipo de ilícito objetivo é possível identificar 3 conjuntos de elementos: (I) relativos ao autor; (II)
relativos à conduta; (III) relativos ao bem jurídico. No fundo, todos os tipos incriminadores devem precisar
quem pode ser o autor do crime; qual a conduta em que se consubstancia; e explicitar ou implicitar um certo
valor, interesse, bem jurídico tutelado.

I. Autor
1. Princípio geral
O autor é um elemento constitutivo de todo o tipo de objetivo de ilícito nos delitos dolosos de ação, apesar da
natureza ‘subjetiva’ ou ‘intersubjetiva’. Este será uma pessoa individual ou, quando a lei expressamente o
determine (art.11º CP), um ente coletivo. Apesar de hoje serem pouco frequentes casos de responsabilidade
penal de entes coletivos, sublinha-se a posição do legislador português no sentido de admitir essa
responsabilidade.

2. A questão da responsabilidade penal dos entes coletivos


Na viragem para o séc. XIX, reafirmou-se o princípio do direito romano segundo o qual societas delinquere non
potest (não se admite a responsabilidade penal da pessoa jurídica). A princípio, foi com base nas teorias de
ficção da personalidade jurídica dos entes coletivos que se justificou a impossibilidade da sua responsabilização
penal. Os grandes argumentos foram:

• Incapacidade de ação: nunca poderiam agir por si só, mas sempre e só através de pessoas físicas;
• Incapacidade de culpa: entende-se por culpa um juízo de censura ético-pessoal, com fundamento na
vontade consciente e livre do Homem, própria das pessoas singulares.

A responsabilidade criminal deveria ser imputada aos indivíduos que tivessem praticado atos em nome ou no
interesse dos entes coletivos (art.12º CP). Porém, no pós-guerra, houve um crescimento exponencial da
criminalidade, desenvolvido por poderosas empresas de forma complexa e organizada, que fizeram pôr em
causa esta ideia. De facto, é extremamente difícil determinar a responsabilidade de cada indivíduo que opera no
seio da coletividade, seja pela dispersão do poder decisório, da divisão de tarefas ou pelas longas cadeias
hierárquicas. E, por isso, a manutenção da responsabilidade exclusivamente individual significaria, muitas
vezes, a impunidade, com consequências sociais danosas.

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Com estas razões de política criminal, em muitos países, o legislador abriu brechas ao princípio societas
delinquere non potest, especialmente no âmbito dos crimes económicos, ambientais e fiscais (em PT: DL 630/76,
28 de julho e DL 28/84, 20 de janeiro). A doutrina acompanhou isto, reconhecendo a necessidade de uma
intervenção penal diferente e com a procura de uma fundamentação dogmática que legitimasse materialmente
a responsabilização dos entes coletivos.

Desde 1977 que vimos preconizando, sobretudo no âmbito do direito penal secundário, a legitimidade e
possibilidade da responsabilização penal dos entes coletivos. De facto, as organizações humano-sociais são,
tanto como o Homem individual, obras de liberdade; pelo que parece aceitável que em certos domínios se possa
substituir ao Homem individual as suas obras coletivas e, assim, as pessoas coletivas. Fica aberto o caminho
para se admitir a responsabilidade dos entes coletivos no DP, ao lado da eventual responsabilidade das pessoas
individuais que agem como seus órgãos ou representantes. A este modelo chamamos nós modelo analógico.

O essencial desta conceção encontra-se, hoje, nos resultados, se bem que continuam a verificar-se divergências:
• Modelo da imputação – Reconhecido pelo TC, na Alemanha, como legítimo. Segundo este pode imputar-
se à pessoa jurídica a ação e a culpa dos seus órgãos responsáveis. Isto não supõe uma responsabilidade
por facto de outrem; a construção da pessoa jurídica visa justamente a criação de um centro autónomo
de imputação;
• Modelo da culpabilidade – Vai mais longe que o anterior. Parte de uma culpabilidade específica e
autónoma do ente coletivo, baseada na tese criminológica da ‘atitude criminal de grupo’, segundo a qual
o grupo constitui contexto idóneo da realização de factos puníveis.

Estas duas conceções reputam-se como insuficientes: é duvidoso que por esta via se possa justificar uma
imputação ao ente coletivo, uma vez que são membros do grupo os portadores da referida atitude criminal.

• Numa outra via, temos o Modelo da prevenção – Considera os entes coletivos passíveis da aplicação de
sanções criminais do tipo das medidas de segurança.

• Mais próximo da ideia atrás exposta, temos o Modelo da culpa analógica – A categoria da culpa é
aplicável por analogia às empresas, assim se conformando um 3º modelo sancionatório criminal (ao lado
do das penas individuais e das medidas de segurança). Como nota Vogel, este modelo tem em conta que
os entes coletivos podem ser destinatários da norma jurídico-penal e que a culpa do ente coletivo não é
só comprovável no Direito Civil como também é no DP; enquanto, por outro lado, torna possível que em
matéria de responsabilidade penal do ente coletivo se introduzam as alterações do modelo da
responsabilidade individual que se revelem necessárias.

[Sofi]
É nesta ordem de ideias que deve ser interpretado o art. 11º. Esta norma não pretende excluir a
responsabilidade dos entes coletivos, mas, pelo contrário, deixar em aberto a possibilidade de essa
responsabilidade ser consagrada relativamente a determinados tipos de crime, quando por razões de

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oportunidade de o legislador assim entender. Esse passo foi dado de forma inequívoca, como se anotou com a
lei relativa aos crimes económicos e contra a saúde pública (art. 3º DL 28/84, de 20 de Janeiro) e continuado
com o regime geral das infrações tributárias (art. 7º L 15/2011, de 5 de Junho) e das infrações laborais (art.
607º do CT, L 99/2003, de 27 de Agosto). Chamado a pronunciar-se sobre a constitucionalidade da primeira
destas normas, o TC considerou não se verificar qualquer impedimento constitucional à
responsabilização penal dos entes coletivos, pelo menos a nível do direito penal secundário.
Considerando a justificação dogmática que acima defendemos, o TC concluiu que “nada obsta a que o Estado de
direito democrático (...) possa num quadro jurídico-penal bem delimitado no seu âmbito e na sua génese
motivadora, alargar a responsabilidade criminal às pessoas coletivas em ordem à proteção de bens jurídicos
socialmente relevantes e cuja defesa é condição indispensável do livre desenvolvimento da personalidade do
homem”.

A responsabilidade penal dos entes coletivos está, pois, consagrada entre nós, havendo razão para pensar – tal
como, ao que dissemos, sucedeu com o nosso TC – que o legislador teria tido primordialmente em vista a
aplicação no domínio do direito penal secundário. A verdade, porém, é que o art. 11º não dá azo a uma tal
limitação. Atenta, de resto, a fundamentação da responsabilidade penal do ente coletivo no modelo analógico
que atrás apontámos, cremos ser hoje pertinente (e mesmo necessário) sustentar-se que mesmo em relação ao
direito penal clássico deve abandonar-se a regra societas delinquere non potest. Com efeito, em relação a
muitos comportamentos qualificados como crimes integrantes do chamado direito penal de justiça valem com
toda a propriedade os argumentos político-criminais e dogmáticos referidos para justificar a punição penal dos
entes coletivos. Só a título de exemplo, atente-se em crimes como a infração de regras de segurança (art.
152º/4), o tráfico de pessoas (art. 159º), a devassa por meio de informática (art. 193º), a falsificação de
documentos (256º a 258º), a infração de regras de construção (art. 227º), o tráfico de influência (art. 335º) e,
de forma particularmente clara, os crimes contra o ambiente (art 278º a 280º).

Isto mesmo veio a ser reconhecido por Decisões-quadro do Conselho da UE e por Convenções do Conselho da
Europa e da ONU, que obrigam a adotar as medidas necessárias para que os entes coletivos possam ser
considerados “responsáveis” por infrações em matéria de terrorismo, de ambiente, de lenocínio e tráfico de
menores, etc. Já se pensou que tais instrumentos internacionais seriam suficientemente cumpridos se,
estabelecesse a responsabilização meramente contra-ordenacional do ente coletivo. Mas uma tal solução é de
repudiar na medida em que representaria uma manipulação ilegítima dos princípios jurídico-constitucionais e
ordinários que vimos presidirem à distinção entre crimes e contra-ordenações. Se, por exemplo, o terrorismo,
a poluição ambiental, etc., são pela lei penal considerados verdadeiros crimes, então torna-se impossível
defender que se as mesmas infrações forem cometidas por um ente coletivo elas já não constituem crimes, mas
meras contra-ordenações. O legislador ordinário não é livre de qualificar a mesma conduta como crime se
levada a cabo por certos sujeitos típicos e como contra-ordenação se levada a cabo por outros.

Neste sentido, o legislador penal do futuro terá, sempre que necessário, de consagrar, sem equívoco, a
responsabilização penal de entes coletivos. Isto mesmo era integralmente reconhecido no Relatório de uma

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Proposta de Lei, aprovada em Conselho de Ministros de 24/06/2004. Segundo este, ao art. 11º será
acrescentado um nº 2 onde se estipula a responsabilidade penal das pessoas coletivas e entidades equiparadas
por um vasto elenco de crimes: maus-tratos (art. 152º - A); violação de regras de segurança (art. 152º - B);
escravidão (art. 159º); tráfico de pessoas (art. 160º); alguns crimes de natureza sexual (art. 163º a 166º,
sendo a vítima menor, e arts. 169º e 171º a 176º); burla informática e nas comunicações e burla relativa a
trabalho ou a emprego (art. 221º e 222º), discriminação racial, religiosa ou sexual (art. 240º); falsificação ou
contrafação de documento (art. 256º); falsificação de notação técnica (art. 258º); crimes de falsificação de
moeda e alguns crimes de perigo comum (art. 262º a 283º e 285º); associação criminosa (art. 299º); tráfico
de influências (art. 335º); suborno (art. 363º); favorecimento pessoal (art. 367º); branqueamento (art. 368º
- A) e corrupção (art. 372º a 374º). O Anteprojecto prevê ainda um conjunto de disposições a inserir no CP –
arts. 90º - A a 90º - M – relativas às penas aplicáveis aos entes coletivos.

O catálogo previsto no Anteprojecto 2007 é, pois, externo. A tal ponto que uma análise minuciosa dos tipos
legais de crime relativamente aos quais a responsabilidade penal dos entes coletivos será consagrada – tarefa
que só pode ser cometida a um estudo sistemático da PE – pode vir a suscitar, em alguns casos, as mais fundadas
dúvidas e reservas (máxime, em matéria de crimes sexuais). Seja como for quanto a este ponto a este ponto, ao
referido catálogo deve acrescentar-se, no plano do direito já constituído, a responsabilidade penal dos entes
coletivos prevista em legislação especial, designadamente, em crimes contra a economia e a saúde pública (art.
3º DL 28/84, de 20/01), informáticos (art. 3º L 109/91, de 17/08), tributários (art. 7º L 15/2001, de 5/06),
terroristas (art. 6º L 52/2003, de 22/08) e laborais (art. 607º CT).Resta saber se as novas disposições
previstas no Anteprojecto de 2007 se mostram suficientes e adequadas como critério de efetivação da
responsabilidade penal dos entes coletivos. Com efeito, não basta ao legislador consagrar a responsabilidade
penal do ente coletivo, mas terá de dar à jurisprudência e à doutrina um princípio ou critério, ao menos geral,
de como deve estabelecer-se para efeitos dogmáticos, teóricos e práticos, aquela responsabilidade. O aludido
modelo analógico não deve servir para esconder que, na realidade do mundo psicofísico, os entes coletivos não
agem por si mesmos (mas só através de “pessoas naturais”) nem são dotados de subjetividade. Por isso, é
preciso determinar, antes de mais, também legislativamente, o âmbito e a forma que deve assumir o nexo de
imputação, objetivo e subjetivo, do facto à responsabilidade do ente coletivo. Decidir, nomeadamente, a
questão de saber se os entes coletivos são diretamente responsáveis apenas pelas ações levadas a cabo por
pessoas naturais (e se sim, por quais e como); ou também enquanto garantes da não produção de resultados
típicos, i. é, mais concretamente, quando a falta de vigilância ou controlo dos órgãos ou representantes do ente
coletivo tenha tornado possível a prática do facto por uma pessoa sob a sua autoridade.

Antes destas decisões legislativas torna-se aventuroso – se não juridicamente inadmissível – elaborar uma
dogmática da imputação do facto à responsabilidade penal dos entes coletivos. Mas também aqui o proposto
pelo art. 11º/2 do Anteprojecto de 2007 vem dar passos importantes, ao dispor que o facto será atribuído ao
ente coletivo quando o crime seja cometido em nome do ente coletivo e no interesse coletivo por pessoas que
nele ocupam uma posição de liderança, ou por quem aja sob autoridade dessas pessoas em virtude de uma
violação dos deveres de vigilância ou controlo que lhes incumbem. Com estes princípios não ficam obviamente

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resolvidos todos os problemas prático-normativos que justificadamente se suscitam e se suscitarão em tema de
imputação. Mas o trabalho dogmático de aplicação passa agora a encontrar a orientação legislativa e a tornar-
se possível.

3. O autor individual. Crimes comuns e crimes específicos


Autor de um crime pode ser, em regra, qualquer pessoa: estamos neste caso perante os chamados crimes
comuns, de que são exemplo o homicídio (art. 131º: “que matar uma pessoa...) ou o futuro (art. 203º: “quem...
subtrair coisa móvel alheia...). Por vezes, porém, a lei leva a cabo nesta matéria uma especialização, no sentido
de que certos crimes podem ser cometidos por determinadas pessoas, às quais pertence uma certa qualidade
ou sobre as quais recai um dever especial. Deparamos aí com os chamados crimes específicos, de que são
exemplos os arts. 227º (“o devedor que...”), 284º (“o médico que...”) ou 375º (“o funcionário que...”). Fala-se a
este respeito, com propriedade, em elementos típicos do autor.

No âmbito dos crimes específicos distingue-se entre crimes específicos próprios ou puros e impróprios ou
impuros. Nos primeiros, a qualidade especial do autor ou o dever que sobre ele impende fundamentam a
responsabilidade: é o caso, por exemplo, do crime de prevaricação do art. 370º, cuja conduta, se não for levada
a cabo por advogado ou solicitador, não constitui crime. Nos segundos, a qualidade do autor ou o dever que
sobre ele impende não servem para fundamentar a responsabilidade, mas unicamente para a agravar: é, por
exemplo, o caso do art. 378º, que comina uma pena mais grave para o crime de violação de domicílio, previsto
no art. 190º, quando este for cometido por funcionário. Cremos que em todos estes crimes específicos decisivo
é, em último termo, o dever especial que recai sobre o autor, não a posição do autor de onde este dever resulta.
Por isso pode haver crimes específicos que não contenham, ao menos de forma expressa, elementos típicos do
autor, antes se limitando a descrever a situação de onde resulta o dever especial (art. 200º que incrimina a
omissão de auxílio) ou a descrever o próprio dever especial (p. ex: o art. 224º onde se contém o crime de
infidelidade patrimonial). De referir será que, no campo dos crimes específicos, se na maior parte dos casos a
tipicização do autor é feita pela atribuição a este de um dever especial, casos há em que ela é levada a cabo
através de um relacionamento interpessoal (v.g.: o art. 217º relativo ao crime de bigamia).

A distinção entre crimes comuns e crimes específicos, próprios e impróprios, assume relevo prático significativo
sobretudo em matéria de comparticipação (eventualmente também em matéria de erro), nomeadamente em
sede de distinção entre autoria e cumplicidade (arts. 26º e 27º), bem como de comunicabilidade entre os
comparticipantes de “certas qualidades ou relações especiais do agente” (art. 28º). Logo no presente contexto
tem algum interesse uma referência aos chamados crimes de mão própria, i. é, aos tipos de ilícito em que o
preceito legal quer abranger como autores apenas aqueles que levam a cabo a ação através da sua própria
pessoa, não através de outrem; quer abranger apenas pois, segundo o entendimento dominante, os autores
imediatos, ficando excluída a possibilidade da autoria mediata; e tenham chegado a executar por próprias mãos

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a conduta típica. Todavia, a necessidade e a justificação político-criminais desta categoria dogmática encontra-
se hoje, cada vez mais, em questão.

Autor: todos os tipos legais de crime devem precisar, de forma clara, quem pode ser autor desse facto
criminoso e aqui distingue-se entre crimes comuns de crimes específicos:
1. Crimes comuns: os crimes comuns são aqueles cujo autor pode ser qualquer pessoa (esta é uma
classificação quanto à pessoa do autor do crime) como os crimes de homicídio, roubo, violação. A
generalidade dos crimes são crimes comuns – aqui há uma precisão muito importante a fazer: quando
se fala aqui em autor não é ao acaso – “os crimes comuns são aqueles cujo autor pode ser qualquer
pessoa” e porquê esta especificação? No âmbito do agente, há uma distinção entre autor e cúmplice e
a caracterização do que é um crime comum faz-se em função do autor – o autor é o senhor do crime,
o ator principal.
2. Crimes específicos: os crimes específicos são aqueles cujo autor só pode ser uma certa pessoa
identificada no tipo legal em função de um certo estatuto ou certo dever. Há tipos legais de crime que
circunscrevem o seu núcleo de autores potenciais a certas pessoas em função do seu específico
estatuto, uma certa posição ou um certo dever que sobre elas impende. Por exemplo: o crime de
corrupção – art 373º/1 CP – este crime é específico porque só funcionários públicos podem ser
autores de um crime de corrupção passiva. Se, por exemplo, um professor aceita um suborno para
passar um aluno, ele poderá ser autor de um crime de corrupção passiva se for um funcionário
público, professor numa escola pública, mas se estivermos num domínio privado já não é assim. Se
um médico for um médico do sistema nacional de saúde ele pode ser autor de um crime de corrupção
passiva, no entanto, se for um médico de uma clínica privada, ele já não pode ser autor deste crime.

A delimitação do círculo de autores faz-se através da delimitação de um certo estatuto profissional. Mas
outras vezes, faz-se através de um certo dever. A lei refere-se a “quem fizer isto”, mas em função de um certo
dever. Por exemplo: art 224º CP – crime de infidelidade patrimonial: quem administrar de forma infiel um
património que lhe esteja confiado comete um crime de infidelidade patrimonial. Só aquele a quem o dever
de cuidar está atribuído é que pode ser autor desse crime, sendo, por isso, um crime específico. Fala-se aqui
em crimes específicos próprios e crimes específicos impróprios:
o Crimes específicos próprios: são aqueles em que o dever integra a fundamentação da ilicitude,
contribuindo para afirmar a própria existência da ilicitude. É o dever em si mesmo que fundamenta
ou contribui para fundamentar o juízo de ilicitude penal. É a necessidade de cumprir o dever que está
na essência do tipo de ilicitude. Há crimes em que a posição ou dever mais do que acentuar a ilicitude,
agrava-a.
o Crimes específicos impróprios: crimes que têm na sua base uma matriz similar a de um crime
comum, mas que quando praticado por alguém em especial, veem a sua punição agravada, são
punidos mais gravemente como é o caso do crime do art 378º CP – violação de domicílio por
funcionário.

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Na revisão de 2007 do CP foi dado um passo muito importante no DP português: alargou-se a
responsabilização das pessoas coletivas a vários crimes referidos no art 11º CP – actualmente, desde 2007,
admite-se a responsabilização penal de entes coletivos por um conjunto significativo de crimes tipificados
A previsão legal está pensada para um ator individual. O paradigma penal que temos hoje tem uma longa
tradição, é o paradigma de que” Caim matou Abel” – um exemplo de um homicídio, de uma pessoa que mata
a outra e é essa a base do pensamento penal. Em regra, o autor dos crimes é uma pessoa física, singular. De
acordo com este paradigma do autor ser um ser humano de carne e osso é que o Direito Penal foi
paulatinamente construído. E é isso que vemos no art 11º/1 CP (“responsabilidade das pessoas singulares e
coletivas”). Em regra, só pessoas físicas e singulares podem cometer crimes- princípio de que “as sociedades
não podem cometer crimes, as pessoas coletivas não podem comer crimes” – há, em todo o caso, um largo
desvio a esta regra, de acordo com o qual, certos crimes podem ser cometidos por entes coletivos – fala-se
aqui no problema da responsabilidade penal das pessoas coletivas.

No DP discute-se muita a possibilidade de pessoas coletivas poderem ser agentes de crimes. Durante muitos
séculos, o chamado direito continental perduro e com ela, a ideia de que só as pessoas físicas podem cometer
cromes, sendo que as pessoas coletivas, por definição, não seriam agentes de crimes e, por isso, se um crime
fosse cometido em nome de uma pessoa coletiva, para servir os seus propósitos, isso não significava que não
havia crime, mas sim que esse crime seria atribuído à pessoa individual que atuou no interesse da pessoa
coletiva. Esta limitação era sustentada em 2 argumentos dogmáticos:
1- Incapacidade de ação – só há crime se houver uma omissão ou uma ação e se quem atuou pela positiva ou
negativa puder ser censurado pelo o que fez. E aquilo a que se objetava era a impossibilidade de as pessoas
coletivas agirem, uma vez que quem agia eram as pessoas singulares em nome delas.
2- Incapacidade de culpa – por outro lado, também se dizia que a pessoa coletiva é incapaz de culpa, porque
sendo a culpa uma censura ética dirigida à personalidade da pessoa que cometeu o crime, a pessoa coletiva
é desprovida de alma, de espírito e não se pode lhe dirigir um juízo de censura.

Houve, em todo o caso, um movimento político-criminal na europa ocidental, a partir dos anos 70, que
começou a arrogar a possibilidade das pessoas coletivas responderem criminalmente pelos crimes
praticados no seu interesse – isto em função dos tipos de criminalidade que surgiu na década de 70.
Percebeu-se que grande parte dos chamados crimes económicos, no âmbito do direito penal secundário
era praticada na órbita das empresas, na órbita empresarial (no seio das empresas, interesses das empresas,
pessoas no âmbito das empresas). No fundo, os beneficiários desses atos ficavam imunes. Sendo que muitas
vezes era muito difícil de apurar responsabilidades individuais concretas, uma vez que as empesas se
organizam de forma hierárquica e as pessoas trabalham em equipa, o que gera uma dispersão das pessoas e,
muitas vezes, a complexidade da empresa e a forma como ela está estruturada dificultam a aferição e a
imputação de responsabilidades individuais.

Então, o que poderia incentivar a prevenção da prática de crimes no âmbito das empresas seria a ideia de
paulatinamente admitir a possibilidade de as empresas também poderem ser punidas pela prática de crimes,
também poderem ser responsabilizadas- claro que não há penas de prisão para as empresas, mas multas,
proibição de receber subsídios, etc. Este movimento levou o legislador de vários países, entre os quais,
Portugal, a admitirem a chamada responsabilidade penal das pessoas coletivas. Numa 1ª fase, era no âmbito
do direito penal secundário ou direto penal económico que se admita a responsabilidade penal das pessoas
coletivas.

II. A conduta. Crimes de resultado e crimes de mera atividade


Quanto à conduta, são vários os problemas que se levantam no enquadramento presente. Desde logo, é nesta
sede que cabe determinar quais as ações penalmente irrelevantes, de acordo com a função de delimitação ou
função negativa de excluir da tipicidade comportamentos jurídico-penalmente irrelevantes que ao
conceito da ação vimos pertencer em certos termos. Aqui se contém a exigência geral de que se trate de

100
comportamentos humanos, o que, obviamente, exclui a capacidade de ação das coisas inanimadas e dos
animais, embora não, como acabámos de ver, dos entes coletivos. Exige-se ainda que o comportamento seja
voluntário, i. é, presidido por uma vontade, o que exclui os puros atos reflexos (por exemplo, o caso de alguém
perder o controlo do seu carro e colide com outro veículo em virtude de uma reação instintiva de defesa contra
um inseto que lhe entrou no olho), os cometidos em estado de inconsciência (ex: situações de sonambulismo,
de hipnose, delírio profundo ou durante um ataque epilético) ou sob o impulso de forças irresistíveis. Também
não constituem ações penalmente relevantes sonhos ou os pensamentos, conforme o princípio do romantismo
cogitationes poenam nemo patitur.

No âmbito da conduta importa distinguir entre tipos cuja consumação pressupõe a produção de um resultado e
tipos em que para a consumação é suficiente a mera ação.
i. Crimes de resultado – sob a forma de comissão por ação o tipo pressupõe a produção de um evento
como consequência da atividade do agente. Nestes tipos de crime só se dá a consumação quando se
verifica a alteração externa espácio-temporalmente distinta da conduta. Exemplos paradigmáticos são os
do homicídio (131º), cuja consumação só se verifica com a morte de uma pessoa, da ofensa à integridade
física (143º) e da burla (217º).
ii. Se, pelo contrário, o tipo incriminador se preenche através da mera execução de um determinado
comportamento estaremos e face de crimes de mera atividade. É o caso, entre outros, da violação de
domicílio (190º/1), das coações sexuais (163º e ss.), da evasão (352º), da falsidade de depoimento ou
declaração (art. 359º).

É, de resto, no fundo, essencialmente a mesma distinção que se leva a cabo quando se distinguem crimes
formais – a cuja tipicidade é indiferente a realização do resultado – e crimes materiais – a cuja tipicidade
interessa o resultado.

O problema da distinção entre ação e resultado tem sofrido uma progressiva “normativização”, a tal ponto que
a distinção se tornou dogmaticamente fluida e dificilmente racionalizável e controlável; servindo
inclusivamente para justificar a posteriori posições em matérias fundamentais como a da validade/legitimação
das incriminações, nomeadamente, a de fundamentar o ponto de vista segundo o qual toda a incriminação
constitui um “crime de resultado”, rectior, assenta num desvalor de resultado que, desta forma, predomina em
absoluto sobre o desvalor da ação. Podendo porventura afirmar-se que esta longa marcha se terá iniciado
numa certa doutrina italiana relativa ao delito preterintencional e que depois se generalizou no sentido da
afirmação de que não existem crimes sem resultado ou não existem crimes de mera atividade; tornou-se
recentemente em ponto de extrema relevância na questão da “imputação objetiva”, sobretudo no que respeita
aos crimes de perigo concreto abstrato e abstrato-concreto; e chega hoje a ser posto ao serviço da alegação de
que a “ofensividade” constitui noção que vai mais longe e é dogmaticamente mais frutuosa e exata do que a de
“ofensa ao bem jurídico” como caracteristicum de todo o crime em sentido material.

101
As questões do conceito material de crime e da sua validade/legitimação foram já tratadas anteriormente bem
como as virtualidades da noção de ofensividade, face à ofensa do bem jurídico. Cabe apenas acrescentar, se
necessário, que tais questões não poderiam estar nunca na dependência de construções dogmáticas de
conceitos como o de “resultado” tipicamente relevante. Importa reacentuar que, no contexto da distinção típica
entre crimes de mera atividade e de resultado e diversamente do que sucede na distinção entre “desvalor de
ação” e “desvalor de resultado” como ideias-rectoras do ilícito, não está em causa a mera “tranquilidade” ou
“intranquilidade” do bem jurídico provocada pela conduta, mas a exigência típica de que à ação acresça ou não
um “efeito sobre o objeto da ação e desta distinto espácio-temporalmente”. Bem podendo insistir-se assim
na ideia de que a distinção suscita aqui ao nível do “objeto da ação”, não ao nível do “bem jurídico”.

Ainda a nível da conduta importa distinguir entre crimes de execução livre e de execução vinculada. Nestes,
o inter criminis e, por conseguinte, o modo de execução vem descrito no tipo, enquanto naqueles tal não assume
qualquer relevância. Assim, se a burla (art. 217º) é um crime de execução vinculada, porque só comete o crime
de burla quem atue “por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou”, já o homicídio
(art. 131º) é um crime de execução livre, pois ao tipo é indiferente a forma como o resultado morte é provocado.
Esta é uma distinção que assume os seus efeitos prático-normativos mais relevantes a nível de erro.
É ainda no campo da conduta que se integra a problemática da distinção prático-normativa entre crimes de
ação e omissão. Distinção que apresenta grande interesse prático, dadas as diferenças de regime jurídico entre
os crimes de comissão por ação e os crimes de comissão por omissão. Mas cujo lugar sistematicamente
adequado de tratamento será aquele em que se curar dos crimes omissivos.

102
Conduta – no âmbito do tipo objetivo há uma 2º vertente que é muito importante, que é a da conduta: o tipo
legal deve também descrever a chamada conduta típica (isto é, o comportamento que pode ofender o bem
jurídico nos termos que se pretende proibir ou impor), ou seja, a conduta em que o crime se materializa, se
corporiza, o facto típico que incorpora uma conduta típica. É através dela que se vai verificar se certa pessoa
atuou nos termos que estão descritos nos tipos legais de crime (se alguém matou, se alguém furtou).

No plano da conduta aparece o relevo do conceito de ação: a conduta corresponde a uma ação ou omissão
e a categoria da ação está integrada no próprio tipo objetivo. É-lhe atribuída uma vertente negativa de
exclusão de revelo típico a certas manifestações do agir humano: há certo tipo de atuações que não podem
qualificar-se como uma ação para efeitos penais e, como tal, não são típicas. O conceito de ação desempenha
aqui uma função fundamentalmente negativa. Para além disso, temos também a exclusão da tipicidade, no
sentido em que só pessoas podem cometer crimes. Por exemplo: se um cão vadio morde uma pessoa, não
comete um crime de violação da integridade física da pessoa, uma vez que os animais não cometem crimes.
E há certas atuações que não assumem relevo do ponto de vista jurídico-penal porque não são consideradas
como ações, como é o caso do pensamento (por exemplo: se eu desejar muito matar uma pessoa, este meu
desejo, se eu guardar para mim, não tem qualquer relevo jurídico-penal). Também não são ações para efeitos
jurídico-penais aquelas formas de agir que não sejam dominadas pela vontade ou que sejam inconscientes
(por exemplo: quando um certo comportamento é realizado por alguém num estado de inconsciência, não
pode ser considerado típico porque nem sequer há uma ação, apesar de haver uma ofensa a um bem jurídico-
por exemplo, alguém que tenta matar alguém num estado de sonambulismo ou alguém que tem um ataque
epilético e aleija uma pessoa sem querer). O mesmo se pode dizer dos reflexos automáticos, que quando
implicam a ofensa de um bem jurídico, não assumem relevo penal porque não é uma ação típica (por
exemplo: alguém que faz um gesto repentino porque foi picado por uma abelha; se eu atropelar e matar
alguém porque estava a conduzir e um mosquito me pica no olho). Assim, o conceito de ação tem esta função
de exclusão.

No âmbito da conduta, põe-se o problema de saber se a conduta tem uma natureza ativa (crimes de ação)
ou natureza omissiva (crimes por omissão) – saber se a conduta se traduz num fazer ou não fazer. Em
certos caos, é muito fácil de distinguir: se A dispara um tiro sobre B – A comete um crime de homicídio por
ação. Por outro lado, se A, que é nadador salvador vê B a afogar-se e não faz nada, então A comete um crime
de homicídio por omissão. Mas há casos que não são nada claros: quando alguém está numa cama de hospital
num estado crítico e a sua vida só é mantida porque está ligado ao ventilador e alguém desliga a máquina,
isso é uma ação por se desligar a máquina ou uma omissão porque não se oferece o tratamento médico
devido? Estes são casos muito difíceis, que implicam muita ponderação e são alvo de muita controvérsia.
Neste âmbito, há ainda crimes de resultado e crimes de mera atividade, classificação que nos aprece no
quadro dos crimes por ação e tem uma classificação equivalente nos crimes por omissão. Nos crimes por
omissão fala-se em crimes de omissão própria e crimes de omissão imprópria.

103
Há uma outra classificação no plano da conduta que diz respeito à existência ou não de uma certa forma de
praticar o facto e fala-se aqui em crimes de execução livre e em crimes de execução vinculada:
▪ Crimes de execução livre – os crimes de execução livre são aqueles em que o tipo legal não exige
para que o crime se consuma uma certa maneira, uma certa forma de execução do facto. Por exemplo:
crime de homicídio – pode matar-se por mil maneiras.
▪ Crimes de execução vinculada – há crimes (nomeadamente crimes de resultado) em que não é
qualquer forma de produção do evento típico que determina a consumação do facto. A consumação
só poderá ser afirmada se a execução for realizada de uma certa forma- o legislador especifica o modo
de execução do facto, reduzindo-o a certas modalidades da realização típica- exemplo paradigmático
do crime de burla – art 217º CP – o que está em causa na burla é provocar um engano noutra pessoa
de forma a que ela incorra em erro e que, dessa forma, produza um ato que lhe cause prejuízo- é só
desta forma, em que o burlão atue por meio de erro ou engano, que se pode efetivamente incorrer em
burla. O tipo legal circunscreve a relevância típica dos atos de prejuízo patrimonial àquelas situações
em que o prejuízo resultou de um engano provocado pelo agente.

Há uma outra distinção que revela em matéria de precisão do procedimento criminal que é a distinção entre
crimes de execução instantânea e crimes duradouros.

o Crimes de execução instantânea – são aqueles cuja consumação se dá num certo momento e se
esgota aí, ainda que depois ele tenha reflexos que perdurem no tempo. Por exemplo: crime de ofensa
à integridade física.
o Crimes duradouros – crimes cuja execução típica se prolonga no tempo por vontade do próprio
agente, o crime vai-se consumando, de forma sucessiva e permanente no tempo. Por exemplo: crime
de sequestro- quando alguém priva outra pessoa da sua liberdade, contra a sua vontade, o crime está
sempre a ser consumado porque estão sempre a ser realizados atos de consumação típica.

III. O bem jurídico. Crimes de dano e crimes de perigo; crimes simples e crimes complexos
1. Bem jurídico e objeto da ação
Em relação ao bem jurídico importa ter presente que ele não se confunde com um outro possível elemento do
tipo objetivo de ilícito como é o objeto da ação: se A furta um anel a B, objeto da ação é o anel, bem jurídico a
“propriedade alheia”; se C mata D, o corpo de D é o objeto da ação, a vida humana o bem jurídico lesado. Sabemos
já que o bem jurídico é definido como a expressão de um interesse, da pessoa ou da comunidade, na manutenção
ou integridade de um certo estado, objeto ou bem em si mesmo socialmente relevante e por isso juridicamente
reconhecido como valioso. Ao nível do tipo objetivo de ilícito o objeto da ação aparece como manifestação real
desta noção abstrata, é a realidade que se projeta a partir daquela ideia genérica e que é ameaçada ou lesada
com a prática da conduta típica.

2. Crimes de dano e crimes de perigo


Atendendo à forma como o bem jurídico é posto em causa pela atuação do agente (o bem jurídico, dizemos, não
o mero “objeto da ação”) distingue-se entre crimes de dano e crimes de perigo.
i) Nos crimes de dano a realização do tipo incriminador tem como consequência uma lesão efetiva do
bem jurídico. O homicídio (art. 131º), o dano (art. 212º), a violação sexual (art. 164º) e a injúria (art.
181º) são exemplos desta espécie de crimes.

104
ii) Nos crimes de perigo a realização do tipo não pressupõe a lesão, mas antes se basta com a mera
colocação em perigo do bem jurídico. Aqui distingue-se entre crimes de perigo concreto e crimes de
perigo abstrato
− Nos crimes de perigo concreto o perigo faz parte do tipo, i. é, o tipo só é preenchido quando o
bem jurídico tenha efetivamente sido posto em perigo. É o caso do art. 138º (exposição ao
abandono), em que é elemento do tipo o “colocar em perigo a vida de outra pessoa”: só haverá
crime de exposição ao abandono quando se comprove que o bem jurídico, vida, foi realmente
posto em perigo. Outros exemplos são os arts. 291º (condução perigosa de veículo
rodoviário) e 272º (incêndios, explosões, ...).
− Nos crimes de perigo abstrato o perigo não é elemento do tipo, as simplesmente motivo da
proibição. Quer dizer, neste tipo de crimes são tipificados certos comportamentos em nome
da sua perigosidade típica para um bem jurídico, mas sem que ela necessite de ser
comprovada no caso concreto: há como que uma presunção inelidível de perigo e, por isso, a
conduta do agente é punida independentemente de ter criado ou não um perigo efetivo para
o bem jurídico. Diz-se também que nesta espécie de crimes o perigo é presumido iuris et de
iure pela lei. Temos como exemplo a condução de veículo em estado de embriaguez (art.
292º), em que o condutor embriagado é punido pelo facto de o estado em que se encontra
constituir um perigo potencial para a segurança rodoviária. Outros exemplos são, por
exemplo, o abuso sexual de crianças (172º), a contrafacção de moeda (262º) ou a posse de
arma proibida (275º).

Tem sido questionada, também entre nós, a constitucionalidade dos crimes de perigo abstrato pelo facto de
poderem constituir uma tutela demasiado avançada de um bem jurídico, pondo em sério risco quer o princípio
da legalidade, quer o princípio da culpa.

A doutrina maioritária e o TC pronunciam-se, todavia, com razão pela sua não inconstitucionalidade quando
visarem a proteção de bens jurídicos de grande importância, quando for possível identificar claramente o bem
jurídico tutelado e a conduta típica for descrita de uma forma tanto quanto possível precisa e minuciosa.

Como dissemos, em princípio, quando haja acusação pela prática de um crime de perigo abstrato é indiferente
a prova que se faça no sentido de mostrar que, no caso concreto, o bem jurídico não foi posto em perigo.
Contudo, no âmbito da discussão acerca da constitucionalidade deste tipo de crimes surgiram posições que
preconizam a não punição de conduta que configurem a prática de um crime de perigo abstrato quando se
comprove que, na realidade não existiu, de forma absoluta, perigo para o bem jurídico, ou que o agente tomou
todas as medidas necessárias para evitar que o bem jurídico fosse colocado em perigo. A este propósito começou
a falar-se na doutrina de crimes de perigo abstrato-concreto. Neles o perigo abstrato não é só critério
interpretativo e de aplicação, mas deve também ser momento referencial da culpa e, por isso, admitem a
“possibilidade de a perigosidade ser objeto de um juízo negativo”. De um ponto de vista formal esta categoria
cabe ainda na dos crimes de perigo abstrato, porque a verificação do perigo não é essencial ao preenchimento

105
do tipo; de um ponto de vista substancial, porém, do que verdadeiramente se trata é de crimes de aptidão, ou
na terminologia proposta por Bockelmann, de “conduta concretamente perigosa”, no sentido de que só
devem relevar tipicamente as condutas apropriadas ou aptas a desencadear o perigo proibido no caso de
espécie. Assi, pois, nos crimes de aptidão o perigo converte-se em parte integrante do tipo e não num mero
motivo de incriminação, como sucede nos autênticos crimes de perigo abstrato. Por outro lado, porém, a
realização típica destes crimes não exige a efetiva produção de um resultado de perigo concreto.

Bem jurídico – Um terceiro plano em que se analisa o tipo objetivo de ilícito é o plano do bem jurídico – todos
os tipos legais de crime. Para que se possam qualificar como materialmente legítimos deverão desempenhar
a função de proteção de um bem jurídico. Nesta medida, quando o legislador tipifica uma certa conduta, deve
fazê-lo em ordem à proteção de um bem jurídico porque a proibição é necessária para a proteção do bem
jurídico. A referência ao bem jurídico é também um elemento que integra o próprio tipo incriminador.

3. Crimes simples e crimes complexos


Ainda em atenção ao bem jurídico é possível distinguir crimes simples e complexos, conforme o tipo ilícito vise
a tutela de um ou mais do que um bem jurídico. Se na maior parte dos tipos de crime está em causa a proteção
de apenas um bem jurídico, com os tipos complexos pretende-se alcançar a proteção de vários bens jurídicos.
Por exemplo, no roubo (210º) é tutelada não só a propriedade, mas também a integridade física e a liberdade
individual de decisão e ação. O relevo normativo-prático desta distinção reside e, que ela pode mostrar-se
essencial para uma correta interpretação e aplicação do tipo. Por exemplo, no crime de denúncia caluniosa (art.
365º) é absolutamente decisivo para uma correta interpretação de muitos e importantes pontos do seu regime
ter em conta a duplicidade dos bens jurídicos protegidos pelo tipo, por um lado o interesse individual dos
atingidos pela denúncia, por outro o valor individual dos atingidos pela denúncia, por outro o valor supra-
individual da “realização da justiça”.

4. As dicotomias crimes de mera atividade e de resultado e crimes de perigo e de dano


Estabelecidas nos termos em que procurámos fazê-las, as distinções entre crimes de mera atividade e de
resultado, de uma parte, e crimes de perigo e de dano, de outra parte mantêm a sua autonomia conceitual-
teleológica, máxime, por a primeira se referir, em princípio, ao objeto da ação, a segunda se reportar ao estado
do bem jurídico. O que de resto, de um ponto de vista dogmático-prático, se revela por no tema se verificarem
quatro possíveis combinações: existem crimes de violação sexual (164º) ou de violação de domicílio (190º);
crimes de resultado que são crimes de dano, por exemplo, os crimes de homicídio (131º) ou de ofensa à
integridade física (143º); crimes de mera atividade que são crimes de perigo, p. ex., os crimes de condução em
estado de embriaguez (292º), ou o de falsidade de depoimento ou declaração (359º); crimes de resultado, enfim,
que são crimes de perigo, p. ex., a generalidade dos crimes de perigo comum (272º e ss.) ou de exposição e
abandono (138º).

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IV. Grupos de tipos e figuras de estrutura especial
No sentido de corresponder pelo melhor às exigências do princípio da legalidade, nomeadamente, de descrever
de uma forma o mais precisa e estrita possível os comportamentos típicos e as formas de lesão ou colocação em
perigo dos bens jurídicos, o legislador faz uso de técnicas que resultam na criação de grupos de tipos de crime,
bem como de figuras típicas de estrutura especial. São os mais importantes desses grupos e figuras que iremos
referir agora:

1. Crimes fundamentais, qualificados e privilegiados


Os crimes fundamentais contêm o tipo objetivo de ilícito na sua forma mais simples, constituem, por assim dizer,
o mínimo denominador comum da forma delitiva, conformam o tipo-base cujos elementos vão pressupostos
nos tipos qualificados e privilegiados. Frequentemente, na verdade, o legislador, partindo do crime
fundamental, acrescenta-lhe elementos respeitantes à ilicitude e à culpa, que agravam (crimes qualificados) ou
atenuam (crimes privilegiados) a pena prevista no crime fundamental. Por exemplo: o crime de homicídio. No
art. 131º está contido o ilícito-típico fundamental de homicídio, traduzido na ação de matar outra pessoa. A
partir daqui e conforme a morte produzida em circunstâncias, devidamente descritas ou referenciadas através
de uma cláusula geral, que revelem uma culpa mais grave ou uma culpa menos grave do que a pressuposta no
tipo-base, deparamos com um homicídio qualificado (132º) ou homicídio privilegiado (133º). Outro exemplo é
dado pela generalidade dos crimes patrimoniais, v. g., o crime de furto: partindo do tipo-base (ou furto simples:
203º) e acrescentando-lhe elementos, aqui relativos ao tipo de ilícito que aumentam a gravidade do facto – aliás
em dois graus diversos –, deparamos com o furto qualificado (204º).

2. Crimes instantâneos, crimes duradouros (ou permanentes) e crimes habituais


Quando a consumação de um crime se traduza na realização de um ato ou na produção de um evento cuja
duração seja instantânea, i. é, não se prolongue no tempo, esgotando-se num único momento, diz-se que o
crime é instantâneo. Por exemplo, o homicídio consuma-se no momento em que se dá a morte da vítima, o furto
no momento em que se dá a subtração da coisa. O crime não será instantâneo, mas antes duradouro (também
chamado, embora com menor correção, permanente) quando a consumação se prolongue no tempo, por
vontade do autor. Assim, se um estado antijurídico típico tiver uma certa duração e protrair no tempo enquanto
tal for vontade do agente, que tem a faculdade de pôr termo esse estado de coisas, o crime será duradouro.
Nestes crimes, a consumação ocorre logo que se cria o estado antijurídico; só que ela persiste (ou dura) até que
um tal estado tenha cessado. O sequestro (art. 158º) e a violação de domicílio (art. 190º - 1) são exemplos desta
espécie de crimes. A distinção entre crimes instantâneos e crimes permanentes tem uma grande importância
prático-normativa para efeitos de legítima defesa, de tentativa, de autoria e cumplicidade, de prescrição do
procedimento criminal (art. 119º - 1 e 2/a)), de flagrante delito (arts. 255º e 256º do CPP), etc.

Crimes habituais são aqueles em que a realização do tipo incriminador supõe que o agente pratique
determinado comportamento de uma forma reiterada, até ao ponto de ela poder dizer-se habitual. Exemplos
deste tipo de crimes são o aborto agravado (141º - 2) e o lenocínio (art. 170º). Outros casos são, por exemplo,

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o do art. 152º (maus-tratos), são muito discutidos pela doutrina e pela jurisprudência. Um pretenso interesse
apresentaria esta espécie de crime para efeito de concurso.

12º CAPÍTULO – A IMPUTAÇÃO OBJETIVA DO RESULTADO À AÇÃO


Francisca Helena – páginas 322-347
I. O sentido do problema
Os crimes de resultado pressupõem a imputação objetiva do resultado à ação, isto é, tem que se fazer um
relacionamento do comportamento humano com o resultado, para que este possa atribuir-se ou imputar-se
àquele, a ação há-de, pelo menos ter sido causa do resultado – Causalidade.

A partir do momento em que se ultrapassou uma conceção puramente positivista e causalista da dogmática
penal, compreendeu-se que o problema da imputação objetiva do resultado à ação não se reduz apenas à
categoria cientifico natural da causalidade, mas constitui uma questão normativa que deve resolver-se segundo
a teologia, a funcionalidade e a racionalidade, próprias da dogmática penal. Assim ela constitui uma das mais
duvidosas e discutidas questões da dogmática penal.

Coloca-se a questão de saber se a imputação penal deve ter como limite máximo a causalidade
naturalisticamente comprovável, ou antes ficar aquém através de uma limitação jurídica da causalidade natural
e, portanto, através de uma verdadeira teoria de imputação jurídica-objetiva do resultado à ação. Aqui existem
várias doutrinas da “casualidade jurídica”, sendo que a escolha entre elas supõe uma autêntica opção normativa,
uma valoração. Neste aspeto Mezger pôs isto em evidencia através da “teoria da relevância”, que distingue entre
causas juridicamente relevantes e irrelevantes.

II. Primeiro degrau: a categoria da causalidade


Teoria das Condições Equivalentes
 Teoria Sine Qua Non
Um primeiro degrau constitutivo da exigência mínima é o da pura causalidade: a ação há-de ao menos, ter sido
causa do resultado, aferida através da Teoria das Condições Equivalentes. A premissa básica desta teoria, que
surgiu em meados do século XIX com Glaser e Buri, é a de que a causa de um resultado é toda a condição sem a
qual o resultado não teria tido lugar (fórmula chamada da Conditio Sine Qua Non). Por isso, todas as condições
que de alguma forma contribuíram para que o resultado se tivesse produzido, são causais em relação a ele e
devem ser consideradas em pé de igualdade, sendo que o resultado é indivisível e não pode ser pensado sem a
totalidade das condições que o determinaram.

Verifica-se que a fórmula da Conditio Sine Qua Non, acaba por abranger a mais longínqua condição, implicando
uma espécie de regressos ad infinitum, isto é, remete-nos sucessivamente para trás.

Sendo assim, uma das críticas que tem sido dirigida a esta Teoria da Equivalência, é que esta exclui da
problemática qualquer consideração sobre a interrupção do nexo causal devido à atuação do ofendido ou de
terceiro, ou ainda por efeito de uma circunstância extraordinária ou imprevisível. Ex: se A viesse a morrer não

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dos tiros, mas devido a um incêndio ocorrido num hospital onde convalescia, ainda assim a conduta de B seria
causa da sua morte.

Resulta necessariamente para cada resultado um leque extremamente amplo de causas, o que obriga os
defensores a aceitar correções quer por critérios de imputação objetiva mais exigentes do que aqueles que
resultam da pura causalidade natural, quer por limitações ao nível do tipo de ilícito subjetivo da culpa.

Afirma-se igualmente que o critério da “supressão mental” de uma condição, por meio da qual se pretende saber
se é ela causa ou não de determinado resultado, apenas se revela prestável em certos casos, mas não noutros,
nomeadamente nos casos ditos de causalidade virtual (ex: A dispara um tiro mortal sobre B, no preciso
momento em que este é afetado por um AVC mortal), bem como nos casos de dupla causalidade ou causalidade
alternativa (ex: A e B colocam separadamente venenos, qualquer deles mortal no copo de C que acaba por
morrer).

Por outro lado, esta Teoria também encontra dificuldades quando não se consegue determinar, par além de toda
a dúvida razoável, se determinada ação foi realmente condição sine qua non de um certo resultado. É o caso dos
atentados ao ambiente, da manipulação genética, da responsabilização de entes coletivas ou mesmo só da
divisão de responsabilidade no seio de uma direção empresarial, de uma equipa médica, cirúrgica, etc.

Sendo assim, a Teoria das Condições Equivalentes é inútil porque já traz pressuposto aquilo que com ela deveria
determinar-se.

 Teoria das condições conforme às leis naturais


Perante estas críticas, a Teoria das condições equivalentes foi objeto de uma “reconstrução”, que passou pelo
abandono do critério da “supressão mental” e pela sua substituição pelo critério, da condição conforme às leis
naturais. Segundo este critério, o estabelecimento da causalidade está dependente de saber se uma ação é
acompanhada por modificações do mundo exterior que se encontram vinculadas a essa ação de acordo com as
leis da natureza que são constitutivas de um resultado típico.

O critério que esta teoria segue é o apelo às leis da experiência, de base estatística ou probabilística. Seria o
conhecimento científico que nos permitira dizer se uma conduta causou ou não o resultado. Segundo um autor,
chamado K. ENGISCH, diz-nos que o resultado foi causado por uma conduta, se essa conduta for a explicação
científica para a produção daquele resultado. Isto empurra-nos para um conceito de causalidade de natureza
probabilística, que nunca teve grande acolhimento entre nós.

Apesar de todas as críticas e de todas as dificuldades, a doutrina das condições equivalentes continua a ter
generalizada aceitação em Direito Penal, constituindo um denominador comum de toda a teoria da imputação.

III. Segundo degrau: a causalidade jurídica sob a forma da Teoria da Adequação


No DP a teoria que mais se afirmou para imputar um resultado a uma conduta foi a teoria da causalidade
adequada ou teoria da adequação. Esta teoria é já um critério jurídico, normativo de causalidade, isto é, já

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aparece desligada do acontecimento naturalístico e constituiu uma valoração dos factos. Ela distingue entre
condições juridicamente relevantes e irrelevantes, surgindo como critério complementar da teoria das
condições equivalentes.

A teoria da adequação pretende definir um critério segundo o qual a imputação penal, não pode nunca ir além
da capacidade geral do homem de dirigir e dominar os processos causais. Esta Teoria foi criada nos finais do
século XIX por Kries, com caracter geral e por ele aplicada ao Direito Penal. Segundo este critério, para a
valoração jurídica da ilicitude, serão relevantes, não todas as condições, mas só aquelas que, segundo as
máximas de experiência e a normalidade do acontecer – e, portanto, segundo o que é geral e previsível -, são
idóneas para produzir o resultado, pelo que, consequências imprevisíveis, anómalas ou de verificação rara,
serão, pois, juridicamente irrelevantes. Neste sentido, deve interpretar-se o art.10º, nº1 do CP, que faz
referência à “ação adequada” e à omissão da “ação adequada”, significando a aceitação desta Teoria.

No entanto, existem dificuldades na aplicação desta teoria. Uma delas resulta do facto de o critério da adequação
dever ser geral e objetivo, enquanto, depois do resultado se ter verificado, dificilmente se pode negar a sua
previsibilidade.

O que conduz, a que o nexo de adequação se tem de aferir segundo um juízo de prognose póstuma ou juízo ex
ante e não ex post. É póstuma porque tudo já aconteceu e de prognose porque o juiz se deve deslocar
mentalmente para o passado, para o momento em que foi praticada a conduta e ponderar enquanto observador
objetivo, se, dadas as regras gerais da experiência e o normal acontecer dos factos, a ação praticada teria como
consequência a produção do resultado. Se entender que a produção do resultado era imprevisível, ou que, sendo
previsível, era improvável ou de verificação rara, a imputação não devera ter lugar.

Ex: Não configura um crime de homicídio, o caso em que A dá uma navalhada superficial em B, que caba por morrer
devido a hemofilia. Não é normal e previsível que a um pequeno corte se suceda a morte de alguém, a não ser que
exista uma circunstância anormal, como o facto do sujeito ser hemofílico. Se A soubesse que B era hemofílico, já se
podia imputar-lhe a morte daquele. É preciso ter em conta os especiais conhecimentos do agente na formação do
juízo, aqueles que o efetivamente detinha apesar da generalidade das pessoas deles não dispor.

Outro ponto que merece, ainda atenção diz respeito à necessidade de a adequação se referir a todo o processo
causal e não só ao resultado. Aqui colocam-se os problemas da intervenção de terceiros e da chamada
interrupção do nexo causal. Tendo como referência a regra geral da teoria da adequação, a atuação de terceiro
que se integre no processo casual desencadeado pelo agente excluirá a imputação, salvo se ela aparecer como
previsível e provável.

Exemplo: A deixa uma arma carregada em local onde B e C travam uma violenta discussão. Pode ser imputada a
A, a morte de C se esta foi produzida por disparos efetuados por B com essa arma apenas quando face à intensidade
da luta, se possa considerar normal que um deles pegasse na arma e disparasse.

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Criticas: Existem várias situações em que a Teoria da Adequação se mostra insatisfatória, tal sucede sobretudo
em atividades que comportando em si mesmas riscos consideráveis para bens jurídicos, são todavia legalmente
permitidas (não proibidas), como acontece nos domínios da circulação rodoviária, o da produção e transporte
de produtos perigosos, o das intervenções medicas arriscadas (se bem que necessárias), o da danificação o
destruição dos ecossistemas, o da tecnologia genética, etc. Colocam problemas de imputação que não podem
ser resolvidos corretamente pela teoria da adequação, na medida em que, na maioria dos casos, a ação se revela
adequada à produção do resultado típico. Por isso, o degrau da adequação tem ainda que ser completado por
aquilo que poderá designar-se, com Stratenwerth, como a “conexão do risco” ou “relação do risco”.

IV. Terceiro degrau: a Conexão do Risco


Esta teoria defende que o resultado só deve ser imputável à ação quando esta tenha criado (ou aumentado, ou
incrementado), um risco proibido para o bem jurídico protegido pelo tipo de ilícito e esse risco se tenha
materializado no resultado típico. Ou seja, em primeiro lugar é preciso que o risco seja proibido e em segundo
lugar que seja esse risco proibido que se materialize no resultado, e não qualquer outro risco.

Para esta teoria a imputação está dependente de 2 fatores:


• Que o agente com a sua ação, tenha criado um risco não permitido ou tenha aumentado um risco já
existente;
• Esse risco tenha conduzido à produção do resultado concreto.

Quando não se verificar um destas condições a imputação deve ter-se por excluída.

1. Criação de um risco não permitido


Para se aferir a criação de um risco não permitido, o procedimento deve ser eminentemente casuístico, caso a
caso. No entanto, não subsistem duvidas em todas aquelas hipóteses em que com a sua ação o agente diminui
ou atenua um perigo que recai sobre o ofendido. Por exemplo A empurra B causando-lhe leves lesões, para
evitar que este seja atropelado por um veículo que segue na sua direção. Neste caso, prefere-se a doutrina da
conexão de risco, que nega a imputação por inexistência da criação de risco não permitido.

No entanto, mesmo seguindo a teoria da adequação o agente não seria certamente responsabilizado
penalmente, uma vez que ele atuou ao abrigo de uma causa de exclusão da ilicitude, a do direito de necessidade
(Art.34º do CP).

A imputação deverá ter-se igualmente por excluída quando o resultado tenha sido produzido por uma ação que
não ultrapassou o limite do risco juridicamente permitido.

Exemplo: condução automóvel com respeito pelas regras rodoviárias e de manutenção e conservação do veiculo –
é o caso de A que em dia de chuva, não obstante cumprir todas essas regras, perde o controlo do seu carro, devido
a um inesperado lençol de agua na estrada e embate violentamente no automóvel de B que seguia em sentido
contrario e que acaba por morrer em consequência do acidente. Segundo a teoria da adequação deveria ser

111
imputado a A o resultado (morte de B). Preferível é a solução de excluir a imputação, pelo facto da conduta de A se
ter mantido dentro do risco permitido.

Dentro do risco permitido mantem-se, o chamado risco geral da vida, desde que ele se possa considerar no caso
dotado de uma medida normal. Ou seja, os riscos gerais da vida são socialmente adequados. São os riscos que
aceitamos nas nossas sociedades, como o uso de explosivos em pedreiras, uso de medicamentos, a circulação
rodoviária, etc. – são riscos que nós aceitamos no nosso normal desenvolvimento em vida normal. A nossa
sociedade atual sofre de um problema “capacidade de fazer sem prever”. Risco que pagamos pela utilidade que
reconhecemos a essas atividades.

Ex: quando um medico receita um antibiótico necessário à cura de um paciente, deve informar sobre se há alguma
razão para supor que o doente possa ser hipersensível ao medicamento. Mas em caso negativo, não tem que
mandar efetuar exames complementares para despistar uma eventual hipersensibilidade. Sendo assim, se o
paciente vem a morrer de choque anafilático, a morte não deve ser objetivamente imputada ao medico.

Também não haveria criação de risco proibido na co - atuação da vítima ou de terceiro. Estes casos em rigor,
não podem assumir relevo de um ponto de vista de pura “causalidade”, não sendo o resultado imputável em
virtude da interposição da auto-responsabilidade da vítima ou de terceiro.

Ex: A, portador de SIDA, mantem contactos sexuais com B, conhecedor da situação, criando em B perigo de infeção;
C deixa uma porção de droga disponível a um toxicómano, D, que, ao ingeri-la, acaba por morrer de overdose.

Estas ações mantêm-se dentro do risco permitido, só assim não sucedendo em casos excecionais, se particulares
circunstâncias tornarem altissimamente provável, em concreto, a conduta posterior da vítima ou de terceiro.

2. A potenciação do risco
Sucede, muitas vezes, que na situação já esta criado, antes da atuação do agente, um risco que ameaça do bem
jurídico protegido, não obstante, o resultado será ainda imputado ao agente se este, com a sua conduta
aumentou ou potenciou o risco já existente, piorando em consequência a situação do bem jurídico já ameaçado.

Ex: é o caso do condutor de uma ambulância que, em virtude de uma manobra errada causa a morte do paciente
que transportava e que, em todo o caso, já se encontrava em péssimo estado em virtude de um enfarte.

O mesmo sucederá, de resto, relativamente a situações de avaliação complexa – de intervenção num processo
causal de salvamento, quando precisamente o comportamento do agente afasta, impede ou faz em todo o caso
diminuir as hipóteses de salvamento de um bem jurídico já em perigo (ex: o agente não traz o bote que deverá
ir ajudar a salvar uns nadadores em perigo, ou condu-lo defeituosamente provocando a sua inutilização,…).

3. A concretização do risco não permitido no resultado típico


Não basta a comprovação de que o agente, com a sua ação, produziu ou potenciou um risco não permitido para
o bem jurídico ameaçado; é preciso ainda determinar se foi esse risco que se materializou ou concretizou no
resultado típico, que constitui uma tarefa de alta dificuldade, como nos casos chamados de concursos de riscos.

112
Para determinar o resultado, importa fazer um juízo ex post, isto é, com conhecimento de todas as
circunstâncias relevantes para a verificação efetiva do resultado.

Exemplo: o diretor de uma fábrica de pinceis de barbear adquiriu pelos de cabra chinesa como matéria prima para
a sua empresa, não tendo ordenado uma desinfeção a esse material, como estava alegadamente prescrito.
Posteriormente 4 trabalhadores foram infetados por bacilos e morreram. Investigado o caso, provou-se que, mesmo
que se tivesse procedido à desinfeção o resultado seria o mesmo, por se tratar de um bacilo desconhecido na europa
e resistente a qualquer processo de desinfeção – comportamentos lícitos alternativos: aquelas situações em que
se o agente tivesse tomado uma conduta adequada ao direito, licita, isso não impediria o resultado, o resultado
sempre se teria produzido.

Aplicando a doutrina da adequação, não poderão deixar de imputar-se aqueles resultados à respetiva conduta,
por ser normal e previsível segundo um juízo de prognose póstuma a que o resultado se produziria. À luz de um
puro critério de potenciação do risco, o mesmo acontece, na medida em que qualquer daquelas condutas
servisse para aumentar o perigo para os bens jurídicos ameaçados.

No entanto, a doutrina maioritária defende que a imputação objetiva deve ser negada nestes casos, quer porque
não se torna possível provar aqui verdadeiramente uma potenciação do risco já instaurado, seja porque se não
pode dizer sequer que o comportamento do agente criou um risco não permitido.

Situação mais complexa seria aquela em que não se demonstra que também com o comportamento lícito
alternativo, o resultado típico teria seguramente tido lugar, mas apenas que era provável ou possível que tal
acontecesse. Nestes casos, na dúvida, funciona o Art.32º, nº2 da CRP “In dúbio pro reu”, isto é, o juiz deve valorar
a prova a favor do arguido e excluindo a imputação.

4. A produção de resultados não cobertos pelo fim e pelo âmbito da proteção da norma
Para que a conexão de risco se dê como estabelecida temos de fundar a imputação do resultado da seguinte
forma: é preciso que o perigo que se concretizou no resultado seja um daqueles em vista dos quais, a ação foi
proibida, quer dizer seja um daqueles que corresponde ao fim de proteção da norma de cuidado. O perigo que se
materializou no resultado tem que corresponder ao perigo que a norma quis proibir. Se o perigo que se
materializa no resultado, não é um daqueles que a norma quis evitar, então não há imputação do resultado.

Ex: imaginemos que o A inicia uma manobra de ultrapassagem sobre B. No decurso da manobra, B, sem reparar
que esta a ser ultrapassado, vira à esquerda e embate no outro automóvel, que já se encontrava na outra faixa de
rodagem. Do acidente resultou a morte de C, acompanhante de B. A foi acusado da prática de um homicídio
negligente, por ao realizar a ultrapassagem, seguir a 80 km/h quando a velocidade máxima permitida era de 50
km/h. Contudo, o tribunal considerou que este limite de velocidade se devia a um sinal de aproximação de travessia
de peões e que o acidente nada teve haver com uma tal travessia: o que, aliado ao facto de A ter cumprido as demais
regras rodoviárias, determinou a sua absolvição. Esta decisão judicial expressou, ainda que de forma implícita, o
referido critério do âmbito de proteção da norma. Com efeito, foi por se ter reconhecido que o escopo da norma era

113
o de limitar riscos para a circulação de peões que se não imputou à conduta de A a morte de C – ou seja, a norma
violada não tinha por fim prevenir perigos inerentes ao tipo de manobra que teve lugar.

Se o agente criou ou incrementou um risco proibido e este se concretizou no resultado típico, tal é bastante para
afirmar o nexo de imputação objetiva do resultado à ação. Porem assim não será, ainda naqueles casos em que
o âmbito do tipo, o fim de proteção da norma típica, não cobre resultados da espécie daquele que efetivamente
se verificou. Para Roxin, o “ilícito é a criação de um risco não permitido dentro do âmbito do tipo”.

Sendo assim, para este autor, devem entrar neste enquadramento, pelo menos 3 grupos de casos:

1. Colaboração na auto-colocação em risco dolosa: quando A e B se lançam, por aposta numa corrida
perigosíssima de motos na estrada e B, em virtude de um erro de condução, perde o domínio do veículo
e sofre lesões físicas graves;

2. Heterocolocação em perigo livremente aceite: em que alguém se não coloca dolosamente em perigo,
mas, com consciência do perigo, se deixa pôr em risco outrem. Ex: C, a pedido do passageiro D, aumenta
de forma proibida a velocidade do automóvel e em consequência se despista, sofrendo D lesões físicas
graves.

3. Imputação a um âmbito de responsabilidade alheio: aqueles resultados cujo impedimento caem na área
da responsabilidade de outra pessoa. Ex: quando E provoca um incendio na sua habitação e F, um dos
bombeiros chamados, para salvar outro habitante da casa sofre lesões físicas graves.

Parece relevante, invocar neste contexto o princípio da auto-responsabilidade como máxima definidora e
delimitadora dos âmbitos de responsabilidade, que nos auxiliará na distinção entre casos de autocolocação em
perigo dolosa e de heterocolocação em perigo livremente aceite.

Importa por fim não minimizar, que o acordo com o risco é aqui um elemento decisivo e incontornável da
situação e da solução.

V. A questão da causalidade virtual


Temos em vista os casos chamados de causalidade hipotética ou causalidade virtual, casos estes que não se
confundem com os referidos comportamentos lícitos alternativos, nem mesmo com a causalidade dupla e com a
potenciação do risco em caso de concurso de riscos.

O que está agora em questão é o agente ter produzido o resultado numa hipótese em que, se não tivesse atuado,
o resultado surgiria em tempo e sob condições tipicamente semelhantes por força de uma ação de terceiro ou
de um acontecimento natural.

Ex: Ainda que A não tivesse feito explodir o avião X para matar o passageiro B, o aparelho ter-se-ia igualmente
despenhado por falta de combustível e todos os passageiros acabariam igualmente por morrer. Ou: C é morto

114
dentro de um avião que no momento seguinte cai ao deslocar por erro de atuação do piloto causador da morte de
todos os passageiros.

Deve conferir-se algum relevo jurídico-penal à causa hipotética ou virtual? A doutrina responde negativamente
a esta questão. Mesmo à luz de uma função de tutela subsidiaria de bens jurídicos, continua a ter sentido não
abandonar o bem jurídico à agressão do agente, só porque aquele já não pode, em definitivo, ser salvo

VI. Problemas especiais


1. Relativos aos crimes de perigo
Vimos que nos crimes de perigo o “dano” (lesão efetiva do bem jurídico protegido), não releva do ponto de vista
do tipo ilícito. No entanto, os crimes de perigo, não são crimes de mera atividade. Enquanto que a distinção
entre crimes de dano ou de perigo deve ser operada em função da forma como o bem jurídico é posto em causa
pela ação do agente, a distinção entre os crimes de mera atividade e de resultado, respeita ao objeto da ação.

Assim, os crimes de perigo concreto são crimes de “resultado”, só que o resultado em causa é um resultado de
perigo e não um resultado de dano, suscitando um problema de imputação objetiva análoga ao dos crimes de
dano.

No que toca aos crimes de perigo abstrato são normalmente crimes de mera atividade (art.292º CP, condução
de veículo em estado de embriaguez), mas podem também ser construídos crimes de resultado (art.262ºCP,
contrafação de moeda). Na primeira hipótese o problema da imputação objetiva não se coloca e na segunda não
se vê razão para que deva ser alterada a doutrina da imputação objetiva anteriormente definida. Isto acontece
tanto para os crimes de perigo abstrato verdadeiro e próprio, como para os crimes de perigo abstrato-concreto,
de aptidão ou de conduta concretamente perigosa.

2. Relativos à criminalidade de massa própria da “sociedade do risco”


Problemas especiais de critérios e termos da imputação objetiva começam agora a agitar-se nos domínios da
criminalidade de massa própria da sociedade de risco, nomeadamente no âmbito da criminalidade ambiental e
da responsabilidade pelo produto. Mas também em domínios do direito penal clássico, em matéria de
falsificação de moeda ou de corrupção. Tratando-se de crimes de resultado, pergunta-se se é possível imputar
resultados lesivos do bem jurídico protegido a condutas extremamente distanciadas no tempo e no espaço e
que, parece deverem reputar-se jurídico-penalmente irrelevantes. Conclui-se que serão punidas, não em si
mesmas, mas em função de condutas de outras pessoas, previsíveis e muito prováveis, que vêm somar-se à do
agente. Neste sentido fala-se, em tipos aditivos ou acumulativos.

Duas questões relevantes:


1. Onde à partida, se reconheça a impossibilidade ou a extrema dificuldade de decidir em termos ainda
jurídico-penalmente aceitáveis a questão da causalidade – quais as condições de legitimidade material,
jurídico constitucional e politico-criminal de criminalização pelo legislador de comportamentos
considerados em si mesmos e na sua singularidade, na base da sua inumerável proliferação.

115
2. Dificuldade de comprovar judicialmente, nestes domínios, a causalidade entre a ação e o resultado.

3. Relativos a crimes de organização ou de entes coletivos


Problemas de particular dificuldade, podem ocorrer nos casos em que a atuação típica se verifica no âmbito de
uma organização ou de um ente coletivo. Importa distinguir consoante o tipo considere autor o próprio ente
coletivo ou antes só as pessoas naturais que ajam em nome ou em representação do ente coletivo.

Tratando-se da aferição da responsabilidade de pessoas naturais que ajam em nome de organizações ou em


representação de entes coletivos (art.12º CP), não se suscitam problemas de causalidade ou de imputação
objetiva. Os problemas difíceis que possam surgir, respeitam à relação entre as pessoas naturais e o ente
coletivo, não propriamente à imputação do resultado à ação.

Quanto à responsabilidade do ente coletivo, coloca-se desde logo, a questão de saber sob que pressupostos pode
atribuir-se ao ente coletivo como tal, capacidade de ação. Uma vez imputado ao ente coletivo a ação psico-física
da(s) pessoa(s) singular(es), deve exigir-se, também neste contexto, que o comportamento ativo ou omissivo
do ente coletivo, tenha criado um risco não permitido e que esse risco se tenha vazado no resultado típico.

Apontamentos relevantes da aula


Responsabilidade penal das pessoas coletivas – o livro de DR. Figueiredo Dias foi publicado em 2007 e nesta
data há também a reforma do CP. Uma das grandes novidades no art.11º do CP é responsabilizar as pessoas
coletivas pela prática de alguns crimes.
Um ente coletivo por definição não tem capacidade de agir, é um ente abstrato. Quem é que age pela pessoa
coletiva? Os administradores, agentes da pessoa coletiva. A pessoa coletiva é responsável pelos factos
cometidos no seu nome e no seu interesse por quem nela tem uma posição de liderança.

O que é uma posição de liderança – são os titulares dos órgãos coletivos e quem tenha funções de controlo na
pessoa coletiva. Portanto, se um facto acontece no contexto de uma empresa, a empresa responde por esse
crime? Depende.
Primeiro temos que ver se estamos perante um dos crimes que estão elencados no catálogo do art.11º, nº2
do CP, se for homicídio e ofensa à integridade física não responde. Depois temos de ver se o facto foi praticado
~ e no seu interesse e por alguém que tem uma posição de liderança, nos termos art.11º, nº2 al.a).
no seu nome
A pessoa coletiva responde pela ação ou pela omissão de quem tem uma posição de liderança na empresa.

Caso prático – Brandão: “Imutação objetiva do resultado à ação”


(caso Avastin, Ac. TRL de 21/05/2015, Proc. 3793/09.6TDLSB.L1-9, www.dgsi.pt):

No dia 17 de Julho de 2009, no Hospital de Santa Maria, de Lisboa, o farmacêutico Hugo e a técnica de farmácia
Sónia administraram a 6 doentes injeções intra-oculares de uma substância que não foi possível determinar. Depois
de receberem essas injeções, esses 6 doentes ficaram total ou parcialmente cegos. Em julgamento, não se logrou
estabelecer uma conexão entre as injeções administradas e a cegueira dos doentes. Poderão Hugo e Sónia ser
condenados pela prática dos crimes de ofensa à integridade física grave negligente (artigo 148.º/1/3 do CP) de
que estavam acusados?

116
Resolução:
Doentes de oftalmologia receberam injeções por estas 2 pessoas e 6 deles após estas injeções ficaram cegos – o
MP acusou Hugo e Sónia da prática de ofensa à integridade física grave. No entanto, não foi possível apurar que
substância foi dada e também não se conseguiu apurar se entre aquelas injeções e a cegueira havia algum nexo
causal.

Este acórdão é muito fraco porque não enquadra devidamente o caso e não se percebe bem qual a matéria de
facto.

Poderiam aqueles dois arguidos ser responsabilizados? Não, o tribunal verificando que não foi possível apurar
a substância que foi administrada e é desconhecida a causa que determinou a cegueira, não responsabilizou os
arguidos. Tendo sido este o resultado a que se chegou, o tribunal não podia condenar desde logo porque falta
um elemento basilar, mínimo, da imputação do resultado à conduta – é o da CAUSALIDADE.

Só se for possível estabelecer uma conexão causal, concluir que o resultado foi causado pela conduta é que
poderá haver uma imputação daquele resultado àquela conduta. Neste caso como não houve a demonstração
daquele nexo de causalidade, não poderia haver imputação.

117
13º CAPÍTULO – O TIPO SUBJETIVO DE ILÍCITO
Laura Gaudêncio – páginas 348-362
Pirré – páginas 366-383

I. A construção do tipo subjetivo de ilícito


Já foram anteriormente mencionados os passos da evolução que conduziu de uma conceção exclusivamente
objetiva do tipo de ilícito incriminado à aceitação de elementos subjetivos da ilicitude (modelo normativista);
e desta à atual bipartição do tipo de ilícito e um tipo subjetivo de ilícito seja sob a forma dolosa, seja sob a
forma negligente.

É o tipo subjetivo de ilícito doloso que cabe agora analisar. Tipo esse cujo elemento irrenunciável é o dolo -
não na integralidade dos seus eventos constitutivos1 mas no conjunto daqueles que pertencem, segundo a sua
estrutura e função, ao tipo de ilícito.

Conjunto a que desde longa data se chama dolo natural, dolo do ato ou dolo do tipo.

O conteúdo do tipo subjetivo de ilícito doloso não tem de se esgotar no dolo do tipo - o essencial da conceição
normativista dos elementos subjetivos do tipo persiste e não perdeu interesse político-criminal ou dogmático
com a construção de um autónomo tipo de subjetivo de ilícito doloso. Em muitos tipos legais de crime existem
especiais elementos subjetivos que não pertencem ao dolo do tipo e que co-determinam o desvalor da ação e
definem a área de tutela típica.

II. O dolo do tipo


1. A estrutura do dolo do tipo
O CP não define dolo do tipo, mas apenas as formas em que ele se analisa no art. 14.º.

A doutrina dominante conceitualiza-o2 como conhecimento e vontade de realização do tipo objetivo do


ilícito.

O art. 13.º determina que só é punível o facto praticado com dolo ou, nos casos especialmente previstos na lei, com
negligência.

Assim, no conjunto da criminalidade o lugar primordial, por mais grave, é conferido à criminalidade dolosa.
Apesar do aumento de importância dos crimes negligentes na sociedade do risco, só cerca de uma décima parte
dos crimes descritos na PE do nosso CP são puníveis a fruto de negligência, e os que o são, são-no com molduras
penais quase sempre mais baixas do que os correspondentes delitos dolosos.

1 Os quais se estendem pelo tipo de ilícito e tipo de culpa


2 Formulação geral.

118
Deste modo, a estrutura dogmática do dolo tipo há-de ser político-criminalmente condicionada pela
diferente relevância dos delitos dolosos e dos negligentes pelo desvaler jurídico mais alto que àqueles cabe
face a estes. Isto significa que a diferença essencial entre uma e outra espécie de delitos tem de ser uma
diferença de culpa.3

Só a esta luz se justifica a conceitualização do dolo do tipo como conhecimento (momento intelectual) e vontade
(momento volitivo) de realização do facto.

De um ponto de vista funcional, os dois elementos não se situam ao mesmo nível: o elemento intelectual do
dolo do tipo não pode, por si mesmo, considerar-se decisivo da distinção dos tipos de ilícito dolosos e dos
negligentes já que também estes últimos podem conter a representação pelo agente de um facto que preenche
um tipo de ilícito.

É o elemento volitivo, quando ligado ao elemento intelectual requerido, que serve para indiciar4 uma posição
ou atitude do agente contrária ou indiferente à norma de comportamento - uma culpa dolosa e a consequente
possibilidade de o agente ser punido a título de dolo.

2. O momento intelectual do dolo


Trata-se da necessidade que o agente conheça, saiba, represente corretamente ou tenha consciência
(consciência “psicológica” ou consciência “intencional”) das circunstâncias do5 facto que preenche um tipo de
ilícito objetivo (art. 16.º-1).

O que com ele se pretende é que, ao atuar, o agente conheça tudo quanto é necessário a uma correta
orientação da sua consciência ética para o desvaler jurídico que concretamente se liga à ação intentada,
para o seu caráter ilícito.

Por isso, é indispensável para se poder afirmar que o agente detém (ao nível da consciência intencional ou
psicológica) o conhecimento necessário para que a sua consciência ética/dos valores pena e resolva
corretamente o problema da ilicitude do comportamento.

O conhecimento da realização do tipo objetivo de ilícito constitui a base indispensável para que nele se possa
ancorar uma culpa dolosa e a punição do agente a esse título. Assim, sempre que o agente não represente, ou
represente erradamente, um qualquer dos elementos do tipo de ilícito objetivo o dolo terá, desde logo, de ser

3 Esta diferença foi buscada na integração do conceito de dolo da consciência o ilícito: dolo seria uma violação consciente do direito e suporia para
além do conhecimento e vontade de realização do tipo objetivo, a consciência de que se realizava um tipo objetivo de ilícito - só isto permitiria afirmar
que a maior severidade com que a lei trata os delitos dolosos provém de que neles o agente sobrepõe conscientemente os seus interesses à fidelidade que
deve ao direito.
Uma tal conceção não merece aceitação e é hoje repudiada.
Porém, há nela algo de exato: que o dolo não pode esgotar-se no tipo de ilícito, mas exige do agente um qualquer momento emocional que se adiciona aos
elementos intelectual e vomitivo contido no “conhecimento e vontade de realização”. A estrutura do dolo do tipo que aqui tentamos alcançar só se alcança
quando se tenha a consciência clara de que, com ela, não fica por si mesma justificada a aplicação da moldura penal prevista pela lei para o crime doloso
respetivo; antes se torna indispensável um elemento que já não pertence ao tipo de ilícito, mas à culpa ou tipo de culpa. Com esse elemento se depara
quando se atente em que a punição por facto doloso só se justifica quando o agente revela no fato uma posição/atitude de contrariedade ou indiferença
perante o dever-ser jurídico-penal.
4 Não fundamentar.
5 Diferente de de facto (de direito).

119
negado. Fala-se a este propósito de um princípio de congruência entre o tipo objetivo e o tipo subjetivo de
ilícito doloso.

2.1. O conhecimento das circunstâncias de facto


2.1.1. O conhecimento dos elementos normativos
Se o tipo de ilícito é o portador de um sentido ilicitude, compreende-se que a atualidade típica que o agente tem
de representar não constitua o agregado de “puros factos”, mas de “factos valorados” e, função daquele sentido
de ilicitude.

Assim, não basta o conhecimento dos meros factos: é indispensável a apreensão do seu significado
correspondente ao tipo. Tal exigência não colocará qualquer dificuldade de princípio relativamente aos
elementos descritivos6 . Já assim não sucederá com os elementos normativos que só podem representados e
pensados por referência a normas, jurídicas ou não jurídicas.

Não se exigirá a exata subsecção jurídica dos factos a lei que os prevê sob pena de só o jurista poder atuar
dolosamente. Se o agente conhece o conteúdo do elemento, mas desconhece a sua qualificação normativa,
trata-se de um erro na subsunção que deve considerar-se pura e simplesmente irrelevante para o doloso tipo.
Necessário e suficiente será o conhecimento pelo agente dos elementos normativos, antes que na diferenço de
uma exata subsunção jurídica, na de uma apreensão do sentido ou significado correspondente, no essencial
e segundo o nível próprio das representações do agente, ao resultado daquela subsunção ou, mais
exatamente, da valoração respetiva.7 8

Relativamente ao critério geral apontado casos haverá em que o respeito pela função exercida pela necessidade
de conhecimento para afirmação do dolo do tipo conduzirá a uma maior exigência. Existem elementos
normativos de estrutura eminentemente jurídica, que só através de uma decisão estritamente técnica assumem
relevo normativo e logram orientar o agente para o desvaler da ilicitude do facto total. É o caso de, p.e., inúmeros
elementos normativos que enxameiam o direito penal secundário; Mas também surgem no próprio cp.

Nestes casos, das normas penais em branco, se não se exige obviamente que o agente valore o substrato no
sentido da qualificação jurídica, deve requerer-se o grau máximo de conhecimento impondo-se que o agente
conheça os critérios determinantes da qualificação: tal conhecimento é infrangível para a firmação do dolo
do tipo; porque de outro modo não pode dizer-se a consciência ética do agente suficientemente orientada para
o desvaler da ilicitude.

Com menor grau de exigência se deparará nos elementos normativos cujo conhecimento pelo agente deva
limitar-se ao dos seus pressupostos materiais. Isto sucederá com aqueles elementos cuja qualificação deriva

6 P.e.: “outra pessoa” (art. 131.º), “mulher” (art. 168.º), “alimentos ou bebidas” (art. 220.º/1-a)
7 Exemplos claros são dados pelo caráter “alheio” da coisa numa série de crimes patrimoniais (arts. 203.º e 204.º, 209.º, etc.), pela qualidade de
“funcionário nos crimes cometidos no exercício de funções públicas (art. 372º e ss.), etc.
8 Mezger, aproveitando o pensamento de Binding que falava de uma “subsunção na esfera do leigo” fala da existência de uma “valoração paralela na esfera

do leigo”. Por seu turno Welzel, pretendendo evitar a intervenção nesta exigência de uma “valoração” e lembrando que não só leigos como juristas podem
cometer crimes dolosos, requer uma “apreciação paralela na consciência psicológica do agente”.
Entre nós, Beleza dos Santos referia a necessidade de “conhecimento dos efeitos práticos que formam o conteúdo jurídico dos elementos em causa”.

120
só da necessidade sentida pelo legislador ide abranger no mesmo elemento uma série extensa de substratos
normativamente relevantes.

Mas é sobretudo o caso dos elementos que exprimem imediatamente uma valorarão moral, social, cultural
ou mesmo jurídica decisiva para a ilicitude do facto como um todo. P.e., cláusulas como a dos “bons
costumes” no consentimento (art. 38.º e 149.º), a do caráter “censurável” da utilização do meio de coação (art.
154.º/3-a), etc.

Em qualquer destes casos deve bastar à afirmação do dolo do tipo o conhecimento, pelo agente, dos
pressupostos materiais da valorarão porque esse conhecimento já orienta suficientemente a sua consciência
ética para o desvaler do facto como um todo.

2.1.2. A atualidade da consciência intencional da ação


O conhecimento requerido pelo dolo do tipo exige a sua atualização na consciência psicológica ou
intencional no momento da ação. Não basta a “possibilidade” de representação do facto, antes se requer que
o agente represente a totalidade da atualidade típica e a atualize de forma efetiva. Só que “consciência atual”
não é o mesmo que “consciência refletida”, “ponderada”, “clara” ou “demorada”.

Platzgummer defender que a consciência requerida das circunstâncias do facto será a atual do próprio ponto
de vista psicológico não apenas quando aquelas são assumidas pelo agente sob a forma de “representação” mas
também quando elas são “co-consciencializadas”, isto é, assumidas por uma consciência que não é considerada
explicitamente, mas que é atendida com outros conteúdos conscientemente considerados e tem assim também de
ser implicitamente tomada em conta de forma necessária”. Alcançou-se a tradução de uma exigência
“amortecida” como a de uma co-consciência imanente à ação.9 10

2.1.3. O erro sobre a factualidade típica


Faltando ao agente o conhecimento da totalidade das circunstâncias, de facto ou de direito, descritivas ou
normativas, do facto, o dolo do tipo não pode afirmar-se.

É isto que afirma o art. 16.º/1, 1ª parte quando este erro “exclui o dolo”; e é isto que a doutrina crisma como
“erro sobre a faculdade típica”. Tal é aceitável feita uma dupla prevenção: a de que o termo “erro” não está aqui
tomado apenas no sentido de uma representação positiva errada, mas também no sentido de uma falta de
representação: p.e., tanto erra sobre a fatualidade típica do crime de aborto (art. 139.º) a mulher que, usando um

9 Se, p.e., um médico sabe que um medicamento pode produzir um colapso cardíaco sob determinadas circunstâncias e receita posteriormente esse
medicamento sem pensar que aquelas condições estão dadas de novo, então ele tem um conhecimento atualizável no momento das circunstâncias de
facto que integram o tipo objetivo da ofensa à integridade física grave com perigo para a vida (art. 144.º/d), mas não possui consciência atual e age sem
dolo do tipo.
Quem copula com menor de 15 anos, que há algum tempo namora, abusando da sua inexperiência (art. 174.º), raramente pensará na idade da vítima que,
todavia, o agente conhece e que está na sua co-consciência imanente à ação.
Entende-se sobre o agente um permanente saber acompanhante que basta para a firmação do dolo do tipo. Permanecendo, em certos casos concretos,
dúvidas não deve então um tal conhecimento ser presumido, também aqui valendo o princípio in dúbio pro reo.
10 Mezger defendia que, relativamente a certos elementos do tipo, não seria necessária ao dolo a sua “representação” pelo agente, mas bastaria uma

advertência do sentimento.
Platzgummer mantém-se fiel às leis da “psicologia associacionista”, enquanto Mezger se serve das conclusões da “psicologia da profundidade”.
Schmidhauser sustentava que a atualidade da consciência requerida se processa, psicologicamente, de acordo com um “pensamento pela matéria” cuja
característica essencial estaria, por oposição ao “pensamento pela fala”, na rapidez com que se atualiza um saber que se possuiu e que, embora não de
forma refletida, chega à consciência intencional de modo a influenciar a decisão da ação.

121
medicamento que atua como abortivo, não sabe que está grávida, como a que conhece a sua gravidez mas
considera o medicamente inócuo. A expressão “exclui o dolo” não significa que um dolo já existente foi eliminado,
mas sim que o dolo do tipo não chega a constituir-se quando faltam os seus pressupostos.

Urge acentuar que a doutrina exposta não vale só para as circunstâncias que fundamentam o ilícito mas também
para aquelas que o agravam e para a aceitação errónea de circunstâncias que o atenuam.

O nosso CP não é expresso nesta questão porque o considerou dispensável.

P.e., quem furta coisa móvel alheia sem consciência (intencional) de que, com a subtração, “deixa a vítima em difícil
situação económica” não atua com dolo do tipo de furto qualificado (art. 204.º/1-i), mas apenas de furto simples
(art. 203.º/1). Quem toma erradamente por “sério” o pedido de um doente grave e o mata,matava tua com dolo do
tipo homicídio a pedido (art. 134.º) e não com o de homicídio (art. 131.º).

Em ambos os casos o erro sobre a factualidade típica conduz a que só deva ser aplicada a norma penal menos
grave.

Com a negação do dolo do pipo falta o tipo subjetivo apenas do crime doloso de ação correspondente. Não só
pode o agente ter realizado dolosamente outros tipos de ilícito como pode ainda estar preenchido um tipo de
ilícito negligente.

P.e., um condutor de automóvel que à noite não repara a tempo num bêbado estendido na estrada e o atropela
mortalmente, não age com dolo do tipo de homicídio. Possivelmente, o seu desconhecimento é reconduzível à não
prestação do cuidado devido, pelo que o seu comportamento integra o tipo de ilícito do homicídio negligente (art.
137.º).

Isto é expressamente afirmado pelo art. 16.º/3 ao ressalvar a “punibilidade da negligência nos termos gerais”,
quer isto dizer, se (1) o respetivo comportamento for expressamente previsto na lei como crime negligente e
se (2) a negligência se tiver efetivamente verificado no caso.

2.2. A previsão do decurso do acontecimento


Nos crimes de resultado tanto a ação como o resultado são circunstâncias do facto pertencentes ao tipo objetivo
de ilícito que têm de ser levados à consciência intencional do agente. Importa saber se também é necessário o
conhecimento pelo agente da conexão entre ação e resultado, do risco por ele criado e vazado no resultado
que fundamenta a imputação objetiva.

Só desta maneira a realização do tipo objetivo de ilícito no seu todo urgirá, não como “obra impessoal”, mas
como “obra do agente”, como sua “própria realização”.

122
2.2.1. O erro sobre o processo causal
Surge a questão de saber se qualquer divergência entre o risco conscientemente criado pelo agente e aquele do
qual deriva efetivamente o resultado deve conduzir a que o resultado não possa mais ser imputado ao agente e
este só possa, por isso, responder por tentativa.

- A doutrina que responde afirmativamente diz-nos que na base de que se o resultado tem lugar por
concretização de um risco não previsto não pode afirmar-se a congruência entre o tipo objetivo e o tipo
subjetivo doloso;

- No outro extremo encontram-se aqueles para quem o erro sobre o processo causal é irrelevante, com
eventual ressalva dos crimes de execução vinculada, porque só nestes o processo causal constitui um
elemento do tipo objetivo de ilícito e, por isso, uma circunstância do facto para efeito do disposto no art.
16.º/1.

Há que considerar que muitos dos problemas que tradicionalmente se colocavam nesta sede de afirmação ou
negação do dolo do tipo encontram já hoje solução (negativa) em termos da doutrina da imputação objetiva,
nomeadamente daquilo a que chamámos a conexão do risco. Quando, todavia, a imputação dever ser afirmada
naquela sede, então tem de conferir-se relevo ao erro sobre o processo causal. Mas uma de duas:
- Ou o tipo de ilícito é de execução vinculada e então o “erro sobre o processo causal” traduz-se num puro
erro sobre a atualidade típica e é relevante;
- Ou é de execução livre e torna-se extremamente difícil figurar uma hipótese em que a imputação objetiva,
comandada pela conexão de risco, deva ser afirmada e o dolo do tipo ser negado.

Onde e quando uma tal hipótese possa ser figurada o erro sobre o processo causal não pode deixar de ter-se por
relevante no sentido da não afirmação do dolo e o agente só poderá ser punido a título de tentativa. 11

2.2.2. O chamado dolos generalis


Trata-se dos casos em que o agente erra sobre qual de diversos atos de uma conexão da ação produzirá o
resultado aspirado.

Ocorrem em dois tempos:


- Um primeiro momento em que o agente pensa erroneamente ter produzido, com a sua ação, o resultado
típico;

11 É a própria imputação objetiva (e o dolo do tipo) que deve ser afirmada em casos como aquele que dispara um tiro sobre outra pessoa representando
a sua morte imediata quando, afinal, o ferido ainda chega ao hospital mas vem a morrer do tiro recebido, ou mesmo de uma septicemia que no decurso
do tratamento, mas em consequência da ferida, se verificou. Se, porém, estando o ferido a ser tratado com êxito, ele morre em virtude de uma negligencia
medica ou de um erro no tratamento subsequente; ou se a ambulância em que é transportado ao hospital sofre um despiste que ocasiona a morte daquele
- é a própria imputação objetiva que é negada: nada fica para um hipotético erro sobre o processo causal.

123
- Um segundo momento, fruto de uma nova atuação do agente, em que o resultado vem a concretizar-se.12

A ação suportada pelo dolo do facto não determina imediatamente o resultado, enquanto a ação que causa o
resultado não é mais suportada pelo dolo do facto. Uma parte significativa da doutrina vê aqui apenas uma
tentativa em curso eventual com o cometimento negligente do facto, enquanto a doutrina dominante se
pronuncia pela aceitação de um crime consumado.

O critério de solução deve seguir os passos da doutrina da imputação objetiva: saber se o risco que se concretiza
no resultado pode ainda reconduzir-se ao quadro dos riscos criados pela primeira (ação). Se a resposta for
afirmativa, deve considerar-se o crime consumado; se não, a punição só poderá ter lugar a título de tentativa,
eventualmente em curso com um crime negligente consumado.13

2.2.3. A aberratio ictus vel impetus


Casos em que, por erro na execução, vem a ser atingido objeto diferente daquele que estava no propósito do
agente.

P.ex: A pretende matar B com um tiro mas este atinge C; D procura destruir uma coisa a tiro mas este acaba por
não atingir a coisa mas sim uma pessoa que estava perto que fica ferida ou morta.

Aqui o resultado ao qual se referia a vontade de realização do facto não se verifica, mas sim um outro, da mesma
espécie ou diferente. A ação falha no seu alvo e apresenta estrutura da tentativa. A produção do outro resultado
só pode eventualmente conformar um crime negligente. A punição deve, por isso, ter lugar só por tentativa ou
por concurso desta com um crime negligente; é a chamada teoria da concretização14.

2.2.4. O error in persona vel objecto


O decurso real do acontecimento corresponde inteiramente ao intentado; só que o agente encontra-se em erro
quanto à identidade do objeto ou da pessoa a atingir. Não existe qualquer erro na execução, mas sim na
formação da vontade.

P. ex.., A, pensando que o passante é o seu inimigo B, dispara contra ele um tiro mortal, verificando-se depois que A
confundiu B com C e foi este, um estranho, que matou.

D subtrai de um museu uma imitação de um quadro célere, de valor muito relativo, pensando que se trata do
original valioso.

12 É o caso do agente que, atuando com o dolo correspondente, acredita ter morto com uma pancada a sua vitima e depois ter tentado simular suicídio,
enforcando-a, tendo a morte ocorrido só com o enforcamento; ou o de uma vítima supostamente já assassinada ter sido lançada à agua para o corpo
desaparecer, tendo acabado por morrer afogada.
13 Solução análoga para os casos de inversão temporal dos acontecimentos.
14 Mesmo quando haja coincidência típica entre o tipo de ilícito projetado e o consumado.

Há para esta hipótese outra solução - a teoria da equivalência, continue a defender a punição pelo crime doloso consumado.

124
Sempre que o objeto concretamente atingido seja tipicamente idêntico ao projetado, é irrelevante, não pode
pôr-se em dúvida e não é hoje mais discutido; uma vez que a lei proíbe a lesão não de um determinado objeto
ou indivíduo, mas de todo e qualquer objeto ou pessoa compreendidos no tipo de ilícito.

So agente erra também sobre as qualidades tipicamente relevantes do objeto por ele atingido, então há que ficar
ou só na responsabilidade por tentativa, ou na combinação de tentativa com responsabilidade por negligência.

Quer uma, quer outra solução se compreendem em face aos princípios gerais, de tal modo que o error in persona
ver obecto não reivindica nenhum tratamento especial.

[Pirré]
3. O momento volitivo do dolo
O conhecimento das circunstâncias de facto e do decurso do acontecimento não podem, por si só, indiciar a
contrariedade ou indiferença ao dever-ser jurídico-penal, manifestada pelo agente no seu facto.

O dolo do tipo não pode bastar-se com esse conhecimento, devendo exigir-se que a prática do facto seja
presidida por uma vontade dirigida à sua realização. É este o elemento que constitui o momento volitivo do
dolo do tipo e que pode assumir diversas matizes, permitindo, desse modo, a formação de diversas classes do
dolo.

Se, por vezes, a orientação da vontade é manifestada de forma clara, configurando situações de dolo direto,
outras vezes ela não é tão transparente, suscitando dificuldades quando a agente parte para a realização do
facto.

É a este nível que se impõe uma distinção entre o dolo e a negligência e, ainda, entre dolo direto e dolo eventual.

3.1 O dolo direto


O dolo direto pode ser intencional ou necessário.

A forma mais clara de dolo direto é constituída pelos casos em que a realização do tipo objetivo de ilícito surge
como um verdadeiro fim da conduta (art.14º/1). A este propósito fala-se em dolo direto intencional ou de
primeiro grau.

• A, admirador de um quadro de Picasso mas dinheiro para o comprar, assalta o estabelecimento de


leilões onde o quadro será vendido no dia seguinte e rouba-o.

São ainda de considerar, como casos de dolo direto intencional, aqueles em que a realização típica não constitui
o fim último, mas surge como pressuposto ou estádio intermédio necessário do seu consentimento.

• A mata B porque é a única forma de assaltar o banco.

Aqui não relevam as motivações determinantes do comportamento do agente. Apenas é relevante a necessidade
de conexão entre o facto prévio (o homicídio) e o fim último dado à conduta (roubar o banco).

125
Existe quando o agente, estando certo da verificação da factualidade típica, age com intenção de praticar o facto.
Neste dolo intencional temos uma situação em que o agente tem um conhecimento seguro, certo de que da sua
conduta vai resultar certamente uma consequência e atua com a intenção, com a vontade de levar a cabo essa
conduta. Ele deseja conseguir aquilo que representa como crime, num quadro em que ele está seguro de que
isso vai acontecer. Integra ainda o caso de o agente saber que tem a arma carregada e aponta a arma à cabeça
de outra pessoa e dispara sobre ela e ele sabe que é certo que se disparar ele vai matar aquela pessoa e é assim
que ele atua, de propósito, com dolo intencional.

Há situações em que o agente está seguro, tem a certeza de que da sua conduta vai advir uma certa consequência,
porque a sua conduta preenche um certo cenário típico, não porque ele o deseje, mas porque aquilo representa
um pressuposto para aquilo que ele deseja- também nestes casos, temos um dolo direto intencional ou de 1º
grau- temos um facto que surge como um pressuposto necessário para a intenção do agente, o seu móbil é outro,
mas aquele facto é instrumental, é necessário, é um pressuposto indispensável para levar a cabo o crime que
ele deseja cometer. Por exemplo: um individuo que subtrai um carro para cometer um assalto e decide investir
com esse carro contra a montra de uma ourivesaria- ele, ao avançar com o carro para partir a montra, estraga o
carro que não lhe pertence e o carro vai ficar danificado e esta danificação é um crime de dano, mas o que ele
pretendia era assaltar a ourivesaria, mas a subtração do carro era um pressuposto.

Diferentes são os casos de dolo direto necessário ou de segundo grau (art.14º/2). Neles a realização do facto
surge, não como pressuposto para alcançar a finalidade da conduta, mas como a sua consequência necessária,
inevitável. E esta inevitabilidade pressupõe, em si mesma, uma caraterística especial ao nível do elemento
intelectual do dolo do tipo: a previsão do facto tem de ter ultrapassado a mera representação da consequência
como possível, para o ser como certa (ou altamente provável).

• A coloca uma bomba num avião como forma de, em pleno voo, matar um inimigo seu, estando pleno
consciente de que a explosão provocará a morte dos restantes passageiros.

A morte do inimigo ser-lhe-á imputada a título de dolo direto intencional. A morte dos restantes ocupantes,
como consequência da explosão da bomba e do avião, a título de dolo direto necessário.

Aqui o agente atua com o dolo direto necessário. Há dolo direto necessário quando o facto típico não é
intencionado pelo agente, não é o seu propósito nem a sua finalidade, mas ele aparece como consequência
inevitável da prática do facto intencionado. Por exemplo: alguém queria matar um político que ia num avião, faz
explodir o avião e, consequentemente, mata as outras pessoas todas.

3.2 Dolo eventual


Os casos de dolo eventual (também designado por dolo condicional) caraterizam-se, desde logo, pelo facto de a
realização do tipo objetivo de ilícito ser representada pelo agente apenas “como consequência possível da
conduta” (art.14º/3).

126
Prende-se, a este nível, uma questão de prima importância: a distinção entre o dolo assim estruturado e a
negligência consciente. Tal problemática deriva do facto de também a negligência consciente supor a
representação da realização típica como consequência possível da conduta (art.15º/a)), aproximando, portanto,
as duas figuras.

3.2.1 Termos da distinção entre dolo eventual e negligência consciente


Sendo assim, como é que se distinguem? São infindáveis os critérios que se propõem distingui-las, mas, entre
nós, a generalidade das soluções pode ser agrupada em três teorias fundamentais: as teorias da probabilidade,
as da aceitação e as da conformação.

TEORIAS DA PROBABILIDADE
Ainda que seja ponto assente na doutrina que a questão do dolo eventual diz respeito ao momento volitivo do
dolo (o mesmo não acontecendo na negligência consciente), alguns autores sugerem que a distinção só se logra
através de diferenças que radicam no plano cognitivo e, portanto, no elemento intelectual. Postulam, assim, que
não basta a mera representação do facto como possível (comum ao dolo e negligência em causa), exigindo que
ao dolo eventual se requeira uma qualquer representação qualificada.

É a partir deste entendimento que várias doutrinas assentam a premissa de que para o dolo tipo não basta o
conhecimento da mera possibilidade de realização, requerendo-se, ao invés, que a representação assuma a
forma de uma probabilidade ou, até, de uma probabilidade alta. É face a este entendimento que se estrutura a
“teoria da probabilidade”, nos termos da qual o agente, em princípio, contará tanto mais com a realização típica
quanto mais esta surgir aos seus olhos como provável.

No entanto, fazer assentar toda a construção da teoria somente na probabilidade da realização típica levanta
dificuldades:
• Nem sempre é fácil determinar, com um mínimo de exatidão, o grau de probabilidade/possibilidade
de verificação do facto necessário à afirmação do tipo de dolo.
• Por vezes, apesar da improbabilidade de realização do tipo, o agente toma a firme decisão de alcançar
essa realização
− Ex.: o agente quer a todo o custo matar a vítima com um tiro mesmo que a grande distância a
que se encontra dela torne improvável que a consiga matar.

Aqui depara-se, por isso, com a particular intensidade do elemento volitivo, que não deve tornar a realização
típica subjetivamente imputável a mera negligência.

Perante estas dificuldades, as formulações mais recentes desta doutrina procuram ancorar o dolo eventual a
uma especial qualidade da representação da realização típica como possível. Para tal, exigem que o agente tome
a realização como concretamente possível e que não a considere improvável segundo o seu juízo fundado,
partindo de um ponto de vista pessoalmente vinculante. Com isto, esta conceção perde, inevitavelmente, o seu

127
ponto de partida cognitivo-intelectual e aproxima-se, progressivamente, do entendimento perfilado nas teorias
da conformação.

De acordo com esta teoria há que distinguir o grau de probabilidade de produção do facto. Se o agente
representar o facto como provável, a fronteira entre o dolo eventual e a negligência consciente está num grau
de probabilidade da verificação do facto. Se ele representar como provável temos dolo, se representar como
pouco provável ou improvável temos negligência- nesta visão das coisas o que importa é a probabilidade da
produção do facto.

TEORIAS DA ACEITAÇÃO
Esta teoria é, de certo morto, oposta à teoria da probabilidade, propondo-se partir para a análise da vontade do
agente, ou seja, do puro elemento volitivo do dolo.

A questão que se coloca nesta conceção é a de saber se o agente, apesar da representação da realização típica
como possível, aceitou intimamente a sua verificação ou, pelo menos, revelou a sua indiferença perante ela (dolo
eventual), ou se, pelo contrário, a repudiou intimamente, esperando que ela não se verificasse (negligência
consciente). É ao conjunto destas duas posições que se dá o nome de teorias da aceitação.

Estas teorias evidenciam uma conexão particularmente importante com a culpa dolosa: que o agente se tenha
decidido contra o direito ou com indiferença perante ele será tanto mais seguro quanto tenha considerado bem-
vinda a realização típica, e quanto mais duvidoso a tenha considerado indesejável.

Numa consideração crítica destas teorias impõe-se uma alternativa:

• Ou a íntima aceitação é entendida em termos estritos e rigorosos- caso em que fica próxima a afirmação
de um dolo direto que não meramente eventual.

• Ou a íntima aceitação é entendida em termos pouco rigorosos e modificados, fazendo-se equivaler à


posição emocional daquele a quem a verificação do resultado é indiferente ou, pelo menos, espera ou
confia que o resultado não terá lugar.

O conhecido caso Lacmann, de que se ocupa praticamente a totalidade da doutrina alemã, revela-se a este
propósito exemplar:

→ A aposta com B que é capaz de quebrar com um tiro um copo de uma rapariga, C, que o segura na mão,
sem a atingir. Mas acaba por ferir a sua mão.

A está consciente de que pode errar o tiro e atingir C mas, naturalmente, espera que tal não aconteça. Mesmo
que A sinta como um mal a realização típica, pode ele considerar a sua possibilidade como um mal menor, que
de todo o modo se dispõe a aceitar. Nisto residiria a decisão, fundamentadora do dolo do tipo, contra a norma
de comportamento.

128
→ Neste contexto, a jurisprudência alemã começou a referir-se a uma aceitação em sentido jurídico
sempre que o agente, como forma de alcançar a finalidade pretendida, se resigna com a possibilidade
de que a sua ação possa a ter o efeito indesejado.

Também esta conceção, em última análise, se aproxima das teorias da conformação.

Segundo esta teoria, o agente admite a admissibilidade do facto como possível, admite que ele possa acontecer
e aceita que isso aconteça. Mas é indiferente que aconteça. Nestes casos de aceitação ou de indiferença, o agente
atua com dolo. Já se pelo contrário, o agente avança para a realização da conduta típica repudiando a
possibilidade de prodição do resultado, diz-se que ele atua com negligência consciente. Há dolo eventual se se
poder concluir que o agente pensou o facto como possível e aceitou a sua concretização, sendo-lhe indiferente
a realização ou não. Noutros casos, se ele atua acreditando que aquilo nunca ia acontecer- torna-se difícil de
destrinçar os casos de dolo eventual daqueles casos em que o agente atua com dolo intencional e, mais uma vez,
porque se pode levar a resultados insatisfatórios.

TEORIAS DA CONFORMAÇÃO
Esta teoria é, hoje, a conceção largamente aceite pela doutrina, encontrando-se tipificada no art.14º/3: “quando
a realização de um facto que preenche um tipo de crime for representada como consequência possível da
conduta, há dolo se o agente atuar conformando-se com aquela realização”.

Este entendimento parte da ideia de que o dolo pressupõe algo mais do que o conhecimento do perigo da
realização típica. O agente pode, apesar do conhecimento, confiar, ainda que levianamente, que não se verificará
o preenchimento do tipo e, portanto, age só com negligência (consciente). É nesta linha que Eduardo Correia,
no seu ensino, avançou como critério do dolo eventual o seguinte pressuposto: “se a realização do facto for
prevista como consequência possível ou eventual da conduta, haverá dolo se o agente, atuando, não confiou em
que ele não se produziria”.

Mas esta formulação, entre nós, não é a desejada por duas razões:

1- A dupla negação que ela comporta não permite perceber com suficiente clareza o elemento positivo
que deve arvorar-se em critério do dolo eventual

2- Uma conotação extremadamente psicologista da “confiança” pode levar a privilegiar o otimista


impenitente (que confia que tudo correrá pelo melhor) face ao pessimista depressivo (incapaz de
confiar que não se passará o pior).

Este entendimento dá-nos fundamentação para divergirmos, doutrinalmente, ainda que em pequena medida,
do postulado pela doutrina alemã relativamente à teoria da conformação.

Para nós, revela-se essencial que o agente leve a sério o risco de (possível) lesão do bem jurídico, que o tenha
em conta e que, não obstante, se decida pela realização do facto.

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Deste modo, fica prejudicada a conotação meramente psicologista da “confiança” na não produção da
consequência representada como possível, anteriormente criticada. Ao invés, frisamos normativamente o
essencial: o indício que a afirmação do dolo do tipo confere a existência de uma culpa dolosa.

Se o agente levou a sério o risco de (possível) produção do resultado e se, não obstante, não omitiu a conduta,
poderá, então, com razoável segurança, admitir-se que o propósito que move a sua atuação vale bem a seus
olhos o preço da realização do tipo, ficando, deste modo, indiciado que o agente está intimamente disposto a
arcar com o seu desvalor.

→ A circunstância de, não obstante os riscos previstos de lesão, levar a cabo a ação revela uma decisão
contra a norma jurídica de comportamento, não interessando saber se as consequências negativas lhe
são ou não indesejáveis, se ele confia ou não temerariamente que ainda as pode evitar.

Importa, a este nível, analisar um caso decidido pela jurisprudência alemã: o caso da correia de couro.

A e B decidem roubar C, apertando-lhe o pescoço com uma correia de couro até que ele perca os sentidos.
Propondo-se evitar a morte de C, que previram como possível, resolveram golpeá-lo antes na cabeça com um
saco de areia. No ato, porém, o saco rompeu-se e os agentes reverteram ao plano inicial, aplicando a correia de
couro e apertando o pescoço de C até que este se imobilizou.

Receando que C já não respirasse, levaram a cabo procedimentos de reanimação, mas C acabou por falecer.

• Neste caso mostra-se que a morte de C não era desejada pelos ladrões.
• Todavia, não era indesejada ao ponto de os impedir de utilizar a correia de couro como forma de atingir
o seu objetivo, sabendo a priori do risco de morte que apresentava.
• Assim, na base do dolo eventual de homicídio deve ser afirmado que os agentes se conformaram com a
realização típica.

Importa, agora, perguntar se o critério da conformação se consegue manter estranho à questão da probabilidade
da realização típica.

A resposta é negativa: não deve dizer-se que o agente levou a sério a possibilidade da realização se esta era
remota ou insignificante, salvo se tal distância fosse claramente compensada por uma decidida vontade
criminosa.

Veja-se, a título de exemplo, o caso da transmissão do vírus da SIDA através de contactos sexuais não protegidos
por pessoas infetada. Este contacto representa a doença ou a morte do parceiro como possível. Este é um dos
casos mais controversos da jurisprudência. Apesar das decisões contrárias da doutrina alemã, a baixíssima
probabilidade de transmissão conduz a que, entre nós, se negue a existência de dolo eventual de ofensa à
integridade física ou de morte.

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Esta teoria é a que está consagrada entre nós, no CP. De acordo com esta teoria, o que está em causa saber é se,
tendo o agente representado a realização do facto se se conformou ou não com essa possibilidade. Se se concluir
que o agente se conformou com isso, então, diz-se que há dolo eventual, se não, então diz-se que há negligência
consciente-art 14º/3 (dolo eventual) e art 15º/a) (negligencia consciente). A questão está em saber quando é
que se pode dizer que o agente se conforma. Esta expressão que a lei usa tem de ser concretizada- atualmente,
a posição maioritária vai no sentido que se aproxima das teorias da probabilidade. Assim, temos de saber se o
agente encarou o crime, o risco, como algo efetivo, isto é, saber se o agente encarou o risco como algo
efetivamente existente, se o levou como um risco sério e qualificado e se mesmo que tenha considerado isso,
avençou para a prática do facto.

Se, pelo contrário, objetivamente o risco for um risco baixo, despiciendo, então, a menos que haja aquela firme
vontade intencional, dir-se-ia que, via de regra, o agente não se conformou com a realização do facto, dando
origem a negligência consciente. Por exemplo: caso do agente que vai em contramão na autoestrada- se ele sabe
que aquela autoestrada tem muito movimento e mesmo assim ele avança, então temos aqui dolo eventual. Na
lei penal portuguesa no art 14º/3 CP está consagrada a teoria da conformação.

Em conclusão:
Seria leviano pensar que todas as dificuldades da distinção foram ultrapassadas. Uma das razões que mais
dúvidas levanta prende-se com saber como devem ser decididos os casos em que o agente não pensou no risco
nem, tão pouco, o tomou como sério ou, sequer, o teve em conta, em virtude da completa indiferença que lhe
merece o bem jurídico ameaçado.

Durante muito tempo, pensou-se que os casos deste teor obrigavam a uma distinção entre dolo e negligência,
não ao nível do tipo subjetivo de ilícito, mas antes ao nível do tipo de culpa, onde o tipo de culpa doloso pode
justamente ser integrado por uma atitude pessoal interna de indiferença perante o bem jurídico lesado.

− Hoje, não nos parece necessário ir tão longe e arvorar o critério da “indiferença” como o critério último
de distinção.
− Nem será necessário recorrer a fórmulas análogas à da “fórmula hipotética de Frank”, onde entrassem
em conta juízos hipotéticos sobre qual teria sido a decisão do agente se aquela indiferença fosse posta
de lado.

Fórmulas que acabam por se reconduzir num direito democraticamente ilegítimo e, ainda, absolutamente
desadequado.

A verdade, de todo o modo, é que a questão da culpa dolosa só pode ser suscitada se previamente tiver sido
possível comprovar a verificação de um ilícito doloso e, portanto, dolo do tipo.

O agente que revela absoluta indiferença pela violação do bem jurídico, apesar de ter representado a
consequência como possível e a ter levado a sério, sobrepõe, de forma clara, a satisfação do seu interesse ao

131
desvalor do ilícito. Por isso, decide-se pelo risco contido na conduta e, nesta aceção, conforma-se com a
realização do tipo objetivo.

− A este respeito cumpre referir a formulação de Roxin: “quando a verificação de um resultado como
possível é completamente indiferente, então tanto está bem a sua verificação como a sua não
verificação; perante tal posição, uma decisão pela violação possível do bem jurídico existe já”.

In summa, contas feitas, a distinção entre dolo eventual e negligência consciente, como quer que seja levada a
cabo, é tão frágil e insegura que mal é capaz de justificar as diferenças significativas das molduras penais
aplicáveis aos diversos casos e ainda menos capaz é de justificar que muitas vezes o delito doloso seja
severamente punível e outras o negligente não é alvo de qualquer punição.

Assim sendo, tendo em consideração o facto de na sociedade de risco aumentarem significativamente as


necessidades político-criminais de tutela de uma imensidade de condutas, parece justificado deixar a questão
de saber se à bipartição tipo de ilícito doloso/ ilícito negligente, não deverá futuramente vir a substituir-se por
uma tripartição: dolo, negligência e temeridade (categoria que se destina a incluir os casos tradicionais de dolo
eventual e de negligência consciente, ficando o âmbito do dolo restringido ao dolo direto e o da negligência à
negligência inconsciente).

3.2.2 Consequências da distinção


Em vários preceitos o CP demonstra não admitir a forma do dolo eventual como eventual manifestação punível
do tipo de ilícito doloso exigindo, ao invés, dolo direto. Mesmo os autores, na globalidade, negam a
compatibilidade de certas formas especiais de crime, nomeadamente a tentativa, com a sua punibilidade a título
de dolo eventual.

Onde, porém, lei admita a punibilidade do tipo subjetivo de ilícito a título de dolo eventual, diz-se não haver
razão para que se estabeleça qualquer distinção, ao nível da consequência jurídica, consoante o facto tenha sido
cometido com dolo direto ou dolo eventual. Tal assenta na ideia dominante, vincada na nossa jurisprudência,
de que o dolo eventual representa, por necessidade, uma forma mais leve de dolo em relação ao dolo direto.

• Podem existir situações de dolo eventual onde seja maior a gravidade do ilícito (e da culpa do agente) do
que em situações de dolo direto.

• Art.71º/2/b): deve-se, a respeito, atender a este artigo relativo à intensidade do dolo para efeitos da
medida da pena.

4. Conexão entre o dolo do tipo e a sua realização

→ Dolo do tipo e dolus alternativus:


O dolo do tipo, na qualidade de conhecimento e vontade de realização do facto, conexiona-se sempre com um
tipo específico de ilícito: um propósito geral de fazer mal, ou de cometer crimes, um concreto propósito de

132
matar, ferir, de violar, injuriar e furtar. Fala-se, então, num dolus alternativus, casos em que o agente se propõe
ou se conforma com a realização de um ou outro tipo objetivo de ilícito.

• Ex.: se A se apropria ilegitimamente de uma joia que se encontra no seu quintal, admitindo que ela possa
ter caído de uma caixa que B lhe pediu no dia anterior para guardar (abuso de confiança- art.205º) ou que
possa ter sido para ali atirada pelo vento que soprou forte durante a noite (apropriação ilegítima em caso
de acessão ou coisa achada- art.109º).

• Ex.: se C dirige um tiro contra um casal inimigo que passa na tua, sendo-lhe indiferente que mate D ou E.

• Em ambos os casos o agente conta com as duas possibilidades e conforma-se com elas, devendo, por isso,
o seu dolo ser afirmado relativamente ao tipo objetivo de ilícito realmente preenchido pela conduta.

→ Dolo do tipo e o tempo


Esta conexão, agora de índole temporal, exige que a realização entre o dolo e a realização típica ocorram em
simultâneo.

Assim sendo, um dolo prévio relativamente à realização típica (o chamado dolus antecedens) não é um dolo
tipo.

• Ex.: A quer matar B, com quem se depara no ato de este cometer um roubo na sua casa, decidindo disparar
só depois da consumação do ato. Mas, ao tirar a pistola do bolso, dispara acidentalmente e B morre antes
de consumar o ato. Aqui não há dolo de homicídio.

Também não o é o dolo que se conforma com um resultado típico que já aconteceu (o chamado dolus
subsequens).

• Ex.: se alguém mata por descuido um inimigo de A e ele depois assume conscientemente este resultado e
conforma-se com ele. Neste caso, não há dolo porque não se pode decidir realizar aquilo que já aconteceu.

III. Os especiais elementos subjetivos do tipo


A este nível importa distinguir os elementos pertencentes ao dolo tipo dos especiais elementos subjetivos do
tipo.

Assim sendo, quanto aos elementos subjetivos do tipo, estes não se referem a elementos do tipo objetivo de
ilícito (algo que acontece no dolo tipo), mesmo que se encontrem ligados à vontade do agente de realização do
tipo não havendo, por isso, uma correspondência ou congruência entre o tipo objetivo e o tipo subjetivo de
ilícito.

Para além disso, os elementos especiais que o caraterizam cumprem a função de individualizar uma espécie de
delito, de tal forma que, quando faltam, não se verifica o tipo ilícito da espécie de delito- a subtração de coisa

133
móvel alheia não integra o tipo de ilícito do crime de furto se ela não for levada a cabo (especial elemento
subjetivo do tipo) com legítima intenção de apropriação para si ou para outrem.

→ A questão mais delicada no seio dos especiais elementos subjetivos (intenção, motivos, pulsões afetivas,
atitude interna) reside no facto de tais elementos não serem quase nunca reconduzíveis a um qualquer
acontecimento exterior, mas, pelo contrário, se analisarem em dados e relações internas. É, por isso, muito
difícil afirmar se um concreto elemento respeita o tipo de ilícito ou o tipo de culpa.

O critério deve ser o seguinte: o elemento em causa pertence ao tipo de ilícito se serve ainda a definição de uma
certa espécie de delito e se refere, por esta via, ao bem jurídico protegido, ou se visa ainda caraterizar o objeto
da ação, a forma da sua lesão ou qualquer tendência relevante para o ilícito.

1. Intenções
São as intenções os especiais elementos subjetivos que mais próximos se encontram do dolo tipo.

A intenção pode constituir apenas uma das formas que assume o elemento volitivo do dolo: ou dolo intencional
ou o dolo direto em primeiro grau. Nestes casos, a intenção não assume nenhuma autonomia como especial
elemento do tipo subjetivo de ilícito.

Noutros casos, porém, o tipo de ilícito é construído de tal forma que uma certa intenção surge como uma
exigência subjetiva que concorre com o dolo do tipo ou a ele se adiciona e dele se autonomiza. É isto que sucede
quando a intenção tem por objeto uma factualidade que não pertence ao tipo objetivo de ilícito.

• É o caso dos crimes de intenção ou de resultado cortado: aqui o tipo legal exige, para além do dolo
tipo, a intenção de produção de um resultado que, todavia, não faz parte do tipo de ilícito.

▪ Ex.: art.261º/1- requer, para além do dolo do tipo da contrafação de moeda, que esta seja
levada a cabo com intenção de a pôr a circular. Mas não exige que esta intenção venha
efetivamente a concretizar-se num resultado típico.

• É o caso de múltiplos tipos que exigem, a par do dolo tipo, uma especial intenção de causar prejuízo a
outra pessoa ou ao Estado, ou de obter para si ou para outrem um benefício ilegítimo.

2. Outros elementos subjetivos especiais do tipo


A doutrina criou, a par com as intenções, os motivos, impulsos afetivos e as caraterísticas da atitude interna
como outras categorias integrantes de especiais elementos subjetivos do tipo. Importa sublinhar que, em
determinados casos, é possível exigir estes elementos como co-fundamentadoras da ilicitude típica subjetiva.

Aqui, urge atender a duas notas:


− Os elementos subjetivos especiais do tipo são, não raras vezes e, em especial, as caraterísticas da atitude
interior, são utilizados pela lei não para fundamentar (ou agravar) a ilicitude da ação, mas antes a

134
censurabilidade da atuação do agente. Nesta medida, devem ser imputados ao tipo de culpa, ao invés de
ao tipo subjetivo de ilícito.

É o que sucede, a título de exemplo, com os motivos (ódio racial, religioso), os impulsos afetivos (“pelo prazer
de matar ou de causar sofrimento”) e as caraterísticas da atitude (“ato de crueldade”, “por avidez”, “com frieza
de ânimo”) constantes do tipo legal do crime de homicídio qualificado, todos eles integrantes da cláusula de
culpa agravada constante do art.132º/1.

− Nos casos em que tais elementos devam ser imputados ao tipo de ilícito, torna-se uma tarefa
extremamente difícil determinar como é que se distinguem das intenções e como é que se diferenciam
entre si.

▪ Ex.: quando um motivo se torne determinante e atuante ele pode confundir-se com o fim da ação.
Na medida em que ele conduz e orienta a ação não será fácil distingui-lo de uma intenção.

No caso em que uma atitude interna ser cindida da atitude interna global pela qual o agente tem de responder
a título de culpa, ela torna-se tão vaga que mal servirá a concretização de um sentido de ilicitude que contribua
para individualizar a espécie de delito, como é função de todo o tipo de ilícito.

Esta situação pode assumir um efeito indesejável de esbater os limites entre as categorias da ilicitude e da culpa.

135
Secção II- Os tipos justificadores (causas de justificação ou de exclusão de ilicitude)

14º Capítulo – QUESTÕES FUNDAMENTAIS


Bia Jardim - páginas 384-403

l. Especificidades dos tipos justificadores face aos tipos incriminadores relativamente ao problema da
ilicitude
1. Complementaridade funcional e diversidade estrutural. Consequências
Como já referido, os tipos incriminadores e os tipos justificadores relacionam-se e complementam-se de um
ponto de vista funcional, face ao problema da ilicitude criminal. Complementam-se na determinação da
ilicitude de uma ação concreta, ou seja, há uma relação de complementaridade funcional na valoração de uma
ação como lícita ou ilícita. Contudo, esta complementaridade de funções realiza-se por duas vias diferentes: os
tipos incriminadores constituem uma via provisória de fundamentação da ilicitude, enquanto que os tipos
justificadores constituem uma via definitiva de exclusão de ilicitude prima facie indicada pela subsunção da
ação concreta a um tipo incriminador. Importa ainda não esquecer que o tipo incriminador não é o primeiro
degrau valorativo do facto penal independente da ilicitude, mas é o portador de um sentido de ilicitude que o
precede e ilumina.

Numa perspetiva estrutural encontram-se profundas diferenças no regime jurídico-penal que cabe aos tipos
incriminadores e justificadores. Assim diz-se, à partida, que aos tipos incriminadores cabe a revelação, tão
determinada quanto possível, dos bens jurídicos que cada um tenta proteger (aceção concreta e
individualizadora) enquanto que, os tipos justificadores ou causas de justificação são estruturalmente gerais e
absolutas, no sentido que, não se referem a um bem jurídico determinado, antes valem para a generalidade de
situações independentes da concreta conformação do tipo incriminador em análise.

Por outro lado, a forma diferenciada como os tipos incriminadores e os justificativos atuam relativamente à
mostração da ilicitude de uma concreta ação (uns visando fundamentar a ilicitude e outro visando excluí-la)
leva à conclusão primacial de que a causa justificativa, ao contrário do que sucede com o tipo incriminador, não
está sujeita, em princípio, à máxima nullum crimen sine lege, nem às suas consequências. Sob pena de se estar a
fazer funcionar aquele princípio contra a sua razão de ser teológica, político-criminal, constitucional dogmática,
a saber, de constituir uma garantia contra intervenções arbitrárias do poder punitivo do Estado e
consequentemente um entrave a todo o sistema jurídico-constitucional e legal de garantia dos direitos e
liberdades do cidadão. Importa ainda indicar que as causas de justificação, ao contrário dos tipos
incriminadores, não precisam de ser concretas e determinadas, não estão sujeitas, em princípio, à proibição de
analogia, nem se está impedido de fazer valer causas supralegais de exclusão de ilicitude. Para estas causas
justificativas também não vale o princípio da irretroatividade da lei penal.

No entanto, a doutrina tem vindo a discutir se também as causas de justificação devem submeter-se à proibição
de analogia in malam partem (“para o mal”, ou seja, quando o sujeito é prejudicado na sua aplicação), seja sob

136
forma de redução direta do alcance da norma justificante (Ex: não aplicando a justificação por legitima defesa a
bens supra-individuais ou coletivos), seja da introdução de pressupostos não escritos (Ex: exigindo uma
qualquer proporcionalidade entre o bem defendido e o bem sacrificado pela legítima defesa). E mesmo no que
respeita à analogia de uma causa de justificação- que se diria funcionar sempre in bonam partem- , não deixa de
se chamar a atenção para que, se uma tal criação joga a favor do agente, “ela desencadeia ao mesmo tempo como
efeito necessário do dever de suportar, um encurtamento de liberdade da pessoa atingida”.

Tendo em conta do disposto no art.1º/3 CP e também no art.29º/1 crp torna-se duvidoso concluir pela
inconstitucionalidade de um qualquer encurtamento para o agente, operada por força do processo
hermenêutico ou aplicativo, da área de atuação de um tipo justificador em homenagem ao teor literal das
palavras que o compõem. Não que se considere decisiva a invocação ao princípio da unidade da ordem jurídica,
ligado à circunstância de as causas justificativas provirem de todos os ramos do ordenamento jurídico mas, se
é exato que também as causas justificativas se apresentam funcionalmente como tipos justificadores ou
contratipos, a verdade é que a sua diversidade estrutural face aos tipos incriminadores, a legitimidade de elas
serem formuladas com apelo a conceitos extremadamente normativos, abertos ou mesmo indeterminados e a
cláusulas ou formas gerais de valor, deve conferir à interpretação limites muito mais latos do que os admissíveis
face aos tipos incriminadores. Em suma, a interpretação teleológica, restritiva ou extensiva, e a consequente
aplicação da causa justificativa como um todo, ou de seus singulares elementos constitutivos, é insuscetível de
violar o princípio da legalidade porque releva ainda da interpretação permitida e não da analogia legal
constitucionalmente proibida. Sempre que a aplicação da causa justificativa seja feita em consideração da sua
correta caracterização teleológica específica ou a sua “racionalidade axiológica-teleológica”.

Se a interpretação ou mesmo o recurso à analogia determinarem um alargamento, par ao agente, da área de


justificação, insiste-se em que a sua proibição em nome do princípio nullum crimen sine lege violaria a razão de
ser das causas justificativas. É certo que tal aplicação pode ter efeitos perversos de encurtamento de liberdade
de terceiros por força do dever de suportar a ação justificativa. O que não é novidade, uma vez que, a causa de
justificação intervém principalmente em situações de conflito, com o propósito de superar. Sendo
compreensível que nessas situações se tente, até ao limite possível, a concordância prática entre o efeito
justificador e o dever de suportá-lo de terceiros. Contudo, esta concordância prática não deve afetar a aplicação
da causa justificativa segundo o seu sentido teleológico-funcional e, de toda a maneira, não parece que tenha a
ver com o princípio nullum crimen sine lege.

2. Causas de justificação e princípio da unidade da ordem jurídica


As causas de justificação não têm de possuir caráter especificamente penal, podem provir a totalidade da ordem
jurídica e contarem de um qualquer ramo de direito- art.31º cp. Tal é compreensível, na medida que, se uma
ação e lícita, conforme o direito, pelo direito civil, administrativo ou por qualquer outro, essa licitude tem de
impor-se ao nível do direito penal, pelo menos no sentido de que ela não pode constituir um ilícito penal. Porém,
determinar a razão jurídica por que assim se passam as coisas é dos temas mais discutidos da dogmática penal-
unidade da ilicitude versus existência de uma ilicitude penal específica.

137
A favor da ideia de que uma ação lícita face a qualquer ordenamento jurídico não pode constituir um ilícito
jurídico-penal invoca-se o princípio da unidade da ordem jurídica. Deste princípio retira-se a ideia da unidade
da ilicitude, ou seja, uma vez qualificada como ilícita uma ação por qualquer ramo do direito, ela é ilícita face à
totalidade de ordem jurídica; e, inversamente, se ela é lícita face a qualquer ramo do direito, é-o face à totalidade
da ordem jurídica. Por muito que os diferentes ramos de direito possam divergir numa diferente
regulamentação das consequências jurídicas, não podem divergir na valoração do Tatbestand como respeitador
ou violador da ordem jurídica como um todo. Este seria assim, o conteúdo positivo do princípio da unidade da
ordem jurídica. No entanto, não se julga que as coisas tenham de ser assim entendidas, pelo menos no
respeitante ao problema jurídico-penal aqui em análise.

Defende-se inaceitável a conceção metodológica da norma jurídica que está na base deste entendimento: o
ilícito não é uma “coisa em si”, mas algo que parcial mas decisivamente se determina já a partir da consequência,
no caso da norma penal, a partir da especificidade da pena e da medida de segurança criminais. Isto não significa
a morte do princípio da unidade da ordem jurídica. Apenas significa que tal princípio deve, por um lado, ao
menos para efeitos aqui em consideração, “pensar-se no plano puramente negativo” e, portanto, no sentido de
que, “sempre que uma é, através de uma disposição de direito, imposta ou considerada como autorizada ou
permitida, está excluída sem mais a possibilidade de, ao mesmo tempo e com base num preceito penal, ser tida
como antijurídica e punível”. Ao que acresce a especificidade do ilícito penal derivada já da especificidade das
sanções que a ele se ligam, determinantes, pela sua severidade, gravidade e lesão que implicam de DLG
fundamentais ao condenado, do princípio político-criminal da intervenção mínima e de ultima ratio. E ainda
porque a fragmentariedade e a descontinuidade da tutela penal logo converte a ilicitude penal “numa expressão
qualificada de ilicitude, extremando-a, pelo teor particularmente elevado das suas exigências, face às demais
manifestações de ilicitude e antinormatividade”

Deste modo, deve concluir-se o seguinte: não é correto negar o bloco de possibilidade de se pensar a ilicitude
penal com uma ilicitude especificamente penal, devendo acompanhar-se da possibilidade de uma específica
exclusão ou justificação do ilícito penal- ilicitude penal qualificada. Sem prejuízo de pensarmos que na aplicação
desta possibilidade se vai longe demais e que os casos de uma específica justificação serão raros. Porém, não há
nada que impeça, no caso, um seu possível reconhecimento.

II. Tentativas de sistematização das causas de justificação


Uma vez apresentada a multiplicidade das causas de justificação, a doutrina tenta alcançar uma via de
sistematização racional com apelo ao que pode chamar-se de princípios gerais da justificação. Deste modo
ensaiando uma via que represente um ponto intermédio entre as quase infindas formas concretas que as causas
de justificação assumem na totalidade da ordem jurídica e os quadros abstratos a que elas são em geral
reconduzíveis. Deste modo se alcançam critérios como subjacente à teoria do fim, segundo a qual estaria
justificada toda a conduta que “possa representar-se como meio adequado (correto) para alcançar um fim
reconhecido pelo legislador como justificado (correto); ou como o da teoria do meais benefício que dano,

138
segundo a qual seria lícita toda a conduta “que, na sua tendência geral, represente para a comunidade estadual
maiores benefícios (ideias, culturais) do que danos”.

Qualquer destas teorias de sistematização são tentativas monistas que, apesar de corretas, se vêm vazias de
conteúdo e, por isso, imprestáveis para a tarefa da aplicação do direito: dificilmente se deparará só com um
problema controvertido em matéria de causas justificativas que com o apelo a elas possa ser resolvido ou
encontrar um princípio de solução. Logo, estas teoria devem ser desconsideradas.

O mesmo não se pode dizer relativamente as tentativas de sistematização dualista. Nesta tentativa, a
sistematização deve fazer-se com apelo a um duplo ponto de vista: o do princípio do interesse
preponderante, válido para a generalidade das causas justificativas; e o princípio da falta de interesse, a que
deveria ser reconduzida a causa justificativa do consentimento. Quanto à crítica dir-se-á, por um lado, que, na
parte em que deva representar-se como causa justificativa, o consentimento se não reconduz tanto a uma “falta
de interesse” quanto, ainda ele, a uma ponderação de interesses conflituantes e à consequente prevalência do
interesse preponderante. Por outro lado, dir-se-á que a construção agora exposta também não serve para,
perante qualquer situação concreta, dizer fundadamente qual o interesse preponderante no conflito; como o
que seríamos de novo remetidos para uma fórmula vazia de conteúdo e imprestável para tarefas de aplicação.
Todavia, apesar desta doutrina não servir como tentativa de sistematização das causas de justificativas, ela tem
o mérito de pôr em evidência o princípio geral mais relevante de toda a justificação. Esta opera sempre em uma
situação conflitual, em que se debatem interesses contrapostos e em que importa determinar a qual deles deve
ser concedida prevalência. Assim se compreende que a justificação resulte da preponderância jurídica, em
situação, de um interesse perante o outro ou, como se costuma dizer, na prevalência de interesse
juridicamente preponderante. Por isso, a situação de justificação implica sempre um “sopeso jurídico” dos
interesses conflituantes. O que, de resto, está em plena consonância com a função primariamente preventiva do
direito penal, conducente à maior preservação possível dos bens jurídicos.

III. Elementos subjetivos dos tipos justificadores


Procura saber-se se o efeito justificativo de uma determinada situação deve ficar ou não na dependência de o
agente ter atuado com uma certa direção da vontade, em um certo estado de ânimo ou de conhecimento,
por conseguinte, na dependência de certos elementos subjetivos. Se sim ou não e, em caso afirmativo, que
elementos devem ser esses e se eles devem exigir-se, da mesma maneira, em todas as causas de justificação.

Exemplos: devem considerar-se justificados por legítima defesa os disparos mortais de A sobre B, para lhe
herdar os bens, se se verificar que no momento B se preparava para matar A em virtude de graves
desentendimentos anteriores? Deve considerar-se justificado o aborto que C pratica em D, simplesmente
porque esta o solicitou e C quer ganhar dinheiro, se vier a comprovar-se que, com esta intervenção, C salvou a
vida da grávida ameaçada por doença não diagnosticada? Deve considerar-se justificada por consentimento de
destruição por E de um quadro a óleo sem grande valor pertencente a F, se vier a provar-se que era intenção
inabalável de F que E se desfizesse dele, por ele lhe trazer à lembrança circunstâncias desagradáveis da sua
vida?

139
Hoje, afastou-se a ideia segundo a qual se dizia que os tipos justificativos operariam em pura objetividade,
independentemente da exigência de quaisquer elementos subjetivos. Não só porque as causas justificativas
existem onde é o próprio texto legal a exigir elementos subjetivos; também porque, na doutrina tradicional,
relativamente a uma causa justificativa como a legítima defesa, desde há muito se requereu a existência no
defendente de um particular estado de ânimo ou intenção. E, nem tanto por “paralelismo lógico do sistema” que
conduziria a que, exigindo-se sempre para a fundamentação do tipo de ilícito incriminador a existência de
elementos subjetivos, o mesmo deveria acontecer com o contraponto dos tipos justificadores. A verdadeira
razão por que se impôs a exigência de elementos subjetivos da justificação reside em que os elementos objetivos
do tipo justificador só apresentam virtualidade para excluir o desvalor do resultado, enquanto os elementos
subjetivos servem para caracterizar, por excelência, a falta do desvalor da ação. Quem desconhece a situação
objetiva que conduz à justificação atua com um desvalor da ação em tudo equivalente do lado subjetivo, ao autor
de um facto típico relativamente ao qual não se verifica qualquer situação de justificação; isto é, atua com
vontade de realização do tipo objetivo ilícito e o seu facto contém, de forma completa, o desvalor da ação. Por
isso, elementos subjetivos da justificação devem considerar-se essenciais à exclusão de ilicitude.

Do exposto resulta que o conhecimento pelo agente dos elementos do tipo justificador há-de constituir a
exigência subjetiva mínima indispensável à exclusão de ilicitude, o mínimo denominador comum de toda
e qualquer causa justificativa. Se, relativamente a certas causas de justificação devem fazer-se exigências
subjetivas adicionais, requerendo que o agente tenha atuado com uma certa direção de vontade ou com um
certo animus, já não constitui questão que possa decidir-se em geral, mas unicamente a propósito de cada uma
das singulares causas justificativas.

Falta ainda determinar como é que deve ser punido o agente que atua numa situação objetiva de justificação
sem, todavia, a representar ou conhecer. Primeiramente a resposta parece fácil: tendo realizado, por um lado,
um tipo incriminador ( A matou B; C fez abortar D; E destruiu um objeto de F) e, por outro lado, não podendo
atuar qualquer tipo justificador por falta do exigido elemento subjetivo do conhecimento ou representação do
tipo objetivo justificador, parece que pode logo concluir-se que o agente realizou integralmente o tipo ilícito
respetivo e, na verdade, sob a forma consumada.

Esta solução, porém, não parece ser a que melhor se adequa à mais justa composição dos interesses em conflito
e, sobretudo, a que melhor solução oferece em termos de consequências prático-normativas. A verdade é que
na situação se verifica um desvalor da ação em tudo equivalente ao do facto em que não intervém qualquer
causa justificativa. Mas não é menos verdade que, ao contrário em que não concorre uma causa justificativa,
quando se verificam todos os pressupostos objetivos do tipo justificador falta o desvalor do resultado. Assim,
a situação análoga à da tentativa: também esta figura é justamente caracterizada pela persistência nela, ao
mesmo nível do crime consumado, do desvalor da ação faltando, todavia, o desvalor do resultado. Por isso, deve
defender-se a aplicação, por analogia (aqui absolutamente permitida porque alarga, não restringe os limites
da justificação). Apesar do CP não regular de forma explícita esta matéria, o art. 40º do ProjPG prevê

140
expressamente esta solução para o caso em que falta o elemento subjetivo relativamente à causa justificativa
do consentimento: “se o consentimento não for conhecido do agente, este é punível com pena aplicável à
tentativa” (art.38º/4). Tratando-se somente de alargar esta solução a todas as causas justificativas.

Pode ainda suscitar a questão de saber se o art.38º/4 remete para a aplicação do regime da tentativa ou
somente para a pena que à tentativa seria aplicada. Constituindo a aplicação da pena aplicável ao crime
consumado, especialmente atenuada (art.23º/2), o traço mais relevante do regime da tentativa, dir-se -á
exagerado sustentar que em qualquer caso de falta de elementos subjetivos de uma causa de justificação o facto
será sempre punido com pena especialmente atenuada. Pois, pelo art.23º/1 só é punível “se ao crime
consumado respetivo corresponder pena superior a 3 anos de prisão”. Pelo que, pelos exemplos dados, A e E
seriam punidos com penas aplicáveis ao homicídio doloso e ao dano simples, especialmente atenuadas; mas C
ficaria impune porque a tentativa do crime de aborto consentido não é punível, não havendo, nesta aceção,
“pena aplicável à tentativa”. E não se invocará contra isto qualquer lacuna intolerável de punibilidade: se o
legislador entendeu não punir a tentativa de um certo crime, não se vê porque sejam maiores o desvalor da
ação e o dolo em casos de comportamentos objetivamente justificados do que o são em casos de, por qualquer
razão exterior, o resultado ter acabado por não se verificar.

Ficou dito que o regime descrito se aplica a “todas” as causas justificativas. Mas há que fazer uma ressalva: ele
não deve aplicar-se àquelas onde a justificação seja constituída somente pela prossecução de um fim
determinado. Nestes casos, a ilicitude constitui-se logo que a conduta seja levada a cabo sem que esteja
motivada pela prossecução do fim em causa. Faltando esta, não pode sequer falar-se de um substrato objetivo
que esteja na base da justificação. Assim, por exemplo, deve ser detido por sequestro consumado o polícia que
detém um mero suspeito com outra intenção que não seja a de identificação.

IV. A aceitação errónea da verificação dos pressupostos de uma causa de justificação


Anteriormente tratou-se situações em que estavam dados os elementos justificativos objetivos, mas não os
subjetivos. O problema que será tratado agora é o contraponto do já falado no tópico anterior; situações em que
objetivamente não se dão no caso os elementos justificadores exigidos mas, (subjetivamente) o agente supõe
falsamente que eles se verificam- situações que a doutrina chama de justificação putativa ou de erro sobre os
elementos do tipo justificador.

Exemplos: A aponto uma pistola a B gritando “bolsa ou visa”, mas B saca rapidamente de uma arma que traz
no bolso e mata A; verifica-se depois que A estava a brincar e pistola que tinha era um brinquedo. O médico C
interrompe a gravidez de D, a pedido desta, porque lhe foi diagnosticada uma doença que poria em causa a sua
vida se a gravidez continuasse; vem depois a comprovar-se que D não sofria de doença nenhuma e que tinha
havido um erro no diagnóstico.

Nestes casos não cabem os casos em que o agente não incorre em qualquer erro relativo ao substrato material
de uma causa de justificação, mas supõe falsamente a existência de uma causa de justificação que a ordem
jurídica não reconhece ou erra sobre o âmbito ou os limites de uma causa de justificação efetivamente

141
existente. A convicção em que o agente atua nestes casos não constitui, como nos casos anteriores, um erro de
conhecimento ou erro intelectual, mas sim verdadeiramente um erro de valoração que deve ser tratado nos
quadros do problema de falta de consciência do ilícito.

A questão que suscita é a de saber se, em caso de errónea aceitação de um estado de coisas que, a existir,
excluiria a ilicitude do facto, o agente deve ser punido a título dolo ou apenas a título de negligência. A solução
encontra-se no art.16º/2: “o erro sobre um estado de coisas que, a existir, excluiria a ilicitude do facto.”,
excluindo o dolo. Apesar da questão ser resolvida pela lei a nível da consequência jurídica, a verdade é que a
sua origem reside em diversas controvérsias na doutrina.

O ponto de partida da discussão reside na controvérsia entre a teoria do dolo e a teoria da culpa, relacionada
com a questões relativas ao problema da falta de consciência do ilícito e, por isso, questões de culpa. Segundo a
teoria do dolo a consciência do ilícito é elemento do dolo, a par do conhecimento e vontade de realização do
tipo objetivo de ilícito, pelo que o erro sobre os pressupostos de uma causa de justificação não pode deixar de
ser considerado como erro que exclui o dolo e só pode ser punível a título de negligência. Já na teoria da culpa
há-que distinguir entre teoria da culpa estrita e teoria da culpa limitada. Na primeira, o dolo (e consequente
punição a esse título) perfaz-se com o conhecimento e vontade de realização do tipo objetivo do ilícito, na
medida que, o erro sobre os pressupostos de uma causa justificativa não pode excluir o dolo; o que pode
eventualmente assumir é significado para a culpa. Já na segunda teoria, o dolo não integra a consciência do
ilícito mas, em todo o caso, o erro sobre os pressupostos de uma causa justificativa ou conforma um verdadeiro
erro sobre os elementos do tipo objetivo do ilícito ou, em todo o caso, constituindo um erro diferente do puro
erro sobre a factualidade típica, deve ser-lhe equiparado quanto à consequência jurídica a exclusão do dolo.

A solução na linha das teorias da culpa limitada é a correta e é a que está verificada no art.16º/2. É correta,
uma vez que, a situação de quem erra sobre os pressupostos de um tipo justificador é, em definitivo,
materialmente idêntica à de quem erra sobre os elementos que pertencem a um tipo incriminador, na
perspetiva da responsabilidade dos agentes: nenhum deles tem a sua consciência ética corretamente orientada
para se pôr e resolver o problema da concreta ilicitude do facto. Nem um, nem outro têm o conhecimento
indispensável a uma correta avaliação da ilicitude. E já isso deve considerar-se suficiente para igualar uma e
outra situação a nível da consequência jurídica, conduzindo à exclusão da punição a título de dolo.

Todavia, a teoria da culpa estrita não deixa de ter razão num ponto: no facto de existir em todo o caso uma
diferença estrutural entre uma situação e outra situação. Aquele que erra sobre a factualidade típica (ou mesmo
sobre o decurso do acontecimento) atua sem dolo do tipo, enquanto que quem aceita erroneamente elementos
que, a existir, excluiriam a ilicitude, atua com dolo de tipo. Isto significa que, embora a consequência jurídica
num caso e no outro seja a mesma- exclusão da punição do agente a título de dolo- na hipótese de erro sobre
elementos do tipo a exclusão do dolo dá-se logo nível do ilícito-típico: o facto não é tipicamente doloso.
Diferentemente, nos casos de errónea aceitação dos pressupostos de uma causa justificativa o dolo do tipo
persiste. O que sucede é que o dolo, pelas razões apontadas acima, virá a ser negado em definitivo em sede de

142
culpa: o tipo incriminador é dolosamente realizado pelo agente, mas este atua sem culpa dolosa e, por isso, não
pode ser punido a título de dolo.

Se o agente poderia ter evitado o erro a partir de uma cuidadosa comprovação da situação justificada, então,
tal como sucede com o erro sobre os elementos constitutivos do tipo ilícito, fica fundada uma eventual
condenação pelo facto título de negligência se o respetivo ilícito previr a punibilidade a esse título- art.16º/3,
acontecendo o mesmo no caso em que o erro verse sobre os pressupostos do direito de necessidade. Há quem
aponte que nesta solução defendida existe uma “fraqueza”, uma vez que, quando o legislador elegeu os delitos
que devem ser punidos a título de negligência, não o terá feito em função de um eventual erro sobre os
pressupostos de uma causa justificativa, mas da espécie de facto e do seu desvalor; o que pode conduzir, em
caso de erro, à ideia de que a exclusão do dolo em caso de erro sobre os pressupostos de uma causa justificativa
opera a nível da culpa e não da ilicitude: esta circunstância justifica que, em casos destes, uma maior realização
do princípio da culpa conduza a que o tipo de censura do erro se volva em tipo de censura de facto.

V. Causas de justificação e imputação objetiva


Recentemente, uma doutrina começa a tentar a aplicação da doutrina da imputação objetiva às causas de
justificação nomeadamente, no que respeita a teoria do comportamento lícito alternativo.

Exemplos: nos casos em que a doutrina da legítima defesa permite apenas que se dê um tiro de aviso contra o
assaltante e o agente atirar para matar. Situações em que o médico repousa um dever de esclarecimento prévio
à intervenção e que ele não cumpre. Ou mesmo nos casos em que o agente tem o dever de obter uma autorização
oficial antes de pôr a sua fábrica a laborar e não a obtém.

Em todos os casos apresentados nos exemplos o resultado não deveria ser imputado à conduta se, numa
consideração ex post, viesse a comprovar-se que o tiro de aviso seria insuficiente e sempre seria necessário
atirar para matar, ou que, uma vez devidamente esclarecido, o paciente teria dado a sua concordância, ou
mesmo quando a autorização oficial tivesse sido pedida ela teria sido concedida.

Temos esta conceção por exata, radicando ela em nós. Resta a ideia fundamental de que todo o tipo é tipo ilício
e de que o tipo e ilicitude se comportam, na valoração final, como uma “unidade”, no sentido e na medida em
que todos os critérios e princípios tipicamente relevantes são critérios de ilicitude. Por isso, tem lugar
não só a negação da ilicitude típica sempre que, ex post, se tenha obtido a certeza de que em casos de
comportamento lícito alternativo a conduta seria justificada, como para os casos de alta e fundada probabilidade
de tal acontecer, deve intervir a negação da potenciação do risco.

VI. O efeito das causas de justificação


Uma ação relativamente à qual se verifique uma causa de justificação, em todas as duas exigências objetivas e
subjetivas constitui um facto lícito, contra o qual não é admissível legítima defesa (art.32º) nem qualquer outro
direito de intervenção, seja qual for a sua natureza, nomeadamente administrativa. Além deste efeito, importa
indicar que a ilicitude do facto do autor torna não punível o facto cúmplice e, dado o princípio do ilícito-típico,

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ao agente que atua ao abrigo de causas de justificação não pode ser aplicada uma medida de segurança
(art.91º/1, art.100º/1 e art.101º/1). Características que conferem relevo prático à distinção entre causas de
justificação e causas de exclusão de culpa pois, ao contrário do que sucede naquelas, pode reagir-se em legítima
defesa contra quem atua a coberto de uma causa de exclusão da culpa; cada comparticipante é punido segundo
a sua culpa, independentemente da punição ou do grau de culpa dos outros participantes (art.29º); e é possível
a aplicação de uma medida de segurança a um inimputável que atuou, por exemplo, numa situação de
inexigibilidade.

Por mais óbvia que possa parecer a dualidade que nas considerações vai pressuposta- o facto ilícito ou, se o não
é, é lícito- não tem ela deixado de ser questionada. Opiniões minoritárias defendem que em caso de intervenção
de uma causa justificativa, ou ao menos de certas delas, o facto, não sendo ilícito, também não é
verdadeiramente lícito; antes, situa-se no espaço livre de direito. Isto quer dizer que, nestes casos, o direito
não “aprova positivamente a ação, antes se mantém neutro perante ela, deixando a tarefa da valoração à
consciência ética do agente. Isto aconteceria, por exemplo, no caso do suicídio que não é proibido nem aprovado
pelo direito.

Contudo, a esta ideia não deve ser reconhecido qualquer relevo quando se trate do problema da justificação
jurídico-penal de uma conduta. Pode admitir-se que haja condutas estranhas à valoração jurídico-penal que se
exprime na dicotomia lícito/ilícito. No entanto, para efeitos do inteiro sistema do direito penal a ilicitude
jurídico-penal só pode ser afirmada ou negada, devendo neste último caso considerar-se completamente
indiferente, em termos de consequência jurídica, que o comportamento respetivo seja “aprovado” ou apenas
“suportado” pelo direito.

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