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DIREITO PENAL I

I. FUNÇÃO DO DIREITO PENAL


O direito penal serve para tentar que as pessoas respeitem uma determinada norma de comportamento,
de modo a garantir a tutela de bens jurídicos (art.40º CP).
Como tutela bens jurídicos? Há uma norma que proíbe um comportamento, quando essa norma
não é cumprida, aplica-se uma pena, uma sanção, sendo a sanção a máxima a privatização da liberdade.
Neste sentido, o direito penal, ao restringir a liberdade, ofende direitos, liberdades e garantias das
pessoas. Na medida em que a sua função restringe DLG, só pode ser utilizado para salvaguarda de outros
DLG, ou seja, há sempre um mal que justifica a restrição dos DLG daquele que o pratique. Há, portanto,
um respeito pelo princípio da proporcionalidade (art.18ºCRP) – aplica-se uma pena gravosa a uma
conduta igualmente gravosa.
Quais são os bens jurídicos que tutela? Art.18ºCRP – são bens jurídicos constitucionais ou de
referência constitucional (há uma analogia substancial de valores jurídicos constitucionais e penais).
Contudo, a função do direito penal é tutelar subsidiariamente bens jurídicos.
  Princípio da subsidiariedade – protege bens jurídicos, mas de forma subsidiária, ou seja,
quando foram feridos de tal forma gravosa, como ultima ratio a que se recorre no caso de todos os outros
ordenamentos jurídicos falharem na proteção desses bens jurídicos.

De salientar que nem todos os bens jurídicos em sentido geral, são bens jurídicos com dignidade
penal – percebemos os que a têm porque justamente encontram também, para além de encontrar
proteção noutros ordenamentos jurídicos, proteção no Direito Penal. Exemplo: o direito à vida que
encontra proteção também no Direito Civil, contudo esta não é suficiente, recorrendo-se ao direito penal;
já no caso do património, encontra a proteção necessária no ramo do direito civil.
Neste sentido, o direito penal além de subsidiário, é fragmentário – para o direito penal poder proibir
tem de ter uma razão forte para o fazer e para tal escolhe um conjunto de valores essenciais e não todos
os valores. Porquê? Porque desde que consigamos proteger o bem jurídico que foi posto em causa com
outro direito que aplique medidas menos gravosas, esse será aplicado, ficando assim o direito penal de
fora, daí a aplicação do princípio da necessidade da tutela do direito penal.

1. Finalidade e legitimação da pena


Porque é que se pune?
Pune-se porque se proibiu. Se não fosse proibido, não havia necessidade uma pena/punição. O direito
penal dita as regras mais clássicas da sociedade, deve responder àquilo que a sociedade respeita e fazer
com que se respeite determinados valores nela inseridos.

A pena tem alguma utilidade social? Esta questão das finalidades das penas engloba-se em 2 grandes
teorias: as teorias absolutas ou da retribuição e as teorias relativas ou da prevenção.
Temos aqui 2 formas opostas de olhar para esta questão: retribuição e prevenção.

 Teoria Absoluta ou da Retribuição: vigora uma ideia de justiça em que a pena tem de ser um mal
para compensar o mal do crime. A pena apenas serve como castigo – “fizeste mal, não podes sair
impune”. A sociedade não interessa tanto, o próprio delinquente, enquanto pessoa, também não
interessa, o que interessa é que o delinquente pague, mesmo que possa assumir efeitos reflexos
ou laterais socialmente relevantes (de intimidação da generalidade das pessoas, de neutralização
dos delinquentes, ressocialização…).

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 Teoria Relativa ou da Prevenção: as penas servem para prevenir as práticas de outros crimes.
Quem pode praticar outros crimes? Desde logo o próprio delinquente que comete o crime,
porque quem comete um pode cometer mais. Outra função preventiva também é o facto de
evitar que a generalidade das pessoas cometa o crime, mostrando que o sistema funciona e que
as pessoas são efetivamente penalizadas pela realização de x crime. O primeiro efeito preventivo,
sobre o próprio delinquente, chama-se prevenção especial. A prevenção na generalidade das
pessoas é a prevenção geral. Ressalva-se, nesta teoria, a pessoa em si - perspetiva de segurança
da sociedade.

 Há autores que defendem que a finalidade da pena é uma mistura de ambas as teorias, deve
servir para compensar o crime, mas também prevenir a prática de outros. A partir desta ideia
“mista” surgiram outras teorias – teorias ecléticas.

A questão das finalidades da pena é uma questão “nunca” resolvida. Ao longo dos tempos justifica-se que
as teorias tenham variado, adequando-se à época em que nos encontrávamos, tudo depende da forma
como a sociedade olha para o crime, da forma como a sociedade olha para o criminoso. Há aqui dois polos
que sobressaem de uma maneira especial:

1. A pessoa – o delinquente.
2. A sociedade.
É a partir da compreensão destes dois polos que podemos adotar uma teoria mais absoluta ou relativa,
depende do valor que se dá ao Homem, à pessoa, ao ser humano, que também o delinquente é . É
fundamental olhar-se o criminoso/ delinquente como um ser humano, como uma pessoa que é e, por
isso, tem de ser olhado também em função da sua dignidade humana, tendo também a culpa .
Por outro lado, tem de se atender ao valor que cada sociedade dá à segurança e é a partir da
definição/conceção de segurança de cada sociedade que vamos obter aquilo que a sociedade está
disposta a abdicar em termos de direitos fundamentais em prol da segurança da generalidade das
pessoas.
A sociedade atual é uma sociedade de conta e risco, de muita insegurança e sendo assim, quanto às
finalidades da pena vai fazer sobressair as teorias das penas relativas ou preventivas, deixando o homem
delinquente em segundo plano, querendo pôr em 1º lugar a segurança geral. Por outro lado, há teorias
que defendem que o fundamental é punir o delinquente, deixando a segurança para segundo plano, o
que interessa é que quem fez o mal, espie esse mal - teorias absolutas ou da retribuição.

2. Culpa
Atualmente o direito penal não pune ninguém sem culpa – para haver crime, é necessário que haja culpa.
A culpa jurídica é uma das principais categorias fundamentais do Direito Penal – esta é uma culpa
construída, normatizada para efeitos jurídico-penais. Esta não é a culpa das religiões, não é a ligada ao
pecado, mas sim uma culpa jurídico-penal constitutiva da laicização, secularização do direito penal, é tirar
o direito penal de um ambiente a que ele esteve durante muito tempo ligado, o ambiente religioso ou
metafísico. Foi na base desta culpa religiosa, metafísica que tinha de ser espiada que se aplicava a pena,
que era exatamente uma forma de expiação da pena – quanto mais severa, mais a pessoa podia
excrementar a culpa e salvar a sociedade.

 Seculo XVIII  Século das luzes. Neste século, surge uma ideia de racionalidade, de racionalização
da punição com o italiano Beccaria: vem-se chamar a atenção para um direito penal que era
assente nesta ideia de expiar o pecado e que não tinha respeito ao ser humano (exemplo: se
alguém roubasse, a mão era-lhe cortada para que não roubasse outra vez). Aqui houve a
racionalização da penalização, mas manteve-se a ideia de retribuição de crime.

Atualmente, o pensamento evoluiu, já não se põe em causa masmorras e desmembramentos, mas apoia-
se, cada vez mais, a aplicação de penas perpétuas, penas mais severas. Crimes executados com culpa têm
de desencadear uma pena – a culpa exige a pena. Assim sendo, não há pena sem culpa, mas a culpa

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exige a pena – é esta a formulação das teorias retributivas. A ideia da culpa que é induzida é a ideia de
salvaguarda da dignidade humana.

 Teorias Preventivas (crítica à teoria retributiva): as teorias preventivas não são uma convenção
contemporânea, tendo surgido por volta dos sécs. XVIII e XIX. Surgiram quando a sociedade
percebeu que o crime não diminuiu nem acabou através da aplicação de penas retributivas. As
teorias preventivas surgem como uma reação à falta de eficácia das retributivas. A pena, em vez
de estar virada para o delinquente, para o crime cometido no passado, tem que estar virada para
os crimes que podem ser cometidos, ou seja, para o futuro. Olhando para o futuro, trata-se do
facto da pena ter que ser tão grave que a generalidade da população tenha medo de cometer
crimes. A pena tem de ter uma função intimidatória – a prevenção geral de intimidação: há uma
coação psicológica que a pena exerce sobre a generalidade da população.

Quando se formou esta teoria, teve que se pensar onde ficaria a dignidade, bem como a culpa, do
delinquente. Apesar de não poder ser totalmente esquecida, o que interessa é a severidade da pena para
intimidar a generalidade das pessoas, independentemente da culpa do delinquente. “O direito penal do
terror” – porque esquece a dignidade humana.

 Prevenção Especial: incide sobre o delinquente. Esta pode levar a defender a prisão perpétua.
• Prevenção Geral de Intimidação ou de Neutralização ou Prevenção Especial Negativa:
procura-se tornar o delinquente numa pessoa melhor, no sentido de este não voltar a
cometer crimes. Estamos a falar numa prevenção especial de socialização – a reinserção
pessoal do delinquente. Esta prevenção também tem atravessado umas crises, nas
últimas décadas. A ideia de socialização está muito em crise, uma vez que a pena de
excelência é a pena de prisão e esta pena tem de ser executada mediante a pena de
prisão, abrindo-se vários problemas, pois duvida-se que a prisão possa ser uma pena
ligada à reinserção social. A finalidade da reinserção social é no sentido de permitir a
integração do delinquente. Temos uma ideia de socialização que se traduz unicamente
na ideia de prevenção da reincidência, com o respeito pela liberdade e pela dignidade
que é objeto dessa perspetiva de socialização – não admite o comportamento coativo,
comportamento médio imposto.

 Prevenção Geral de Integração/Prevenção Geral Positiva: dirige-se apenas à satisfação da


necessidade de integrar na comunidade relativamente a todos os cidadãos os valores essenciais
à vida em comunidade, que são aqueles que são protegidos através da incriminação. Por exemplo:
o crime de homicídio protege um valor: a vida em sociedade. O crime de ofensas corporais
defende o valor da integridade física. A incriminação protege estes valores essenciais e a pena
serve para integrar todos enquanto comunidade no respeito por estes mesmos valores. A
satisfação tem um limite na culpa dos delinquentes. Esta é uma prevenção que chamamos de
integração porque tem como objetivo dirigir a pena. Cada pena tem como objetivo proteger um
bem jurídico essencial à vida em comunidade, daí ser um bem jurídico-penal. Aliás, esta categoria
dogmática ajuda a racionalizar o direito penal. A função é proteger os valores essenciais à vida
em comunidade, os bens jurídico-penais. A pena serve para salvaguardar estes valores (vida,
liberdade de expressão, liberdade sexual, direito à propriedade…). A pena serve para integrar
todos no respeito destes valores essenciais. A pena é concebida como uma forma de intimidação
das outras pessoas através de sofrimentos que com ela se inflige ao delinquente, cujo receito irá
intimidar a generalidade da população.

3. O que o CP diz acerca da função do Direito Penal?


Artigo 40º do CP: consagra uma teoria sobre a função do direito penal que vai ao encontro de uma teoria
preventiva geral e especial, que não é qualquer uma delas intimidatória. Adequa-se à medida da culpa. O
Código Penal expressa este posicionamento do Direito Penal (a medida da culpa). Dir-se-á que vai
depender da vontade do legislador, mas não. Há um problema de legitimação – o que é que legitima que

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o Código português diga uma coisa, o alemão outra? Os Códigos Penais dependem de um certo grupo
cultural, há uma ligação entre a criminalização e pena com a legitimação, que podem encontrar-se em
perspetivas filosóficas, MAS a legitimação constitucional, ou seja, o modelo consagrado a nível
constitucional, consagra este modelo. O art 18º/2 CRP ajuda a elucidar vários problemas de direito penal
– “a lei só pode restringir direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na
Constituição, devendo as limitações limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos e liberdades
constitucionalmente previstos” – princípio da necessidade da pena. Como é que estes e outros valores
são protegidos? Através da incriminação. A própria incriminação é uma limitação de direitos fundamentais
de uma pessoa para proteger outros direitos fundamentais da generalidade das pessoas enquanto
sociedade. O direito penal é uma amarga necessidade das sociedades.

II. O COMPORTAMENTO CRIMINAL E A SUA DEFINIÇÃO: O CONCEITO MATERIAL DE CRIME


1. O que é o crime?
Para respondermos a esta questão teremos de atender aos fundamentos legitimadores do direito penal.
Crime é, segundo uma perspetiva positivista-legalista, aquilo que está escrito na lei penal. No entanto,
há cada vez mais tipologias de crimes que se podem encontrar em legislação extravagante. Se esta
perspetiva durante muito tempo foi suficiente, veio a perceber-se a necessidade de encontrar um
conceito fora do legal, capaz de funcionar como padrão crítico da legislação penal atual e que vigorará
futuramente. Assim, pergunta-se como se pode concretizar um bem jurídico, tendo uma referência, capaz
de ser um padrão crítico na legislação penal presente e futura.
Já no séc. XVIII se tentava encontrar o conceito material de crime, fora do direito legislado. O direito penal
é uma área que se identifica com uma ciência criminal global, que tem um domínio muito importante,
muito ligado à dogmática. Sempre que o legislador classifica algum ato enquanto um crime, ele está a
fazê-lo com base numa convicção política.
O caminho a fazer foi marcado pela evolução na compreensão do que é o crime, não só ao nível da
dogmática jurídico-penal (racionalização do direito penal), mas também ao nível do domínio da
criminologia – é necessário entender a experiência do crime, o que a sociedade questiona e entende como
crime. Estamos perante uma ciência global criminal onde releva também a política criminal. Trata-se de
saber que soluções, ao nível do direito penal, deve o Estado utilizar para lutar contra o crime.

2. Teorias:
• Teoria do puro legalismo – O direito penal, a dogmática penal, deve ser absolutamente
estranha à influência de outras áreas e deve-se criar apenas como uma dogmática pura e
dura sem atender às exigências da realidade social? Deve ser uma pura abstração
racional, sem sofrer influências? Se sim, afirmamos um puro positivismo/legalismo em
que o direito deve ser puro e por isso é barreira intransponível do direito criminal.
Estamos a admitir que o direito penal é apenas o que está escrito na legislação, não
podendo extravasar para a realidade social. No entanto, esta posição não resistiu muito
tempo: surgem outras tentativas, que procuram fugir à ideia anterior.

• Teorias sociológicas positivistas: é tudo o que está na lei, mas de modo a procurar um
crime natural – teoria do delito natural: determinado crime existe na sociedade,
independentemente das circunstâncias e exigências de uma dada época ou conceção
particular, para proteção de valores/sentimentos fundamentais (ex.: direito de
propriedade e direitos pessoais). Estas teorias continuam presentes na nossa definição
do que é o crime, é com base nisto que ainda hoje se distingue aquilo que muitos autores
chamam de crimes em si mesmo (delito en se) de crimes que são compreendidos como
meras proibições (delito mera proibita). Existia esta dualidade de crimes: os que
corresponderiam aos crimes naturais, crimes contra a vida, de acordo com a definição de
Garófalo, seriam os crimes delitos en se. Os restantes como, por exemplo, um crime

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contra o ambiente, seriam designados como delitos mera proibita. Estávamos perante
um puro decisionismo legislativo.

• Teoria da ofensividade: quando se apela a esses valores fundamentais da sociedade, no


fundo estamos a recorrer a algo que vai dizer o que é o crime: antes de o legislador
criminal criminalizar uma conduta – conceito que nasce da ofensividade ou dano causado
na sociedade – encontramos a tentativa de densificar o que pode ser o crime. Chega-se
a um ponto em que passa a ser uma obrigação o legislador criminalizar aquelas condutas
que lesam aqueles interesses fundamentais da sociedade. Chegamos assim à teoria da
ofensividade, de filiação italiana, teoria que faz apelo ao princípio do harm principle, tudo
numa tentativa de encontrar o conceito material de crime. Este conceito de realidade
social, ao servir de legitimação/fundamentação para o que deve ser crime, é capaz de ser
um conceito demasiado vago e impreciso, sendo insuficiente para legitimar e limitar o
direito penal – nem tudo o que é dano social, é crime, daí que não possamos utilizar um
critério de dano social para qualificar um certo ato como crime. Por exemplo: não
poderíamos criminalizar o facto de alguém ser mal-educado com outra pessoa, assim
tudo seria crime. No caso do crime de injúria (punível até 3 meses de prisão), o legislador
só incriminou este comportamento quando no art. 181º CP delimita as situações e
circunstâncias em que isso é crime. Do ponto de vista da Dra. Anabela Rodrigues dos
Santos, daqui a uns anos vai-se verificar um movimento de descriminalização.

• Outra via de compreensão tem a ver com aquilo que atinge um mínimo de valores ético-
sociais. A CRP consagra direitos fundamentais clássicos, como o direito a vida, o direito à
propriedade, mas há também direitos sociais que implicam uma ação por parte do estado,
merecendo estes direitos sociais também proteção por parte do estado. Deste modo, o
legislador, além de respeitar e proteger os direitos fundamentais, deve proteger também
os direitos sociais consagrados na CRP. O autor Bell remete para aquilo que é indiscutível
em qualquer sociedade, aquilo que qualquer sociedade quer defender, o mínimo de
valores ético sociais. Esta teoria defendia o conteúdo que toda a sociedade queria
defender, um conteúdo indiscutível na sociedade e aqui pergunta-se: nas nossas
sociedades atuais, estados de direito democráticos, haverá temas assim indiscutíveis?
Claro que não. Vivemos numa sociedade aberta e pluralista, as sociedades democráticas
são sociedades pluralistas, não são sociedades de consenso, são sociedades de conflito.
Acaba por voltar a ser um conceito indeterminado visto referir-se a um conteúdo que a
sociedade não discute.

• Teoria teológica funcional e racional: só através da ordenação axiológica é que os bens


sociais se transformam em bens jurídicos penais. Esta resposta que se tenta encontrar
para a questão “o que é o crime” vai ao encontro da visão de Figueiredo Dias, que
defende uma teoria e um princípio do direito penal do bem jurídico. Descodificando esta
teoria teleológico-funcional, temos que o conceito material de crime é imposto pelas
exigências axiológicas da sociedade contemporânea. O direito penal já não é visto como
a barreira intransponível da criminologia, da ciência criminal, mas é agora determinado
no seu conteúdo, através da sua função, daquilo que se pede ao direito penal para
cumprir. O que é pedido ao direito penal não é a realização de valores transcendentes, é
sim a defesa da sociedade, a paz, a segurança. É isto que desde sempre o direito penal
procura, a defesa do ordenamento jurídico geral - arts 40º e 41º CP. Posto isto, o crime
é o que é funcional à realização das finalidades do direito penal – função preventiva.

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o art. 18º/2 CRP – princípio constitucional político criminal da proteção do bem
jurídico que orienta a definição do que é crime, através do critério da
proporcionalidade (sempre com racionalização dos artigos).
Esta legitimação constitucional do direito penal está só na constituição dos
direitos fundamentais? Onde é que estão os limites? Também se encontram na
constituição? Sim, encontramos os limites no art 18º/2 CRP. Este funcionalismo
serve de proteção jurídica dos valores intransponíveis. A racionalidade desta
teoria vem do facto de saber qual é o valor suscetível de ser protegido pelo direito
penal.

É uma racionalidade que se vai encontrar através do critério referido no art.18º CRP, da
proporcionalidade da limitação dos direitos fundamentais - critério da necessidade, princípio político
criminal da necessidade (=proporcionalidade em sentido amplo/ carência de pena/ de punição). É aqui
que se apura a racionalidade da incriminação. Contudo, não basta que um bem tenha dignidade
constitucional e criminal para que se encontre o crime legitimo, é necessária haver carência de pena –
juízo sobre a não suficiência e não adequação de todos os outros meios não penais para salvaguardar tal
bem (princípio da subsidiariedade). Nestes casos, é justificado que entre o direito penal como ultima
ratio. Estamos perante uma matriz liberal no sentido de que não se pede ao direito penal que proteja a
moral ou sentimentos, pede-se que, em último recurso, intervenha para proteger valores “terrestres”,
independentemente de qualquer ideologia. A noção de bem jurídico que se encontra no manual é a
defendida por Figueiredo Dias – bem jurídico coletivo de que todos podemos usufruir sem que ninguém
possa ser excluído dessa fruição. Relativamente a estes bens coletivos tem de se fazer um juízo de carência
de necessidade penal – critério da necessidade penal.

Desta perspetiva teleológico-funcional, temos de enunciar uma regra fundamental: a culpa não
legitima o direito penal. A culpa é pressuposto e limite da punição, mas não a legitima. É verdade que não
há pena sem culpa, mas já pode haver culpa sem pena. A relação entre culpa e pena é uma relação
unívoca. De acordo com o direito penal, a culpa é pressuposto e limite da pena. Qual é o interesse da
construção da legitimação penal para efeitos práticos? Forma um modelo de determinação da medida da
pena, em sentido amplo, escolha da pena e determinação da medida da pena em sentido estrito. Esta
perspetiva é defendida pela Dra. Anabela Rodrigues. A determinação da medida da pena de prisão que
um condenado tem de cumprir deve ser feita de acordo com um limite máximo que nunca pode
ultrapassar a medida fornecida pela culpa. O que legitima o direito penal não é a culpa, é a necessidade
de prevenção, de proteção. Em função das circunstâncias temos de determinar, em concreto, a medida
da pena que satisfaz as necessidades de prevenção geral. Essa pena satisfaz a necessidade de defesa do
ordenamento jurídico penal.
O que vai ajudar o juiz a determinar a pena? A prevenção, em função da socialização.
Valerá também a medida da culpa da pena para as pessoas coletivas? Para a Dr. Anabela Rodrigues essa
medida não está ainda cabalmente feita, contudo, para esta compreensão do direito penal assim
legitimada, na realização da função, é importante para as consequências da pena e para a aplicação da
pena em concreto. Este reflexo da pena está legalmente visado no art.71ºCP.

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III. DIREITO PENAL E DIREITO DE MERA ORDENAÇÃO SOCIAL (DMOS)

Infração Sanções Competência Competência


legislativa processual
Penas e medidas Assembleia da Ministério
Direito Penal Crime de segurança República Público
(privação de (art. 165º/1/e CRP) (tribunais)
liberdade)
DMOS Regime geral – AR
(ou direito das Contraordenação Coima Tipificação – AR Administração
contraordenações (exclusivamente Contraordenações –
ou direito pecuniária) Governo
contraordenacional)

O Direito Penal é um ramo do ordenamento jurídico que trata a proibição de certos


comportamentos que se previnem com sanções, portanto, é um direito que se guia pelo processo
sancionatório, sendo o direito sancionatório por excelência. Trata-se de honrar a ordem – “quem fizer isto
é punido”. Neste sentido, está em causa a imposição de certos comportamentos sob a ameaça de punição.
No direito público sancionatório (que integra, desde logo, o Direito Penal), o que está em causa é o
relacionamento dos cidadãos uns com os outros ou entre estes e os Estados. Esta também é uma
característica próprio do Direito de Mera Ordenação Social, o qual é um direito em que o Estado pune
alguém externo ao Estado por algum comportamento na sua vida privada. Há ainda um outro direito –
direito disciplinar – em que as pessoas abrangidas não são externas ao Estado, ou seja, temos o poder
sancionatório dentro da máquina do Estado.

1. Direito de Mera Ordenação Social


O Direito de Mera Ordenação Social também tem outras designações – direito das contraordenações ou
direito contraordenacional.
Este é um direito recente, surgido em Portugal em 1969, sendo que está praticamente em todos os
domínios da vida e é transversal a toda a ordem jurídica, visando preservar aquela subsariedade do direito
penal, sendo um meio privilegiado para preservar a ultima ratio do direito penal.
Há uma estreita ligação com o direito penal – o dmos surge a partir do direito penal, tendo várias coisas
em comum, desde logo a natureza sancionatória – dirige-se a comportamentos proibidos ou impostos e
punindo com sanções.

Diferenças:
Em qualquer direito sancionatório há 2 polos essenciais: a infração e a sanção, ou seja, o comportamento
que é previsto como ilícito e a consequência jurídica para esse comportamento, respetivamente.
1. Infração – no direito penal a infração designa-se de crime, enquanto que no DMOS, designa-se
contraordenação. Porquê? Para se diferenciar do direito penal.

2. Sanção – o legislador, por razões de ordem jurídica, adotou um critério formal de distinção –
artigo 1 do Regime Geral de Contraordenações: para sabermos se estamos perante um crime ou
uma contraordenação, olhamos para a sanção – se a consequência for uma coima, estamos
perante uma contraordenação; se for uma pena de prisão, trata-se de um crime. É em função da
sanção que sabemos se um comportamento tem natureza criminal ou contraordenacional.
• No direito penal, as sanções são as penas criminais e as medidas de segurança, que
ameaçam a privação de liberdade que lhes é inerente. Mesmo os comportamentos que
são puníveis com multa (criminal), há uma ameaça de privação de liberdade – quem não
a pagar pode ir preso (art.49ºCP).

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• No DMOS a sanção principal é a coima. A coima distingue-se das penas criminais em
função da questão da liberdade das pessoas – enquanto as penas criminais levam
SEMPRE a uma ameaça de privação de liberdade, a coima nunca leva a essa privação, daí
que se diz que seja exclusivamente pecuniária, porque dela nunca pode resultar a
privação de liberdade: se o Estado não conseguir cobrar a coima, não pode ir mais além,
ou seja, não pode tomar a medida de prisão. Ao contrário da multa, em que se pode ir
preso por incumprimento do pagamento, a coima não pode determinar o condenamento
à prisão pois não é substituível por outras medidas, uma vez que é exclusivamente
pecuniária (art.27º/2CRP).

3. Competência legislativa – aquilo que caracteriza o DMOS é uma larga autonomia jurídica face
ao direito penal, há vários aspetos da sua vida própria que o refletem. Um dos aspetos mais
importantes dessa diferenciação é haver uma própria competência para regular matéria. Em
matéria penal há uma reserva absoluta da Assembleia da República – só a AR é que pode legislar,
definir o regime do direito penal e tipificar crimes. Já no DMOS, só reserva à AR a competência
para legislar quanto à definição do regime geral, no que diz respeito à criação de novas
infrações, desde que fiquem no âmbito do regime geral da AR, é matéria concorrente, logo o
Governo é competente. Desde modo, além da AR, também o Governo tem competência própria
para criar contraordenações.

4. Competência processual – outro aspeto prende-se com a competência processual. No direito


penal, temos uma determinada lei que proíbe um comportamento, se for violada, abre-se um
processo, sendo o governo competente para abrir esse processo e só os tribunais é que têm
competência para responsabilizar alguém a cumprir pena – princípio de reserva do juiz. Portanto,
os tribunais só julgam questões penais que são, em regra, trazidas pelo Ministério Público, de
modo a que haja uma separação entre quem acusa e quem julga, para evitar que haja uma
contaminação. No DMOS, quem tem competência para promover o processo contraordenacional
é uma entidade administrativa, para libertar o direito penal e os tribunais. O facto de pertencer
à administração repercute-se de forma substancial na pessoa que é alvo do processo – quem é
alvo de um processo penal tem muitas mais garantias do que quem é alvo de um processo
contraordenacional, uma vez que os tribunais são entidades autónomas, enquanto que a
administração faz tudo – acusa, investiga e decide.

Em penal, o processo tem um conjunto de exigências próprias que o processo contraordenacional


não tem. O que justifica que os crimes e as contraordenações sejam tratados juridicamente de forma
distinta? O tratamento pode ser diferente porque falamos de coisas diferentes. Diferentes em quê?
Questões substantivas ou processuais.
O direito das contraordenações surgiu no final da década de 40 do século XX para combater um
problema com que os alemães se debatiam – problema dos escombros da 2ª guerra mundial. No pós-
guerra, os alemães sentiram a necessidade de disciplinar o direito penal e abolir um certo número de
infrações penais, de caráter bagatelar (bagatelas – coisas de pequena importância, por exemplo, matar
um pardal em tempo noturno). Este tipo de penas era insustentável, violadoras do princípio da
proporcionalidade, era impossível no sistema judicial os tribunais lidarem com tantos casos. Daí que
houvesse a necessidade de modelar o direito penal e criar um novo ramo sancionatório que permitisse
purificar o direito penal, ficando este apenas com os casos importantes. Para justificar a criação deste
ramo do direito, para estabelecer esta separação clara de funções entre os tribunais e a administração
surgiu o chamado pensamento qualitativo em matéria de contraordenações – teses qualitativas e teses
quantitativas.

 Tese qualitativa – há uma diferença substancial do direito penal e do direito contraordenacional.


Schmidt veio defender que são qualitativamente distintos e é essa diferença material que permite
um tratamento distinto. Porquê? No direito penal está em causa bens jurídicos e interesses vitais
da comunidade. No direito das contraordenações visa-se intervir nos momentos de interação

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entre o particular e a administração, é pura matéria da administrativa, visa apenas proteger
interesses administrativos, é um acordo social. Porque estamos a falar de interesses distintos, há
uma diferente conceção do cidadão em cada ramo do direito: no DMOS, o individuo é visto como
um agente que auxilia o Estado, portanto, é punido porque foi indolente e não cumpriu o seu
dever e não porque foi uma pessoa má; enquanto o direito penal censura o que a pessoa é, pela
gravidade do ato que teve e que a define como pessoa, logo é uma culpa ética. No DMOS, a coima
não serve para sancionar a pessoa, mas sim o seu comportamento, ou seja, serve para chamar a
pessoa não à razão, mas sim ao seu dever.

E foi neste quadro que o direito contraordenacional foi criado e caracterizado como um direito de
violação de deveres, de desobediência. Este pensamento inicial foi rapidamente ultrapassado na
Alemanha com a expansão do direito das contraordenações – rapidamente a doutrina alemã veio dizer
que a conceção de Schmidt é uma conceção errada, uma vez que olhava apenas à atitude do cidadão e
não visava a proteção dos bens jurídicos – o DMOS também protege bens jurídicos (p.e., conduzir
embriagado), além de que não se deve tratar o sujeito apenas como um lacaio do Estado.

Assim, surgiu o chamado pensamento quantitativo, que defendia que materialmente não há diferenças
entre o ilícito criminal e o ilícito contraordenacional.

 Teoria quantitativa – o ilícito penal refere-se a atos mais graves e o ilícito do DMOS a menos
graves. Não se trata de uma diferença material, mas sim de uma diferença de densificação do
crime.

Com o 25 de abril, surgiu a necessidade de rever o direito penal que teria de ser adequado à nova
CRP que tínhamos e é após 1976 que se dá uma renovação do direito penal português, com o objetivo de
tornar o direito penal um direito penal ético, que se dirige às violações mais graves de bens jurídicos
relevantes. É o pensamento do Dr. Figueiredo Dias que é o espelho dogmático fundamental do direto das
contraordenações até hoje: ele veio defender a diferença material entre o direito penal e o direito das
contraordenações.
O Dr. Figueiredo Dias diz que a diferença entre os dois ramos é substancial/material. Mas como
é que se distinguem? Distinguem-se na medida em que:

 no direito penal lidamos com condutas que em si mesmas são eticamente relevantes – o
critério de distinção é o chamado critério ético-social das condutas que são abrangidas por
um e por outro. No direito penal, estão em causa condutas que em si mesmas são avaliadas
como desvaliosas do ponto de vista ético e social. No direito penal lidamos com condutas
que são em si mesmas portadoras de um desvalor e, por isso mesmo, a censura ética que a
comunidade lhe dirige está como que “entranhada”.

 no DMOS lidamos com condutas acéticas (por exemplo: é errado passar um sinal vermelho
na estrada) – estas condutas só são erradas ou certas porque o legislador dita o que elas são,
ou seja, no direito das contraordenações a ilicitude é criada pela proibição penal: é quando
o legislador intervém que aquele comportamento passa a ser visto como algo desvalioso e
esta diferença, segundo o Dr. Figueiredo Dias, faz toda a diferença. A ilicitude
contraordenacional não tem uma ligação tão forte ao bem jurídico como acontece no direito
penal.

 assim, no direito penal estamos perante condutas eticamente relevantes em si mesmas e no


direito contraordenacional não e isto faz com que haja consequências, por exemplo, ao nível
da culpa. A censura penal é uma censura ética que atinge a personalidade do agente, é o
facto que mostra o que a pessoa é enquanto pessoa, com a sua personalidade interna.
Assim, a sanção penal tem uma finalidade diferente da coima: acoima tem uma finalidade
inibitória, enquanto que a pena tem uma finalidade de prevenção geral.

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 Contudo, existe uma doutrina minoritária (na qual se insere o Dr. Nuno Brandão) que considera
que esta conceção do direito contraordenacional está ultrapassada e que o direito das
contraordenações é uma realidade cada vez mais evidente, que trata de questões muito
relevantes, em todos os domínios, como o económico, tendo havido uma alteração de paradigma
com a liberalização e privatização dos setores económicos. Assim, já não se pode considerar o
direito contraordenacional como um direito bagatel. Assim sendo, foi proposto um modelo misto
que defende que há condutas que, de facto, são contraordenação e que, efetivamente, não
podiam ser crimes porque não têm relevo para tal, pois não têm dignidade penal (por exemplo,
estacionar mal o carro nunca poderia ser um crime). Mas há um outro espetro de condutas em
que, aplicandose os princípios constitucionais que orientam a tipificação de crimes e de
contraordenações (princípio da dignidade penal, princípio da necessidade de pena), temos
muitos casos em que um certo comportamento é qualificado como contraordenação e poderia
ser crime e, assim, a diferença já não é material, mas sim quantitativa. Aquilo que justifica um
comportamento diferenciado e em que se consegue evidenciar uma diferença entre regimes
entre os dois ramos é no plano das sanções – é a ameaça da prisão, que não existe nas
contraordenações, que confere uma diferença material entre os dois ramos e é em função desta
diferença material que se pode sustentar a diferença de regimes constitucionais e legais.

IV. A LEI PENAL E A SUA APLICAÇÃO: O PRINCÍPIO DA LEGALIDADE CRIMINAL

1. Função, sentido e fundamentos


Em que termos é que uma determinada conduta pode ser qualificada enquanto crime? Nesta matéria rege
o princípio da legalidade criminal – “nullum crimen, nulla poena sine lege”, ou seja, “não há crime, nem
há pena sem lei”. Assim, um comportamento só pode ser qualificado como crime e o agente só pode ser
sancionado com uma pena/ medida de segurança criminal com base na lei – art. 29º/1 e 9 CRP e art. 1º e
2º CP.
Por mais arrepiante que seja um ato, sem lei não pode ser julgado. Este é um princípio que visa
proteger o cidadão face ao Estado. Está consagrado no capítulo da CRP relativo aos diretos, liberdades e
garantias e visa proteger o cidadão perante o poder punitivo e perante a tentação sempre presente nos
órgãos do Estado de extremar e levar o mais longe possível a punição. Aquilo que se procura assegurar é
que o exercício do poder punitivo do Estado seja equilibrado, previsível, para respeitar a segurança
jurídica dos cidadãos.
Antes deste princípio, que depois foi erigido a princípio fundamental, as pessoas eram castigadas
com base no costume, sem que houvesse normas escritas específicas, havendo uma grande arbitrariedade
no exercício do poder punitivo. Com o advento do iluminismo e com a necessidade de garantir a segurança
das pessoas, o princípio da legalidade criminal foi instituído nos mais variados domínios e foi levado aos
mais diversos Tratados e Convenções sobre os Direitos Humanos. O princípio da legalidade criminal é visto
como uma conquista civilizacional para disciplinar o exercício do poder punitivo do Estado e para servir
como arma do cidadão.
Enquanto que há princípios que estão sujeitos a transações, a exercícios de concordância prática,
este não, trata-se de um princípio de garantia absoluta. Neste caso, independentemente da gravidade do
facto, da má índole do indivíduo, por mais necessário que seja punir o crime, só é possível punir se o crime
estiver previsto na lei. O princípio da legalidade criminal é a “Magna Charta” do criminoso: ele sabe onde
pode pôr o pé e onde não pode.
Sendo esta a razão de ser do princípio da legalidade (proteção do indivíduo face ao Estado),
compreende-se que ao seu âmbito de aplicação se circunscreva àquelas normas penais que sejam
prejudiciais ao indivíduo. Quando uma lei penal seja favorável ao indivíduo, então o princípio da legalidade
não é chamado e, por isso, diz-se que o princípio da legalidade só vale quando esteja em causa a
fundamentação ou a agravação da responsabilidade criminal, ou seja, quando esteja em causa a previsão
de um certo comportamento como crime ou a agravação da punição de um crime já existente – este é o
âmbito de aplicação normativa do princípio da legalidade.

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Se, pelo contrário, estiver em causa a exclusão ou a atenuação da responsabilidade criminal, então não
há razão para invocar o princípio da legalidade criminal – há aplicação retroativa da lei penal mais
favorável.

 Fundamentos – qual a sua razão de ser?


Este princípio radica na ideia do Estado de direito e da exigência de segurança jurídica, mas há
fundamentos ditos externos que são de natureza que transcende o direito penal (organização política e
do Estado) e fundamentos internos próprios do Direito Penal.
1. Fundamentos externos: entre os fundamentos externos contam-se:
a. Princípio liberal – de acordo com o qual restrições de direitos fundamentais das pessoas têm
de basear-se na lei – quando o legislador tipifica um crime, daí resulta mediata ou
imediatamente uma restrição de direitos fundamentais (art. 27º/1 CRP).
b. Princípio democrático e princípio da separação dos poderes – só o povo, através dos seus
representantes reunidos no parlamento, tem legitimidade democrática para decidir o que
deve ser punido com uma pena e restringir os direitos fundamentais da pessoas num
contexto criminal (se, por exemplo, fosse admitido que alguém fosse punido criminalmente
sem base na lei, no fundo, quem estaria a criar o crime não seriam os representantes do povo,
mas sim os juízes, o que levava a uma violação do princípio da separação de poderes).

2. Fundamentos internos: no plano interno, ligado ao próprio direito penal, o princípio da


legalidade criminal baseia-se ainda no princípio da culpa (que também pressupõe o princípio da
legalidade) e na própria finalidade das sanções criminais (que também pressupõe o princípio da
legalidade).
a. Princípio da culpa – de acordo com o princípio da culpa, só pode ser punido com uma pena
aquele que for censurável por um ato que ele próprio tenha feito e que represente uma obra
sua (feito com vontade, responsabilidade objetiva), algo seu – por exemplo, violaria o
princípio da culpa punir-me a mim por algo que outra pessoa fez. No entanto, só se pode
sancionar alguém por fazer alguma coisa se essa conduta já tiver sido qualificada como um
crime e, por isso, o princípio da culpa pressupõe o princípio da legalidade e a própria
finalidade das sanções criminais (seja prevenção geral ou adesão aos valores fundamentais
das normas penais e prevenção da reincidência) só fazem sentido se houver uma lei prévia
que as estabeleça. Assim, o legislador deve, na feitura das normas penais, obediência a este
princípio.

 A determinabilidade do tipo legal (?)


Este princípio dirige-se aos 2 pólos fundamentais do direito penal: a infração e a sanção. Tanto um, como
outro, têm de estar previstos na lei – art 29º/1 CRP. De acordo com o princípio da legalidade, a lei penal
deve ser uma lei escrita, certa, estrita e prévia – estes são os 4 subprincípios do princípio da legalidade
criminal.

I. Subprincípio da lei escrita: de acordo com o princípio da lei escrita, só pode qualificar-se como
norma penal aquela que resulte de uma lei formal e, nessa medida, proíbe-se o costume como
fonte incriminatória do direito penal, embora possa discutir-se se não poderá ser tido em conta
para afastar a responsabilidade penal – exemplo: praxes académicas- algumas delas ofendem os
direitos fundamentais das pessoas.
O art. 165º/c) CRP estabelece que toda a matéria penal em sentido amplo é de competência
reservada relativa da Assembleia da República e, por isso, a generalidade das normas penais são
aprovadas por lei da AR. O Governo também tem competência para legislar no caso de lhe ser
dada autorização pela AR, mas é cada vez mais raro os DL de autorização em matéria penal –
antigamente isto acontecia, mas suscitavam-se muitas questões de inconstitucionalidade
orgânica, o que levou a que se deixasse de fazer isso.

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II. Subprincípio da lei certa: o segundo corolário do princípio da legalidade é o princípio da lei certa
– fala-se aqui de uma lei precisa, clara, determinada. A lei penal deve ser precisa. Deste modo,
impõe-se ao legislador penal uma exigência de determinabilidade por razões de segurança
jurídica, para que os cidadãos saibam aquilo com que podem verdadeiramente contar, estando
cientes daquilo que podem fazer à luz do direito penal. Neste sentido, não deverão admitir-se à
luz do princípio da legalidade penal, leis de conteúdo ambíguo, incerto, indeterminado, que não
precisem aquilo que se pode ou não fazer à luz da lei. A circunstância de a lei dever ser certa e
precisa não significa que tenha de ser redigida de um modo tal que qualquer cidadão consiga
entender perfeitamente, mas sim que as pessoas com conhecimentos na área do direito consigam
entender claramente o que está escrito na lei, de forma a poder explicar às outras pessoas o que
a lei pretende.

III. Subprincípio da lei estrita (lex stricta): A lei penal tem de ser uma lei escrita e isto impede, desde
logo, a analogia. A utilização da analogia no direito penal está dependente de requisitos e regras
específicas, precisamente por causa da função do direito penal – art. 29º/1 CRP – sendo que este
artigo nos diz logo que ninguém pode ser punido através do método da analogia (analogia in
malem partem).

3.1. Proibição da analogia – sentido e âmbito: O art. 1º/1 CP diz-nos que é preciso uma previsão
legal para que um facto possa ser punido, sendo que o nº 3 do mesmo artigo nos remete para a
existência de uma proibição expressa e específica relativamente à analogia incriminadora. No
entanto, nem a CRP nem o CP proíbem a analogia em todo o caso, mas sim em alguns casos –
proíbe-se a analogia contra reum ou in malem partem, ou seja, contra a pessoa do arguido.
Assim, a analogia fabor reum é permitia e é empregada num sentido favorável à pessoa do
arguido. Muitas vezes não se entente o sentido profundo da proibição da analogia – o princípio
da legalidade criminal tem a finalidade de proteger a pessoa contra os excessos punitivos do
Estado, ou seja, deve ser entendido a partir da proteção dos direitos da pessoa. É preciso reduzir
o poder do Estado àquilo que todos combinámos, que é a lei, que é a expressão da vontade da
comunidade. Assim, não admira que o sentido da proibição da analogia se refira à qualificação
de um facto como um crime, à qualificação de um estado como um estado de perigosidade ou
para determinar uma pena ou uma medida de segurança correspondente a um certo facto.

3.2. Interpretação e analogia: na altura do positivismo jurídico, o juiz devia ser apenas a boca
da lei: devia aplicar a lei numa operação quase automática, não existindo qualquer
interpretação, porque a lei era um objeto de subsunção por parte do juiz. Claro que hoje isto
está completamente ultrapassado, defendendo-se que todos os elementos do crime e todos os
elementos das normas penais têm de ser objeto de interpretação, mesmo aqueles que são mais
normativos. Por exemplo: o termo “coisa alheia” – temos de saber o que é coisa alheia e, para
isso, o juiz tem de fazer a interpretação desse conceito, tem de haver a concretização da norma
por parte do aplicador. Também em relação a elementos descritivos muitas vezes é preciso
interpretar:

• EXEMPLO 1: “quem matar outra pessoa é punido com pena de prisão de 8 a 16


anos de prisão” – para se poder matar uma pessoa é preciso que essa pessoa
esteja morta, mas aqui surge um problema: quando é que uma pessoa está
morta? O que é que determina a morte de uma pessoa? É a paragem respiratória,
paragem cardíaca, paragem da atividade cerebral? Mesmo estes elementos
precisam de interpretação.
• EXEMPLO 2: “é punido com 4 anos de prisão o furto cometido de noite” – quando
é que começa a noite? Às 19h, 20h, 21h? Tudo isto são questões de interpretação.

 Esta complexificação do pensamento metodológico levou-nos a dizer que não há


fronteiras fixas entre procedimentos de interpretação e analogia. Todo o pensamento

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interpretativo é um pensamento analógico e, por isso, não se sabe traçar a fronteira entre
interpretação e analogia. Em relação a isto pode-se dizer que praticamente todas as
palavras são polissémicas. Ao dizer isto podemos logo não definir quais são esses sentidos
possíveis, mas sabemos que há sempre um quadro de sentidos possíveis que é restrito
(por exemplo: quando se fala em pessoa, não podemos considerar um animal, como um
cão). E é dentro desse quadro que o aplicador do direito penal tem de aplicar a norma,
porque se o não fizer ele já está a recorrer à analogia, o que é proibído – o fundamental
é que ele entenda qual é o quadro limite de significações e aplicar a norma dentro desse
quadro.

 Houve vários casos no direito português de tentativa de aplicação de normas penais por
analogia que depois levaram a remodelações na lei: descobriram-se lacunas de
punibilidade – situações em que a punição se faria necessária, mas que não estava
prevista na lei e, nesses casos, o tribunal tinha de absolver a pessoa e o legislador tinha
de reparar a lacuna da norma.

• EXEMPLO: crime de burla do código de 1886 – “quem empregar artifício


fraudulento com intenção de enriquecimento para si será punido com a pena X”.
Entretanto surgiu um caso em que uma pessoa efetivamente burlou, mas não com
a intenção de enriquecer para si, mas para outrem – isto era uma lacuna de
punibilidade, uma vez que, independentemente de quem fosse enriquecer com a
burla (fosse o agente ou terceiro), a burla teria sempre se ser punida. Assim, o
legislador alterou esta disposição e mudou a intenção de enriquecimento próprio
para enriquecimento próprio e para outrem.

 A proibição da analogia é particularmente importante quando analisamos o tipo de ilícito


– a conduta proibida por lei. O que é que então pode ser abrangido pela proibição da
analogia? Para além das normas da parte especial, temos também as normas da parte
geral do código penal. Por exemplo: art. 22º CP – “há tentativa quando o agente praticar
atos de execução de um crime que decidiu cometer, sem que este chegue a consumar-se”.
Define-se o que é uma tentativa: nós não podemos aplicar as normas que ali estão a
realidades análogas, não podemos expandir a definição de tentativa para outras situações
que não estão consagradas.
 Assim, podemos compreender a proibição da analogia como uma proteção da pessoa
contra o Estado, mas a proibição da analogia já não abrange as causas de justificação
ou de exclusão de ilicitude, ou seja, causas que justificam os factos, que excluem a
ilicitude de um dado facto, apesar de esse facto preencher o tipo legal de crime.

• EXEMPLO: A mata B em legítima defesa – isto é uma causa de justificação. Ora,


nada impede que se aplique estas normas por analogia a casos semelhantes: no
caso da legítima defesa não é muito fácil encontrar casos análogos, mas, já no
caso do estado de necessidade, podemos logo pensar no caso de estado de
necessidade defensivo. Este juízo de verificação da analogia é particularmente
importante.

IV. Subprincípio da lei prévia (lex praevia): só pode ser punido criminalmente o facto descrito como
crime numa lei anterior à sua prática. A generalidade dos autores defende que esta ideia de lei
prévia gera um princípio de aplicação da lei penal no tempo e que este princípio seria o
princípio da irretroatividade ou da não retroatividade das leis penais. Deste modo, não se pode
aplicar uma lei penal retroativamente. (APLICAÇÃO DA LEI NO TEMPO!!!)
4.1. Proibição da retroatividade (!!!): o Dr. Pedro Caeiro tem muitas reservas quanto a esta
questão. Este princípio não lhe parece ser o da não retroatividade, parecendo-lhe uma coisa
diferente: à partida, a lei penal não será diferente das outras leis. Se um facto for praticado num

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tempo 1, o princípio geral do direito diz que este facto é regulado pela lei que vigora no
momento em que foi praticado (LEI 1). Isto é assim porque há uma função de determinação dos
comportamentos (norma penal como regula agendi – as pessoas guiam-se por essa norma
penal) e também uma função de regula decidendi – uma regra de valoração dos
comportamentos (proibir as pessoas de matar, de furtar, de fugir ao fisco) e, ainda, uma segunda
função de aplicar as penas previstas a quem violou essa norma. Então, a norma só pode, na
realidade, vigorar em relação aos factos praticados durante a sua vigência – uma norma
elaborada no tempo 2 (LEI 2) não se pode aplicar a um facto constituído no tempo 1 (que terá
de ser regulado pela LEI 1). Assim, temos que:

a) Os factos são regulados pela lei que vigora no momento da sua prática.
b) Uma lei que foi aprovada num momento posterior não pode ser aplicada a factos
anteriores.

Porque é que é assim? Por motivos de proteção da pessoa contra o poder punitivo do
Estado – esta retroatividade é proibida porque isso vai provocar uma diminuição dos
direitos e a segurança jurídica da pessoa que praticou os factos. No entanto, vamos
ver que há a possibilidade de aplicação retroativa das leis favoráveis ao réu. Este
mecanismo permite-nos compreender como a irretroatividade da lei penal tem apenas
um sentido (contra o réu) e permite compreender o porquê de a retroatividade em
favor do réu ser permitida.

 Se o princípio é o de que a lei que vigora no momento da prática do ato é a lei aplicável,
então torna-se particularmente importante também a determinação do momento da
prática do facto.
Isto está previsto no art. 3º CP, onde se diz que o facto se considera praticado no
momento em que o agente atuou ou em caso de omissão, no momento em que o agente
devia ter atuado, independentemente do momento do resultado porque é nesse
momento em que o agente atua que a lei pode exercer a sua força motivadora e o agente
se encontra determinado. Assim, a lei estabelece o momento em que o agente
efetivamente atuou e o momento em que ele devia ter atuado, nos casos de omissão.

 Mesmo assim, há casos mais problemáticos, desde logo os crimes permanentes ou crimes
duradouros ou crimes de consumação permanente: nestes casos, pode acontecer que o
agente atue ao abrigo de 2 leis diferentes, pelo facto de a conduta se prolongar no tempo.

• EXEMPLO: crime de sequestro – começa no momento em que o agente encerra a


vítima, mas depois é um crime de consumação permanente porque se mantém
até ao momento em que a vítima é libertada (o que pode levar anos). O prazo de
prescrição não começa a correr enquanto a vítima não for libertada e a vítima
pode sempre exercer a legítima defesa.

• Vamos supor que no tempo 2, a lei agrava a pena aplicável – aqui o critério é
muito simples: nestes casos, não é contrário ao princípio da legalidade criminal
aplicar a LEI 2, que vigora no tempo 2, porque não é uma aplicação retroativa,
mas sim uma aplicação a um facto que está ainda a decorrer. E aplica-se a lei do
tempo 2 por causa da regra que diz que a lei posterior derroga a lei anterior e,
portanto, a lei aplicável seria a do tempo 2, mesmo que seja uma lei mais
desfavorável para o agente.

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 O mesmo vale para os crimes de trato sucessivo ou de execução fracionada no tempo. O
agente pratica vários atos desse crime no tempo (por exemplo: o caso de Pedrógão
grande, em que o réu foi acusado de 1000 e tal crimes). Aqui também se aplica a lei do
tempo 2.
 O mesmo acontece no caso dos crimes continuados, em que o réu pratica vários crimes
distintos, mas que a lei qualifica como um único crime –aqui aplica-se a lei posterior, que
derroga a lei anterior.
 Daqui decorre que a proibição da retroatividade só funciona quando se trata de
fundamentar ou agravar a responsabilidade do agente. Por exemplo: passando a
qualificar como crime certa conduta que não era crime anteriormente (fenómeno de
neocriminalização), sendo que também é proibida a aplicação retroativa de uma norma
que vem agravar a pena.

 Medidas de segurança: o mesmo vale ainda para as medidas de segurança aplicáveis a


inimputáveis em razão de anomalia psíquica – a culpa não é o fundamento da pena, mas
é um pressuposto essencial para que seja aplicada a pena. Só que há certas situações em
que uma pessoa age sem culpa por virtude de uma anomalia psíquica que lhe retira a
capacidade de compreender o que está a fazer ou que lhe dá a incapacidade de parar o
que está a fazer e, nesse caso, o agente é inimputável e não se pode aplicar uma pena a
esse pessoa porque ela atuou sem culpa. Também pode suceder que essa pessoa seja
criminalmente perigosa, ou seja, que haja um perigo fundado de que ela venha a cometer
o mesmo crime no futuro (o tribunal pode concluir isso através de relatórios médicos) e é
exatamente por isso que existem as medidas de segurança, como o internamento
psiquiátrico.

• As medidas de segurança têm 2 pressupostos: 1) facto; 2) um estado de


perigosidade.
• Só quando estão reunidos estes 2 elementos é que se pode aplicar a medida de
segurança. A questão que se põe é esta: qual é a lei que se deve aplicar para
saber se uma pessoa é ou não perigosa? A lei que vigorava no momento da
prática do facto ou a lei que vigora no momento do julgamento? A Doutora Maria
João Antunes defendeu, na sua tese de doutoramento, que se deve aplicar a lei
que vigora no momento da prática do facto para se definir o facto, mas que se
deve aplicar a lei que vigora no momento do julgamento para definir o estado de
perigosidade porque é nesse momento que se vê se a pessoa é efetivamente
perigosa ou não, até porque se a pessoa fosse perigosa à luz da lei que vigora no
momento da prática do facto, mas não fosse perigosa no momento do
julgamento, é porque ela não era efetivamente perigosa.

4.2. Os casos de RETROATIVIDADE FAVORÁVEL estão previstos no art. 2º/2 e 4 CP:

 Art.2º/2: temos a consequência evidente de que se um crime deixar de o ser, quando é


eliminado do ordenamento jurídico, cessa a execução de eventuais penas das pessoas
que tenham sido acusadas desse crime. Isto vale também para os casos em que uma lei
destrua um crime e o torne numa contraordenação: nesse caso, se alguém estiver a
cumprir pena por esse facto, a pena cessa.
 Art.2º/4: prevê uma situação diferente: uma sucessão de leis penais em sentido estrito.

• EXEMPLO: temos um facto que foi praticado no domínio da lei 1 (L1) e depois surge
uma lei nova, L2, que continua a prever aquele facto como crime, mas prevê uma
pena mais favorável – o regime penal declara que deve ser aplicada a lei mais
favorável.

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Este art. 2º/4 diz que o juiz deve, em princípio, aplicar a lei que vigora no momento do
julgamento porque, em princípio, será essa a lei mais favorável ao agente.
Este artigo resolve ainda a situação em que o agente é condenado na vigência de L1, mas
enquanto ele está a cumprir a pena passa a vigorar a lei L2. Neste caso, a partir de 2007, o
CP mudou (anteriormente o agente não era afetado pela mudança da lei, continuava tudo
igual), sendo que com a nova redação, este regime mudou e diz-se que mesmo que já tenha
havido trânsito em julgado desta sentença, quando se atinge o limite máximo da pena mais
favorável, não se reabre propriamente o caso para apreciação dos factos, mas cessa a
execução da pena quando se atingir o limite máximo da pena mais favorável.

4.3. O PROBLEMA DA APLICABILIDADE DAS LEIS INTERMÉDIAS: lei intermédia – vigora entre
o momento da prática do facto e o momento do julgamento. Imaginemos a sucessão de 3 leis:

Um facto foi praticado Mas depois é aplicada


Entretanto surge a L2
na vigência da L1 a L3 no julgamento

Na verdade, todas estas leis podem ser aplicadas ao facto (L1, L2 L3).
Vamos supor que a mais favorável é a L2, o que é que justifica que se aplique ao agente esta lei?
De alguma maneira deve haver expetativa legitima de A de ser julgando ainda na vigência da lei
L2, concluindo a lei intermédia deve aplicar-se quando menos gravosa para o arguido. A ideia é
a de não prejudicar o agente pela demora do processo. EXEMPLO:

L1 criminaliza o consumo L2 veio dizer que a prática L3 vem restabelecer a


de estupefacientes desse facto não é crime criminalidade

Se A anda a consumir estupefacientes na vigência de L1, poderá ser condenado de acordo com
L3? Não, porque pelo meio (em L2) houve uma quebra deste regime – questão de segurança
jurídica dos cidadãos. Há uma descriminalização, mas o facto continua a ser ilícito. O autor já sabia
que era crime, logo não há bem uma segurança ou garantia a proteger nesse sentido. No entanto,
sendo ilícita, há uma continuidade do caráter sancionatório, logo, pode-se aplicar a L2 que continua
a ser uma sanção, embora mais favorável (art.2º/4 CP).

 O que é que o juiz tem de fazer para saber se a L3 é mais favorável que L1? Tem de
simular o julgamento do mesmo caso à luz de cada uma das leis e ver o resultado final
para poder ver qual é a mais favorável: pode acontecer que a L3 tenha mudado não só as
molduras penais, mas também as agravações, as qualificações das penas e só se pode ver
qual delas é mais favorável através de simulação.

• EXEMPLO: vamos supor que de acordo com L1 o agente ia ser condenado numa
pena de 6 anos de prisão e de acordo com L3 ele vai ser condenado com uma
pena de 7 anos de prisão: o juiz aplica a L1, o que significa que não se está a fazer
a aplicação de uma lei retroativa favorável, mas sim a aplicar a regra geral – o
princípio geral que diz que se aplica a lei que vigorava no momento da prática do
crime. (IMPORANTE: não esquecer que a aplicação de uma lei retroativa
favorável é uma exceção deste princípio geral).

 O que é que justifica, isto é, qual é o fundamento da aplicação retroativa da lei


favorável? O fundamento não é o mesmo da proibição da retroatividade de leis
desfavoráveis porque aqui não estamos a proteger as pessoas contra o poder punitivo do
Estado. Neste caso, aplica-se o princípio da necessidade: porque é que se ia aplicar uma
pena a um facto que atualmente já não é crime? Se a comunidade, no momento presente,

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entende que aqueles factos não devem ser punidos, então estaríamos perante um ato do
Estado sem sentido, desnecessária e isso não faria qualquer sentido, seja do ponto de
vista da prevenção geral, seja do ponto de vista da prevenção especial, em que não faria
qualquer sentido a punição do agente.

4.4. O PROBLEMA DAS LEIS DE EMERGÊNCIA OU LEIS TEMPORÁRIAS


Pode haver situações em que o legislador tem necessidade de criminalizar certos factos em
virtude de uma situação de emergência.

• EXEMPLO 1: houve um terramoto e para desmotivar o saque aos supermercados


e casas, o legislador pode aumentar severamente as penas aplicáveis a esses atos
ou criminalizálos se ainda não eram crimes. Para além disso, pode criar uma lei
temporária destinada a vigorar durante X tempo.

• EXEMPLO 2: durante o tempo de realização do Europeu de futebol, o legislador


pode agravar certas penas ou criar crimes novos só para aquele período de
tempo.

Agora vamos imaginar que o agente praticou esse facto no momento da vigência da lei
temporária e depois vai ser julgado no momento em que a lei temporária já não vigora ou a
emergência da lei de emergência já não existe. A questão que se coloca é se nesses casos se
também se deve aplicar retroativamente o regime mais favorável. O art. 2º/3 CP diz que fica
subtraído ao princípio da aplicação da lei mais favorável o regime das leis temporárias ou de
emergência: esta ultra-atividade justifica-se porque se não fosse assim, atendendo aos
processos judiciais, estas leis não tinham qualquer efeito preventivo, uma vez que, as pessoas
tinham a expectativa de ser julgadas quando as leis já nem vigoraram e, por isso, quando uma
lei deste tipo vigora por um certo tempo, ela continua a ser aplicada mesmo depois da sua
vigência.

 IMPORTANTE: não se deve confundir as leis temporárias com aquelas leis que só se aplicam em
determinadas alturas do ano, mas que são sempre vigentes, por exemplo, a lei da caça. O art. 2º/3 CP,
apesar de tudo, não proíbe uma aplicação limitada do princípio do tratamento mais favorável numa
situação muito específica que é o caso de sucessão de leis temporárias que tenham em vista a mesma
situação de facto, mas em que a segunda lei determine uma modificação da valoração do legislador.
Nestes casos, temos 2 leis sucessivas: se houve efetivamente uma modificação da valoração do legislador,
então aplica-se a segunda lei se esta for mais favorável. Se, por acaso, a situação de facto melhorou, então
aí continua a aplicar-se a primeira lei, uma vez que aí, o que mudou foi a situação de facto – alteração das
circunstâncias.

2. O CHAMADO ÂMBITO DE VALIDADE ESPACIAL DA LEI PENAL – APLICAÇÃO DA LEI PENAL


NO ESPAÇO

 Direito Penal Internacional e Direito Internacional Penal


Chama-se este capítulo “Direito Penal Internacional”: usa-se esta expressão para o distinguir, em algumas
línguas, por oposição ao Direito Internacional Penal. Qual é a distinção entre estes 2 ramos?

 O Direito Penal Internacional seria o conjunto de normas que disciplinam a aplicação das normas
penais a factos com elementos de estraneidade (elementos que se projetam para fora do âmbito
nacional). Nesta perspetiva, o direito penal internacional é aquele que está regulado nos arts. 4º,
5º e 6º do CP. São regras de direito interno que disciplinam a que casos é que as normas penais
materiais se aplicam.

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 Diversamente, o Direito Internacional Penal é um direito de fonte de direito internacional que
define os crimes contra o direito internacional e as penas aplicáveis a quem os comete.

Estes 2 ramos de direitos são diferentes quanto à fonte e quanto à função: o primeiro tem a função de
explicar como se aplica a lei penal em cada país, o segundo tem uma função de incriminar algumas
condutas que são contrárias ao direito internacional.

• EXEMPLO: se A (português) matar B (português) em território português, temos de saber


qual é a lei aplicável – não é verdade que estas normas de direito penal internacional
sejam sempre de fonte interna. Existem certas normas de direito internacional que
obrigam os Estados a criminalizar certas condutas – art. 5º/2 CP – “a lei penal portuguesa
é ainda aplicável a factos cometidos fora do território nacional que o Estado Português se
tenha obrigado a julgar por tratado ou convenção internacional”.

 Qual é o alcance das normas penais portuguesas, qual é a jurisdição das autoridades nacionais?
Por um lado, temos a proibição – que define o conteúdo da norma. EXEMPLO: art. 131º CP: “quem matar
outra pessoa é punido com pena de prisão de 8 a 16 anos”. A que factos é que isto se aplica? Isto aplica-
se, por exemplo, a um caso em que um indonésio mata outro indonésio na Indonésia? Não, porque para
além do conteúdo da proibição, precisamos de outras normas que definam o âmbito do alcance da
proibição e, por isso, temos as normas que definem o alcance da proibição – o círculo de destinatários.
Elas acrescentam o seguinte: “isto vale para todos os que atuarem em território nacional,
independentemente da nacionalidade, para os cidadãos estrangeiros que matarem cidadãos portugueses,
etc”. Estas regras estão previstas nos arts. 4º e 5º CP:

 Artigo 4º: temos o princípio geral que diz respeito à aplicação da lei penal no espaço: “salvo
tratado ou convenção internacional em contrário, a lei penal portuguesa é aplicável a factos
praticados em território português, seja qual for a nacionalidade do agente ou a bordo de
navios ou aeronaves portugueses”. Isto significa que o princípio base é o da aplicação da lei
penal a factos territoriais. Porque é que isto é assim? Desde logo, por 3 razões:
• A razão mais importante é a do foro político-criminal: em território nacional é onde
se faz sentir mais intensamente as exigências de prevenção penal.
• Além disso temos uma razão pragmática: esses são os factos em relação aos quais
é mais fácil de administrar a justiça porque encontramos as provas, testemunhas,
o arguido, etc.
• Por fim, temos uma razão que deriva do princípio político-internacional: vamos ver
que a aplicação da lei nacional a factos praticados fora do território português só
pode fazer-se em algumas situações. Porque, caso contrário, estamos a ingerir na
soberania dos outros países.

 Artigo 5º: faz enumerações de factos praticados fora do território português.

 Artigo 7º: fala-nos do lugar da prática do facto. Deste modo, preceitua que “o facto
considera-se praticado tanto no lugar em que, total ou parcialmente, e sob qualquer forma
de comparticipação, o agente atuou, ou, no caso de omissão, devia ter atuado, como naquele
em que o resultado típico ou o resultado não compreendido no tipo de crime se tiver
produzido”. Vemos neste artigo uma multiplicação de pontos de contacto entre o facto e o
território – há solução mista ou plurilateral que considera relevante qualquer contacto do
facto com o território nacional e o lugar em que o resultado aconteceu (por exemplo: alguém
dispara um tiro na fronteira de Espanha com Portugal, do lado de Espanha, mas acerta numa
pessoa que está no lado de Portugal da fronteira. Assim considera-se que o facto foi produzido
em território nacional). Tudo isto serve para evitar os conflitos de competência, ou seja,
situações em que nenhum dos estados envolvidos se considera competente para julgar um
determinado facto porque tem regras muito restritas relativamente ao território.

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 Para além disto, o art. 7º/2 CP preceitua que “no caso de tentativa, o facto considera-se
igualmente praticado no lugar em que, de acordo com a representação do agente, o resultado
se deveria ter produzido.” EXEMPLO: suponhamos que alguém planeia matar uma pessoa em
Portugal e que a partir da Turquia manda uma encomenda armada para matar a pessoa e a
encomenda é intercetada. Neste caso, temos uma tentativa de homicídio que embora se
reconduza à Turquia, é da competência do Estado Português. No entanto, esta é uma questão
muito discutível.

 O que é o território português?


É aquele que está definido no art. 5º da CRP: pedaço entre Espanha e o mar, 12 milhas marítimas, espaço
aéreo de toda a sua extensão, assim como as ilhas da Madeira e dos Açores.

 No art. 4º/b) CP temos uma extensão do princípio da territorialidade onde se prevê a chamada
regra do pavilhão: prevê-se que a lei portuguesa também é aplicável a casos a bordo de navios
portugueses e aeronaves portuguesas. Costuma-se perguntar como é que é nas embaixadas
estrangeiras que se encontram em território nacional: elas não deixam de estar no território
português, mas o que acontece é que existe uma regra de direito costumeiro internacional, uma
espécie de regra de primazia a favor do estado estrangeiro. Assim, quando um certo crime
acontece numa embaixada estrangeira sediada no território nacional, se o crime incidir apenas
sobre as pessoas do país da nacionalidade dessa embaixada, então dá-se primazia ao país da
nacionalidade da embaixada e, por isso, a competência é do país da nacionalidade da embaixada e
não do país onde ela está sediada.

 No art. 5º CP temos uma dimensão diferente: temos uma aplicação extraterritorial. Esta matéria
mudou bastante nos últimos anos e temos várias alineas relativas a este tema: Portugal, como
qualquer outro país, pode autolimitar a sua competência penal numa convenção com outros
Estados. Análise de cada uma das alíneas do art 5º:

 Alínea a): diz respeito à regra da proteção dos interesses nacionais – a característica
principal desta regra de conexão é que trata de crimes que atentam diretamente contra o
Estado português, contra os seus interesses mais importantes (alteração violenta do estado
de direito, por exemplo) e quando é assim, o direito internacional permite que os estados
exerçam a sua jurisdição sobre esses crimes, mesmo que eles sejam praticados no
estrangeiro;
 Alínea b): envolve a regra da nacionalidade. Por exemplo: temos um português no
estrageiro que é vítima e um português que se encontra ao pé dessa vítima e que vive
normalmente em Portugal e que pratica um crime contra ele. Nestes casos, a jurisdição
portuguesa é competente nestes crimes;
 Alínea c): casos de competência dos tribunais portugueses e da lei portuguesa, desde que
o agente seja encontrado em Portugal e não possa ser extraditado. Os crimes aqui previstos
são, por exemplo:
o Art. 159º CP – escravidão
o Art. 161º CP – rapto
o Art. 171º CP – abuso sexual de crianças.

Estra regra é a regra da universalidade ou jurisdição universal: procura-se através dela que
cada Estado garanta a repressão dos crimes contra o Direito Internacional. Na verdade, os
crimes contra o direito internacional não são todos os que aqui estão (a maioria são crimes
contra a humanidade, genocídio, crimes de guerra). O abuso sexual contra as crianças não
é um crime contra o direito internacional geral, podemos dizer que o direito internacional
geral impõe aos Estados o dever de perseguir os autores de crimes contra o Direito
Internacional. Para além disto, ao prever e ao incluir nesta alínea crimes que não são

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verdadeiramente crimes contra o Direito Internacional, o legislador pode estar a incorrer
numa violação de um princípio de DI importante que é o princípio de não ingerência na
soberania dos estados – que diz que um Estado não pode querer regular as condutas, os
factos, a sociedade, a realidade que vigoram noutro estado, criminalizando ou estendendo
a sua visão do mundo a condutas que podem ser consideradas lícitas num outro estado.

 Nas alíneas c) e d): a competência da lei portuguesa é subordinada a uma condição: o


agente tem de ser encontrado em Portugal e não pode ser extraditado. Se for pedida a
extradição de um agente que praticou um crime, o Estado Português deve então extraditá-
lo.
 Alínea e): consagra a regra da nacionalidade – não é preciso que sejam ambos (agressor e
vítima) portugueses, apenas é preciso que um deles seja português. A lei portuguesa é
competente nestes casos e exige 3 condições:
o O agente tem de ser encontrado em Portugal, o que significa que não se pode
pedir a extradição deste agente para ele se puder encontrar, ele tem de ser
efetivamente encontrado em Portugal;
o É necessário que o facto também seja punível pela lei do lugar onde o facto
foi praticado – regra da dupla incriminação: não basta que seja um crime à
luz da lei portuguesa, sendo necessário que também seja crime à luz da lei
do lugar onde foi praticado.
o Também é exigido que constituam crimes que admitam extradição e que
esta não possa ser concedida. Quais são os crimes que não admitem a
extradição? Crimes políticos e crimes militares. Porque é que a extradição
não pode ser concedida? Porque o crime é punível com pena de morte, pena
perpétua, havendo risco de maus-tratos no país em que vai ser condenado.

 Alínea f): tem um caráter subsidiário e prevê uma situação muito particular: regra aut
dedere, aut judicare – “ou entregas a pessoa, ou julgas a pessoa”. a lei portuguesa também
é aplicável a factos praticados no estrangeiro por estrangeiros que foram encontrados em
Portugal e cuja extradição tenha sido pedida e esta não pode ser concedida – esta regra já
não se funda na nacionalidade da pessoa uma vez que está em causa um estrangeiro, funda-
se apenas na vontade de cooperação internacional a isto se chama administração supletiva
da justiça penal;
 Alínea g): ainda prevê o facto de uma pessoa coletiva ter sede em território português –
trata-se da equivalência da nacionalidade das pessoas coletivas: casos de crimes
cometidos por pessoas coletivas no estrangeiro e se essa pessoa coletiva tiver sede no
território português, então a lei portuguesa também é aplicável.

 Restrições à aplicação da lei portuguesa – artigo 6º CP


Qual é o princípio que está aqui em causa? A lei só se aplica a factos praticados no estrangeiro se o agente
não tiver sido julgado no país estrangeiro ou se no caso de ter sido julgado, se subtraiu ao cumprimento
da condenação, total ou parcialmente. Aqui temos o princípio ne bis in idem – “ninguém pode ser julgado
2 vezes pelo mesmo crime”.

O art. 6º/2 CP prevê uma situação também particular nos casos em que é aplicável a lei
portuguesa: nos casos em que o agente não foi julgado no país da prática do facto ou em que não cumpriu
a pena, o caso é julgado em Portugal, MAS, segundo a lei do país onde o facto foi praticado, desde que
esta seja mais favorável do que a lei portuguesa.
Este regime da aplicação da lei mais favorável só não se aplica nos casos das alíneas a) e b) do art.
5º/1 porque nesses casos, o Estado Português entende que deve ser apenas a lei portuguesa a ser
aplicada, uma vez que se trata de crimes contra o Estado ou de crimes de portugueses contra portugueses,
sendo que não faz sentido aplicar a lei estrangeira mais favorável porque seria estar a confiar a proteção
dos bens jurídicos do Estado à jurisdição estrangeira.

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V. A CONSTRUÇÃO DA DOUTRINA DO CRIME – TEORIA GERAL DO CRIME

1. Elementos estruturais comuns a todos os delitos


Nem todos elementos essenciais do conceito de crime estão presentes nas descrições típicas da parte
especial. Nos tipos legas de crime o que se encontra são elementos próprios, específicos de cada crime
em particular. Há elementos essenciais que se pressupõe que são do conhecimento da pessoa quando se
parte para o estudo só do crime em particular, vamos decompor o próprio conceito particular. Sem a
distinção entre ilicitude e culpa, torna-se difícil fazer uma justiça, sobretudo porque se torna difícil não
cair numa justiça de tipo intuitivo porque se pode cair numa arbitrariedade do julgamento que não é de
modo algum compatível com o direito penal.

Categorias do crime:
• Ação
• Tipicidade
• Ilicitude
• Culpa
• Portanto, o crime é uma ação típica, ilícita e culposa.

2. Sistemas de construção da infração criminal


A partir do séc. XIX, o conceito material de crime não é igual para todos, sendo que nem estas categorias
são entendidas de forma igual.

SISTEMA CLÁSSICO OU NATURALISTA OU CAUSALISTA

Fala de uma forma de entender as coisas como se a realidade fosse de uma só natureza, tanto
1 faz uma ação humana como a queda de um objeto com a força da gravidade. Tudo o que é
uma ciência, uma análise, será tudo elaborado à maneira de ciências experimentais. Quer a
realidade física, quer a natural, procura-se explicar da mesma maneira: há uma causa, há um
efeito. Identifica-se aqui um pressuposto determinismo – tudo é determinável, tudo é
causado por alguma coisa, acabando assim com a liberdade. É seguido por autores como Liszt
e Beling.
Com um mecanismo deste tipo, como se pode compreender uma ação humana? Vai analisá-
la como um movimento corpóreo. Depois, ligado por um nexo causal a esse movimento,
haverá uma interação ou modificação do mundo exterior. Ou seja, trata-se de um elemento
Ação corpóreo voluntário, cujo motor é a vontade que causa uma modificação no mundo exterior.
Há um conceito de ação naturalista, é unicamente um processo causal. O mundo positivista é
determinista: nele não há lugar para a liberdade — o homem também atua movido por
causas.
Este sistema tem uma estrutura simples: o que é uma ação típica? É simplesmente a descrição
de uma conduta numa lei penal. Há muitas ações, nem todas relevantes – ao descrever a ação,
Tipicidade torna-se típica porque está descrito que essa ação é punida. A tipicidade é uma mera
descrição. O tipo é um tipo indiciador: apenas indicia a ilicitude, ainda não se fala aqui em
proibição – só sabemos que, em princípio, é um comportamento ilícito/desvalioso para o
Direito Penal porque coincide com o que está descrito.

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Aqui não se vai verificar se há algum tipo. Limita-se a verificar se há causas de justificação de
exclusão da ilicitude. O tribunal pode dizer que a conduta não é ilícita porque a conduta está
Ilicitude coberta de circunstâncias que excluem a ilicitude nesse caso. As ações são contrárias há
ordem jurídica (ilícitas) se não houver causas de justificação de exclusão de ilicitude. Ou seja,
a ilicitude é uma mera verificação de que não há na lei qualquer causa que deva excluir a
contrariedade à ordem jurídica de um comportamento que se subsume à descrição de conduta
proibida. O tipo indicia a ilicitude da conduta. Mas pode ser que a lei contemple para aquele caso
alguma exceção, diga que afinal aquela conduta, naquelas circunstâncias, não contraria a ordem
jurídica.
Introduz-se uma dimensão subjetiva do crime. Há um conceito psicológico de culpa: a culpa
Culpa traduz-se no nexo psicológico entre o agente e o seu facto. Está ligado à culpa se conhecia,
representou o que estava e quis fazer – há ligação entre mim (a minha psicologia) e o que
faço (o facto exterior), além do causal? Se sim, há culpa, caso contrário, não há.
Críticas  Nesta doutrina não se consegue distinguir a culpa da negligência inconsciente;
 O conceito de ação não permite apreender o sentido da ação porque exclui algum
momento subjetivo – não sei qual é o sentido social da ação;
 Se se trata de uma omissão, onde está o movimento corpóreo? Não há uma ação em
sentido estrito. Este conceito é incapaz de abranger a omissão.

SISTEMA NEOCLÁSSICO OU NORMATIVISTA

2 Defende que a realidade não é toda feita do mesmo, rompendo com as escolas de 2 grandes
grupos: 1) as da natureza e as da cultura; 2) as do espírito.
Começam por entender que a ação não faz sentido enquanto movimento corpóreo. A ação
é, em geral, uma referência a um determinado valor. Para o direito penal, a ação é uma
negação de valores por parte do Homem, embora não se trate de valores estéticos, é preciso
Ação que seja um valor jurídico-penal. Vai colocar em todas as categorias uma valoração. O homem
actua afirmando ou negando valores.
O sistema neoclássico diz que o que interessa mesmo não é fazer uma categoria própria de
tipicidade, mas sim uma mera descrição que, deste modo, indicia a ilicitude. Faz-se uma
junção, uma compreensão do ilícito como um ilícito típico – é uma ação ilícita típica.
Tipicidade A ilicitude penal é a negação de certos valores, os valores criminais. Mas como é que se
reconhece quais são esses valores? Esses juízos de desvalor que o direito penal faz exprime-
os através de situações, de condutas que descreve minuciosamente. Isso é o tipo. É através
dele que se conhece a ilicitude. Sem tipo não há ilicitude penal. O tipo constitui, assim, a ratio
essendi da ilicitude, é expressão do juízo de ilicitude. A tipicidade é a forma; a ilicitude é a
matéria.
A ilicitude compreende o facto que tem densidade e bem social, o que interessa é a
valorosidade social do ilícito – o ilícito é o conteúdo do típico, sendo essa valoração a mais
importante.
Em princípio o adepto do sistema neoclássico diz que esta valoração é sempre uma valoração
feita de um facto exterior ao sujeito, não há nenhum elemento da interioridade do sujeito,
ou seja, é objetivo, é algo que acontece – é um acontecimento de lesão de um bem jurídico.

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Ilicitude Aqui não se vai verificar se há algum tipo. Limita-se a verificar se há causas de justificação de
exclusão da ilicitude. O tribunal pode dizer que a conduta não é ilícita porque a conduta está
coberta de circunstâncias que excluem a ilicitude nesse caso. As ações são contrárias há
ordem jurídica (ilícitas) se não houver causas de justificação de exclusão de ilicitude. Ou seja,
a ilicitude é uma mera verificação de que não há na lei qualquer causa que deva excluir a
contrariedade à ordem jurídica de um comportamento que se subsume à descrição de
conduta proibida. O tipo indicia a ilicitude da conduta. Mas pode ser que a lei contemple
para aquele caso alguma exceção, diga que afinal aquela conduta, naquelas circunstâncias,
não contraria a ordem jurídica.
É onde me vou debruçar sobre o interior do agente que praticou o crime. É uma culpa
Culpa psicológica normativa – continua a permanecer a ideia de que há uma base psicológica, um
nexo psicológico entre o agente e o facto. Contudo, este sistema distingue entre o dolo e a
negligência – até é culpa se não souber do ato. O que interessa aqui é valorar, agora do ponto
de vista individual, se se pode censurar a concreta pessoa que levou a cabo este facto ilícito
típico.
A diferença aparece consoante a culpa seja dolosa ou negligente. A essência do juízo de culpa
é saber se se pode censurar o agente por ter praticado o ilícito típico. Mas, para um
normativista não há dolo ou negligência, há condutas ilícitas que se dividem no plano da culpa
consoante a ligação que é feita à inteligência e vontade do agente.
 Apesar de não ser uma ação valorativamente neutra, na sua estrutura continuam a
considerar que há uma relação causal, há aqui uma relação causa-efeito. Ou seja, na sua
estrutura a ação continua a ser uma ação causal. Estamos perante um conceito puramente
objetivo, como se fosse possível entender a ação humana sem juntar o elemento subjetivo
(e é isto que se vai ver no finalismo, que tem, por um lado, a visão exterior, mas também
o elemento subjetivo).
 Continua a haver uma visão puramente objetiva do ilícito típico. Assim, torna-se muito
difícil de entender, por exemplo, a tentativa. Se há apenas uma tentativa em que não
acontece qualquer ofensa a um bem jurídico, o que é que acontece? Era necessário ir ao
interior do sujeito para se entender se ele efetivamente tinha intenção de lesar, o que não
é possível. Assim, temos um problema, uma vez que olhando objetivamente para a ação
não se consegue descobrir a intenção do agente.
Críticas  No que diz respeito ao conceito de ação embora se visse a ação como a negação dos
valores pelos homens, acabava por se conservar a sua estrutura como nexo causal e
criticava-se sobretudo a conceção de ilicitude como um desvalor objetivo. De vez em
quando, para compreender a própria objetividade da ilicitude em si, era preciso apelar
para alguns elementos subjetivos. Mas tratava-se de uma exceção, pois a ideia do ilícito
era objetiva. O ilícito era um acontecimento exterior ao sujeito de lesão de um bem
jurídico, como que prescindindo da ideia de que esse acontecimento poderia ser causado
por uma ação humana ou natural. Esta ideia de ilícito objetivo faz perder a noção de ilícito
como um comportamento humano.
 Quanto à culpa, os normativistas dizem consistir num juízo de censura ao agente,
compreendia, também, um nexo psicológico entre o agente e o seu facto. Só na culpa se
ia buscar aquilo que estava na mente do sujeito quando praticava um ato ilícito. Só no
patamar dogmático da culpa é que se distinguiria um crime doloso de um crime
negligente. Continuaram sempre a considerar a culpa com o tal nexo psicológico. A culpa
voltava a estar enferma do mesmo problema naturalista.

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SISTEMA FINALISTA (seguido por HANZ WELZEL)

3 Este autor (Hans Welzel) nem aceitava o naturalismo nem o neo kantismo dessa ideia de que
havia uma separação evidente entre a realidade e o dever ser.
O que caracteriza a ação humana é que a pessoa atua por fins. Assim, a pessoa deve pensar
nos resultados que a sua ação pode produzir. O homem move-se por fins e é para alcançar
esses fins que depois põe em movimento os processos causais que conhece, isto é, Aquilo
que define o comportamento humano é que o homem antecipa fins, antecipa mentalmente
Ação o que se propõe fazer e depois, conhecedor como é dos processos causais, ordena-os para
esse fim. A ação humana é uma exteriorização de uma intencionalidade de sentido. Aqui
fala-se numa ação final que é uma unidade subjetiva e objetiva, tendo elementos subjetivos
e objetivos, tendo um sentido próprio e socialmente apreensivo, não é apenas algo que
aconteceu.
Se na própria ação já há elementos subjetivos, então o dolo também já está no ilícito. Estes
autores dizem que há uma bipartição: há um tipo objetivo (descrição da conduta na sua
Tipicidade objetividade) e um tipo subjetivo (aquilo que se subdivide em dolo e negligência). Este autor
diz que há ações que não são típicas ilícitas porque são socialmente adequadas.

Consiste mais no desvalor da ação do que no desvalor do resultado.


Ilicitude Também neste sistema finalista se junta o tipo com a ilicitude, uma vez que temos um tipo
ilícito
Aqui a culpa vai-se traduzir num juízo de censura que se faz ao agente por ter praticado
aquele facto ilícito típico. E a culpa não se divide em dolosa e negligente? Não é preciso
porque isso já é o ilícito. O ilícito ou é doloso ou negligente. Pode-se censurar o agente por
ter praticado este facto ilícito doloso/negligente? Isso depende de o agente não ser
inimputável, de ser exigível ao agente um comportamento conforme ao direito e de o agente
não estar em erro censurável sobre a ilicitude. Assim, no ilícito, estes autores fazem um
julgamento do comportamento do ponto de vista do homem médio, mas quando passam
Culpa para a culpa já partem para um juízo subjetivo, embora aquilo que se está a analisar seja uma
unidade de sentido objetiva ou subjetiva. No entanto, no ilícito, pensa-se que aquela pessoa
é uma pessoa sem rosto. Já na culpa, volta-se a olhar para aquele facto, mas desta vez vendo
a pessoa em concreto que praticou aquele facto- aqui já se faz um julgamento individual.
Assim, para um finalista, há um desvalor pessoal objetivo do ilícito e depois, juntando-se a
culpa, junta-se o desvalor pessoal subjetivo e assim temos o crime. A culpa vem apenas
confirmar o sentido doloso ou negligente da ação.

VI. O TIPO DE ILÍCITO (TIPO INCRIMINADOR)

No sistema do facto punível da construção da teoria do crime, ela está organizada como um sistema
classificatório: por categorias que são comuns a todos os crimes.
Segundo Figueiredo Dias, a categoria base é o tipo de ilícito, sendo que acima dessa temos a culpa e,
ainda, acima dessa temos a oponibilidade. Embora, a categoria do tipo de ilícito agregue os tipos
agregadores e justificadores, ela é uma categoria única. Ou seja, ela agrega duas vertentes:
1) Tipo incriminador: corresponde àquilo que, para a generalidade da doutrina, configura a
tipicidade.
2) Tipo justificador: que integra o plano da ilicitude para a generalidade dos autores.

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RAQUEL SERPA SILVEIRA | 2018/2019
1. TIPO INCRIMINADOR
O tipo incriminador, na perspetiva de Figueiredo Dias, é o portador do sentido da ilicitude do facto – é
nele que se exprime a ilicitude do facto. O tipo incriminador é integrado por elementos objetivos e
elementos subjetivos e, por isso, fala-se em tipo objetivo de ilícito e tipo subjetivo de ilícito.
Este modelo que é partilhado pela generalidade da doutrina penal contemporânea teve origem na
Alemanha e foi exportado para outros países, como Portugal, sendo um modelo muito disseminado no
mundo. Figueiredo Dias agrega as categorias do ilícito e da tipicidade criando o ilícito típico.
Os crimes podem ser analisados sobre 4 modalidades: ativo ou omissivo, doloso ou negligente. Assim,
podemos ter:
1. Crimes dolosos de ação (modalidade mais frequente)
2. Crimes dolosos de omissão
3. Crimes negligentes de ação
4. Crimes negligentes de omissão
Portanto, com base nestas figuras de ação versus omissão e dolo versus negligência criaram-se estes 4
tipos de crimes.
O tipo objetivo (A) condessa a vertente objetiva do facto que é composto por 3 elementos: autor,
conduta e bem jurídico.
No tipo subjetivo dos crimes dolosos (B) encontramos, pelo menos, o dolo. Nos crimes
negligentes, o tipo subjetivo é composto naturalmente pela negligência. (pág. 38)

Assim, o tipo, tendo esta dimensão objetiva e subjetiva, vai ser sempre uma expressão de um ilícito
pessoal. É sobre este prisma que os tipos legais são decompostos e quando o tribunal se depara com um
certo caso da vida, é sobre esta chave que ele vai analisar o crime.

A. TIPO OBJETIVO DE ILÍCITO


Falamos aqui da vertente objetiva do tipo incriminador. O tipo incriminador é composto por 3 grandes
elementos:
1. Autor
2. Conduta
3. Bem jurídico

No fundo, qualquer tipo legal de crime deve identificar quem pode ser autor desse crime, deve
descrever a conduta em que o crime se consubstancia e deve referir-se a um certo bem jurídico, um certo
valor, um certo interesse, que está relacionado com a conduta que deve constituir um tipo de ofensa ao
bem jurídico, seja uma lesão, seja uma colocação em perigo desse bem jurídico.
Por exemplo: se formos ao Código Penal, à parte especial, encontramos aqui um crime prototípico
que é o crime de homicídio e aí prevê-se que quem matar outra pessoa é punido com uma pena de prisão
de 8 a 16 anos. Assim, qualquer um pode ser agente deste crime. O crime de homicídio consiste numa
ação de matar outra pessoa. É preciso uma conduta, um ato de matar, o objeto da ação é outra pessoa,
não é o próprio (uma vez que o suicídio não é crime), não é um animal, não é um nascituro, mas sim outra
pessoa. É preciso uma ação homicida que produza um resultado que é a morte – assim, o bem jurídico é
a vida humana de outra pessoa, já nascida.
Vamos olhar aos 3 elementos do tipo incriminador de crime:

1. AUTOR: todos os tipos legais de crime devem precisar, de forma clara, quem pode ser autor desse facto
criminoso e aqui distingue-se crimes comuns de crimes específicos:
 Crimes comuns: os crimes comuns são aqueles cujo autor pode ser qualquer pessoa (esta é
uma classificação quanto à pessoa do autor do crime) como os crimes de homicídio, roubo,
violação. A generalidade dos crimes são crimes comuns – aqui há uma precisão muito
importante a fazer: quando se fala em autor não é ao acaso: “os crimes comuns são aqueles
cujo autor pode ser qualquer pessoa” e porquê esta especificação? No âmbito do agente, há

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uma distinção entre autor e cúmplice e a caracterização do que é um crime comum faz-se em
função do autor: o autor é o senhor do crime, o ator principal.

 Crimes específicos: os crimes específicos são aqueles cujo autor só pode ser uma certa pessoa
identificada no tipo legal em função de um certo estatuto ou certo dever. Há tipos legais de
crime que circunscrevem o seu núcleo de autores potenciais a certas pessoas em função do
seu específico estatuto, uma certa posição ou um certo dever que sobre elas impende.
Por exemplo: crime de corrupção (art.373º/1 CP): este crime é específico porque só
funcionários públicos podem ser autores de um crime de corrupção passiva. Se, por exemplo,
um professor aceita um suborno para passar um aluno, ele poderá ser autor de um crime de
corrupção passiva se for um funcionário público, professor numa escola pública, mas se
estivermos num domínio privado já não é assim. Se um médico for um médico do sistema
nacional de saúde ele pode ser autor de um crime de corrupção passiva, no entanto, se for um
médico de uma clínica privada, ele já não pode ser autor deste crime.
A delimitação do círculo de autores faz-se através da delimitação de um certo estatuto
profissional. Mas, outras vezes, faz-se através de um certo dever: a lei refere-se a “quem fizer
isto”, mas em função de um certo dever. Por exemplo: art.224º CP – crime de infidelidade
patrimonial: quem administrar de forma infiel um património que lhe esteja confiado comete
um crime de infidelidade patrimonial. Só aquele a quem o dever de cuidar está atribuído é que
pode ser autor desse crime, sendo, por isso, um crime específico. Fala-se aqui em crimes
específicos próprios e crimes específicos impróprios:
 Crimes específicos próprios: são aqueles em que o dever integra a fundamentação da
ilicitude, contribuindo para afirmar a própria existência da ilicitude. É o dever em si
mesmo que fundamenta ou contribui para fundamentar o juízo de ilicitude penal. É
a necessidade de cumprir o dever que está na essência do tipo de ilicitude. Há crimes
em que a posição ou dever, mais do que acentuar a ilicitude, agrava-a.
 Crimes específicos impróprios: crimes que têm na sua base uma matriz similar à de
um crime comum, mas que quando praticado por alguém em especial, vêem a sua
punição agravada, ou seja, são punidos mais gravemente como é o caso do crime do
art.378º CP: violação de domicílio por funcionário.

2. CONDUTA: no âmbito do tipo objetivo há uma 2º vertente que é muito importante – a da conduta: o
tipo legal deve também descrever a chamada conduta típica, isto é, o comportamento que pode ofender
o bem jurídico nos termos que se pretende proibir ou impor. Ou seja, a conduta em que o crime se
materializa, se corporiza, o facto típico que incorpora uma conduta típica. É através dela que se vai
verificar se certa pessoa atuou nos termos que estão descritos nos tipos legais de crime (se alguém
matou, se alguém furtou).

 Relevo do conceito de ação:


No plano da conduta aparece o relevo do conceito de ação: a conduta corresponde a uma ação
ou omissão e a categoria da ação está integrada no próprio tipo objetivo. É-lhe atribuída uma vertente
negativa de exclusão de revelo típico a certas manifestações do agir humano: há certo tipo de atuações
que não podem qualificar-se como uma ação para efeitos penais e, como tal, não são típicas. O conceito
de ação desempenha aqui uma função fundamentalmente negativa. Para além disso, temos também a
exclusão da tipicidade, no sentido em que só pessoas podem cometer crimes (por exemplo: se um cão
vadio morde uma pessoa, não comete um crime de violação da integridade física da pessoa, uma vez que
os animais não cometem crimes).
Portanto, há certas atuações que não assumem relevo do ponto de vista jurídico-penal porque
não são consideradas como ações, como é o caso do pensamento (por exemplo: se eu desejar muito matar
uma pessoa, este meu desejo, se eu guardar para mim, não tem qualquer relevo jurídico-penal).
Também não são ações para efeitos jurídico-penais aquelas formas de agir que não sejam
dominadas pela vontade ou que sejam inconscientes (por exemplo: quando um certo comportamento é

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realizado por alguém num estado de inconsciência, não pode ser considerado típico porque nem sequer
há uma ação, apesar de haver uma ofensa a um bem jurídico- por exemplo, alguém que tenta matar
alguém num estado de sonambulismo ou alguém que tem um ataque epilético e aleija uma pessoa sem
querer).
O mesmo se pode dizer dos reflexos automáticos, que quando implicam a ofensa de um bem
jurídico, não assumem relevo penal porque não é uma ação típica (por exemplo: alguém que faz um gesto
repentino porque foi picado por uma abelha – se eu atropelar e matar alguém porque estava a conduzir e
uma abelha me pica no olho). Assim, o conceito de ação tem esta função de exclusão.

 CRIMES DE AÇÃO E CRIMES POR OMISSÃO


No âmbito da conduta, põe-se o problema de saber se a conduta tem uma A) natureza ativa
(crimes de ação) ou B) natureza omissiva (crimes por omissão), isto é, de saber se a conduta se traduz
num fazer ou não fazer. Em certos casos, é muito fácil de distinguir: se A dispara um tiro sobre B, A comete
um crime de homicídio por ação. Por outro lado, se A, que é nadador salvador vê B a afogar-se e não faz
nada, então A comete um crime de homicídio por omissão. Mas há casos que não são nada claros: quando
alguém está numa cama de hospital num estado crítico e a sua vida só é mantida porque está ligado ao
ventilador e alguém desliga a máquina, isso é uma ação por se desligar a máquina ou uma omissão porque
não se oferece o tratamento médico devido? Estes são casos muito difíceis, que implicam muita
ponderação e são alvo de muita controvérsia.
Nos crimes de ação, há ainda crimes de resultado e crimes de mera atividade, que têm uma
classificação equivalente nos crimes por omissão.
Nos crimes por omissão fala-se em crimes de omissão própria e crimes de omissão imprópria.

A. CRIMES DE AÇÃO
 Crimes de mera atividade: são aqueles em que o facto ilícito se consuma através do simples agir,
ou seja, é o simples fazer qualquer coisa que por si só consuma o facto típico. EXEMPLO: o crime
de violação de domicílio, crime de violação, crime de injúria – é esse agir que, sem mais, implica a
consumação do facto.

 Crimes de resultado: são crimes cuja consumação produz a verificação de um resultado, isto é,
de um evento espaço-temporalmente diferente da conduta. Não basta que o agente atue, é
necessário que o tipo incriminador pressuponha ainda que dessa conduta resulte uma
consequência, um evento que se distinga no espaço e no tempo da conduta – se o agente age,
mas o resultado não se produz, então, temos um caso de tentativa. EXEMPLO: crime de homicídio.
Só há crime de homicídio consumado quando da ação homicida resulta a morte de uma pessoa.
Para que o tipo se preencha na sua totalidade é necessário para além da conduta que está descrita
no tipo, que também haja um resultado.
• É nestes crimes que se põe um problema jurídico complexo que é o da imputação do
resultado à conduta: não basta que haja uma conduta e um resultado.
• Nos crimes de resultado, para que o agente responda a título de crime consumado é
necessário que entre a conduta que ele realizou e o resultado que ocorreu haja uma
ligação, um nexo, a chamada imputação objetiva. Se, por exemplo, A dispara sobre B,
mas, ao mesmo tempo, também C dispara sobre B e quem mata é C e não A, A não pode
responder por este homicídio. Para além da conduta típica e do resultado típico, tem de
haver ainda o nexo de causalidade.

B. CRIMES DE OMISSÃO
 Crimes de omissão própria: são crimes de mera atividade por omissão.
 Crimes de omissão imprópria: há crimes em que se pune um certo não fazer, punese o
incumprimento do dever de agir. Há crimes que, sendo de resultado (como é o caso do homicídio)
também poderão ser praticados por omissão – fala-se em crimes de omissão imprópria. Estes
crimes são crimes de resultado praticado por omissão – casos em que se pune alguém pelo facto

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de não ter atuado e que dessa sua não atuação resultou um evento previsto no tipo legal de
crime (caso do nadador salvador – art.10º/1 e 2 CP).

 CRIMES DE EXECUÇÃO LIBRE E CRIMES DE EXECUÇÃO VINCULADA


Há uma outra classificação no plano da conduta que diz respeito à existência ou não de uma certa
forma de praticar o facto e fala-se aqui em crimes de execução livre e em crimes de execução vinculada:
A. CRIMES DE EXECUÇÃO LIVRE: são aqueles em que o tipo legal não exige para que o crime
se consuma uma certa maneira, uma certa forma de execução do facto (por exemplo: crime
de homicídio – pode matar-se por mil maneiras).
B. CRIMES DE EXECUÇÃO VINCULADA: há crimes (nomeadamente crimes de resultado) em
que não é qualquer forma de produção do evento típico que determina a consumação do
facto. A consumação só poderá ser afirmada se a execução for realizada de uma certa
forma: o legislador especifica o modo de execução do facto, reduzindo-o a certas
modalidades da realização típica. EXEMPLO paradigmático do crime de burla (art.217º CP):
o que está em causa na burla é provocar um engano noutra pessoa de forma a que ela
incorra em erro e que, dessa forma, produza um ato que lhe cause prejuízo – é só desta
forma, em que o burlão atue por meio de erro ou engano, que se pode efetivamente
incorrer em burla. Portanto, o tipo legal circunscreve a relevância típica dos atos de prejuízo
patrimonial àquelas situações em que o prejuízo resultou de um engano provocado pelo
agente.

 CRIMES DE EXECUÇÃO INSTANTÂNEA E CRIMES DURADOUROS


Há uma outra distinção que revela em matéria de precisão do procedimento criminal que é a
distinção entre crimes de execução instantânea e crimes duradouros.
A. CRIMES DE EXECUÇÃO INSTANTÂNEA: são aqueles cuja consumação se dá num certo
momento e se esgota aí, ainda que depois ele tenha reflexos que perdurem no tempo. Por
exemplo: crime de ofensa à integridade física.
B. CRIMES DURADOUROS: crimes cuja execução típica se prolonga no tempo por vontade do
próprio agente, o crime vai-se consumando, de forma sucessiva e permanente no tempo.
Por exemplo: crime de sequestro – quando alguém priva outra pessoa da sua liberdade,
contra a sua vontade, o crime está sempre a ser consumado porque estão sempre a ser
realizados atos de consumação típica.

3. BEM JURÍDICO: um terceiro plano em que se analisa o tipo objetivo de ilícito é o plano do bem jurídico
– todos os tipos legais de crime para que se possam qualificar como materialmente legítimos deverão
desempenhar a função de proteção de um bem jurídico.
Nesta medida, quando o legislador tipifica uma certa conduta, deve fazê-lo em ordem à proteção
de um bem jurídico porque a proibição é necessária para a proteção do bem jurídico. A referência ao
bem jurídico é também um elemento que integra o próprio tipo incriminador. Há que perceber qual foi a
intenção do legislador ao prever aquela conduta que descreve como um crime. Em 1º lugar, tem de se
descortinar qual é o bem jurídico. Para além disso, terá de se descortinar qual a relação entre a conduta
e o bem jurídico a que o legislador quis fazer referência: quando ele proíbe o comportamento, que tipo
de ofensa é que ele estava a pensar, o que é que ele pretendeu proibir? Não basta identificar o bem
jurídico, é fundamental, na compreensão do tipo incriminador, perceber qual foi a ofensa ao bem jurídico
que o legislador quis prevenir.

E há diversos tipos: ofensas em que o bem jurídico é lesado, destruído ou danificado e há aquelas
ofensas em que o bem jurídico não chega a ser posto em causa diretamente, é apenas ameaçado, posto
em perigo. Daí que se fale em crimes de dano e em crimes de perigo.
A. CRIMES DE DANO: são aqueles em que a realização do tipo, ou seja, a consumação típica implica
a lesão do bem jurídico. Os casos mais graves são os casos do crime de homicídio, em que se tira

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a vida de alguém e o crime de ofensa à integridade física, quando se lesa a integridade física do
agredido. O legislador, nos crimes de dano, aguarda que o dano se processe para punir o agente
e, nessa medida, a proteção é uma proteção de ultima ratio em que o bem jurídico já está
destruído e, consequentemente, a pena é mais grave.

B. CRIMES DE PERIGO: há casos em que o legislador entende que, dado o relevo comunitário do
bem jurídico, faz-se uma proteção mais forte e, nessa medida, não se limita a punir as condutas
que lesem o bem jurídico, punindo também os comportamentos que o ponham em perigo. Ou
seja, não é preciso que se destrua o bem jurídico, basta que se ponha o bem jurídico em perigo.
Há toda uma tendência para multiplicar os crimes de perigo, para criar mais crimes de perigo,
reforçando a proteção dos bens jurídicos porque é muito difícil de demostrar aquele nexo de
imputação entre a conduta e o resultado. Assim, sendo difícil de comprovar o nexo de
causalidade, de provar que foi aquela conduta que produziu aquele resultado é que, nessa
medida, o agente deve responder pelo crime de dano. Muitas vezes o legislador proíbe certas
condutas que são idóneas para pôr em perigo o bem jurídico. Por exemplo: no âmbito
farmacêutico. Há uns anos uma empresa portuguesa estava a desenvolver um medicamento e
desenvolveu ensaios clínicos. Nestes ensaios clínicos com humanos, várias pessoas que tomaram
o medicamento sofreram consequências, sendo que uma chegou a morrer. A pergunta que se põe
é: essas lesões foram provocadas pelo medicamento? Como não se sabe, não dá para estabelecer
o nexo de imputação. Assim, os crimes de perigo representam uma tutela antecipada.
Podem ser divididos em crimes de perigo concreto ou crimes de perigo abstrato:

o Crimes de perigo concreto: são aqueles em que o perigo faz parte do tipo. Ou seja, é
preciso mostrar que o bem jurídico esteve efetivamente em perigo. Por exemplo: crime
de exposição ao abandono (art.138º CP) e crime de condução perigosa (art.291º CP).
o Crimes de perigo abstrato: são aqueles em que o perigo é simples motivo da proibição, ou
seja, são aqueles crimes em que o perigo não faz parte do tipo incriminador, sendo o
simples motivo da proibição. Assim, proíbe-se aquele comportamento porque ele é, em
si mesmo, perigoso para o bem jurídico e proíbe-se mesmo que daquele comportamento
não resulte uma lesão – exemplo paradigmático é o crime de condução em estado de
embriaguez (art.292º CP).

Há casos em que não é nada clara a forma de ofensa ao bem jurídico que o legislador visa punir,
sendo certo que quanto mais nos afastarmos do crime abstrato e mais nos aproximarmos da lesão
(dano), mais difícil se torna a condenação. A condenação é muito mais simples no perigo abstrato
do que na lesão, daí que haja uma tendência para a criação de crimes de perigo. O exemplo claro
disto é o crime de violência doméstica (art.252º CP) – o que é que se exige para que haja violência
doméstica? É preciso que se comprove a lesão física ou psíquica. Muitas vezes absolviam-se os
agressores em casos em que não dava para comprovarmos danos psíquicos para a vítima porque
antes este era um crime de dano e esta prova era muito difícil. No entanto, quando se vê isto
como um crime de perigo abstrato já não é necessário provar a lesão, uma vez que se pune os
maus tratos em função da perigosidade que eles representam para o bem-estar psíquico.

Para além desta classificação, os crimes de tipo abstrato representam uma intervenção penal
muito antecipada e isto pode levar a pôr em causa a natureza de ultima ratio do direito penal.
Ora, nestes casos, o bem jurídico não chega a estar em perigo e, por isso, é muito discutida a
legitimidade constitucional dos crimes de perigo abstrato. Por isso é que surgiram os crimes de
aptidão que são crimes em que é preciso demonstrar a efetiva idoneidade daquela conduta para
pôr em causa o bem jurídico:
o DELITO OU CRIME DE APTIDÃO: Estamos perante tipos legais em que o legislador faz
assentar a conduta numa idoneidade para pôr o bem jurídico em perigo. São condutas
concretamente perigosas. Um crime de aptidão tipifica uma conduta que, em si mesma,

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é perigosa para o bem jurídico em causa (por exemplo, crime de fraude fiscal – art.103º
RGIT).

Por fim, fala-se atualmente nos crimes cumulativos (tipo muito controvertido) – crimes que dizem
respeito a bens jurídicos coletivos e em que a conduta/facto em si mesmo é inócua para o bem
jurídico quando praticada isoladamente (delitos cumulativos). Então, o legislador pune esse
comportamento em face do perigo de repetição porque se não o fizesse havia o perigo de prática
massiva e de uma acumulação do comportamento por muitas pessoas e resultaria um dano para
o bem jurídico. Por exemplo: o crime de falsificação de moeda – art.279º/A/2 CP.
o DELITOS CUMULATIVOS: esta noção começou a discutir-se muito no quadro da chamada
sociedade de risco. Esta noção surge na sequência do estudo do autor alemão Beck que
nos diz que a sociedade em que vivemos tem a possibilidade de se autoliquidar. Os riscos
que hoje assumimos são riscos que, pela primeira vez, podem pôr fim à sociedade – fim
do ambiente, fazer explodir o planeta, eliminar espécies – riscos estes cujas
consequências são incontroláveis. O facto de haver riscos que são consideráveis e
imensuráveis fez com que começassem a surgir crimes baseados num perigo individual
que não é capaz de pôr em causa o bem jurídico, isto é, a conduta individual não tem
capacidade para lesar o bem jurídico. Acontece, porém, que se a conduta não for proibida
ela tenderá a generalizar-se: há crimes que punem uma conduta que, em si mesma,
considerada isoladamente, não tem capacidade para lesar o bem jurídico, mas se esta
conduta for generalizada, então aí o bem jurídico vai sair lesado. Do cúmulo das
condutas individuais resultará a lesão do bem jurídico. Por exemplo: se eu deixar de
pagar os impostos, o país não vai à falência. No entanto, se não existisse um crime de
fraude fiscal, o país ficaria na miséria. É preciso que haja uma norma impositiva e que haja
o sancionamento dessa norma. Muitos dos crimes ambientais são crimes cumulativos –
conduta que em si mesma não é ofensiva do bem jurídico, mas se for generalizada, já vai
lesar o bem jurídico.

VII. A IMPUTAÇÃO OBJETIVA DO RESULTADO À AÇÃO/CONDUTA


Quando é que se pode dizer que um resultado num tipo legal pode imputar-se à conduta prevista no tipo
legal? Quando é que se pode afirmar que aquela conduta foi responsável pela realização daquele
resultado? Os crimes podem ser formais ou de mera atividade (o tipo legal basta-se com a realização de
uma conduta – violação do domicílio) ou crimes materiais ou de resultado (crime de homicídio – é preciso
mais que a conduta, ou seja, é preciso um resultado pois, caso não exista, trata-se de uma mera tentativa.
Assim é preciso que à conduta se siga um resultado).
A resposta mais fácil a esta questão seria dizer que uma certa conduta causou um certo resultado porque
é isso que a realidade aparente, é isso que parece resultar daquele comportamento. Mas como é que
se determina este nexo de causalidade entre uma conduta e um resultado? Como é que eu sei que uma
coisa causa a outra? Assim, surgem várias teorias:

A. TEORIA DAS CONDIÇÕES – divide-se em 2:


1. Teoria da condição sine qua non ou teoria das condições equivalentes: suprimindo a
conduta, o resultado desaparecia – é uma forma de comprovação da causalidade, não nos
diz o que é ser causa, mas é sim um critério para averiguar da relação de causalidade. Este
critério traz problemas, por exemplo:
 Problema do regresso ad infinitum: A mata B. Se A não tivesse disparado sobre B, B
não teria morrido. Se a mãe de A não tivesse dado à luz a A, então A não tinha
disparado e B não tinha morrido. Se a mãe de B não tivesse dado à luz a B, então A
não teria disparado sobre B e B não tinha morrido. Se a avó de A não tivesse dado à
luz a mãe de A, a mãe de A não teria dado à luz a A e A não teria disparado sobre B
e B não teria morrido e assim sucessivamente – estamos aqui perante o problema

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do regresso ad infinitum, esta teoria vai remetendo sucessivamente para trás. Onde
é que ela pára?
 Problema da causalidade virtual: por exemplo, um caso de pena de morte – antes
do funcionário carregar no botão que aciona a cadeira elétrica, uma pessoa dispara
sobre o criminoso e mata-o: exemplo de causalidade virtual. Ele podia dizer que não
causou o resultado porque suprimindo a sua conduta, o resultado ia dar-se na
mesma. Porque o resultado ia acontecer na mesma, por força de outra causa.
 Casos de causalidade dupla e alternativa: imaginemos que A envenena a bebida de
B. C, sem saber (desconhecendo o que A tinha feito), envenena a sopa de B. B bebe
a bebida e come a sopa – suprimindo a conduta do A, o resultado teria desaparecido?
Não, então A não causou o resultado. Mas suprimindo a conduta de C também não
desaparecia o resultado, logo, nenhum deles matou B. Assim, esta teoria nunca
poderia ser aceite porque, nestes casos, nunca se poderia estabelecer o nexo de
causalidade. Este é um resultado inaceitável: não faz sentido dizer que uma pessoa
que morreu duplamente envenenada, não foi assassinada e que só houve meras
tentativas, uma vez que o facto se consumou.

2. Teoria das condições conforme às leis naturais: o critério que esta teoria segue é o apelo às
leis da experiência, leis da ciência. É o conhecimento científico que nos permitirá dizer se
uma conduta causou ou não o resultado, teoria seguida por K. Engisch. O resultado foi
provado por uma conduta se essa conduta for a explicação científica desse resultado. A
Dra. Susana Aires de Sousa tende a aceitar esta doutrina, mas diz que esta noção nos
empurra para o conceito de causalidade probabilística. Esta teoria nunca teve muito
acolhimento entre nós, antes pelo contrário, a teoria da causalidade adequada é a que
conhece acolhimento na doutrina e na jurisprudência.

B. TEORIA DA CAUSALIDADE ADEQUADA:


Enquanto as outras teorias procuravam um conceito natural de causalidade, esta encontra um conceito
jurídico, normativo de causalidade. Esta aparece desligada do acontecimento naturalístico e constitui uma
valoração dos factos. Esta teoria fundada por Kries, diz-nos que um resultado será imputado a uma
conduta se, segundo a normalidade do acontecer, as regras da experiência, for normal e previsível que
a essa conduta se siga aquele resultado. E se assim for, é porque aquela conduta foi adequada ou é
idónea a causar aquele resultado. A conduta não será causa adequada se o resultado for anormal e
imprevisível.

Mas temos de ir um pouco mais longe: como é que se afere a causalidade adequada? Não é a
posteriori, mas segundo um juízo de prognose póstuma ou juízo ex ante (“prognósticos só no fim do
jogo”): esta prognose é póstuma porque tudo já aconteceu e é de prognose porque o juiz vai ter de se
colocar no momento da prática dos factos e, sabendo o que o agente sabia, conhecendo o que o agente
conhecia ou devia conhecer fazer esta pergunta: é normal e previsível que a esta conduta se siga este
resultado? Se a resposta for sim é porque a conduta é causa adequada do resultado. Este é o critério para
se decidir se uma conduta foi ou não causa de um resultado.

• EXEMPLO 1: Imaginemos que A dá uma facada ligeira na mão de B e B morre. No entanto, B é


hemofílico, daí ter morrido. Assim, ou o agente sabia que B era hemofílico e era normal e previsível
que de uma pequena facada sucedesse a morte ou o agente não sabia que B era hemofílico e esta
consequência é anormal e imprevisível. Assim, o Dr. Figueiredo Dias fala sempre do conhecimento
ou não pelo agente das condições da vítima.

• EXEMPLO 2: É normal e previsível que em dias de chuva haja lençóis de água na estrada e que
ocorram acidentes de viação, sendo que uma pessoa, mesmo que diligente, atropele e mate
alguém? Sim. E este resultado é imputável a esta conduta? Segundo esta teoria, diríamos que sim.

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• EXEMPLO 3: se dois trabalhadores da construção civil estiverem a trabalhar e um vir que um tijolo
vai cair na cabeça do outro e o empurrar para ele não se magoar gravemente e o outro acabar
por fazer um corte numa perna, nós podemos imputar aquela conduta àquele resultado? Parece
um pouco extremo: precisamos de uma correção a esta teoria e é daí que vai surgir a teoria da
imputação objetiva ou conexão do risco (o Dr. Figueiredo Dias prefere a designação de “conexão
do risco”).

• EXEMPLO 4 (crítica): Há casos em que não vamos imputar um resultado a uma certa conduta. Por
exemplo: é normal e previsível que um medicamento tenha efeitos secundários. Mas aceitamos
que, em nome do benefício que os medicamentos nos trazem, alguém sofra o efeito secundário.
Há resultados a que chegaríamos através desta teoria que precisam de ser corrigidos ao nível da
imputação, porque apesar da conduta causar o resultado, não vamos imputar o resultado à
conduta e estas correções são feitas pela teoria da conexão de risco.

Quando é que a intervenção de um terceiro interrompe o nexo de causalidade?


Quando essa intervenção de terceiro for anormal e imprevisível – na maioria dos casos, a
intervenção de um terceiro não é normal e previsível. No exemplo da bebida e da sopa envenenada, não
seria normal e previsível que a empregada de mesa matasse B com um tiro: aqui interrompe-se o nexo de
causalidade.
Por exemplo: O senhor A sofreu um esfaqueamento pelo senhor B e chama-se a ambulância. A
ambulância apanha um engarrafamento que faz com que o percurso que normalmente era feito em 10
minutos, demorasse 3 horas. Assim, em 10 minutos, o senhor A podia ter sido salvo. Pergunta-se aqui que,
tendo em conta que se estava em hora de ponta, este engarrafamento era normal e previsível ou anormal
e imprevisível? Porque se fosse normal, o senhor B seria condenado por homicídio consumado. Caso não
fosse normal e previsível, então aqui tinha-se uma interrupção do nexo de causalidade e o senhor B
apenas era condenado por homicídio tentado.

 Quando se disse anteriormente que a doutrina defende a teoria da causalidade adequada fala-se
aqui num afloramento legal da teoria da causalidade adequada. Esta teoria não está consagrada
no nosso código, mas há um artigo que parece indiciar que é essa a teoria seguida por nós –
art.10º CP. Não temos nenhuma norma no código que nos dê a teoria da causalidade. Fala-se
assim num critério de omissão. Por exemplo: imaginemos que uma mãe deixa de alimentar um
bebé e o bebé morre. Ela cometeu um crime de homicídio? Sim, crime de homicídio por omissão.
Este art.10º CP equipara estas omissões às ações. Quando alguém tem o dever de impedir um
resultado, a omissão desse dever de garante é equiparável à ação adequada a produzi-lo.

C. TEORIA DA IMPUTAÇÃO OBJETIVA OU CONEXÃO DE RISCO


O resultado deve ser imputável à ação quando esta tenha criado ou aumentado o risco proibido para o
bem jurídico protegido e esse risco se tenha materializado num resultado típico.
O que se acaba de dizer pode ser dividido em 2 partes: (1) é preciso que a conduta tenha criado ou
aumentado um risco proibido (se o risco não for proibido, não há imputação do resultado à conduta) e
(2) é preciso que esse risco se materialize num resultado típico, ou seja, um resultado previsto num tipo
legal de crime.

1) É preciso que a conduta tenha criado ou aumentado um risco proibido – o que é criar um risco
proibido? O resultado não será imputado à conduta sempre que o risco criado é tido como
permitido pela ordem jurídica. Isto acontece ou porque a conduta diminuiu o perigo em que o
bem jurídico já incorria (exemplo dos trabalhadores da construção civil) ou porque há riscos que
se aceitam (há atividades que sabemos que são perigosas mas que aceitamos que elas possam
decorrer – uso de explosivos em pedreiras, o consumo de medicamentos, circulação rodoviária,
uso de bens geneticamente modificados).

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 Figueiredo Dias fala ainda de outros casos que são os casos de co-atuação da vítima ou
de terceiro. Por exemplo, quando alguém que sabe que o namorado tem o vírus do HIV
e mantém com ele relações sexuais desprotegidas – foi a co-atuação da vítima que levou
à produção daquele resultado. Assim, não se pode imputar aquele resultado a esta
conduta. Se assim não fosse estávamos num estado paternalista, uma vez que o estado
não nos dava liberdade para tomar as nossas próprias escolhas.

2) É preciso que esse risco se materialize num resultado típico, ou seja, um resultado previsto num
tipo legal de crime – temos aqui um risco não permitido que se materializa num resultado típico
(questão dos comportamentos lícitos alternativos – não confundir com causalidade virtual).
Os comportamentos lícitos alternativos correspondem àquelas situações em que se o
agente tivesse tomado uma conduta adequada ao direito, conduta lícita, isso não impediria o
resultado, o resultado sempre se teria produzido. Por exemplo: Havia um senhor que tinha uma
empresa que produzia pincéis e o material que se utilizava era a barba das cabras e estava previsto
na legislação que esta matéria prima tinha de ser tratada, desinfetada. Só que aquele pêlo de
cabra tinha um bacilo que era resistente ao tratamento que estava previsto para aquelas
situações e o senhor não tratava a matéria prima. As senhoras que faziam os pincéis morreram
por causa do tal bacilo, mas se ele tivesse dado a ordem para que o tratamento fosse feito, elas
iam morrer na mesma, porque ele era resistente. Assim, ele pode ser condenado por homicídio
consumado? Neste caso, ainda que o senhor cumprisse a norma, a norma não evitaria o resultado,
pelo que se impôs a seguinte questão: se o próprio direito não é capaz de controlar aquele
resultado vai-se responsabilizar aquele agente? A doutrina tem respondido de forma negativa,
no sentido em que o resultado não vai ser imputado àquela conduta.

 Para que a conexão de risco se dê como estabelecida temos de fundar a imputação do resultado
da seguinte forma: é preciso que o perigo que se concretizou no resultado seja um daqueles em
vista dos quais a ação foi proibida. No fundo, o que se quer dizer é que: o perigo que se
materializou no resultado tem de corresponder ao perigo que a norma quis proibir. Se ele não é
um daqueles que a norma quis evitar, então não há imputação do resultado à conduta.

• EXEMPLO1: é proibido circular a mais de 50km/h porque se está perto de uma passadeira.
O que se pretende com esta proibição é proteger os peões que estão a passar. Imaginemos
que o senhor A iniciou uma manobra de ultrapassagem a mais de 50 Km/h e o senhor B,
não se apercebendo da ultrapassagem, virou para a esquerda, batendo no carro do senhor
A, o que levou à morte do pendura. O risco que se materializou não é o risco que se
pretendia prevenir com aquela proibição porque só se exige a diminuição da velocidade
por causa da aproximação da passadeira, logo, o resultado não é imputável à conduta
porque não cabia no âmbito de proteção da norma.

• EXEMPLO2: sabemos que quando o sinal de trânsito está vermelho, não se pode passar.
Imaginemos que o senhor A avança no sinal vermelho e, ao mesmo tempo, o senhor, que
tinha nitidamente a intenção de se suicidar, apercebe-se que o senhor A não ia parar e
atira-se para a frente do carro. Poderemos imputar este resultado à conduta do senhor
A? Não, porque o risco que se materializou não é o risco que se pretendia prevenir com
aquela proibição porque só se exige que se pare no sinal vermelho para que os peões
possam passar em segurança mas, neste caso, o senhor B nitidamente era suicida, logo,
o resultado não é imputável à conduta porque não cabia no âmbito de proteção da
norma.

 O Dr. Figueiredo Dias fala dos casos de hétero e auto colocação em risco. A auto colocação em
risco dolosa existiria se:

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RAQUEL SERPA SILVEIRA | 2018/2019
• Por exemplo: A e B vão, por aposta, numa corrida perigosa de motos na estrada e B, em
virtude de um erro de condução, perde o domínio do veículo e sofre lesões graves. Este
resultado pode ser imputado à conduta de A? Não, porque B é que se auto colocou em
risco.
• Agora imaginemos a mesma situação só que é B que vai a conduzir e é A que diz que ele
não tem coragem para fazer uma corrida com os carros ao lado – se aqui morre B, temos
um caso de hétero colocação em risco.
• Quanto a esta matéria, usa-se muito o exemplo paradigmático do barqueiro. Um
passageiro quer atravessar para o outro lado, mas o barqueiro diz que não estão
condições atmosféricas apropriadas para o fazer, mas o passageiro insiste que quer passar
o rio. O passageiro morre. O resultado é imputado ao barqueiro? Não, porque é um caso
de auto colocação em risco.

 Comportamentos alternativos ilícitos e causalidade virtual


Anteriormente foi referido que não pode confundir os comportamentos lícitos alternativos com a
causalidade virtual. No caso do comportamento ilícito alternativo, o que vamos ver é: se o agente tivesse
atuado de acordo com a norma, ele podia ter evitado aquele resultado? Se não, então não há imputação
do resultado àquela conduta, porque nem o próprio direito conseguia evitar este resultado.

Na causalidade hipotética ou causalidade virtual o que está em causa é o resultado ser produzido
por uma atuação independente do agente, ou seja, uma ação de terceiro ou por um acontecimento
natural. Por exemplo: se A não tivesse feito explodir um avião para matar o passageiro B, o avião tinha
caído e B tinha morrida na mesma, por falta de combustível.
Portanto, nos casos de causalidade virtual há efetivamente imputação do resultado àquela
conduta porque ela não é relevante, nem nunca poderia ser porque se admitíssemos a sua relevância
estaríamos a admitir que, em última instância, nunca se poderia punir o crime de homicídio, uma vez que
vamos todos morrer um dia. Assim, não é por se provar que o resultado se iria sempre produzir por outro
qualquer fator que se exclui a imputação do resultado àquela conduta – o agente é efetivamente culpado
porque produziu o facto ilícito.

RESPONSABILIDADE DAS PESSOAS COLETIVAS


A previsão legal está pensada para um autor individual. O paradigma penal que temos hoje tem
uma longa tradição – é o paradigma de que “Caim matou Abel”: um exemplo de um homicídio, de uma
pessoa que mata a outra e é essa a base do pensamento penal.
Em regra, o autor dos crimes é uma pessoa física, singular. De acordo com este paradigma, do
autor ser um ser humano de carne e osso, é que o Direito Penal foi paulatinamente construído. E é isso
que vemos no art.11º/1 CP (“responsabilidade das pessoas singulares e coletivas”) – em regra, só pessoas
físicas e singulares podem cometer crimes. É o princípio de que “as sociedades não podem cometer
crimes, as pessoas coletivas não podem cometer crimes”. Há, em todo o caso, um largo desvio a esta
regra, de acordo com o qual, certos crimes podem ser cometidos por entes coletivos: fala-se aqui no
problema da responsabilidade penal das pessoas coletivas.
No direito penal discute-se muito a possibilidade de pessoas coletivas poderem ser agentes de
crimes. Durante muitos séculos, o chamado “direito continental” perdurou e com ele, a ideia de que só
as pessoas físicas podem cometer crimes, sendo que as pessoas coletivas, por definição, não seriam
agentes de crimes e, por isso, se um crime fosse cometido em nome de uma pessoa coletiva, para servir
os seus propósitos, isso não significava que não havia crime, mas sim que esse crime seria atribuído à
pessoa individual que atuou no interesse da pessoa coletiva. Esta limitação era sustentada em 2
argumentos dogmáticos:

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• Incapacidade de ação: só há crime se houver uma omissão ou uma ação e se quem atuou,
pela positiva ou negativa, puder ser censurado pelo o que fez. E aquilo a que se objetava era
a impossibilidade de as pessoas coletivas agirem, uma vez que quem agia eram as pessoas
singulares em nome delas.
• Incapacidade de culpa: por outro lado, também se dizia que a pessoa coletiva é incapaz de
culpa, porque sendo a culpa uma censura ética dirigida à personalidade da pessoa que
cometeu o crime, a pessoa coletiva é desprovida de alma, de espírito e não se pode lhe dirigir
um juízo de censura.

Houve, em todo o caso, um movimento político-criminal na europa ocidental, a partir dos anos
70, que começou a arrogar a possibilidade das pessoas coletivas responderem criminalmente pelos crimes
praticados no seu interesse – isto em função dos tipos de criminalidade que surgiu na década de 70.
Percebeu-se que grande parte dos chamados crimes económicos, no âmbito do direito penal
secundário, era praticada na órbita das empresas, na órbita empresarial (no seio das empresas, interesses
das empresas, pessoas no âmbito das empresas). No fundo, os beneficiários desses atos ficavam impunes.
Sendo que muitas vezes era muito difícil de apurar responsabilidades individuais concretas, uma vez que
as empesas se organizam de forma hierárquica e as pessoas trabalham em equipa – o que gera uma
dispersão das pessoas – e, muitas vezes, a complexidade da empresa e a forma como ela está estruturada
dificultam a aferição e a imputação de responsabilidades individuais.
Então, o que poderia incentivar a prevenção da prática de crimes no âmbito das empresas seria a
ideia de paulatinamente admitir a possibilidade de as empresas também poderem ser punidas pela prática
de crimes, também poderem ser responsabilizadas. Claro que não há penas de prisão para as empresas,
mas multas, proibição de receber subsídios, etc. Este movimento levou o legislador de vários países, entre
os quais, Portugal, a admitirem a chamada responsabilidade penal das pessoas coletivas. Numa 1ª fase,
era no âmbito do direito penal secundário ou direto penal económico que se admitia a responsabilidade
penal das pessoas coletivas.
Na revisão de 2007 do CP foi dado um passo muito importante no direito penal português:
alargou-se a responsabilização das pessoas coletivas a vários crimes referidos no art.11º CP – atualmente,
desde 2007, admite-se a responsabilização penal de entes coletivos por um conjunto significativo de
crimes tipificados no CP.
Quando um determinado crime é cometido, pode ter como autor, em regra, uma pessoa
individual, mas também poderá ter como autor, se a lei o admitir, uma pessoa coletiva.
Por exemplo: o crime de homicídio não pode ser cometido por pessoas coletivas, porque a lei não o prevê
– caso do incêndio de Pedrógão. Seriam responsabilizadas por homicídios negligentes muitas pessoas,
algumas ligadas a empresas como a EDP e as empresas não foram responsabilizadas, exatamente pelo
facto de este não ser um dos crimes em que se admite a responsabilidade das pessoas coletivas. Por outro
lado, o Benfica está acusado de corrupção – o art.11º CP prevê a possibilidade das pessoas coletivas
cometerem crimes de corrupção.
Há um problema muito difícil e importante neste âmbito, que é o de saber em que termos é que o facto
criminoso é imputado à pessoa coletiva. Há aqui 2 grandes modelos:

 Modelo da hétero-responsabilidade: aquele que, do ponto de vista do Dr. Nuno Brandão, está
consagrado no art.11º CP: a pessoa coletiva responde em função do facto criminoso praticado
por uma pessoa que a ela esteja vinculada, desde que esse facto seja praticado no seu interesse.
Há aqui um problema de saber se isto não viola o princípio da culpa, que proíbe a
responsabilidade pelo facto de outrem. E é por via desse problema que surgiram as chamadas
teorias da auto-responsabilidade.

 Modelo de auto-responsabilidade: defende que o que se censuraria na pessoa coletiva e o que


gera a sua responsabilidade penal é sobretudo o facto de não se ter estruturado de uma forma
que prevenisse eficientemente a prática de crimes no seu seio ou a partir dela. O que está em
causa, nesta visão das coisas, é um defeito de organização, um vício de organização. A empresa

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tem um dever de se estruturar de uma maneira tal que o seu próprio funcionamento não seja
propício à prática de crimes e o crime aparece aqui quase como um pretexto – é aquilo que
dispara a responsabilidade. Esta questão está regulada no art.11º/2 CP e prevê-se o seguinte: as
pessoas coletivas são responsáveis pelos crimes previstos neste código quando são praticados em
seu nome e em seu interesse por pessoas que nela ocupem uma posição e liderança. Isto é, quando
o facto criminoso seja praticado por alguém que, no seio da pessoa coletiva, tenha uma posição
de liderança, por estar numa posição de chefia. Então há aqui uma teoria da identificação: a
pessoa coletiva age através dos seus órgãos e, assim, sempre que alguém que está numa posição
de supremacia ou os seus órgãos agem, é como se fosse a pessoa coletiva a agir.

 No entanto, o art.11º/2/b) CP fala-nos de outros casos: a pessoa coletiva pode responder pelo
facto criminoso de alguém que atuou em virtude de uma violação dos deveres de vigilância. Neste
sentido, a pessoa coletiva responde por um seu trabalhador ou por alguém que integra a sua
estrutura num plano inferior, se esse facto for propiciado por uma falta de vigilância ou controlo.
Por exemplo: Caso do Benfica – um ex assessor do Benfica está acusado de ter aceitado um
suborno – crime de corrupção. A questão que se põe aqui é se esta pessoa coletiva pode ou não
responder pelo crime de corrupção. Aquele indivíduo tinha uma posição de liderança? Se vier a
ser concluído que sim, então, a pessoa pode responder nos termos do art.11º/2/a) CP, mas
mesmo que não seja uma posição de liderança, pode, ainda assim, a pessoa coletiva responder
pela prática daquele crime, segundo o art.11º/2/b) CP. No entanto, em nenhuma das alíneas se
prescinde da identificação de um vínculo entre a pessoa singular e a pessoa coletiva.

 É neste contexto que apareceu a criação de programas de compliance: programas de prevenção


de infrações penais e contraordenacionais (contexto de auto-responsabilidade). Grande parte da
discussão doutrinal sobre a responsabilidade penal das pessoas coletivas é travada em torno
destes programas.

B. TIPO SUBJETIVO DE ILÍCITO (CONTINUAÇÃO TIPO INCRIMINADOR)

Este tipo subjetivo de ilícito não existia nem na conceção clássica nem na conceção neoclássica, uma vez
que nestas apenas se admitia o tipo objetivo de ilícito sendo que, nesta última, se começou a admitir
elementos subjetivos. A partir do finalismo, a presença de elementos subjetivos desde a própria ação é
uma constante para quem adota o conceito final de ação: o ilícito é um acontecimento pessoal, que está
necessariamente ligado à pessoa do sujeito.
Assim, desde o princípio, o comportamento já contém ou o dolo ou a negligência – há uma unidade
subjetiva de sentido logo no momento dogmático. Por isso, na categoria do tipo de ilícito há uma
bipartição: tipo de ilícito (subjetivo) doloso e tipo de ilícito negligente. Para efeitos pedagógicos, estamos
a tratar do tipo de ilícito doloso.

 O tipo de ilícito subjetivo doloso

Há, por parte do agente, o conhecimento e a vontade de realizar o tipo de ilícito. Há a intenção
de fazer uma ação que é proibida pelo tipo de ilícito objetivo.
Em geral, o dolo não se esgota na sua dimensão de dolo-tipo. O dolo tem também um novo aparecimento
na categoria da culpa. Tem de existir um dolo do tipo e tem também de existir também uma conduta
dolosa. Para haver crime doloso tem de haver tipo de ilícito doloso e conduta dolosa, o que significa que
o que se diz do dolo não esgota aquilo que o dolo é.
O dolo é uma realidade complexa que releva quer ao nível do tipo de ilícito, quer ao nível do tipo
de culpa. Por exemplo: o crime de homicídio é doloso se o agente teve a intenção de o fazer, mas exige-se
também que essa representação de querer matar uma pessoa reflita uma atitude da parte do sujeito de
contrariedade em relação ao bem jurídico-penal – aqui há ilícito doloso, conduta dolosa e,
consequentemente, um crime doloso. Do ponto de vista do ilícito típico, existe uma violação do dever de
cuidado em relação a um determinado bem jurídico.

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Já no caso da negligência, tem de haver uma atitude interior, descuidada e leviana em relação ao
bem jurídico. Por exemplo: Imaginemos que o senhor A ia a andar na rua, armado, porque é polícia. De
repente, vê um homem a correr muito rápido na sua direção e disparou sobre esse homem, senhor B. Veio
depois a provar-se que a pessoa que ele tomou como um agressor era apenas um seu amigo antigo de
escola que vinha a correr para o abraçar. O senhor A mostrou com o tiro que desrespeita o bem jurídico
de vida? Não, porque ele achava que ia ser atacado, ele estava apenas a tentar defender-se. Claro que se
poderia punir o senhor A por crime negligente (ele poderia ter esperado um pouco mais, ter visto melhor).
Aqui há dolo no tipo, mas, no entanto, não há conduta dolosa. Isto é uma incongruência, mas, neste
quadro em que estamos a trabalhar, ainda há casos de incongruência entre o tipo de dolo e a conduta.

Há outros elementos subjetivos do tipo para além do dolo: os normativistas apesar de


defenderem o tipo objetivo, não podiam deixar de admitir alguns elementos subjetivos.
O tipo de ilícito doloso é um tipo de ilícito mais grave, mais desvalioso do que o tipo de ilícito
negligente. Assim, de acordo com o art.13º CP, só é punível o facto praticado com dolo e nos casos que
são previstos na lei, com negligência. Por exemplo: caso do homicídio – como na lei não diz nada sobre o
dolo ou a negligência, ficamos a saber que, neste caso, está consagrado o crime doloso. Mas isso quer
dizer que não se contempla o crime negligente? Não. O art.137º CP fala-nos expressamente deste caso:
quem cometer um crime de homicídio negligente, será punido com pena de prisão até 3 anos ou pena de
multa. Mas a maioria dos crimes dolosos não tem correspondência no tipo de ilícito negligente.

 O MOMENTO INTELECTUAL DO DOLO/ O CONHECIMENTO DOS ELEMENTOS DA


FACTUALIDADE TÍPICA

O dolo é o conhecimento e vontade de realização do tipo ilícito. É, por um lado, conhecimento e


representação e, por outro lado, vontade e querer. E por isso há 2 elementos: elemento intelectual e
elemento volitivo.

1. MOMENTO/ ELEMENTO INTELECTUAL


Dentro do elemento intelectual, o que é que temos? Temos o conhecimento do agente. O agente tem de
conhecer as circunstâncias do facto. Ou seja, “o agente tem de conhecer todos os elementos da
factualidade típica desse crime”, nas palavras do Dr. Eduardo Correia.
Que elementos são estes? Elementos que o legislador utilizou para descrever a conduta proibida
– todos e cada um dos elementos que o legislador utiliza para compor a descrição da conduta
censurável. Se disséssemos elementos de facto, pensaríamos que, no tipo subjetivo só haveria elementos
descritivos. Contudo, há também elementos normativos, isto é, elementos cuja compreensão só se
alcança através de uma certa valoração. Por exemplo: existe um crime que trata de falsificação de
documentos; quando se trata do consentimento, nem sempre o facto do titular do bem ter dado o seu
consentimento para que se lese o bem, justifica esse facto. Muitas vezes, o elemento normativo também
tem a ver com o apelo a valores – por exemplo: o legislador diz “o facto consentido não pode ser contrário
aos bons costumes” – o que é que se considera, aqui, bons costumes?

 Há aqui um critério fundamental que tem de se ter em mente: por que é que é preciso que o
agente tenha conhecimento da factualidade típica para que haja dolo?
O dolo não implica a consciência da ilicitude do facto. Este dolo é neutral, é um dolo de quem representa
e quer. Mas isso não implica que a pessoa tenha a consciência de que aquilo que está a fazer é um facto
criminoso. De qualquer modo, o que isso quer significar é o facto de o agente ter de conhecer todos os
elementos e perceber o seu significado, ou seja, conhecer os elementos que lhe permitam que a sua
consciência dos valores se oriente no caminho de entender que o que está prestes a fazer é um crime.
Aqueles elementos deveriam ser capazes de levar o agente à conclusão de que aquele facto que se
pretende praticar é um facto crime. Se lhe faltar um elemento, por muito que o agente esteja sintonizado
com os valores da sociedade, nunca lhe passará pela cabeça que aquela conduta é um crime.

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Por exemplo: o senhor A põe açúcar no café do senhor B. Ele representou e quis pôr açúcar no café do
senhor B. Ele percebeu perfeitamente o que estava a fazer. Agora imaginemos que o senhor A pensa que
está a pôr açúcar no café do senhor B, mas estava a pôr veneno (que estava dentro do açucareiro). Ele
podia, com o que ele sabia, com os conhecimentos que tinha, pensar que aquele facto era um crime? Não,
porque ele efetivamente achava que o veneno era açúcar. B morre. O senhor A teve dolo neste crime?
Neste caso concreto, para que houvesse dolo era preciso representar que aquilo que ele estava a colocar
no café do amigo era veneno e não açúcar.

 Quando nós dizemos que o agente tem de ter conhecimento, que tem de representar, isso
significa que o agente tem de ter uma consciência atual, explícita de tudo? Ou basta que tenha
uma consciência clara, refletida? Não é preciso haver uma consciência tão nítida de cada uma das
pequenas coisas, é preciso apenas uma consciência nítida do acontecimento como um todo,
globalmente, isto é, é preciso a consciência dos valores que estão em causa, no sentido de saber
qual é a conotação ético-jurídica daquela conduta.

 Erros que excluem o dolo do agente e erros de execução


Quando não se faz a representação de todos os elementos, deixa de haver dolo. Quando falta algum
conhecimento e/ou algum elemento, de alguma circunstância do facto, então o momento intelectual do
dolo não está preenchido e, por isso, o agente não atua com dolo. A este fenómeno chama-se o erro.
O que é o erro? No exemplo do senhor A que colocou veneno no café do senhor B, pensando que
era açúcar, temos um erro. No entanto, este erro é incompatível com a atribuição do dolo. Se o tipo é a
representação da vontade de realizar aquela factualidade típica, mas aquilo que se representa numa dada
conduta não é aquela factualidade típica, então, o agente está em erro.

ERROS QUE EXCLUEM O DOLO DO AGENTE: quais são os erros do conhecimento que faltam no elemento
intelectual do dolo, de modo a que tenha de se dizer que não há ação dolosa? O que se segue são os erros
que excluem o dolo do agente. O art.16º/1 CP fala-nos destes casos, ressalvando a punibilidade da
negligência, nos termos gerais.

 Erro sobre a factualidade típica (sobre o elemento típico incriminador que exclui o dolo): o
senhor A vai à caça de coelhos. A certa altura, o senhor A vê um arbusto a mexer-se e pensa
que é um coelho. Na verdade, era uma pessoa que estava na floresta e que acabou por morrer.
A família da vítima vai a tribunal, contra o senhor A. O senhor A diz que o que representou e
quis fazer era matar um coelho e não uma pessoa. Era evidente que queria matar coelhos e
não pessoas. No entanto, quem morreu foi efetivamente uma pessoa. Quid iuris? Se o senhor
A não representou o elemento da factualidade típica do crime de homicídio que é a vida de
outra pessoa e, no art.171º CP, o que se prevê é matar outra pessoa, então, o juiz vai dizer que
não está completo o elemento intelectual, ou seja, ele não representou um elemento essencial
da factualidade do dolo e, por isso, é excluído o dolo.
Claro que este resultado da morte é imputado à conduta do senhor A. Assim, recorre-se ao
artigo 16º/3 CP, uma vez que pode ter acontecido que o agente atuou com negligência. Isto
não significa que não se vai proibir esta conduta, apenas significa que a conduta não foi dolosa.

• Casos especiais de erro sobre a factualidade típica:


• Erro sobre o objeto: no caso que vimos o agente não tinha a intenção de praticar o
crime. No entanto, nos casos que iremos ver agora, havia esta intenção, havia dolo.
EXEMPLO: suponhamos que o senhor A anda há muito tempo a ver uma jóia numa
ourivesaria e não tem dinheiro para a comprar e, a dada altura, resolve furtar a jóia.
Acontece que o senhor A pensava que aquela jóia era muito valiosa, mas, mais
tarde, vem a descobrir que não valia assim tanto, não era nada de especial. Há aqui
um erro: este senhor achava que estava a furtar uma coisa de alto valor e afinal o
que furtou efetivamente foi uma coisa no valor de 10 euros. Assim, temos de saber

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que há furtos simples e furtos qualificados. O senhor A representou uma peça de
alto valor (neste caso, é um furto qualificado), mas o que efetivamente furtou foi
uma peça de baixo valor (neste caso, temos um furto simples). Neste caso, o senhor
A errou sobre uma qualidade de uma coisa, mas ele tinha e sempre teve a intenção
de a furtar.
Aqui exclui-se o dolo? Claro que não, não faria sentido porque, na verdade, ele
sempre existiu desde o início. Este caso é especial porque se deve atender ao relevo
do erro: ele efetivamente errou, mas isso não altera em nada a sua ação, porque a
intenção sempre esteve lá. O que ele efetivamente queria era furtar uma coisa de
alto valor, sendo que incorreria em furto qualificado. No entanto, como ele furtou
uma coisa de baixo valor, ele apenas incorre em furto simples.
Este é um erro sobre o objeto. Aqui houve dolo no furto simples, uma vez que
quem quer o mais, quer o menos. Assim, ele vai ser punido pelo furto simples. Se,
por acaso, o caso fosse ao contrário e o agente tivesse a intenção de furtar uma
peça mais barata e acabasse por furtar uma peça valiosa – há aqui um problema,
uma vez que não há identidade típica do objeto (quem quer o menos, não quer,
necessariamente, o mais).

• Erro sobre a identidade do objeto ou da pessoa: vamos imaginar que o senhor A


quer matar o senhor B, mas enganou-se e matou um senhor muito parecido – temos
um erro sobre a identidade do objeto.
Como é que se resolve um caso destes? O objeto é sempre uma pessoa,
independentemente de ser aquela pessoa que o agente queria ou não. Aqui o que
a ordem jurídica diz é que o agente matou uma pessoa e isso basta para que aquela
conduta seja censurável – identidade típica do objeto da ação. O dolo está e sempre
esteve lá, sendo que o erro não interfere em nada.
Surge uma questão: há identidade típica entre o objeto que eu projetei atingir e o
objeto que eu efetivamente atingi? Quando não haja identidade típica no objeto
atingido, as opiniões divergem (casos em que o agente projetava um tipo
qualificado e lhe saiu um tipo simples, por exemplo): há autores que dizem que
quem quer o mais, quer o menos (se seria punido pelo tipo qualificado, pode ser
punido pelo tipo simples).

• Erros de execução: vamos supor que lado a lado iam o senhor A e o senhor B. Sem
que eles saibam, atrás deles vem o senhor C, que é inimigo do senhor A. Ele resolve
matar o senhor A – homicídio simples consumado. Mas agora vamos supor que o
senhor C, querendo matar o senhor A, dispara e acerta no senhor B, matando-o.
Neste caso, o senhor C não se engana na identidade da pessoa, ele simplesmente
disparou mal e acertou no senhor B – aqui o erro deve-se a uma deficiente
execução.
Exemplo 2: também pode acontecer que A quer matar B. Imaginemos que B está a
passear o cão e A tem a intenção de disparar sobre ele, mas, por falta de pontaria,
dispara sobre o cão. Neste caso, também não há erro sobre o objeto: temos um
erro de execução. Isto é uma tentativa de homicídio da pessoa de B, em concurso
com um dano negligente (a morte do cão).

Há autores que dizem que no erro por execução, o agente falha o alvo, mas acaba por acertar noutra
pessoa, o que é um azar, uma casualidade porque quando ele disparou podia ter acertado num poste, por
exemplo, sendo apenas punido por tentativa. O Dr. Figueiredo Dias diz que, mesmo no caso de haver
identificação típica do objeto, mas em que o que está em causa é uma casualidade (como neste caso),
deve tratar-se este erro como se não houvesse identificação típica do objeto. Este autor defende que
não se vai culpar o agente por uma questão de azar, pela casualidade de ter acertado noutra pessoa,

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porque o problema foi a pontaria, uma vez que ele poderia até ter acertado num poste. Assim, neste caso,
o que temos é uma condenação por tentativa de homicídio de A e homicídio negligente de B.

• Erro sobre o processo causal: o agente leva a cabo determinado facto, de acordo
com certo facto, mas o resultado que ele deseja vem a produzir-se, mas de forma
diferente do que ele pretendia no início, ou seja, que inicialmente projetou. Nestas
situações, o agente consegue o resultado pretendido, só que o modo de o resultado
se projetar é diferente. EXEMPLO: A quer matar B, atirando-o da ponte para que ele
morra de afogamento, mas na queda, ele bate numa estrutura da ponte de modo a
que B morre por traumatismo craniano. Desta forma, B morreu, mas não de
afogamento, como A inicialmente tinha projetado. Será que esta aqui em causa o
homicídio doloso consumado ou não? Ou seja, este desvio do processo causal em
relação ao que o agente projetou tem ou não relevância no sentido da exclusão do
dolo?

Crimes de execução livre e crimes de execução vinculada


Há que distinguir crime de execução livre – o tipo legal não descreve o processo
causal, o agente é livre e o resultado é típico independente do modo com que foi executado, (por exemplo,
não há só uma forma de matar) e crime execução vinculada – o legislador circunscreve a relevância típica
a certas formas de realizar a conduta típica, ou seja, o agente tem de estar vinculado quanto à forma
como atinge o resultado (por exemplo, crime de burla – art.217º CP).
 Quando o legislador tipifica um crime segundo o modelo da execução vinculada, se o agente
se equivocar quanto ao processo causal, há aqui um puro erro sobre a factualidade típica. Nos crimes de
execução vinculada, que são aqueles em que o processo causal faz parte do tipo, um equívoco do agente
exclui o dolo.
Por exemplo: um caso de burla em que um dono de um stand de automóveis que vai a Alemanha
e traz um conjunto de carros para vender em Portugal e quando cá chega ele altera a quilometragem do
carro, fazendo-o parecer como um carro quase novo. Assim, ele consegue vender a terceiros um bem que
não tem as características que ele diz que tem e que vale claramente menos a título de preço. Agora
imaginemos a mesma situação só que é um empregado que vende aquele automóvel e ele não sabia da
burla – o dono do stand pode responder por burla, mas o empregado não porque desconhece o processo
causal e, por isso, atua sem dolo.

 No caso dos crimes de execução livre (homicídio, atentado à integridade física simples), à
partida dir-se-ia que o erro sobre o processo causal também revelaria. Mas é muito difícil de pensar num
caso em que o agente produz um facto típico e que depois o dolo seja excluído.
Por exemplo: o tal caso de atirar alguém da ponte abaixo – embora ele quisesse que a vítima
morresse de afogamento, quando alguém atira alguém da ponte abaixo, sabe os riscos que aquele ato
acarreta. Assim, todos estes riscos são inerentes à conduta que ele está a praticar. Nessa medida, o facto
de ele morrer de uma forma diferente daquela que ele previu não exclui o dolo porque ele representou o
risco em que queria colocar a vítima e concretizou-o. Assim, em via de regra, nestes crimes de execução
livre, este equívoco sobre o processo causal não exclui o dolo.

• Dolos generalis: estão em causa situações em o agente planeia que o resultado


se obtenha de uma certa maneira, mas, sem que ele se aperceba, o resultado
não se produz à 1ª, mas sim à 2ª, num outro momento, em que ele achava que o
resultado já tinha ocorrido. Assim, neste segundo momento, ele incorre em erro.
EXEMPLO: A tenta matar B, dando-lhe o tiro, e pratica o facto. Pensando que B
está morta, enterra-a. Contudo, B ainda tinha morrido, só quando a enterra é que
ela, de facto, morre, ou seja, só a acaba por matar quando a enterra. Assim,
quando ele atuou com dolo querendo a morte da pessoa, não a conseguiu matar,
no entanto, depois, já sem vontade de a matar, mata-a numa situação em que

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ela estava viva. O que se pergunta é se este desfasamento entre o que o agente
queria e a realidade será idóneo a excluir o dolo.

Será que este erro é motivo suficiente para excluir dolo?


Há uma boa parte da doutrina que entende que o dolo abrange toda a situação do
início ao fim, independentemente de haver situações intermédias e entende que, nessas situações, o
agente responde por um crime doloso na forma consumada.
Uma outra parte da doutrina, como Figueiredo Dias, entende que as coisas não
devem ser postas nesses termos tão diretos e que mais uma vez tem de se apelar à teoria da conexão do
risco da imputação objetiva – se de facto aquilo que levou, efetivamente, à morte fosse uma contingência,
um perigo que, à partida já fizesse parte do plano do agente, i.e., se o que ele queria fazer já englobava
aquele perigo que acabou por desencadear a morte, já englobava os riscos possíveis: responde por crime
doloso consumado. Por outro lado, naqueles casos em que isto não acontece, esta corrente defende que
se deve destrinçar:
 Relativamente àquilo que o agente queria fazer, mas não conseguiu temos um crime doloso em
forma tentada.
 Em relação ao meio que levou efetivamente à morte podemos ter um crime de homicídio em
forma negligente – por exemplo, aquele exemplo do homem que enterra o outro, por achar que
ele já tinha morrido com o tiro.
 Estes casos são o inverso, são simétricos de uma situação de casos de tentativa impossível –
situações em que se incluem ações que incidem sobre um objeto inexistente. Por exemplo:
quando se tenta matar um morto – isto não é possível.

• Erro sobre as proibições legais: este tipo de erro convive com uma outra espécie
de erro que é o erro sobre a ilicitude, consagrado no art.17º CP.
Este erro sobre a ilicitude prende-se com a questão de estarmos perante situações
em que há uma dissonância da valoração que a ordem jurídica penal faz de um
certo comportamento e a valoração que o agente faz. Ou seja, há uma
desconformidade entre a forma como o ordenamento jurídico valora um certo facto
e a forma como a agente valora esse facto. São casos em que o agente representa
de forma perfeita e completa os elementos fácticos, ou melhor, os elementos
típicos do facto. Quer no erro sobre a ilicitude, quer no erro sobre a factualidade
típica isto acontece – o agente tem consciência plena de todos os factos relevantes
para o caso. A questão é que embora ele saiba tudo aquilo que estava a fazer, a
perceção que ele tem sobre aquela realidade é diferente daquela que a ordem
jurídica estabelece porque a OJ estabelece aquele facto como crime e o agente atua
sem ter a noção de que aquilo que está a fazer é um crime.

 O conhecimento da proibição legal


Porque é que o erro sobre a factualidade típica exclui o dolo? Porque o dolo integra uma censura –
quando o agente pratica um facto doloso, fica imanente um juízo de censura, uma apreciação dirigida
àquela pessoa porque ela revela uma valoração negativa relativamente àquele bem jurídico. Mas para
isso, é preciso que estejamos certos de que o agente estava consciente, ou seja, que teve uma
representação plena dos factos.
Assim, num crime de homicídio é preciso que a pessoa tivesse desprezo pela vida humana – temos
de estar seguros disto. Neste sentido, se o agente queria matar um animal na caça, mas mata uma pessoa,
não podemos dizer que ele tinha desprezo pela vida humana, só podemos censurar criminalmente alguém
se tivermos seguros de que ele representou aqueles factos de forma plena, porque, sem isso, o agente
pode ser apenas punido por negligência.
Quando alguém representa a factualidade típica, via de regra, isso será suficiente para ser
despertado para o problema da ilicitude penal. Isto é, se tivermos alguém que tenha uma arma carregada
e que aponte a arma à cabeça de outra pessoa e dispara, obviamente que o homicida estava na posse de

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todos os factos que eram necessário para avaliar a ilicitude da sua conduta, por isso, o Estado pode puni-
lo e censurá-lo pela atitude de hostilidade e inimizade que ele revelou para com a vida alheia, provocando
a sua morte.
Mas há situações em que o agente tem a plenitude dos factos, sabe tudo, mas que não tem
consciência de que está a cometer um crime. Claro que no caso do homicídio é mais difícil de acreditar
nisto porque é o crime dos crimes, mas há casos em que o agente não sabe mesmo que é crime, não tem
a perceção da ilicitude da sua conduta e a questão que se põe é a de saber se ele deve ou não ser punido
dolosamente e se pode ou não ser censurado por aquilo que fez.
Este problema é muito complexo e entre nós tem uma solução legal que vai ao encontro do
pensamento de Figueiredo Dias nesta matéria: art.16º/1, 2ª parte e art.17º CP – corresponde à proposta
que Figueiredo Dias fez na década de 60 do século XX para tratar de problemas desta natureza, proposta esta que
foi feita na sua tese de mestrado e que foi adotada pelo código penal de 82.
Em direito penal, o erro pode ter relevância, pode excluir o dolo porque nem sempre é exigível ao
comum dos cidadãos que tenha uma consciência da ilicitude dos factos e em alguns casos pode não ser
censurável o comportamento praticado em sede de erro sobre a ilicitude.
Neste âmbito, Figueiredo Dias e a doutrina portuguesa defendem uma solução que parte de uma
ideia de fundo: há que distinguir 2 tipos de erros – 1) erro intelectual e um 2) erro de valoração.
Figueiredo Dias fala aqui na chamada 1) consciência psicológica e na 2) consciência ética, que dizem
respetivamente respeito àqueles 2 tipos de erro.
E o problema que ele levanta põe-se na perspetiva de saber se num certo caso o conhecimento,
a representação da factualidade típica em si mesma, em geral, é suficiente para que o agente resolva o
problema da ilicitude daquele facto. Isto é, o problema está em saber se a representação plena de todos
os elementos da factualidade típica é por si só suficiente para que a generalidade das pessoas, postas
naquelas circunstâncias, formem um juízo de ilicitude daquele facto tal qual como a ordem jurídica o
faz.
• EXEMPLO 1: caso do fulano que dispara contra outra pessoa e diz que não sabia que era crime: isto
é inverosímil – ninguém acredita que um cidadão que esteja na posse das suas faculdades plenas
não saiba que matar uma pessoa é crime.
• EXEMPLO 2: é crime ou não contratar um guarda costas que não tem licença para ser guardacostas?
É crime passar música num café sem que o dono do café tenha pago uma taxa que devia ter pago?
Estes crimes não são assim tão evidentes, a realidade ilícita daqueles factos não é clara aos olhos
de todos nós.

Enquanto há casos em que toda a gente tem noção da ilicitude do facto, há muitos casos em que
isto não acontece, porque não é de tal forma grave nem atenta tanto contra a natureza ética da sociedade,
o que faz com que a generalidade das pessoas não saiba da natureza ilícita daqueles factos.
Há situações em que o legislador tipifica como crime factos cuja densidade ética, valoração
axiológica, na posição de Figueiredo Dias está longe de ser evidente: casos em que o facto em si mesmo,
desprovido, dissociado da proibição, não tem relevância ética – é um facto relativamente indiferente para
a generalidade das pessoas. Para casos dessa natureza que, todavia, sejam crimes, o simples
conhecimento da factualidade típica pode ser insuficiente para que o agente adquira a noção da ilicitude
do facto – casos em que o facto em si mesmo, independentemente da proibição não tenha relevo ético à
luz das valorações culturais, sociais, etc. Nessas situações pode acontecer que, mesmo conhecendo toda
a factualidade típica, esse conhecimento não seja em si mesmo suficiente para que o agente se aperceba
da ilicitude do facto. Por exemplo: caso de um senhor que contrata um guarda costas que não tem licença
para o ser.
Nestes casos, em que o facto em si mesmo é eticamente neutro quando dissociado da proibição,
ou seja, se não se desperta na generalidade das pessoas como um problema de ilicitude, então, o
conhecimento da factualidade típica em si mesmo não é suficiente para que se afigure o dolo, é preciso
que o agente conheça a proibição: art.16º/1, 2ª parte – se o agente atua desconhecendo essa proibição,
atuando sem noção da ilicitude, ele atua sem dolo.
Se o facto for efetivamente relevante à luz das valorações, morais, culturais dominantes, então, o
enquadramento normativo é o do art.17º CP. Se, pelo contrário, o facto for abrangido por uma proibição,

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mas é eticamente indiferente, não suscita uma especial ressonância do ponto de vista axiológico para que
o agente conheça a ilicitude, ele tem de conhecer a proibição e se ele não souber, então, há exclusão do
dolo.
(Um caso em que está a ser discutido isso é o caso das viagens de vários agentes políticos ao euro 2016 – a Galp
pagou viagens a vários funcionários políticos e foi considerado um crime de vantagem: caso sobre o erro das
proibições legais. Não se sabia que as ofertas deste tipo (que até é uma prática corrente) podiam ser crime).

 Quando o tribunal se depare com uma situação em que verifique que o agente se equivocou sobre
a ilicitude da conduta, o que é que acontece?
O tribunal vai ter de dar isso como pecado e depois vai ter de avaliar se esse erro cai sob a alçada do
art.16º/1/ 2º parte ou, pelo contrário, do art.17º CP. Quando o tribunal conclua que o agente atuou em
erro por não ter noção da ilicitude da conduta, vai ter de saber em que se regime é que se enquadra, qual
o fundamento normativo, ou seja, se é erro sobre a ilicitude ou erro sobre as proibições legais.

O critério de enquadramento, segundo Figueiredo Dias e a doutrina maioritária, é o relevo


axiológico da conduta, independentemente da proibição:
 Se a conduta em si mesmo for, antes e independentemente da proibição, uma conduta
eticamente relevante e for vista de forma desvaliosa à luz dos valores éticos, morais e culturais
da sociedade, então, temos um caso de erro sobre a ilicitude do art.17º CP (erro intectual).
 Se, pelo contrário, se tratar de uma conduta (independentemente da proibição) disposta de um
relevo ético insignificante, então, temos um caso de erro sobre as proibições legais que se
enquadra no art.16º/1, 2ª parte (erro de valoração) sendo que, neste caso, o tribunal vai excluir
o dolo e o agente vai, quanto muito, responder a título de negligência.

2. O MOMENTO VOLUTIVO DO DOLO


O dolo é composto também por um elemento volitivo. Na fórmula canónica, o dolo é a representação e
vontade da realização do facto. Não basta que o agente represente o facto típico objetivo, é também
ainda necessário, cumulativamente, que ele atue com vontade de realizar o tipo objetivo.
Para além do conhecimento da prática do facto objetivamente típico, o dolo pressupõe ainda a
vontade de realização desse facto e, neste plano, no plano da vontade, está em causa o chamado
elemento volitivo: só há dolo se, para além de ter representado a factualidade típica, o agente tiver
atuado com vontade. E a demonstração desta vontade é essencial para depois ser possível dirigir àquele
agente uma censura dolosa – só pode ser objeto de um juízo de censura se se opôs à ordem jurídica penal,
atentando contra um bem jurídico.
Por isso, a vontade é um elemento imprescindível do dolo porque esta é exigível, não só nesta
visão global, como também do ponto de vista legal: a própria lei, no art.14º CP fala de uma exigência de
vontade da prática do facto, seja em que tipo de dolo for. Como vamos ver, há uma espécie de dolo (dolo
eventual) que é de difícil demonstração e de difícil avaliação e daí que haja uma certa corrente doutrinal
que procura desvalorizar o elemento volitivo e fundar o dolo unicamente no elemento intelectual – esta
é uma visão das coisas que é difícil de enquadrar no sentido da segurança púbica e que não tem base
legal, uma vez que no art.14º CP é sempre exigida a vontade do agente.

 Classes de dolo (em função da vontade do agente)


A função da vontade do agente está espelhada no art.14º CP: é uma qualificação substantiva do
direito penal material substantivo. É uma classificação e uma visão das coisas que não deixa de ter um
grande relevo processual. Para que possa ser afirmado um facto doloso é necessário que se demonstre
tudo isto que falámos – um agente representou e quis a realização do facto.
Surge aqui uma dificuldade muito grande que é a da demonstração probatória do dolo porque o
dolo é uma realidade intangível, psíquica. Enquanto que os casos da factualidade típica e do tipo objetivo
são, em larga medida, factos tangíveis, percecionáveis pelos sentidos, o dolo não.
Por exemplo: quando A dispara sobre B e o mata, a questão do disparo é percetível pelos sentidos, é
facilmente demonstrável. Já o conhecimento e a vontade do dolo são factos que se passam na cabeça do

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agente e não dá para os percecionar, a não ser que o agente o admita. E esta avaliação de saber se o
agente queria mesmo realizar aquela ação passa por um elemento volitivo e compreensão das várias
formas do dolo. Nos processos de acusação e nas sentenças é usada para o dolo uma forma canónica: em
termos genéricos, de acordo com a consciência e a vontade.
Os critérios substantivos de definição do conteúdo do dolo acabam por ser, na prática, também
critérios de apreciação da prova. A lei, no art.14º CP, acolhe a bipartição clássica do dolo (dolo direto e
dolo eventual), do ponto de vista do elemento volitivo:
 O nº1 começa por dizer que age com dolo quem representa um facto que preenche um tipo
legal de crime e atua com intenção de o realizar – dolo intencional ou dolo direto de 1º grau.
 O nº 2 fala-nos do dolo necessário ou de dolo direto 2º grau.
 E o número 3 prevê o dolo eventual.

Dolo direto

A. Dolo intencional ou dolo direto de 1º grau – art.14º1 CP


Existe quando o agente, estando certo da verificação da factualidade típica, age com intenção de
praticar o facto. Neste dolo intencional temos uma situação em que o agente tem um conhecimento
seguro, certo de que da sua conduta vai resultar certamente uma consequência e atua com a intenção,
com a vontade de levar a cabo essa conduta. Ele deseja conseguir aquilo que representa como crime, num
quadro em que ele está seguro de que isso vai acontecer. Integra ainda o caso de o agente saber que tem
a arma carregada e aponta a arma à cabeça de outra pessoa e dispara sobre ela e ele sabe que é certo
que se disparar, ele vai matar aquela pessoa e é assim que ele atua, de propósito, com dolo intencional.
Há situações em que o agente está seguro, tem a certeza de que da sua conduta vai advir uma
certa consequência, porque a sua conduta preenche um certo cenário típico – não porque ele o deseje,
mas porque aquilo representa um pressuposto para aquilo que ele deseja. Também nestes casos, temos
um dolo direto intencional ou de 1º grau – temos um facto que surge como um pressuposto necessário
para a intenção do agente, o seu propósito é outro, mas aquele facto é instrumental, é necessário, é um
pressuposto indispensável para levar a cabo o crime que ele deseja cometer.
Por exemplo: um individuo que subtrai um carro para cometer um assalto e decide investir com esse carro
contra a montra de uma ourivesaria – ele, ao avançar com o carro para partir a montra, estraga o carro
que não lhe pertence e o carro vai ficar danificado e esta danificação é um crime de dano, mas o que ele
pretendia era assaltar a ourivesaria, mas a subtração do carro era um pressuposto.

B. Dolo necessário ou dolo direto de 2º grau


Há dolo necessário quando o facto típico não é intencionado pelo agente, não é o seu propósito
nem a sua finalidade, mas ele aparece como consequência inevitável da prática do facto intencionado.
Por exemplo: alguém queria matar um político que ia num avião, faz explodir o avião e,
consequentemente, mata as outras pessoas todas.

Dolo eventual

É uma figura que nos aparece do quadro do elemento volitivo, mas que se contrapõe em larga medida ao
dolo direto, logo a montante do plano do elemento intelectual.
Porquê? Enquanto no dolo direto o agente sabe que a factualidade típica vai acontecer e representa a
realização da factualidade típica como certa, segura e altamente provável, no plano eventual não
acontece o mesmo: o agente não está absolutamente seguro de que o facto se vai produzir, não está certo
de que isso vai acontecer mas, de todo o modo, ele representa o facto como possível – ele entra em linha
de conta com essa possibilidade.
Quando o agente representa o facto como possível e não como certo, poderá ser afirmado o dolo?
Este é um problema muito complexo e com uma relevância muito significativa – por um lado, 1) não é
indiferente para se concluir que o agente atuou com dolo direto ou com dolo eventual, 2) tal como não é
indiferente saber se naqueles casos em que é claro que o agente atuou representando o facto como

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possível, se de facto estamos perante dolo ou perante negligência. Este dolo contrapõe-se, por um lado,
ao dolo direto no plano da representação do facto e, por outro lado, ele contrapõe-se à negligência
consciente.

 Porque é que é tão importante saber se estamos perante dolo direto ou dolo eventual?
Porque há certos tipos legais de crime em que a lei circunscreve a relevância típica somente aos casos de
dolo direto. Não são muitos, mas há crimes que só são puníveis sob a forma de dolo direto porque se
exige que o agente represente o facto como seguro, como certo. São crimes que não admitem uma
realização a título de dolo eventual.
EXEMPLO: crime do art.366º CP: crime de simulação de crime – situações em que uma pessoa fantasia um
facto criminoso e vai denunciar às autoridades. Por exemplo, um sujeito que inventa um crime de fraude
de seguro para depois ser indemnizado. Nestes casos, a lei só pune essa simulação quando esse agente
saiba que o crime não se realizou, ou seja, só se admite a punição a título direto e não eventual. Também
temos o caso do crime de infidelidade patrimonial, em que se causa propositadamente um crime
patrimonial.

 Para além disto, a figura do dolo eventual contrapõe-se à figura da negligência consciente:
Há aqui um elemento em comum que é a representação do facto impossível: em ambos os casos o agente
atua admitindo a possibilidade de realização do facto.
EXEMPLO: A aposta com B que consegue entrar em contramão numa certa entrada de uma autoestrada e
circular 15km em contramão a uma certa velocidade e sem ter nenhum acidente. Neste caso, A claramente
atua admitindo a possibilidade de chocar com alguém que vai na mão correta.
O que se pergunta é se, nestas situações em que alguém admite praticar um certo facto,
admitindo como possível a realização de um facto típico, se atua com dolo eventual ou com negligência
consciente. E não é nada indiferente um enquadramento de um e de outro – isto porque há certos crimes
que só são puníveis a tútulo de dolo, segundo o art.13º CP.
Se o crime não for punível a título de negligência e o agente atuar com dolo eventual, ele será
punido. Por outro lado, se se concluir que ele atua com negligência consciente ele sairá impune. Assim,
esta classificação pode levar à condenação ou à absolvição.
Em regra, a pena prevista para a negligência é sempre mais baixa do que a prevista para o crime
doloso e, por isso, é revelante o enquadramento.
Por exemplo: um crime de homicídio doloso é punível com uma pena de 8 a 16 anos de prisão, já um crime
de homicídio negligente é punido com uma pena de 3 anos. Assim, esta contraposição assume um relevo
prático muito grande porque a defesa vai sempre tentar demonstrar a negligência, uma vez que isso
poderá implicar uma pena mais baixa ou até a absolvição.
(Há um caso muito paradigmático que é o caso do very light – um instrumento voador – que acertou num adepto do
SPORTING e matou-o. Perguntava-se se o adepto que levou aquele instrumento atuou com dolo eventual ou com
negligência consciente.) A negligência pode ser consciente (art.15º/a) inconsciente (art.15º/b).

Há muitas propostas de distinção entre o dolo e a negligência consciente. Na visão de Figueiredo Dias
resumem-se a 3 teorias:

1) TEORIA DA PROBABILIDADE: de acordo com esta teoria há que distinguir o grau de


probabilidade de produção do facto. Se o agente representar o facto como provável, a fronteira
entre o dolo eventual e a negligência consciente está num grau de probabilidade da verificação
do facto, ou seja, se ele representar como provável temos dolo, se representar como pouco
provável ou improvável temos negligência. Nesta visão das coisas o que importa é a probabilidade
da produção do facto. Esta teoria é rejeitada:
 Por um lado, porque põe um acento tónico numa vertente intelectual e não tanto num
plano volitivo.
 Por outro, porque há situações em que embora o agente antecipe como pouco provável
a produção do resultado, faz todo o sentido no âmbito do dolo. Não seria razoável afastar
o dolo naqueles casos em que, embora o agente atue na convicção de que é pouco

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provável que o resultado aconteça, está fortemente motivado a consegui-lo e tem a
intenção clara de o conseguir. Nessas situações, diz-se que não faria sentido afastar o
dolo. Por exemplo: alguém tenta matar uma pessoa através de um tiro a longa distância,
acha que a probabilidade de acertar é baixa porque está muito longe, mas acerta e
consegue o seu objetivo – assim, entende-se que dizer que nesse caso não estamos
perante dolo, não é visto como uma solução adequada. E, por isso, esta teoria é rejeitada,
este último é o motivo base, o fulcral.

2) TEORIA DA ACEITAÇÃO: segundo esta teoria, o agente admite a admissibilidade do facto como
possível, admite que ele possa acontecer e, no seu íntimo, aceita que isso aconteça. Mas é
indiferente que aconteça. Nestes casos de aceitação ou de indiferença, o agente atua com dolo.
Já se, pelo contrário, o agente avança para a realização da conduta típica repudiando a
possibilidade de prodição do resultado, diz-se que ele atua com negligência consciente. Ou seja,
há dolo eventual se se poder concluir que o agente pensou o facto como possível e aceitou a sua
concretização, sendo-lhe indiferente a realização ou não. Noutros casos, se ele atua acreditando
que aquilo nunca iria acontecer, estamos perante negligência consciente. Esta teoria não é aceite:
 Torna-se difícil de destrinçar os casos de dolo eventual daqueles casos em que o agente
atua com dolo intencional;
 E, mais uma vez, porque se pode levar a resultados insatisfatórios e injustos. Por exemplo:
casos das apostas – quando Guilherme Pelle atira uma seta para uma maçã que esta em
cima da cabeça do seu filho. Ou caso das apostas das corridas como dito em cima.

3) TEORIA DA CONFORMAÇÃO: esta teoria é a que está consagrada entre nós, no Código Penal. De
acordo com esta teoria, o que está em causa saber é se, tendo o agente representado a realização
do facto, se se conformou ou não com essa possibilidade. Se se concluir que o agente se
conformou com isso, então, diz-se que há dolo eventual, se não, então diz-se que há negligência
consciente – art.14º/3 (dolo eventual) e art.15º/a) (negligência consciente).
A questão está em saber quando é que se pode dizer que o agente se conforma. Esta expressão
que a lei usa tem de ser concretizada – atualmente, a posição maioritária vai no sentido que se
aproxima das teorias da probabilidade. Assim, temos de saber se o agente encarou o crime, o
risco, como algo efetivo, isto é, saber se o agente encarou o risco como algo efetivamente
existente, se o levou como um risco sério e qualificado e se mesmo que tenha considerado isso,
avançou para a prática do facto. Assim, há aqui uma afronta/indiferença contra o bem jurídico
que levaria a consideração do dolo eventual. Se, pelo contrário, objetivamente o risco for um
risco baixo, despiciendo, então, a menos que haja aquela firme vontade intencional, dir-se-ia que,
via de regra, o agente não se conformou com a realização do facto, dando origem a negligência
consciente. Por exemplo: caso do agente que vai em contramão na autoestrada – se ele sabe que
aquela autoestrada tem muito movimento e mesmo assim ele avança, então temos aqui dolo
eventual.
Na lei penal portuguesa no art.14º/3 CP e 15º/a) está consagrada a teoria da conformação.

 OS ESPECIAIS ELEMENTOS SUBJETIVOS DO TIPO

Nos crimes dolosos, o tipo incriminador integra o tipo objetivo e o tipo subjetivo. No âmbito do tipo
subjetivo contém-se sempre o dolo. Só há preenchimento do tipo objetivo se, pelo menos, o agente atuou
com dolo, que é representação e vontade da realização do facto. A maior parte dos crimes do tipo
subjetivo é composto exclusivamente pelo dolo – verificando-se o dolo, o tipo subjetivo está completo e
o facto é o facto típico doloso.

Em certos crimes, o tipo subjetivo, além do dolo integra ainda elementos específicos. Por
exemplo, o art.131º CP (crime de homicídio) – não há aqui um elemento subjetivo específico e, por isso,
o tipo subjetivo do crime de homicídio é composto única e exclusivamente pelo dolo. Agora, vejamos o

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crime de furto que está previsto no art.203º/1 – aqui temos algum elemento subjetivo específico? Sim,
a intenção de apropriação. Assim, este crime não se basta com o dolo, o tipo objetivo do furto é subtrair
uma coisa móvel alheia. Haverá um facto típico objetivo e haverá dolo se alguém subtrair uma coisa móvel
que não lhe pertence, mas isso não é suficiente para que haja um furto, é preciso a intenção de
apropriação.

Há crimes que têm elementos especiais, intenções específicas que extravasam o tipo objetivo –
especiais elementos subjetivos do tipo. Fala-se aqui em elementos subjetivos do tipo: é o caso do furto,
da burla, crime de falsificação de documentos. Há muitos crimes cuja realização típica depende da
verificação, no plano subjetivo, de elementos que não fazem parte do dolo.
Há uma certa tendência para designar esses elementos como dolo específico, mas isso está
errado. A este propósito fala-se de crimes de resultado cortado, que são crimes em que o tipo subjetivo
vai para além do dolo, tem de haver intenção de apropriação. São crimes com um elemento intencional
específico, que transcende o tipo objetivo.
Porque é que transcende? Porque o agente só incorre na prática do crime se atuar com uma certa
intenção que está definida no tipo, mas que não tem de se concretizar na realidade (caso do crime de
burla – só há crime de burla se o agente enganar o terceiro de modo a que lhe cause um dano patrimonial,
sendo que o agente deve atuar com uma intenção de enriquecimento – não é preciso que ele
efetivamente enriqueça, é apenas preciso que ele atue com essa intenção).

VIII. CAUSAS DE JUSTIFICAÇÃO / TIPO JUSTIFICADOR

Até agora vimos a tipicidade e os tipos incriminadores de crime. Mas para que o facto se possa dizer
mesmo ilícito é necessário ainda, na situação concreta, que o agente não esteja coberto por uma
circunstância suscetível de excluir a ilicitude do facto típico que ele realizou.
Isto é, para que o facto seja plenamente ilícito, além de ser necessário que o agente realize um
facto típico (que o tipo incriminador esteja preenchido tanto no plano objetivo, como subjetivo), é ainda
necessário que a conduta do agente não esteja coberta de qualquer circunstância suscetível de excluir a
ilicitude desse seu facto.
No fundo, a categoria do tipo incriminador ou da tipicidade tem um sinal mais (+)  um sentido
de fundamentação. Já a categoria da ilicitude ou do tipo justificador tem um sinal menos (-)  de exclusão
da ilicitude.

É o tipo incriminador que fundamenta a ilicitude. Quando o facto preenche o tipo incriminador está dado
o elemento base da ilicitude. Por exemplo: se A dispara à queima roupa sobre a cabeça de B, sabendo que
a arma está carregada e com a intenção de o matar, temos um facto típico objetivo e subjetivo de
homicídio, ou seja, quando ele está completo, em regra, o facto penal será um facto ilícito – com sinal
mais, de afirmação da responsabilidade.
Mas há casos em que o agente pratica o facto típico e está autorizado pela ordem jurídica a atuar
como atuou, isto é, a OJ autoriza aquele agente a praticar aquela conduta típica. Por exemplo: uma pessoa
quer matar outra e o polícia mata essa pessoa para defender a vítima. Embora o polícia tenha realizado
um facto típico ilícito, ele fá-lo com o objetivo de salvar uma pessoa indefesa. Nestes casos, é
juridicamente admissível a realização de um facto típico e essas circunstâncias que dão cobertura ao
facto típico, que autorizam que se realize o facto típico, designam-se de causas de justificação, tipos
justificadores ou causas de exclusão de ilicitude. Neste caso, o polícia não realizou um crime porque
atuou tipicamente (o facto é típico), mas não ilicitamente (o facto não é ilícito). Se, pelo contrário, o facto
típico é praticado sem cobertura de qualquer causa de justificação, o facto é típico e é ilícito, estando
verificada mais uma condição para a verificação do crime.

 Especificidades dos tipos justificadores face aos tipos incriminadores relativamente ao


problema da ilicitude
As causas de justificação intervêm no plano da ilicitude: os chamados tipos justificadores. Elas aparecem-
nos para complementar a confirmação do juízo de ilicitude e surgem em situações conflituais – intervêm

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em casos em que alguém realiza uma conduta típica, mas fá-lo não de forma gratuita/inominada, mas
porque está emersa num certo contexto que a autoriza ou até a impõe a atuar, e, por via de regra, esse
circunstancialismo corresponde a uma situação de conflito, de choque entre particulares ou entre
pessoas e o Estado, que têm interesses conflituantes.
No caso concreto, a OJ dá a uma das partes uma autorização para agir e, por isso, é a própria
ordem jurídica que afasta a ilicitude do facto ilícito praticado. Porquê? Porque nessa situação específica
o legislador toma uma opção entre 2 interesses em confronto: a ordem jurídica dá prevalência a um
interesse que se opõe ao bem jurídico, que se opõe ao outro, e autoriza o agente a agir.
Por exemplo: situação em que um polícia se depara com alguém que está a cometer um assalto, praticou
um furto. O polícia, se lhe for possível, tem o dever de proceder à detenção do ladrão e ao fazer isso o
polícia está a praticar um ato típico, nomeadamente sequestro. Todavia, o polícia está a atuar tendo a
ordem jurídica do seu lado, uma vez que há uma norma que lhe impõe o dever de atuar. Neste caso, a OJ
dá prevalência ao direito do Estado, em detrimento ao direito de liberdade do ladrão.
Assim, a OJ atua numa situação de choque, no âmbito da qual o legislador faz uma ponderação
de qual é o interesse prevalente e autoriza o agente a atuar. Ao contrário dos tipos incriminadores que,
via de regra, protegem um especifico e determinado bem jurídico (crime de homicídio protege a vida
humana, por exemplo), já os tipos justificadores têm uma amplitude muito mais ampla, podendo atuar
de forma a proteger os mais variados interesses – por exemplo, em legitima defesa podem defender-se
vários direitos: pode proteger-se a vida, a integridade física, a propriedade, a liberdade sexual, a honra,
etc.

 Há um outro contraponto importante entre os tipos incriminadores e os tipos justificadores que


importa fazer para se entender algumas das discussões que se travam nesta matéria:
A norma incriminadora, aquela que dá corpo a um certo crime, engloba em termos puramente
normativos 1) uma norma de proibição ou 2) uma norma de imposição.
Quando o legislador tipifica um crime, proíbe o agente de fazer alguém coisa ou impõe ao agente que faça
alguma coisa.
Por exemplo: o crime de homicídio é um crime de infração, em que se proíbe que se matem outras
pessoas. O crime de auxílio de médico incorpora uma norma de agir, impõe uma conduta.
E estas normas têm como substrato um duplo desvalor:
1. desvalor de ação;
2. desvalor de resultado.

 O tipo incriminador engloba, simultaneamente, um desvalor de ação e um desvalor de resultado.


O primeiro corresponde a uma conceção do facto como uma obra pessoal desvaliosa daquele
indivíduo, ou seja, é possível representar aquele facto como uma obra pessoal do agente, que
resulta da sua pessoa e ela é vista como desvaliosa, uma vez que, o agente se opõe à norma, à
sua dimensão imperativa.
Por outro lado, a norma incriminadora contém ainda o chamado desvalor de resultado: quando
alguém pratica um facto típico ou lesa um bem jurídico ou o ameaça. Assim, esta ofensa ao bem
jurídico, seja por forma de lesão ou de perigo representa um desvalor de resultado – tem de ser
possível afirmar no caso concreto que aquele indivíduo, ao agir, revelou um desvalor de resultado
e que a sua conduta vai contra a valoração da norma. O tipo incriminador tem esta dupla vertente.

 Já o tipo justificador, a causa de justificação, assenta numa norma de permissão. O que é próprio
do tipo justificador ou da norma justificadora é a sua natureza de norma de permissão: o agente
é autorizado a agir.
Enquanto que o tipo incriminador, por regra, tem uma norma proibitiva, o tipo justificador tem
uma norma permissiva. E as coisas ao serem postas desta maneira, neutralizam quer o desvalor
de ação, quer o desvalor de resultado. Por exemplo: o polícia que procedeu à detenção do ladrão
está a pôr em causa a norma que protege a liberdade das pessoas e está a indiciar quer um
desvalor de ação, quer um desvalor de resultado, mas, como ele atua num âmbito em que tem

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permissão para agir, quer o seu desvalor de ação, quer o seu desvalor de resultado são
neutralizados. A sua ação não é encarada como uma obra desvaliosa e aquilo que ele consegue
é visto como algo positivo para o bem jurídico.
As causas de justificação incorporam esta faceta de neutralização do desvalor de ação e de
resultado que o facto típico indicia.
Isto vai ser muito importante para a compreensão dos elementos subjetivos das causas de
justificação e para a compreensão do erro sobre as causas de justificação, mais precisamente, o
erro sobre os pressupostos das causas de justificação.

 QUESTÕES DE ORDEM GERAL QUANTO ÀS CAUSAS DE JUSTIFICAÇÃO

1. Técnica legislativa e fonte das causas de justificação


O legislador descreve uma certa situação, um conjunto de circunstâncias e diz que verificadas essas
circunstâncias é excluída a ilicitude.
Por exemplo: art.36º CP – conflito de deveres: esta é uma causa de justificação.

• Qual é a fonte das causas de justificação?


É a totalidade da ordem jurídica (art.31º CP): as causas de justificação promanam dos mais
variados pontos da ordem jurídica (direito penal, direito processual penal, direito civil, urbanismo,
ambiente). Encontramos normas que impõem ou autorizam a prática de factos típicos nos mais variados
domínios.
Muitas vezes, nas causas de justificação mais emblemáticas (as que estão previstas no CP) é o
próprio legislador que diz que aquela circunstância é uma causa de justificação. Quando o legislador utiliza
a expressão “não é ilícito” ele quer consagrar uma causa de justificação da ilicitude; quando utiliza a
expressão “age sem culpa” ele está a consagrar as causas de exclusão da culpa.
As causas de justificação da ilicitude são causas que afastam a ilicitude. Já no plano da culpa,
pressupõe-se a prática de um facto ilícito típico e o legislador dispõe que quem atuar nesse domínio atua
sem culpa – nesse caso, temos uma causa de exclusão da culpa.
Há circunstâncias em que se prevê uma exclusão da responsabilidade penal e em que não é assim
tão claro que natureza jurídica é que essas circunstâncias retêm – se são causas de exclusão da ilicitude,
da culpa ou da responsabilidade penal.
Por exemplo: a interrupção voluntaria da gravidez (art.142º CP) – prevê-se aí um conjunto de situações
em que a lei estabelece que não é punível a interrupção da gravidez, mas discute-se na doutrina se são
situações de causa de justificação ou de exclusão da culpa ou da responsabilidade penal. A maioria da
doutrina defende que são causas de exclusão da ilicitude.

• Princípio da unidade da ordem jurídica:


No CPP temos muitas causas de justificação. Certos atos processais são vistos por um prisma
processual, mas também de um prisma penal porque autoriza condutas que implicam a prática de atos
típicos. Por exemplo: uma escuta telefónica – está-se a autorizar que se pratique um facto típico, que viola
a privacidade. O mesmo vale para as buscas domiciliárias: a polícia entra pela casa da pessoa e está a
realizar um facto típico de violação do domicílio, mas este ato concreto é autorizado.
Neste domínio das causas de justificação vale o princípio da unidade da ordem jurídica,
nomeadamente em sentido negativo. O art.31º/1 CP determina que o facto não é punível quando a sua
ilicitude é excluída pela ordem jurídica na sua totalidade e depois o art.31º/2 CP esclarece que não é ilícito
o facto praticado num exercício de um direito ou no cumprimento de um dever imposto por lei. Assim,
nestes casos, quando alguém atua no exercício de um direito ou no cumprimento de um dever, atua de
forma lícita.
Seria ilegítimo que a ordem jurídica por um lado dissesse ao cidadão “tu podes ou tens de fazer
isto” e ao mesmo tempo dissesse “estás a praticar um facto ilícito”. Assim, quando um agente é deparado

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com uma norma que o autoriza ou lhe impõe o dever de agir, então, a sua conduta nunca pode ser
considerada como ilícita.
Assim, aquilo que é considerado lícito para qualquer ramo do direito, não pode ser ilícito para o
direito penal e isto tem a ver com a própria natureza subsidiária ou de ultima ratio do direito penal. Não
faria sentido que o direito penal emitisse um juízo de desvalor que é autorizado pela ratio do
ordenamento jurídico. Assim este princípio da unidade da ordem jurídica no sentido negativo leva a esta
natureza de última ratio do direito penal.
Um caso em que isto se nota é nas chamadas ordens para a prática de atos ilegais (art 36º/2 CP
– o dever de obediência cessa quando seja ordenada a prática de um crime). Mas há outros ramos do
direito em que se prevê um dever de obediência mesmo nos casos em que a ordem seja a da prática de
um crime, desde que não seja um crime dos mais graves. Por exemplo: um motorista do ministro recebe
uma ordem pra exceder um limite de velocidade – o seu superior hierárquico dá-lhe uma ordem para
realizar uma contraordenação. Assim, se houver lugar a coima, teria de ser o ministro a ser
responsabilizado, uma vez que não faria qualquer sentido responsabilizar o motorista.

• Princípio da legalidade criminal: o facto de as causas de justificação terem a sua fonte emanada
da totalidade do ordenamento jurídico leva a que não haja um numerus clausus das causas de
justificação: é uma realidade aberta e, por isso, há um número indeterminado de causas de
justificação e para elas não vale o princípio da legalidade criminal.

No âmbito das causas de justificação está em causa afastar a responsabilidade – o que delas
decorre é uma exclusão da responsabilidade penal do agente que praticou um facto típico e, por isso, a
razão de ser do princípio da legalidade não faria aqui qualquer sentido, sendo que esta matéria não entra
no âmbito de aplicação do princípio da legalidade e, por isso, os vários corolários do principio da
legalidade não valem em sede das causas de justificação.
Por exemplo: não é de afastar a possibilidade de haver causas de justificação supralegais. Por vezes, a
doutrina e a jurisprudência chegam à conclusão de que num certo contexto seria ilógico, injusto e
intolerável a qualificação de uma certa conduta como ilícita e em casos muito concretos aceitam a
justificação de uma conduta, apesar de não existir uma norma legal que a preveja. Por exemplo, direito
de necessidade defensivo – causa de justificação que não tem previsão legal e que está entre a legítima
defesa e o direito de necessidade (art.34º CP) e que a doutrina maioritária afirma como causa de
justificação. Não é tão forte como a legitima defesa, mas é mais forte que o direito de necessidade.

2. Efeito das causas de justificação


 Eficácia retroativa: a tipificação de uma causa de justificação valerá não só para o futuro, mas
também para os factos passados. Ao contrário das normas incriminadoras, as normas
justificadoras podem e devem aplicar-se retroativamente – há uma exigência constitucional e
jurisprudencial de aplicação retroativa de normas justificadoras.
Por exemplo: quando, há uns anos atrás passou a ser legítima a interrupção voluntária da gravidez
até às 10 semanas de gestação, por vontade da mulher, isso implicou uma descriminalização de
todos os abortos efetuados no passado nesses termos.

 Recurso à analogia: não há proibição do recurso à analogia para excluir a ilicitude de um facto
típico. Em sede de causas de justificação não há uma proibição do recurso à analogia.
Pode aplicar-se analogicamente o regime de uma certa causa de justificação a outras situações
análogas de maneira a excluir a ilicitude ou de, pelo menos, atenuar a responsabilidade do agente.

 Como temos visto, o efeito direto e imediato de uma causa de exclusão de ilicitude é a exclusão
da ilicitude do facto típico, esta matéria aparece-nos num contexto de um sistema categorial
classificatório: a causa de exclusão só entra em cena quando a montante nos deparamos com um
facto típico – é em relação ao facto típico que se põe o problema da justificação, da exclusão da
ilicitude.

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Há situações em que se discute se uma certa conduta realiza ou não um tipo incriminador e, se
se chegar à conclusão de que o facto nem é típico, então, nem se põe em causa a exclusão da
ilicitude. Por exemplo: se alguém disser que o seu empregado é incompetente, não está a incorrer
num facto típico, devido à liberdade de expressão de que beneficia. Por vezes, a questão sobre a
licitude típica em geral resolve-se no plano da tipicidade: se o facto não é típico, não se chega a
levantar um problema de justificação, porque o facto não é ilícito. Este problema só nos aparece
depois de se afirmar que o facto é típico.
Se o comportamento é típico, ele é ilícito, mas, neste caso, vai ser justificado, porque a ilicitude é
afastada. E este é o efeito imediato do tipo justificador.
Mas daqui resultam reflexamente consequências muito importantes que permitem contrapor as
causas de justificação a outras circunstâncias que excluem a responsabilidade penal: em especial,
as causas de exclusão da culpa.
Esta distinção é importante porque o facto de a responsabilidade ser afastada em sede de
ilicitude por força de uma causa de justificação traz um conjunto de consequências que não são
as mesmas no caso de a ilicitude ser excluída com base na exclusão da culpa.
Assim, não é nada indiferente atribuir a natureza de causa de justificação a uma certa
circunstância ou atribuir natureza de causa de exclusão da culpa.
Por exemplo: discute-se este tema no âmbito da interrupção voluntária da gravidez. Se se tratar
de uma causa de justificação, então, toda a gente que pratica um aborto não será punido. Quando
um agente está amparado por uma causa de justificação, ele tem do seu lado a ordem jurídica
que lhe concedeu essa autorização de agir: ele tem de agir e daí decorre um dever de suportar
para aquele que é visado por aquela conduta típica e um dever de não interferência de todos os
outros. Assim, a causa de justificação dá ao agente o direito de agir, de intervir e àquele que é
visado, aquele que sofre a conduta típica, impõe um dever de suportar e impõe às demais pessoas
um dever de se absterem de intervir na ação típica.

 Diferenças entre causas de exclusão de ilicitude e causas de exclusão de culpa


 Possibilidade de legítima defesa: não é nomeadamente admissível o emprego da legítima defesa
para a reação ofensiva – aquele que atua ao abrigo de uma causa de justificação, ao ter o direito
de agir, não lhe pode ser oposta a legítima defesa porque a legitima defesa pressupõe a ilicitude
da agressão. Ou seja, não é admitida legítima defesa sobre aquele que atua ao abrigo da causa de
justificação, uma vez que não se pode usar legitima defesa sobre quem está a ter uma conduta
permitida, só sendo permitida a legitima defesa quando do outro lado está uma conduta ilícita.
Há aqui uma distinção muito importante entre as causas de exclusão da ilicitude e as da culpa:
aquele que atua ilicitamente num quadro que exclui a sua culpa já pode sofrer uma resposta de
legitima defesa. Por exemplo: se um miúdo de 13 anos começa a agredir uma outra pessoa, o
agredido pode usar a legítima defesa porque o miúdo atuou ilicitamente, embora ele seja incapaz
de culpa. Daí a importância e relevância em matéria de interrupção voluntária da gravidez da
natureza jurídica que se atribua às alíneas da norma do art.142º CP.

 Comunicabilidade da circunstância: esta diferença assenta na possibilidade de a exclusão de


ilicitude se comunicar aos comparticipantes: há casos em que o facto típico é praticado por várias
pessoas (comparticipação). Quando se verifica uma causa de justificação, quando um dos
comparticipantes está abrangido, amparado por uma causa de justificação, a exclusão de ilicitude
que quanto a ele vale comunica-se aos outros comparticipantes – há uma espécie de expansão,
elas comunicam-se. Por exemplo: se um juiz dá uma ordem de busca ao abrigo do art.177º CP,
essa justificação vale também para os polícias, são comunicadas pelo juiz aos polícias.
Já no âmbito das causas de exclusão da culpa não é assim – a culpa, por definição, é um juízo
individual, só incide especificamente sobre cada um dos agentes. Assim, cada agente será
merecedor de um juízo de culpa próprio e, por isso, a culpa não é comunicável, se o agente age
sem culpa, essa sua desculpabilização não se comunica aos demais. Por exemplo: se temos 2
rapazes – um de 15 anos e outro de 16 anos – que praticam um assalto, o de 15 anos age sem

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culpa porque não pode ser culpabilizado, mas essa exclusão da culpa não se transmite, não se
comunica ao outro, segundo o art.29º CP.

 Medidas de segurança: se o agente pratica o facto típico ao abrigo de uma causa de justificação,
não lhe pode ser aplicada qualquer medida de segurança. A medida de segurança é uma medida
penal que pressupõe pelo menos a prática de um facto ilícito típico: só se aplica a agentes que
atuem ilicitamente. Assim, se alguém tem uma anomalia psíquica grave e realiza um facto típico,
mas fá-lo no âmbito das causas de justificação, nem se vai considerar a sua imputabilidade,
porque nunca lhe pode ser aplicada a medida de segurança.
Já no caso de ser uma causa de exclusão da culpa, já lhe podia ser aplicada uma medida de
segurança de internamento: esta poderá ser aplicada no caso da prática de um facto ilícito típico
(art.91º CP) por um inimputável em razão de anomalia psíquica.

3. Elementos subjetivos (e objetivos) das causas de justificação


Outra diferença que tem a ver com os elementos objetivos e subjetivos das causas de justificação:
para que uma causa de justificação produza um efeito típico, é preciso que se verifique um certo
circunstancialismo fáctico. Por exemplo: para que haja legítima defesa, é preciso que quem se defende
esteja prestes a sofrer uma agressão ilícita.
O funcionamento das causas de exclusão de ilicitude pressupõe que estejam verificados os
pressupostos materiais objetivos dessa causa de justificação. Por exemplo: o professor não pode matar
um de nós só porque sim e alegar a legitima defesa porque para que ela exista é preciso que algum de
nós o tente agredir. Assim, para além da situação objetiva justificante, para que a exclusão da ilicitude se
opere é necessário mais do que isso: nomeadamente é preciso saber se é necessário algum ânimo ou
intenção específicos e se o agente tem de saber ou não que está a agir no âmbito de uma causa de
justificação.
Esta questão põe-se a propósito da necessidade ou desnecessidade de representação da situação
justificante. Pergunta-se se, nesses casos, a simples verificação objetiva da situação justificante é
suficiente para excluir a ilicitude e a resposta é negativa. Houve uma evolução na resposta ao problema
que levou a que atualmente se entenda que não há lugar à exclusão da ilicitude no caso da verificação da
situação justificante desconhecida do agente. Por exemplo: caso em que uma mulher grávida faz um
aborto às 30 semanas, mas não sabia que era crime e depois, mais tarde, se vem a descobrir que o feto
nem seria viável porque padecia de um problema mortal. Quid iuris?

 Segundo a escola normativista que tinha uma conceção objetiva da ilicitude e segundo a qual a
norma relativa à ilicitude era uma norma de valoração, o que perguntava era se a situação
justificante estava verificada. Se ela estivesse, não importava se o agente sabia ou não. Assim,
segundo esta teoria, a situação justificante era suficiente para excluir a ilicitude, mesmo que
fosse desconhecida pelo agente.
Esta conceção foi posta em causa porque desconsiderava os valores da ação que, neste caso,
podiam ser associados ao agente – o juízo de ilicitude tem uma dupla vertente de desvalor de
ação e de desvalor de resultado. Ora, quando o agente pratica um facto típico, pode afirmar-se
o desvalor de ação (caso da mulher grávida que faz um aborto às 30 semanas de gravidez: temos
aqui um desvalor de ação e também de resultado, uma vez que a sua conduta é desaprovada pela
OJ). Quando é levado a cabo um facto típico sem que o agente saiba que está amparado por uma
causa de justificação, o seu desvalor é igual ao agente que pratica o facto típico sem justificação,
porque não sabe que está justificado. O desvalor é o mesmo. Assim, não pode excluir-se a
ilicitude, subsiste o elemento fundamental da ilicitude e, por isso, ela não pode ser excluída.
Nessa medida, entende-se que o conhecimento da situação justificante é um pressuposto do
conhecimento da causa de justificação e só dessa maneira será neutralizado o desvalor da ação
do facto típico.

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 Teoria subjetivista mitigada: o desvalor é diferente nos casos em que não há qualquer situação
justificante. Em certas situações, o desvalor de resultado do facto típico é neutralizado. A forma
como determinada situação da vida se desenrola leva a que a ordem jurídica autorize o agente a
atuar porque a ofensa ao bem jurídico seria justificada. Por exemplo: a ordem jurídica autoriza
que se mate um nascituro em caso de invalidez e que se mate em legítima defesa.
Assim, nestas situações, temos um quadro muito parecido ao da tentativa. Na tentativa, também
temos uma situação em que há desvalor de ação, mas não há desvalor de resultado e, por isso, a
doutrina dominante – teoria subjetivista mitigada – defende que nestas situações, dada a
similitude com a configuração do facto tentado, embora o agente deva ser punido, em via de
regra, justifica-se a punição menos grave. Ou seja, entende-se que o agente não deve ser punido
tão gravemente como nos casos em que o agente atua sem saber que há causa de justificação.
Esta solução está consagrada entre nós para uma causa de justificação específica que é o
consentimento – art.38º/4 CP. Esta norma prevê que no âmbito do consentimento, se o
consentimento não for conhecido pelo agente, este é punido nos termos da tentativa.
A doutrina maioritária entre nós defende que esta norma deve aplicar-se analogicamente em
benefício do agente a todas as demais causas de justificação. Assim, sem qualquer causa de
justificação, se o agente atua num quadro em que está verificada a situação justificante sem que
ele o saiba, deverá aplicar-se analogicamente o que está disposto nesta norma, o que significa
que o facto é ilícito, mas a pena aplicável deve ser atenuada.
Discute-se ainda se, no caso de o crime se ter consumado, não sendo verdadeiramente um caso
de tentativa. A questão se que coloca é se vale também aqui uma norma em sede de tentativa,
segundo a qual a tentativa só é punível se a pena do crime consumado corresponder a uma pena
de prisão superior a 3 anos. E discute-se se esta limitação também vale no domínio dos elementos
subjetivos da causa de justificação. A posição defendida pelo Dr. Figueiredo Dias vai no sentido
em que se devem aplicar os traços essenciais do regime da tentativa (art.23º/1 CP) porque se o
legislador entende que não se justifica punir de facto quando não haja um resultado, então, essa
ideia também deve valer no domínio das causas de justificação, aplicando-se o art.23º/1 CP.

4. REGIME JURÍDICO DE ALGUMAS CAUSAS DE JUSTIFICAÇÃO – arts.31º a 39º CP


O art.31º CP contém uma cláusula geral de justificação que depois é concretizada por várias normas e na
parte geral do CP prevêem-se várias causas de justificação:
1. Legítima defesa (art.32º CP)
2. O direito de necessidade ou estado de necessidade objetivo (art.34º CP)
3. Conflito de deveres (art.36º/1)
4. Obediência justificante (art.31º/2/c) parte final)
5. Consentimento (art.38º)
6. Consentimento presumido (art.39º CP).
Estas são as causas de justificação previstas e reguladas na parte geral do CP.

1. Legítima defesa (à partida não sai no exame, só em oral)

A legítima defesa está prevista no art.31º/2/a) CP e está caraterizada no art.32º CP.


Qual o fundamento da legítima defesa? Esta é uma justificação que está entranhada na consciência
comunitária ao longo do milénio – desde sempre se excluiu a responsabilidade de quem atuava em
legitima defesa. Nas últimas décadas, este tema tem sofrido uma grande discussão, não só jurídica, mas
também do domínio social. Tradicionalmente, a legitima defesa era fundamentada com base na ideia de
quem age em legitima defesa age em nome da ordem jurídica, atua do lado certo, do lado do direito e
este seria o fundamento da legítima defesa. A legítima defesa tem uma função de prevenção geral muito
relevante. Assim, é dominante a ideia de que, em legítima defesa, se defende a ordem jurídica, surgindo
também a ideia de inexistência de limites fundados na proporcionalidade de bens.

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Qual é o problema que se coloca? É o de saber se em legitima defesa se pode sacrificar um interesse,
um bem mais valioso do que aquele que se está a defender.

De acordo com o nosso regime jurídico, a resposta é afirmativa – podem sacrificar-se bens mais valiosos
do que aqueles que se estão a defender e porquê? Porque aquele que se está a defender, está do lado da
ordem jurídica e o que é posto em causa está contra a ordem jurídica porque viola um bem jurídico. Por
exemplo: uma mulher que está a ser violada pode matar o violador porque está a atuar em legítima defesa
– ela não está condicionada por uma proporcionalidade de bens. E esse fundamento funda-se no facto de
o agente ter a ordem jurídica do seu lado.

Esta visão tradicional das coisas leva a soluções chocantes e daí que nas últimas décadas se tenha
percorrido um caminho de suavização da legítima defesa, estabelecendo os limites ético-socias que se
deve a uma outra fundamentação da legitima defesa. Introduz-se uma ideia de proporcionalidade no seio
da legítima defesa e isso consegue-se através de uma reconfiguração do próprio fundamento em que se
deixa para trás o bem da ordem jurídica e se eleva a valorização da proteção individual.

Atualmente, grande parte da doutrina como Figueiredo Dias aponta para um fundamento misto: junta a
defesa do direito com a proteção individual – proteção do direito na proteção do agredido.

 REQUISITOS DA LEGÍTIMA DEFESA

Em termos de pressupostos de funcionamento da legítima defesa, para que se possa dizer que a
ilicitude do facto típico é excluída da causa de justificação da legítima defesa, é preciso que se verifique a
situação justificante da legítima defesa – quer quanto à agressão, quer quanto à defesa (art.32º CP).
Tradicionalmente, um cenário que precisa da utilização da legítima defesa é um cenário de
conflito, em que aquele que contra-ataca pretende abrigar-se na legítima defesa para legitimar a sua
conduta. Temos um cenário em que uma pessoa investe sobre outra e a outra responde para se defender
e responde de uma forma tal que comete um facto típico sobre a pessoa que investiu sobre ela primeiro.
Põe-se a questão de saber se quando a resposta que atinge um bem jurídico do agressor tem uma
relevância típica, se ela pode qualificar-se como não ilícita por via da legítima defesa.

Para que se possa falar de uma situação de legítima defesa, em primeiro lugar, é necessário que
se verifique uma agressão, ou seja, que aquele que sofre uma certa ação típica tenha previamente
realizado uma agressão. Para que se possa dizer que estamos dentro de uma agressão suscetível de ser
objeto de uma agressão em legítima defesa, em primeiro, lugar temos de verificar se está em causa uma
agressão humana – não se pode falar em legítima defesa quando o ataque provém de um animal ou de
uma coisa, a não ser que eles estejam a ser dominados por uma pessoa. Quando estão em causa agressões
de animais, o meio defensivo que porventura seja usado e que corresponda, por exemplo, a uma lesão
ou à morte do animal, punível pelo crime de maus tratos aos animais, pode ser dado, mas não ao abrigo
da legitima defesa – se um indivíduo sofre uma investida de um cão, a resposta deve ser dada ao abrigo
do regime do estado de necessidade defensivo. Coisa diferente será naqueles casos em que o animal está
a ser instrumentalizado – se a pessoa utiliza o animal para realizar um ataque, aqui já se pode falar em
legítima defesa.
Assim, a ação tem de ser humana e tem de ser dominada pela vontade, de maneira que não se
pode agir em legítima defesa contra agressões de pessoas que se encontrem inconscientes ou que
estejam a ser manietadas para agredir. Nessas situações, o agressor, se não tem o domínio da vontade,
então, não está a realizar uma agressão para efeitos da legítima defesa e, como tal, não pode sofrer
legítima defesa.
A agressão que possa dizer-se que seja uma agressão em sede de legítima defesa deverá lesar ou
ameaçar interesses jurídicos como a vida, a integridade física, a liberdade ambulatória, a honra, a
propriedade do agente e de terceiros, não havendo a possibilidade de, em legítima defesa, serem
protegidos interesses supraindividuais. A agressão poderá ser por ação, quando o agressor faz qualquer

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coisa que põe em cheque interesses de terceiros ou também pode ser por omissão (uma mãe que não
alimenta o filho, por exemplo). Será relevante uma agressão dolosa, como uma agressão negligente.
Portanto, deve-se perguntar:
1º: Há agressão “anterior”?
2º: Essa ação é humana?
3º: É dominada pela vontade?
4º: Lesa ou ameaça interesses jurídicos?

A agressão tem de ter 2 características fundamentais: tem de ser ilícita e atual. Só se pode responder em
legítima defesa a agressões ilícitas e atuais.

1) Agressão ilícita/ilicitude: a ilicitude é um pressuposto fundamental é o “cérebro” da legítima


defesa, já que um dos fundamentos é a defesa da ordem jurídica, portanto, é a ilicitude que faz
sentir uma defesa geral. Como se sabe que é ilícita? Configura qualquer ato contrário à ordem
jurídico-penal pode levar à legítima defesa. Contudo, não é necessário que seja um crime penal
para que haja ilicitude (pode ter natureza de direito civil, p.e.). No entanto, há certas condutas
contrárias ao Direito que não podem ser afastadas em legítima defesa – nos casos em que a ordem
jurídica preveja meios específicos para a proteção desses interesses (por exemplo, não
pagamento de uma dívida). Também não há ilicitude naqueles casos em que, embora da conduta
do agressor possa resultar um dano, aquela conduta ainda está dentro do regime de risco – o
afetado pode defender-se, mas a resposta terá de ser outra causa justificada que não a legítima
defesa.

2) Agressão atual/atualidade: só há legítima defesa perante uma agressão atual. Quando é que a
agressão é atual? Quando é que começa e quando é que termina? Quanto mais se retardar o
âmbito da atualidade, mais prejudicial para o agressor pode ser porque a agressão vai avançando
e ficando + perigosa, pelo que haverá uma maior defesa para ser eficaz, será algo mais drástico
do que se pudesse reagir mais cedo.
Considera-se a agressão atual quando já é iminente (por exemplo: o agressor prepara-se para
disparar, mas assim que pega na pistola já estamos perante uma agressão atual). Além disso,
enquanto a compressão do bem jurídico estiver em curso, perdura, igualmente, a atualidade da
agressão (por exemplo: sequestro – a partir do momento em que se priva a liberdade já há crime,
mas ao manter o crime, a agressão perdura). A agressão cessa quando cessar a ofensa à ordem
jurídica, cessando também a legítima defesa.
 Retorsão: quando responde a uma agressão anterior sendo que essa agressão já cessou
– art.143º/3/b). Há possibilidade de legítima defesa nos crimes quanto à propriedade?
Isto é, em casos de furto/roubo, até quando o agredido pode responder? Um furto
consuma-se logo que o ladrão coloca as coisas na sua esfera. Então, já se tendo
consumado o furto, posso responder em legítima defesa? A resposta é afirmativa.
Embora já se tenha consumado, a legítima defesa pode ser retorcida – enquanto estiver
no espaço, pode o ofendido responder em legítima defesa.

 AÇÃO DE DEFESA – REQUISITOS:


Quando alguém é confrontado com uma agressão desta natureza – ilícita e atual – pode responder em
legítima defesa. Contudo, não pode responder como quiser: há parâmetros normativos – a legítima
defesa tem pressupostos quanto à agressão e quanto à defesa.
A defesa tem de ser idónea e necessária para afastar a agressão (necessidade do meio) e ela própria
necessária (necessidade de defesa).

1. Necessidade do meio: só estão cobertos pela legítima defesa as respostas que compreendam o
meio necessário para repelir à agressão. Quando é que o meio é necessário? Quando dentro dos
vários meios possíveis é o menos gravoso para o agressor. Há uma proteção do agressor – o

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agressor também é uma pessoa com direitos fundamentais, por isso, basta o meio necessário
para que a defesa seja eficaz.
Para avaliar a idoneidade do meio, tem de se verificar toda a dinâmica do acontecimento – em
situações de confronto, de que meios de ataque dispunha o agressor e que meios de defesa tinha
o agredido? Muitas vezes, quando alguém é agredido, pode ou não recorrer à fuga. É exigível ao
agredido que recorra à fuga? Ou seja, pode ser exigida, por ser um meio idóneo e menos gravoso
para o agressor? A resposta é negativa. Se fosse exigido um dever de fugir, legitimar-se-ia o mais
forte, indo contra a ideia de prevenção geral da legítima defesa.

 Excesso de legítima defesa: se o agente empregar um meio necessário e menos


gravoso, estão verificados os requisitos da legítima defesa. Se, pelo contrário, o
meio for considerado não necessário e excessivo, não se verifica o pressuposto
essencial da legítima defesa e a conduta do agredido é ilícita. Fala-se, aqui, nos
excessos do meio da legítima defesa, i.e., excesso intensivo de legítima defesa.
Neste sentido, sendo a defesa ilícita, pode responder penalmente (art.33º CP),
embora a pena seja atenuada, podendo até ser desculpado se a o excesso resultar
do “susto” do momento.

2. Necessidade de defesa: além desta necessidade do meio, a própria defesa deve ser considerada
necessária. Há uma discussão sobre os limites ético-sociais da legítima defesa. A conceção
tradicional da legítima defesa sustentava que na legítima defesa não havia uma limitação de
proporcionalidade de bens – ou seja, posso sacrificar bens do agressor mais valiosos do que os
meus que estou a defender. Segundo este pensamento, haveria situações que, mesmo verificados
todos os pressupostos (justiça da situação), a exclusão da ilicitude era muitas vezes vista como
reprovável pela generalidade das pessoas – começam a surgir críticas ético-sociais.
É nesta linha que se insere o pensamento de Figueiredo Dias: terá de haver alguma contenção na
defesa, ainda que em meio necessário, para que a defesa possa ser mais contida do que no quadro
“normal” da legítima defesa. Seria assim quando, nas circunstâncias, o juiz possa formar a ideia
de que a defesa não é perspetivada socialmente como intolerável. Portanto, tem de haver
contenção do agredido, que se traduz na ideia de que os bens a sacrificar, no âmbito da legítima
defesa, não sejam mais ponderosos do que aqueles que se defendem (por exemplo, B pode matar
A, só porque A lhe está a furtar um anel – o direito à vida é um bem mais ponderoso). Estabelece-
se uma ideia de paridade e proporcionalidade. Falamos de casos em que a legítima defesa está
diante de pessoas em confronto e que só admite a restrição de bens do agressor na estrita medida
do necessário. A ordem jurídica tende a preocupar-se mais com os direitos do agredido. Contudo,
casos em que a ordem jurídica atende aos direitos do agressor, na medida em que seja necessário
para proteger o agressor, pois há certas características do agressor que faz com que as coisas
sejam vistas de forma diferente, havendo uma maior proteção do agressor face ao agredido:

a) Agressões não culposas:


O agredido pratica um facto típico que corresponde a uma atuação ilícita. Pode
acontecer que o agressor tenha certas características que determinam a exclusão da
sua culpa, embora atue ilicitamente, por exemplo: casos de menoridade (em que há
uma maior tolerância) ou casos em que não lhe é imputável por anomalia psíquica.
Nessas situações, a necessidade de proteção da ordem jurídica não é tão intensa por
parte do agredido – p.e., não é a mesma coisa ser insultado por uma pessoa “normal”
ou por alguém com determinado atraso mental. Não pode ser dada a mesma resposta
a alguém que atua com culpa, daí que a contenção seja maior.
Há uma provocação prévia do próprio agredido: temos uma agressão que é uma
resposta a um comportamento que a causou. Logo, a defesa terá de ser mais contida,
porque foi o agredido que provocou a agressão, não tendo tanta legitimidade como
alguém fosse totalmente “inocente” – as situações de comportamento prévio são
aptas a receber esta ideia de limites.

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• Contudo, há casos em que o agredido tem um comportamento
“préordenado”: quando o agressor provoca o agredido de modo a que ele
tenha esse comportamento como meio de arranjar um pretexto para iniciar a
agressão. Aqui, importa saber quem verdadeiramente deu aso à situação.
Sendo o provocador o agredido, não pode dar uma resposta igual a se tivesse
sido uma agressão gratuita.

b) Crassa desproporção do significado da defesa e da agressão: casos em que o que se


defende da agressão tem como agredido um bem de pequena importância, responde
levando em causa um bem muito mais importante. Aqui, não pode invocar legítima
defesa, pois há um abuso de direito – procura-se uma ideia de proporcionalidade entre
os bens em disputa. É invocada sobretudo quando os bens do agressor são bens
pessoais e essenciais (quando o agressor sacrifica de forma grave a vida ou integridade
física do agressor).

c) Posições especiais: quando há um certo tipo de relacionamento especial, as pessoas


são unidas por certos laços (por exemplo, marido e mulher). Nestes contextos de
relações pessoais, o facto de conviverem quotidianamente faz com que leve à
frequência de conflitos. Aquele que é agredido tem direito à legítima defesa, mas a
necessidade de defesa deve ser tida mais em conta pois não é qualquer tipo de
situação que leva à resposta do próprio ou intervenção de terceiros.

d) Autos de autoridade: situações em que a defesa contida é exigida por pessoas que
desempenham funções públicas. Os agentes especiais podem agir em legítima defesa
nos mesmos termos que as outras pessoas? Não. Há sobre os agentes de autoridade
restrições que são previstas em situações que podem reagir em legítima defesa.
Porquê? Desde logo, têm uma preparação própria que o comum dos cidadãos não tem
para intervir em situações de confronto. Em segundo lugar, os representantes do
Estado estão condicionados por um princípio da proibição do excesso que determina
uma exigência de proporcionalidade em sentido amplo e estrito. Isto implica que para
a defesa dos interesses que se encontram ameaçados há uma exigência de
proporcionalidade, que tem base legal no DL 457/99. Este diploma só autoriza que haja
recurso à arma de fogo em caso de absoluta necessidade, como medida extrema, isto
é, quando a vida de alguém ou do agente está ameaçada.

• Notas:
• Um dos elementos subjetivos da legítima defesa é que o agredido tem de ter
a intenção de defesa. Neste caso, em regra, não é exigido, basta que o agente
saiba que está a defender.
• Sobre quem é que a ação de defesa pode recair? Se a resposta defensiva atinge
uma pessoa diferente do agressor, essa resposta não está justificada como
legítima defesa.

e) Auxílio necessário: em legítima defesa podem defender-se interesses próprios e


também interesses de terceiros, basta que o agredido não manifeste oposição à sua
defesa.

GOOD LUCK

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