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Bárbara Guedes

2018/2019

CASOS PRÁTICOS DPI


Dra. Cristina Líbano e Dr. Nuno Brandão

APLICAÇÃO LEI PENAL NO TEMPO

Caso prático 1

A Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira aprovou a seguinte norma:


“1. Quem anunciar ou publicitar, vender ou ceder por qualquer forma, substâncias psicoativas é punido com
pena de prisão até 3 anos.
2. Consideram-se substâncias psicoativas todas as substâncias de origem natural ou sintética, em qualquer estado
físico ou de um produto, planta cogumelo, ou parte dela contendo substância, com ação direta ou indireta sobre
o sistema nervoso central, sem indicação específica para uso humano e cujo fabrico ou introdução no comércio
não seja regulado por disposições próprias.”
Pronuncie-se sobre a validade constitucional destas normas.

Coloca-se aqui questão de saber se estas normas são ou não admissíveis à luz do direito penal1. O problema coloca-se
numa perspetiva penal – temos aqui um comportamento ameaçado com uma pena criminal e, portanto, estamos perante
um crime.

Questiona-se a validade constitucional destas normas, o que nos leva para o princípio da legalidade criminal. Quais os
possíveis fundamentos de violação do princípio da legalidade criminal? Segundo este princípio, não há crime, nem pena
sem lei - a questão é saber se essa lei é conforme à constituição, ao artigo 29º/1 CRP.

Temos, portanto, de saber se a Assembleia Legislativa da Madeira tem competência para tipificar crimes – problema de
competência legislativa.

O princípio da legalidade penal exige que a lei penal seja uma lei escrita, certa, estrita e prévia.

O subprincípio da lei escrita exige que a lei penal seja uma lei formal. De acordo com o art.165º/1/c) CRP, só a AR, ou
quem por ela competentemente autorizado, pode definir o regime dos crimes, das penas e das medidas de segurança e
os seus pressupostos – a responsabilidade criminal de certo facto tem de decorrer de uma norma legal. Resultando, desde
logo, a proibição da tipificação de crimes com base no costume.

A AR detém uma reserva relativa de competência legislativa em matéria penal e processual penal, e por isso, em regra,
só ela pode legislador nesta matéria. Logo, as assembleias regionais não têm competência nesta matéria, não podendo,
portanto, tipificar crimes.

1 Na realidade, a questão deste acórdão pôs-se não no plano criminal, mas no plano contraordenacional – suscitou-se a constitucionalidade das
normas contraordenacionais, e quando se visa a inconstitucionalidade da norma temos de ter um parâmetro, um princípio uma regra que foi violado.
O TC neste acórdão não aprecia o problema a luz do princípio da legalidade criminal – art.29ºCRP, mas sim a luz do princípio do estado de direito
– 2ºCRP. Pois o tribunal tem uma tendência para distinguir de forma muito extremada o direito penal do direito contraordenacional.
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Desta forma, qualquer das normas do enunciado seriam inconstitucionais pois violariam o princípio da legalidade
criminal na sua vertente de reserva de lei.

O facto de esta ser uma matéria da competência (relativa) da AR compreende-se pelo facto de ela ser constituída por
representantes do povo; só estes têm competência e legitimidade para tipificar sanções criminais, pois estão em causa
sanções severas para os direitos fundamentais das pessoas. Deste modo, não é qualquer órgão do Estado que pode
legislar quanto a esta matéria – só os representantes do povo (AR) têm legitimidade democrática para tipificar como
crimes determinados comportamentos socialmente reprováveis.

Sendo uma competência relativa, a AR pode autorizar o Governo a legislar em matéria penal, mediante DL autorizado.
Neste sentido, não é de excluir a possibilidade de normas penais serem aprovadas pelo Governo (desde que previamente
autorizadas pela AR). Se o Governo legislar em matéria penal sem que para isso tenha tido autorização da AR, viola o
art.165º/1/c CR, pelo que essa norma será inconstitucional.

Sendo uma matéria da competência relativa da AR, podem, portanto, legislar quanto a ela e o Governo quando
autorizado por esta. Coloca-se a questão de saber se o governo tem ou não legitimidade para revogar normas penais
aprovadas pela AR?

Por força da interpretação do princípio da legalidade criminal, cuja finalidade é a proteção dos cidadãos face ao poder
punitivo do Estado, nada obsta a que o Governo, tendo autorização para tal, revogue ou atenue penas criadas pela AR
(o âmbito de proteção do princípio da legalidade criminal só vale quando diga respeito à fundamentação ou agravamento
da responsabilidade penal). Porém, embora não sendo proibida pelo princípio da legalidade, vem-se a entender que, por
razões de organização política do Estado, o Governo não pode revogar uma norma aplicada pela AR descriminalizando
um comportamento que havia sido tipificado como crime, por força do equilíbrio de poderes entre os órgãos soberanos
do estado -há uma preponderância da AR.

Outro subprincípio é o da lei certa, segundo o qual a lei criminal deve ser clara, precisa, impondo ao legislador penal
uma exigência de determinabilidade por razões de segurança jurídica – só desta forma os cidadãos sabem aquilo com
que podem contar, aquilo que é tipificado como crime à luz do direito penal. Tal também se deve por razões de controlo
do poder punitivo do Estado para que não lhe seja permitido atuar arbitrariamente – se as leis forem imprecisas, poucos
claras, ambíguas é como se o juiz fica-se “com a faca e o queijo na mão” interpretando livremente aquilo que, para ele,
era crime ou não – mais uma vez, por razões de segurança, tal não pode acontecer. O princípio da legalidade criminal
tem esta função ordenadora/disciplinadora muito importante.

No entanto, claro está, que para que a norma penal cumpra estes requisitos de clareza, ela não tem de estar redigida de
forma tal que seja percetível para qualquer pessoa que leia o CP; ela tem é de descrever uma certa conduta de modo tal,
que os sujeitos entendam aquilo que é ou não crime (ex.: abuso de confiança – as pessoas não têm de saber exatamente
toda a abrangência do abuso de poder para saberem que não se podem apropriar de algo que lhes é emprestado) → as
leis penais não têm de estar escritas de maneira a que sejam claramente percetíveis para um leigo; importa sim que do
seu conteúdo seja percetível o crime.

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Será que no nosso caso prático, perante a redação destas normas fica claro quais as substâncias que não se podem vender
sob ameaça de pena? O TC entendeu que esta norma era inconstitucional por ser muito vaga, ambígua, genérica, não
era suficientemente densa para que fosse percetível que substancias eram proibidas. O legislador refere-se a substâncias
que afetam o sistema nervoso central: tal termo abrange substâncias que o afetam, mas que são lícitas, como o chocolate,
o café, a nicotina. Assim, apenas através de uma tabela que especificasse de forma especifica e clara quais as substâncias
que o legislador tinha em vista com aquela formulação é que ficaria cumprida esta exigência de determinabilidade.

Caso Prático 2

Em 2018, A foi submetido a julgamento sob a acusação de, no ano 2014, ter guardado no seu computador 3 vídeos
pornográficos envolvendo crianças menores de 10 anos, sendo-lhe imputada a prática do crime previsto no n.º 4
do art.176.º do CP, na redação então vigente, introduzida pela Lei n.º 59/2007 (“Quem adquirir ou detiver os
materiais previstos na alínea b) do n.º 1”). Em julgamento apurou-se que, afinal, os vídeos não estavam gravados
no referido computador, tendo-se antes provado que A a eles acedia através de streaming.

Quid juris?

Artigo 176.º (Pornografia de menores)


CP 2007: 4 - Quem adquirir ou detiver os materiais previstos na alínea b) do n.º 1 é punido com pena de prisão até um
ano ou com pena de multa. [Lei 59/2007] → L1

CP 2015: 5 - Quem, intencionalmente, adquirir, detiver, aceder, obtiver ou facilitar o acesso, através de sistema
informático ou qualquer outro meio aos materiais referidos na alínea b) do n.º 1 é punido com pena de prisão até 2
anos. [Lei 103/2015] → L2

a) Em alegações, o Ministério Público pugnou pela condenação de A, argumentando que, do ponto de


vista da necessidade de proteção dos menores, é indiferente se as imagens são visualizadas a partir de um
ficheiro guardado no computador ou através de um site na internet.

Em 2007, com a lei 53/2007, previu-se que a aquisição ou detenção de material pornográfico de menores passou a ser
considerado crime de pornografia de menores.

Neste caso, em 2014, temos a acusação de que este individuo tinha guardado 3 filmes pornográficos. Em 2015 houve
uma alteração da lei, que veio acrescentar também algumas condutas previstas no ar.176º/5 CP. Em 2018 conclui-se que

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os vídeos não estavam guardados, mas apenas tinham sido acedidos através da internet (em streaming). Em 2018, pode
ou não este indivíduo ser condenado por um crime de pornografia de menores?

O MP argumentou que, do ponto de vista da necessidade de proteger os menores, faz tanto mal aquele que visualiza as
imagens a partir de um ficheiro guardado no computador ou através de um site na internet – argumenta que
materialmente não há qualquer diferença, devendo o agente ser punido igualmente nos termos da lei → o MP está a
socorrer-se de uma analogia defendendo que, estando em causa a proteção da sexualidade dos menores e a sua
privacidade, não há diferença material entre ver um filme guardado ou online; a situação é análoga à que está na lei, e
por isso justifica-se a punição do facto. Porém, tal argumento violaria o princípio da legalidade criminal no que diz
respeito à proibição da analogia.

Para além de a lei penal ter de ser escrita e certa, tal como vimos nos exemplos acima referidos, o princípio da legalidade
penal exige que a lei penal seja uma lei estrita proibindo-se o recurso à analogia para cobrir um comportamento que
não tinha previsão legal.

A analogia corresponde à resolução de casos omissos através da aplicação de uma norma tipificada a um caso análogo
não previsto (analogia legis).

A proibição da analogia está sujeita a regras particularmente relacionadas com a função do direito penal (tutela
subsidiárias de bens jurídicos com dignidade penal) e com o princípio da legalidade criminal. Esta proibição decorre,
desde logo, do art.29º/1 CRP, estando a mesma ideia contida no art.1º/1 CP, sendo que o art.1º/3 CP proíbe
expressamente a analogia incriminatória. Proíbe-se, portanto, a analogia in malaum partem (desfavorável) – disto resulta
que toda a analogia que não caiba nesta definição (que não for desfavorável) não é proibida (analogia in favor reum) →
A analogia só viola o princípio da legalidade criminal, sendo proibida quando é desfavorável para o agente
(analogia in malaum partem); quando é favorável ao agente (analogia in bonum partem) não viola o princípio da
legalidade criminal e, por isso, é permitida.

Está em causa o problema da interpretação da lei penal – onde é que ainda estamos perante interpretação, ainda que
extensiva, ou já estamos perante analogia? Tudo dependerá dos sentidos possíveis das palavras usadas pelo legislador.

Atualmente, aceita-se que praticamente todos os conceitos utilizados na lei são suscetíveis de interpretação pois são
polissémicos (suscetíveis de oferecem várias interpretações). Assim, na interpretação das nomas, tem, antes demais, de
procurar-se o sentido possível das palavras que o legislador empregou, utilizando-se um critério teleológico.

Neste caso, ver um filme não significa deter um filme – logo aqui teríamos uma analogia proibida. Teríamos uma lacuna
que não podia ser preenchida através de analogia pois é proibida: os erros do legislador não podem ser supridos pelo o
cidadão, por mais chocante que a realidade seja, pois se assim não fosse, estaria a ser violada a tal função de segurança
jurídica que o princípio visa assegurar. Seria ainda, violado o princípio da separação de poderes, porque no fundo os
tribunais substituir-se-iam ao legislador na criação de normas penais. Neste sentido, a proibição do recurso à analogia é
um corolário fundamental do princípio da legalidade criminal (que vale para o direito penal, mas que do ponto de vista
constitucional, vale também para o processo penal)

Sendo a analogia apenas proibida quando seja utilizada in malem partem, coloca-se a questão de saber em que casos em
que a analogia in bonum partem é permitida. FIGUEIREDO DIAS entende que a analogia quando seja a favor do agente,

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por não violar o princípio da legalidade criminal, não é proibida no DP (pensamento dominante). No entanto, tal
pensamento não é isento de dúvidas pois excluir a responsabilidade de alguém, pode implicar a punição de outrem
(COSTA ANDRADE).

b) Mais argumentou que, fosse como fosse, a conduta de A é atualmente punível nos termos do n.º 5 do art.176.º
do CP, na redação introduzida pela Lei n.º 130/2015.

A redação da lei em 2015 pune o facto com pena de prisão até 2 anos. Sendo A julgado em 2018, o MP alega que o
facto tem de ser julgado de acordo com a lei vigente. No entanto, aquando da prática do facto, vigorava a redação da lei
de 2007 que punia o facto com pena de prisão até 1 ano ou pena de multa.

Ora, está aqui em causa o subprincípio do princípio da legalidade criminal da lei prévia – proibição da retroatividade
em tudo o que seja contra reum.

Diz-se que a lei tem de ser prévia pois deve ser anterior ao comportamento que pretende prevenir e punir. O facto é
punido de acordo com a lei que vigora no momento da prática do facto, proibindo-se que uma lei posterior possa regular
factos passados (art.1º/1 CP)

Por força do princípio da legalidade criminal, não se pode punir criminalmente um comportamento que não era crime
ao tempo em que foi praticado – este princípio tem expressão tanto ao nível do facto praticado, como ao nível da própria
sanção: a lei deve ser anterior ao facto e as sanções também só podem ser aplicadas a esse comportamento de acordo
com uma lei anterior à pratica do facto. Há uma proibição da retroatividade da lei incriminadora ou agravadora.

Ora, o argumento do MP é improcedente, pois se o crime foi cometido em 2014 e se a lei só foi alterada em 2015, não
poderia aplicar-se a uma conduta que lhe é posterior – a lei a aplicar é a que vigorava em 2014.

Pelas mais variadas razões, o individuo ao fazer isso em 2014 não podia contar com a possibilidade de ser punido
criminalmente por o fazer, ao tempo que atuou e, portanto, não pode sofrer uma punição penal posteriormente prevista
em 2015.

Neste sentido, a lei penal vale para o futuro e a relevância criminal de um certo comportamento deve ser aferida em
função da lei em vigor ao tempo em que o facto foi praticado. É o que decorre do artigo 1º/1 e 2º/1CP.

Há uma certa tendência na Lei Judiciaria de recorrer Código Penal atual; contudo a lei que se tem agora não é a lei que
vigorava ao tempo – um penalista saberá que se o facto é de 2009 não poderá ir ao código de 2018, mas sim ao código
de 2009 (o que pode ter implicações severas na procedência do caso)

Neste caso, o agente não podia ser punido pelo crime de pornografia infantil, nem ao brigo da norma que estava em
vigor quando ele atuou, nem de acordo com a lei que mais tarde entrou em vigor.

Caso prático 3

No início de setembro de 2007, Ana disparou um tiro sobre o seu marido Bruno, com intenção de o matar. Na
sequência do disparo, Bruno foi levado para o hospital, vindo a falecer no dia 20 de setembro de 2007. Pode Ana

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ser punida por crime de homicídio qualificado, com base na alínea b) do n.º 2 do art.132.º do CP, introduzida
pela Lei n.º 59/2007, entrada em vigor no dia 15/9/2007?

Ao momento da prática do facto (1 setembro de 2007) este era qualificado como crime de homicídio simples ao abrigo
do art.131ºCP sendo punido com uma pena de prisão de 8 a 16 anos. A partir de 15 de setembro de 2007, este facto
passou a ser tipificado enquanto homicídio qualificado, passando a estar integrado no art.132º/b CP, sendo a pena já de
12-25 anos (agravamento da pena). Bruno morre a 20 de setembro de 2007.

Quando a agente disparou (momento da prática do facto) estava em vigor a lei em que aquele comportamento de matar
uma pessoa correspondia ao crime de homicídio simples. Em 2007, houve uma grande revisão do CP, e o legislador
entendeu que este comportamento era suscetível de revelar uma especial perversidade, sendo um homicídio qualificado
punido com uma pena de 12 a 25 anos (art.132ºCP). O homicídio qualificado decorre de um elevado grau de
censurabilidade, um grau de culpa mais grave.

No nº2 deste artigo faz-se a referência “entre outras” - o legislador adotou uma técnica de qualificação do homicídio
em que se admite a técnica de analogia, por força de alcançar a determinabilidade do mesmo; contudo a
determinabilidade exige a verificação de vários cuidados na interpretação pois pode levar a inconstitucionalidade.

Quando Ana disparou, o crime não era suscetível da mesma censurabilidade que era quando Bruno morreu. Ora, qual
das leis é aplicável?

Se o princípio é o de que a lei aplicável é a que vigora no momento, tornar-se importante a determinação do momento
da prática do facto. Neste sentido, o art.3º CP, conjugado com o art.2º/1 CP esclarece qual é o momento relevante para
efeitos da aplicação da lei penal no tempo: as penas e as medidas de segurança são determinadas pela lei vigente no
momento da prática da ação (os crimes materiais implicam a divisão entre o momento da ação e o momento da
consumação/do resultado). É neste momento que se determina a aplicação da lei. A lei estabelece a divisão entre o
momento em que o agente atua, ou, em caso de omissão, que deveria ter atuado, e o momento em que o resultado típico
se produziu → o art.3º considera que o momento relevante é o da prática do facto!

Daqui decorre que, no nosso caso, o ato considera-se praticado quando Ana dispara sobre Bruno a 1 de setembro de
2007. Qualquer circunstância posterior não vai alterar o momento da prática do facto. Se uma nova lei aparecer no
período em que medeia a conduta e a produção do facto, esta não vai ser aplicada.

A lei nova veio agravar a responsabilidade, mas entrou em vigor depois da conduta e, portanto, ainda que o resultado se
tenha verificado no decurso da sua vigência não pode aplicar-se a este caso. A censura deve reportar-se ao momento da
ação

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A fixação do tempus deliti no momento da conduta e não do resultado, também tem que ver com a própria finalidade
do principio da legalidade criminal: se fosse possível ao Estado punir um comportamento que não era crime no momento
em que o agente agiu em função de um resultado que era previsível, mas que ainda não era punido, poderia ocorrer ao
estado criminalizar a conduta nesse intermédio, para punir alguém que na altura da conduta não era punido. Ou seja,
nos casos em que o poder legislativo previa que uma certa consequência iria decorrer de uma certa conduta, bastar-lhe-
ia qualificar aquela conduta naquele intermédio (o que atentaria contra o princípio da legalidade criminal, pois era como
se o Estado estivesse a “perseguir” o agente)

A determinação do momento da prática do facto levanta problemas quando aos crimes duradouros (ex.: sequestro),
i.e., crimes em que a conduta se prolonga n tempo, por opção do agente, de tal modo que uma parte ocorre no domínio
da lei antiga e outra no domínio de uma lei nova (≠ crimes continuados).

Será que a nova lei aplica-se a todo o comportamento, mesmo à parte que ocorreu quando ela ainda não tinha entrado
em vigor?

A tendência é para responder afirmativamente, que no fundo tudo é unificado num momento só, aplicando-se a lei
posterior (a lei posterior derroga a lei anterior) No entanto, a solução acolhida é a de que qualquer agravação da lei
ocorrida antes do término da consumação só pode valer para aqueles elementos típicos do comportamento verificados
após o momento da modificação legislativa.

O mesmo vale para os crimes de execução fragmentadas no tempo (um só crime, mas praticado pelo agente durante
vários momentos temporais) – ex.: crime de tráfico de drogas.

Medidas de seguranças: ao contrário das penas, as MS guiam-se por 2 pressupostos diferentes: o facto e um estado
de perigosidade. Qual a lei aqui a aplicar? A Dra. Maria João Antunes defendeu, na sua tese, a lei vigente no momento
da prática do facto aplica-se para determinar o crime, mas é a lei vigente no momento do julgamento que se deve aplicar
para determinar o estado de perigosidade do agente.

Caso Prático 4

Em 2012, A foi condenado em pena de prisão de 2 anos pelo facto de, em 2010, aquando de um interrogatório a
que foi sujeito na qualidade de arguido num inquérito criminal, ter mentido sobre os seus antecedentes criminais
(artigo 359.º, n.º 1, do CP). A Lei n.º 20/2013 alterou o art.141.º/3 do CPP, eliminando a obrigação de prestação
de declarações sobre os antecedentes criminais no âmbito do primeiro interrogatório judicial de arguido detido.
Que consequência daí terá advindo para a execução da pena de prisão aplicada a A que se encontrava em curso?

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No fundo, até 2013, no processo penal, quando o arguido era interrogado num inquérito – 1º fase do processo penal –o
dever de responder a perguntas sobre os seus antecedentes criminais; se a pessoa faltasse com a verdade ao responder a
estas questões, incorria na prática de um crime – crime de falsas declarações. Esta exigência era bastante controversa,
pois as pessoas perante um interrogatório sentiam-se desconfortáveis a dizer que se tinham cometido crimes – o que
resultava em mais processos para além do presente por terem mentido; havia, assim, muitos processos bagatelares. Em
2013, o legislador decidiu que deixava de ser permitido perguntar a um arguido pelos seus antecedentes criminais, não
tendo este mais o dever de responder.

Neste caso, temos alguém que em 2010 mentiu sobre os seus antecedentes criminais e foi condenado em 2012 com o
crime previsto no art.359ºCP, com uma pena de prisão de 2 anos. Em 2013, tal facto deixou de ser crime. →
descriminalização. Que consequência é que surge para este individuo que, entretanto, estava a cumprir a pena de prisão
por este crime?

Este caso insere-se no âmbito do princípio da aplicação da lei mais favorável (lex mellior) – art.2º/4 CP “quando as
disposições penais vigentes no momento da prática do facto punível forem diferentes das estabelecidas em leis
posteriores, é sempre aplicado o regime que concretamente se mostre mais favorável ao agente;”. Para saber qual é o
regime concretamente mais favorável, o juiz simula objetivamente o julgamento do facto ao abrigo de ambas as leis de
forma a concluir qual a mais favorável; não aplica “recortes” de cada lei – falamos assim numa aplicação da lei (mais
favorável) em boco.

O mesmo princípio está previsto constitucionalmente no art.29º/4 CRP que manda aplicar “retroativamente as leis
penais de conteúdo mais favorável ao arguido”.

Estamos perante uma hipótese de descriminalização: uma lei posterior à prática do facto deixa de o considerar como
crime. A descriminalização pode ocorrer não só quando o crime é revogado expressa ou implicitamente, mas também
quando se prevê legalmente certas circunstâncias que excluem a responsabilidade penal.

A questão que se coloca é: quando é aprovada uma lei nova que tenha um significado de exclusão da responsabilidade
penal, i.e., quando em face da nova lei o facto praticado deixa de constituir crime, que consequências daí advêm para os
factos anteriores à entrada em vigor dessa lei?

A constituição estabelece no artigo 29º/4, que a nova lei, por ser mais favorável ao agente, deve aplicar-se
retroativamente. Quando haja uma lei nova que seja mais favorável para o agente do que aquela que estava em vigor no
momento em que ele agiu, essa nova lei deve aplicar-se aos factos anteriores à sua entrada em vigor – aplicação
retroativa.

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A constituição exige esta eficácia retroativa porquê? Por razões que se prendem com o princípio da necessidade
(art.18º/2 CRP), não é exato falar aqui de uma exceção ao princípio da legalidade criminal, pois este só cobra aplicação
quando seja para agravar a responsabilidade. Aqui é para excluir ou atenuar – há um princípio autónomo da aplicação
retroativa da lei penal mais favorável – art.29º/4CP, e de acordo com este princípio, uma nova lei que implique um
tratamento concretamente mais favorável ao agente deve ser aplicada os factos anteriores – caso das situações de
descriminalização, e também de pura atenuação da pena ou medida de segurança.

No fundo por detrás desta aplicação retroativa, temos o princípio da necessidade, inerente ao princípio de estado de
direito: se o legislador entendeu que a proteção do bem jurídico já não exige uma proteção tão gravosa como aquela que
exista antes, não se justifica manter a punição que havia –ideia de desnecessidade.

Quais são então as implicações? Quando se entende que deve haver aplicação retroativa?

Tem de se fazer uma comparação entre as consequências para o agente da aplicação do regime legal vigente ao tempo
em que atuou e o que aconteceria se aplicássemos a lei nova, sendo que a comparação deve fazer-se perante uma
avaliação global: se o regime atual for mais benéfico para o agente então ele deve ser aplicado retroativamente, por
decisão oficiosa do tribunal.

Assim, o art.2º/2 refere-se aos caos de descriminalização e o nº4 aos casos de atenuação. Em qualquer das hipóteses, a
nova lei pode entrar em vigor em diferentes estádios processuais, no momento em que nem sequer ainda foi aberto o
processo – ambos consagram o princípio da aplicação da lei mais favorável.

Descriminalização (art.2º/2 CP):

✓ Se ainda não há processo aberto, caso, entretanto entre em vigor uma norma que descriminalize a conduta, o
mesmo nem sequer se vai abrir;
✓ Se o processo, entretanto, foi aberto e no seu decurso entra em vigor uma lei nova que descriminaliza o
comportamento, o processo deve ser encerrado e o agente não deve ser punido por esse comportamento;
✓ Mas pode acontecer que a nova lei entre em vigor já depois do processo findar com uma decisão transitada em
julgado (qualidade de uma decisão que implica a sua efetividade, já não é suscetível de recurso ordinário), e no
direito penal as sanções criminais só podem ser executadas depois do transito em julgado. Quando isso acontece,
a pena que foi aplicada deve ser declarada extinta, pois o comportamento foi descriminalizado.

Atenuação da pena (art.2º/4 CP) - quando a lei posterior à prática do facto atenua as consequências jurídicas que ao
facto se reportam:

✓ Imaginemos que um crime que era punido com 5 anos de prisão passou a ser punido com 3 – ora, a atenuação
pode ter várias formas: mediante uma diminuição da medida abstrata da pena, quer do alargamento do âmbito
de aplicação de novas penas de substituição, ou da previsão de regimes de execução de substituição mais
favoráveis, a questão é saber em que termos e com que limites uma lei mais favorável neste sentido pode ou não
aplicar-se → a resposta está no art.2º/4 CP – se a nova lei com regime mais favorável entra em vigor:
o Quando o processo está em curso, então ela deve ser aplicada de imediato;
o Na pendência do recurso, o tribunal de recurso deve tê-la em conta. (ou seja, não vale só para os tribunais de 1º
instância);

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o Quando a decisão já transitou em julgado e encontrando-se em curso a execução da pena, se se verificar que a
nova lei é concretamente mais favorável, então ela deverá ser aplicada mesmo após o transito em julgado - no
fundo reabre-se a audiência para se reaplicar o novo regime legal: “se tiver havido condenação, ainda que
transitada em julgado, cessam a execução e os seus efeitos penais logo que a parte da pena que se encontrar
cumprida atinja o limite máximo da pena prevista na lei posterior”. A ideia é a de que o caso julgado não
constitua uma barreira à aplicação da lei nova mais favorável.

Caso Prático 5

Em janeiro de 2017, transitou em julgado a condenação de A com pena de prisão de 4 anos pela prática de crime
cometido em 2014, nessa data punível com pena de prisão até 5 anos. A começou a cumprir aquela pena em
fevereiro de 2017.

1. A partir de setembro de 2017 o crime cometido por A passou a ser punível com pena de prisão até 3 anos:
em que data deverá A ser libertado?

O facto foi praticado quando vigorava a lei que o condenava com 5 anos de prisão – de acordo com o art.2º/1 CP o facto
é julgado de acordo com a lei vigente no momento da prática do facto, proibindo-se, então, a aplicação retroativa das
leis penal → L1: 5 anos.

Porém, esta retroatividade apenas é proibida quando seja contra reum (crie o agrave penas criminais), pois contraria o
princípio da legalidade criminal. Assim sendo, a proibição in favor reum não é proibida porque não viola o princípio da
legalidade criminal (situações de descriminalização e de atenuação das penas). Sendo este julgado em janeiro de 2017,
vai ser julgado mediante a L2 que prevê uma pena de prisão até 4 anos para o crime que A praticou → A foi condenado
a pena de prisão de 4 anos tendo começado a cumpri-la em fevereiro de 2017. Seria, portanto, expectável que fosse
libertado em fevereiro de 2021 (altura em que a sua pena cessaria).

Porém, em setembro de 2018 surge uma nova lei (L3) que revoga a anterior (L2) e que modifica a pena abstrata aplicável
– o facto passa a ser punido com pena de prisão até 3 anos. Estamos, aqui, numa hipótese de atenuação da consequência
jurídica.

Nesta especifica matéria relacionada com a aplicabilidade retroativa da lei penal mais favorável. FIGUEIREDO DIAS
entende que não vale aqui o princípio da legalidade, mas sim o princípio da aplicabilidade retroativa da lei penal mais
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favorável, designadamente o princípio da necessidade: continua a haver exigências de prevenção geral, mas não a um
ponto tal que exija uma pena tão elevada, faz sentido ate a pena máxima.

Contudo, em geral, para o direito penal vale o princípio da legalidade criminal.

Qual era então a norma do código penal que neste caso se aplicaria? Artigo 2º / 4

Concretiza o disposto no art.29º/4 in fine da CRP – prevê que quando as leis penais vigentes no momento da prática do
facto (5 anos), forem diferentes de leis posteriores (3 anos), é sempre aplicado o regime que se demonstrar mais favorável
– neste caso, o mais favorável é o 2º, pois o crime deixa de ser punido com uma pena de 5 anos, e passa a ser punível
apenas até 3.

Caso ainda estivesse em curso o processo - a nova lei devia ser aplicada imediatamente no decurso do processo. Mas
neste caso, já foi condenado com sentença transitada em julgado e já está a cumprir a pena quando entra em vigor a
nova lei (L3). A nova lei vale para ele, mesmo já tendo transitado em julgado a sentença?

Em 2007, o CP foi alterado de modo a que o trânsito em julgado deixasse constituir um limite à aplicação da lei penal
mais favorável: o facto de ter ocorrido o trânsito em julgado da condenação não impede que a nova lei se aplique
retroativamente – ultrapassa a barreira do caso julgado → De acordo com o art.2º/4 CP vai aplicar-se, então, a L3,
mesmo a decisão já tendo transitado em julgado.

Desta forma, A deverá ser libertado em fevereiro de 2020 pois dispõe o art.2º/4 CP que “se tiver havido condenação,
ainda que transitada em julgado, cessam a execução e os seus efeitos penais logo que a parte da pena que se encontrar
cumprida atinja o limite máximo da peba prevista na lei posterior”.

2. Suponha que em setembro de 2018 o crime em questão voltou a ser punido com pena de prisão até 5 anos:
em que data deverá A ser libertado?

Em setembro de 2018 entra em vigor uma nova norma que volta a por em questão os 5 anos de prisão. O facto de haver,
depois de uma lei nova mais favorável, novas leis, se tiverem um conteúdo mais desfavorável não deverão aplicar-se. A
partir do momento em que há uma nova lei que entre em vigor, que tenha um regime mais favorável para o agente, ele
adquire uma expectativa de vir a beneficiar dessa nova lei. E, por isso, leis posteriores que introduzam regimes mais
gravosos, não impedem a aplicação retroativa dessa lei que foi mais favorável para o agente → art.2º/4 CP - será o
regime mais favorável que será aplicado.

Portanto, neste caso, a L3 é retroativa na medida em que se aplica a factos passados, anteriores á sua entrada em vigor,
mas será ultrativa, pois continuará a ser aplicada em fevereiro de 2020, implicando a libertação do agente, num
momento em que ela já não está em vigor (foi revogada por L4). A ultratividade corresponde à aplicação de uma lei
que já não está em vigor: quando o tribunal for chamado a intervir para libertar o agente, vai ter de invocar a lei anterior
como fundamento dessa libertação, lei essa que já não está em vigor.

Caso prático 6

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Bárbara Guedes
2018/2019

Imaginemos a seguinte situação: atualmente, constituiu crime previsto no art.292º CP conduzir com 1,2 mg/L
álcool no sangue (L1). Posteriormente, surge uma nova lei (L2) em que se prevê que é crime conduzir apenas com
uma taxa de álcool no sangue superior a 1,5 mg/L.
A agiu com uma taxa de álcool 1,3 mg/L no sangue no momento em que o facto era crime. No decorrer no
processo, este facto deixa de ser considerado crime e passa a ser considerado uma contraordenação (crime=1,5
mg/L).7

Há um problema complexo: que solução dar àqueles casos que quando cometidos eram crime, mas quando julgados são
contraordenações? → conversão da tipologia legal de crime para contraordenação

Ora, se o legislador altera a natureza jurídica do facto, então a nova lei é claramente mais favorável para o agente e pode
até entender-se que se trata de uma descriminalização (não podendo o facto ser punido enquanto crime). O tribunal penal
vai arquivar o caso, pois o comportamento já não pode ser punido como crime, houve uma descriminalização. A questão
que se coloca é se aquele comportamento pode ser transferido da esfera criminal para a esfera administrativa e ser punido
como uma contraordenação.

Um corrente diz que:

✓ O facto deixa de ter qualquer relevância jurídica, não podendo ser punido por crime porque já não é crime
(art.2º/2 CP). Mas também não pode ser punido como contraordenação, pois ao tempo em que foi praticado a
lei não o qualificava como contraordenação: no âmbito das contraordenações vale um princípio da legalidade,
previsto no seu regime - ou seja, há uma necessidade de existência de lei prévia. Assim, este facto deixa de ser
punível.

Outra corrente (incluindo FIGUEIREDO DIAS) defende que:

✓ O facto já não pode ser punido criminalmente porque não é crime (descriminalização – art.2º/2 CP), mas pode
ser punido contraordenacionalmente pois apesar de haver uma mudança de natureza, o agente não tem
expectativa que pudesse reivindicar para se libertar de uma condenação. Ou seja, passando um facto de crime a
contraordenação, não pode deixar de ser punido enquanto contraordenação.
✓ Crimes e contraordenações são realidades distintas e vão buscar um princípio da legalidade que é materialmente
igual para uma realidade que assumem ser distinta. Neste sentido, FIGUEIREDO DIAS defende que não se
pode aplicar o princípio da legalidade criminal ao regime contraordacional nos mesmos termos em que se aplica
ao penal, pois são realidade materialmente distintas.

O legislador, ciente desta discussão doutrinal, quando transforma um crime em contraordenacão cria uma norma
provisória (aceite pelo tribunal) estabelecendo que os factos serão punidos no futuro a título contraordenacional. Quando
ela não existe, os tribunais têm entendido que há uma descriminalização total, e que não pode haver condenação
contraordenacional.

Quanto à aplicação do princípio da lei mais favorável fala-se, ainda em leis intermédias e leis temporárias:

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Bárbara Guedes
2018/2019

Leis intermédias: leis que entram em vigor posteriormente à prática do facto, mas não vigoram ao tempo da
apreciação judicial.

Imaginemos uma sucessão de 3 leis (L1, L2 e L3); o facto foi praticado ao abrigo de L1 e julgado na vigência
de L3. De acordo com o art.2º/2 e 4 todas as leis podem ser aplicadas ao facto: se a mais favorável ao facto for
L2 ela aplica-se retroativamente ao momento da prática do facto. Sendo a lei intermédia a mais favorável, o
agente ganha uma posição jurídica que tem de ser tutelada proibindo a aplicação retroativa de leis mais graves
posteriores – tal justifica-se pela princípio da necessidade (se a comunidade, no momento presente, entende que
tais factos não têm de ser punidos, não se pode aplicar a lei anterior que criminalizava o facto – se no momento
da aplicação o facto não é crime, tal constituiu uma punição desnecessária).

Leis temporárias/de emergência: leis criadas pelo legislador para um tempo determinado, para uma situação
de emergência ou especial.
Estas leis encontram previsão no art.2º/3 CP e constituem uma exceção ao princípio da aplicação da lei mais
favorável: “quando a lei valer para um determinado período de tempo, continua a ser punível o facto praticado
durante esse período” – tal justifica-se pois a modificação legal deveu-se, não a uma alteração da conceção
legislativa, mas sim a uma alteração de circunstâncias de facto que deram base à lei e, como tal, não se«
constituem expectativas que merecem ser tuteladas, mas sim razões de prevenção geral positiva que devem ser
acauteladas → se assim não fosse, estas leis não tinham qualquer eficácia preventiva.

APLICAÇÃO LEI PENAL NO ESPAÇO

Direito penal internacional (regras/critérios de aplicação da lei penal interna no espaço que todos os códigos penais contêm) ≠
Direito internacional penal (matérias de direito internacional que versam sobre a matéria penal).

A explicitação sobre a aplicação da lei penal no espaço é importante para saber quando é que há jurisdição dos tribunais
penais portugueses sobre os factos, ou seja, quando é que, do ponto de vista do lugar onde o crime é praticado, a lei
penal portuguesa é aplicada.

→ Princípio regra:

• Princípio da territorialidade: o Estado pune penalmente todos os factos ocorridos em território português,
independentemente de quem ou contra quem foram cometidos – art.4º/a) CP.
o Princípio de pavilhão: crimes que acorrerem em aeronaves e navios português são considerados sitos
de aplicação da jurisdição portuguesa – art.4º/b) CP.

A escolha pelo princípio da territorialidade (e não da nacionalidade) justifica-se por razões que se prendem com a
soberania dos Estados: 1) de forma a evitar conflitos interestaduais; 2) a necessidade de punir o facto faz-se sentir mais
vivamente no lugar onde ocorreu; 3) é no lugar da ocorrência do facto que ele pode ser melhor investigado; 4) é onde
existem mais expectativas fundadas de que possa obter-se uma decisão judicial justa.

→ Princípios complementares: situações em que a lei penal portuguesa é aplicada a factos não ocorridos em território
nacional (aplicação extraterritorial) – art.5º CP:

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Bárbara Guedes
2018/2019

• Princípio da nacionalidade: o Estado pune todos os factos penalmente relevantes praticados pelos seus
nacionais, independentemente do lugar onde foram praticados e pelas pessoas contra quem foram praticados –
art.5º/e) CP;
o Ativa: quando o agente é português;
o Passiva: quando o facto é cometido contra um português;

o Condições de aplicação:
▪ Que o agente seja encontrado em Portugal
▪ Que o facto também seja punível pela legislação do lugar em que tiver sido praticado;
▪ Que o facto constitua crime que admite extradição (nos termos do art.33º/3 CRP) e esta não
possa ser concedida.

o Extensão do princípio da nacionalidade – art.5/1/b) CP: a lei penal portuguesa é aplicada aos factos
cometidos fora do território nacional contra portugueses por portugueses que viveram
habitualmente em Portugal ao tempo da prática do facto e aqui foram encontrados. Esta extensão
tem como função impedir a impunidade nos casos de um português que se desloca ao estrangeiro para
aí cometer um facto que apenas é ilícito à luz da lei local, mas crime segundo a lei pátria, voltando
depois para Portugal para continuar a levar a sua vida tranquilamente (ex.: A desloca-se à Arábia Saudita
com a sua mulher B para lá, sabendo que tal não constituem crime, a espancar);

• Princípio da defesa dos interesses nacionais: o Estado pune todos os factos que ponham em causa os seus
interesses nacionais específicos, independentemente do autor e do lugar onde foram cometidos;
O agente estabelece uma relação com a ordem jurídico-penal portuguesa ao dirigir o seu facto contra os interesse
especificamente portugueses. O Estado português deve munir-se dos instrumentos necessárias à defesa própria
dos seus interesses essenciais (ex.: contrafação de moeda) – art.5º/1/a) CP

• Princípio da aplicação universal: o Estado pune todos os factos contra os quais se deva lutar a nível
mundial ou que se tenha obrigado internacionalmente a punir, independentemente do lugar e da
nacionalidade do agente ou da vítima;
Este princípio tem na sua génese o reconhecimento do caráter supranacional de certos bens jurídicos que, por
isso, devem ser protegidos internacionalmente. Procura-se que cada Estado garante a repressão dos crimes
contra o DI, responsabilizando-os por essa proteção – não se trata aqui de uma opção dos Estados, mas sim de
uma imposição institucional. Estão em causa crimes como a escravidão (art.159º CP), o rapto (art.160º CP), o
tráfico de pessoas (art.169º CP), o abuso sexual de crianças (art.172º e 173º CP).
Porém, talvez o legislador se tenha excedido na enumeração destes crimes, pois estão abrangidos crimes que
não atentam contra o DI (como p.e., a violação de crianças). Ao prever e ao incluir estes crimes que não são
verdadeiros crimes contra o DI, o legislador português pode estar a violar o princípio de DI de não ingerência:
um Estado não pode querer regular a realidade que acontece noutro Estado, atentando contra o princípio da
independência dos estados.

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Bárbara Guedes
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• Princípio da administração supletiva da justiça penal: o Estado tem competência para punir os factos que,
não se encontrando abrangidos pelas disposições anteriores, foram praticados no estrangeiros por
estrangeiros que se encontram em Portugal e cuja extradição, tendo sido requerida, foi negada.
Este princípio surgiu para colmatar as lacunas do sistema de aplicação da lei penal no espaço, ou seja, quando
não era possível aplicar nenhum dos princípios anteriores – para evitar situações em que um cidadão
estrangeiros, tendo praticado um crime no estrangeiro, se deslocava para Portugal onde 1) não podia ser julgado
e 2) não podia ser extraditado.

O art.5º CP tem sempre de ser conjugado com o art.6º (restrições à aplicação extraterritorial da lei penal
portuguesa): a lei portuguesa só se pode aplicar a factos ocorridos fora do território nacional quando o agente não
tenha sido julgados ou quando se tenha subtraído ao cumprimento da condenação → Princípio in bis in idem
(ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pelo mesmo crime) – art.29º/5 CRP. O art.6º/2 prevê uma situação
particular: nos casos em que é aplicada a lei portuguesa a facto ocorrido fora de Portugal, ele é julgado de acordo com
a lei do país onde foi praticado, caso esta seja mais favorável – temos, assim, de averiguar objetivamente o julgamento
final à luz das duas leis penais e optar pela mais favorável. Esta solução encontra fundamento primário no princípio da
aplicação da lei mais favorável e no facto de a lei portuguesa ser de aplicação subsidiária nestes casos. Este regime mais
favorável do nº2 só não se aplica relativamente às alíneas do art.5º/1/a) e b) devendo a lei portuguesa prevalecer nestes
casos.

Neste sentido, é importante não haver conflitos de jurisdição, bem como evitar que fiquem crimes por julgar por força
das circunstâncias.

Caso prático 1

A, camionista espanhol, fez uma paragem em Valença do Minho. Aí envolveu-se numa discussão com B,
português, que lhe disparou vários tiros, com intenção de o matar. Levado em ambulância para o hospital de
Vigo, A acabou por falecer nessa cidade espanhola. Pode B ser punido pela lei penal portuguesa?

Temo aqui alguém que foi alvejado em Portugal, mas que morreu em Espanha. Qual a lei que se aplica? A portuguesa
ou a espanhola?

Quanto ao âmbito de aplicação da lei penal no espaço vale o princípio da territorialidade segundo o qual, a lei
portuguesa é aplicada aos factos praticados em território português, seja qual for a nacionalidade do agente. De acordo
com este princípio, a lei penal portuguesa seria competente para punir este facto. Contudo, há outros princípios
complementares para além do da territorialidade que justificam a aplicação da lei penal portuguesa a factos cometidos
no estrangeiro.

Não é indiferente saber se a lei portuguesa se aplica de acordo com o princípio da territorialidade (art.4º CP) ou de
acordo com os princípios complementares (art.5º) - sendo o princípio territorial o principio base, então Portugal tem
uma prioridade na perseguição legal desse facto; mas, se o facto é cometido no estrangeiro, e se nesse país vale também
o princípio da territorialidade, valerá a intervenção penal e prioritária desse mesmo país.

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Bárbara Guedes
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No nosso caso temos um facto praticado por um espanhol em território português, cujo resultado se consuma em
Espanha. Sendo praticado em território português, vale o princípio da territorialidade (art.4º CP) que tem de ser
conjugado com o art.7º CP – o facto considera-se praticado 1) tanto no lugar onde o agente atuou (Portugal), 2) como
no lugar em que o resultado se produziu (Espanha). → Ao contrário do que acontece quanto a aplicação da lei penal no
tempo, em que o que importa é o momento em que o agente atuou e não aquele em que o resultado se produziu, aqui,
vale o lugar da ação e o lugar do resultado, para evitar as lacunas de punibilidade – pois poderia haver situações
em que nenhuma lei se aplicava.

Neste caso, podia considerar-se que o crime, o facto, foi praticado em território português – de acordo com o art.7º. e,
tendo sido praticado em território português então a lei penal portuguesa seria aplicável de acordo com o princípio da
territorialidade. Mas, tanto Portugal como Espanha teriam uma pretensão penal legitima para seguir esse facto.

Caso prático 2

A, francês, enviou à sua ex-mulher, B, portuguesa, residente em Barcelos, um pacote postal armadilhado, com
intenção de a matar. B recebeu o correio e ao abri-lo nada aconteceu, porque o engenho não funcionou.

a) Poderia A ser punido pela lei penal portuguesa?

De acordo com o art.7º1/ CP, temos uma ação, mas não um resultado: A agiu na França, enviando para Barcelos uma
carta armadilhada, mas esta não chegou a explodir → tal constituiu um crime sob a forma tentada. Este caso é regulado
não pelo nº1, mas sim pelo nº2 (“nos casos de tentativa”).

Ora, quando se trata de tentativa o crime não se consuma – aplica-se o art.7º/2 CP que diz que, nos casos de tentativa, o
facto considera-se praticado no lugar em que, de acordo com aquilo que o agente representou, o resultado se deveria ter
produzido.

A carta foi enviada para Barcelos, ou seja, o facto deveria ter sido produzido em Portugal. Como a lei portuguesa se
aplica aos factos praticados em território português (art.4º/a) – princípio da territorialidade), por força da conjugação do
art.7º/2 e do art.4º/a) CP a lei portuguesa é aplicada nesta situação.

b) Imagine, agora que houve um atraso na entrega da carta e ela explodiu em França, e não em Portugal
(Barcelos) como o agente tinha representado.

Nestes casos, não se aplica o art.7º/2 CP pois ele não representou a possibilidade de a carta explodir na França.

Nestes casos, o que importa é o resultado pensado pelo agente, i.e., aquilo que o agente desejou com a prática do facto.

Até agora vimos casos em que a lei penal portuguesa é aplicada com fundamento no princípio da territorialidade: quando
o facto é praticado em Portugal a lei penal portuguesa aplica-se graças ao princípio da territorialidade (art.4º CP). O
art.7º/1 estabelece um fator de conexão espacial: a prática do facto ou ação, mesmo que seja apenas parcialmente
cometido em Portugal, é suficiente para desencadear a aplicação da lei penal portuguesa.

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Bárbara Guedes
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Há, contudo, situações em que a lei portuguesa tem também aplicabilidade a factos ocorridos no estrangeiro – situações
essas, em que a lei portuguesa não será aplicada de acordo com o princípio da territorialidade, mas sim de acordo com
princípios complementares previstos no art.5º CP (princípios extraterritoriais)

Ora, o princípio base é o da territorialidade: assim, se o crime não for praticado em Portugal, a lei portuguesa não se
aplica, pois, o país da prática do facto também tem o seu próprio princípio da territorialidade.

Em regra, existem procedimentos de cooperação judiciaria internacional em matéria penal, previstos em


convenções, tratados, e instrumentos de direito internacional, que regulam a extradição de pessoas suspeitas de crimes,
ou condenadas por crimes, de uns países para os outros → Lei 134/99, 31 de agosto. Pode acontecer que embora um
crime tenha sido cometido no estrangeiro, esse estado não consiga perseguir esse individuo porque este já está noutro
pais: existem, então, instrumentos que permitem a extradição do agente do país onde se encontra, para o pais onde o
crime foi cometido e que o quer seguir criminalmente (cooperação judiciária internacional em que o principal
instrumento é a extradição).

No espaço europeu, existe um mecanismo de cooperação judiciário similar a este, mas com regime próprio e em que é
muito mais fácil e flexível a entrega de suspeitos e condenados entre os estados: mandado de detenção europeu que
permite uma cooperação judiciária entre os EMs, através da qual um estado da união poderá recorrer a outro estado da
união para que este entregue o suspeito/alguém visado no processo penal → Lei 65/2003, 23 de agosto.

Em regra, quando um estado tem no seu território um individuo que cometeu um crime noutro estado, o que muitas
vezes sucede é que o estado onde o crime foi cometido, pede àquele estado onde o sujeito se encontre, que o
extradite, que o entregue para poder ser julgado/condenado no estado onde praticou o crime.

Contudo, há situações em que a ordem jurídica portuguesa não admite a extradição ou entrega (art.33º/3 CRP), pelos
mais variados motivos, valendo aqui um princípio do direito internacional: “ou entregas ou punes” – dedere aut punire

Quando um estado terceiro lhe pede a entrega de um sujeito ou condenado, então, o estado que o tem no seu território
poderá entregá-lo se houver base legal para isso. Mas pode acontecer que o sistema jurídico do estado onde o individuo
se contra não permita a extradição - então neste caso, tem ele próprio que assumir as responsabilidades da punição
daquele facto, sob pena de incorrer em impunidade. Os estados quando recusam a extradição comprometem-se, em
regra, a julgar as pessoas que recusam em extraditar.

Desta forma, para evitar situações de impunidade que possam advir da proibição da extradição, existem vários princípios
que complementam o principio da territorialidade, e segundo os quais a lei penal portuguesa pode aplicar-se mesmo a
factos cometidos fora do território (art.5º CP) – são elencados um conjunto de casos em que se permite a aplicação da
lei portuguesa a factos cometidos fora do território português:

Caso prático 3

R, cidadão brasileiro, mas também com nacionalidade portuguesa originária, foi acusado pelo MP brasileiro da
prática de vários crimes de corrupção e de organização criminosa cometidos no Brasil. Encontrando-se R em
Portugal, o Estado brasileiro requereu a sua extradição ao Estado português. Considerando que o Brasil não
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Bárbara Guedes
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extradita cidadãos brasileiros de origem, poderá R ser julgado em Portugal de acordo com a lei penal
portuguesa?

Colocou-se a questão de saber se Portugal poderia ou não extraditar aquele individuo para o Brasil, pois em regra,
Portugal não extradita português – princípio exposto no artigo 33º/3. A partir de 97 a constituição foi alterada de maneira
a permitir a extradição de portugueses, nos casos previsos na CRP. Portanto, atualmente não há uma proibição – ou
melhor, há uma proibição, mas que pode ser derrogada.

O Sr. Raul alegou um conjunto de motivos, entre os quais o processo não ser justo e equitativo no Brasil – este processo
adquiriu relevância política, graças a sua grande controvérsia que pôs em causa o próprio estado brasileiro.

Este caso, acabou na não extradição, pois este cidadão que inicialmente era naturalizado – português naturalizado –
conseguiu por força de uma alteração da lei Portuguesa relativa à nacionalidade, que o seu estatuto português fosse
reconhecido como um estatuto originário. Isto é, quando o estado brasileiro recorreu a extradição Raul era naturalizado
português, e no decurso do processo tornou-se originário.

O problema é que Portugal só extradita para Brasil se o Brasil fizer o mesmo (condições de reciprocidade). Ora, a
constituição do Brasil não permite a extradição em regra de brasileiros originários e, portanto, neste caso deixou de
haver reciprocidade – por isso foi vedada a extradição do Sr. Raul.

Pode Portugal pode julgar este cidadão pelos crimes que terá cometido no Brasil?

A lei penal portuguesa irá ser aplicada de acordo com o princípio da nacionalidade (ativa) previsto no art.5º/1/e) CP.
Neste artigo, consagra-se o princípio da nacionalidade quer na sua forma ativa (crimes cometidos no estrangeiro por
portugueses), quer na sua forma passiva (crimes cometidos no estrangeiro contra portugueses). Logo, por aqui se percebe
que os fundamentos de intervenção são distintos, pois quando o estado português se vê na contingência de aplicar a sua
lei penal por um cidadão ser português, falo pelo principio dedere aut punire, ou seja, assume a punição porque não
pode extraditar – e neste caso, não pode extraditar porque é português.

Nos casos em que o agente é estrangeiro e o crime é cometido no estrangeiro, as mais das vezes não haverá via de regra
uma proibição fundada na extradição de nacionais – o que há é um interesses em proteger uma vitima portuguesa de
uma situação em que ao gente não é extraditado, ou porque não pode ser extraditado por alguma razão, ou porque não
é pedida a sua extradição; então aí, para proteger a vitima portuguesa, o estado português decide aplicar a sua lei penal.
E, por isso, se entente que este princípio da nacionalidade passiva, materialmente, é uma manifestação do princípio dos
interesses nacionais (mais amplo).

A consideração conjunta destes princípios tem que ver com o facto de a lei sujeitar a aplicabilidade da lei penal
portuguesa aos mesmos requisitos – pressupostos da alínea e) art.5º/1:

➔ Em primeiro lugar, e necessário que o agente se encontre em Portugal: só pode avançar-se com o processo
e aplicar lei penal portuguesa se o agente se encontrar em Portugal – no nosso caso este requisito está
verificado;
➔ É necessário, também, que os crimes sejam puníveis pela legislação do lugar onde foram praticados (dupla
incriminação) ou seja, se no sítio onde ele atuou, esse facto também fosse qualificado como um crime. Só

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não será assim naqueles casos em que no sítio em questão não se exerce o poder punitivo – ou seja, “terra
sem lei” – então aí poderá aplicar-se a lei penal portuguesa – sendo um crime cometido por um português
ou contra um português.
➔ Ter de ser, também, um crime que admita extradição e essa não possa ser concedida – ou seja, se um
português comete no Brasil um certo facto que é crime no Brasil e em Portugal, e esse português se encontra
em Portugal, então temos reunidos os vários pressupostos de aplicação do princípio da nacionalidade ativa.
Se ele puder ser extraditado, então Portugal não pode aplicar a sua lei penal, mas se Portugal não o extraditar,
então pode e deve aplicar a sua lei penal. Expressão do princípio – DEDERE AUT PUNIRE.
o Esta proibição de extradição pode decorrer de variadas razoes: penas humilhantes, degradantes,
pena de morte, crime alvo de perseguição política – art.33/3º CRP e lei da cooperação judiciaria
internacional LEI 144/99 – circunstâncias que podem obstar a extradição. Assim como, há várias
circunstâncias em que a entrega é proibida no âmbito do mandado da união.

Entre nos há um tratamento doutrinário e jurisprudencial quanto à questão de extradição para países que aplicam a pena
de morte e a pena de prisão perpetua – foi algo discutido e com intervenção constitucional, em virtude de uma
circunstância histórica particular – soberania de Portugal sobre Macau- e em Macau a pena era diferente de Portugal –
graças a esta litigância há uma grande legislação sobre a matéria.

Ora, no nosso caso, caso Portugal não extradite pode aplicar a sua lei penal.

Caso prático 4

A, portuguesa, vive no Dubai com o seu marido, B, saudita. Encontrando-se ambos em Portugal, em
férias, A apresentou denúncia contra B por crimes de maus tratos, violação e homicídio na forma tentada
sofridos durante a sua convivência no Dubai. Poderá B ser punido pela lei penal portuguesa?

Estão em causa vários crimes cometidos no estrangeiro, por um estrangeiro, contra uma cidadã portuguesa. Pode,
Portugal nestes casos aplicar a sua lei penal nacional?

Se temos uma vítima portuguesa, então o estado português interessa-se perante um crime cometido no estrangeiro, por
um estrangeiro – o estado português arroga-se no direito de aplicar a sua lei, para proteção da vítima portuguesa -
estamos no âmbito de aplicação do princípio da nacionalidade (passiva) – art.5º/1/e) CP.

Para isso, 1) é necessário que o agente se encontre em Portugal, 2) que o facto seja crime onde foi cometido, e 3) que
seja crime que constitua extradição, mas que não possa ser concedida por Portugal. Se o sujeito não for extraditado,
então Portugal, verificados as demais condições, pode aplicar a sua lei penal (dedere aut punire). E, poderá aplicá-la,
promovendo um processo contra o agente, mesmo que a extradição não seja pedida. Há casos em que a proteção do
português é reclamada justamente porque no sítio onde o crime foi cometido, o português não tem defesa.

Seja nos casos em que não é concedida a extradição 1) porque não é pedida, ou 2) porque não é concedida, pode haver
lugar à aplicação da lei portuguesa - vale aqui os pressupostos da aliena e) nº1 do 5.

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A impossibilidade de extradição decorre, normalmente, não da nacionalidade do agente, mas sim ou porque não pode
ser extraditado ou porque não é pedida a extradição.

Caso prático 5

No dia 10 de janeiro de 2002, A, cidadão colombiano residente no Brasil, falsificou moeda portuguesa (€), com a
ajuda de B, empresário português, que lhe enviou tecnologia sofisticada, a partir da sua residência em Coimbra.
Detido pelas autoridades brasileiras, A foi condenado a 10 anos de prisão, por sentença transitada em julgado a
12 de fevereiro de 2004.

a) A 1 de Junho de 2005, A evadiu-se para Portugal, sendo detido. No decurso do inquérito, B foi
igualmente detido. Os dois foram julgados e condenados por um tribunal português. Comente esta
decisão.

Qual o lugar da prática do ato? De acordo com o art.7º/1 CP, o facto considera-se praticado no lugar em que total ou
parcialmente e sob qualquer forma de comparticipação (se houver mais que uma pessoa a colaborar na prática do crime),
o agente atuou: B ajudou A na prática do crime, enviando-lhe tecnologia sofisticada, sem a qual não poderia falsificar
moeda portuguesa.

A contrafação de moeda está prevista no art.262º CP, integrando, portanto, o art.5º/1/a) que diz respeito ao princípio
da defesa dos interesses nacionais. A lei penal portuguesa pode aplicar-se (apenas nos casos previstos) a factos
cometidos fora do território português (competência extraterritoial)

Há interesses portugueses que podem ser afetados, através de crimes praticados fora do território - se são os interesses
portugueses que estão em causa, então o estado português tem interesse em julgar estes casos.

Princípio da proteção de interesses nacionais- crimes que dizem diretamente respeito ao Estado Português e, quando
praticados no estrangeiro. poderão ser perseguidos em Portugal com base na lei penal portuguesa, mesmo que o agente
seja estrangeiro e mesmo que o facto não seja punível no lugar onde foi praticado. Não há aqui uma exigência de dupla
incriminação uma vez que estão em causa direitos do Estado português, interesses superiores do estado, que podem não
ser os mesmos interesses do estado estrangeiro - daí que não haja esta exigência de dupla incriminação. O princípio da
defesa dos interesses nacionais, não tem qualquer requisito suplementar (contrariamente ao princípio da nacionalidade,
que tem uma serie de requisitos complementares).

Não vale a pena analisarmos as outras alíneas do art.5º CP pois, se é a alínea a), é essa que é aplicada → o artigo está
construído das situações que em há mais interesse em julgar, para as de menos.

Portugal é, portanto, competente para julgar, em nome dos interesses nacionais. → aplicação do princípio complementar
(não é um princípio absoluto, como a da territorialidade, pois é restringido pelo art.6º CP).

O art.6º CP (restrições à lei penal portuguesa) é aplicável neste caso?

Caso o facto tivesses sido praticado em Portugal, o art.6º não era aplicável, pois este artigo só restringe, eventualmente,
a aplicabilidade da lei portuguesa quando se trate de factos praticados fora do território português. Quando está em causa

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o princípio da territorialidade, o art.6º não é aplicável, pois não há restrições à lei penal portuguesa. Só há restrições à
lei portuguesa quando o facto não for aplicado em território português.

Suponhamos que o colombiano, que falsificou a moeda portuguesa, e sendo condenado, cumpriu a pena totalmente.
Poderíamos voltar a julgá-lo em Portugal?

Não. O princípio da defesa dos interesses nacionais, enquanto princípio complementar da aplicação da lei penal no
espaço admite restrições impostas pelo art.6º CP. Desta forma, a lei penal portuguesa não poderia ser aplicada a factos
praticados fora do território nacional se o agente já tiver sido julgado no país da prática do facto.

No entanto, refere ainda este artigo que, se o agente não tiver cumprido a pena toda no país onde foi julgado, pode ser-
lhe aplicada a lei penal portuguesa (art.6º/1, 2ª parte CP)

b) Suponha que, no decurso do processo, o defensor requereu a aplicação, pelo tribunal português, da lei
brasileira, com base na ideia de que ela se mostrava concretamente mais favorável. Quid iuris? Justifique.

Está aqui em causa saber que lei aplicar a factos praticados fora do território nacional e julgados em Portugal.

Neste sentido, dispõe o art.6º/2 CP que, embora aplicável a lei penal portuguesa, o facto é julgado à luz da lei do país
em que tiver sido pratico se esta for concretamente mais favorável. Porém, o nº3 ressalva duas situações em que tal não
acontece: esta aplicação da lei mais favorável não se plica quando esteja em causa os crimes previstos no art.5º/a) e b)
CP.

No nosso caso, estamos no âmbito de aplicação da al. a), portanto, o nº2 do art.6º CP não se aplica → tal compreende-
se, pois, estando em causa a ofensa de interesses nacionais, e não tendo o agente cumprido a pena (total ou parcialmente)
no país onde foi julgado, ele pode voltar a ser julgado à luz da lei penal portuguesa. A nossa lei é mais adequada visto
que os interesses ofendidos foram os interesses do Estado português e não do brasileiro.

Porém, o agente evadiu-se para Portugal, mas já tinha cumprido 16 meses da pena a que foi condenado (10 anos de
prisão) → aplicação do princípio do desconto (arts.80º a 82º CP): qualquer privação da liberdade de alguém tenha
sofrido a propósito de determinado crime, tem de ser descontada na pena que tiver que cumprir noutro ou no mesmo
país. Neste caso, aplica-se o que decorre do art.82º CP.

Assim, A vai ser julgado em Portugal, de acordo com a lei penal portuguesa, e vai-lhe ser descontada a pena que já
cumpriu no Brasil.

Caso prático 6

B padece de uma grave, dolorosa e incurável doença e deseja que lhe ponham termo à sua vida. A pedido
de B, C contacta uma clínica holandesa que, ao abrigo da legislação do seu país, pratica homicídios de pessoas
nas condições em que B se encontra, a pedido delas. C trata de tudo o que se revela necessário a que B seja morto
na referida clínica e transporta B até lá. B é morto por um médico holandês, tal como desejava. Pode C responder
criminalmente em Portugal, de acordo com a lei penal portuguesa, pelo seu auxílio à morte dada a B?

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B está muito doente e pede que ponham termo à sua vida. C trata de tudo o que é preciso e leva-o a uma clínica na
Holanda para se cometer eutanásia, ou seja, temos uma pessoa gravemente enferma e que deseja ser morta por um
terceiro, uma vez que não se consegue suicidar; pede, portanto, a um terceiro que a ajude a ter uma morte assistida e
esse terceiro transporta o doente até à Holanda, onde a eutanásia tem cobertura legal. B é morto da Holanda.

A questão que se coloca é: pode C ser punido por este auxílio que deu a B?

A eutanásia (morte assistida) não é permitida em Portugal, sendo tipificada enquanto homicídio a pedido da vítima
(art.134º CP).

Neste caso, não se diz que os agentes são portugueses, apenas se diz que C reside em Portugal. Poderia C responder
criminalmente? O art.5º/1/c) CP leva-nos logo para os agentes que são encontrados em Portugal- mas a aplicabilidade
da lei penal portuguesa, neste caso, dependente de vários pressupostos: ambos serem portugueses e ambos residirem
habitualmente em Portugal. Qual é o ponto basilar aqui? O art.5º/1/b) CP prevê a aplicabilidade da lei penal a crimes
cometidos contra portugueses, por portugueses e que sejam encontrados em Portugal- princípio da nacionalidade ativa
e passiva (extensão do princípio da nacionalidade). O que é que diferencia esta situação das situações normais do
princípio da nacionalidade? Segundo o princípio da nacionalidade (al. e)) só pode punir-se um facto cometido no
estrangeiro por português ou por estrangeiro contra português, se nesse lugar o facto for crime.

C pode ou não responder criminalmente? À partida recorreríamos logo a alínea b) do 5º/1. Ora, não nos dizem que são
portugueses, e neste artigo a aplicabilidade da lei portuguesa estava dependente de vários pressupostos: de ambos serem
portugueses e de ambos residirem habitualmente em Portugal.

O que torna diferente a aplicabilidade da lei portuguesa neste caso em relação aos demais? A regra da dupla incriminação
– em regra, de acordo com o princípio da nacionalidade só pode punir-se um facto cometido no estrangeiro por um
português ou contra um português, se no lugar onde o agente atuou, esse facto seja crime.

Na hipótese da alínea b) o legislador estabeleceu a aplicabilidade da lei portuguesa, ultrapassando ou dispensando o


pressuposto da dupla incriminação: esta norma permite a aplicabilidade da lei portuguesa punindo um crime elaborado
contra um português, por um português, desde que ambos residam em Portugal, cometido no estrangeiro onde não é
punível.

O legislador estabeleceu a aplicabilidade da lei portuguesa dispensando o pressuposto da dupla incriminação- se se


exigisse este pressuposto e ambos os envolvidos fossem portugueses e vivessem em Portugal, ficariam impunes ou
seriam punidos? Não seriam punidos, porque na Holanda este facto não é crime, é um facto juridicamente autorizado,
de maneira que se não houvesse uma norma especial (art.5º/1/b)) se 2 portugueses que vivem em Portugal fizessem o
mesmo na Holanda (recorrer à eutanásia) não seriam punidos. O fundamento desta norma prendia-se com a prática de
abortos em Espanha- o que se queria salvaguardar era a punição das mulheres portuguesas que iam praticar abortos no
estrangeiro, em sítios que estes não eram punidos. A explicação tradicional é a de evitar fraudes à lei portuguesa- evitar
que as pessoas se subtraiam à lei portuguesa indo para o estrangeiro praticar o facto porque lá não é punido.

Quando a lei penal portuguesa for aplicada com base num dos princípios da extraterritorialidade (art.5º CP),
deve aplicar-se o artigo 6º CP - estabelece as restrições à aplicação da lei portuguesa:

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➔ Por um lado, o nº2 dá observância ao chamado princípio ne bis in idem (29º/5 CRP) ou princípio da
proibição do duplo julgamento, ou dupla punição - é um princípio constitucional, fundamental
consagrado em qualquer estado de direito por força do qual se proíbe que uma pessoa seja julgada mais do
que uma vez pelo mesmo facto. Esta questão prende-se com o trânsito em julgado. Por exemplo: houve um
caso em que um sujeito foi levado a julgamento por tentar matar outra pessoa e foi jugado e condenado pela
prática de um crime de homicídio em forma tentada. Mais tarde, a pessoa morreu e o Ministério Público
quis voltar a abrir o caso para que ele fosse condenado por um crime de homicídio consumado.
O que significa que se alguém que praticou um crime no estrangeiro, e foi julgado no estrangeiro por esse
crime acabar por ser encontrado em Portugal, normalmente o estado que o condenou, irá pedir a sua
extradição – pedir que Portugal entregue essa pessoa para que cumpra a pena que devida, no tal país. Por
exemplo: se um americano comete um crime nos EUA e foge para Portugal, o mais certo é que os EUA,
sabendo que ele está em Portugal, peça a sua extradição.

o Se por algum motivo, Portugal não extraditar, então haverá base para aplicar a lei penal
portuguesa – pelo menos com base no princípio subsidiário supletivo do artigo 5º/1/f). Para que
isso aconteça deverá ter-se em conta o julgamento que já ocorreu no estrangeiro – e, assim, se o
agente cometeu um crime no estrangeiro e a lei penal portuguesa for aplicável, podemos ter vários
cenários:

▪ Se ele ainda não foi julgado no estrangeiro (no país onde cometeu o crime) pode vir a ser
julgado cá sem nenhuma restrição – sem a restrição prevista no 6º/1CP.

▪ Se, ele já foi julgado no estrangeiro, então, não pode ser julgado outra vez (princípio ne bis
in idem). A única vertente onde se aplica a lei penal portuguesa é na execução da pena.
Apenas se vier cumprir a pena a Portugal (tem-se como boa a condenação que ele sofreu
no país estrageiro), a parte da pena que já tiver cumprido no estrangeiro será descontada na
pena que ele deverá cumprir cá, nos termos do art. 82º CP – princípio do desconto.

Resolução: Se algum dos indivíduos não fosse português, ou ainda que fossem portugueses, mas não residissem em
Portugal, então a lei penal portuguesa não seria aplicada porque faltaria o requisito da dupla incriminação que os
requisitos da extraterritorialidade preveem. Se ambos fossem portugueses e residissem habitualmente em Portugal, seria
aplicada a lei portuguesa ao abrigo da alínea b) nº1 do art.5º (sem necessidade do requisito da dupla incriminação).

Nota: quando se puder aplicar a alínea b), não se aplica a alínea e) pois esta tem mais requisitos.

DOUTRINA DO FACTO PUNÍVEL

A doutrina do facto punível está consagrada no CP de acordo com um modelo teórico abstrato que visa uniformizar o
tratamento dos casos penais, de maneira a que os crimes tenham certos elementos comuns e possam ser compreendidos,
de forma a que a lei penal portuguesa possa ser aplicada da forma mais uniforme possível (ideia de segurança jurídica).
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Este sistema é designado como sistema categorial classificatório – tem várias categorias objeto de certas qualificações.
Chegou até nós, sobretudo por influência alemã que por ser um modelo com grande capacidade de adaptação, se
expandiu não só na europa, mas também em muitos outros continentes. Isto permitiu que entre vários países de fale a
mesma “linguagem penal”, que houvesse uma espécie de transnacionalidade.

Sistema categorial classificatório: na ótica de FIGUEIREDO DIAS temos uma categoria base que é o tipo ilícito que
agrega 1) o tipo incriminador e 2) o tipo justificador. No fundo, o tipo de ilícito agrega a tipicidade (tipo incriminador)
e a ilicitude (tipo justificador).

Existe ainda a culpa, e tal como muitos outros autores, FIGUEIREDO DIAS entende que há ainda outra categoria - a
punibilidade.

Tipo incriminador
(tipicidade)
Tipo de ilícito
Tipo justificador
Sistema categorial
classificatório Culpa (ilicitude)
(Figueiredo Dias)

Punibilidade

Para FIGUEIREDO DIAS a tipicidade é um substrato da ilicitude, e daí que devam ser qualificadas como uma categoria
só. Alguns autores entendem que apesar de tudo, a tipicidade ganha alguma autonomia em relação a ilicitude, e que não
é indiferente saber se um facto é típico e ilícito ou apenas típico (a autonomização da tipicidade tem alguma razão de
ser). Os defensores da tipicidade dizem que não é valorado da mesma maneira p.e., matar uma pessoa, ou matar uma
mosca; há uma densidade que justifica a sua autonomia. Contudo na prática, ser uma só categoria, ou duas, acaba por
ser indistinto.

Os inúmeros factos da vida para terem algum significado no direito penal têm de entrar num certo molde.

A tipicidade é a primeira categoria em que no fundo temos uma descrição típica de um comportamento, de um facto,
factos esse que entram naquele molde, que podem ter relevância penal, e vir a ser qualificados como crime. Temos um
facto típico quando ele está previsto num tipo incriminador. Se o facto à partida é um facto atípico, não está previsto
em nenhum tipo incriminador, em nenhum tipo legal de crime, é um facto que não releva em sede penal, não é crime.
Assim, só tem relevância penal o facto típico.

Pode acontecer:

1) que o facto seja típico para um determinado tipo de crime e atípico para outro – ex.: dar murros e pontapés é um facto
que releva (é um facto típico) para o crime de ofensa à integridade física, mas é um facto atípico para o crime de
homicídio. Da perspetiva penal, o facto é criminoso quando possa integrar um tipo legal de crime → a tipicidade é
avaliada em função de um certo tipo penal

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2) que certo facto seja típico em relação a mais do que um crime – ex.: uma pessoa espanca outra e ela acaba por morrer;
aqui temos um facto típico do crime de ofensa à integridade física e típico do crime de homicídio (concurso – uma
conduta integra mais do que um tipo legal de crime).

Assim:

- Temos de ver se o comportamento (facto) tem ou não previsão numa certa norma penal incriminadora:
- Se tiver previsão, o facto é típico ao tipo legal
- Se não tiver previsão na norma legal, o facto é atípico ao tipo legal

Autor

Tipo objetivo Conduta

Tipo incriminador Bem jurídico


(tipicidade)

Tipo de ilícito Dolo


Tipo subjetivo
Tipo justificador Negligência
(ilicitude)

Para se dizer que um facto é típico ou não é típico é preciso passar por uma série de pontos: 1º) verificar se preenche
o tipo objetivo: temos de averiguar se se verificam os vários elementos (autor, conduta e bem jurídico). Se faltar algum
deles, o facto é atípico → se o tipo objetivo for excluído a análise fica por aqui. Isto porque não é indiferente o facto
ser excluído porque não é típico ou porque não é ilícito (comporta consequências diferentes).

Depois de se verificar se o facto é objetivamente típico, 2ª) temos de passar ao tipo subjetivo- aqui falamos em crimes
dolosos. O tipo subjetivo dos crimes dolosos é composto pelo dolo e, em certos casos, por elementos especiais.

Pode ocorrer que o agente pratique um facto típico objetivo, a sua conduta preenche a factualidade típica de um crime,
mas não age com dolo – por exemplo, se age com erro sobre a factualidade típica - exclui-se o dolo desta conduta, tendo
de se verificar se houve negligencia neste caso) → casos de erro.

Se houver dolo, 3º) depois passa-se para a categoria da ilicitude (tipo justificador) – estamos aqui no âmbito das
causas de justificação. Assim:

- Se houver uma circunstância no caso concreto que corresponde a uma justificação, há uma causa de exclusão
de ilicitude – o facto apesar de ser típico não e ilícito;

- Se não houver nenhuma causa de justificação (de exclusão de ilicitude) o facto é ilícito, o que comporta a
responsabilidade do agente por culpa. → 4º) nesta situação passamos para o plano da culpa.

A culpa engloba vários elementos: imputabilidade, dolo da culpa e, em regra, a exigibilidade da consciência da
ilicitude.

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Ora, à partida se o facto é típico, só não será ilícito e culposo se houver alguma circunstância que no caso concreto seja
causa de justificação ou exclusão de ilicitude - algum facto que excluísse a ilicitude, uma causa justificativa.

Há situações em que, embora a pessoa seja imputável, não lhe poderá ser imputada a culpa porque atuou, por exemplo,
em caso de necessidade- tal como há causas que excluem a ilicitude, há causas que excluem a culpa, como o estado
de necessidade desculpante (art.35º CP). Por exemplo: caso de uma avioneta que começa a perder combustível e o
piloto tem de escolher entre aterrar na praia ou no mar. Tendo em conta que a probabilidade de sobreviverem em alto
mar é menor do que se despenharem na praia, o piloto decide aterrar na praia, acabando por matar 2 pessoas que lá
estavam- aqui é excluída a culpa, uma vez que estamos perante um caso de necessidade desculpante.

4ª) Por fim, temos a categoria da punibilidade, que tem a ver com a necessidade da pena.

Para que estejemos perante um crime, é necessário que o facto passe por estes pontos todos. Se ele não passar por
todos estes estratos, então, o facto não é crime. Assim, para que no fim da linha se possa dizer que houve a prática de
um crime, é preciso que estejam verificados todos estes pressupostos: o MP, quando faz uma acusação vai ter de verificar
todos estes pressupostos e avaliar os factos de forma a incluí-los num tipo legal de crime- claro que a defesa vai tentar
boicotar esta acusação, fazendo uma análise minuciosa para ver se estão efetivamente preenchidos todos estes
pressupostos ou se consegue encontrar lacunas que lhe possam servir.

Caso Prático 1

Ana, delegada de informação médica da empresa farmacêutica X SA, na região autónoma da Madeira, atuando
por sua única e exclusiva iniciativa, prometeu aos médicos Bruno e Carlos que repartiria com eles uma parte do
bónus previsto para o caso de as vendas de um certo medicamento atingirem um determinado valor. Para tanto,
bastaria que os médicos prescrevessem esse medicamento em detrimento de medicamentos similares da
concorrência quando fosse clinicamente indicado. Bruno, médico de um hospital púbico integrado no SNS e
Carlos, médico de clínica privada, aderiram à proposta e passaram a dar preferência ao medicamento da
empresa X. Quem poderá responder por corrupção para ato lícito? Arts 373º/2 e 374º/2 CP.

Resolução: Há 2 tipos de corrupção: para ato lícito ou para ato ilícito. Os tipos legais são os que estão previstos nos
arts 373º/2 e 374º/2 CP. Aqui, poderemos ter um caso de corrupção ativa para ato lícito (por parte de Ana, delegada
médica) e corrupção passiva de ato lícito (por parte dos médicos). Assim, para sabermos se eles podem ser
responsabilizados por estes crimes temos de fazer uma análise de cada um dos pressupostos do tipo objetivo de cada
crime.

Em 1º lugar, o tipo objetivo tem de definir quem é que pode ser autor, i.e., quem praticou o tipo ilícito (falamos em
crimes comuns quando o autor pode ser qualquer pessoa; e em crimes específicos quando o tipo legal circunscreva a
autoria do crime a pessoas específicas em função de um certo estatuto que detenham ou em função de um certo dever
que sobre ela impende – estes podem ainda ser próprios (o dever ou a qualidade especial do autor fundamentam o juízo
de ilicitude) - ou impróprios quando esse dever agrava a ilicitude, ou seja, o facto já é crime independentemente da
qualidade do autor, mas esta qualidade agrava-o).
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Quanto à corrupção passiva para ato lícito (art.373º/2) - qual destas pessoas é que pode ser autor deste crime? Tem
de ser Bruno, porque é médico do hospital público e esta norma especifica que como autor só podem ser pessoas que
detenham o estatuto de funcionário- assim, para se saber se certa pessoa pode ou não ser autor deste crime, temos de
verificar se ela é ou não funcionária. Segundo o art.386º CP, a Ana poderá ser autora deste crime? Em regra, não, porque
não é funcionária pública, uma vez que é trabalhadora de uma empresa privada. Bruno, por outro lado, já poderá, porque
trabalha num hospital público. Já Carlos, que é médico de uma clínica privada, não pode ser autor deste crime porque
não é médico do SNS. Neste caso, das 3 pessoas, só Bruno poderia responder por este crime de corrupção passiva.

Mas, agora, coloca-se uma outra questão: será que a conduta de Bruno é um comportamento que faça sentido no âmbito
do crime de corrupção passiva? O art.373º tipifica como crime de corrupção passiva justamente a solicitação ou a
aceitação para si ou para terceiro de vantagem patrimonial ou não patrimonial ou a sua promessa. Neste caso, foi
exatamente isso que aconteceu- ele aceitou a vantagem que lhe foi prometida por Ana, incorrendo numa conduta típica
de corrupção passiva.

Por outro lado, o crime de corrupção ativa é um crime comum, sendo que qualquer pessoa pode ser autor deste crime.
Visto isto, a corrupção ativa consiste em dar ou prometer a funcionário uma vantagem patrimonial ou não patrimonial.
Neste caso, só em relação a Bruno é que Ana cometeu um crime de corrupção ativa, uma vez que Carlos não é
considerado um funcionário (porque trabalha no privado). Nem Bruno, nem Carlos, prometeram nada a Ana e, por isso,
nenhum deles praticou um crime de corrupção ativa- art.374º/2 CP. E a empresa? Poderia responder por este crime? De
acordo com o art.11º CP só as pessoas singulares são suscetíveis de responsabilidade criminal; no entanto, a lei prevê
casos especiais em que as pessoas coletivas podem ser responsáveis coletivamente, designadamente quanto aos crimes
de corrupção ativa de acordo com a verificação dos pressupostos do art.11º/2 CP

O crime de corrupção passiva para além de ser um crime específico é próprio pois, é o dever que impende sobre o
agente ou a qualidade especial do autor que fundamenta o juízo de ilicitude. Assim, se o agente realizar a conduta típica,
mas não possuir a qualidade típica de autor, não realiza o facto típico.

Esta especificidade está prevista no art.28º CP no que diz respeito aos casos de comparticipação: se um dos participantes
tiver a qualidade prevista no tipo, ela reporta-se aos demais (há uma comunicabilidade).

Esta classificação opera no âmbito do tipo objetivo e diz respeito a autoria. Há aqui uma especificidade prevista no 28º
- no caso da comparticipação - se um dos participantes tiver a qualidade prevista no tipo, ela comunica-se aos demais –
há uma comunicabilidade.

Em matéria de autoria, o caso pratico suscita um problema especifico, que é o da responsabilidade penal da pessoa
coletiva – diz que a delegada de informação medica trabalhava numa certa empresa farmacêutica – portanto num caso
destes, quando o MP se depara com a ilicitude e corrupção no âmbito de uma atividade empresarial, automaticamente
gera responsabilidade não apenas para as pessoas individuais que possam ter cometido o crime, mas também procurara
averiguar via de regra se a pessoa coletiva no âmbito da qual a atividade foi realizada poderá responder também pela
pratica do crime – art.11º CP admite que as pessoa coletivas possam responder criminalmente por alguns crimes.

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A regra é a da responsabilidade criminal individual. Mas há tipos legais de crimes que podem ser imputados a pessoas
coletivas → ou seja, a pessoa coletiva apenas será responsabilizada se o tipo legal admitir a responsabilidade criminal
da pessoa coletiva. Ex.: um motorista mata uma pessoa – o motorista pode responder por homicídio negligente, mas a
empresa para a qual trabalha não. Não está previsto no tipo legal, a responsabilização de pessoas coletiva neste crime
de homicídio.

No nosso caso estava em causa o crime de corrupção ativa e passiva 374º/2C. Podia a empresa responder pela prática
do crime de corrupção, pelo comportamento da sua trabalhadora? Temos que recorrer ao artigo 11º/2, para verificar
se no catálogo de crimes que aí conta está incluindo o crime praticado pela trabalhadora – este crime, está previsto
pelo catálogo do art.11º/2 – faz se referencia aso crimes do 372º - 376º. → Portanto, as pessoas coletivas podem
responder criminalmente pela prática do crime de corrupção. Mas para que possam responder criminalmente têm de
estar verificados os requisitos do nº2 al. a) e b) – requisitos alternativos: a pessoa coletiva pode ser criminalmente
responsável se o tipo criminal previsto no nº2 a) for praticado em sem nome e no seu interesse por pessoa que ocupe
uma posição de liderança ou b) se foi praticado por alguém que não ocupa uma posição de liderança em virtude de uma
violação de deveres de vigilância ou controlo que lhes incumbe.

Neste caso temos alguém com posição de liderança (art.11º/4)? No nosso caso, nitidamente, Ana não ocupa uma posição
de liderança, está num patamar hierárquico baixo, e por isso não a sua conduta não é suscetível de responsabilizar a
empresa por crimes de corrupção nos termos da alínea a) nº2 do 11º.

A alínea b) admite a responsabilidade naqueles caso em que o facto seja praticado por alguém que não tenha uma posição
de liderança em virtude da violação dos deveres de vigilância- quem comanda a empresa, quem lidera a empresa tem
um dever se não só de praticas lícitos, mas também de organizar a estrutura e o funcionamento da empresa de um modo
tal que evite a pratica de factos ilícitos.

A questão está em saber se a empresa adotou uma organização na forma de procedimento que permitiria prevenir e
detetar, impedir, atos ilícitos. Se isso aconteceu, então realmente há um sistema de prevenção de ilícitos em
funcionamento, então a pessoa coletiva não responde. Se pelo contrário, se venha verificar que aquele crime de
corrupção foi fruto de um erro de organização, funcionamento, controlo da empresa, de quem comanda a empresa, então
a empresa também pode responder.

Um outro elemento do tipo objetivo de ilícito é a conduta – portanto, para se saber se um certo comportamento, ou
conduta assume ou não relevância típica, se pode ou não ser considerado como um facto objetivamente típico, temos
que verificar se essa conduta, integra a previsão incriminatória do tipo legal de crime – por exemplo: o crime de
homicídio o artigo 131º CP diz que quem matar outra pessoa x

A conduta deve corresponder à previsão daquele tipo legal – já não será por exemplo uma conduta típica de homicídio,
administrar uma substância que provoca a morte de alguém no ventre materno.

Ora, o facto típico só pode ser afirmado se o agente realizar aquilo que se designa uma conduta típica, se a sua ação ou
omissão corresponder aquela descrição do comportamento no tipo. Há em todos o caso que atender ao seguinte: a
conduta em questão devera possuir certas qualidades – poderá qualificar se como um facto típico, e deverá se uma
conduta humana.

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Caso Prático 2

Em viagem de finalistas à República Dominicana, num avião da TAP, durante a noite, André, enquanto dormia,
ao sonhar com a sua ex-namorada, Beatriz, que também seguia no avião com o seu novo namorado, César, gritou:
“Beatriz és uma devassa, esta vai ser a tua última viagem. E não penses que o teu novo amiguinho escapa! Hão
de morrer os dois!”. Afirmações que foram ouvidas por todo o avião. Beatriz e César passaram as férias em
permanente sobressalto e regressados a Portugal apresentaram queixa contra André por crime de ameaça (art.
153.º). Poderá André responder criminalmente pelo que disse?

O art.153º CP consagra o crime de ameaça, onde se inclui “a prática de crimes contra a vida, a integridade física, a
liberdade pessoal, a liberdade e a autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor” quando feita “de
forma adequada a provocar medo ou inquietação ou prejudicar a liberdade de autodeterminação”. O aluno ao sonhar
ameaçou de morte o Ex namorado e Ex namorada – 153 CP – tipo legal de crime em questão e o crime de ameaça que
prevê o seguinte:

O que foi dito por César corresponde, formalmente, a uma conduta prevista no tipo legal. Mas poderá mesmo constituir
uma conduta típica de ameaça?

Neste caso, o agente estava a dormir (a ameaça correu durante um sonho) – um daqueles casos em que não se pode dizer
que há uma ação. O conceito de conduta típica penalmente relevante em sede de tipo objetivo pressupõe que possa
afirmar-se a existência de uma ação. E, a ação, neste contexto, assume relevo negativo, e em exclusão da tipicidade de
condutas que não sejam dominadas pela vontade.

Quando aqui se faz a conduta típica, isto é um comportamento dominado pela vontade, o agente deve aturar por força
da sua vontade – deve haver algum domínio da vontade. Pois só havendo vontade e que aquele ato pode ser considerado
como pessoal, ato do agente, da própria pessoa. E nesse sentido, excluem-se da esfera da tipicidade, condutas
desprovidas do domínio da vontade. Condutas ações em estado de inconsciência. Quem atue num estado de
inconsciência - dormir por exemplo – não atua tipicamente. Portanto, os sonhos não relevam criminalmente.

Tal como atos praticados por alguém que esta a dormir por exemplo um sonâmbulo, também não tem significado típico.

Também se excluem da esfera a d atipicidade, comportamentos ou atuações que embora o individuo esteja consciente,
claramente não tem controlo sobre aquilo que esta a acontecer. Por exemplo alguém que parte algo durante um ataque
epilético

Também não atua tipicamente aquele que faz qualquer coisa, de forma instintiva, os chamados atos reflexos, por vezes
as pessoas tem reações automáticas, que não conseguem controlar, das quais resultam danos a terceiros – alguém que
espirra e perde o controlo da viatura, que é picado por um inseto e reage magoando terceiro.

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Estes atos desta natureza também são tidos como não dominados pela vontade, ainda que lesem o bem jurídico de modo
aparentemente relevante, não são tipicamente relevantes.

Respondendo ao caso: não, André não poderia responder criminalmente pois o que disse foi a dormir, não praticou uma
ação típica, fê-lo num estado inconsciente. Embora formalmente parece que preencheu o tipo do crime de ameaça,
materialmente isso não aconteceu.

Neste domínio da conduta típica, existem crimes de mera atividade (= crimes formais – crimes cuja consumação se
processa através do mero agir; ex.: injúria, violação, entrar em casa de alguém sem autorização) e crimes de resultado
(= crimes materiais – crime cuja consumação pressupõe que da realização de uma certa conduta decorra um resultado
que se diferencia no tempo e no espaço daquela conduta; ex.: só há consumação do crime de homicídio se, para além
do tipo, houver a morte da pessoa → 2 momentos: momento da prática do facto e o momento da produção do resultado).

É necessário que se estabeleça um nexo que associe a conduta e o resultado, que se prove que aquele resultado foi
consequência daquela conduta. E necessário que se estabeleça uma ligação objetiva, do resultado com a conduta. →
imputação do resultado à conduta (já vamos ver a seguir)

Caso Prático 13

António, jovem recém-licenciado, funcionário público no começo de carreira e ainda em parte economicamente
dependente dos seus pais, foi colocado numa repartição pública que dista umas largas dezenas de quilómetros da
casa onde com eles vive. Por causa dessas funções que aí passará a exercer, pede aos pais que lhe ofereçam um
automóvel. Os pais, que até então se vinham mostrando relutantes em dar-lhe a viatura que aquele há muito lhes
pedia, acabam por ceder ao seu desejo, o que não teria sucedido se o filho não tivesse sido colocado no referido
posto. Poderão António e os pais responder pela prática dos crimes de recebimento e de oferta indevidos de
vantagem (art.372.º/1/2 do CP)?

Já vimos que na legitimação do direito penal, numa perspetiva geral, a incriminação de um certo comportamento só será
legitima se servir de proteção de um certo interesse. O legislador criminaliza um certo comportamento porque isso é
necessário para proteger um certo interesse tido como socialmente relevante – bens jurídicos penalmente relevantes

O bem jurídico releva nessa perspetiva que está a montante do momento, que diz respeito ao momento da
criminalização – o que pode justificar incriminações de uma certa conduta. Para além desta função de padrão típico/de
referente da criminalização, o bem jurídico desempenha também um papel de grande relevo na interpretação,
incriminação, do tipo incriminador.

O tipo incriminador, visando a proteção de um bem jurídico, tem de se referir a esse bem jurídico na tipificação legal.

Há diferentes formas de proteção de bens jurídicos, que pode ser mais ou menos rigorosa - a intencionalidade de proteger
de forma mais forte ou intensa o bem jurídico, decorra do modo como o legislador tipifica a incriminação. E a este

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propósito há uma classificação dos crimes, em função da ameaça, ou da ofensa ao bem jurídico que é inerente a
realização da conduta típica. Ou seja, os tipos objetivo incriminador pode ser perspetivado de acordo com a ofensa ao
bem jurídico que o tipo incriminador prevê:

Aqui, quando falamos em bem jurídico é no sentido do desvalor, no sentido do interesse abstratamente considerado, e
não no objeto da ação. Uma coisa é o objeto sobre o qual recai a conduta, objeto de ação. Outra coisa é o bem jurídico,
o interesse material.

- Crimes de dano (ex.: homicídio): a conduta típica implica a lesão do bem jurídico

- Crime de perigo: dada a importância do bem jurídico, o legislador pune a conduta que lesa o bem jurídico e pune
antecipadamente a conduta que o coloca em perigo → há um adiantamento da barreira de proteção do bem jurídico.
Crime de perigo concreto (o perigo faz parte do tipo – é preciso demonstrar que o bem jurídico esteve de facto em
perigo – ex. crime de condução perigosa). Crime de perigo abstrato: o perigo é o simples motivo da proibição; o
comportamento constituiu em si mesmo um perigo demasiado relevante para o bem jurídico– ex.: conduzir em estado
de embriaguez. Vimos que o DP só deve atuar em última ratio, na lesão grave de bens jurídicos, e aqui estamos muitas
vezes longe da lesão. Por isso tem de haver muita cautela na tipificação de crimes de perigo abstratos. Mas claro que
quando haja perigosidade efetiva será admissível a tipificação com a forma de crime abstrato, sendo certo que a
tendência atual, vai cada vez mais no sentido de criar tipos legais de crime que se baseiam no crime, basta fazer ou não
fazer algo, que em si mesmo já e perigoso, para se proibir um comportamento – precisamente por ser difícil de provar a
lesão.

É a função de determinação do grau da ofensa ao bem jurídico que os faz classificar em crimes de dano ou de perigo
(concreto ou abstrato). Para além desta função, o bem jurídico desempenha também uma função de interpretação: na
interpretação do tipo incriminador, no sentido típico da incriminação e muito importante saber qual o bem jurídico, e
perceber qual o tipo de ofensa ao bem jurídico que o legislador pretende acautelar –fundamental para verificar se uma
certa situação da vida constitui crime ou não.

Ora, olhando para o caso nº13: temos um filho que pede um carro aos pais, e os pais sensibilizados e porque ele
realmente exerce funções naquele sítio decidem-lhe dar um carro.

O artigo 372º proíbe, tipifica como crime, o facto do funcionário que no exercício das suas funções ou por causa delas
solicite vantagem patrimonial, prevendo o nº2 que quem der vantagem patrimonial ao funcionário é punido ate 3 anos.
E, no nosso caso diz se que os pais só lhe deram o carro porque ele exercia as funções públicas.

Ora, não tem logica que uma situação destas, na esfera da vida privada dos pais e dos filhos possa ser crime. Todavia,
formalmente, esta situação encaixa na letra da lei – mas há situações que apesar de estarem na letra da lei, não encaixam
no espirito da lei: esta norma diz respeito à proteção da autonomia do estado (bem jurídico) e à necessidade de proteger
o exercício de funções publicas, i.e., que o exercício destas funções seja integro, não seja influenciado por atores externos
– manter a confiança que o estado tem nos seus funcionários.

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O que está aqui em causa é a confiança na integridade dos funcionários. Neste caso, claramente o comportamento dos
pais para com o filho em nada ameaça a confiança que a comunidade deposita nas funções publicas, nem onera as suas
funções, nem as ilegaliza.

Estamos a destrinçar condutas que formalmente poderiam ser crime, mas que materialmente são irrelevantes
para o bem jurídico, não ofendem minimamente o bem jurídico, são atípicas, neste caso do 272º.

Portanto, concluindo:

Este crime de recebimento de vantagem é um crime de corrupção- o que esta aqui em causa sobretudo é um bem jurídico
que é e necessidade de proteger o exercício de funções publicas, que este não seja influenciado por fatores externos e
manter a confiança que a comunidade tem na retidão dos seus funcionários. Neste caso, claramente o carro não foi dado
para que o filho favorecesse os pais no exercício das suas funções e, por isso, aquele comportamento dos pais e do filho
em nada ameaça a confiança que a comunidade tem na retidão das suas funções e da legalidade das mesmas. Apesar de
aquela conduta cair na letra da lei, ele não faz jus ao bem jurídico que se pretende proteger e por isso não há crime. Estas
condutas que são irrelevantes para o bem jurídico - são atípicas.

Esta classificação que vimos dos crimes de dano e dos crimes de perigo concreto e abstrato, esta ligada a bens jurídicos
individuais. Ora, tratando-se de bens jurídico coletivos, bens jurídicos supraindividuais há atualmente uma tendência
para conceber a estrutura típica dos crimes em questão, de acordo cm o chamado modelo cumulativo: crimes
cumulativos ou de cumulação: crimes em que a conduta em si mesma isolada não tem ofensividade para o bem jurídico,
mas que o legislador proíbe pois a sua repetição pode por em causa o bem jurídico.

Por exemplo: se eu falsificar uma dúzia de notas isso é absolutamente inócua para a estabilidade do sistema monetário.
Todavia, pune-se a contrafação de moeda porque mesmo que uma simples contrafação de moeda seja inócua, há um
risco de repetição. Assim, justifica-se a sua punição para que não haja a acumulação destes delitos.

IMPUTAÇÃO DO RESULTADO À CONDUTA

Está aqui em causa saber quando é que um resultado típico deriva de uma conduta típica. Esta questão levanta-se quanto
aos crimes de resultado (crimes materiais) em que se identificam 2 momentos: o momento da prática do facto e o
momento da verificação do resultado.

Para sabermos se esse resultado pode ser imputado à conduta temos de, ordeiramente, analisar as 4 teorias, e só parar
de avançar até termos um resultado positivo (de imputação). São elas:

1ª → Teoria das condições equivalente ou da conditio sine qua non: é causa do resultado toda a condição
sem a qual o resultado não se teria manifestado (conditio sine qua non);

2ª → Teoria das condições conforme as leis naturais: a conduta é causa do resultado quando assim for
possível demonstrar através de conhecimentos científicos e de leis da experiência;

3ª → Teoria da adequação ou da causalidade adequada: o resultado será imputado à conduta se, segundo as
leis da experiência, for normal e previsível que essa conduta produza tal resultado (causalidade adequada
determinada através de um juízo de prognose póstuma)
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4ª → Teoria da conexão do risco: o resultado é imputado à conduta quando 1) criou ou aumentou um risco
proibido para o bem jurídico e 2) quando esse risco se materializou num resultado típico (previsto no tipo legal
de crime)

Caso Prático 1

No dia 17 de julho de 2009, no Hospital de Santa Maria, de Lisboa, o farmacêutico Hugo e a técnica de farmácia
Sónia administraram a 6 doentes injeções intraoculares de uma substância que não foi possível determinar.
Depois de receberem essas injeções, esses 6 doentes ficaram total ou parcialmente cegos. Em julgamento, não se
logrou estabelecer uma conexão entre as injeções administradas e a cegueira dos doentes. Poderão Hugo e Sónia
ser condenados pela prática dos crimes de ofensa à integridade física grave negligente (artigo 148.º/1/3 do CP) de
que estavam acusados?

Está aqui em causa saber se foi o comportamento de Hugo e Sandra que cegou os 6 doentes → imputação do resultado
à conduta.

Esta questão levanta-se no âmbito dos crimes de resultado (crimes materiais) em que para que haja consumação tem de
haver a realização de uma conduta típica e a produção de um resultado típico. Assim, para que a tipicidade possa ser
confirmada (ou seja, para estarmos perante um crime de resultado), tem de haver um nexo de causalidade entre a conduta
e o resultado. Assim, não se podendo estabelecer um nexo causal, o resultado não é imputável à conduta.

Como no nosso caso, não houve desde logo, qualquer demonstração de causalidade, ou seja, que os doentes ficaram
cegos por causa das injeções, não haveria imputação.

Assim, para existir imputação do resultado à conduta:

1º: existência do nexo causal (nexo entre o resultado e a conduta, sem o qual não haverá imputação)

2º: se este existir – análise das teorias

Caso prático 2

A e B, amigos de longa data, passeavam numa zona comercial do Porto quando, sem que qualquer um deles se
tivesse apercebido, C, artista de rua, munido de uma máscara de extraterrestre, os surpreendeu e assustou. Em
virtude do susto, A veio a falecer de ataque cardíaco. Provou-se que C atuara com o único objetivo de «divertir
os transeuntes» e que há cerca de cinco anos se dedicava a esta atividade, sem que existissem registos de quaisquer
incidentes.

a) Refira-se, fundadamente, à responsabilidade jurídico-penal de C.

Está em aqui em causa a imputação do resultado (morte de A) à conduta de C (susto).

Primeiramente temos de averiguar se há nexo de causalidade entre a conduta e o resultado. Como podemos concluir
positivamente, passamos para o passo seguinte: análise das 4 teorias para averiguar se à imputação do resultado à
conduta de C.

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1º) Segundo a Teoria das condições equivalentes (conditio sine qua non) é a causa de um resultado toda a condição
sem a qual o mesmo não se tinha verificado (conditio sine qua non). Ou seja, sem a conduta, o resultado não se teria
verificado. São assim consideradas todas as causas (em pé de igualdade) que contribuíram para a produção do resultado.

O juiz deve fazer um juízo de sumição mental: ou seja, deveria presentar a situação e suprimir-lhe a conduta: se
concluísse que sem a conduta o resultado se teria produzido na mesma, não haveria imputação; caso contrário, o
resultado seria imputado à conduta.

A verdade é que se C não tivesse assutado A, este não teria morrido. Assim, há luz desta doutrina, podemos dizer que
se pode imputar o resultado (morte de A) à conduta de C: A morreu devido ao susto provocado por C (a conduta de C
foi causa da morte de A) → há sempre um nexo causal.

Mas esta doutrina tem limitações:

- Se abrange todas as causas sem as quais o resultado não se teria produzido, iria acabar por abranger as mais
longínquas condições, operando sucessivamente para trás (regressus ad infinitum) – seria também causa a
própria mãe de A dá-lo à luz pois se tal não tivesse acontecido, ele não teria nascido e por conseguinte não seria
assustado morrendo de ataque cardíaco.

- Há casos em que retirando a causa, o resultado ter-se-ia produzido igualmente: casos de causalidade virtual (o
resultado teria ocorrido na mesma, no mesmo momento por outra causa – ex.: A esta na cadeira elétrica para ser
executado e o seu pai, vendo tal situação, dispara sobre ele matando-o. A teria morrido na mesma suprimindo a
conduta do seu pai, não sendo este responsabilizado) e casos de causalidade alternativa (quando o resultado é
fruto da atuação de vários agentes – ex.: A e B envenenam a sopa de C sem saberem um do outro. Se
suprimíssemos a conduta de um deles o facto ter-se-ia verificado na mesma, o que os iria responsabilizar).

Assim, nos casos em que a relação causa é duvidosa, a teoria das condições equivalente não lhe dá resposta.

2º Surgiu assim, a teoria da causalidade conforme às leis naturais: a ação é causa de um resultado quando entre os
dois for possível estabelecer um nexo de causalidade derivado do conhecimento científico e das leis da experiência. Ou
seja, é preciso demonstrar cientificamente ou de acordo com a experiência se existe uma ligação cientificamente
demonstrável entre a ação e o resultado. Se se conseguir demonstrar que entre os dois há essa conexão, então a ação
será causa do resultado.

Porém, também esta teoria tem grandes limitações já que nos leva a um conceito de causalidade meramente
probabilístico, atribuindo-lhe um caráter científico.

No nosso caso, cientificamente seria muito difícil provar se o susto C deu origem ao enfarte de A

Na falha destas teorias de causalidade naturalistas, surgiu então uma necessidade de normativizar o nexo causal, ou
seja, de se criarem filtros normativos para selecionar aquilo que realmente releva para o direito penal.

3º surge, assim, a teoria da adequação ou da causalidade adequada: a conduta é causa do resultado quando se possa
concluir de forma normal e previsível que essa conduta produza tal resultado. Desta forma, o juiz faz um juízo de
prognose póstuma, ou seja, vai recuar até ao momento da prática do facto e perguntar-se “é normal e previsível que a

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conduta do agente conduza a este resultado?”; se concluir que sim, o resultado vai-lhe ser imputado, se não, não lhe vai
ser imputado.

C, quando andava na rua a divertir os transeuntes, ele podia prever que havia um deles que ia morrer com o susto? Não.
A ideia é que, se não era previsível que o seu comportamento resultasse na morte de alguém, ele não teria forma de
dominar o seu comportamento de forma a não resultar na morte de A.

Contam aqui as regras da experiência comum, aquilo que a comunidade prevê que acontecesse: e a comunidade prevê
que se assustarmos uma pessoa ele, em regra, não morre.

Mas relevam também aqui os conhecimentos especiais do agente no momento da prática do facto – se C soubesse que
A tinha um problema cardíaco e do seu susto, seria previsível que A morresse

Segundo a doutrina da atuação, tal conduta não era, então imputável a C.

No entanto, esta conduta tem, também ela, limitações:

- Há casos em que é normal e previsível que tal conduta produza aquele resultado e, mesmo assim, esse
comportamento não é imputado ao agente – Ex,: os medicamentos têm efeitos secundários normas e previveis,
mas em nome do beneficio dos medicamentos não vão ser imputados ao fabricante.

- Há, por outro lado, atividades que comportam em si mesmas riscos permitidos (ex.: fumar pode matar, e mesmo
assim é permitido fumar);

- Não prevê caos como p.e., A vê que B vai ser atingido por um pilar e, para o afastar, dá-lhe um empurrão que
o faz partir o braço. De acordo com esta teoria, o facto de A ter empurrado B, de acordo com as regras da
experiência comum, é normal e previsível que possa causar ofensas à integridade física de B (B praticou um
facto típico objetivo de ofensa à integridade física), sendo, portanto, responsabilizado.

Esta teoria permitiu a afirmação de tipicidade de condutas que não têm significado social. Para dar uma perspetiva mais
adequada a esta matérias, surgiu uma outra teoria no âmbito da imputação objetiva (mais uma vez pela mão de CLAUS
ROXIN) → 4ª Teoria da conexão do risco: o resultado será imputado à conduta quando 1) crie ou aumente um risco
proibido para o bem jurídico protegido e 2) esse risco se materialize num resultado típico (=resultado previsto no tipo
legal de crime) → são requisitos cumulativos: ou seja, se um deles não se verificar o resultado não pode ser
objetivamente imputado à conduta.

Usando o exemplo anterior: A diminuiu o risco que pedia sobre B ao desviá-lo do pilar (caso clássico de diminuição de
risco – A salvou B da morte). A corria perigo de vida e B praticou uma conduta que, embora tenha lesado a integridade
física de B, não criou nem potenciou um risco proibido; pelo contrário, diminuiu-o. Nessa medida, ao ter diminuído o
risco não praticou o facto típico de ofensa à integridade física.

Assim, quanto ao primeiro requisito não há imputação quando a) o resultado seja permitido pela OJ, b) porque a conduta
diminiu o perigo que recai sofre o ofendido, c) o risco não ultrapassa o limite do risco juridicamente permitido c) nos
casos de coatuação da vítima e de terceiro.

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Quanto ao 2º requisito há imputação quando o perigo que se materializou no resultado corresponde ao perigo que a
norma tenha pretendido evitar através da proibição da ação. Não há imputação quando estejam em causa
comportamentos lícitos alternativos (situações em que, o agente criou o risco proibido, mas verifica-se que mesmo
que o agente tivesse adotado a conduta lícita, o resultado ter-se-ia verificado de igual forma)

Nota: esta teoria surgiu na Alemanha e substituiu a teoria da adequação, mas a verdade é que, entre nós, o CP continua
a fazer referência à teoria da adequação no art.10º/1 CP. No entanto, muitos casos podem e devem ser resolvidos pelo
apelo a esta teoria da conexão do risco que se liga à ideia de desvalor da ação e que se relaciona com a ideia de risco.

Caso prático 3

A dispara contra B, com intenção de o matar.

a) Moribundo e abandonado na estrada, B é encontrado por C que, por compaixão, desfere dois tiros
certeiros, provocando-lhe a morte imediata. Quid iuris?

Para matar alguém basta que essa pessoa esteja viva (o homicídio é um crime de execução livre). De acordo com a teoria
da conditio sine qua non se se retirasse a conduta de C, B não tinha morrido, sendo-lhe, portanto, imputado o resultado.
A mesma resposta daria a teoria das condições às leis naturais já que é cientificamente e experiencialmente provável
que se alguém der um tiro em alguém moribundo ele vai morrer.

No entanto, o direito penal deve reger-se, não por uma causalidade naturalísticas, mas sim por uma causalidade
normativa: neste âmbito valem duas teorias – a teoria da causalidade adequada e a teoria da conexão do risco

Segundo a teoria da adequação, para que o resultado seja imputável à conduta é preciso que seja normal e previsível que
essa conduta produza tal resultado – a ideia é a de que, desde que o agente atua até que o resultado se produz, todo esse
processo é normal e previsível para conduzir ao resultado.

Ora, A dispara sobre B abandonando-o moribundo na estrada. De acordo com a teoria da adequação, era previsível que
B tivesse morrido dos seus disparos.

Mas já não era previsível que C aparecesse e tivesse disparado sobre B interrompendo o nexo causal (atuação do
agente que levaria à produção do resultado).Neste sentido, a teoria da adequação diz que apenas se imputa o resultado
ao agente se durante todo o processo que leve à produção do resultado, não seja interrompido o nexo causal.

Neste caso, a teoria da adequação diz que não se imputada o resultado morte de B à conduta de A pois foi interrompido
o nexo de causalidade.

PRODUÇÃO DE RESULTADOS NÃO COBERTOS PELO FIM DE PROTEÇÃO DA NORMA

1) A provoca em B um ligeiro ferimento. No centro de saúde, dizem a B que deve vacinar-se contra o tétano. B
recusa e morre de tétano. Deve a morte de B imputar-se a A ou não? Quid iuris?

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Segundo a doutrina da causalidade naturalista, imputar-se-ia o resultado à conduta, pois se A não tivesse ferido B ele
não teria morrido.

Segundo doutrina da conexão do risco (admitindo que pela doutrina da adequação tal resultado seria inimputável): entre
a conduta de A e o resultado morte de B, interpõem-se a autorresponsabilidade da vítima; não é um terceiro (comos
nos casos anteriores) que se interpõe entre a ação e o resultado, mas o próprio se recusa a tomar a vacina adequada a
evitar a sua morte. Assim, não pode alguém que provoca um ligeiro ferimento noutra pessoa, ficar pendente da atuação
desta para saber se a morte lhe vai ou não ser imputada, pois nada fazia prever que o outro morresse se este se tivesse
vacinado. → estamos estão perante um caso de autocolocação em risco dolosa: quem potenciou e criou o risco foi a
própria vítima ao recusar vacinar-se

2) A e B vão num carro. A vai a conduzir. B diz a A para fazer uma ultrapassagem perigosa em contramão. Neste
seguimento, têm um acidente e A morre. Poderá a morte de A ser imputada a B?

Do ponto de vista da causalidade naturalística, este resultado seria imputável a B pois se retirada a conduta, não resultaria
na morte de A.

Do ponto de vista causalístico-normativo, também não há aqui um autocolocação em perido; o que é uma
hetercolocação em risco dolosa. Também aqui não há imputação, pois o ilícito constituiu a criação de um risco que
não é previsto no âmbito do tipo

3) A, para receber o prémio do seguro pega fogo à sua própria casa. Um dos bombeiros chamados para apagar
o incendio morre a atentar salvar uma pessoa que estava dentro da casa. A morte do bombeiro é imputável a A?

Do poto de vista da causalidade naturalística, este resultado era imputável a A.

Do âmbito da doutrina da conexão do risco será que isto configura um homicídio do bombeiro por parte de A? Cabe
dentro do tipo homicídio?

A ideia é a de que no fundo há uma heterocolocação em perigo consentido: é verdade que A ao pegar fogo a casa acaba
por colocar em perigo o bombeiro que o vai tentar apagar, mas o bombeiro foi para lá de sua livre vontade (quando vai
apagar o fogo, ele próprio admite que pode morrer – ele próprio consente em colocar-se em perigo).

Logo, tal resultado não deve ser imputado ao comportamento de A; não entra no âmbito de homicídio a morte do
bombeiro. → falamos aqui em imputação a um âmbito de responsabilidade alheio.

TIPO SUJETIVO DE ILÍCITO (DOLO)

A dispara contra B, com intenção de o matar.

a) Moribundo e abandonado na estrada, B é encontrado por C que, por compaixão, desfere dois tiros
certeiros, provocando-lhe a morte imediata. Quid iuris?

Apesar disto, A tinha toda a intenção de matar B; só não aconteceu o resultado. A concuta de A seria punida ou não?

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Se assim não fosse, estaríamos a diluir a ideia de previsibilidade e iriamos aproximar-nos da doutrina da condictio sine
qua non.

O tipo de ilícito incriminatório é bipartido em um tipo objetivo (que já vimos) e um tipo subjetivo (dolo ou negligência
e, por vezes, outros elementos subjetivos especiais do tipo.

O dolo é o elemento subjetivo central do tipo ilícito, dos crimes dolosos, naturalmente, e está previsto legalmente no
artigo 14º. Desde a escola finalista que o dolo é perspetivado como um elemento do tipo de ilícito, um elemento típico
– não esta só na culpa, releva logo no plano da ilicitude. FIGUEIREDO DIAS, concebe o dolo como uma componente
do crime, visto com uma natureza complexa: é composto por 3 elementos – 2 que integram o tipo subjetivo, e 1 que
integra a culpa. É no âmbito do tipo subjetivo do tipo incriminador que vamos analisar o dolo.

No plano do tipo, o dolo (dolo do tipo/do facto/natural) é formado por 2 elementos:

1) Elemento intelectual: conhecimento dos elementos da factualidade típica → o agente de representar, tem
de ter a perceção, que os factos que pratica consubstanciam um tipo de ilícito objetivo

2) Elemento volitivo: intenção de realizar o tipo objetivo de ilícito

O dolo (no âmbito do tipo subjetivo) corresponde, portanto, ao conhecimento e vontade de realização do tipo objetivo
de ilícito

Há um 3º elemento – mas este aparece no plano da culpa que é o chamado elemento emocional – corresponde a uma atitude de
hostilidade ou inimizade do agente em reação ao bem jurídico – aquele que atua com dolo ou culpa é aquele que revela uma atitude
de afronta ao bem jurídico.

Apesar do aumento da importância dos crimes negligentes na sociedade criminal atual (“sociedade de risco”, o lugar
primordial é conferido à criminalidade dolosa: os crimes de negligencia apenas correspondem a 1/10 dos crimes
previstos na parte especial do CP. Desta forma, o dolo corresponde à forma mais grave de ofensa ao bem jurídico, e por
isso em regra, o facto se for praticado com dolo, é punido nos termos do 13º ; para que seja punível com negligencia
tem que haver uma norma legal que preveja - daí que muitas vezes, se não houver dolo, não há punição, pois uma grande
parte de crimes, só são puníveis de forma dolosa.

No entanto, não é indiferente saber se o agente atuou com dolo ou com negligencia, pois tal consubstancia consequências
penais diferentes (diferenças ao nível da pena).

O que distingue o dolo da negligência prende-se com a consciência do ilícito: o dolo seria uma violação consciente do
direito.

QUANTO AO MOMENTO INTELECTUAL: para haver dolo é necessário que o agente represente corretamente
todos os elementos da factualidade típica, i.e., que conheça todas as circunstâncias do facto que preenche o tipo de ilícito
objetivo. Pretende-se que o agente ao atuar saiba tudo o que é necessário para que o seu comportamento consubstancie
um desvalor do bem jurídico.

Se o agente não representa um elemento objetivo falta o dolo, basta que haja um ponto de incongruência entre a realidade
do tipo objetivo e aquilo que é percecionado pelo agente para que já não haja dolo. Basta que falhe um elemento para
que já não haja dolo.
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Quando falamos que tem de haver um conhecimento do agente este corresponde a uma consciência implícita: para haver
dolo não é necessário ter uma consciência tão nítida, mas apenas do fundamental, o suficiente para orientar a conduta
do agente.

E é um conhecimento tanto dos elementos descritivos (aqueles que facilmente são percecionados pelo agente através
dos sentidos) como dos elementos normativos, elementos estes que são mais difíceis serem entendidos pelo agente, que
só através de uma determinada valoração é que conseguimos entender o seu sentido. Neste sentido, deve fazer-se uma
avaliação paralela à feita na esfera do leigo, ou seja, para que se diga que o agente representou um certo elemento
normativo, não é necessário que ele tenha uma compreensão jurídica ou jurídico penal do significado normativo desse
elemento; basta que tenha uma perceção de um leigo/de uma pessoa comum de modo a perceber aquilo que está a fazer.

Assim, faltando ao agente o conhecimento de algum elemento da factualidade típica ou quando o represente de
forma errada, não há dolo → estamos numa situação de ERRO:

1) Erro sobre a factualidade típica: quando falta ao agente o conhecimento da totalidade dos elementos
(descritivos e normativos) do facto não existe dolo do tipo;

2) Erro sobre o processo causal: quando o agente leva a cabo o resultado e consegue o resultado que pretendia,
mas o modo como chega ao resultado é diferente daquilo que representou (erro na execução)

3) Dolos generalis: casos em que o agente deseja um certo resultado e planeia que ele se processe de
determinada forma, só que sem que este se aperceba, o resultado não se produz num primeiro momento
(momento em que o agente pensa erroneamente ter produzido o facto ilícito com a sua ação), mas sim num
segundo momento (fruto de outra atuação do agente) em que ele pensa que o resultado já se tinha verificado no
primeiro momento;

4) Aberratio ictus vel impetus: quando por erro na execução, o resultado que o agente reassentou não se produz,
verificando-se um outro diferente

5) Error in persona vel objeto: quando o decurso do acontecimento corresponde exatamente aquilo que o agente
representou, mas este encontra-se em erro quanto à identidade do objeto ou da pessoa a atingir (erro na formação
da vontade)

6) Erro sobre a proibição legal e erro sobre a ilicitude: o agente atua sem saber que pratica um facto ilícito
(erro na valoração).

QUANTO AO MOMENTO VOLITIVO: para que haja dolo, para além da correta representação do facto típico
elemento intelectual), tem de haver vontade do agente em realizar esse tipo objetivo de ilícito (elemento volitivo). De
acordo com a vontade do agente, o dolo pode assumir várias matrizes (art.14º CP)

1) Dolo direto intencional (art.14º/1 CP): a realização do tipo objetivo de ilício surge como verdadeiro fim da
conduta → verificação da factualidade típica + vontade de realizar o tipo objetivo de ilícito. Também constitui
dolo direto intencional o facto ilícito que aparece com estágio intermédio necessário para levar a cabo a conduta
do agente (é um meio);

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2) Dolo direto necessário (art.14º/2 CP): quando o facto típico não é intencionado pelo agente, mas aprece
como consequência inevitável daquela prática;

3) Dolo eventual (art.14º/3 CP): quando a realização do tipo objetivo de ilícito é representado pelo agente
apenas como consequência possível da sua conduta.

Caso prático 1

A é ator de teatro e participa numa peça em que ocorre a prática de um homicídio na pessoa de outra personagem,
cujo desempenho cabe a B. Sabendo disso, C tira a arma que servia de adereço e substitui-a por outra igual, mas
verdadeira e carregada. Ignorando tal facto, durante a representação A dispara sobre B, ocasionando a sua
morte. Refira-se à responsabilidade jurídico-penal de A.

Tipo penal de crime: Homicídio

Elementos da factualidade típica do homicídio, ou seja, os factos descritos no tipo: artigo 131 - quem matar outra pessoa;
matar é praticar uma ação adequada à prossecução da morte de outra pessoa

Para haver dolo o agente tem de conhecer todos os elementos da factualidade típica do ilício (momento intelectual) e
tem de atuar com vontade de realizar o tipo objetivo de ilícito (momento intelectual). Caso estes requisitos não estejam
preenchidos, não há dolo.

Neste caso, A não praticou uma ação adequada a matar porque estava a representar. A representou que estava a portar
uma arma a fingir e, portanto, tal não consubstancia uma ação adequada a matar porque na sua representação isso nem
era possível → estamos perante um erro sobre a factualidade típica pois o agente não representa na totalidade os
elementos do facto ilícito. Havendo erro sobre a factualidade típica (art.16º/1 CP) não há dolo, mas a conduta pode ser
punida por negligência (art.16º/3 CP) → A não pode ser responsabilizado por homicídio dolos (131º CP)

De acordo com o art.13º, só é punível o facto praticado com dolo, e nos casos previsto na lei, com negligência. O art.137º
CP prevê o homicídio por negligência. A negligência implica uma falta de cuidado do agente

Assim, A não será responsabilizado por dolo (homicídio doloso), mas poderá ser eventualmente punido a titulo de
homicídio por negligência, tendo primeiro que verificar se se preenchem os requisitos do artigo 15º e seguidamente do
artigo 137º

Caso prático 2

A, médico, receita a B um determinado medicamento, ignorando que B se encontra grávida. O remédio,


adequado ao tratamento de B, era, porém, abortivo, se tomado na fase inicial da gravidez. O filho que B esperava
veio efetivamente a morrer, como consequência da presença do tal químico no sangue materno. Qual a
responsabilidade jurídico-penal de A?

Tipo objetivo de ilícito: Aborto – art.140 CP

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Considera-se que o momento mais critico da vida intrauterina é a altura em que o bebé nasce, o parto. Deixa de ser
aborto e passa a ser homicídio quando o ato de matar o feto ocorre no princípio do processo da expulsão do feto. A partir
desse momento, matar o bebé mesmo que no trabalho de parto já consubstancia um homicídio.

Mas há autores que consideram que provocar a morte de um feto, mesmo que antes do trabalho de parte se deve
considerar um também um homicídio e ser punível (corrente que é a favor da proibição do aborto).

A médico erra sobre a representação de todos os elementos que constituem o tipo objeto de ilícito → há portante um
erro sobre a factualidade (art.16º CP) que exclui o dolo

Caso prático 3

A decide matar B. Sabendo que este se desloca habitualmente num Nissan encarnado, com a matrícula X, espera-
o logo de manhã, à saída da garagem de sua casa. Ao ver o carro, A dispara sobre o condutor. Horrorizado,
descobre que afinal, naquele dia, era C, filho de B, que ia ao volante. Quid iuris?

B tinha dolo de homicídio e disparou para matar A, mas o que sucedeu foi que disparou e matou C, filho de A. Neste
caso há uma diferença entre o crime projetado e o crime acontecido. Do ponto de vista de A, ele tinha dolo de matar B
mas já não o tinha de matar C. No final, não temos um homicídio doloso → error in persona vel objeto: erro sobre a
identidade, e as qualidades da pessoa concreta que queria matar.

Para A é completamente diferente matar B ou C, porque ele queria matar B e não C. E para a ordem jurídica também
são crimes diferentes? Não, para a ordem jurídica não são crimes diferentes pois todas as pessoas são equivalentes.
Portanto, é indiferente que a intenção tenha sido matar B e não C. Ambas as possibilidades cabem exatamente no mesmo
tipo, no homicídio simples.

A ordem jurídica considera que A tem dolo de matar outra pessoa (qualquer pessoa que seja). A representou e atuou
com todos os elementos da factualidade típica, logo não releva se, neste caso, ele queria matar B e acabou por matar C.

Para a ordem jurídica não releva a diferença entre o objeto representado e o objeto do crime, mas releva já quando o
tipo de crime não é o mesmo. Ex.: o agente quer praticar um furto qualificado, mas pratica um furto simples (tem dolo
de mais e acaba por praticar de menos) é punido consoante as regras do furto simples. Punir o agente pelo que fez e não
por aquilo que queria fazer.

a) Imagine agora que B ia efetivamente ao volante, mas que o tiro de A lhe saiu pouco certeiro. O atingido
não foi B, mas sim D, mulher de B, que ia sentada a seu lado. Quid iuris?

O alvo continua a ser B, mas o tiro não foi certeiro e matou a sua mulher, D

Passa-se aqui o mesmo que no caso anterior?

Não, aqui a grande diferença, e que leva FIGUEIREDO DIAS a propor uma solução diferente, é que desta vez A não
acertou no objeto que representou.

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A ação continua ser dar um tiro para matar, mas na situação anterior A errou sobre a identidade da pessoa, aqui A não
atingiu o alvo, B, sendo atingida a sua mulher D. → aberratio icutis vel impetus: casos em que por erro na execução,
vem a ser atingido objeto diferente daquele que o autor representou → exclusão do dolo.

A representou e quis matar B; acabou por morrer D. Ou seja, o resultado ao qual se referia a vontade de realização do
facto não se verifica, verificando-se sim outro.

Desta forma, A deve ser punido pela tentativa de matar B em concurso com o homicídio negligente consumado de D →
solução de concurso de penas.

Porque é que aqui o erro não é irrelevante como no caso anterior? FIGUEIREDO DIAS diz que, nestes casos, quando
se falha um tiro, ele pode ir em qualquer direção, podendo ate não atingir ninguém nada, havendo uma grande
percentagem de isso ocorrer. Podemos dizer que nestes casos D teve o “azar” do tiro lhe acertar, pelo que FIGUEIREDO
DIAS defende que A (quem dispara) não deve suportar sozinho o “azar” de ter acertado em Dalila, e em atenção a isso
(porque ocorreu, mas podia não ter ocorrido) é mais justo punir sempre o agente pela tentativa do que quis fazer e pela
consumação (neste caso, negligente) do que realmente aconteceu → a solução penal a aplicar é sempre a solução de
concurso.

b) Pense agora que o erro de pontaria de A teve como consequência, não a morte, mas ferimentos graves
em D?

Está aqui em causa a tentativa de homicídio e ofensa à integridade física.

A solução aplicada é a mesma que a anterior (erro sobre a execução) → solução: concurso de penas: o agente vai ser
punido pelo que tentou fazer e pelo que fez.

A vai ser punido pela tentativa de homicídio de B e por ofensa à integridade física negligente de D

c) E se a bala pouco certeira de A matou apenas o cão de B, que ia também dentro do carro.

O crime pensado não coincide com o facto acontecido.

Qual é o tipo que a morte do cão preenche? O cão é um animal de companhia – anteriormente este facto era punido por
maus tratos ao animal de companhia.

A seria punido por tentativa de homicídio na pessoa de B e crime de mãos tratos de animal de companhia negligente -
podemos ter aqui um problema: não sabemos até que ponto este crime é punido por negligencia. Não se vai condenar A
por um crime negligente que não sabemos se existe.

Ou seja, devemos ter em conta os tipos legais que estamos a julgar, e caso haja exclusão de dolo, só há negligência
(art.13º) se estiver especialmente previsto n tipo objetivo de ilícito. Se o tipo legal de crime não previr que essa conduta
possa ser punida por negligência, não podemos condenar A por esse facto.

d) Imaginemos que atingiu não B, mas sim o telemóvel topo de gama de A

Tal constituiria o tipo objetivo de ilícito de crime de dano.

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Normalmente, quando é um tipo que não é homicídio, vem no exame o artigo do código onde esta previsto. Temos so
de saber resolver a questão

Caso prático 4

A planeia matar B afogado. A leva B a passear numa ponte sobre o rio e, chegados ao local, a certa altura,
empurra-o da ponta a baixo. As previsões de A são de que B morra com a queda. No entanto, B não chegou a
morrer de afogamento pois durante a queda bateu com a cabeça num pilar, facto esse que resultou na sua morte.
Poderá A ser responsabilizado pela morte de B?

Ora estamos aqui perante um caso em que A pretende matar B, levando a cabo processo adequado para que isso aconteça,
atingindo o seu objetivo. No entanto, o modo como B morreu (concussão) foi diferente daquilo que A projetou
(afogamento) → estamos assim perante um caso de erro sobre o processo causal

Tem este desvio no processo causal relevância para excluir o dolo?

Em matéria de erro, temos sempre de ver o que o agente projetou, o que realmente aconteceu e como é que a ordem-
jurídico penal valora essa discrepância.

Nestes casos, temos de averiguar se estamos perante um crime de execução livre ou um crime de execução vinculada:

- Se estivermos perante um crime de execução livre (o tipo legal não exige uma determinada execução para que
o crime se verifique), o erro não exclui o dolo;

- Se estivermos perante um crime de execução vinculada (o tipo legal exige a verificação de uma determinada
forma de execução para que o resultado se verifique), o erro exclui o dolo.

Ora, o homicídio constituiu um crime de execução livre – basta alguém matar uma pessoa para que haja homicídio.

Assim, é indiferente que B tenha morrida afogado ou por bater com a cabeça.

A doutrina da imputação do resultado à conduta (teoria da conexão do risco) diz que o resultado é imputado à conduta
do agente desde que 1) ele atue criando ou aumentando o risco proibido para o bem jurídico protegido e 2) esse risco se
materialize num resultado típico no tipo legal.

Ora, ao atirar da ponte B, A criar ou potencia o risco de ele morrer, de tal forma que esse risco se veio a materializar na
morte de B.

Assim, A seria responsabilizado pela morte de B

Neste nosso caso, esta parte de imputação do resultado à conduta está preencha, a única que coisa que temos de ver é se
o crime é de execução livre ou de execução vincular.

Caso prático 5

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A faz uma espera a B para matá-lo à paulada. Depois de desferir uma série de golpes, pensado que este já está
morto, coloca o seu corpo num saco e atira-o ao rio para encobrir o crime. A não sabia que B ainda se encontrava
vivo depois de o ter espancado, e ao atirá-lo ao mar, este morre por afogamento. Será esta conduta imputada a
A? Quid iuris?

Quanto à imputação objetiva do resultado à conduta, os requisitos da teoria da conexão do risco estão preenchidos pois
o agente atua criando/aumentando um risco proibido para o bem jurídico, risco esse que se vai materializar num resultado
típico do tipo legal.

Mas será que o facto de ele ter morrido de afogamento continuará a fazer que tal conduta lhe seja imputada, ou imputada
da mesma forma?

De acordo com o art.13º CP apenas é punível o facto praticado com dolo: o dolo corresponde ao conhecimento (momento
intelectual) e vontade (momento volitivo) de realizar o tipo objetivo de ilícito. Para que haja dolo estes dois momentos
têm de estar preenchidos. Ora quando ao momento volitivo, não se colocará grande questão, pois A tinha a intenção
completa de matar B. A questão vai colocar-se no âmbito do momento intelectual: o agente tem de representar
corretamente e na totalidade todas as circunstancias do facto que preenche o tipo de licito objetivo

Ora, A projetou dois momentos: 1º momento em que espanca B à paulada com a intenção de o matar e 2º em que para
encobrir o seu crime, atira o corpo de B à água.

No entanto, veio a ocorrer, que B não morreu da série de golpes que A lhe desferiu, mas sim por afogamento, facto esse
que A desconhecia → estamos aqui perante um caso de dolus generalis: casos em que o agente deseja um certo resultado
e planeia que se processo de uma determinada forma, mas que, sem que este se aperceba, o resultado vai produzir-se,
mas não de acordo com aquilo que ele representou no primeiro momento, mas sim num segundo momento em que ele
acha que o resultado já estava verificado.

SOLUÇÃO: Nestes casos, uma parte da doutrina defende que o dolo abrange toda a situação, pelo que o agente deve
responder por crime de dolo na forma consumada. Porém, FIGUEIREDO DIAS analisa esta situação de acordo com os
critérios da doutrina da imputação objetiva do resultado à conduta, ou seja, se o risco consumado no resultado pode
reconduzir-se ao quadro dos riscos criados na primeira ação. Assim:

- Se aquilo que levou ao resultado (2º momento) for um perigo que se pode reconduzir ao quadro dos riscos
criados no 1º momento, o agente deve responder a título de crime doloso consumado;

- Se aquilo que levou ao resultado no 2º momento não for um perigo que se possa reconduzir ao quadro dos
riscos criados pela primeira ação, o agente responde a título de tentativa ou de crime negligente

Ou seja, para que o erro não exclua o dolo, basta que o resultado morte seja consequência daquilo que estava previsto
desde o 1º momento.

Como o facto de A desferir várias pauladas em B pode ter como consequência a sua morte, apesar de este morrer por
afogamento, A é condenado com crime doloso consumado.

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O art.16ºº/1 fala ainda do erro sobre as proibições legais

Imaginemos que na conduta do agente não há qualquer erro sobre a factualidade típica (sobre a pessoa, o objeto,
o processo, dolus geenralis) – o agente faz exatamente aquilo que pretende de fazer da forma que o representou,
estando perfeitamente consciência do facto que está a realizar (não há nenhuma discrepância entre aquilo que
projetou e aquilo que está a realizar). No entanto, desconhece que o que está a fazer é crime; ele considera que o
que está a fazer não constituiu uma conduta ilícita.

O direito penal proíbe aquilo que ofende os bens jurídicos penais, quando nenhum outro ramo do direito seja suficiente
para prevenir essas ofensas (proteção de última ratio).

Porém, o direito penal contém normas que

1) não precisamos de saber o seu conteúdo para saber que o tipo objetivo é ilícito – ex.: não precisamos de saber
o que está escrito do art.131º para saber que o matar alguém constitui um crime de homicídio.

2) desconhecemos o seu conteúdo – condutas que não estão interiorizadas pela generalidade da comunidade,
porque são recentes ou porque são normas muito técnicas. Normas em que a representação da conduta não é
suficiente para criar nas pessoas a consciência da ilicitude pena do que queriam fazer.

Nestas situações, FIGUEIREDO DIAS dispõe que é possível excluir o dolo porque nem sempre é exigível ao
comum dos cidadãos saber que está a praticar um facto ilícito, podendo não ser censurado pelo seu
comportamento.

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