Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
12.ª EDIÇÃO
3
NOTA INTRODUTÓRIA
À 12.ª edição este escrito conhece uma alteração fundamental. Desta feita ela não
decorre das múltiplas alterações legislativas ocorridas entre 2013, data da anterior
edição, e 2016 – que obrigaram a reescrever quase metade do texto –, mas da
circunstância de uma obra que vinha revendo e atualizando há mais de duas décadas ter
deixado de ser da minha exclusiva autoria.
A Doutora Vera Eiró aceitou ajudar-me no trabalho que eu não teria conseguido
fazer sozinho. Ocupado com as minhas funções no Tribunal Constitucional e afastado
do ensino do direito administrativo, não reunia condições para tal.
Quem fica a ganhar é o leitor estudioso: beneficia, como eu, do pensamento rigoroso,
inquieto e moderno de uma jurista de excecionais qualidades de inteligência e de
trabalho. Minha aluna, por mais de uma vez, na licenciatura em direito, minha orientada
no doutoramento, minha colaboradora de absoluta confiança, assisti ao seu progresso na
universidade do posto de observação que a vida me proporcionou. Não se lhe faça,
porém, a injustiça de ver nela a minha “herdeira” académica, com o que isso pode
sugerir de privilégio e de limitação da liberdade de pensamento. É um espírito livre e
assim continuará.
Esta coautoria não é um estratagema – que seria legítimo – para fazer perdurar a obra
para além da minha vida. Acreditem que não caio nessa tentação. Trata-se,
simplesmente, de reconhecer que está na altura de partilhar com alguém mais jovem,
que possa, não continuar o trabalho, mas refazê-lo e melhorá-lo, ao seu jeito.
Naturalmente – e felizmente – que a Doutora Vera Eiró e eu, partilhando embora
múltiplas ideias e convicções, não estamos de acordo em tudo. Este escrito deve, por
isso, ser lido com uma espécie de instrução implícita: tudo quanto são opiniões minhas
já manifestadas em anteriores edições não é necessariamente partilhado pela Doutora
Vera Eiró, apenas me vinculando a mim próprio; as posições sustentadas com novidade
nesta edição pertencem a ambos, a menos que a posição de um dos coautores seja
ressalvada, o que se fará em nota de rodapé.
No que respeita ao conteúdo da obra – cuja natureza introdutória e propósito
formador se não alteraram –, ele sofre o impacto de variadas e relevantes alterações
legislativas, nele se refletindo também a criação jurisprudencial e o labor doutrinário: os
textos relativos aos recursos humanos da Administração Pública, ao domínio público –
este porque o projeto de lei de bases foi abandonado –, às autarquias locais, à regulação,
à atividade e ao procedimento administrativos e à justiça administrativa, nomeadamente,
foram substancialmente modificados. Aguardou-se até à última hora a alteração ao
Código dos Contratos Públicos decorrente da necessária transposição das últimas
diretivas da União Europeia. Esgotado já o prazo de transposição e tendo apenas sido
submetido a apreciação pública o respetivo projeto, optou-se por dar conta dos aspetos
essenciais das diretivas.
Uma observação relativa à grafia: optou-se pela norma do Acordo Ortográfico de
1990. Duvidamos da sua necessidade e utilidade e nenhum de nós dois nutre particular
simpatia pela grafia que pretende instituir. Mas há causas bem mais importantes do que
a sorte das consoantes mudas e a problemática do hífen. E, tendo sido adotada pela
Assembleia da República (Deliberação n.º 3-PL/2010, de 15 de Dezembro) e pelo
Governo (Resolução do Conselho de Ministros n.º 8/2011, de 25 de Janeiro), a nova
grafia tornou-se obrigatória nos atos legislativos e para toda a Administração Pública, a
partir de 1 de janeiro de 2012. Usá-la, além do mais, facilitou a tarefa dos autores.
5
No que respeita aos atos legislativos anteriores, a começar pela própria Constituição,
respeitou-se, como não podia deixar de ser, a grafia original. O mesmo se fez às
decisões judiciais e às obras doutrinárias anteriores àquela data. Procurou-se,
igualmente, respeitar as opções dos Autores que, escrevendo em momento posterior,
optaram legitimamente pela antiga ortografia. Atrevo-me a contar com a
condescendência dos próprios relativamente a qualquer eventual engano.
Espero – e a coautora também – que a obra possa continuar a servir a intenção que
lhe presidiu desde sempre: proporcionar aos estudantes de direito e aos juristas não
especializados no direito administrativo um texto de aprendizagem acessível e consulta
fácil.
Julho de 2016
JOÃO CAUPERS
6
PRINCIPAIS ABREVIATURAS
7
PLANO
INTRODUÇÃO
CAPÍTULO I – A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA
CAPÍTULO II – O DIREITO ADMINISTRATIVO
CAPÍTULO III – CONCEITOS FUNDAMENTAIS
PARTE I – ORGANIZAÇÃO ADMINISTRATIVA PÚBLICA
CAPÍTULO I – ESTRUTURAS ORGANIZATIVAS
CAPÍTULO II – RECURSOS DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA
9
ELEMENTOS DE ESTUDO
2. Legislação
O estudo do direito administrativo não pode fazer-se sem a utilização frequente de
múltiplas normas constantes de diversos diplomas legais; é, naturalmente, indispensável
que os estudantes possuam exemplares desses diplomas (atualizados, uma vez que,
sendo o direito administrativo bastante instável, os diplomas legais são revistos bem
mais vezes do que aquelas que todos quantos se dedicam ao seu estudo gostariam).
Estes diplomas podem repartir-se por cinco grupos:
a) A Constituição da República Portuguesa, na redação resultante da sétima revisão
(2005);
b) O Código do Procedimento Administrativo;
c) O Código dos Contratos Públicos;
d) O Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais e o Código de Processo nos
Tribunais Administrativos, na redação resultante do Decreto-Lei n.º 214-G/2015, de 2
de outubro;
e) Os principais diplomas legais relativos à organização administrativa portuguesa,
referidos mais adiante.
11
3. Jurisprudência
Também um conhecimento mínimo da jurisprudência dos tribunais administrativos é
indispensável ao estudo do direito administrativo.
A jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo e dos dois tribunais
administrativos centrais integra já um banco de dados informa tizado, podendo ser
consultada através do site do Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos da Justiça,
I. P. (IGFEJ) em www.dgsi.pt1.
Existe uma publicação bimestral, iniciada em 1997, que inclui, para além de resenhas
de jurisprudência administrativa, artigos de doutrina e comentários aos acórdãos mais
significativos do Supremo Tribunal Administrativo. Trata-se dos Cadernos de Justiça
Administrativa, de que se fará ampla utilização.
Para além desta publicação, outras revistas tratam também de alguns temas
relevantes e abordados em decisões judiciais. Merece particular destaque a Revista dos
Contratos Públicos que, desde 2011, publica artigos de doutrina sobre contratos
públicos e apresenta uma secção de jurisprudência selecionada (europeia e portuguesa).
a) Espanha:
– EDUARDO GAMEIRO CASADO e SEVERIANO FERNANDEZ RAMOS, Manual Básico de
Derecho Administrativo, 12.ª edição, Madrid, Tecnos, 2015;
– EDUARDO GARCÍA DE ENTERRÍA e TOMÁS RAMON FERNANDEZ, Curso de Derecho
Administrativo, Volume I, 16.ª edição, Madrid, Civitas, 2013;
– LUCIANO PAREJO ALFONSO, Lecciones de Derecho Administrativo, 8.ª edição,
Valência, Tirant Lo Blanch, 2016.
b) França:
1
O artigo 30.º do CPTA estabelece, já desde 2002, a obrigatoriedade de publicitação das decisões dos
acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo; os acórdãos dos tribunais centrais administrativos
poderiam não ser publicados caso tivessem natureza meramente interlocutória ou fossem simplesmente
repetitivos de outros anteriores. Na revisão de 2015 do CPTA, o legislador estabeleceu que devem ser
publicados, por via informática, em base de dados de jurisprudência, todos os acórdãos do Supremo
Tribunal Administrativo, os dos tribunais centrais administrativos – mesmo que meramente
interlocutórios ou simplesmente repetitivos – e os dos tribunais administrativos de círculo que tenham
transitado em julgado.
2
Relativamente à Alemanha, optou-se por indicar obras traduzidas em português ou em espanhol,
línguas seguramente mais acessíveis ao leitor.
12
– DIDIER TRUCHET, Droit Administratif, 6.ª edição, Paris, PUF, 2015;
– GEORGE DUPUIS, MARIE-JOSÉ GUEDON e PATRICE CHRETIEN, Droit Administratif,
12.ª edição, Paris, Sirey, 2014 ;
– GILES LEBRETON, Droit Administratif Général, 8.ª edição, Paris, Dalloz, 2015.
c) Itália:
– ELIO CASETTA, Manuale di Diritto Amministrativo, 16.ª edição, Milão, Giuffrè,
2014;
– VINCENZO CERULLI IRELLI, Lineamenti del diritto amministrativo, 4.ª edição,
Turim, Giappichelli, 2014;
– ROBERTO GAROFOLI e GIULIA FERRARI, Manuale di Diritto Amministrativo, 8.ª
edição, Roma, Neldiritto Editore, 2015.
d) Alemanha:
– ADOLFO MERKL, Teoría General del Derecho Administrativo, Granada, 2004;
– EBERHARD SCHMIDT-ASSMANN, La Teoría General del Derecho Administrativo
como Sistema, Madrid, 2003;
– WOLFF, BACHOF e STOBER, Direito Administrativo, Lisboa, 2006.
e) Reino Unido:
– PAUL CRAIG, Administrative Law, 7.ª edição, Londres, Sweet and Maxwell, 2012;
– TIMOTTHY ENDICOTT, Administrative Law, 3.ª edição, Oxford, OUP, 2015;
– WADE e FORSYTH, Administrative Law, 11.ª edição, Oxford, OUP, 2014.
f) Estados Unidos:
– RICHARD J. PIERCE JR., SYDNEY A. SHAPIRO e PAUL R. FERKUIL, Administrative Law
and Process, 7.ª edição, Foundation Press, 2013;
– WILLIAM R. ANDERSEN, Mastering Administrative Law, Durham, North Carolina
Academic Press, 2010.
g) União Europeia:
– JURGEN SCHWARZE, Droit Administratif Européen, Bruxelas, Bruylant, 2009;
Notas
A maioria destas obras, bem como das constantes das listas de leituras aconselhadas
em cada capítulo, podem ser consultadas nas Bibliotecas da Faculdade de Direito da
Universidade Nova de Lisboa, da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, da
Universidade Católica Portuguesa, da Procuradoria-Geral da República ou do Tribunal
Constitucional.
As obras portuguesas encontram-se à venda em diversas livrarias de Lisboa,
designadamente na Livraria Petrony e na Livraria Almedina.
13
As obras estrangeiras podem ser encomendadas diretamente aos editores ou através
de livrarias por tuguesas ou, ainda, através de livrarias virtuais, como as que podem
encontrar-se em:
www.barnesandnoble.com e www.amazon.com.
Outros sites interessantes para pesquisa na área do direito administrativo são:
www.jurist.law.pitt.edu e www.affaires-publiques.com.
14
INTRODUÇÃO
15
CAPÍTULO I
A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA
Leituras aconselhadas:
AFONSO QUEIRÓ, Lições de Direito Administrativo, 2.ª edição, Coimbra, 1976, pp. 5 a
278; CARLA AMADO GOMES, Contributo para o Estudo das Operações Materiais da
Administração Pública e do seu Controlo Jurisdicional, Coimbra, 1999; DIOGO FREITAS
DO AMARAL, Curso de Direito Administrativo, Volume I, 4.ª edição, Coimbra, 2015, pp.
25 a 44 e 87 a 114, e Volume II, 3.ª edição, Coimbra, 2016, pp. 9 a 28 e 38 a 54; IDEM,
«Ordenamento do Território, Urbanismo e Ambiente: Objeto, Autonomia e Distinções»,
in Revista Jurídica do Urbanismo e do Ambiente, n.º 1, 1994, pp. 11 e segs.; IDEM,
«Apreciação da Dissertação de Doutoramento do Mestre Luís Cabral de Moncada – Lei
e Regulamento», in THEMIS. Revista da Faculdade de Direito da Universidade Nova de
Lisboa, Lisboa, 2001, pp. 225 a 233; FAUSTO DE QUADROS, A nova dimensão do direito
administrativo, Coimbra, 1999; GOMES CANOTILHO, «Relações jurídicas poligonais,
ponderação ecológica de bens e controlo judicial preventivo», in Revista Jurídica do
Urbanismo e do Ambiente, n.º 1, 1994, pp. 55 a 66; JOÃO CAUPERS, A Administração
Periférica do Estado. Estudo de Ciência da Administração, Lisboa, 1994, pp. 17 a 61 e
76 a 86; JORGE REIS NOVAIS, Separação e Poderes e Limites da Competência Legislativa
da Assembleia da República, Lisboa, 1997; JOSÉ MANUEL SÉRVULO CORREIA,
Legalidade e Autonomia Contratual nos Contra tos Administrativos, Coimbra, 1987,
pp. 179 a 197; IDEM, Prefácio a RICARDO LEITE PINTO, Intimação para um
comportamento, Lisboa, 1995, pp. XII a XV; IDEM, «Revisitando o Estado de
Necessidade, in Em Homenagem ao Professor Doutor Diogo Freitas do Amaral,
Coimbra, 2010, pp. 719 a 746; JOSÉ TAVARES, «Tribunal de Contas», in Dicionário
Jurídico da Administração Pública, Volume VII, pp. 452 a 487; IDEM, Linhas de
evolução do Tribunal de Contas nos últimos 25 anos, Lisboa, 1999; MARIA DA GLÓRIA F.
P. DIAS GARCIA, Direito Administrativo. Parte II – O Estado de Direito, a Administração
e a Realização do Direito Administrativo, Centro de Publicações da UCP (Lisboa),
1996/1997 (policopiado); MARCELO REBELO DE SOUSA, Lições de Direito
Administrativo, 2.ª edição, Lisboa, 1999, pp. 9 a 18, 55 a 71 e 81 a 89; MARCELO
REBELO DE SOUSA e ANDRÉ SALGADO DE MATOS, Direito Administrativo Geral.
Introdução e princípios fundamentais, Tomo I, 2.ª edição, Lisboa, 2006, pp. 36 a 129;
MARIA JOÃO ESTORNINHO, A fuga para o direito privado, Coimbra, 1996; MÁRIO AROSO
DE ALMEIDA, Teoria Geral do Direito Administrativo. O Novo Regime do Código do
Procedimento Administrativo, 2.ª edição, Coimbra, 2015; PAULO OTERO, Legalidade e
Administração Pública. O Sentido da Vinculação Administrativa à Jurisdicidade,
Coimbra, 2003; IDEM, Manual de Direito Administrativo, Volume I, Coimbra, 2016
(reimpressão), pp. 19 a 28 e 171 a 225; TIAGO DUARTE, A lei por detrás do Orçamento,
Coimbra, 2007, pp. 261 e segs.; VASCO PEREIRA DA SILVA, Em busca do acto
administrativo perdido, Coimbra, 1996, pp. 122 a 135, 149 a 186 e 301 a 442; VITALINO
CANAS, «Relação Jurídico-Pública», in Dicionário Jurídico da Administração Pública,
Volume VII, pp. 207-208 e 225.
1. Conceito de administração
17
Como escreveu AFONSO QUIERÓ, o termo administrar remonta as suas origens às
expressões latinas ad ministrare (servir) e ad manus trahere (manejar). Para aquele
professor de Coimbra, administrar seria agir ao serviço de determinados fins e com
vista a realizar certos resultados3.
Na mesma linha, um autor clássico da ciência da administração norte-americana,
LUTHER GULICK, escreveu que a administração tem a ver com fazer coisas, com a
prossecução de objetivos definidos4.
Parece, contudo, evidente que noções tão amplas carecem de um mínimo de
operatividade: nem toda a ação humana que vise prosseguir certos fins ou obter certos
resultados é administração. De resto, a maior parte das ações humanas visam atingir fins
ou obter resultados. E é difícil mesmo conceber uma ação humana que não tenha a ver
com fazer coisas.
Supomos que o conceito de administração somente pode ser apreendido no contexto
de um grupo humano: administrar é algo que passa por estruturar um grupo humano em
função dos fins que este se propõe atingir. Ora, um grupo humano estruturado em
função dos fins a atingir é uma organização. Administrar é uma atividade que se con
cretiza na combinação de meios humanos, materiais e financeiros, le vada a cabo no
seio de uma organização; administrar é uma ação humana que consiste exatamente em
prosseguir certos objetivos através do funcionamento da organização.
2.1. Se qualquer organização carece de administração, não se segue daí que todas as
administrações se rejam pelos mesmos princípios e regras, independentemente da
natureza das organizações administradas. Coloca-se essencialmente uma questão:
existirá uma diferença substancial entre a administração de organizações privadas,
designadamente as organizações privadas com fins lucrativos, e a administração de
organizações públicas?
2.2. A resposta negativa, dada pela corrente norte-americana dos generic theorists
(com HERBERT SIMON à cabeça), sustenta a inexistência de qualquer especificidade
relevante na atividade administrativa pública, que deverá subordinar-se aos mesmos
princípios que a administração privada, designadamente à busca da eficiência como
principal objetivo.
3
Cfr. Lições de Direito Administrativo, Coimbra, 1976, p. 6.
4
«Science, values and public administration», in Papers on the Science of Administration, Nova
Iorque, 1969 (reimpressão), p. 191.
18
delas. Daqui decorrem certos constrangimentos especiais que atingem as organizações
públicas, a que as organizações privadas escapam.
Em primeiro lugar, os objetivos que o poder político fixou para cada organização
pública não podem ser alterados ou inviabilizados por iniciativa desta.
Em segundo lugar, as organizações públicas enfrentam usualmente restrições
financeiras resultantes da falta ou insuficiência de autofinanciamento. Na verdade, uma
parte mais ou menos substancial dos seus recursos financeiros não é gerada pela
atividade das próprias organizações, resultando de dotações orçamentais.
Por último, a gestão dos recursos humanos da organização e a fixação dos preços dos
serviços prestados ou dos bens produzidos por esta encontram-se limitadas por vários
princípios específicos do direito administrativo e do direito financeiro, nomeadamente o
princípio da concorrência na admissão de pessoal – corolário do princípio da igualdade
– e o princípio da legalidade.
3.1. Existem tradicionalmente entre nós duas grandes formas de entender a expressão
administração pública: o sentido orgânico e o sentido material ou funcional.
Em sentido orgânico, a administração pública confunde-se com o conjunto das
organizações públicas, entre as quais a mais importante é o Estado; este, tomado em
sentido jurídico-administrativo, não se confunde com o Estado soberano, sendo apenas
uma – embora a principal – das organizações públicas.
Para além do Estado, integram a administração pública diversas outras organizações
públicas: territoriais (regiões autónomas e autarquias locais), associativas (associações
públicas) e institucionais (institutos públicos). Estas últimas compõem, juntamente com
os serviços do Estado propriamente dito, a administração estadual (direta e
instrumental), ao passo que as restantes constituem a administração autónoma.
Todas as organizações apontadas dispõem de personalidade jurídica coletiva pública.
Mas também fazem parte da administração pública organizações públicas que apenas
possuem personalidade jurídica coletiva de direito privado. Estão nestas condições as
empresas públicas sob forma societária, as instituições particulares de solidariedade
social, algumas associações de entes públicos, diversas entidades autorreguladoras e
muitas outras.
Esta nossa opinião é – temos perfeita consciência disso – muito controversa. A
tradição jurídico-administrativa portuguesa vai no sentido de apenas se considerarem
parte da administração pública em sentido orgânico pessoas coletivas públicas. Quanto
às outras, aquelas que, em número cada vez maior, vão prosseguindo importantes
interesses públicos mas que, não obstante, apenas dispõem de personalidade jurídica
19
privada, a tradição manda excluí-las da administração pública, remetendo-as para a
zona, mais ou menos misteriosa, do exercício privado de funções públicas5.
Entendemos, porém, que não é mais possível aprofundar habilidades e manipulações
conceptuais cada vez mais sofisticadas – nomeadamente a de sustentar um sentido
material ou funcional para a expressão «administração pública» mais amplo do que o
sentido orgânico, por forma a incluir nele atividades, claramente de natureza pública,
por se destinarem à satisfação de necessidades coletivas, mas excluídas deste último em
função da natureza jurídico-privada das pessoas coletivas que as prosseguem.
Consideramos que este nosso novo entendimento dispõe de apoios bastantes,
nomeadamente em alterações ocorridas no âmbito do controlo da administração pública
e das próprias garantias dos administrados:
a) A delimitação do âmbito de intervenção do Provedor de Justiça aos poderes
públicos – cfr. artigo 23.º, n.º 1, da CRP – e a noção que destes poderes se contém no
artigo 2.º, n.º 1, da Lei n.º 9/91, de 9 de Abril, modificada pela Lei n.º 17/2013, de 18 de
fevereiro;
b) A delimitação do âmbito subjetivo do controlo do Tribunal de Contas, feita pelos
n.ºs 1 e 2 do artigo 2.º da Lei n.º 98/97, de 26 de Agosto, na redação decorrente da
revisão operada pela Lei n.º 20/2015, de 9 de março;
c) A conceção de poderes públicos expressa no n.º 2 do Anexo 1 à Recomendação
R(84)15 do Conselho da Europa6;
d) A configuração legal da função acionista do Estado e dos municípios em termos
jusadministrativos (v. infra).
É habitual falar-se de uma administração central e de uma administração local: a
primeira caracteriza-se por operar em todo o território nacional – ou continental, tendo
em conta o especial estatuto das regiões autónomas; a segunda compõe-se de entidades
públicas territoriais (administração autárquica) e de serviços da administração estadual
(administração periférica do Estado), uns e outros operando apenas em porções
delimitadas do território nacional (circunscrições administrativas).
A administração do Estado é uma realidade relativamente recente, quando
comparada com as tradições da administração municipal: de facto, somente no século
XX o Estado passou a garantir, com regularidade, mais do que a satisfação das
necessidades de segurança, interna e externa, e de justiça. É o Estado pós-liberal que
alarga o âmbito da administração pública, invadindo praticamente todos os níveis e
todas as áreas da prática social.
5
A propósito da crescente dificuldade – senão mesmo impossibilidade – em fazer coincidir as noções
de Administração Pública, em sentido orgânico, e de administração pública, em sentido funcional, cfr. as
reflexões de MARIA JOÃO ESTORNINHO na sua dissertação A fuga para o direito privado, Coimbra,
1996, pp. 47 a 57.
6
Pode consultar-se no volume L’Administration et les personnes privés, publicado pelo Conselho da
Europa, em 1997, p. 420.
20
Na realidade, não é exatamente assim, por uma razão, ligada ao princípio da separação
de poderes.
Acontece que os órgãos de soberania (os órgãos mais importantes da pessoa coletiva
pública Estado) situados fora do âmbito da função administrativa – Presidente da
República, Assembleia da República, tribunais – desempenham, para além de tarefas
próprias dos poderes que integram, outras, que não se distinguem substancialmente da
atividade típica dos órgãos administrativos – outorga de contratos, atos de gestão de
pessoal, etc.; trata-se da atividade materialmente administrativa.
Não existe razão alguma para não incluir estes comportamentos na administração
pública em sentido material ou funcional; contudo, os seus autores não integram a
administração pública em sentido orgânico.
7
VASCO PEREIRA DA SILVA opta pelas expressões administração de infraestruturas ou administração
prospetiva nas páginas que dedica à análise desta evolução, in Em busca do acto administrativo perdido,
Coimbra, 1996, pp. 122 a 135. Preferimos a expressão administração conformadora que, de resto, o
Autor também utiliza (cfr. p. 133).
21
4.2. O conceito de administração pública em sentido material ou funcional mais não
é do que uma descrição, de tom jurídico, da atividade administrativa pública, não
correspondendo a uma verdadeira definição material da função administrativa. Na
realidade, esta é muito difícil de estabelecer, o que levou alguns autores a sustentarem a
impossibilidade de fazê-lo (FORSTHOFF); outros, a pretenderem fazê-lo por exclusão de
partes (CARRÉ DE MARLBERG, MEUCCI).
Estas dificuldades são compreensíveis, se se tiver em consideração que, na sua
origem, o poder administrativo teria carácter “residual”, isto é, era o que restava do
poder absoluto do soberano, depois de lhe terem sido retirados, em homenagem ao
princípio da separação de poderes, o poder legislativo e o poder judicial; daqui a sua
compreensível heterogeneidade, obstáculo a uma definição material (GARRIDO FALLA).
4.3. Uma noção “residual” da função administrativa era suficiente numa época em
que aquilo que o Estado fazia era relativamente pouco e muito diferente de qualquer
atividade desenvolvida pelos particulares – o Estado liberal, no essencial, como se disse,
policiava, julgava, sancionava, recrutava e cobrava impostos.
A partir do momento em que o Estado alargou enormemente o seu campo de
atividades, designadamente no domínio da administração prestadora – e, mais
recentemente, da administração conformadora –, muitas vezes concorrendo com os
particulares no exercício de atividades idênticas, esta noção revelou-se clara e
crescentemente insuficiente.
De todo o modo, pese embora a sua manifesta insuficiência, contentar-nos-emos em
considerar que a função administrativa é aquela que, no respeito pelo quadro legal e
sob a direção dos representantes da coletividade, desenvolve as atividades necessárias
à satisfação das necessidades coletivas.
4.4. Questão que se tem colocado no nosso País é a que respeita à eventual existência
de uma reserva de administração, ou seja, um conjunto de matérias que não poderiam
ser objeto de providências legislativas, designadamente da Assembleia da República.
Sem entrar na polémica ainda em aberto a este propósito – pois não é este o local
adequado para nela participar –, limitar-nos-emos a subscrever a posição de JORGE REIS
NOVAIS, que sustenta a existência de uma tal reserva, com base na ideia de que «a
sujeição periódica da sua actuação [do Governo] ao juízo e ao veredicto do sufrágio
popular exige, assim, a inviolabilidade de uma área irredutível de auto-responsabilidade
do Governo e da Administração8».
Em todo o caso, há que dizer que uma tal posição – sufragada por outros autores
como FREITAS DO AMARAL9, PAULO OTERO10 e TIAGO DUARTE11 – está ainda longe de ser
maioritária na doutrina.
8
Cfr. Separação de Poderes e Limites da Competência Legislativa da Assembleia da República,
Lisboa, 1997, p. 58. Interessa também analisar os Acórdãos do Tribunal Constitucional n.ºs 1/97 e 24/98,
publicados no Diário da República, I Série, de 5 de Março de 1997, e II Série, de 19 de Fevereiro de
1998, respetivamente.
9
Cfr. «Apreciação de Doutoramento do Mestre Luís Cabral de Moncada – Lei e Regulamento, 2004»,
in THEMIS. Revista da Faculdade de Direito da Universiade Nova de Lisboa, 2001, pp. 225 a 233.
10
Cfr. Legalidade e Administração Pública. O Sentido da Vinculação Administrativa à Jurisdicidade,
Coimbra, 2003, pp. 753-754; Manual de Direito Administrativo, Volume I, Coimbra, 2016 (reimpressão),
pp. 181 a 184.
11
Cfr. A lei por detrás do Orçamento, Coimbra, 2007, pp. 261 e segs.
22
5. Formas e instrumentos jurídicos da atividade administrativa pública
5.2. Mantemos o afastamento desta tradição, iniciado na anterior edição deste escrito,
dedicando um capítulo da PARTE II ao estudo, necessariamente sumário, da atividade
administrativa pública, encarada, não na perspetiva dos seus instrumentos jurídicos – o
que se fará depois –, nem na da sua natureza material – o que seria despropositado num
texto de carácter jurídico –, mas na perspetiva daquilo a que poderíamos chamar o
enquadramento jurídico-administrativo global. Analisaremos assim, numa ótica de
direito administrativo, duas formas de atividade administrativa pública particularmente
relevantes: a polícia administrativa – uma das mais antigas – e a regulação ou
regulação económica – uma das mais recentes (pelo menos na Europa).
6. Sistemas administrativos
12
A exceção mais significativa é, entre nós, constituída pela obra de CARLA AMADO GOMES,
Contributo para o Estudo das Operações Materiais da Administração Pública e do seu Controlo
Jurisdicional, Coimbra, 1999. Também PAULO OTERO, no seu recentíssimo Direito do Procedimento
Administrativo, Volume I, Coimbra, 2016, pp. 368 a 378, se ocupa das operações materiais da
administração.
13
Distinção que o atual ETAF, como o anterior, ignora, designadamente em matéria de
responsabilidade civil da Administração Pública, em que a distinção gera mais dificuldades [cfr. artigo
4.º, n.º 1, alínea g)]. O atual CPA deixou igualmente de utilizá-la (cfr. artigo 2.º).
14
Um pouco mais adiante falar-se-á da relação jurídico-administrativa.
23
6.3. O advento do Estado de direito, com a Revolução Francesa, modificou esta
situação: a administração pública passou a estar vinculada a normas obrigatórias,
subordinada ao direito. Isto foi uma consequência simultânea do princípio da separação
de poderes e da conceção da lei – geral, abstrata e de origem parlamentar – como
reflexo da vontade geral (cfr. o artigo 266.º da CRP).
Em resultado desta modificação, a atividade administrativa pública passou a revestir
carácter jurídico, estando submetida a controlo ju dicial, assumindo os particulares a
posição de cidadãos, titulares de direitos em face dela.
24
decidir sem prévia intervenção judicial, e mesmo as atuações sob a égide do direito
privado, em que está sujeita ao controlo dos tribunais comuns.
6.8. A este esbatimento das diferenças entre os dois sistemas liga-se o fenómeno da
europeização do direito administrativo. Na realidade, existe já um significativo
conjunto de regras jurídicas produzidas pela União Europeia, que delineiam os traços e
estabelecem os princípios de um direito administrativo europeu.
O núcleo duro deste direito é sobretudo constituído pelas normas de direito da União
Europeia relativas à contratação pública e pelas normas de proteção ambiental,
constantes de diversos instrumentos normativos, que têm influenciado decisivamente as
legislações nacionais dos diversos Estados-membros da União15.
Mais adiante, no âmbito do estudo das fontes do direito administrativo, voltar-se-á a
este ponto.
15
Sobre esta problemática, cfr. FAUSTO DE QUADROS, A nova dimensão do direito administrativo,
Coimbra, 1999.
25
7.3. A submissão da administração pública ao direito consubstancia-se na ideia de
legalidade: quer isto dizer que a atividade administrativa pública apenas pode
desenvolver-se precedendo habilitação legal – também pode designar-se esta ideia por
princípio da competência.
Os cidadãos também estão submetidos à lei – mas não necessitam de qualquer
habilitação legal para agir, apenas estando impedidos de fazer aquilo que a lei interdita,
movem-se no domínio da licitude.
8.2. São duas as principais funções hoje desempenhadas pelo princípio da legalidade:
por um lado, ele procura assegurar o primado do poder legislativo sobre o poder
administrativo; por outro, visa garantir os direitos e interesses dos particulares.
O primado do poder legislativo reveste duas facetas: uma primeira, negativa, traduz-
se na circunstância de os órgãos e agentes da Administração Pública não poderem
praticar atos contrários à lei; outra, positiva – também designada por precedência da lei
–, consubstancia-se na mencionada necessidade de habilitação legal para os atos da
Administração Pública.
O princípio da legalidade recobre toda e qualquer manifestação da administração
pública: ao contrário do que pode parecer, este princípio tanto abrange a administração
ablativa como a administração prestadora.
16
Cfr. JOÃO CAUPERS, A Administração Periférica do Estado – Estudo de Ciência da Administração,
Lisboa, 1994, p. 151.
17
Cfr. PAULO OTERO, Legalidade e Administração Pública..., cit., pp. 733 a 749.
26
Esta também pode violar a lei – designadamente a legalidade financeira –, ofender o
princípio da igualdade e distorcer os mecanismos de redistribuição.
8.4. Das diversas exceções que costumam ser apontadas ao princípio da legalidade
somente uma pode, verdadeiramente, sê-lo. Trata-se do estado de necessidade,
geralmente entendido como uma circunstância excecional que torna lícito um
comportamento que, por lesar um interesse de outrem protegido pelo direito, seria, em
princípio, ilícito.
Existem duas maneiras diversas de encarar o estado de necessidade:
a) Alguns veem nele uma circunstância que verdadeiramente legitima atuações
ilegais da Administração Pública (DIOGO FREITAS DO AMARAL);
b) Outros consideram estar-se perante uma espécie de legalidade excecional,
suscetível de cobrir certas atuações administrativas (SÉRVULO CORREIA e MARCELLO
REBELO DE SOUSA).
Em nosso entender, o estado de necessidade é uma verdadeira exceção ao princípio
da legalidade, no sentido de que a sua invocação não exclui a ilegalidade do
comportamento, antes justificando este, apesar de ilegal. Não se nos afigura o mais
adequado ao Estado de direito o entendimento do estado de necessidade como uma
espécie de legalidade eventual, à medida dos acidentes da vida em sociedade e das
conveniências da administração pública.
O reconhecimento do estado de necessidade pelo legislador (cfr. artigo 3.º, n.º 2, do
CPA) resulta simplesmente da admissão por este de que o revestimento jurídico da
atividade administrativa pública apresenta fissuras que repelem o direito, tornando
inevitável, para evitar males maiores, a ocorrência de comportamentos administrativos
ilegais.
18
Ocorrendo, porém, tal suspensão quando em causa esteja o pagamento de uma determinada quantia,
sem natureza sancionatória, e seja prestada garantia (artigo 50.º, n.º 2, do CPTA).
27
b) No segundo caso, teremos o heterocontrolo, que “olha” para a Administração
Pública do lado de fora desta; aparecem então o controlo parlamentar e o controlo
jurisdicional (v. infra).
9.2. Forma peculiar de heterocontrolo – que não será objeto de tratamento neste
escrito – é o controlo da legalidade financeira assegurado pelo Tribunal de Contas.
O Tribunal de Contas é, nos termos do artigo 216.º da CRP, «o órgão supremo de
fiscalização da legalidade das despesas públicas e de julgamento das contas que a lei
manda submeter-lhe». É um órgão do Estado que exerce simultaneamente competências
que se inscrevem no exercício da função jurisdicional e competências consultivas e de
controlo, relativas ao exercício da função administrativa.
No âmbito das primeiras, o Tribunal profere verdadeiras sentenças, as quais podem
consistir, nomeadamente, na condenação de quem seja responsável pela utilização
indevida de dinheiros públicos.
No âmbito das segundas, dá parecer sobre a Conta Geral do Estado e as contas das
regiões autónomas.
No âmbito das funções de controlo, intervém, ou pode intervir, em três momentos:
a) Antes da produção dos efeitos de um ato gerador de despesa pública – fiscalização
preventiva (o famoso visto);
b) Durante a execução de contratos acessórios ou complementares de outros
contratos públicos – fiscalização concomitante;
c) Após a consumação de um ato gerador de despesa pública – fiscalização
sucessiva.
28
CAPÍTULO II
O DIREITO ADMINISTRATIVO
Leituras aconselhadas:
29
10. O direito administrativo: características e tipos de normas
19
Cfr. GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7.ª edição (reimpressão),
Coimbra, 2015, pp. 1160 a 1162; e «Método de interpretação de normas constitucionais. Peregrinação
constitucionalista em torno de um prefácio de Manuel de Andrade à obra Interpretação e Aplicação das
Leis de Francesco Ferrara», in Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Volume
LXXVII, Coimbra, 2001, p. 897.
30
jurisdicidade constitucional os mais diversos setores da prática social. Nela encontram-
se normas que se repartem pelos variados ramos do direito, público e privado: de direito
financeiro, de direito fiscal, de direito económico, de direito penal, de direito de família,
de direito do trabalho, etc.
Naturalmente que as normas de direito administrativo – e também as normas que
exercem uma influência determinante sobre este – ocupam lugar destacado no texto
constitucional. A reconhecida proximidade entre o direito constitucional e o direito
administrativo justifica tal destaque.
Na verdade, o direito administrativo só existe tal como o conhecemos porque o artigo
2.º da lei fundamental reconhece expressamente o princípio da separação de poderes –
que, numa visão moderna, designa por separação e interdependência de poderes. Sem a
consagração do princípio da separação de poderes teria sido impossível consolidar um
vasto conjunto de normas jurídicas que, para fazerem sentido, impõem ao poder
administrativo um estatuto de diferenciação – e, como se viu noutro ponto, de
inferioridade – relativamente ao poder legislativo e ao poder judicial.
Também a afirmação de Portugal como um Estado unitário, feita no artigo 6.º da
Constituição, apresenta interesse para o direito administrativo: se Portugal fosse um
Estado federal, bem poderia ter mais do que um direito administrativo, isto é, poderia
verificar-se a aplicação de diferentes modelos administrativos em distintas partes do
País, como já sucedeu na Alemanha. Sendo um Estado unitário, somente existe um
direito administrativo e o sistema administrativo, não obstante o estatuto constitucional
das regiões autónomas é, e tem de ser, o mesmo20.
20
Cfr. PAULO OTERO, Manual de Direito Administrativo, cit., pp. 331 a 342.
31
O imperativo constitucional atingiu a sua máxima intensidade no que respeita à
proteção judicial dos particulares contra os atos e as omissões da Administração
Pública. O artigo 268.º foi alterado por quatro vezes, sempre no sentido do
aprofundamento e do aumento da eficácia do sistema de garantias. Se a lei ordinária – o
Código de Processo nos Tribunais Administrativos – pôde ir até onde foi, tal deve-se,
todos o sabem, à Constituição. Sem o impulso persistente desta é muito duvidoso que
tivéssemos aqui chegado.
12.1. A ordem jurídica da União Europeia (UE) compreende dois níveis essenciais de
produção normativa: o direito primário ou originário e o direito derivado. O primeiro é
integrado pelos tratados constitutivos daquilo que é hoje a UE21; do segundo fazem
parte os atos jurídicos praticados quotidianamente pelos órgãos da União: os
regulamentos, as diretivas, as decisões, as recomendações e os pareceres – só para
referir os atos ditos típicos.
Numa ordem jurídica com a natureza peculiar do direito da UE e com as especiais
relações que mantém com os direitos de cada um dos vinte e oito Estados europeus que
a integram22 – a que já chamaram modelo de articulação intersistémica23 –, não é de
estranhar a importância que a revelação e formulação de princípios adquiriu e mantém.
O principal agente deste complexo processo tem sido o Tribunal de Justiça, através
das suas decisões. Sem com isso menosprezar o processo de harmonização das
legislações, pode dizer-se que a integração europeia, mais do que obra de políticos e
legisladores, tem sido trabalho, inteligente, sério, persistente e criativo, de juízes.
O labor do Tribunal permitiu consolidar diversos princípios próprios do direito da
União, de entre os quais salientamos aqueles dois que mais relevância podem ter na
atividade administrativa pública: o princípio da igualdade, hoje assente, nomeadamente
nos artigos 4.º, n.º 2, 9.º e 21.º, n.º 1, do Tratado da União Europeia, e o princípio da
proporcionalidade, fundado, designadamente, nos artigos 5.º, n.º 4, 69.º e 296.º do
mesmo tratado24.
A estes princípios acresce um outro grupo, constituído pelos princípios jurídicos
comuns aos ordenamentos dos Estados-membros. De entre estes destacamos,
igualmente pela relevância possível na atividade administrativa pública, o princípio da
legalidade, o princípio da proteção da confiança e o princípio da participação dos
interessados.
É absolutamente indispensável referir um outro ponto. Trata-se, não obstante ser
mais frequentemente configurado como um dever do que como um princípio, do
princípio da interpretação das normas dos diferentes ordenamentos jurídicos nacionais
conforme ao direito da União.
21
O Tratado de Paris (CECA, 1951), os Tratados de Roma (CEE e Eurátomo, 1957), o Tratado de
Fusão (1965), o Acto Único Europeu (1987), o Tratado da União Europeia (Maastricht, 1992), o Tratado
de Amesterdão (1997), o Tratado de Nice (2001) e o Tratado de Lisboa (2007), para além dos tratados
relativos aos sucessivos alargamentos.
22
Que serão apenas vinte e sete, se se confirmar que o Reino Unido irá acionar o mecanismo
consagrado no artigo 50.º do TUE.
23
Cfr. LUÍSA DUARTE, Direito Administrativo da União Europeia, Coimbra, 2008, p. 28; cfr. também
p. 23.
24
Cfr. FAUSTO DE QUADROS, Direito da União Europeia, 3.ª edição, Lisboa, 2013, p. 352.
32
Este, que é um corolário do primado do direito comunitário sobre os direitos
nacionais, manifesta-se quando se procura determinar o sentido e alcance de uma norma
nacional que, pela sua imprecisão ou ambiguidade, é suscetível de várias interpretações,
uma das quais contrária a uma regra de direito da União; numa tal circunstância, o
princípio impõe a obrigação de escolher a interpretação que assegura a aplicação deste
direito.
12.2. A produção normativa da União, através dos seus instrumentos próprios, tem-se
estendido a diversos campos e problemáticas tradicionalmente cobertos pelo direito
administrativo.
Não referiremos aqui os múltiplos aspetos da atividade económica que sofrem o
impacto de miríades de regulamentações do direito da União: não é este o lugar para nos
ocuparmos das incontáveis normas deste direito, que se ocupam de temas tão relevantes
como o processo de fabrico dos queijos tradicionais ou a rotulagem de cosméticos,
impondo às autoridades nacionais obrigações de licenciamento, certificação,
fiscalização e sanção.
Também não é este escrito introdutório de direito administrativo geral o local
adequado para tratar de questões de direito do ambiente, no âmbito do qual a produção
normativa da União Europeia tem sido particularmente importante25.
Naturalmente imposta pelas preocupações com a concorrência e com a consolidação
do mercado único, a área da contratação pública é das que mais têm ocupado os
legisladores da União. O centro das preocupações têm sido os procedimentos pré-
contratuais e o contencioso dos contratos26.
Autores há que consideram esta produção normativa como um verdadeiro Direito
Europeu da Contratação Pública27.
Uma questão muito relevante que tem colocado em crise a relação entre a ordem
jurídica da União e a ordem jurídica nacional é a da revogação dos atos administrativos
ilegais que atribuam auxílios de Estado. Mais adiante, no quadro do tratamento do
regime legal da anulação administrativa e da revogação, abordar-se-á esta questão.
25
Cfr. VASCO PEREIRA DA SILVA, Verde Cor de Direito. Lições de Direito do Ambiente, Coimbra,
2002, pp. 37-38; e CARLA AMADO GOMES, Introdução ao Direito do Ambiente, Lisboa, 2012, pp. 57 a 64.
26
É esta a principal razão de ser do Código dos Contratos Públicos, essencial, mas não
exclusivamente, concebido para operar a transposição das Diretivas n.ºs 2004/17/CE e 2004/18/CE.
27
Cfr. VASCO PEREIRA DA SILVA, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise..., cit., p. 485.
33
contra os atos e as omissões da Administração Pública para confirmar o que
escrevemos.
De diversas leis da Assembleia da República consta o quadro jurídico das autarquias
locais, que beneficia de uma garantia constitucional particularmente intensa, em todos
os aspetos mais relevantes, como o regime jurídico das autarquias locais, a criação de
polícias municipais, a atividade empresarial local e as participações locais e a tutela
administrativa sobre as autarquias locais28.
De leis da Assembleia da República constam igualmente os principais normativos
relativos à defesa dos particulares contra a administração pública – responsabilidade
civil da Administração Pública29, Estatuto do Provedor de Justiça30, Estatuto dos
Tribunais Administrativos e Fiscais31, Código de Processo nos Tribunais
Administrativos32.
Integram ainda leis da Assembleia da República os quadros legais da administração
direta do Estado e dos institutos públicos33.
O Código do Procedimento Administrativo consta de um decreto-lei autorizado34.
De decretos-leis aprovados no âmbito da competência concorrente do Governo com a
Assembleia da República constam o regime do setor público empresarial35 e o Código
dos Contratos Públicos36.
De decretos-leis autorizados consta ainda a maioria dos regimes jurídicos relativos à
administração direta do Estado – comissões de coordenação e desenvolvimento
regional37, nomeadamente.
Por último, a lei orgânica do Governo é o único diploma legal da competência
exclusiva do Governo, conforme dispõe o artigo 198.º, n.º 2, da Constituição,
constando, por essa razão, sempre, de decreto-lei.
28
Lei n.º 75/2013, de 12 de setembro; Lei n.º 19/2004, de 20 de Maio; Lei n.º 50/2012, de 31 de
agosto; Lei n.º 27/96, de 1 de Agosto, na versão constante do Decreto-Lei n.º 214-G/2015, de 2 de
outubro.
29
Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro, alterada pela Lei n.º 31/2008, de 17 de Julho.
30
Lei n.º 9/91, de 9 de Abril, alterada pela Lei n.º 17/2013, de 18 de fevereiro.
31
Lei n.º 4/2004, de 15 de Janeiro, na redação revista pelo Decreto-Lei n.º 164/2011, de 22 de
Dezembro; Lei n.º 3/2004, de 15 de Janeiro, na redação revista pelo Decreto-Lei n.º 96/2015, de 29 de
maio.
32
Lei n.º 15/2002, de 22 de Fevereiro, na redação revista pelo Decreto-Lei n.º 214-G/2015, de 2 de
outubro.
33
Lei n.º 4/2004, de 15 de Janeiro, na redação revista pelo Decreto-Lei n.º 164/2011, de 22 de
Dezembro; Lei n.º 3/2004, de 15 de Janeiro, na redação revista pelo Decreto-Lei n.º 96/2015, de 29 de
maio.
34
Decreto-Lei n.º 4/2015, de 7 de janeiro.
35
Decreto-Lei n.º 133/2013, de 3 de setembro.
36
Decreto-Lei n.º 18/2008, de 19 de Janeiro, na redação revista pelo Decreto-Lei n.º 214-G/2015, de 2
de outubro.
37
Decreto-Lei n.º 228/2012, de 25 de outubro, na redação revista pelo Decreto-Lei n.º 24/2015, de 6
de fevereiro.
34
14.1. A separação de poderes impôs o exclusivo parlamentar da titularidade e do
exercício da função legislativa. Legislação e normação eram sinónimos, consistindo na
edição de normas gerais e abstratas.
A diversificação e o alargamento da intervenção do Estado na vida coletiva,
ultrapassados os pressupostos liberais, conduziu à dissociação entre os conceitos formal
e material de lei. Por força das crescentes complexidade e tecnicidade das leis, os
governos foram-se assenhorando da função normativa, através de duas técnicas,
alternativas ou cumulativas:
a) A extensão da titularidade – ou somente do exercício – da função legislativa
propriamente dita (os decretos-leis), mantendo-se embora reservada aos parlamentos a
aprovação de leis sobre as matérias de maior relevância;
b) A inclusão na função administrativa de um poder normativo de segundo grau,
submetido ao poder legislativo – o poder normativo de primeiro grau.
O fundamento jurídico do poder regulamentar no Estado social de direito encontra-se
agora nas normas constitucionais e legais atributivas de competência regulamentar e já
não numa autorização dada pelo parlamento ao governo – muito embora esta conceção,
por via do conceito de delegated legislation, ainda subsista no Reino Unido.
Alguns regulamentos apresentam, porém, fundamentos jurídicos específicos:
• os regulamentos internos fundam-se no poder de direção do superior hierárquico;
• os regulamentos de funcionamento dos órgãos colegiais (regimentos) fundam-se no
poder de auto-organização, próprio destes órgãos.
14.2. O CPA, no seu artigo 135.º, define o regulamento administrativo como «as
normas jurídicas gerais e abstratas que, no exercício de poderes jurídico-
administrativos, visem produzir efeitos jurídicos externos».
É uma definição que comporta três elementos:
a) A natureza normativa, por contraposição à natureza individual e concreta do ato
administrativo;
b) O carácter juspúblico, naturalmente ligado aos interesses coletivos que o
regulamento visa prosseguir;
c) A produção de efeitos externos, que exclui do conceito os regulamentos com
eficácia meramente interna no âmbito da entidade que os produz.
A regra fundamental relativa aos regulamentos, de alguma forma corolário da
separação de poderes, é a de que a emissão de regulamentos carece sempre de lei
habilitante. Essa exigência está hoje expressa no n.º 1 do artigo 136.º do CPA. O
regulamento existe porque a Constituição, primeiro, e a lei, depois, concedem à
Administração Pública espaço normativo.
A preocupação do legislador com esta regra é tal que ele estendeu a exigência de lei
habilitante a atuações administrativas que, não constituindo regulamentos em sentido
próprio, pudessem representar para os respetivos destinatários a imposição de um
padrão de conduta (artigo 136.º, n.º 4, do CPA).
14.3. Têm sido propostos diversos critérios para distinguir o regulamento da lei,
destacando-se, pela sua importância, dois:
• a contraposição entre princípios gerais e desenvolvimentos – à lei caberia a fixação
dos princípios de um certo regime jurídico, ao passo que ao regulamento pertenceria o
desenho dos detalhes de tal regime;
• a ideia de novidade – enquanto a lei conteria previsões normativas novas, no
sentido de diferentes das até aí existentes no ordenamento jurídico, o regulamento
35
encarregar-se-ia de aspetos que, tornando mais fácil a aplicação da lei, não eram
inovadores relativamente a esta.
Certo é que, não obstante os esforços feitos, não se encontrou ainda um critério que
possibilitasse uma distinção material rigorosa entre o regulamento, designadamente o
regulamento independente, e a lei.
O mais que poderá fazer-se é assentar a distinção nos planos orgânico e formal:
a) Somente a Assembleia da República, o Governo e as assembleias legislativas
regionais dispõem de poder legislativo;
b) Destes, se excetuarmos a competência da Assembleia da República para aprovar o
seu regimento, apenas as assembleias legislativas das regiões autónomas e o Governo
possuem competência regulamentar;
c) Ou seja, a dificuldade de distinção entre as leis e os regulamentos independentes
limita-se, na prática, à normação do Governo e das assembleias legislativas das regiões
autónomas;
d) As leis aprovadas pelo Governo revestem a forma de decretos-leis e são editadas
ao abrigo do artigo 198.º da CRP; os regulamentos independentes do Governo revestem
a forma de decretos regulamentares (cfr. artigo 112.º, n.º 6, da Constituição) e são
editados ao abrigo do artigo 199.º.
De notar que a distinção entre a lei e o regulamento tem interesse prático, na medida
em que, enquanto a lei apenas pode ver a sua validade aferida pela CRP, já o
regulamento tem também de respeitar a lei, podendo ser impugnado nos tribunais
administrativos com fundamento em ilegalidade.
36
A competência do Governo inscrita na alínea c) do artigo 199.º da CRP – «fazer os
regulamentos necessários à boa execução das leis» – tem precisamente esta justificação:
há regulamentos cuja falta obsta à plena aplicação de normas legais que carecem de
detalhe e concretização para produzirem os seus efeitos.
Quando uma lei necessita de regulamentação, produzir esta não é uma faculdade,
mas um verdadeiro dever jurídico, recaindo sobre o órgão com competência
regulamentar. É isto que explica a disposição do artigo 137.º do CPA.
Quando a lei deve ser regulamentada, existe, na falta de outro, um prazo geral, de
carácter supletivo, para essa regulamentação ser aprovada: noventa dias. O eventual
incumprimento deste prazo por parte do órgão competente, consubstanciando uma
omissão, legitima não só a iniciativa dos interessados que sejam lesados pela falta,
requerendo a emissão do regulamento a este órgão, mas também o recurso destes aos
tribunais administrativos, nos termos do artigo 77.º do CPTA.
38
Não vemos qualquer vantagem em confundir esta denominação, tradicional e inequívoca, chamando
regulamentos autónomos aos regulamentos elaborados por entidades integrantes da administração
autónoma, como faz MÁRIO JORGE LEMOS PINTO – cfr. Impugnação de Normas e Ilegalidade por Omissão
(no contencioso administrativo português), Coimbra, 2008, pp. 111-112.
39
Cfr. DIOGO FREITAS DO AMARAL, Curso…, cit., Volume II, pp. 170-171.
37
16. Competência regulamentar e formas jurídicas dos regulamentos
16.5. Os órgãos dirigentes das entidades reguladoras, dos institutos públicos, das
entidades públicas empresariais e das associações públicas podem dispor – e
38
dispõem, sobretudo os das primeiras – de relevante competência regulamentar, nos
termos das respetivas leis orgânicas ou dos estatutos.
40
Cfr. artigo 3
.º da citada Lei n.º 74/98, de 11 de Novembro, na redação constante da Lei n.º 43/2014, de 11 de
julho.
39
Os restantes regulamentos são publicados nos sítios da internet dos seus autores.
19.2. Os regulamentos entram em vigor em termos similares aos das leis: no dia
neles estabelecido ou, se o não determinarem, ao quinto dia após a publicação (artigo
140.º do CPA).
Em princípio, o regulamento apenas projeta a sua eficácia para o futuro. Todavia, é
admissível a atribuição de eficácia retroativa, desde que não se trate de normas que
imponham ou agravem deveres, encargos, ónus ou sanções ou afetem negativamente
direitos e interesses legalmente protegidos dos destinatários (artigo 141.º, n.º 1). Em
qualquer caso, a produção de efeitos do regulamento nunca pode retroagir a data
anterior à da lei de habilitação que autorizou a sua emissão (artigo 141.º, n.º 2).
20.1. O artigo 143.º, n.º 1, do CPA, como corolário da superioridade da lei sobre o
regulamento, comina com a invalidade os regulamentos administrativos contrários à lei,
em sentido amplo: a Constituição, as leis, os princípios gerais de direito administrativo,
as normas de direito internacional e as normas de direito da União Europeia.
A forma (ou formas) que assume a invalidade dos regulamentos não consta da lei,
que preferiu não tomar posição sobre o problema41.
Por razões distintas, que se prendem com a coerência da organização administrativa
pública, a invalidade atinge também os regulamentos que desrespeitem outros
regulamentos de fonte hierarquicamente superior, ou provenientes de órgão que exerça
poderes de superintendência, ou do delegante. Neste último caso, apenas se não tiver
sido delegada competência regulamentar [artigo 143.º, n.º 2, alíneas a) e b)].
41
Cfr. MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, Teoria Geral do Direito Administrativo..., cit., p. 169.
40
A alínea c) do n.º 2 deste artigo acrescenta às causas de invalidade o desrespeito pelo
regulamento dos «estatutos emanados ao abrigo de autonomia normativa nas quais se
funde a competência para a respetiva emissão». Seria o caso de um regulamento do
Governo que atingisse a autonomia universitária, contrariando os estatutos de uma
instituição de ensino superior (cfr. artigo 76.º, n.º 2, da CRP).
41
Nesta mesma época consolidou-se o movimento no sentido da codificação do direito
adjetivo comum da administração pública – com inúmeros exemplos no direito
comparado –, que esteve na origem do primeiro Código do Procedimento
Administrativo, de 1992, revisto em 1996. Em 2015, através do Decreto-Lei n.º 4/2015,
de 7 de janeiro, foi aprovado um novo Código do Procedimento Administrativo, que
substituiu o anterior.
Também a regulamentação legal do contencioso administrativo, antes dispersa e
incoerente, foi reformada e ressistematizada em dois diplomas – o Estatuto dos
Tribunais Administrativos e Fiscais e o Código de Processo nos Tribunais
Administrativos (Reforma de 2002), ambos revistos em 2015.
Em 2008, foi aprovado e entrou em vigor o Código dos Contratos Públicos, diploma
que não só substituiu e desenvolveu o quadro legal constante, para os chamados
contratos administrativos, do Capítulo III da Parte IV do Código do Procedimento
Administrativo, como, sobretudo, procedeu à transposição das Diretivas n.ºs
2004/17/CE e 2004/18/CE, regulando ampla e detalhadamente a contratação pública em
geral. Está hoje pendente a revisão do código, destinada principalmente a operar a
transposição das Diretivas 2014/23/UE, 2014/24/UE e 2014/25/UE.
Em vez do velho Código Administrativo, o direito administrativo geral português
dispõe agora de três códigos.
22.1. A ciência do direito administrativo é o capítulo da ciência jurídica que tem por
objeto o estudo do ordenamento jurídico-administrativo. O seu método é, obviamente, o
método jurídico.
Não é este o local adequado para revisitar a história da ciência do direito
administrativo português43.
Referiremos apenas que ela nasce sob marcada influência francesa e que o seu
primeiro nome significativo é BASÍLIO DE SOUSA PINTO, autor das primeiras lições de
direito administrativo, publicadas em 1849.
Vieram depois JUSTINO DE FREITAS – Instituições de Direito Administrativo
Portuguez, 1857; FREDERICO LARANJO – Princípios e Instituições de Direito
Administrativo, 1888; e GUIMARÃES PEDROSA – Curso de Sciencia da Administração e
Direito Administrativo, 1904.
O primeiro nome relevante na ciência do direito administrativo do século XX é JOÃO
TELLO DE MAGALHÃES COLLAÇO, cujas lições mais recentes foram publicadas em 1924,
sob a singela epígrafe de Direito Administrativo. Seguiu-se-lhe DOMINGOS FEZAS VITAL
– Direito Administrativo Português, 1930.
43
Que poderá ser lida na obra de PAULO OTERO, Direito Administrativo. Relatório de uma disciplina
apresentado no concurso para professor associado na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa,
Lisboa, 1998, pp. 35 a 230.
42
Administrativo, de 1943, e as dez edições, com numerosas reimpressões, dos dois tomos
do Manual de Direito Administrativo, publicadas entre 1937 e 1991.
Os primeiros discípulos de MARCELLO CAETANO foram ARMANDO MARQUES GUEDES
e ANDRÉ GONÇALVES PEREIRA. Limitando as referências às obras de ciência do direito
administrativo – ambos são também distintos jusinternacionalistas – , merecem especial
referência A Concessão (Estudo de direito, ciência e política administrativa), de 1954,
da autoria do primeiro, e Erro e ilegalidade do acto administrativo, de 1962, do
segundo.
Enquanto MARCELLO CAETANO dominava a doutrina jusadministrativa em Lisboa, em
Coimbra fazia-se ouvir a voz de AFONSO QUEIRÓ, fundador da “Escola de Direito
Público de Coimbra”. É justamente apreciado O poder discricionário da administração,
de 1944. As suas Lições de Direito Administrativo conheceram a derradeira publicação
em 1976.
A AFONSO QUEIRÓ sucedeu ROGÉRIO EHRHARDT SOARES. Entre os seus escritos mais
notáveis contam-se Direito público e sociedade técnica, de 1969, Interesse Público.
Legalidade e Mérito, de 1955, e a obra de apoio ao ensino, Direito Administrativo, de
1978.
Não obstante ter sido o terceiro discípulo de MARCELLO CAETANO, é DIOGO FREITAS
DO AMARAL quem lhe sucede como nome mais conhecido na Escola de Lisboa, até por
ter dele herdado a cátedra de Direito Administrativo na Faculdade de Direito da
Universidade de Lisboa.
DIOGO FREITAS DO AMARAL tem uma extensa e variada obra, que integra dezenas de
títulos, que abrangem não só o direito administrativo, a ciência política e o direito do
urbanismo, mas também outros escritos de índole não jurídica. Para além do Curso de
Direito Administrativo (dois volumes, o primeiro já em 4.ª edição, de 2015, e o segundo
em 3.ª edição, de 2016), que tem servido de suporte básico do seu ensino, salientam-se
Execução das sentenças dos tribunais administrativos (a 2.ª edição data de 1977),
Conceito e natureza do recurso hierárquico (1981) e A utilização do domínio público
pelos particulares (1965).
43
entre o processo administrativo gracioso e o contencioso e Caso Julgado (nos recursos
directos de anulação), ambos de 1969, e Contencioso administrativo, de 1972.
Contemporâneos desta geração de Lisboa são, em Coimbra:
– JOAQUIM GOMES CANOTILHO, que sendo, acima de tudo, um ilustríssimo
constitucionalista e jusambientalista, foi autor, no início da sua carreira, de uma obra
sobre a responsabilidade civil do Estado por atos lícitos, publicada em 1974, ainda hoje
de leitura imprescindível;
– JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, também conhecido pela sua obra em matéria de
direitos fundamentais, tem cultivado principalmente o direito processual administrativo,
destacando-se a sua obra, já em 14.ª edição, A Justiça Administrativa (Lições), não
podendo esquecer-se também o seu escrito de 1991 sobre o dever de fundamentação dos
atos administrativos;
– VITAL MOREIRA, também constitucionalista, que se tem ocupado prioritariamente
dos problemas de organização administrativa pública e da regulação económica,
destacando-se os três escritos, que compõem a sua dissertação de doutoramento, sobre a
temática da administração autónoma, associações públicas e autorregulação
profissional, publicados em 1997.
22.4. Nos últimos anos, esbatidas as querelas de mestres, já não fará muito sentido
falar em escolas. Entre os muitos nomes que têm dado um contributo relevante para a
moderna ciência do direito administrativo português, destacaríamos – continuando a
limitarmo-nos ao direito administrativo geral e esperando que nos relevem algum
involuntário esquecimento:
– MARIA DA GLÓRIA F. P. DIAS GARCIA, também jusambientalista, pioneira no estudo
da história da justiça administrativa, com o seu escrito Da justiça administrativa em
Portugal. Sua origem e evolução, de 1994; merece ainda referência o seu escrito sobre a
história do Supremo Tribunal Administrativo, publicado quatro anos depois;
– PAULO OTERO, muito interessado por questões organizativas, começou por escrever
sobre a competência delegada, passou ao estudo da hierarquia administrativa, continuou
com o poder de substituição; viria depois a deixar as questões organizativas para se
ocupar aprofundadamente do princípio da legalidade (2003), tendo hoje dois manuais
gerais – o Direito do Procedimento Administrativo I (2016) e o Manual de Direito
Administrativo I (2016);
– VASCO PEREIRA DA SILVA, também cultor da ciência política e do direito do
ambiente, tem-se ocupado, entre outros assuntos, da atividade unilateral da
administração e da proteção judicial contra os abusos desta; os seus escritos iniciais
sobre o antigo recurso contencioso de anulação culminaram com O Contencioso
Administrativo no Divã da Psicanálise, já em segunda edição;
– MARIA JOÃO ESTORNINHO, persistentemente interessada na contratação pública
desde o seu Requiem pelo contrato administrativo, de 1990, passando por A fuga para o
direito privado e pelo seu “olhar português” sobre o direito europeu dos contratos
públicos, no seu Curso de Direito dos Contratos Públicos – Por Uma Contratação
Pública Sustentável (2013);
– MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, preocupado com a justiça administrativa e protagonista
da sua reforma – tanto em 2002 como em 2015 –, autor, para além das obras sobre a
autoridade do caso julgado nas sentenças de anulação de atos administrativos e sobre as
consequências da anulação judicial destes atos, de diversos escritos indispensáveis para
a compreensão do processo administrativo atual, de que destacaríamos Grandes Linhas
da Reforma do Contencioso Administrativo (com DIOGO FREITAS DO AMARAL), Manual
de Processo Administrativo, já em 3.ª edição, Comentário ao Código de Processo nos
44
Tribunais Administrativos (com CARLOS CADILHA), e de uma obra de direito
administrativo geral, em 2.ª edição, Teoria Geral do Direito Administrativo...
– RUI MEDEIROS, principalmente constitucionalista, é autor de uma relevante obra em
matéria de responsabilidade da Administração Pública por atos legislativos, publicada
em 1992;
– LUÍS SOUSA DA FÁBRICA, outro cultor empenhado do direito processual
administrativo, que se tem ocupado do reconhecimento de direitos ou interesses
legalmente protegidos;
– PEDRO GONÇALVES, que também se tem dedicado à contratação pública, de que tem
uma conceção distinta da de MARIA JOÃO ESTORNINHO, expressa essencialmente nas
suas obras sobre a concessão de serviços públicos, de 1999, sobre o conceito de contrato
administrativo, de 2002, e sobre a temática geral dos contratos públicos no seu manual
Direito dos Contratos Públicos (2015); em 2005, escreveu sobre outra temática, a das
entidades privadas dotadas de poderes públicos; posteriormente, tem-se ocupado
sobretudo da regulação económica;
– de DAVID DUARTE destacam-se duas obras, a primeira, de 1996, tendo por objeto o
princípio da imparcialidade da Administração, e a segunda, de 2006, tendo como tema a
norma de legalidade procedimental administrativa;
– PEDRO MACHETE, autor do estudo mais conhecido sobre a fase da audiência dos
interessados no procedimento administrativo e de um texto marcadamente inovador,
publicado em 2007, em que procura estabelecer as consequências do modelo de Estado
de direito democrático, vertido na nossa Constituição, sobre as formas de agir da
Administração Pública;
– CARLA AMADO GOMES responde por um elevado número de escritos sobre
variadíssimos temas de direito administrativo, do direito processual administrativo à
contratação pública, mas também de direito do ambiente, de direito do urbanismo e de
outras áreas do direito público;
– ISABEL CELESTE FONSECA tem produzido diversas e interessantes reflexões sobre
temas de direito processual administrativo, para além de também se dedicar ao direito
da função pública;
– ANA RAQUEL MONIZ tem-se dedicado a duas grandes temáticas: o poder
regulamentar da administração e o domínio público;
– ALEXANDRA LEITÃO e MIGUEL ASSIS RAIMUNDO que se ocuparam de temas
relacionados com contratos públicos nas suas dissertações de doutoramento e são
autores de diversas obras de direito administrativo geral e de processo administrativo;
– FERNANDA PAULA OLIVEIRA, especialista em direito do urbanismo, que tem diversas
obras relevantes para o direito administrativo geral, algumas com JOSÉ EDUARDO
FIGUEIREDO DIAS.
Muitos outros se têm ocupado de matérias relevantes para o direito administrativo.
Serão citados e referidos nos capítulos que se seguem, devendo a listagem acima servir
de mera orientação – não exaustiva – de alguns autores cujos escritos marcaram o
desenvolvimento deste ramo do direito.
45
Utiliza, naturalmente, os métodos próprios das ciências sociais – os inquéritos, o
método estatístico, as entrevistas, o método dos casos, etc.
Os estudos de ciência da administração orientam-se hoje em múltiplas direções, de
entre as quais sobressaem as questões da reforma administrativa, as análises da
burocracia, o estudo do processo de decisão pública e a análise e avaliação das políticas
públicas.
23.2. Para quem aceita a distinção entre direito privado e direito público, não se
colocam grandes dúvidas quanto à inclusão do direito administrativo no âmbito deste
44
PAULO OTERO utiliza, para acentuar que a génese do direito administrativo teve bem mais a ver com
a defesa dos interesses da administração pública francesa do que com qualquer intenção de proteção de
direitos dos cidadãos face àquela, a expressão ilusão garantística – Legalidade e Administração
Pública..., cit., p. 275. O autor acompanha de perto, neste ponto, o que VASCO PEREIRA DA SILVA já havia
escrito na sua obra Em busca do acto administrativo perdido, cit., p. 23.
45
Este movimento do universo público em direção ao direito privado foi aprofundadamente
investigado por MARIA JOÃO ESTORNINHO na sua dissertação de doutoramento A fuga para o direito
privado, já citada. Chamamos neste ponto a atenção para as pp. 58 a 78.
46
Podem encontrar-se exemplos em PAULO OTERO – Legalidade e Administração Pública..., cit., pp.
827 a 832; cfr. ainda, do mesmo Autor, Manual de Direito Admnistrativo, cit., pp. 464 a 483.
46
último, seja qual for o critério distintivo adotado – o dos interesses, o da qualidade dos
sujeitos, o da posição relativa destes, ou outro.
Integrando o direito administrativo o âmbito do direito público, o ramo deste que lhe
está mais próximo é o direito constitucional. Está, de resto, tão próximo, que as
respetivas fronteiras são muito difíceis de traçar47.
Se não parece demasiado complexo apontar o sentido da distinção, no plano material,
entre normas de direito constitucional e normas de direito administrativo, associando as
primeiras aos aspetos fundamentais da estruturação da coletividade – designadamente
no que respeita aos intervenientes na vida política desta – e ligando as segundas à
organização Administração Pública, ao exercício da atividade administrativa pública e
ao relacionamento desta com os cidadãos, já a distinção no plano formal é mais
complicada; de facto, encontram-se na Constituição, como já assinalámos, inúmeras
normas que fazem parte do direito administrativo.
47
Cfr. JORGE MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, Volume I, Coimbra, 2014, p. 24.
47
CAPÍTULO III
OS CONCEITOS FUNDAMENTAIS
Leituras aconselhadas:
49
(policopiado), pp. 17 a 22; MARIA TERESA MELO RIBEIRO, O princípio da imparcialidade
da Administração Pública, pp. 86 a 109; PAULO OTERO, Legalidade e Administração
Pública..., cit., pp. 733 a 955; IDEM, Manual de Direito Administrativo, cit., pp. 96 a 99
e 228 a 234; PEDRO MACHETE, Estado de Direito Democrático e Administração
Paritária, Coimbra, 2007, pp. 46 a 54 e 304 a 341; IDEM, «Eficácia e execução do ato
administrativo», in Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 100, Julho/Agosto de 2013,
pp. 40 a 45; PEDRO MONIZ LOPES, Princípio da Boa-Fé e Decisão Administrativa,
Coimbra, 2011, pp. 207 a 255; RUI DUARTE ROCHA, «Um novo Paradigma na Execução
do Acto Administrativo... Perhaps oui, perhaps non!», in O Novo Código do
Procedimento Administrativo, Braga, 2015, pp. 401 a 412; RUI GUERRA DA FONSECA, O
Fundamento da Autotutela Executiva da Administração Pública, Coimbra, 2012, pp.
243 a 338; IDEM, «O fim do modelo de administração executiva», in Comentário ao
Novo Código do Procedimento Administrativo, 2.ª edição, Lisboa, 2015, pp. 85 a 115;
RUI MACHETE, «Privilégio da execução prévia», in Dicionário Jurídico da
Administração Pública, Volume VI, pp. 448 a 470; TERESA MARIA DIAS PEREIRA, «A
execução do ato administrativo», in O Novo Código do Procedimento Administrativo,
Braga, 2015, pp. 453 a 465; VASCO PEREIRA DA SILVA, Em busca do acto administrativo
perdido, cit., pp. 151 a 220; IDEM, O Contencioso Administrativo no Divã da
Psicanálise, cit., pp. 263 a 270; VITALINO CANAS, «Proporcionalidade (princípio da)», in
Dicionário Jurídico da Administração Pública, Volume VI, pp. 591 a 649.
50
e) Quando tal desrespeito resulta da promiscuidade entre os interesses públicos que
deveriam, em obediência à lei, ter sido prosseguidos, e interesses de natureza privada
que influenciaram ilegitimamente a decisão administrativa ocorre uma violação do
princípio da imparcialidade (v. infra).
26.1. A lei fixa os interesses públicos a prosseguir pela administração pública; a lei
estabelece igualmente as regras a que deve obedecer tal prossecução. Este poder que a
lei tem de conformar a atividade administrativa pública não é – não consegue ser, nem,
na maioria das vezes, pretende ser – um poder suscetível de determinar imediatamente a
atuação administrativa: do simples respeito pela lei (normas e princípios aplicáveis) não
decorre, por automática inferência lógica, uma determinada decisão administrativa, mas
antes, e somente, uma delimitação, mais ou menos precisa, do espaço de decisão da
administração pública.
Significa isto – na sequência lógica de quanto se disse a propósito do princípio da
legalidade – que esta não garante a boa decisão administrativa: somente autoriza um
conjunto de decisões conformes à lei, de entre as quais algumas serão, naturalmente,
melhores do que outras.
Ao distinguirmos legalidade e mérito estamos exatamente a ponderar esta realidade:
designamos por (campo da) legalidade toda a zona da decisão administrativa em que
esta é suscetível de um juízo de conformidade ou desconformidade com o “bloco
legal”; ao (campo do) mérito pertence a zona da decisão administrativa que escapa a
tal juízo – apenas estando sujeita a juízos de oportunidade ou conveniência.
51
foi “discricionária” envolve, no mínimo, uma crítica benévola. O qualificativo é menos
mau do que “ilegal”, mas, ainda assim, é mau. Claro que quem assim discorre ficaria
embaraçado se lhe perguntássemos como deveria ter sido a decisão para não ser
discricionária.
O termo discricionariedade remete-nos, simplesmente, para a ideia de escolha, de
fazer uma coisa quando poderia ter-se feito outra. Melhor, quando a lei permitiria que
se tivesse feito outra. Quem critica a discricionariedade parece acreditar que o mundo
seria melhor, mais perfeito, se toda e qualquer norma legal apenas permitisse à
Administração Pública, em cada caso, tomar uma única decisão.
Ao escrevermos quando a lei permitiria que se tivesse feito outra tornamos claro que
esta problemática ocorre no mundo da legalidade, da legalidade administrativa. Os
particulares, nas relações que estabelecem entre si, não tomam decisões discricionárias:
tomam, isso sim, decisões arbitrárias, decisões que não são, por natureza – na verdade,
a natureza humana – suscetíveis de aferição com base em qualquer norma competencial.
Como dissemos noutro ponto, os cidadãos movem-se no domínio da licitude, podendo
fazer tudo quanto a lei não proíbe e não lese os outros cidadãos, sem terem de
apresentar qualquer razão justificativa das suas opções. Podem decidir – e decidem
muitas vezes e ainda bem – por capricho.
A decisão discricionária, pelo seu lado, envolvendo também uma escolha, exige uma
escolha parametrizada, isto é, balizada por certos limites. A decisão discricionária tem
de assentar numa racionalidade própria, uma vez que os órgãos da Administração
Pública são instituídos especificamente para prosseguir certos interesses, para o que a
lei os dotou de determinados poderes jurídicos e os obriga a respeitar certos princípios.
É precisamente por isto que a maioria das decisões administrativas, contrariamente
às decisões dos particulares, têm de ser fundamentadas, ou seja, as suas razões têm de
ser conhecidas, condição indispensável para poderem ser aferidas através do confronto
com os interesses que devem prosseguir. E é também por isto que se encontram sujeitas
a algum tipo de controlo.
Uma primeira aproximação à questão da discricionariedade permite a seguinte
conclusão provisória: uma decisão administrativa é discricionária quando é uma de
várias abstratamente possíveis e conforme à lei48.
27.2. Mas a discricionariedade nunca autoriza a tomada de uma qualquer decisão. É
ela, já o dissemos, parametrizada, isto é, condicionada. Os parâmetros a que deve
obedecer a escolha discricionária podem delimitar um espaço maior ou menor,
conferindo à decisão uma dose de liberdade muito variável. Quanto maior for o espaço
de liberdade deixado ao decisor menores serão as vinculações da decisão – entenda-se,
os aspetos desta condicionados de forma mais ou menos precisa pela lei.
Discricionariedade e vinculação são, assim, dois “ingredientes” que qualquer decisão
administrativa comporta, em proporções variáveis.
Para designar esta realidade, dizemos que qualquer decisão comporta o exercício de
poderes vinculados e de poderes discricionários. Em rigor, os ditos poderes vinculados
não são poderes mas verdadeiros deveres (os anglo-saxónicos designam o poder
48
Transcrevemos a definição de SÉRVULO CORREIA, bem mais completa e detalhada do que a nossa:
«o poder concedido por lei a um órgão do poder – bem como o modo de atividade através do qual ele é
exercido – de definir – no respeito do fim visado pela norma e, também, dos direitos fundamentais e de
outros princípios básicos – o sentido de decisões concretas através da ponderação autónoma dos
interesses públicos e privados relevantes» – «Margem de livre decisão, equidade e preenchimento de
lacunas: as afinidades e os seus limites», in Estudos em Homenagem a Miguel Galvão Teles, Volume I,
Coimbra, 2012, p. 386.
52
vinculado por duty); poderes (powers, para os anglo-saxónicos) são somente os poderes
discricionários – não faz muito sentido dizer que se pode fazer algo que se deve fazer.
27.4. Note-se que a ponderação dos aspetos vinculados da decisão administrativa não
deve ser representada através de uma espécie de verificação instantânea, efetuada no
momento da consumação da decisão: não é neste momento que se deve verificar se a
decisão respeita positivamente todas as vinculações absolutas e não ofende qualquer das
vinculações tendenciais. Por força da crescente ritualização do procedimento
administrativo, o espaço de liberdade da decisão vai-se estreitando ao longo do tempo, à
medida que o iter procedimental vai sendo percorrido.
Este elemento temporal é indispensável para se avaliar a legalidade da decisão
administrativa: o espaço decisional vai sendo delimitado por etapas sucessivas,
balizadas pelas diferentes vinculações, podendo mesmo acontecer que a preocupação
com o tempo conduza o decisor, na busca de uma harmonização oportuna dos interesses
envolvidos, a praticar alguns atos administrativos que não representam ainda uma
decisão em sentido próprio. Adiante voltar-se-á a este ponto.
49
Estas vinculações constituem aquilo a que PAULO OTERO chama legalidade “principialista”: o Autor
revela-se bastante pessimista quanto ao efeito útil desta legalidade, escrevendo: «a descoberta de qual seja
o exacto padrão regulador da conduta administrativa pode bem tornar-se um milagre. Um milagre, aliás,
que tem a particularidade de se encontrar nas mãos da própria Administração Pública» – cfr. Legalidade e
Administração Pública..., cit., p. 961.
53
fossem contrárias à lei – a discricionariedade resultaria de uma insuficiência do
legislador.
A alternativa consistiria em partir da ideia de que o legislador poderia ter formulado
a norma de forma suficientemente precisa, mas optou intencionalmente por uma
formulação mais vaga, menos densa, a fim de possibilitar a escolha de uma entre várias
decisões legais pela Administração, em função de ponderações autónomas desta.
Não sendo possível afastar liminarmente a primeira hipótese, é a segunda que
constitui a normalidade: o recurso à formulação discricionária consubstancia, em regra,
uma manifestação explícita da vontade legislativa.
O legislador considera que, para melhor prosseguir um determinado interesse
público, a Administração Pública deve poder escolher um de entre vários conteúdos
decisionais – aquele que, no entender do órgão decisor, melhor prossiga tal interesse. O
legislador quer que este disponha de uma certa margem de liberdade de decisão, de
forma a poder adaptar esta à diversidade das condições da vida que podem justificar a
sua tomada. Por esta razão, a discricionariedade é mais comum na estatuição da norma.
27.7. De notar que, na dicotomia simplificada que tomámos como ponto de partida,
considerámos apenas aquilo a que alguns chamam margem de livre decisão e outros
consideram a verdadeira discricionariedade. Trata-se, nas palavras de SÉRVULO
50
Cfr. «A discricionariedade administrativa: reflexões a partir da pluridimensionalidade da função
administrativa», in O Direito, Ano 144.º, 2012, III, p. 617.
54
CORREIA, «da autonomia administrativa de conformação do sentido da decisão»51: tomar
uma, ou outra, ou ainda outra decisão, todas elas conformes à lei.
Mas existe uma “outra discricionariedade”, que o mesmo Autor designa, no mesmo
passo, por «autonomia administrativa de valoração e prognose». Trata-se, agora, da
utilização pela lei – mais comum na previsão da norma – de conceitos que conferem à
Administração um poder jurídico de «avaliação subjectiva sobre propriedades não
jurídicas de certo componente da situação a regular»52.
Esta técnica de formulação normativa, habitualmente designada, por influência
germânica, de margem de livre apreciação, remete para a Administração a capacidade
para valorar a situação e antecipar o resultado de tal valoração (prognose), de forma a
que o resultado corresponda a uma adequada prossecução dos interesses públicos
tutelados pela norma.
Acompanhando sempre SÉRVULO CORREIA, é possível abranger estas duas técnicas
num superconceito de discricionariedade, uma vez que elas têm em comum o recurso à
«técnica legislativa de textura aberta da norma como modo de habilitar o aplicador a
uma concretização autodeterminada»53.
51
51 Cfr. «Conceitos jurídicos indeterminados e âmbito do controlo jurisdicional, anotação ao acórdão
STA-1 de 17 de Janeiro de 2007», in Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 70, Julho/Agosto de 2008,
p. 42. SÉRVULO CORREIA voltou ao tema no seu escrito «Margem de livre decisão, equidade...», cit., pp.
379 a 402. Continua aí a utilizar a expressão margem de livre decisão para designar conjuntamente «e o
preenchimento valorativo de conceitos jurídicos indeterminados figurando na previsão (Tatbestand) de
normas jurídicas» (p. 385).
52
SÉRVULO CORREIA, «Conceitos jurídicos indeterminados..., cit., pp. 44-45.
53
IDEM, ibidem, p. 47. MARIA FRANCISCA PORTOCARRERO também assimila as duas situações,
considerando ambas «prerrogativas de avaliação administrativa» – «Aferição judicial ab extra da
legalidade do exercício administrativo discricionário», anotação ao acórdão do STA-1 de 6 de Dezembro
de 2006, in Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 66, Novembro/Dezembro de 2007, p. 48.
54
SÉRVULO CORREIA, «Conceitos jurídicos indeterminados...», cit., p. 40.
55
tribunal não pode substituir-se à Administração nas ponderações feitas por esta, porque
a isso obsta o princípio da separação de poderes.
O mais que o tribunal pode fazer é verificar o respeito pelas vinculações tendenciais
que já referimos, ou seja, a não ultrapassagem dos diversos princípios que limitam
negativamente o exercício do poder discricionário.
Já quando o conceito apenas suporta uma interpretação correta, esta pode ser
verificada através do recurso a uma «metodologia objectivamente infirmável»55,
suscetível de ser utilizada pelo juiz. Neste caso, o tribunal não pode eximir-se a uma
censura da interpretação administrativa errónea, sob pena de denegação de justiça.
55
IDEM,
ibidem, p. 44.
56
A fundamentação desempenha uma outra função, não menos relevante: procura assegurar o rigor da
ponderação dos interesses subjacentes à decisão.
56
interesse público eficazmente – ou de ter em conta suficientemente os interesses dos
particulares.
Havendo, naturalmente, muito de verdade nas críticas dirigidas ao excesso de
formalismo, não pode olvidar-se que as exigências legais nesta matéria se fundam em
padrões de razoabilidade relativos à tomada de uma decisão sobre interesses alheios
àqueles que a tomam, procurando assegurar a incorporação nesta dos diversos princípios
que regem a atividade administrativa.
57
Cfr. PEDRO MACHETE, Estado de Direito Democrático e Administração Paritária, cit., pp. 304 a
341.
58
Cfr. Em busca do acto administrativo perdido, cit., p. 186; cfr., numa perspetiva muito distinta,
PAULO OTERO, Manual de Direito Administrativo, cit., pp. 96 a 99.
59
Cfr., Em busca do acto administrativo perdido, cit., pp.188-189. Mais adiante – p. 205 – escreve
VASCO PEREIRA DA SILVA: «A relação jurídica apresenta, assim, a vantagem dogmática de possuir um
57
Também merece a nossa concordância a visão moderada e realista do Autor, que não
só reconhece que a relação jurídico-administrativa não é útil para o tratamento de
matérias como a organização administrativa pública ou os regulamentos
administrativos, como rejeita que a consideração da relação jurídica implique o
abandono do estudo do ato administrativo60.
Bem vistas as coisas, tendo em consideração que os contratos da Administração
Pública já são tratados na perspetiva das relações jurídicas que modelam, o grande
interesse da relação jurídico-administrativa consiste em alargar as vistas, demasiado
estreitas, que o ato administrativo permite sobre a atividade jurídica não normativa e
unilateral da Administração Pública.
âmbito de aplicação muito maior do que o do acto administrativo, capaz de englobar todas as decisões
unilaterais (individuais e concretas) da Administração – e permitindo ainda o enquadramento teórico dos
direitos e deveres dos sujeitos jurídicos, anteriores ou posteriores a esses actos –, assim como de abranger
também todas as demais situações em que sejam estabelecidas ligações jurídicas entre as autoridades
administrativas e os particulares...»
60
Em busca do acto administrativo perdido, cit., pp. 202 a 204.
61
Sobre o sentido atual da unilateralidade, cfr. PEDRO MACHETE, Estado de Direito Democrático e
Administração Paritária, cit., pp. 46 a 54.
58
O chamado privilégio de execução prévia (ou autotutela executiva) consiste no
poder conferido à Administração Pública de, uma vez definido o direito aplicável ao
caso, impor as consequências de tal definição aos seus destinatários, mesmo contra a
oposição destes e sem a prévia intervenção de um tribunal – execução coerciva por via
administrativa.
Na sua formulação tradicional, o privilégio de execução prévia autoriza sempre a
execução coerciva por via administrativa. Nos dias de hoje é muito discutível que a
autotutela executiva deva ser ainda considerada uma regra: diversos autores consideram
que ela deveria ser considerada excecional, limitada à matéria de polícia administrativa
e aos casos em que a lei a previsse de forma expressa.
O anterior Código do Procedimento Administrativo manteve-se numa posição
próxima da formulação tradicional: estabeleceu a autotutela executiva como regra geral,
mas minorou os seus efeitos, através da adoção do princípio da tipificação das medidas
de execução, princípio este que limitava as formas e os termos da execução aos
previstos no próprio Código ou noutras leis (cfr. artigo 149.º, n.º 2, do antigo CPA).
Acresce que a autotutela executiva não se aplicava nos casos de execução para
pagamento de quantia certa, processados nos termos do Código de Procedimento e de
Processo Tributário.
O atual CPA parece ter optado por uma solução distinta. E dizemos parece, porque o
quadro legal se nos afigura pouco claro.
O artigo 175.º do CPA começa por anunciar o estabelecimento do «regime comum
aplicável aos procedimentos administrativos dirigidos à obtenção, através de meios
coercivos, da satisfação de obrigações pecuniárias, da entrega de coisa certa, da
prestação de factos ou ainda do respeito por ações ou omissões em cumprimento de
limitações impostas por atos administrativos», dando a ideia de que abandonou o velho
privilégio de execução prévia. A ser assim, a situação ter-se-á invertido, tornando-se a
autotutela executiva excecional62.
No mesmo sentido aponta o artigo 183.º, ao estabelecer que «sempre que, nos termos
do presente Código e demais legislação aplicável, a satisfação de obrigações ou o
respeito por limitações decorrentes de atos administrativos não possa ser imposto
coercivamente pela Administração, esta pode solicitar a respetiva execução ao tribunal
administrativo competente, nos termos do disposto na lei processual administrativa».
O sentido desta norma parece ser o seguinte: quando não se verificarem exceções que
permitam a execução administrativa, então aplica-se a regra da execução jurisdicional.
E que exceções são, segundo a lei, essas?
a) A execução coerciva de obrigações pecuniárias, autorizada pelo n.º 2 do artigo
176.º do CPA;
b) A necessidade de fazer face a «situações de urgente necessidade pública», coberta
pela norma da parte final do n.º 1 do artigo 176.º.
Note-se que, em bom rigor, não poderá considerar-se a execução coerciva de
obrigações pecuniárias uma exceção à regra da execução jurisdicional, uma vez que o
que a norma faz é remeter para o n.º 1 do artigo 179.º, que manda aplicar o processo de
execução fiscal, que é um processo jurisdicional. De resto, já é assim desde a entrada
em vigor do antigo CPA, como referimos.
62
É este o entendimento – crítico – de PEDRO MACHETE, que considerou que o novo CPA rompeu com
uma antiga tradição do direito administrativo português, ao consagrar «o princípio da habilitação legal
específica do poder de execução coerciva dos atos administrativos, em conjugação com o princípio da
execução dos mesmos atos pela via jurisdicional» – «Eficácia e execução do ato administrativo», in
Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 100, Julho/Agosto de 2013, p. 43.
59
Por outras palavras: a única verdadeira exceção à execução jurisdicional fundar-se-ia
na urgente necessidade pública63.
Dito isto, a dúvida surge: mas chega? Não haverá mais nenhum caso em que faça
sentido a execução administrativa? Nem mesmo no âmbito da atividade policial?
Percebe-se depois, ao ler o n.º 2 do artigo 175.º, que o legislador tem a perfeita
consciência de que não chega. Mas não quis, ou não pôde, especificar esses outros casos
em que faz sentido a execução administrativa.
Optou então por uma remissão para «legislação própria» futura, que regulará as
«medidas policiais de coação direta, dirigidas à execução de obrigações diretamente
decorrentes do quadro normativo aplicável».
Qual venha a ser a tal legislação própria (legislação especial?) e qual o quadro
normativo de que decorrem diretamente as obrigações que podem ser impostas
unilateralmente pela administração, é coisa que o legislador não esclarece.
Mas a situação torna-se ainda mais estranha quando se considera o disposto no n.º 1
do artigo 8.º do decreto preambular que aprovou o código:
«O n.º 1 do artigo 176.º do Código aplica-se a partir da data da entrada em vigor do
diploma que define os casos, as formas e os termos em que os atos administrativos
podem ser impostos coercivamente pela Administração, a aprovar no prazo de 60 dias a
contar da data da entrada em vigor do presente decreto-lei».
Como o artigo 176.º, sob a epígrafe «legalidade da execução», contém uma
formulação restritiva da execução por via administrativa, parece que a legalidade da
execução ficou entre parêntesis até 8 de março de 2015, mantendo-se o regime de
execução administrativa constante do n.º 2 do artigo 149.º do antigo CPA64.
E assim continuou «mais de 60 dias desde a entrada em vigor do CPA 2015», como
notou RUI DUARTE ROCHA65.
E por lá continua há mais de um ano, observamos nós, visto que o tal diploma ainda
não viu a luz do dia66.
32.1. A prossecução dos interesses públicos que a lei lhe confia não pode ser
assegurada pela administração pública de qualquer forma: ela deve respeitar, na medida
do possível, os direitos e interesses dos particulares (cfr. artigos 266.º, n.º 1, da CRP, e
4.º do CPA).
Outrora, quando a administração pública era escassamente interventora e
principalmente ablativa, o equilíbrio entre interesses públicos e interesses privados era
conseguido através do princípio da legalidade; hoje, alargada enormemente a
intervenção pública na vida social, a legalidade já não é garantia bastante de tal
equilíbrio.
63
Cfr., neste sentido, RUI DUARTE ROCHA, «Um novo Paradigma na Execução do Acto Administrativo...
Perhaps oui, perhaps non!», in O Novo Código do Procedimento Administrativo, Braga, 2015, pp. 406 a
408.
64
Cfr. RUI GUERRA DA FONSECA, «O fim do modelo de administração executiva», in Comentário ao
Novo Código do Procedimento Administrativo, 2.ª edição, Lisboa, 2015, p. 105. Cfr. também, TERESA
MARIA DIAS PEREIRA, «A execução do ato administrativo», in O Novo Código do Procedimento
Administrativo, Braga, 2015, p. 457.
65
«Um Novo Paradigma...», cit., p. 405.
66
DIOGO FREITAS DO AMARAL critica frontalmente a solução adotada no CPA, que considera
inadequada às características do ordenamento jusadministrativo português – Curso..., cit., Volume II, pp.
422-423.
60
Em consequência, outros fatores – todos objeto de posterior estudo – procuram
assegurá-lo atualmente:
a) O já referido dever de fundamentação do ato administrativo;
b) O princípio da proporcionalidade;
c) A tutela jurisdicional cautelar;
d) O Provedor de Justiça.
67
Para uma maior dilucidação das diferentes posições jurídicas ativas dos particulares perante a
Administração Pública, cfr. PAULO OTERO, Manual de Direito Administrativo, cit., pp. 228 a 234; cfr.
também DIOGO FREITAS DO AMARAL, Curso..., cit., Volume II, pp. 59 a 65.
68
Em busca do acto administrativo perdido, cit., pp. 216 a 220, em especial a nota 1 da página 218.
69
Ibidem, p. 270.
61
VIEIRA DE ANDRADE escreve a este propósito que não deve tentar-se «no âmbito do
direito público, uma definição restrita do conceito de direito subjetivo, que sempre
gerou controvérsia, mesmo no direito privado». Para o Autor, «a fronteira a estabelecer
com nitidez deve ser a que delimita, de um lado, as posições jurídicas substantivas
(“direitos e interesses legalmente protegidos” ou “direitos”, num sentido amplo) e, do
outro lado, os interesses simples ou de facto»70.
Não estamos convencidos e continuamos a optar pela diferenciação das duas
situações: não julgamos que esteja em causa um problema de “quantidade” do objeto ou
do conteúdo da posição jurídica ativa, mas sim de “qualidade” desta. Por outras
palavras, não nos parece que se trate de mera «distinção de ordem formal»71, antes se
nos afigurando que são mesmo realidades qualitativamente diversas (a) poder obter um
benefício imediato, na sua esfera jurídica, com o exercício de uma faculdade, ou (b)
apenas poder obtê-lo indireta e eventualmente, após a reposição da legalidade ofendida.
Note-se que, muito embora as posições jurídicas dos terceiros sejam frequentemente
configuráveis como interesses legítimos, por vezes o objetivo da norma jurídica é já o
de proteger diretamente a posição de um terceiro, o que ocorre quando ela efetiva uma
conformação imediata das situações jurídicas por si diretamente abrangidas, com
atualidade e de modo necessário e adequado. Assim sucede através das normas que
estabelecem padrões – altura de construções, distâncias entre farmácias, etc. –, das
normas que permitem a participação em procedimentos administrativos especiais, das
normas que regulam relações administrativas multilaterais – designadamente, relações
de vizinhança urbanística ou ambiental –, ou das normas que regulam o exercício de
direitos fundamentais72.
De notar ainda que esta distinção não é hoje relevante para justificar o acesso dos
particulares à justiça administrativa – a legitimidade ativa para propor uma ação
administrativa bastar-se-á, conforme adiante se detalha, com a titularidade de interesses
diretos e pessoais, os quais sempre existirão quando ocorra uma lesão dos direitos ou
interesses legalmente protegidos do autor – o que não leva a negar a sua relevância para
outros efeitos.
70
Cfr. A Justiça Administrativa (Lições), 14.ª edição, Coimbra, 2015, p. 61.
71
Cfr. VASCO PEREIRA DA SILVA, O Contencioso Administrativo no Divã..., cit., p. 268. As hipóteses
que o Autor constrói nas páginas 268 a 270 contribuem mesmo para consolidar a nossa maneira de ver,
tais são as diferenças substanciais que vemos entre a primeira, por um lado, e as duas últimas, por outro.
Particularmente impressiva é a comparação que o Autor faz, na segunda hipótese, com uma situação de
natureza jurídico-privada. Claro que é indiferente reconhecer o direito do credor-comprador a receber a
coisa vendida ou a obrigação do devedor-vendedor de proceder à sua entrega: em ambos os casos se está
perante um direito subjetivo do credor, podendo este fazê-lo valer direta e imediatamente contra o
devedor. Só que esta situação nada tem de comparável com a que ocorre no direito administrativo com a
situação de alguém que apenas pode obter a satisfação de um interesse seu, indireta e eventualmente, após
a reposição da legalidade ofendida.
72
Cfr. JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, A Justiça Administrativa (Lições), cit., pp. 61 a 69.
62
sacrifício de interesses dos particulares – também pode designar-se esta ideia por
racionalidade da decisão.
O conceito jurídico-administrativo de proporcionalidade decompõe-se em três níveis
de apreciação:
a) A exigibilidade do comportamento administrativo, tendo este de constituir
condição indispensável da prossecução do interesse público;
b) A adequação do comportamento administrativo à prossecução do interesse
público visado;
c) A proporcionalidade em sentido estrito ou relação custos-benefícios, isto é, a
existência de uma correlação entre as vantagens decorrentes da prossecução do interesse
público e os sacrifícios inerentes dos interesses privados.
O princípio da proporcionalidade, reconhecido no artigo 266.º, n.º 2, da CRP e
consagrado no artigo 7.º do CPA, obriga a Administração Pública a provocar com a sua
decisão a menor lesão de interesses privados compatível com a prossecução do
interesse público em causa.
34.1. O princípio da igualdade, consagrado nos artigos 13.º e 266.º, n.º 2, da CRP, e
inscrito no artigo 6.º do CPA, obriga a Administração Pública a tratar igualmente os
cidadãos que se encontrarem em situação objetivamente idêntica e desigualmente
aqueles cuja situação for objetivamente diversa. A principal dificuldade reside em que
esta objetividade depende sempre dos valores prosseguidos pelo ordenamento jurídico.
Essencial, para que este princípio seja respeitado, é que, por um lado, as diferenças
de tratamento radiquem em critérios que apresentem uma conexão bastante com os fins
a prosseguir com a regulação jurídica e, por outro, que aqueles valores sejam
considerados positivamente pelo ordenamento jurídico.
Este princípio envolve uma limitação ao exercício de poderes discricionários,
constrangendo a Administração Pública à sua utilização uniforme em circunstâncias
idênticas – a alínea d) do n.º 1 do artigo 152.º do CPA tem o objetivo de possibilitar a
verificação do respeito por esta obrigação.
63
dos titulares dos órgãos e agentes da Administração Pública da resolução de assuntos
suscetíveis de afetar os seus interesses privados enquanto cidadãos.
A projeção prática do princípio é assegurada pelas regras dos artigos 69.º a 76.º do
CPA, que serão apreciadas noutro ponto.
73
Cfr. PEDRO MONIZ LOPES, Princípio da Boa-Fé e Decisão Administrativa, Coimbra, 2011, em
especial pp. 212 a 221.
74
Cfr. DIOGO FREITAS DO AMARAL, «O princípio da justiça no artigo 266.º da Constituição», in
Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Rogério Soares, Coimbra, 2001, pp. 701 a 704.
64
PARTE I
ORGANIZAÇÃO ADMINISTRATIVA PÚBLICA
65
CAPÍTULO I
ESTRUTURAS ORGANIZATIVAS
Leituras aconselhadas:
ALEXANDRE SOUSA PINHEIRO e outros, Questões Fundamentais para a Aplicação do
CPA, Coimbra, 2016, p. 109; ANA FERNANDA NEVES, «Os institutos públicos e a
descentralização administrativa», in Estudos em Homenagem ao Professor Doutor
Inocêncio Galvão Telles, Volume V, Coimbra, 2003, pp. 495 e segs.; ANDRÉ SALGADO
DE MATOS, «A natureza jurídica da delegação de poderes», in Estudos em homenagem
do Prof. Doutor Sérvulo Correia, Volume II, Coimbra, 2010, pp. 119 a 160; IDEM, «A
delegação de poderes», in Comentários ao novo Código do Procedimento
Administrativo, 2.ª edição, Lisboa, 2015, pp. 301 a 319; CÂNDIDO DE OLIVEIRA, Direito
das autarquias locais, Coimbra, 1993, pp. 223 a 336; IDEM, «A Noção de Serviços
Públicos na Doutrina Portuguesa», separata da Scientia Iuridica, Tomo LII – n.º 295,
Janeiro/Abril de 2003; IDEM, A Democracia Local (aspectos jurídicos), Coimbra, 2005;
IDEM, «A reforma territorial e funcional das freguesias», in A Reforma do Estado e a
Freguesia, Braga, 2013, pp. 77 a 114; CARLOS BLANCO DE MORAIS, «O estatuto híbrido
das entidades reguladoras da economia», in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor
Jorge Miranda, Volume IV, Coimbra, 2012, pp. 183 a 217; CASALTA NABAIS,
Considerações sobre a autonomia financeira das universidades portuguesas, Coimbra,
1987, nota 11, pp. 10 a 11; IDEM, «Autonomia Local», in Estudos em Homenagem do
Professor Doutor Afonso Rodrigues Queiró, Volume II, Coimbra, 1993; DIOGO FREITAS
DO AMARAL, Curso..., cit., Volume I, pp. 193 a 550 e 583 a 755; EDUARDO PAZ
FERREIRA e LUÍS SILVA MORAIS, «A regulação sectorial da economia. Introdução e
perspectiva geral», in Regulação em Portugal: Novos Tempos, Novo Modelo, Coimbra,
2009, pp. 7 a 38; JOÃO CAUPERS, A Administração periférica..., cit., pp. 87 a 94; IDEM,
«Governo municipal – Na fronteira da legitimidade com a eficiência», in THEMIS.
Revista da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, Ano V, n.º 8, 2004,
pp. 251 a 281; IDEM, «Divisão administrativa e órgãos regionais», in Direito Regional e
Local, n.º 8, Julho/Setembro de 2009, pp. 3 a 8; JORGE MIRANDA, As associações
públicas no direito português, Lisboa, 1985; JORGE PAÇÃO, «Os órgãos colegiais no
Novo Código do Procedimento Administrativo», in Comentários ao novo Código do
Procedimento Administrativo, 2.ª edição, Lisboa, 2015, pp. 283 a 299; MARCELLO
CAETANO, Manual de Direito Administrativo, Volume II, 10.ª edição, 4.ª reimpressão,
Coimbra, 1991; MARCELO REBELO DE SOUSA, Administração Pública e Direito
Administrativo em Portugal, Lisboa, 1992, pp. 27 a 57; MARIA DA GLÓRIA F. P. DIAS
GARCIA, «Organização administrativa», in Dicionário Jurídico da Administração
Pública, Volume VI, pp. 235 a 244; MARIA JOÃO ESTORNINHO, «As fundações públicas
no direito português», in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Jorge Miranda,
Volume IV, Coimbra, 2012, pp. 669 a 674; MARIA JOSÉ CASTANHEIRA NEVES, Governo e
administração local, Coimbra, 2004; MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, «Parcerias público-
privadas: a experiência portuguesa», in Direito e Justiça – VI Colóquio Luso-Espanhol
de Direito Administrativo, pp. 175 a 190; MARTA REBELO, «O financiamento
intermunicipal – as áreas metropolitanas e as comunidades intermunicipais no quadro da
crise financeira do municipalismo», in Revista do Tribunal de Contas, n.º 41,
Janeiro/Junho de 2004, pp. 11 a 136; PACHECO DE AMORIM, As empresas públicas no
direito português, em especial, as empresas municipais, Coimbra, 2000; NAZARÉ DA
COSTA CABRAL, As Parcerias Público-Privadas, Coimbra, 2009; PAULO OTERO, A
competência delegada no direito administrativo português, Lisboa, 1987, pp. 25 a 39 e
67
263 a 300; IDEM, Conceito e fundamento da hierarquia administrativa, Coimbra, 1992,
pp. 107 a 188; IDEM, O poder de substituição em direito administrativo, Volume II,
Lisboa, 1996, pp. 673 a 680 e 742 a 753; IDEM, «Institutos Públicos», in Dicionário
Jurídico da Administração Pública, Volume V, pp. 250 a 274; IDEM, Direito do
Procedimento Administrativo, cit., pp. 437 a 462 e 470 a 473; PAULO VEIGA E MOURA,
Estatuto Disciplinar dos Trabalhadores da Administração Pública, Coimbra, 2009, pp.
50 a 56 e 64; RUI GUERRA DA FONSECA, Autonomia Estatutária das Empresas Públicas e
Descentralização Administrativa, Coimbra, 2005, pp. 81 a 137; VITAL MOREIRA,
Administração Autónoma e Associações Públicas, Coimbra, 1997, pp. 94 a 126, 303 a
305 e 393 a 395; IDEM, Auto-regulação Profissional e Administração Pública, Coimbra,
1997, pp. 381 a 385; IDEM, «Regulação económica, concorrência e serviços de interesse
geral», in Estudos de Regulação Pública I, Coimbra, 2004, pp. 547 a 563.
Já vimos atrás que a organização é um grupo humano estruturado em função dos fins
a atingir.
Acrescentaremos agora que a organização pública é um grupo humano estruturado
pelos representantes de uma comunidade com vista à satisfação de necessidades
coletivas predeterminadas desta.
O conceito de organização pública integra quatro elementos:
a) Um grupo humano;
b) Uma estrutura, isto é, um modo peculiar de relacionamento dos vários elementos
da organização entre si e com o meio social em que ela se insere;
c) O papel determinante dos representantes da coletividade no modo como se
estrutura a organização;
d) Uma finalidade, a satisfação de necessidades coletivas predeterminadas.
É fácil verificar que o conceito de organização pública não comporta qualquer
referência à personalidade jurídica pública.
Isto explica-se por duas razões:
• por um lado, porque muitas organizações públicas são desprovidas de
personalidade jurídica – a Autoridade Tributária e Aduaneira não é menos organização
pública do que a Infraestruturas de Portugal, SA;
• por outro, porque existem – já o dissemos noutro ponto – cada vez mais
organizações públicas que revestem formas jurídicas de direito privado – associações,
fundações e sociedades.
Convém ainda ter presente que uma das causas principais da complexidade crescente
da Administração Pública é gerada pelo fenómeno conhecido como diferenciação, isto
é, a tendência para fazer corresponder a cada interesse coletivo uma organização
especificamente destinada a prossegui-lo.
Esta tendência não pode, porém, servir de pretexto para ignorar o fundamental
carácter unitário da administração pública: esta só pode ser compreendida se se tiver
presente que se encontra submetida a princípios e regras relativamente uniformes e a
uma gestão global de equilíbrios delicados, visando atingir em conjunto objetivos
predeterminados75.
75
Cfr., a este propósito, PAULO OTERO, O poder de substituição em Direito Administrativo.
Enquadramento dogmático-constitucional, Volume II, Lisboa, 1996, pp. 742 a 753.
68
37. Elementos da administração pública: as pessoas coletivas
37.2. As pessoas coletivas que exercem atividade administrativa pública são criadas
por iniciativa pública para assegurar a prossecução necessária de interesses públicos,
dispondo frequentemente de poderes públicos e estando submetidas a deveres públicos.
As formas tradicionais de descrever e analisar a organização administrativa pública
em Portugal tomam a personalidade coletiva pública como ponto de partida e limitam-
se às suas estruturas organizativas específicas. Quebrámos já esta tradição.
Não é possível esquecer que, por detrás do conceito de pessoa coletiva pública,
escondem-se realidades muitíssimo diversas: enquanto alguns entes públicos são
constituídos por grupos humanos que o Estado não criou, antes limitando-se a
reconhecê-los e a dotá-los de um estatuto jurídico público – sendo, até, alguns deles,
como os municípios, anteriores ao próprio Estado –, já outros entes públicos são o
resultado de meras decisões táticas do Estado, ditadas pela intenção de assegurar a
prossecução de certos interesses públicos através de entidades formalmente situadas
fora da sua organização.
É mesmo corrente em alguma doutrina europeia, designadamente italiana e
espanhola, uma certa minimização ou desconsideração da importância da personalidade
coletiva pública. Este fenómeno é percetível entre nós, tanto no plano interno das
entidades públicas – v.g. os ministros que, sendo órgãos da pessoa coletiva Estado,
prosseguem atribuições diferenciadas –, como no plano das relações entre pessoas
coletivas públicas – v.g. infra, os casos de delegação de poderes de um órgão do Estado
num órgão de uma pessoa coletiva pública instituída por este76.
Acrescentaremos agora que a proliferação de entidades privadas que, por força do
seu processo de instituição e organização e dos interesses que prosseguem, não podem
deixar de ser consideradas organizações públicas, torna inadequada qualquer análise
organizativa limitada às pessoas coletivas públicas. Esta restrição, de resto, não faria
qualquer sentido, considerado o significado que atribuímos à “Administração Pública”
(sentido orgânico). Por esta razão, tomaremos em consideração não só as pessoas
coletivas públicas, como as pessoas coletivas de natureza jurídico-privada envolvidas no
exercício de atividade administrativa pública.
76
Cfr., a este propósito, CASALTA NABAIS, Considerações sobre a autonomia financeira das
universidades portuguesas, Coimbra, 1987, nota 11, pp. 10-11; JOÃO CAUPERS, A Administração
Periférica..., cit., pp. 87 a 94.
69
A administração estadual pode ser exercida por órgãos e serviços da própria pessoa
coletiva pública Estado – uma vez que este dispõe de personalidade jurídica reconhecida
pelo direito interno – diversa da personalidade jurídica internacional, naturalmente –,
falando-se então em administração direta; mas pode também ser prosseguida por
pessoas coletivas distintas do Estado, mas que este criou – ou em cuja instituição
participou ativamente – teremos então a administração indireta ou instrumental.
38.2. A administração direta – hoje regulada pela Lei n.º 4/2004, de 15 de Janeiro, na
redação resultante da Lei n.º 64/2011, de 22 de Dezembro – é integrada, na sua maior
parte, por órgãos e serviços submetidos à hierarquia do Governo, ou seja, dependentes
de um membro deste – é a administração subordinada. Uma parte mais reduzida da
administração estadual direta, porém, escapa a tal hierarquia, em geral porque o
respetivo estatuto assenta numa ligação privilegiada à Assembleia da República. É o
caso, entre outros, do Provedor de Justiça ou da Comissão Nacional de Eleições.
Cientes embora da delicadeza do termo, chamar-lhe-emos administração
independente77.
A administração direta subordinada do Estado pode abranger todo o território
nacional (ou continental) – é a administração central – ou somente uma porção, maior
ou menor, deste território (uma circunscrição) – é a administração periférica (cfr. artigo
11.º, n.º 4, alínea b), da Lei n.º 4/2004).
Já não se justifica distinguir hoje a administração periférica que se dizia
especializada, por se encontrar adstrita ao desempenho de missões determinadas
correspondentes a certos serviços – por exemplo, comissões de coordenação e
desenvolvimento regional, centros de emprego, repartições de finanças, esquadras da
PSP, etc. –, e aquela que se dizia comum, ligada à representação do Governo e a
missões no âmbito da segurança de pessoas e bens.
E não se justifica, porque os governadores civis desapareceram entretanto, sendo as
suas competências redistribuídas por outros órgãos do Estado78, e as assembleias
distritais subsistem sem que existam distritos – enquanto hipotéticas autarquias locais de
que elas seriam órgãos –, numa espécie de limbo jurídico-organizativo79.
Fala-se ainda em administração periférica externa para designar os serviços que se
encontram sediados fora do território nacional, como as embaixadas e os consulados
(cfr. artigo 11.º, n.º 5, da Lei n.º 4/2004).
O principal órgão da administração central do Estado é o Governo. Compõe-se do
primeiro-ministro, dos ministros, dos secretários de Estado e dos subsecretários de
77
A escolha do adjetivo tem em conta a respetiva aplicação a uma parte muito importante da
regulação pública, a que é assegurada por entidades administrativas independentes (v. infra).
78
Cfr. Decreto-Lei n.º 114/2011, de 30 de Novembro.
79
O novo Regime Jurídico das Assembleias Distritais, aprovado pela Lei n.º 36/2014, de 26 de junho,
procurou clarificar a nebulosa situação destes órgãos, agora qualificados como «universalidades jurídicas
indivisíveis», determinando a sua integração, por escolha própria, numa entidade intermunicipal, num
município ou numa associação de municípios, que a lei designa por «entidade recetora» (artigo 3.º, n.º 1).
Em Anexo ao diploma encontra-se um insólito estatuto das assembleias distritais, normativo aplicável a
uma realidade a extinguir através do procedimento previsto e calendarizado no próprio diploma. E, numa
manifestação não se sabe bem se de pouca confiança no cumprimento das suas próprias regras, se de
inesperada profissão de fé regional, conclui o diploma legal determinando a extinção automática das
assembleias distritais – presumivelmente se não tiverem, afinal, sido extintas em cumprimento da
determinação legislativa – «com a instituição em concreto das regiões administrativas ou em caso de
revisão constitucional por força da qual seja revogada a imperatividade da respetiva existência». Esta
extraordinária peça legislativa mereceria um estudo aprofundado, que não pode, evidentemente, ser feito
neste local.
70
Estado. A reunião dos ministros toma o nome de Conselho de Ministros. As principais
regras relativas à composição, às funções e ao funcionamento do Governo constam dos
artigos 200.º a 204.º da CRP e da lei orgânica do Governo80.
A divisão administrativa mais utilizada pela administração periférica especializada é
a correspondente às áreas de jurisdição das comissões de coordenação e
desenvolvimento regional, resultante da divisão do território continental em cinco
zonas. Utilizam-na, entre outros, o Ministério do Planeamento e das Infraestruturas, o
Ministério da Educação, o Ministério da Agricultura, Florestas e Desenvolvimento
Rural, o Ministério do Ambiente e o Ministério da Saúde.
80
A Lei Orgânica do XXI Governo Constitucional foi aprovada pelo Decreto-Lei n.º 251-A/2015, de
17 de dezembro.
71
Construção, o Banco de Portugal (BdP) e a Comissão do Mercado de Valores
Mobiliários (CMVM)81.
Aprovada no ano de 2013 a, há muito reclamada, lei-quadro das entidades
administrativas independentes com funções de regulação da atividade económica e dos
setores privado, público e cooperativo (Lei n.º 67/2013, de 28 de agosto), justifica a
revisão desta posição. Na verdade, considerada a qualificação legal como pessoas
coletivas de direito público com a natureza de entidades administrativas independentes
(artigo 3.º, n.º 1), já não parece possível integrá-las no âmbito dos institutos públicos,
sendo mesmo duvidoso que ainda possam considerar-se parte da administração indireta
do Estado82.
Adiante voltar-se-á a este ponto.
Duas observações sobre a classificação de institutos públicos que propomos.
Afirmámos que se tratava de quatro espécies principais de institutos públicos e que
tínhamos tomado em consideração as atividades que lhes estão predominantemente
atribuídas. Fizemo-lo para acentuar que não tivemos a pretensão de exaurir o universo
dos institutos públicos, por um lado, e que não ignoramos que diversos institutos
públicos podem caber em mais de um termo da classificação, nomeadamente aqueles
que desenvolvem simultaneamente atividades reguladoras e fiscalizadoras, situação
muito frequente.
81
Mais adiante, no capítulo que se ocupa da regulação económica, revisitar-se-ão estas entidades.
82
DIOGO FREITAS DO AMARAL também manifesta dúvidas relativamente à natureza destas entidades –
cfr. Curso..., cit., Volume I, p. 279.
72
b) Para exercerem atividades de estudo e conceção [cfr. artigo 8.º, n.º 2, alínea b) da
lei-quadro];
c) Para desenvolverem atividades que devam ser exercidas no quadro da
administração direta do Estado [cfr. artigo 8.º, n.º 2, alínea a), da lei-quadro].
Da conjugação das disposições da lei-quadro com a Lei n.º 4/2004 resulta claramente
uma “preferência” do legislador pela administração direta do Estado, relativamente à
administração indireta: esta somente pode operar no domínio dos serviços executivos
(cfr. artigo 13.º da Lei n.º 4/2004) e das atividades de prestação, só aí podendo ser
criados institutos públicos. A lei olha com desconfiança para os institutos públicos,
parecendo ver na sua não sujeição ao poder de direção do Governo um “pecado”.
Esta desconfiança é confirmada pelos artigos 41.º e 42.º, que regulam
detalhadamente as intervenções governamentais no exercício de poderes de tutela e de
superintendência. Diga-se que se trata de normas precisas e bem redigidas, numa área
em que lacunas e imprecisões podem originar graves problemas.
O direito aplicável aos institutos públicos é referenciado no artigo 6.º: o legislador
não se limitou a estabelecer o regime geral, antes o integrando com uma extensa
enumeração – ainda assim meramente exemplificativa – de regimes particulares.
Uma derradeira chamada de atenção para o artigo 54.º da lei-quadro. A lei prevê, no
artigo 53.º, que os institutos públicos possam optar por conceder o desempenho de
algumas das suas atribuições a entidades privadas, por via da outorga de um contrato de
concessão de serviço público. Porém, ao lado desta possibilidade, prevê também uma
outra, que até agora não dispunha de enquadramento legislativo genérico – muito
embora já MARCELLO CAETANO a ela se referisse83: a delegação de serviço público,
regulada no artigo 54.º.
Da leitura dos artigos 53.º e 54.º fica-nos a ideia de que a lei teve presente a distinção
feita por aquele professor: por um lado, relativamente à concessão, enfatiza a atividade,
por conta e risco próprio, desenvolvida pelo concessionário e a existência, em regra, de
uma contrapartida pecuniária devida por este ao concedente; por outro, no que toca à
delegação, omite qualquer referência às condições em que a atividade é exercida e não
exclui a gratuitidade. Parece ter pensado em atividades de que o ente privado não retira
um proveito económico.
38.6. Faz ainda sentido uma breve referência a uma forma duradoura de associação
de entidades privadas à prossecução de interesses públicos. Referimo-nos às parcerias
público-privadas, reguladas pelo Decreto-Lei n.º 111/2012, de 23 de maio84.
Entende-se por parceria público-privada o contrato ou a união de contratos, por via
dos quais entidades privadas, designadas por parceiros privados, se obrigam, de forma
duradoura, perante um parceiro público, a assegurar o desenvolvimento de uma
83
Segundo o Mestre de Lisboa, a gestão indireta de serviços públicos comportava duas modalidades: a
concessão e a delegação. Nesta última, ao contrário do que sucedia na primeira, a entidade pública
delegante «cria o serviço e conserva a responsabilidade pelo seu financiamento bem como, total ou
parcialmente, a titularidade dos riscos que o desempenho da actividade possa acarretar», cfr. Manual de
Direito Administrativo, Volume II, 10.ª edição, Coimbra, 1991, p. 1096. Segundo o Autor, a delegação
revelar-se-ia adequada para os serviços culturais e assistenciais, ao passo que a concessão estaria
vocacionada para os serviços económicos.
84
Sobre parcerias público-privadas, é essencial a consulta da obra de NAZARÉ DA COSTA CABRAL, As
Parcerias Público-Privadas, produzida no âmbito do Instituto de Direito Económico, Financeiro e Fiscal
da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Coimbra, 2009, e do texto de MÁRIO AROSO DE
ALMEIDA, «Parcerias público-privadas: a experiência portuguesa», in Direito e Justiça – VI Colóquio
Luso-Espanhol de Direito Administrativo, pp. 175 a 190.
73
atividade tendente à satisfação de uma necessidade coletiva, e em que o financiamento
e a responsabilidade pelo investimento e pela exploração incumbem, no todo ou em
parte, ao parceiro privado.
As principais características das parcerias são a natureza contratual, a estabilidade da
relação jurídica estabelecida – medida pela sua duração, normalmente longa –, o modo
de financiamento e a distribuição dos riscos, que são essencialmente assumidos pela
parte privada.
E foi precisamente a configuração da distribuição de riscos que comprometeu as
parcerias público-privadas, hoje em claro recuo.
As parcerias público-privadas foram inicialmente reguladas entre nós pelo Decreto-
Lei n.º 86/2003, de 26 de Abril. Este regime, alterado em 2008, foi revogado pelo
diploma atualmente em vigor – o referido Decreto-Lei n.º 111/2012, de 23 de maio – o
qual introduziu alterações substanciais na matéria, nomeadamente:
a) Alargando o âmbito de aplicação subjetiva do regime legal, para abranger todas as
empresas públicas – e outros entes públicos, aproximando-se do conceito europeu de
organismo de direito público – e não apenas, como até aí, as entidades públicas
empresariais (cfr. artigo 2.º);
b) Reforçando o controlo financeiro do lançamento e da modificação das parcerias,
de modo a limitar encargos futuros, nomeadamente através da criação, no âmbito do
Ministério das Finanças, da Unidade Técnica de Acompanhamento de Projetos (cfr.
artigo 6.º).
74
38.8. As fundações públicas revelaram-se uma das mais controversas entidades
envolvidas na atividade administrativa pública. No contexto de tal controvérsia, foram
objeto de nova regulamentação, consubstanciada na Lei n.º 24/2012, de 9 de julho,
revista pela Lei n.º 150/2015, de 10 de setembro.
Para se compreender onde se chegou, em matéria de tratamento legal das chamadas
fundações públicas, parece conveniente passar em breve revista o pensamento jurídico-
administrativo nacional na matéria.
MARCELLO CAETANO definia a fundação pública como um «instituto público em
cujo substrato avulta o aspecto patrimonial – assegurar a gestão de um fundo especial
cujo capital provenha de receitas públicas afectadas a certo fim, ou de um património já
constituído e que se deseja manter e aumentar»85.
Segundo o mesmo autor, a diferença específica dentro do género instituto público
residiria no carácter subsidiário ou complementar da fundação relativamente às
atribuições de outro ente público.
Indicava como exemplos de fundações públicas o Fundo de Abastecimento, a
Fundação Nacional para a Alegria no Trabalho e os Serviços Sociais das Forças
Armadas. E apontava a existência de outras fundações com relevância para o direito
administrativo – mas, valha a verdade, tratava-as de uma forma algo confusa, sem a
clareza e a linearidade habituais do seu pensamento.
Distinguia assim, ou parecia distinguir, as fundações com fins de assistência, que
qualificava como «pessoas colectivas de utilidade pública administrativa local», os
institutos de utilidade local, que qualificava como «fundações particulares», e as
fundações de utilidade pública administrativa geral. As relações entre estas espécies –
se de espécies se tratava – não eram claras, salvo, evidentemente, quando a distinção
assentava no âmbito, geral ou local, das operações da fundação.
A todas considerava, porém, pessoas coletivas de direito privado.
No pensamento de DIOGO FREITAS DO AMARAL, tal como expresso nas três primeiras
edições do Volume I do seu Curso de Direito Administrativo, a fundação pública era,
simplesmente, uma fundação que reveste a natureza de pessoa coletiva pública.
Exemplificava com o Instituto Nacional de Garantia Agrícola e os serviços sociais dos
ministérios.
Claro que também este autor conhecia outras fundações naquilo a que podemos
chamar o universo público: a sua distinção essencial fazia-se entre fundações de
utilidade pública e fundações de utilidade pública administrativa, sendo umas e outras
pessoas coletivas privadas. Os exemplos dados eram a Fundação Calouste Gulbenkian e
a Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento.
A Lei n.º 3/2004 – a lei-quadro dos institutos públicos, já referida – utilizou a
expressão serviços e fundos para definir o respetivo âmbito de aplicação subjetivo.
Surgiu então a oportunidade para abandonar definitivamente a terminologia fundações
públicas, que era obscura e propensa a equívocos.
No que respeitava às fundações criadas por entidades públicas segundo a forma do
direito privado – de que tinha sido controverso exemplo a famosa Fundação para a
Prevenção Rodoviária – VITAL MOREIRA suscitou dúvidas, quanto a nós justificadas,
relativamente ao reconhecimento ao Estado de um poder de fundar – na falta de
habilitação legal específica, como sucedia então para os municípios, nos termos da
alínea l) do n.º 2, do artigo 53.º da Lei n.º 169/99, de 18 de Setembro.
85
Cfr. Manual de Direito Administrativo, cit., p. 376.
75
Seja como for, outros respeitados administrativistas, como RUI MACHETE, não
partilhavam de tais dúvidas, aceitando sem reservas o poder de fundar do Estado. E a
verdade é que tais fundações existiam, sendo exemplos a Fundação do Centro Cultural
de Belém, a Fundação Casa da Música e outras.
A Lei n.º 24/2012 veio inovar nesta matéria. A lei, que surgiu no seguimento da
Resolução do Conselho de Ministros n.º 79-A/2012, de 25 de setembro, distingue, no
Anexo II, três espécies de fundações:
• públicas de direito privado;
• público-privadas;
• privadas.
Surpreendentemente, esta “classificação” não corresponde totalmente à classificação
da lei que a própria resolução refere, sendo que a espécie fundações público-privadas
carece de existência legal.
Mas passemos à lei.
Desde logo, parece uma boa ideia ter as fundações todas reguladas no mesmo
diploma: facilita o conhecimento da lei e a sua aplicação.
Em segundo lugar, foram eliminadas as dúvidas quanto ao poder de fundar do
Estado: existe agora uma norma de habilitação genérica. Goste-se ou não, o artigo 50.º
da nova lei atribui expressamente ao Estado, às regiões autónomas e aos municípios o
poder de instituir fundações.
Mas a grande novidade da lei nesta matéria é a reformulação do conceito de
fundação pública: nos termos do artigo 4.º, a fundação pública passou a constituir um
género com duas espécies – a fundação pública de direito público e a fundação pública
de direito privado.
Se a fundação pública de direito público corresponde à antiga fundação pública, já a
designação fundação pública de direito privado abrangeria as antigas fundações
instituídas por iniciativa pública, mas destituídas, pelo menos para a doutrina
administrativa dominante, de personalidade jurídica pública.
A diferença entre umas e outras deixou de residir no direito aplicável, para passar a
assentar na natureza do ato de instituição – ato jurídico público, para as fundações
públicas de direito público, e ato jurídico privado, para as fundações públicas de direito
privado. Dito isto, parece duvidoso que a designação seja a mais feliz.
Não custa supor que na origem desta alteração conceptual deverá estar o pensamento
de DIOGO FREITAS DO AMARAL: é que, traduzindo uma evolução de um ponto de partida
estritamente jurídico-formal – a fundação pública é pública porque é uma pessoa
coletiva pública e só por isso – para uma conceção mais substancialista – a fundação
pública é pública porque se integra no “universo público” –, podemos vislumbrar um
percurso análogo ao que aquele Autor fez relativamente ao conceito de empresa pública.
Também aí, como se observou noutro local86, DIOGO FREITAS DO AMARAL evoluiu de
uma conceção essencialmente jurídico-formal de empresa pública – a empresa pública
como espécie de pessoa coletiva pública, que nem sequer era a sua original, mas
assentava no direito positivo da época –, para uma conceção de base económica.
Interessante é também a análise dos indicadores de “publicização” da fundação
instituída por ato jurídico privado, para o fim de comprovar a sua natureza pública.
Estas fundações serão públicas se estiverem sujeitas a influência dominante pública,
indiciada esta por um elemento material – afetação exclusiva ou maioritária dos bens
86
Cfr. JOÃO CAUPERS, «O conceito de empresa pública no pensamento de Diogo Freitas do Amaral»,
in Em Homenagem ao Professor Doutor Diogo Freitas do Amaral, Coimbra, 2010, p. 78.
76
que integram o património financeiro inicial da fundação – ou pessoal – o direito de
designar ou destituir a maioria dos titulares do órgão de administração da fundação
por parte de uma entidade pública.
Será difícil não vislumbrar nesta formulação a influência do direito da União
Europeia, via Código dos Contratos Públicos: veja-se a redação do artigo 2.º, n.º 2,
alínea ii) deste código, ao determinar quem é entidade adjudicante de contratos
públicos, e a noção de organismo de direito público relevante para efeitos de aplicação
das regras de contratação pública da União.
Como corolário desta alteração, todas as fundações agora consideradas públicas
passam a estar sujeitas aos mesmos princípios, todos típicos do universo público (cfr.
artigo 48.º) e a idêntico regime jurídico, de natureza jurídico-pública (cfr. artigo 52.º, n.º
1).
Ainda em consequência desta alteração, todas as fundações públicas estaduais estão
agora sujeitas aos poderes de tutela e superintendência da entidade instituidora, «nos
termos e condições previstos na lei-quadro dos institutos públicos» (cfr. artigo 55.º, n.º
1).
Relativamente às fundações públicas de direito privado, a mais relevante novidade
consta logo da primeira disposição do capítulo que lhes é dedicado – o n.º 1 do artigo
57.º: é proibida a sua criação.
Não pode deixar de considerar-se extraordinário que a primeira disposição legal
reguladora de uma espécie organizativa cujo regime é modificado – de forma inovadora,
diga-se – seja a que proíbe a respetiva criação87.
38.9. Passemos às associações privadas criadas por iniciativa pública, a que não
colocamos reservas semelhantes às que se colocaram às fundações – muito embora,
menos compreensivelmente, o n.º 1 do já citado artigo 13.º da Lei n.º 3/2004 também
proíba os institutos públicos de nelas participarem.
Encontramos duas espécies.
A primeira é constituída pelas associações integralmente constituídas por entidades
públicas:
• as associações representativas de municípios e freguesias, previstas e reguladas na
Lei n.º 54/98, de 18 de Agosto;
• as associações de divulgação científica, de que é exemplo a Associação Ciência
Viva de Estremoz, criada por iniciativa conjunta de cinco entidades públicas – a
Fundação para a Ciência e Tecnologia, a Universidade de Évora, o Município de
Estremoz, a Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Alentejo e a
Direção Regional de Educação do Alentejo88;
• a ADENE – Agência para a Energia, criada pelo Decreto-Lei n.º 223/2000, de 9 de
Setembro, e modificada pelo Decreto-Lei n.º 314/2001, de 10 de Dezembro, que tem
como associadas principais a Direção-Geral de Energia e Geologia, a Direção-Geral das
Atividades Económicas e o Laboratório Nacional de Energia e Geologia89.
A segunda espécie é integrada pelas associações de entidades públicas e privadas, de
que constituem exemplo os centros tecnológicos, regulados pelo Decreto-Lei n.º
249/86, de 25 de Agosto, que reúnem, sob o guarda-sol associativo, empresas
87
Sobre o absurdo desta norma, cfr. DIOGO FREITAS DO AMARAL, Curso..., cit., Volume I, p. 318.
88
Com a interessante particularidade de estes dois últimos serviços do Estado carecerem de
personalidade jurídica.
89
Os dois primeiros serviços também não dispõem de personalidade jurídica.
77
industriais e respetivas associações e entidades públicas de âmbito estadual (cfr. artigo
1.º, n.º 2).
78
próximas daquelas, sem prejuízo da eficiência económica e do respeito pelos princípios
da igualdade e da solidariedade entre os cidadãos.
Em termos práticos, dir-se-á que, em princípio, tudo quanto puder ser eficazmente
decidido e executado ao nível autárquico não deve ser atribuído ao Estado e aos seus
agentes.
40.2. O quadro legal das autarquias locais encontra-se hoje quase codificado,
integrando, para além dos artigos 235.º e seguintes da CRP, a Lei n.º 75/2013, de 12 de
setembro, na redação resultante da Lei n.º 69/2015, de 16 de julho, que aprovou o
Regime Jurídico das Autarquias Locais (RJAL) – sobrevivendo ainda alguns preceitos
da Lei n.º 169/99, de 18 de Setembro.
De fora deste regime ficaram o Estatuto dos Eleitos Locais, constante da Lei n.º
29/87, de 30 de Junho, na redação resultante da Lei n.º 83-C/2013, de 31 de dezembro, e
o regime da tutela do Estado sobre as autarquias locais, que integra a Lei n.º 27/96, de 1
de Agosto, na redação resultante do Decreto-Lei n.º 214-G/2015, de 2 de outubro.
Pode ainda ter interesse considerar o regime jurídico da reorganização administrativa
territorial autárquica, aprovado pela Lei n.º 22/2012, de 30 de maio, e a regulamentação
da reorganização administrativa do território das freguesias, aprovada pela Lei n.º 11-
A/2013, de 28 de janeiro.
79
associar-se-iam, dando origem a espaços mais amplos, dotados de maior massa crítica,
supostamente capazes de uma outra dinâmica política, social e económica.
Aquelas leis viriam a ser substituídas pela Lei n.º 45/2008, de 27 de Agosto – que
estabeleceu o novo regime jurídico do associativismo municipal – entretanto revogada.
A lei atual agrupou sob a designação de entidades intermunicipais as áreas
metropolitanas, as comunidades intermunicipais e as associações de freguesias e de
municípios para fins específicos, conservando-lhes a mesma natureza, isto é, não são
autarquias locais, mas sim associações públicas de autarquias locais (cfr. artigos 63.º e
segs. da Lei n.º 75/2013).
O município é a única autarquia local portuguesa com uma existência histórica
estável; é mesmo o único ponto de referência organizativo da administração local do
nosso País, muitos municípios portugueses são anteriores ao próprio Estado.
A freguesia é a autarquia local de expressão territorial mais reduzida. Oriunda da
paróquia do direito canónico, integra uma rede inframunicipal que cobre a totalidade do
território nacional, constituindo a dupla representação autárquica – município e
freguesia –, uma situação singular na Europa.
90
Referimo-nos, evidentemente, à versão original, pública e publicada, e não às múltiplas alterações
que terão, parece, sido introduzidas nesse texto.
91
O Tribunal Constitucional, no Acórdão n.º 86/2013, considerou não ser contrário à Constituição a
obrigatoriedade imposta pelo novo regime jurídico da reorganização administrativa territorial autárquica à
reestruturação das freguesias da Região Autónoma dos Açores.
80
estranhar-se a forma como o legislador nacional aplicou as determinações do
Memorando de Entendimento.
A Lei n.º 11-A/2013 concretizou a redução do número de freguesias: em resultado
dos processos de agregação, desapareceram mais de mil freguesias.
Note-se que as freguesias resultantes da agregação se designam união das freguesias
e que conservam os nomes das freguesias agregadas – o que constitui mais uma
curiosidade do processo de reorganização93.
92
Recorde-se que o governo de Passos Manuel extinguiu, de uma só vez, em meados do século XIX,
mais de quatrocentos municípios. Em consequência, o município português é um dos de maior dimensão
territorial média da Europa.
93
Uma visão muito crítica desta reforma pode encontrar-se em CÂNDIDO DE OLIVEIRA, «A reforma
territorial e funcional das freguesias», in A Reforma do Estado e a Freguesia, Braga, 2013, pp. 77 a 114.
94
Existe, sim, um regime jurídico das associações públicas profissionais, que constituem o grupo mais
importante dentro das associações públicas (Lei n.º 2/2013, de 10 de janeiro).
95
Sobre o conceito de consórcio administrativo, cfr. VITAL MOREIRA, Administração Autónoma e
Associações Públicas, cit., pp. 393 a 395.
96
Cfr. Curso..., cit., Volume I, p. 319.
97
Cfr. As associações públicas no direito português, Lisboa, 1985, p. 24.
81
autogoverno e auto-administração», não as inclui na administração autónoma,
observando que a lei as não qualifica como associações públicas98.
MARCELO REBELO DE SOUSA sustenta que as universidades públicas, não sendo
qualificáveis como associações públicas, não deixam por isso de integrar a
administração autónoma99.
O Regime Jurídico das Instituições do Ensino Superior, aprovado pela Lei n.º
62/2007, de 10 de Setembro, não clarificou – nem tinha de clarificar – esta divergência
doutrinária. O legislador limitou-se a considerar as universidades públicas pessoas
coletivas de direito público, admitindo igualmente que possam revestir a forma jurídica
de fundações públicas com regime de direito privado (artigo 9.º, n.º 1).
Com exceção das que optarem por este estatuto jurídico, mandou aplicar às
universidades públicas, a título subsidiário, a leis aplicáveis às «demais pessoas
colectivas de direito público de natureza administrativa, designadamente a lei-quadro
dos institutos públicos» (artigo 9.º, n.º 2).
Parece razoável, apesar de a ideia não nos agradar, concluir que a lei, não
qualificando as universidades públicas propriamente como institutos públicos, quis
integrá-las na administração indireta do Estado – aquelas que não optem pelo estatuto
fundacional, bem entendido –, o que, de resto, corresponde à tendência há muito
dominante no Ministério das Finanças.
42. Os órgãos
98
Cfr. Administração Autónoma e Associações Públicas, Coimbra, 1997, p. 368.
99
Cfr. Lições de Direito Administrativo, Lisboa, 1999, pp. 307 a 311.
100
Note-se que as associações públicas também desenvolvem atividade de autorregulação.
101
Sobre as federações desportivas, cfr. VITAL MOREIRA, Administração Autónoma e..., cit., pp. 303 a
305.
102
Sobre as comissões vitivinícolas, cfr. VITAL MOREIRA, Auto-regulação Profissional e
Administração Pública, Coimbra, 1997, pp. 381 a 385.
103
Cfr. o n.º 1 do artigo 372.º do Código dos Valores Mobiliários.
82
organizar a prossecução de interesses comuns a várias pessoas. Assim, não possuem
vontade própria, que é um atributo dos seres humanos.
Para ficcionar esta vontade as pessoas coletivas dispõem de órgãos. Os órgãos são
centros de imputação de poderes funcionais, são eles que manifestam a vontade que o
direito manda imputar às pessoas coletivas.
Nos pontos que se seguem analisar-se-á o regime aplicável aos órgãos da
Administração Pública tal como esta é definida no CPA – isto é, integrando apenas os
órgãos do Estado e das regiões autónomas que exercem funções administrativas a título
principal, as autarquias locais e suas associações e federações de direito público, as
entidades administrativas independentes, os institutos públicos e as associações públicas
(cfr. artigos 2.º e 20.º do CPA).
Os órgãos podem classificar-se de várias maneiras.
a) Usando como critério o número de titulares, temos:
• órgãos singulares;
• órgãos colegiais;
b) Com base no critério do tipo de funções exercidas, encontramos:
• órgãos ativos – que decidem ou executam as decisões;
• órgãos consultivos – que dão opiniões;
• órgãos de controlo – que fiscalizam.
c) Com recurso ao critério da forma de designação, existem:
• órgãos representativos – que são eleitos;
• órgãos não representativos – que são designados por outros processos, como a
nomeação e a cooptação.
83
A marcação é a fixação da data e hora em que a reunião terá lugar.
A convocação é a notificação feita a todos e a cada um dos membros acerca das
reuniões a realizar, na qual são indicados, além do dia e da hora da reunião, o local desta
e a respetiva ordem do dia, também chamada “ordem de trabalhos” ou “agenda”.
Tanto as reuniões como as sessões podem ser ordinárias, se se realizam
regularmente em datas ou períodos certos, ou extraordinárias, se são convocadas
inesperadamente fora dessas datas ou desses períodos (artigos 23.º e 24.º).
De notar que a lei estabelece uma proibição absoluta de tratar de assuntos não
incluídos na ordem de trabalhos, quando se trate de reunião extraordinária; já quando se
trate de reunião ordinária, essa proibição pode ser ultrapassada pelo voto favorável de
um mínimo de dois terços dos membros do órgão (artigo 26.º, n.º 2).
Note-se também que a violação das disposições sobre convocação de reuniões gera a
ilegalidade das deliberações tomadas, salvo se todos os membros do órgão
comparecerem à reunião e nenhum suscitar oposição à sua realização (artigo 28.º do
CPA).
Para que um órgão colegial possa desempenhar as suas funções é necessário que um
certo número mínimo dos seus membros se encontre presente: este número recebe a
designação de quórum de reunião e consiste, regra geral, na maioria do número legal
dos membros do órgão (“mais de metade”).
Os órgãos administrativos que não têm assento constitucional, porém, podem reunir,
em segunda convocatória, com a presença de apenas um terço dos seus membros, em
número não inferior a três (artigo 29.º do CPA e 116.º, n.º 2, da CRP).
Um órgão colegial – e nunca um órgão singular – decide os seus assuntos,
deliberando. Existem dois grandes métodos para um órgão colegial deliberar:
a) No método da votação – também designada escrutínio –, o mais utilizado nos
órgãos colegiais da Administração Pública, contam-se as expressões das vontades
individuais dos membros do órgão (uns ganham, outros perdem);
b) No método do consenso não se ponderam as vontades individuais dos membros
do órgãos; procura-se o sentido predominante da vontade do órgão, através de uma
espécie de assentimento tácito informal em torno de uma determinada solução, cabendo
ao presidente “interpretar” tal sentido (não há vencedores, nem vencidos).
Quando se utilize o método da votação, há que ter em consideração que nenhuma
votação pode ter lugar sem que previamente seja proporcionada a oportunidade de
discussão do assunto, por todos os membros presentes. Passado um período razoável, a
maioria dos membros do órgão podem, a requerimento de qualquer deles, dar a
discussão por encerrada, passando-se imediatamente à votação.
Salvo determinação da lei em contrário, nos órgãos administrativos colegiais
consultivos – e nos deliberativos, quando no exercício de funções consultivas – não são
permitidas abstenções (artigo 30.º do CPA).
Esta proibição é compreensível, na medida em que, tratando-se de órgão cuja razão
de ser é a emissão de opiniões sobre os assuntos que lhe são submetidos, a recusa em
assumir uma posição sobre eles desvirtua aquela razão de ser.
Do quórum de reunião, de que se falou já, se distingue o quórum de deliberação,
que consiste no número mínimo de votos exigidos para que um órgão colegial possa
deliberar validamente sobre um certo assunto. O quórum de deliberação é superior ao
quórum de reunião quando a lei exija, para serem tomadas certas deliberações mais
importantes para a pessoa coletiva pública de que o órgão faz parte, um número de
membros presentes mais elevado do que o que perfaz o quórum de reunião. Quando tal
exigência não é feita, então o quórum de deliberação é igual ao quórum de reunião.
84
Quando o órgão colegial delibera através de votação, esta pode revestir duas formas
(artigo 31.º):
a) Na votação nominal, também designada votação pública, cada votante denuncia o
sentido do deu voto perante os restantes, através de um meio físico – levantando-se,
erguendo um braço, etc. – ou de um meio eletrónico – por exemplo, uma luz que se
acende num painel;
b) Na votação secreta, ou escrutínio secreto, o sentido de voto de cada membro do
órgão não se torna conhecido dos demais, sendo o anonimato da votação garantido
através do recurso à introdução de boletins de voto ou de esferas brancas e negras em
urna, ou, também, por método eletrónico apropriado.
A regra geral na administração pública portuguesa é a da votação nominal; todavia,
devem ser votadas por escrutínio secreto as deliberações que envolvam a apreciação de
comportamentos ou das qualidades de qualquer pessoa – por exemplo, a aplicação de
uma sanção disciplinar –, conforme determina o artigo 31.º, n.º 2, do CPA.
O apuramento do resultado da votação é transformado na manifestação de vontade
do órgão colegial por via de um de vários métodos, que se indicam por ordem crescente
de exigência:
a) A maioria relativa ou simples consiste em apurar a vontade do órgão fazendo
coincidir esta com a expressa pelos votantes que se pronunciaram no sentido que
recolheu mais votos;
b) A maioria absoluta identifica a vontade do órgão com aquela que foi expressa
por mais de metade dos votantes;
c) A maioria qualificada faz corresponder a vontade do órgão à que foi expressa por
uma certa fração dos votantes superior à maioria absoluta – por exemplo, dois terços,
três quartos, três quintos, etc.;
d) A unanimidade exige para a formação da vontade do órgão a totalidade dos votos
favoráveis dos membros votantes.
A regra geral aplicável na Administração Pública portuguesa é, na falta de lei
especial, a da maioria absoluta (artigo 32.º, n.º 1, do CPA).
Esta, porém, será substituída pela maioria relativa no caso de falhar a obtenção
daquela em duas votações sucessivas (artigo 32.º, n.º 2).
Uma circunstância sempre possível numa votação é a ocorrência de um empate, ou
seja, uma situação em que duas ou mais propostas recolheram o mesmo número de
votos. Nas votações nominais, a forma mais usual de resolver o problema é o recurso ao
presidente do órgão.
Este recurso pode configurar duas situações, ambas previstas no n.º 1 do artigo 33.º
do CPA:
a) O voto de qualidade consiste em conferir uma ponderação, um peso especial ao
voto do presidente, atribuindo vencimento àquela das propostas empatadas que obteve o
voto deste;
b) O voto de desempate é diferente, pois, ao contrário do anterior, o presidente do
órgão colegial não dispõe de direito de voto salvo se ocorrer um empate; o seu voto
somente é utilizado para provocar o desempate.
Resta referir a “morte” do órgão. Trata-se, evidentemente, de uma força de
expressão, visto que os órgãos da Administração Pública não podem, por vontade
própria, deixar de existir: só a lei pode extingui-los. Quem pode “desaparecer”
juridicamente são os titulares dos órgãos.
A distinção fundamental a fazer, nesta matéria, opõe os órgãos colegiais eleitos aos
que o não são.
85
Os primeiros podem ser dissolvidos, consistindo a dissolução no ato que põe termo
coletiva e simultaneamente aos mandatos dos titulares do órgão – o ato que faz cessar o
mandato de um ou vários membros de um órgão colegial eleito considerados
individualmente designa-se por perda de mandato.
Se os titulares do órgão colegial forem nomeados e não eleitos, o ato que põe termo
coletivamente às suas funções recebe a designação de demissão – é o que sucede com o
Governo.
104
Sobre o sistema de governo municipal, cfr. JOÃO CAUPERS «Governo municipal – Na fronteira da
legitimidade com a eficiência», in THEMIS. Revista da Faculdade de Direito da Universidade Nova de
Lisboa, Ano V, n.º 8, 2004, pp. 251 a 281.
105
Diferentemente de CÂNDIDO DE OLIVEIRA, continuamos a entender que pode muito bem utilizar-se
a expressão serviço público em sentido puramente organizativo. Todavia, reconhecemos que seria
preferível utilizar a expressão “organização pública” – cfr. «A Noção de Serviços Públicos na Doutrina
Portuguesa», in Scientia Iuridica, n.º 295, Tomo LII, Janeiro – Abril de 2003. Afastamo-nos também da
nomenclatura proposta MARCELLO CAETANO, que designava por serviços administrativos a realidade a
que chamamos serviços públicos, reservando esta expressão para uma espécie de serviços
administrativos, aqueles cujo objeto essencial consiste em produzir bens destinados a serem prestados aos
indivíduos singularmente – Manual de Direito Administrativo, cit., Volume I, pp. 237 e segs.
86
Em 1921 surgiu uma distinção, passando a considerar-se que existiam duas espécies
de serviços públicos, fundando-se a distinção na natureza das atividades a que se
dedicavam: o serviço público tradicional, de natureza administrativa, e o serviço público
de carácter industrial ou comercial, que estava encarregado da gestão de uma atividade
similar à de uma empresa privada.
Posteriormente, a ideia de exclusivo foi-se perdendo, sob pressão de fatores variados,
todos operando no mesmo sentido: o progresso tecnológico acelerado, a predominância,
até há pouco, de correntes de pensamento neoliberais – às quais a simples ideia de
exclusivo desperta hostilidade, favoráveis, como têm sido, ao alargamento da
concorrência, à desregulamentação e à privatização – e, ainda, a influência do direito da
União Europeia, no âmbito do qual foi-se consolidando o conceito de serviço de
interesse económico geral, de alguma forma em substituição do conceito francês de
serviço público de carácter industrial ou comercial106.
Não é, naturalmente, este o sentido que atribuímos à expressão. Na verdade,
utilizaremos a expressão serviços públicos como sinónimo daquela outra já referida,
organizações públicas: estruturas organizativas encarregadas de preparar e executar
as decisões dos órgãos das pessoas coletivas que prosseguem uma atividade
administrativa pública.
43.4. A Lei n.º 4/2004 constitui importante base de estudo sobre os serviços públicos,
valendo a pena proceder à sua análise107.
106
Cfr., a este propósito, CARLOS FERREIRA DE ALMEIDA, «Serviços públicos, contratos privados»,
separata da obra Estudos em Homenagem à Professora Doutora Isabel de Magalhães Collaço, Volume
II, Coimbra, pp. 117-119; e VITAL MOREIRA, «Regulação económica, concorrência e serviços de interesse
geral», in Estudos de Regulação Pública I, Coimbra, 2004, p. 550.
107
É ainda de ter em conta que, na esteira deste diploma legal, foi publicado o Decreto-Lei n.º
200/2006, de 25 de Outubro, que regula os procedimentos de reorganização das administrações direta e
indireta do Estado. Posteriormente, o Governo fez publicar o Decreto-Lei n.º 276/2007, de 31 de Julho,
hoje alterado pelo Decreto-Lei n.º 32/2012, de 13 de fevereiro, que regula a inspeção dos serviços que
integram estas administrações.
87
Respeitando a nomenclatura constitucional [cfr. artigo 199.º, alínea d), da
Constituição], a lei integra na administração direta do Estado «os serviços centrais e
periféricos que, pela natureza das suas competências e funções, devam estar sujeitos ao
poder de direção do respetivo membro do Governo» (n.º 1 do artigo 2.º). E, para que
não restem dúvidas, esclarece que, consideradas as respetivas funções, encontram-se
naquelas condições dois tipos de serviços:
a) Aqueles que operam no domínio do exercício de poderes de soberania, autoridade
e representação política do Estado;
b) Aqueles que desempenham tarefas de estudo e conceção, coordenação, apoio e
controlo ou fiscalização de outros serviços (cfr. n.º 2 do artigo 2.º).
Os serviços da administração direta do Estado distinguem-se, de acordo com a sua
função principal, em:
a) Executivos;
b) De controlo, auditoria e fiscalização;
c) De coordenação.
Os serviços executivos (cfr. artigos 13.º e 14.º da Lei n.º 4/2004) são aqueles que
asseguram a execução das políticas públicas do Governo no âmbito de cada ministério.
De acordo com o âmbito territorial, denominam-se direções-gerais (âmbito nacional ou
continental) ou direções regionais (quando são periféricos).
Os serviços de controlo, auditoria e fiscalização desempenham, com carácter
permanente, funções de acompanhamento e fiscalização (cfr. artigos 15.º e 16.º da Lei
n.º 4/2004). As inspeções-gerais são os exemplos mais comuns destes serviços:
Inspeção-Geral de Finanças, Inspeção-Geral da Administração Interna, Inspeção-Geral
das Atividades em Saúde, etc.
Os serviços de coordenação desenvolvem atividades tornadas cada vez mais
essenciais pela complexidade crescente da organização administrativa pública,
potenciadora de lacunas, redundâncias e desperdícios (cfr. artigo 17.º da Lei n.º 4/2004).
Sem um permanente empenho na articulação das atividades dos diferentes serviços não
é possível conferir a indispensável unidade à ação administrativa pública.
43.5. A Lei n.º 4/2004 regula também a organização interna dos serviços. Muito
embora se trate de matéria mais do domínio da ciência da administração do que da
ciência do direito administrativo, vale a pena chamar a atenção para um aspeto.
Tradicionalmente, a organização dos serviços administrativos obedecia ao chamado
modelo hierárquico. Este, representado graficamente por uma pirâmide, apresentava no
topo a direção-geral, que se subdividia em direções de serviços, que se subdividiam em
divisões, que, por sua vez, podiam ainda subdividir-se em repartições e secções.
A nova lei veio a consagrar duas possibilidades, que não tinham previsão genérica,
muito embora já existissem em leis orgânicas avulsas:
• por um lado, a ideia – muito louvável, pelo que representa de flexibilidade
acrescida – de que somente as direções de serviços são de existência rígida, podendo as
unidades funcionais de nível inferior ser criadas, modificadas ou extintas por simples
despacho do dirigente máximo do serviço (cfr. artigo 21.º, n.ºs 2 e 5);
• por outro, uma alternativa ao modelo hierárquico, a chamada estrutura matricial,
que bem pode considerar-se o embrião de uma Administração Pública customer
oriented, isto é, voltada para as necessidades dos cidadãos e agrupada em torno da
concretização de projetos bem delineados, concebidos e executados por equipas
multidisciplinares (cfr. artigo 22.º, n.º 1).
88
A estes dois vetores de uma acrescida adaptabilidade da Administração Pública à
rápida transformação das necessidades coletivas dos cidadãos acresce ainda um terceiro:
a previsão da criação de estruturas administrativas de carácter efémero – entre nós
habitualmente designadas por unidades de missão –, destinadas a assegurar tarefas de
carácter temporário que não possam ser asseguradas pelos serviços existentes (cfr.
artigo 28.º, n.º 1).
Atribuições são os fins que a lei comete às pessoas coletivas; competências são os
poderes jurídicos de que os órgãos de uma pessoa coletiva dispõem para prosseguirem
as atribuições desta; missões são as tarefas desenvolvidas pelos diversos serviços
públicos.
108
VERA EIRÓ entende que é possível que o legislador tenha ido longe demais ao não estabelecer
qualquer limitação a este dever de remessa oficiosa. Esta norma parece pressupor que os órgãos da
Administração Pública conhecem todas as competências atribuídas a outros órgãos – por exemplo, uma
junta de freguesia no Algarve haveria de ter de saber que determinado requerimento deveria ser
apresentado no Ministério da Educação, ou numa determinada unidade orgânica da Universidade do
Porto. O legislador deixou efetivamente por tratar as situações, razoáveis, em que o órgão incompetente
desconhece, desculpavelmente, qual é o órgão competente para conhecer de determinada matéria – cfr. a
crítica formulada por ALEXANDRE SOUSA PINHEIRO e outros, Questões Fundamentais para a Aplicação do
CPA, Coimbra, 2016, p. 109.
89
A competência dos órgãos administrativos pode ser fixada em função de cinco
critérios: a matéria, a hierarquia, o valor, o território e o tempo.
De acordo com o artigo 37.º, n.º 1, do CPA, a competência fixa-se no momento em
que se inicia o procedimento administrativo.
90
b) O poder de supervisão, que se consubstancia na faculdade de confirmar, revogar,
anular, suspender, modificar ou substituir os atos do subordinado; de notar que se o
subordinado dispuser de competência exclusiva sobre a matéria, o superior hierárquico
não pode modificar nem substituir o ato; mesmo a revogação, a anulação e a suspensão
somente são possíveis a pedido dos interessados, isto é, daqueles que foram afetados
pelo ato – e não por iniciativa do superior hierárquico (cfr. artigos 169.º, n.ºs 2 e 3, e
197.º, n.º 1, do CPA);
c) O poder disciplinar, que se concretiza através da aplicação de sanções
disciplinares.
47.4. Entendemos que a lei não concede ao subordinado qualquer poder de controlo
da legalidade das ordens recebidas do superior hierárquico. Há, porém, quem sustente
que «o trabalhador deve verificar a legalidade da ordem e, se a julgar ilegal, não a
cumprir...»109.
Este entendimento contraria a norma legal, que apenas atribui ao subordinado a
faculdade de reclamar do superior a confirmação por escrito da ordem recebida, não lhe
conferindo qualquer poder de optar entre o incumprimento e a reclamação.
109
Cfr. PAULO VEIGA E MOURA, Estatuto Disciplinar dos Trabalhadores da Administração Pública,
Coimbra, 2009, p. 64; cfr. também pp. 50 a 56.
91
Esta é, de resto, a diferença essencial entre o regime da ordem supostamente ilegal e
o regime da ordem que envolva a prática de um crime: neste caso, sim, o subordinado
não deve obedecer.
48. A supervisão
49.2.1. Para poder proceder a uma delegação – como para praticar qualquer outro ato
jurídico público – é indispensável que exista uma regra atributiva de competência, neste
caso, competência para a prática do ato de delegação.
É esta regra que se designa lei de habilitação.
O CPA contém, no n.º 3 do artigo 44.º, uma norma de habilitação geral para a prática
de atos de administração ordinária no âmbito da hierarquia administrativa.
110
Cfr. DIOGO FREITAS DO AMARAL, Curso..., cit., Volume I, p. 693.
92
coletivas diferentes: delegações de competências da câmara municipal nas juntas de
freguesia (cfr. artigos 37.º, n.º 1, e 66.º da Lei n.º 169/99) e delegações de membros do
Governo em órgãos diretivos de institutos públicos.
O RJAL generalizou esta possibilidade, admitindo um vasto leque de delegações de
poderes intersubjetivas: delegações de órgãos do Estado nos órgãos das autarquias
locais e das entidades intermunicipais, delegações dos órgãos dos municípios nos
órgãos das freguesias e das entidades intermunicipais (cfr. artigo 117.º, n.º 2).
Mas a sua natureza alterou-se substancialmente, assumindo agora carácter contratual,
sendo as delegações concretizadas através da outorga de contratos interadministrativos
(artigo 120.º, n.º 1)111.
No que respeita às delegações de poderes de membros do Governo em órgãos
diretivos de institutos públicos, se recordarmos o que noutro ponto se disse quanto ao
significado da personalidade coletiva dos entes a que chamámos instrumentais,
facilmente se compreenderá que a previsão da delegação nestes de competências de
órgãos do Estado resulta de eles não serem tratados como pessoas coletivas autónomas,
mas como serviços integrantes da organização estadual.
111
Aos quais, como sublinha ANDRÉ SALGADO DE MATOS, não é aplicável o regime jurídico inscrito no
CPA – «A delegação de poderes», in Comentários ao novo Código do Procedimento Administrativo, 2.ª
edição, Lisboa, 2015, p. 305.
112
Cfr. DIOGO FREITAS DO AMARAL, Curso..., cit., Volume I, p. 698.
93
b) A indicação da norma que atribui o poder delegado e da que habilita o órgão
competente a delegar;
c) A publicação.
Note-se, antes de mais, que existem poderes indelegáveis: uns, porque a lei não
permite a sua delegação; outros indelegáveis por natureza, como sucede com o poder
disciplinar sobre o subordinado delegado – não é, evidentemente, concebível o exercício
do poder disciplinar sobre si próprio [cfr. alínea b) do artigo 45.º do CPA].
No que respeita ao conteúdo da delegação, existem, de acordo com o artigo 47.º do
CPA, dois modos de delimitá-lo: podem indicar-se as matérias em que o delegado pode
tomar decisões (gestão de pessoal, por exemplo); ou podem especificar-se os poderes
jurídicos que ele fica habilitado a exercer (o poder de emitir certas licenças, também por
exemplo).
De notar ainda ser entendimento pacífico que a delegação deve indicar as matérias ou
especificar os poderes de forma positiva, não sendo admissível que o faça
negativamente ou por exclusão – “todas as matérias em que o superior hierárquico pode
tomar decisões ou todas as suas competências, com exceção de: ...”.
49.3.4. Subdelegações
94
A regra geral nesta matéria é de que o ato do delegado possui as mesmas
características que teria se tivesse sido praticado pelo delegante.
No caso de o delegante ser superior hierárquico do delegado, os atos deste podem ser
objeto de recurso hierárquico para aquele; se o delegante não for superior hierárquico do
delegado, existirá recurso hierárquico impróprio, com fundamento no poder de revogar
do delegante.
Posteriormente voltar-se-á a esta problemática.
113
Vale a pena conhecer uma espécie de “terceira via” original, a defendida por ANDRÉ SALGADO DE
MATOS, no seu texto «A natureza jurídica da delegação de poderes», incluído nos Estudos em homenagem
do Prof. Doutor Sérvulo Correia, Volume II, Coimbra, 2010, pp. 119 a 160. O Autor considera que a
delegação de poderes é um «acto de duplo efeito competencial», atribuindo simultaneamente uma
competência ao delegado – relativa à prática de certos atos – e ao delegante – para orientar, avocar,
substituir, revogar os atos praticados pelo delegado. Muito embora se trate de um texto estimulante, não
sufragamos a construção proposta: para quem acusa a tese da autorização de um “artificialismo extremo”,
não deixa de impressionar que considere, em apoio da sua tese, «a revogação da delegação como um
poder atribuído pela própria delegação» – presumivelmente pelo delegante a si próprio (p. 152).
95
Para quem, como nós, sustenta que elemento da delegação é, não o ato (expresso) de
delegação, mas a relevância jurídica (por ação ou omissão) da vontade do delegante, é
mais lógico estar com aqueles que entendem que a lei confia os poderes conjuntamente
ao delegante e ao delegado, operando a manifestação de vontade daquele, expressa ou
implícita, como condição legal da prática por este de atos nas matérias indicadas na lei
de habilitação. De facto, não se vê como poderia uma omissão determinar uma
transferência de poderes, fosse da sua titularidade, fosse do respetivo exercício.
52. A superintendência
96
52.1. A relação de superintendência entre duas pessoas coletivas públicas confere aos
órgãos de uma delas os poderes de definir os objetivos e orientar a atuação dos órgãos
da outra.
A relação de superintendência estabelece-se entre duas pessoas coletivas das quais
uma se encontra, em alguma medida, na dependência da outra – na maioria dos casos,
porque foi esta que criou aquela.
Os instrumentos típicos da superintendência são as diretivas e as recomendações:
aquelas impõem objetivos mas deixam liberdade quanto aos meios para os atingir; estas
são opiniões, acompanhadas de um convite para agir num certo sentido.
Duas pessoas coletivas públicas podem estar simultaneamente ligadas por relações
de superintendência e de tutela: isto ocorre, designadamente, em relação às entidades
que compõem a administração instrumental do Estado; já relativamente às entidades que
integram a administração autónoma, nomeadamente as autarquias locais, somente têm
com o Estado uma relação de tutela.
52.2. Algumas leis mais recentes também regulam os poderes que se incluem na
chamada função acionista do Estado, ou seja, os poderes que uma entidade pública
exerce sobre entidades de estatuto privado integrantes da organização administrativa
pública.
É o que sucede com o Decreto-Lei n.º 133/2013, de 3 de outubro, na redação
resultante da Lei n.º 75-A/2014, de 30 de setembro, que aprovou o Regime Jurídico do
Setor Público Empresarial, e com a Lei n.º 50/2012, de 31 de agosto, na redação
resultante da Lei n.º 69/2015, de 16 de julho, que aprovou o Regime Jurídico da
Atividade Empresarial Local e das Participações Locais.
O artigo 38.º do primeiro destes diplomas concede ao Estado os poderes de
determinar as orientações da atividade empresarial e de definir os objetivos e os
resultados económicos e financeiros, para além das demais competências atribuídas ao
titular da função acionista pelo Código das Sociedades Comerciais.
Já quanto ao segundo diploma, a competência para aprovar orientações estratégicas
pertence ao órgão executivo da entidade pública participante (artigo 37.º, n.º 2).
97
d) O princípio da descentralização administrativa114 determina que os interesses
públicos que a atividade administrativa pública visa satisfazer num determinado país
não estejam somente a cargo do Estado, mas também de outras pessoas coletivas
públicas.
Para poder falar-se em verdadeira descentralização administrativa é ainda
indispensável que estas pessoas coletivas públicas tenham a sua existência
constitucionalmente assegurada, disponham de órgãos eleitos, tenham a sua esfera de
atribuições garantida por lei e não estejam sujeitas a intervenções do Estado, salvo
quanto à tutela de legalidade.
É o que sucede em Portugal com as autarquias locais, resultado da descentralização
de base territorial:
• a CRP garante a sua existência e as suas atribuições (cfr. artigos 235.º a 237.º);
• as autarquias locais dispõem necessariamente de um órgão colegial eleito (cfr.
artigo 239.º, n.ºs 1 e 2);
• o Estado apenas exerce sobre os órgãos autárquicos tutela administrativa de
legalidade (cfr. artigo 242.º, n.º 1).
Do ponto de vista jurídico, existe entre nós uma verdadeira descentralização
administrativa territorial.
O mesmo não pode afirmar-se da descentralização administrativa de base não
territorial – também conhecida por devolução de poderes: o Estado (e as outras pessoas
coletivas de população e território) não tem o dever constitucional, nem legal, de criar
institutos públicos ou empresas públicas – ou, sequer, de assegurar a continuidade
daqueles que hoje existem.
O Estado deve orientar-se no sentido da descentralização administrativa de base não
territorial (cfr. artigos 6.º, n.º 1, e 267.º, n.º 2), mas a Constituição, contrariamente ao
que ocorre com a descentralização de base territorial, não contém regras que a
assegurem. O que não deve causar admiração, considerando que institutos públicos e
entidades públicas empresariais são, como se disse, pessoas coletivas públicas
instrumentais;
e) O princípio da desconcentração recomenda, mas não impõe, que em cada pessoa
coletiva pública as competências necessárias à prossecução das respetivas atribuições
não sejam todas confiadas aos órgãos de topo da hierarquia, mas distribuídas pelos
diversos níveis de subordinados.
Esta distribuição – que tanto pode resultar diretamente da lei (desconcentração
originária) como de delegação (desconcentração derivada) – não tem a sua medida
regulada na CRP, o que significa que se trata de um princípio constitucional orientador
da organização administrativa pública cuja concretização se encontra, em larga medida,
nas mãos do legislador ordinário.
114
O conceito de descentralização administrativa, característico dos países da Europa continental,
apenas incide sobre a função administrativa. A existência de assembleias legislativas, governos e tribunais
próprios dos Estados federados ou das regiões – nas federações e nos Estados regionais – integra o
fenómeno da descentralização política, que releva do direito constitucional e não do direito
administrativo.
98
CAPÍTULO II
OS RECURSOS DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA
Leituras aconselhadas:
ANA FERNANDA NEVES, Relação jurídica de emprego público, Coimbra, 1999, pp. 21
a 27; IDEM, «O Direito da Função Pública», in Tratado de Direito Administrativo
Especial, Volume IV, Coimbra, 2010, pp. 359 a 556; ANA RAQUEL GONÇALVES MONIZ,
O Domínio Público. O Critério e o Regime Jurídico da Dominialidade, Coimbra, 2005;
IDEM, «O direito do domínio público», in Tratado de Direito Administrativo Especial,
Volume V, Coimbra, 2011, pp. 11 a 212; CLÁUDIA VIANA, «Contrato de trabalho em
funções públicas: privatização ou publicização da relação jurídica de emprego
público?», in Estudos em Homenagem do Prof. Doutor Sérvulo Correia, Coimbra,
2010, pp. 277 a 304; DIOGO FREITAS DO AMARAL, A Utilização do Domínio Público
pelos Particulares, Coimbra, 1965; FERNANDO ALVES CORREIA, «A Concessão de Uso
Privativo do Domínio Público», in Direito e Justiça – VI Colóquio Luso-Espanhol de
Direito Administrativo, pp. 101 a 116; J. J. GOMES CANOTILHO, «A utilização do domínio
público pelos particulares», in Em Homenagem ao Professor Doutor Diogo Freitas do
Amaral, Coimbra, 2010, pp. 1073 a 1086; JOÃO CAUPERS, Introdução à Ciência da
Administração Pública, Lisboa, 2002, pp. 107 a 116; JORGE PAÇÃO, «A afetação
enquanto critério de dominialidade pública», in Estudos de Direito Administrativo dos
Bens, Lisboa, 2015, pp. 262 a 279; JOSÉ MANUEL SÉRVULO CORREIA, «Defesa do
domínio público», in Francisco Salgado Zenha – Liber Amicorum, Coimbra, 2003, pp.
445 e segs.; JOSÉ PEDRO FERNANDES, «Domínio Público», in Dicionário Jurídico da
Administração Pública, Volume IV, Lisboa, 1991, pp. 166 e segs.; MARCELLO
CAETANO, Manual de Direito Administrativo, cit., Volume II, pp. 799 a 801; PAULO
VEIGA E MOURA, Estatuto Disciplinar dos Trabalhadores da Administração Pública,
Coimbra, 2009, pp. 47-48.
99
profissionalizada de funcionários públicos, coisa que o modelo de emprego não
proporciona. Em compensação, este último não favorece o “enquistamento” de pessoas
no aparelho de Estado, facilitando o controlo democrático da administração pública»115.
Este texto foi escrito em Setembro de 2002, dando conta de uma distinção clássica na
situação dos trabalhadores da Administração Pública – aqui pensando apenas nas
pessoas jurídicas públicas que a integravam.
Nessa época era clara a recondução do quadro legal português a esta dicotomia,
existindo então dois regimes possíveis para estes trabalhadores, um designado de direito
público e outro de direito privado. A opção por um ou outro deveria obedecer a
considerações relativas à natureza das necessidades que a atividade dos trabalhadores
visava satisfazer: tratando-se de necessidades permanentes e próprias dos serviços,
deveria aplicar-se o regime de direito público; caso as necessidades a satisfazer fossem
conjunturais ou pontuais, a escolha deveria ser a oposta. A diferença fundamental
residia na estabilidade do vínculo laboral, naturalmente maior no regime de direito
público.
Esta distinção foi sempre merecedora de críticas, visando sobretudo o contexto em
que se inseria.
Por isso, escreveu-se também:
«A principal modificação deveria, em nosso entender, incidir sobre uma ideia – mais
precisamente, sobre as consequências jurídicas de uma ideia: a velha ideia de que a
administração pública é um “emprego para a vida”, complementada por aquela outra de
que, devido a esse carácter “vitalício” do emprego público, não faz grande diferença
exercer melhor ou pior funções públicas: para além de tal se não reflectir na manutenção
do vínculo laboral, também não se repercute na remuneração (ninguém recompensa,
ninguém castiga).
(...) Supomos que para destruir esta ideia haveria de começar-se por, corajosamente,
flexibilizar o trabalho na administração pública, tornando a situação e o futuro de cada
trabalhador mais dependente do modo como executa as suas funções. A forma mais
simples de conseguir este resultado seria através da aplicação à maioria dos
trabalhadores da administração pública do mesmo regime jurídico-laboral que se aplica
nos outros sectores da economia. Somente deveriam manter um regime legal distinto,
traçado por regras de direito público, aqueles trabalhadores que, por força de as funções
exercidas não poderem ser dissociadas da autoridade do Estado, carecem de um
tratamento especial: militares de carreira, elementos das forças e serviços de segurança,
magistrados, diplomatas, membros das diversas inspecções do Estado e pouco mais.
Não descortinamos por que razão hão-de os médicos e os enfermeiros, os
professores, os consultores da administração pública e outros profissionais beneficiar de
uma maior garantia de estabilidade do vínculo laboral, comparativamente com aqueles
que exercem funções absolutamente idênticas nos outros sectores, sendo tal estabilidade
acrescida compensada com uma remuneração inferior, muitas vezes manifestamente
inferior. A única explicação que nos ocorre para justificar tal situação seria a defesa do
emprego público estável para os medíocres...»116.
A evolução do quadro legal dos recursos humanos da Administração Pública até aos
dias de hoje foi no sentido que se preconizou. Antes de detalhar este aspeto, justifica-se
um olhar sobre a Constituição, já que esta contém algumas disposições relativas àqueles
recursos, das quais pode extrair-se o estatuto constitucional da função pública.
115
JOÃO CAUPERS, Introdução à Ciência da Administração Pública, Lisboa, 2002, pp. 107-108.
116
JOÃO CAUPERS, Introdução à Ciência da Administração..., cit., pp. 114-115.
100
55. Estatuto constitucional da função pública
56.1. O quadro legal aplicável aos trabalhadores que exercem funções públicas
encontra-se hoje consolidado num diploma legal único, a já mencionada Lei Geral do
Trabalho em Funções Públicas (LGTFP).
O n.º 1 do artigo 1.º da lei anuncia a sua aplicação ao vínculo de trabalho em funções
públicas.
As designações que historicamente foram dadas a estes trabalhadores variaram no
tempo, quase sempre ao sabor de intenções e pré-compreensões de base ideológica,
desde os tempos, que parecem já longínquos, em que se falava de “funcionários
públicos”.
101
O uso desta expressão foi objeto de grande controvérsia após a instauração do regime
democrático. Na revisão constitucional de 1982, a expressão utilizada pela Constituição,
funcionários e agentes do Estado e das demais entidades públicas, foi substituída pela
expressão trabalhadores da Administração Pública e demais agentes do Estado e
outras entidades públicas, expressão ainda hoje constante do artigo 269.º. Com a
alteração quis-se simbolizar que os “funcionários públicos” não eram uma espécie de
“anomalia”: eram trabalhadores tendencialmente como os outros, quando muito uma
outra espécie do género “trabalhadores”. Mas a epígrafe do artigo continuou a ser
regime da função pública: a função pública continuou a existir – deixou foi de ser
utilizada na lei fundamental a substantivação do seu sujeito: o funcionário público117.
A partir de então, a expressão “funcionário público” – que continuou a constar das
leis – foi ganhando crescente carga negativa, a ponto de já ninguém desejar sê-lo, como
se a expressão se tivesse convertido num anátema e não, como deveria ser, uma
qualificação jurídica nobre, aplicável a alguém que se encontra ao serviço do interesse
público e, portanto, da coletividade. Chegou-se mesmo ao extremo de muitos
trabalhadores, exercendo indiscutivelmente funções públicas, no sentido óbvio de
funções orientadas para a satisfação dos mais relevantes interesses públicos –
magistrados do ministério público, militares e, até, agentes policiais – manifestarem-se
publicamente ofendidos por serem considerados “funcionários públicos”.
102
da atividade administrativa pública. Trata-se, além do mais, de funções que, pela sua
especificidade, não encontram paralelo na atividade privada.
É isso que explica que a nomeação seja um ato administrativo unilateral – reveste a
forma de despacho, diz o n.º 1 do artigo 41.º –, cujos efeitos dependem da aceitação do
nomeado (cfr. artigo 42.º, n.º 1). Herda assim a natureza do antes designado “ato
administrativo de provimento”.
Quanto aos restantes trabalhadores, o artigo 7.º manda aplicar-lhes o regime de
contrato de trabalho em funções públicas, distinguindo neste dois tipos: os contratos por
tempo indeterminado e os contratos a termo resolutivo.
118
Cfr. MARCELLO CAETANO, Manual de Direito Administrativo, cit., Volume II, pp. 799 a 801.
103
A infração disciplinar continua a ser, como sempre foi entre nós, atípica, por
contraposição à infração penal: qualquer comportamento violador dos deveres do
trabalhador constitui, em princípio, infração disciplinar.
Mantendo-se a regra de que a infração disciplinar há de consubstanciar uma violação
dos deveres do trabalhador, mantém-se também uma enumeração destes – dos deveres
gerais, naturalmente, já que os especiais hão de constar de normas específicas do
exercício de certas funções públicas.
Os deveres gerais dos trabalhadores da Administração Pública encontram-se
enumerados no n.º 1 do artigo 73.º. A comparação com a lei anterior justifica que
mantenhamos as observações feitas na pretérita edição deste escrito.
Por um lado, continua a não se compreender a ausência do dever de sigilo. Este
traduzia-se na obrigação de respeitar o segredo profissional; tratava-se, pois, de um
dever claramente pessoal, que apenas o trabalhador individualmente considerado tinha
de respeitar e podia ofender. Não é fácil perceber que razões terão levado o legislador a
eliminá-lo da enumeração dos deveres gerais dos trabalhadores.
E, se não se descortinam as razões do desaparecimento do dever de sigilo, menos
ainda se compreendem as da introdução do novo dever de informação.
Certo é que o dever de informação, agora explicitado na alínea d) do n.º 2 do artigo
73.º, é um dever em que a Administração Pública é investida pela própria Constituição,
no seu artigo 268.º, correspondendo a um direito fundamental dos cidadãos. Por esta
razão, a lei regula com detalhe a prestação de informações pela Administração Pública
aos particulares119.
Ora, como bem nota PAULO VEIGA E MOURA, a forma como está regulada esta
prestação de informações faz recair a obrigação de informar sobre aqueles que, em cada
serviço, são responsáveis por tal prestação, não deixando grande espaço para um dever
de informação impendendo sobre todo e qualquer trabalhador da Administração Pública
individualmente considerado120.
119
Cfr. os artigos 82.º a 85.º do CPA e a Lei n.º 46/2007, de 24 de Agosto, revista pelo Decreto-Lei n.º
214-G/2015, de 2 de outubro.
120
Cfr. Estatuto Disciplinar dos Trabalhadores da Função Pública, cit., pp. 47-48.
104
O conceito de domínio público remonta as suas origens ao ager publicus dos
romanos, conceito que se aplicava aos territórios conquistados, abrangendo terrenos
confiscados aos vencidos, sobretudo a partir da Segunda Guerra Púnica. O ager
publicus era pertença do populus romanus no seu conjunto, não sendo os terrenos que o
integravam suscetíveis de apropriação individual, característica que habitualmente se
designa por extracomercialidade.
Do ager publicus evoluiu-se para o conceito de res communes omnium, coisas que
podiam ser livremente utilizadas por qualquer pessoa, e para o conceito de res publicae,
coisas que apenas podiam pertencer a entidades públicas de natureza territorial.
Com a evolução, o conceito sofreu uma alteração qualitativa: de uma noção para que
relevava a simples pertença, passou-se para outra, que passou a ter em conta a natureza
das coisas e a sua utilização coletiva.
É ainda nesta ideia que repousa a formulação do n.º 2 do artigo 202.º do Código
Civil: a extracomercialidade é a característica fundamental dos bens que integram o
domínio público.
A natureza do domínio público nunca foi questão pacífica, sobre ela se debatendo
duas grandes conceções:
a) A primeira sustenta a autonomia conceptual do domínio público relativamente ao
direito de propriedade (privada). O domínio público consistiria num direito de
conservação e administração dos bens públicos, que nada teria a ver com a propriedade
privada.
b) A segunda considera o domínio público como uma verdadeira propriedade,
embora uma espécie de propriedade diferente da propriedade privada – Hauriou propôs
para ela a designação de propriedade administrativa.
Para além destas duas conceções opostas, também se perfilam dois critérios possíveis
de determinação da dominialidade pública: o primeiro enfatiza a pertença a uma
entidade pública, o segundo prefere sublinhar a afetação ao uso público.
Pela nossa parte, afigura-se-nos que o domínio público é um conceito essencialmente
funcional: supomos que a pedra de toque do conceito é a afetação ao uso público, muito
embora reconheçamos que, em face da nossa lei, a titularidade pública assume a maior
importância.
105
Também é habitual distribuir as coisas que integram o domínio público por diversos
grupos, não em razão de qualquer critério escolhido para o efeito, mas em consideração
de fatores como a natureza física, a situação ou a finalidade dos bens dominiais.
Assim, distinguem-se, nomeadamente:
a) O domínio público hídrico, constituído, está bem de ver, por água: dele fazem
parte o domínio público marítimo, constituído pelas águas marítimas interiores, pelo
mar territorial, pela plataforma continental e pelas praias; e o domínio público fluvial,
integrado pelos cursos de água navegáveis ou flutuáveis e pelas respetivas margens;
b) O domínio público aéreo, constituído pelo espaço aéreo, entre o limite utilizável
pelo proprietário ou superficiário do solo (limite inferior) e o limite da atmosfera (limite
superior);
c) O domínio público geológico, integrado pelas jazidas minerais e pelas nascentes;
d) O domínio público de comunicação, integrado por estradas, ruas, passeios, pontes
e viadutos, instalações portuárias e aeroportuárias e linhas férreas nacionais;
e) O domínio público radioelétrico, constituído pelo chamado espectro radioelétrico.
61.1. Não existe em Portugal um regime geral dos bens do domínio público122.
Existem, sim, diversos diplomas setoriais relativos aos vários tipos de bens integrantes
do domínio público.
A título de exemplo:
a) Domínio público rodoviário – Lei n.º 34/2015, de 27 de abril;
121
Sobre a afetação dos bens dominiais, cfr. ANA ROQUE GONÇALVES MONIZ, «O direito do domínio
público», in Tratado de Direito Administrativo Especial, Volume V, Coimbra, 2011, pp. 140-144;
também, JORGE PAÇÃO, «A afetação enquanto critério de dominialidade pública», in Estudos de Direito
Administrativo dos Bens, Lisboa, 2015, pp. 262 a 279.
122
Ao tempo do XVIII Governo Constitucional, uma comissão designada pelo ministro das Finanças
elaborou e apresentou um projeto de regime jurídico dos bens do domínio público que, com a queda do
Governo, viria a ser abandonado.
106
b) Domínio público ferroviário – Decreto-Lei nº 276/2003, de 4 de Novembro, na
redação do Decreto-Lei n.º 29-A/2011, de 1 de Março;
c) Domínio público hídrico – Lei n.º 54/2005, de 15 de Novembro, na redação
constante da Lei n.º 34/2014, de 19 de junho;
d) Domínio público geológico – Lei n.º 54/2015, de 22 de junho.
123
Vale a pena ler o texto que GOMES CANOTILHO dedicou ao chamado uso geral comunicativo, isto é,
às utilizações do domínio público para a arte na rua – «A utilização do domínio público pelos
particulares», in Em Homenagem ao Professor Doutor Diogo Freitas do Amaral, Coimbra, 2010, em
especial pp. 1081 a 1086.
107
isto é, mais intensa do que o normal ou comportando maior risco para aquele, estando,
por isso, condicionado a autorização administrativa e sendo por ele cobrada uma taxa. O
uso comum ordinário, precisamente por envolver uma utilização não diferenciada do
bem, caracteriza-se por ser livre – isto é, possível por todos – e igual – ou seja,
facultado em condições de igualdade aos interessados.
62.3. Os usos privativos são, como se disse, sempre titulados, isto é, assentam em
instrumento jurídico bastante. Os mais habituais são a licença e a concessão. A escolha
de uma ou outra assenta essencialmente na combinação de dois fatores: a duração
previsível do uso e a intensidade do empenhamento financeiro exigido ao interessado,
avaliada em função da natureza e do volume do investimento necessário.
Assentando a distinção no grau de estabilidade conveniente à relação jurídica a
estabelecer, compreende-se que a licença seja um título de natureza unilateral, constante
de ato administrativo, ao passo que a concessão se apresenta como um contrato
administrativo.
124
Esta distinção está na origem da contraposição tradicional entre contratos de concessão do uso
privativo e contratos de concessão de exploração.
108
a) Uma lógica diferencial relativamente à propriedade privada;
b) Uma lógica defensiva e protecionista, voltada para impedir e contrariar
apropriações indevidas;
c) Uma lógica restritiva, oriunda das antigas rei extra commertium, que constituíam,
de alguma forma, exceção ao princípio da apropriação privada.
É muito duvidoso que o domínio público seja compatível com uma lógica,
inteiramente oposta, que é a que se vem desenvolvendo: indiferenciação crescente
relativamente à propriedade privada, alargamento contínuo do universo dominial e
maximização do aproveitamento económico dos bens dominiais.
A segunda questão incide, como se disse, sobre o modo de conciliar uma certa e
justificada ideia de pertença à coletividade com o aproveitamento das utilidades que
podem ser proporcionadas pelos bens dominiais.
Esta conciliação assume a maior relevância – ou, pelo menos, o maior impacto
público – relativamente a uma parte do chamado domínio público artificial, o domínio
público edificado.
Todos já nos deparámos, por esse País fora, com castelos em ruínas, conventos a
cair, palácios e antigos fortes e quartéis abandonados. Muitos desses imóveis têm
natureza dominial e o estado de degradação em que se encontram reflete um problema
de muito difícil resolução. Regra geral, os imóveis perderam a sua utilidade; a sua
recuperação é muito dispendiosa e os seus titulares – Estado, municípios – não dispõem
de recursos que lhes permitam custear as obras indispensáveis. Resta o envolvimento de
particulares interessados. Todavia, excetuados os casos de mecenato, os particulares
interessados pretendem afetar o imóvel a uma utilização habitualmente distinta da
original e em geral com fins lucrativos: instalar nele um hotel ou um conjunto de
apartamentos de luxo, aproveitar uma parte para fazer ali funcionar um restaurante,
afetá-lo à realização de eventos sociais, etc.
Neste quadro, que decisão tomar? Rejeitar a colaboração do privado, privilegiando a
acessibilidade do imóvel ao público em geral, ainda que à custa da sua continuada
degradação? Ou aceitá-la, possibilitando a recuperação do imóvel, à custa de alguma
limitação da sua acessibilidade ao público em geral?
Este é o dilema que se coloca nestas situações. Resolvê-lo bem condicionará o futuro
do domínio público.
109
PARTE II
ATIVIDADE ADMINISTRATIVA PÚBLICA
111
CAPÍTULO I
FORMAS TÍPICAS DA ATIVIDADE ADMINISTRATIVA125
Leituras aconselhadas:
64.1. Antes de o conceito de Estado de direito ter feito a sua aparição, a palavra
polícia significava, simplesmente, administração pública126, por vezes administração
interna127.
125
Não se tratam todas as formas típicas da atividade administrativa; de fora ficam o planeamento, a
construção e gestão de infraestruturas e outras. Escolheram-se duas, por razões distintas: a polícia
administrativa, uma das mais antigas e delicadas e a regulação, uma das mais recentes e interessantes.
126
MARCELLO CAETANO, Manual de Direito Administrativo, Volume II, 10.ª edição, 4.ª reimpressão,
Coimbra, 1991, p. 1145.
127
JOÃO RAPOSO, Direito Policial I, Coimbra, 2006, p. 22; no mesmo sentido, FERNANDA MARIA
MARCHÃO MARQUES, «As polícias administrativas», in Estudos de Direito de Polícia, Lisboa, 2003, p.
121.
113
Como referido em anterior texto, os primeiros escritos daquilo a que chamamos hoje
ciência da administração designavam-se estudos de ciência (ou ciências) da polícia128.
Somente após a Revolução Francesa o conceito de polícia conheceria uma redução
do seu âmbito, concomitantemente com a melhor precisão do seu conteúdo. A nova
ideia de polícia surge ligada à de ordem pública, deixando de fora toda a atividade
administrativa associada à prossecução de outros interesses públicos, fossem eles de
carácter económico, social ou outros.
A clarificação do conceito de polícia passou por uma distinção que se tornou
incontornável na matéria: a contraposição entre polícia administrativa e polícia
judiciária. A maioria dos autores, na esteira da doutrina francesa claramente maioritária,
fazem assentar a distinção na natureza preventiva da primeira, contraposta à natureza
repressiva da segunda.
A polícia administrativa seria a atividade administrativa129 que visa prevenir ou
restabelecer as perturbações da ordem pública; quanto à polícia judiciária, teria por
funções investigar certas condutas contrárias à lei, perseguir os respetivos autores e
apresentá-los ao órgão com competência para puni-los.
O critério distintivo, porém, só é tendencialmente correto. Na verdade, a polícia
administrativa não tem uma finalidade exclusivamente preventiva: a própria noção
menciona o restabelecimento da ordem pública. Melhor seria dizer que a polícia
administrativa, ao contrário da polícia judiciária, não desenvolve uma atividade
orientada para a punição das infrações130.
Como se referiu, a polícia administrativa nasceu associada à defesa da ordem
pública. Na tradição francesa, o conceito de ordem pública apresenta três vertentes: a
segurança pública, a tranquilidade pública e a salubridade pública. A segurança pública
tem a ver com a inexistência de entraves ou riscos à circulação na via pública; a
tranquilidade pública resulta do sossego e do relativo silêncio nas ruas; a salubridade
pública decorre do cumprimento das regras de higiene nos lugares públicos e do
respeito pelas medidas de prevenção das doenças e da sua transmissão131.
Comum a estas três vertentes era – é – a circunstância de a atividade de polícia
administrativa operar como meio de limitação ou constrangimento da liberdade
individual. A defesa da ordem pública pode impor o termo de uma festa noturna
divertida mas ruidosa, a dispersão de um ajuntamento de pessoas inofensivo mas
perturbador do tráfego, ou o encerramento de um local público, simpático mas
demasiado agitado.
128
JOÃO CAUPERS, A Administração Periférica do Estado. Estudo de Ciência da Administração,
Lisboa, 1994, pp. 18 a 20.
129
Escolhemos, coerentemente com a perspetiva que adotámos para a administração pública, tratar a
polícia administrativa como atividade, não a abordando do ponto de vista organizativo – cfr. CATARINA
SARMENTO E CASTRO, A questão das polícias municipais, Coimbra, 2003, pp. 29-30.
130
Neste sentido, SÉRVULO CORREIA, «Polícia», in Dicionário Jurídico da Administração Pública,
Volume VI, p. 405.
131
O Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República aderiu a este conceito tripartido de
ordem pública – Parecer n.º 52/93, proferido no Processo n.º 599 e publicado no Diário da República, II
Série, n.º 116, de 19 de Maio de 1994, p. 4994.
114
se produzam, ampliem ou generalizem os danos sociais que as leis procuram
prevenir»132.
Para o Mestre de Lisboa, a polícia administrativa era uma atividade administrativa
com três traços essenciais:
• o carácter autoritário da atuação;
• o condicionamento do exercício de atividades individuais;
• a natureza perigosa das atividades em causa.
SÉRVULO CORREIA definiu a polícia administrativa como «a actividade da
Administração Pública que consiste na emissão de regulamentos e na prática de actos
administrativos e materiais que controlam condutas perigosas dos particulares com o
fim de evitar que estas venham ou continuem a lesar bens sociais cuja defesa preventiva
através de actos de autoridade seja consentida pela Ordem Jurídica»133.
Para JOÃO RAPOSO, a polícia administrativa «tem por objecto garantir a segurança de
pessoas e bens, a ordem pública e os direitos dos cidadãos ou assegurar a protecção de
outros interesses públicos específicos, definidos por lei»134.
As diferenças entre estas duas conceções decorrem, no essencial, da circunstância de
entre elas se ter interposto a Constituição de 1976. O n.º 1 do artigo 272.º da lei
fundamental estabelece que «a polícia tem por funções defender a legalidade
democrática e garantir a segurança interna e os direitos dos cidadãos».
Não é difícil descortinar subjacente a este normativo uma noção de polícia mais
ampla do que a de MARCELLO CAETANO. Na verdade, esta enunciação das funções da
polícia é suficientemente ampla para abranger todas as polícias, seja a polícia
administrativa, seja a polícia judiciária135.
E nem sequer está limitada às atividades que constranjam a liberdade individual.
Como escreveu SÉRVULO CORREIA, os fins da polícia correspondem «a todos os
interesses gerais protegidos por lei, que possam ser sujeitos a um risco de dano por
condutas individuais cuja perigosidade seja controlável através do exercício de
competências administrativas»136.
De acordo com esta noção – a que aderimos –, pode desenhar-se assim o esquema
lógico da atividade de polícia administrativa:
a) Interesse geral legalmente protegido;
b) Conduta individual potencialmente capaz de lesar tal interesse;
c) Suscetibilidade de controlo de tal lesão através de uma intervenção administrativa;
d) Intervenção policial.
Esta sequência lógica explica a nossa concordância com a definição de polícia
administrativa formulada no Parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da
República n.º 162/2003137:
«A polícia administrativa traduz uma forma de actuação da autoridade administrativa
que consiste em intervir no exercício das actividades individuais susceptíveis de fazer
132
MARCELLO CAETANO, Manual..., cit., p. 1150.
133
Cfr. «Polícia»..., cit., p. 394.
134
Cfr. Direito Policial I, cit., p. 29.
135
Cfr. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª
edição, Coimbra, 1993, pp. 954-955; e FERNANDA MARIA MARCHÃO MARQUES, «As polícias
administrativas»..., cit., p. 153.
136
Cfr. «Polícia»..., cit., p. 402.
137
Proferido no Processo n.º 2387 e publicado no Diário da República, II Série, n.º 74, de 27 de
Março de 2004, p. 4915.
115
perigar interesses gerais, com o objectivo de evitar que se produzam, ampliem ou
generalizem os danos sociais que as leis procuram prevenir».
Nesta definição avulta a ideia de perigo, melhor, de prevenção do perigo. Como
refere MIGUEL NOGUEIRA DE BRITO, «o perigo que se pretende prevenir corresponde ao
estado que antecede o provável dano para um bem jurídico protegido»138.
138
Cfr. «Direito Administrativo da Polícia», in Tratado de Direito Administrativo Especial, Volume I,
Coimbra, 2009, p. 307.
139
Sobre as chamadas ordens policiais, cfr. JOÃO RAPOSO, «Breves considerações acerca do regime
jurídico das ordens policiais», in Em Homenagem ao Professor Doutor Diogo Freitas do Amaral,
Coimbra, 2010, pp. 1209 a 1221. O Autor sublinha a impossibilidade de considerar as ordens policiais
como atos administrativos puros, em face das condições de informalidade e desprocedimentalização que
lhes são inerentes.
140
Cfr. «Breves considerações acerca do regime...», cit., p. 23.
116
Para além do carácter limitativo da liberdade que os poderes de polícia assumem,
podemos apontar-lhes três outros traços.
Em primeiro lugar, a unilateralidade. Os poderes de polícia são por natureza
unilaterais, insuscetíveis de negociação ou compromisso. Trata-se de um exercício de
autoridade e esta não se transaciona, nem se compromete. O que não impede,
obviamente, a audiência prévia dos interessados, sempre que esta for compatível com o
exercício dos poderes de polícia.
Em segundo lugar, o exercício dos poderes de polícia não está sujeito, ou pode não
estar sujeito, a regras procedimentais. Em muitas circunstâncias – ligadas, em geral, à
urgência do seu exercício – não é possível assegurar a mencionada audiência prévia dos
interessados ou, até, as exigências constitucionais e legais de fundamentação das
decisões administrativas141.
Por último, e de alguma forma um corolário da unilateralidade, aponta-se a
insuscetibilidade de concessão dos poderes de polícia: estes não podem ver o seu
exercício concedido a particulares.
O exercício dos poderes de polícia, por força da ameaça que representa para as
liberdades individuais, cristalizou-se nas chamadas medidas de polícia. Estas são atos
típicos das autoridades policiais, podendo assumir a natureza de atos jurídicos – como
ordens de polícia, licenças policiais, advertências – ou de operações materiais – como as
operações de vigilância policial ou as verificações de identidade142.
As medidas de polícia consubstanciam-se no exercício de poderes limitadores ou
constrangedores da liberdade e, como tal, têm de ser rodeadas de precauções adequadas.
Tais precauções vertem-se na necessidade de respeitar dois princípios, que neste
domínio são especialmente relevantes. Ambos se encontram consagrados no n.º 2 do
artigo 272.º da Constituição:
«As medidas de polícia são as previstas na lei, não devendo ser utilizadas para além
do estritamente necessário».
O primeiro princípio consagrado nesta norma é o princípio da tipicidade.
Como decorrência do princípio da tipicidade, entendeu o Tribunal Constitucional que
«os actos de polícia além de terem um fundamento legal, devem traduzir-se em
procedimentos individualizados e com conteúdo suficientemente definido na lei seja
qual for a sua natureza: quer sejam regulamentos gerais emanados das autoridades de
polícia, decisões concretas e particulares, medidas de coerção ou operações de
vigilância, todas as medidas de polícia estão sujeitas ao princípio da precedência da lei e
da tipicidade legal»143.
141
Cfr. PEDRO LOMBA, «Sobre a Teoria das Medidas...», cit., p. 215.
142
Cfr. JOÃO RAPOSO, «Breves considerações acerca do regime...», cit., p. 23. Uma outra definição é a
de PEDRO LOMBA: «As medidas de polícia administrativa constituem acções da Administração que, sob
formas jurídicas diferenciadas, procuram prevenir, reduzir ou remediar danos causados por actividades
perigosas a bens e interesses gerais legalmente protegidos» – «Sobre a Teoria das Medidas...», in Estudos
de Direito de Polícia, cit., p. 103.
143
Cfr. Acórdão n.º 479/74, consultável na base de jurisprudência do Tribunal Constitucional.
117
De um lado estão GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, entendendo a tipicidade no
sentido de carácter taxativo, devendo as medidas de polícia ser «medidas ou
procedimentos individualizados e com conteúdo suficientemente definido na lei»,
independentemente da sua natureza144.
Do outro lado está, nomeadamente, MIGUEL NOGUEIRA DE BRITO, sustentando que as
medidas de polícia não se caracterizam «por uma tipificação normativa que ligue todas
as formas de conduta policial a pressupostos determinados, sem prejuízo da definição
legal genérica da competência material das autoridades com funções de polícia»145.
O segundo troço da norma contém uma óbvia referência ao princípio da
proporcionalidade, que já foi objeto de tratamento noutro ponto.
Recordamos agora que surgiu na versão original da Constituição de 1976,
precisamente a propósito das medidas de polícia, antes de merecer a consagração geral
que o texto da lei fundamental hoje lhe atribui no n.º 2 do artigo 266.º.
As medidas de polícia estão sujeitas ao triplo controlo característico do princípio da
proporcionalidade:
a) Necessidade – a medida adotada tem de ser indispensável para prevenir o
desrespeito ou restaurar o respeito pelos interesses prosseguidos e protegidos;
b) Adequação – a medida de polícia tem de ser capaz de atingir os objetivos
pretendidos com a sua adoção, sejam estes a prevenção da lesão do interesse protegido
ou a reposição do respeito por ele;
c) Relação custos/benefícios – a tutela do bem protegido tem de ser assegurada com
o menor sacrifício possível da liberdade individual; por outras palavras, a restrição da
liberdade tem de ser a menor que for compatível com a defesa do bem a que
corresponde a prossecução do interesse público.
68. A regulação
68.1. A ideia de regulação não é nova, sendo há muito conhecida e praticada nos
EUA. À Europa e a Portugal chegou mais tarde, no pós-guerra, tendo-se desenvolvido
nas últimas duas décadas do século XX, de par com as acrescidas dificuldades do
Estado-providência, que comprometeram o desenvolvimento do chamado modelo social
europeu. Menos contribuintes, fruto de uma demografia desfavorável, crescentes
despesas de saúde, resultado dos progressos da medicina, e de segurança social,
consequência do crescimento do desemprego e do aumento da esperança média de vida
– e aí temos um Estado subfinanciado, forçado a reduzir a sua intervenção,
nomeadamente no plano da chamada administração prestadora.
Com o Estado em retirada e mais espaço para os agentes económicos, tornou-se
indispensável adotar mecanismos e regras capazes de assegurar o funcionamento
equilibrado da atividade económica, de modo a salvaguardar os interesses públicos
envolvidos. Somente por via de tais regras é possível garantir a concorrência nos
mercados, protegendo tanto as atividades reguladas como os consumidores.
Paralelamente a este contexto, que EDUARDO PAZ FERREIRA e LUÍS SILVA MORAIS
designam por «razões de ordem económica-institucional (geral)», outras razões
contribuíram para o fenómeno, desta feita associadas ao processo de integração
144
Cfr. Constituição da República Portuguesa Anotada, cit., p. 956.
145
Cfr. «Direito Administrativo da Polícia», cit., p. 370.
118
europeia, a que os mesmos autores chamam «razões intrinsecamente ligadas à dinâmica
jurídica e económica da integração comunitária»146.
Como escrevem, «o processo empreendido na UE de desmantelamento de anteriores
monopólios públicos e de eliminação de direitos especiais ou exclusivos em sectores
económicos essenciais dos Estados-Membros forneceu um impulso decisivo para o
desenvolvimento ex novo de um moderno corpo jurídico de regulação da
economia...»147.
146
Cfr. «A Regulação Sectorial da Economia – Introdução e Perspectiva Geral», in Regulação em
Portugal: Novos Tempos, Novo Modelo?, Coimbra, 2009, p. 15.
147
Cfr. «A Regulação Sectorial da Economia...», cit., p. 20.
148
O exemplo clássico deste tipo de situações é a compra e venda de um automóvel usado: se o
comprador soubesse tanto do carro como o vendedor nunca o compraria pelo preço estabelecido, pelo que
nunca se faria o negócio.
149
Não obstante apresentar uma noção mais restrita de regulação, VITAL MOREIRA acaba por optar por
outra mais lata, escrevendo que «o conceito de regulação deve abranger todas as medidas de
condicionamento da actividade económica, revistam ou não forma normativa» – Auto-regulação
Profissional e Administração Pública, Coimbra, 1997, pp. 34 e 36. Já EDUARDO PAZ FERREIRA e LUÍS
SILVA MORAIS falam em regulação jurídica da economia, considerando tratar-se do «desenvolvimento de
processos jurídicos de intervenção indirecta na actividade económica produtiva», o que não merece
reparo, uma vez que a regulação é uma atividade jurídica, no sentido de que utiliza instrumentos desta
natureza, mesmo quando não se traduz na aprovação de regras jurídicas.
150
VITAL MOREIRA, op. cit., pp. 52-53.
119
A heterorregulação configura uma intervenção estadual externa e é assegurada por
entidades criadas por iniciativa pública e dotadas de estatuto jurídico-público151.
151
Cfr. PEDRO GONÇALVES, Regulação, Electricidade e Telecomunicações. Estudos de Direito
Administrativo da Regulação, Coimbra, 2008, pp. 14-15; VITAL MOREIRA, op. cit., p. 52.
152
Não nos parece que valha a pena perder tempo a discutir se o adjetivo mais adequado para
qualificar estas entidades é independentes ou autónomas (cfr. EDUARDO PAZ FERREIRA e LUÍS SILVA
MORAIS, op. cit., p. 29). O uso da palavra independente tem em conta que, entre nós, a doutrina
jusadministrativa tende a qualificar estas entidades como um modalidade de institutos públicos com
autonomia reforçada, uma vez que, ao contrário do que sucede com a administração autónoma “clássica”,
são criações do Estado, integrando a administração indireta deste. O termo “autónomo” é equívoco entre
nós, tanto se aplicando às regiões com autonomia político-administrativa – as regiões autónomas –, como
aos municípios e às freguesias, fruto da autonomia local – que é uma autonomia meramente
administrativa –, como, ainda, às entidades autorreguladoras – ordens profissionais, bolsas, federações
desportivas, etc. Foi por essa razão que, noutro ponto, qualificámos, à falta de outra e melhor expressão, o
Provedor de Justiça como um órgão da administração direta do Estado independente. É que, muito
embora a língua portuguesa seja rica em palavras, começa a fazer-se sentir alguma insuficiência
terminológica para descrever uma realidade jurídico-organizativa crescentemente complexa. Mantemos
assim, sem excessiva convicção, a designação regulação independente.
153
Cfr. VITAL MOREIRA, «Uma lei-quadro da regulação independente?», in A mão visível. Mercado e
regulação, Coimbra, 2003, pp. 119 a 122.
154
Cfr. VITAL MOREIRA, «Uma lei-quadro da regulação independente?», in A mão visível. Mercado e
regulação, Coimbra, 2003, pp. 119 a 122.
120
cessar antecipadamente em situações individuais sérias – faltas graves, incapacidade
permanente, etc. (ICP/ANACOM, CMVM, ASF, ERSE, AC e BdP).
Em terceiro e último lugar, estas entidades dispõem de receitas próprias,
provenientes dos regulados, muito significativas, tendendo mesmo a ser financeiramente
autossuficientes.
69.2. No ano de 2013, foi aprovada, como dissemos noutro ponto, a Lei-quadro das
entidades administrativas independentes com funções de regulação da atividade
económica e dos setores privado, público e cooperativo (Lei n.º 67/2013, de 28 de
agosto).
Para além dos entes já referidos, a lei reconhece ainda a existência de mais cinco
entidades reguladoras: a Autoridade Nacional da Aviação Civil (ANAC), o Instituto da
Mobilidade e dos Transportes (IMT), a Entidade Reguladora dos Serviços de Águas e
Resíduos (ERSAR), a Entidade Reguladora da Saúde (ERS) e a Entidade Reguladora
para a Comunicação Social (ERC).
Note-se que a lei exclui do seu âmbito de aplicação esta última e o Banco de
Portugal.
A Lei-Quadro das Entidades Reguladoras (LQER), que constitui o ANEXO daquela
lei, qualifica as entidades reguladoras como pessoas coletivas de direito público com a
natureza de entidades administrativas independentes (artigo 3.º, n.º 1).
E sublinha esta independência no artigo 45.º, proclamando que «as entidades
reguladoras são independentes no exercício das suas funções e não se encontram
sujeitas a superintendência ou tutela governamental (...)», acrescentando que «os
membros do Governo não podem dirigir recomendações ou emitir diretivas aos órgãos
dirigentes das entidades reguladoras sobre a sua atividade reguladora nem sobre as
prioridades a adotar na respetiva prossecução».
A independência das entidades reguladoras é ainda acentuada pela estabilidade
conferida pela lei aos mandatos dos seus dirigentes, de que adiante se tratará.
As entidades reguladoras veem assim reconhecido um estatuto que as aproxima
daquela parte da administração do Estado que noutro ponto designámos por
independente, precisamente por causa da sua independência relativamente ao Governo.
Claro que, diferentemente do que sucedia nos exemplos aí apontados – o Provedor de
Justiça e a Comissão Nacional de Eleições –, as entidades reguladoras dispõem de
personalidade jurídica e de personalidade jurídica pública. Todavia, recordando até o
que dissemos a propósito desta e das suas reduzidas potencialidades explicativas da
organização administrativa pública, não se nos afigura que as diferenças constituam
obstáculo intransponível ao uso da qualificação.
Trataremos, sucessivamente, da criação das entidades reguladoras e do seu quadro
jurídico, dos mandatos dos dirigentes, do seu financiamento e dos poderes que lhes
estão atribuídos.
69.3. As entidades reguladoras são criadas por lei, determina o n.º 1 do artigo 7.º da
LQER. O n.º 3 do mesmo artigo atribui ao Governo competência para, através de
decreto-lei, aprovar os estatutos de cada entidade reguladora.
A criação deste tipo de entidades encontra-se limitada à prossecução de atividades de
regulação económica, por se entender que são estas que justificam a não submissão à
direção do Governo (artigo 6.º, n.º 1).
No que respeita ao quadro jurídico, a lei (artigo 5.º) indica as fontes de direito
aplicáveis a cada entidade reguladora:
121
• em primeira linha, as normas da própria lei-quadro, a legislação setorial aplicável e
os estatutos e regulamentos internos;
• a título subsidiário, o CPA e «quaisquer outras normas e princípios de âmbito geral
respeitantes aos atos administrativos do Estado»; e ainda o ETAF e o CPTA, «quando
estiverem em causa atos praticados no exercício de funções públicas de autoridade e
contratos de natureza administrativa».
122
Lei de Enquadramento Orçamental (Lei n.º 151/2015, de 11 de setembro), o n.º 3 do
artigo 36.º permite, a título excecional embora, a atribuição às entidades reguladoras de
receitas consignadas.
123
CAPÍTULO II
INSTRUMENTOS JURÍDICOS DA AÇÃO ADMINISTRATIVA
O ATO ADMINISTRATIVO
Leituras aconselhadas:
70.1. Por razões que explicitámos atrás, optámos pela perspetiva do procedimento
para levar a cabo o estudo dos princípios e das regras da atividade administrativa
pública. De qualquer forma e tendo em conta a importância, embora decrescente155, do
155
«Apesar de assistirmos nos dias de hoje a uma diversificação dos modos de conduta administrativa
com perda de peso relativo do acto administrativo, ninguém minimamente conhecedor das realidades
ousará negar que este é ainda, de longe, em Portugal como nos outros “sistemas de Direito
125
ato administrativo enquanto fator de delimitação do objeto da impugnação judicial –
como se verá noutro ponto –, é imprescindível dedicar-lhe alguma atenção156.
Até à 10.ª edição desta obra, manteve-se uma certa ideia de ato administrativo,
claramente inspirada em MARCELLO CAETANO, de recorte mais amplo do que a que
poderia fazer-se corresponder ao conceito de decisão, utilizado nomeadamente no artigo
148.º do CPA.
Na verdade, este conceito parecia mais adequado a recortar, no universo dos atos
administrativos, o chamado ato administrativo definitivo – e não todo e qualquer ato
administrativo.
Acompanhando DIOGO FREITAS DO AMARAL e boa parte da doutrina portuguesa, na
11.ª edição incluiu-se, entre os elementos do conceito de ato administrativo, um
elemento decisório, ou seja, a exigência de uma estatuição ou determinação sobre uma
certa situação jurídico-administrativa.
Aceitou-se, assim, o argumento principal com que aquela doutrina sustenta a
inclusão na definição de ato administrativo deste elemento decisório – a circunstância
de o regime legal, substantivo e procedimental do ato administrativo, somente fazer
sentido relativamente a verdadeiras decisões157.
Esta opção tem duas consequências:
a) Por um lado, coloca fora do âmbito do ato administrativo certas condutas
administrativas que, designadamente por défice do elemento volitivo, não comportam o
referido elemento decisório – pareceres, atos de natureza declarativa, etc.;
b) Por outro, abre caminho à clarificação do conceito de ato administrativo lesivo,
tornada necessária por se tratar de condição quase indispensável à impugnação
contenciosa, como se verá no local adequado.
70.2.1. O ato administrativo é, antes de mais, um ato jurídico, ou seja, uma conduta
voluntária geradora de efeitos de direito.
De notar que a determinação da voluntariedade da conduta nem sempre é feita com
recurso à chamada vontade psicológica, isto é, a vontade tal como a concebe a teoria do
negócio jurídico: com muita frequência, no ato administrativo a vontade é
“reconstruída” a partir de elementos de carácter normativo, que se sobrepõem aos
elementos psicológicos. Digamos, de forma simplificada, que não é a vontade que
realmente se teve mas a vontade que, nos termos da lei, se deveria ter tido. Fala-se, por
isso, em vontade normativa.
A exigência da voluntariedade da conduta, mesmo com a especificidade apontada,
permite excluir do conceito de ato administrativo os factos jurídicos em sentido estrito,
nos quais se não revela qualquer conduta voluntária, ainda que reconstruída com base na
vontade normativa – por exemplo, o decurso do tempo, com os efeitos jurídicos
conhecidos, nomeadamente a caducidade e a prescrição – e as chamadas operações
materiais da Administração Pública, em que ocorrem condutas voluntárias mas não
orientadas para a produção de efeitos jurídicos específicos predeterminados – é o que
Administrativo”, a forma mais utilizada no exercício jurídico da função administrativa» – cfr. JOSÉ
MANUEL SÉRVULO CORREIA, «Acto administrativo e âmbito da jurisdição administrativa», in Estudos em
homenagem ao Prof. Doutor Rogério Soares, Coimbra, 2001, p. 1170.
156
Sobre as origens do conceito de ato administrativo enquanto noção central do direito administrativo
e a necessidade de proceder à respetiva reformulação, cfr. VASCO PEREIRA DA SILVA, Em busca do acto
administrativo perdido, cit., pp. 43 a 71 e 445 a 458.
157
Cfr. Curso..., cit., Volume II, pp. 221 a 223.
126
sucede quando uma máquina operada por um trabalhador municipal e ocupada na
abertura de uma vala corta, acidentalmente, os cabos que garantiam o fornecimento de
energia elétrica a uma fábrica, provocando a paralisação da atividade desta; ou quando
um médico de um hospital público ministra a um acidentado um anestésico a que ele é
alérgico, causando-lhe a morte enquanto preparava uma intervenção cirúrgica de
urgência.
Como se verá, estas atividades da Administração Pública, ditas operações materiais,
não se chamam assim por serem estranhas ao direito, uma vez que produzem
consequências jurídicas, no plano da responsabilidade da Administração Pública. Elas
não são, porém, condutas orientadas para a produção de efeitos jurídicos, não
integrando, por isso, o conceito de ato administrativo.
70.2.3. Em terceiro lugar, tendo em conta que o ato administrativo nasceu no quadro
do princípio da separação de poderes, ele deveria ser sempre um ato praticado por um
órgão pertencente a uma organização pública.
Cedo se percebeu, contudo, que os outros poderes do Estado, designadamente o
poder legislativo e o poder judicial, também praticam, complementarmente com os atos
que os caracterizam – atos legislativos e atos jurisdicionais, respetivamente –, atos que
em nada se distinguem dos tipicamente praticados por órgãos pertencentes a uma
organização pública.
Imagine-se uma sanção disciplinar aplicada pelo presidente da Assembleia da
República a um funcionário do parlamento, ou o indeferimento, pelo juiz de um
tribunal, de um requerimento de um funcionário judicial que pretendia gozar férias
interpoladas.
Estes atos são exatamente iguais a muitos outros quotidianamente praticados por
órgãos pertencentes a organizações públicas.
“Forçando” um pouco a lógica, passou então a considerar-se que estes eram também
atos administrativos.
É esta a razão de ser da competência atribuída ao Supremo Tribunal Administrativo,
pelo artigo 24.º do ETAF, para apreciar atos e omissões do Presidente da República, da
127
Assembleia da República e do seu presidente, e dos tribunais superiores e seus
presidentes.
É também este o sentido do artigo 2.º do CPA, que estabelece que, para efeitos da
sua aplicação, a Administração Pública integra:
• os órgãos do Estado e das regiões autónomas que exercem funções administrativas
a título principal;
• as autarquias locais e suas associações e federações de direito público;
• as entidades administrativas independentes;
• os institutos públicos e as associações públicas.
Mas, por outro lado, determina a aplicação das regras de procedimento – onde se
incluem as regras relativas à produção de atos administrativos – à conduta de quaisquer
entidades, independentemente da sua natureza, adotada no exercício de poderes
públicos.
Seja qual for a exata qualificação jurídica do seu autor, o ato administrativo é sempre
um comportamento adotado no exercício de poderes jurídico-administrativos. Esta
precisão torna-se tanto mais necessária quanto, como dissemos, um certo número de
autores de atos administrativos não são órgãos pertencentes a uma organização pública.
Assim se compreende que a alínea a) do n.º 2 do artigo 4.º do ETAF exclua da
jurisdição administrativa os atos políticos e os atos legislativos: nenhuns deles são atos
administrativos.
70.2.4. Em quarto lugar, o ato administrativo é sempre um ato que visa produzir
efeitos jurídicos externos numa situação individual e concreta.
O ato contrapõe-se à norma, esta tradicionalmente marcada pela generalidade –
pluralidade de destinatários – e pela abstração – multiplicidade de situações abrangidas.
Note-se que esta distinção enfrenta dificuldade crescentes, devidas, nomeadamente, à
proliferação das leis-medida ou leis-providência, que não apresentam a suscetibilidade
de aplicação potencialmente ilimitada típica das normas jurídicas tradicionais158.
Seja como for, este elemento do conceito de ato administrativo é indispensável,
sendo ele que possibilita a distinção entre o ato administrativo e o regulamento
administrativo.
A externalidade do ato, consagrada no artigo 148.º do CPA, exclui do conceito de ato
administrativo comportamentos no âmbito da atividade administrativa pública cujos
efeitos sejam meramente internos às entidades cujos órgãos os adotam.
70.2.5. Por último, o ato administrativo consubstancia uma decisão, isto é, uma
conduta que quer e pode, digamos, “mudar o mundo”.
Não se trata apenas – como no primeiro elemento da definição – da produção de
consequências jurídicas; trata-se, sim, de projetar estas consequências na esfera jurídica
de alguém, por forma a que esta pessoa ou entidade veja alterada, em sentido favorável
ou em sentido desfavorável, a sua situação jurídica perante a Administração Pública.
Vejamos um exemplo.
Quando é solicitado um parecer a um órgão consultivo, este produz um ato jurídico,
que traduz uma certa forma de ver o problema que lhe foi colocado. Quando a consulta
é imposta pela lei, o órgão consultado sabe que a sua audição (ou a falta dela) produz
efeitos jurídicos, possibilitando a tomada de uma decisão formalmente correta; em
158
Sobre atos administrativos coletivos, plurais e gerais, figuras que podem suscitar algumas dúvidas,
vejam-se as páginas 210 a 213 do Volume II do Curso de Direito Administrativo de DIOGO FREITAS DO
AMARAL.
128
qualquer caso, sabe igualmente que a sua opinião produz ainda outros efeitos jurídicos,
na justa medida em que condiciona o órgão com competência para decidir.
Mas também sabe que este condicionamento é limitado: em regra, o órgão com
competência dispositiva sobre a matéria pode decidir em sentido oposto ao do parecer,
sendo certo que terá, nesta hipótese, de fundamentar o seu ato – e de fazê-lo com
especial cuidado, pois terá de contrariar os argumentos do parecer.
Por outras palavras: o órgão consultivo sabe que o seu estatuto competencial lhe
permite influenciar uma alteração no mundo; mas também sabe que esse mesmo
estatuto não lhe permite determinar essa alteração. Esta somente pode resultar da
vontade do órgão com competência dispositiva sobre a matéria.
É exatamente por isto que um parecer não vinculativo, não estatui, não é uma
decisão159. E é também por esta razão que eventual impugnação judicial visa o ato (a
decisão) e não a opinião (o parecer).
O que dissemos sobre o parecer aplica-se, por identidade de razão, às informações
burocráticas, às diligências instrutórias e a outros comportamentos geradores de efeitos
jurídicos, mas também desprovidos de sentido decisório.
Em suma, adotamos um conceito de ato administrativo composto de cinco elementos
e que pode ser assim formulado:
159
Não sendo, por isso, um ato administrativo. DIOGO FREITAS DO AMARAL chama-lhes «atos
instrumentais», da espécie «atos opiniativos» – Curso..., cit., Volume II, pp. 250 a 253. Trata-os, porém,
no âmbito da tipologia dos atos administrativos, o que se nos afigura fazer menos sentido, para quem,
como ele (e nós), considera o carácter decisório um elemento do conceito de ato administrativo – ibidem,
p. 197.
129
Debatem-se nesta temática três orientações principais:
a) A primeira considera o ato administrativo uma espécie de negócio jurídico;
b) A segunda descobre nele analogia com a sentença judicial;
c) A última orientação atribui-lhe natureza suis generis – nem uma coisa nem outra,
antes um ato unilateral da autoridade pública ao serviço de um fim administrativo.
Pela nossa parte observaremos que o ato administrativo, contrariamente à sentença
judicial:
• não visa a composição de um litígio, embora possa encerrá-lo ou iniciá-lo;
• encara a aplicação do direito como um meio – de prosseguir interesses públicos – e
não como um fim em si – a prossecução do interesse público na aplicação da justiça;
• é modificável, não tendo o valor de verdade legal associado ao caso julgado.
Relativamente ao negócio jurídico, o ato administrativo distingue-se por não
prosseguir um fim privado e por apresentar frequentemente como suporte a vontade
normativa, em vez da vontade psicológica (v. supra).
De todo o modo, entendemos que, considerada a maior ou menor latitude da
componente discricionária do ato administrativo, este se encontra bem mais próximo do
negócio jurídico do que da sentença judicial160.
160
Sobre as funções hoje desempenhadas pelo ato administrativo, cfr. JOSÉ CARLOS VIEIRA DE
ANDRADE, «Algumas reflexões a propósito da sobrevivência do conceito de “acto administrativo” no
nosso tempo», in Estudos em Homenagem do Prof. Doutor Rogério Soares, Coimbra, 2001, pp. 1189 a
1220; JOÃO CAUPERS e ANTÓNIO LORENA DE SÈVES, «O acto administrativo como fonte de direito», in
Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Joaquim Gomes Canotilho, Volume IV, Coimbra, 2012, pp.
177 a 194.
130
• o conteúdo (ou objeto imediato) do ato administrativo, integrado pela conduta
voluntária – entendida nos termos supra referidos – e pelas cláusulas acessórias que
possam existir – condições, termos, etc;
• o objeto (mediato) do ato administrativo, isto é, a realidade sobre que o ato incide –
o terreno expropriado, a esplanada cuja instalação na via pública foi licenciada, etc.
131
b) A fundamentação dos atos administrativos, que consiste na exposição das razões
da sua prática (cfr. artigos 268.º, n.º 3, segunda parte, da CRP e 152.º e 153.º do CPA);
c) A notificação dos atos administrativos, instrumento para levar estes ao
conhecimento dos interessados (cfr. artigos 268.º, n.º 3, primeira parte, da CRP e 114.º
do CPA).
74.3. Os artigos 152.º e 153.º do CPA são as principais disposições legais vigentes
em matéria de fundamentação.
O artigo 152.º enumera os atos administrativos que devem ser fundamentados,
podendo afirmar-se, em linhas gerais, que devem sê-lo:
a) Os atos desfavoráveis aos interessados [cfr. alínea a) do n.º 1];
b) Os atos que incidam sobre anteriores atos administrativos [cfr. alíneas b) e e) do
n.º 1];
c) Os atos que reflitam variações no comportamento administrativo [cfr. alíneas c) e
d) do n.º 1].
O artigo 153.º, pelo seu lado, estabelece as regras a que deve obedecer a
fundamentação:
a) Deve ser expressa;
b) Deve ser de facto e de direito, isto é, não só tem de indicar as regras jurídicas que
impõem ou permitem a tomada da decisão, mas também há de explicar em que medida é
que a situação factual sobre a qual incide esta se subsume às previsões normativas das
regras aplicáveis;
c) A fundamentação deve ainda ser clara, coerente e completa; quando a
fundamentação não se consegue compreender, não é clara, é obscura; quando a
fundamentação, sendo embora compreensível em si mesma, não pode ser considerada
como pressuposto lógico da decisão, não é coerente, é contraditória; quando a
fundamentação não é bastante para explicar a decisão, não é completa, é insuficiente.
A falta da indicação dos fundamentos de direito ou de facto, bem como a
obscuridade, contradição ou insuficiência da fundamentação equivalem à sua falta (cfr.
n.º 2 do artigo 153.º), com repercussões no plano da validade do ato, como se verá mais
adiante.
75.1. Uma primeira distinção opõe os atos primários aos atos secundários: enquanto
que o ato primário incide sobre uma situação da vida, o ato secundário tem por objeto
um ato primário anterior.
Trataremos neste ponto dos atos primários, deixando os atos secundários para
momento posterior.
132
• atos permissivos, que possibilitam ao destinatário a adoção de um comportamento
positivo ou negativo.
161
Embora a distinção teórica entre a licença e a autorização seja simples, nem sempre a nomenclatura
legal a respeita: algumas licenças correspondem à noção dada, como a licença de porte e uso de arma;
outras, todavia, podem consubstanciar verdadeiras autorizações.
162
Referimo-nos, obviamente, ao ato administrativo de concessão e não ao contrato administrativo do
mesmo nome.
133
a) Decisões, atos de órgãos singulares, e deliberações, atos de órgãos colegiais163;
b) Atos simples, que apenas têm um autor, e atos complexos, que apresentam dois ou
mais autores; estes podem consubstanciar uma situação de coautoria, se a vontade dos
diversos autores tem relevo idêntico, ou uma situação de corresponsabilidade, caso tal
não aconteça.
163
Assumimos a utilização equívoca do termo decisão: em sentido amplo, corresponde à noção de ato
administrativo (v. supra); em sentido estrito, apenas se aplica aos atos administrativos dos órgãos
singulares. Note-se que também o termo deliberação comporta alguma ambiguidade: é sempre e somente
um ato de um órgão colegial, mas não neces sariamente um ato administrativo – não será, por exemplo, se
um órgão colegial deliberar aprovar um parecer (v. supra).
164
Os atos constitutivos não se confundem com os atos constitutivos de direitos, que se referirão a
propósito das figuras da revogação e da anulação administrativa; enquanto estes últimos são sempre
vantajosos para os particulares, já os primeiros tanto podem sê-lo como não – uma expropriação, por
exemplo, é um ato constitutivo mas não é, evidentemente, um ato constitutivo de direitos – é um ato
«constitutivo de deveres ou encargos», na terminologia do artigo 160.º do CPA.
165
Cfr. Manual de Direito Administrativo, Volume I, 10.ª edição, 5.ª reimpressão, Coimbra, 1991, p.
443.
134
«Objectivamente considerada, a evolução normativa revela a troca de um
entendimento formal e conceptualista do direito de acesso aos tribunais administrativos
por uma visão material, assente numa ideia de justiça orientada teleologicamente
(afectada à tutela de direitos ou interesses.)»166
É esta mudança de paradigma que está na origem do conceito de ato lesivo: trata-se
já não de delimitar, com argumentos teóricos cada vez mais sofisticados e mais
obscuros, a “verdadeira última palavra” da Administração Pública, a única suscetível de
controlo judicial; o que está em causa é determinar quais os atos administrativos que,
por afetarem negativamente a esfera jurídica de alguém, devem poder ser escrutinados
pelos tribunais administrativos.
77.2. Não é fácil, dada a variedade de situações possíveis, fornecer uma definição de
ato lesivo.
Arriscamos, por isso, uma definição por exclusão de partes: não constituem atos
administrativos lesivos aqueles atos administrativos que não afetem
negativamente, ou não sejam suscetíveis de afetar, num futuro próximo provável, a
esfera jurídica de outrem.
Assim, não são atos lesivos:
a) Os atos administrativos que defiram integralmente pretensões do interessado,
como são, em geral, os atos permissivos;
b) Os atos administrativos que defiram, sem reservas, reclamações e recursos
administrativos;
c) Os atos administrativos que anulem administrativamente anteriores atos lesivos.
Impõem-se duas observações:
a) Em qualquer dos casos, os atos referidos podem tornar-se lesivos se e na medida
em que afetem, ou possam afetar, negativamente a esfera jurídica de outro interessado –
é o que ocorre com os chamados atos de duplo efeito, designadamente os atos que
procedem à escolha de uma pessoa de entre um grupo predeterminado;
b) Se um ato administrativo praticado a pedido de um interessado lhe for notificado
no termo do procedimento administrativo e dele puder resultar, por ambiguidade
textual, outro entendimento que não a satisfação integral da pretensão apresentada, tem
de ser considerado ato lesivo.
77.3. Casos que podem levantar dúvidas quanto ao seu carácter lesivo são os
daqueles atos administrativos que são praticados no decurso do procedimento
administrativo sem que consubstanciem – nem possam consubstanciar por razões
procedimentais – uma decisão final deste favorável ao interessado.
Entre estes atos – admitidos pela jurisprudência, alguns, adiantados pela doutrina, os
outros –, podem apontar-se:
a) A promessa, ato através do qual um órgão da Administração anuncia para um
momento determinado, posterior, a adoção de um certo comportamento,
autovinculando-se perante um particular;
b) A decisão prévia, ato pelo qual um órgão da Administração aprecia a existência de
certos pressupostos de facto e a observância de certas exigências legais, sendo que de
uns e de outras depende a prática de uma decisão final permissiva;
c) A decisão parcial, ato por via do qual um órgão da Administração antecipa uma
parte da decisão final relativa ao objeto de um ato permissivo, possibilitando desde logo
a adoção pelo particular de um determinado comportamento;
166
Cfr. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 499/96.
135
d) A decisão provisória, ato através do qual um órgão da Administração, recorrendo
a uma averiguação sumária dos pressupostos de um tipo legal de ato, define uma
situação jurídica até à prática de uma decisão final, tomada então com base na
averiguação completa de tais pressupostos;
e) A decisão precária, ato por meio do qual um órgão da Administração define uma
situação jurídica com base na ponderação de um interesse público especialmente
instável ou volátil, sujeitando a respetiva consolidação à concordância do interessado na
sua revogação ou apondo-lhe uma condição suspensiva, que se concretizará na eventual
prática de um ato secundário desintegrativo ou modificativo.
78.2. Chamámos a atenção noutro ponto para as alterações que o novo texto do CPA
introduziu nesta matéria.
Dissemos então que, aparentemente, o privilégio de execução prévia está morto.
Porventura não completamente, dadas as dúvidas que deixámos expressas. Certo é que a
execução de atos administrativos continua sujeita a princípios e regras, inscritos nos
artigos 176.º a 183.º do CPA:
a) O princípio da legalidade da execução, consagrado no n.º 1 do artigo 176.º, que
abrange hoje também a tipicidade das formas de execução; de notar que se inclui agora
a previsão de que a execução administrativa do ato possa também ter lugar «em
situações de urgente necessidade pública, devidamente fundamentada»;
b) A regra do ato administrativo prévio (cfr. artigo 177.º, n.º 1, do CPA), no sentido
de reforçar esta exigência – que se afigura sê-lo do próprio Estado de direito –, o
legislador determinou explicitamente a autonomização da decisão de proceder à
execução relativamente ao ato administrativo que se pretende executar; aquela decisão,
autónoma e devidamente fundamentada, é acompanhada da indicação do conteúdo da
execução e dos respetivos termos; com ela se inicia o procedimento de execução,
estando sujeita a notificação ao interessado (artigo 177.º, n.ºs 2 e 3);
c) O princípio da proporcionalidade, já referido noutro ponto, e que adquire aqui uma
relevância especial (cfr. artigo 178.º, n.º 1);
d) O princípio da observância dos direitos fundamentais e do respeito devido à
pessoa humana (cfr. artigo 178.º, n.º 2).
167
Cfr. RAVI AFONSO PEREIRA, «A execução do acto administrativo no direito português», in Em
Homenagem ao Professor Doutor Diogo Freitas do Amaral, Coimbra, 2010, em especial as pp. 816 a
841.
168
Neste ponto discordamos de DIOGO FREITAS DO AMARAL, que considera executórios os atos
eficazes, apenas pelo facto de o serem – cfr. Curso..., cit., Volume II, p. 263.
136
78.3. O CPA prevê três formas de execução do ato administrativo – existindo outras
reguladas em leis avulsas –, que se distinguem entre si pela finalidade da execução:
a) O pagamento de obrigação pecuniária, prevista no artigo 179.º (pagamento de
quantia certa);
b) A entrega de uma coisa, regulada no artigo 180.º (entrega de coisa certa);
c) A adoção de um comportamento material, de que trata o artigo 181.º (prestação de
facto).
A execução de obrigações pecuniárias tem carácter necessariamente judicial,
consequência da remissão para «o processo de execução fiscal, tal como regulado na
legislação do processo tributário» (artigo 179.º, n.º 1).
137
CAPÍTULO III
VALIDADE E EFICÁCIA DO ATO ADMINISTRATIVO
Leituras aconselhadas169:
169
Algumas das leituras aconselhadas no capítulo anterior também interessam para o presente
capítulo.
139
Procedimento Administrativo», in O Novo Código do Procedimento Administrativo,
Braga, 2015, pp. 481 a 493.
140
designadamente em execução de decisões dos tribunais ou na sequência de anulação
administrativa171.
Quanto à eficácia diferida ou condicionada, o artigo 157.º do CPA admite-a por duas
ordens de razões que obstam à produção de efeitos do ato:
• porque este se encontra sujeito a aprovação ou a referendo;
• ou porque os seus efeitos estão dependentes de condição ou de termo suspensivos
ou, ainda, «de trâmite procedimental ou da verificação de qualquer requisito que não
respeite à validade do próprio ato».
171
Recomenda-se a leitura das páginas que PAULO OTERO dedicou ao que designou por «Conformação
da Administração Pública e atendibilidade do passado», na sua obra Manual de Direito Administrativo,
cit., pp. 448 a 555
141
Por via da regra, também o texto integral do ato deve constar da notificação; todavia,
no caso de o ato deferir integralmente pretensão do interessado, a notificação pode
limitar-se a incluir um resumo do conteúdo e objeto daquele (n.º 3 do artigo 114.º).
Também a forma das notificações é objeto de regulamentação.
Nos termos do n.º 1 do artigo 112.º, as notificações são, no comum dos casos, feitas
por escrito (carta registada), pessoalmente, por telefone, telefax, mensagem de correio
eletrónico ou notificação eletrónica. A notificação através de edital – a mais antiga
forma de notificação – é sobretudo utilizada quando não é possível identificar os
notificandos, ou estes se encontram em parte incerta.
A notificação por anúncio utiliza-se quando os notificandos são muitos – mais de
cinquenta, estabelece a lei.
Os restantes números do artigo 112.º regulam o recurso às diferentes formas de
notificação.
172
Cfr. JOÃO CAUPERS, Legislação Administrativa, 5.ª edição, Lisboa, 1989, p. 712.
173
O § único do artigo 19.º da antiga Lei Orgânica do Supremo Tribunal Administrativo.
142
• a incompetência consubstancia-se na prática por um órgão de uma pessoa coletiva
pública de um ato incluído nas atribuições de outra pessoa coletiva pública174
(incompetência absoluta), ou na competência de outro órgão da mesma pessoa
coletiva (incompetência relativa).
b) Vícios formais: o vício de forma consiste na carência de forma legal ou na
preterição de formalidades essenciais.
c) Vícios materiais, relativos ao objeto, ao conteúdo ou aos motivos do ato:
• o desvio de poder traduz-se no exercício de um poder discricionário por um
motivo principalmente determinante desconforme com a finalidade para que a lei
atribuiu tal poder175;
• a violação de lei consiste na discrepância entre o objeto ou o conteúdo do ato e as
normas jurídicas com que estes deveriam conformar-se – aqui se incluindo contratos
administrativos previamente celebrados e atos administrativos constitutivos de direitos.
Integram este vício, nomeadamente, a falta de base legal do ato administrativo, a
impossibilidade ou a ininteligibilidade do objeto ou do conteúdo do ato e a ilegalidade
dos elementos acessórios deste.
174
Ou de outro ministério, no caso da pessoa coletiva Estado.
175
O desvio de poder tanto pode ocorrer por motivos de interesse público, como por motivos de
interesse particular.
176
Sobre as especialidades da formação da vontade administrativa, cfr. PAULO OTERO, Direito do
Procedimento Administrativo, cit., pp. 462 a 470.
177
É imprescindível ler o texto de JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, «A nulidade administrativa, essa
desconhecida», in Em Homenagem ao Professor Doutor Diogo Freitas do Amaral, Coimbra, 2010, em
especial as pp. 775 a 791. Aí o Autor, para além da desmontagem do regime legal, explica as razões da
sua dureza e inflexibilidade, demonstrando como esse regime tem de ser moderado na sua aplicação. Na
qualidade de membro da comissão de revisão do CPA terá sido, provavelmente, o principal responsável
pelo “abrandamento” do regime legal.
143
• o ato nulo é ineficaz ab initio, independentemente da declaração da respetiva
nulidade;
• a nulidade é insanável e o ato nulo é passível de impugnação contenciosa ilimitada
no tempo178;
• o órgão da Administração competente para a anulação administrativa ou um
tribunal administrativo podem declarar a nulidade179;
• assiste aos funcionários públicos, confrontados com um ato nulo, o direito de
desobediência, e aos cidadãos, em circunstâncias idênticas, o direito fundamental de
resistência (cfr. artigo 21.º da CRP).
O artigo 162.º do CPA contém, como n.º 3, uma disposição inovatória, que
flexibiliza o regime da nulidade. Nos termos desta disposição, não se encontra excluída
«a possibilidade de atribuição de efeitos jurídicos a situações de facto decorrentes de
atos nulos, de harmonia com os princípios da boa-fé, da protecção da confiança e da
proporcionalidade ou outros princípios jurídicos constitucionais, designadamente
associados ao decurso do tempo».
Esta disposição, que registamos como uma inovação muito positiva, modela os
efeitos da nulidade de forma prudente e equilibrada. Goste-se ou não, o tempo tem um
efeito diluidor do desvalor dos comportamentos anti-jurídicos. Não fazia sentido e
comportava significativos inconvenientes a absoluta imunidade dos atos administrativos
aos efeitos do tempo, por graves que fossem as suas deficiências. O legislador, de
alguma forma, relativizou a nulidade.
178
A norma do n.º 4 do artigo 69.º do Regime Geral da Urbanização e da Edificação, aprovado pelo
Decreto-Lei n.º 555/99, de 16 de Dezembro, com a redação que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 214-
G/2015, de 2 de outubro, ao estabelecer que «a possibilidade de o órgão que emitiu o ato ou deliberação
declarar a nulidade caduca no prazo de 10 anos» constitui importante exceção a esta projeção ilimitada no
tempo das consequências da nulidade. Mesmo que se entenda que não se trata propriamente de sanação
do vício gerador da nulidade, a verdade é que o ato nulo, de uma ou outra forma, se consolida na ordem
jurídica.
179
Como refere LICÍNIO LOPES MARTINS – «A invalidade do acto administrativo no novo Código do
Procedimento Administrativo», in Comentários ao Novo Código do Procedimento Administrativo,
Lisboa, 2015, pp. 902/903 –, independentemente desta limitação à competência para declarar a nulidade
(que no anterior CPA podia ser declarada, nos termos do n.º 2 do artigo 134.º, «por qualquer órgão
administrativo ou por qualquer tribunal»), qualquer tribunal ou órgão administrativo tem o poder-dever de
desaplicar os atos nulos.
144
fundamento em invalidade (artigo 145.º, n.º 2), o n.º 2 do artigo 163.º considera a
produção de efeitos retroativos apenas uma possibilidade180.
Em nome do princípio do aproveitamento do ato administrativo, o efeito anulatório
não se produz nas situações previstas no n.º 5181:
a) Quando não existem alternativas válidas ao ato ou que este teria, de qualquer
modo, sido praticado com o mesmo conteúdo [alíneas a) e c)];
b) Quando, tratando-se de vício formal ou procedimental, a finalidade prosseguida
haja sido, apesar disso, alcançada [alínea b)].
Não é nada pacífica esta projeção do princípio do aproveitamento dos atos
administrativos. Entre as críticas mais contundentes estão as de ISABEL CELESTE
FONSECA – proferidas ainda sobre o Projeto de CPA –, que se concentram na alínea b)
do n.º 5182.
Chamando a atenção para a imprecisão, ambiguidade e falta de sustentação
metodológica daquele princípio, critica aquilo que considera um golpe de morte nas
garantias procedimentais fundamentais dos interessados, «permitindo-se que o efeito
anulatório possa ser afastado pelo juiz administrativo quando se comprove que a
anulabilidade decorrente de vício formal ou procedimental não teve qualquer influência
na decisão»183.
Mas também ANDRÉ SALGADO DE MATOS procurou demonstrar que «existem razões
fortes para rejeitar a teoria do aproveitamento do ato administrativo, seja qual for a sua
fundamentação»184.
Afiguram-se excessivas as críticas dirigidas nesta matéria às soluções adotadas no
CPA. A ideia de aproveitamento do ato administrativo, seja qual for a sua justificação
teórica, é uma ideia positiva185.
Corresponde a uma tendência para privilegiar aspetos substantivos do
relacionamento entre a Administração e os particulares, em detrimento do respeito
absoluto pelos mecanismos formais que, com frequência, embaraçam mais do que
facilitam aquele relacionamento.
Não negamos que assim se corra o risco de fornecer alguma cobertura a
comportamentos da Administração que, por via da desconsideração dos rituais
procedimentais, possam lesar os particulares. Mas julgamos que subjaz às posições mais
críticas às opções do CPA uma visão algo distorcida dos comportamentos e das
motivações da Administração, como se esta se empenhasse denodadamente em
aproveitar todas as oportunidades que o legislador lhe dá para maltratar os cidadãos e as
empresas.
180
Cfr. ALEXANDRA LEITÃO, «A eficácia dos atos...», cit., p. 1000.
181
Sobre as implicações do reconhecimento deste princípio, cfr. MARCO CALDEIRA, «A figura da
“Anulação Administrativa” no novo Código do Procedimento Administrativo de 2015», in Comentários
ao Novo Código do Procedimento Administrativo, Lisboa, 2015, pp. 651 a 654.
182
«Tramitação e formalidades: (proposta de) golpes às garantias procedimentais fundamentais dos
interessados», in Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 100, Julho/Agosto de 2013, pp. 87 a 94.
183
VASCO PEREIRA DA SILVA critica igualmente a autodesvalorização das regras de procedimento
administrativo – «“O inverno do nosso descontentamento” – As impugnações administrativas no projeto
de revisão do CPA», in Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 100, Julho/Agosto de 2013, p. 124.
184
«A invalidade do ato administrativo no projeto de revisão do Código do Procedimento
Administrativo», in Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 100, Julho/Agosto de 2013, p. 64.
185
Defendida, com bons argumentos, por MÁRIO AROSO DE ALMEIDA – Teoria Geral do Direito
Administrativo, cit., pp. 274-275.
145
84. Âmbito de aplicação dos regimes da nulidade e da anulabilidade
84.1. O regime da nulidade, previsto no artigo 161.º do CPA, aplica-se, nos exatos
termos desta disposição, aos seguintes atos:
a) Os atos viciados de usurpação de poder;
b) Os atos estranhos às atribuições dos ministérios, ou das pessoas coletivas referidas
no artigo 2.º, em que o seu autor se integre;
c) Os atos cujo objeto ou conteúdo seja impossível, ininteligível ou constitua ou seja
determinado pela prática de um crime;
d) Os atos que ofendam o conteúdo essencial de um direito fundamental;
e) Os atos praticados com desvio de poder para fins de interesse privado;
f) Os atos praticados sob coação física ou sob coação moral;
g) Os atos que careçam em absoluto de forma legal;
h) As deliberações de órgãos colegiais tomadas tumultuosamente ou com
inobservância do quórum ou da maioria legalmente exigidos;
i) Os atos que ofendam os casos julgados;
j) Os atos certificativos de fatos inverídicos ou inexistentes;
k) Os atos que criem obrigações pecuniárias não previstas na lei;
l) Os atos praticados, salvo em estado de necessidade, com preterição total do
procedimento legalmente exigido.
Comparando esta enumeração com a que constava do n.º 2 do artigo 133.º do anterior
código, encontramos quatro novas nulidades – nas alíneas e), j), k) e l) – e
comprovamos o desaparecimento de uma: a nulidade dos «atos consequentes de atos
administrativos anteriormente anulados ou revogados», constante da alínea i) do n.º 2 do
artigo 133.º do anterior código.
84.3. Em anteriores edições deste texto escreveu-se que o regime da nulidade era
excecional, uma vez que o regime regra era, nos termos estabelecidos no texto do CPA
então vigente – como continua a ser hoje –, o da anulabilidade.
Todavia, o texto atual do CPA comporta uma causa de perplexidade. No texto
anterior, o n.º 1 do artigo 133.º dispunha que «são nulos os actos administrativos a que
falte qualquer dos elementos essenciais». Obedecendo à técnica legislativa, comum, da
cláusula geral seguida de uma enumeração exemplificativa, o n.º 2 enumerava os mais
significativos casos de nulidade. Porém acentuando, como mandam as boas práticas de
146
legística, o carácter exemplificativo da enumeração, este era anunciado através do uso
do advérbio designadamente: «são, designadamente, nulos...». Ao lado destes,
encontravam-se aqueles outros atos para os quais a lei – uma lei – determinava a
respetiva nulidade.
O legislador de 2015 optou pela eliminação da cláusula geral de nulidade, limitando-
se a proclamar que «são nulos os atos para os quais a lei comine expressamente essa
forma de invalidade».
Com esta alteração, explica no preâmbulo do diploma, quis eliminar a controvérsia
existente a propósito das chamadas nulidades por natureza, cuja busca constrangia o
aplicador do código a uma demanda sobre a essencialidade de certos elementos do ato
administrativo186.
A opção suscita opiniões favoráveis e opiniões críticas. A favor, estão aqueles que,
como os autores do Projeto de CPA, entendem que a formulação normativa anterior
constituía fator de insegurança.
Contra, estão os que, como ANDRÉ SALGADO DE MATOS, sustentam que «a ausência
de uma cláusula geral de nulidade constitui um factor de rigidez do sistema de
invalidade que dificulta a obtenção de soluções axiologicamente correctas e diminui a
adaptabilidade das soluções legais à evolução da realidade jurídica»187.
VASCO PEREIRA DA SILVA, escrevendo também ainda sobre o Projeto de CPA,
manifestou-se favoravelmente à manutenção de uma cláusula geral de nulidade,
formulando votos para que o legislador viesse a incluí-la, não obstante assinalar que o
Projeto conservara a frase são, designadamente, nulos188.
LICÍNIO LOPES MARTINS, pelo seu lado, considera a eliminação das nulidades por
natureza, «no mínimo (...) discutível»189.
Também VÍTOR MANUEL MIRANDA NOVO expressa as suas dúvidas quanto à bondade
da solução legislativa190.
Independentemente do que se pense quanto à substância da opção feita pelo
legislador do CPA, ela comporta uma irracionalidade legística. Ao suprimir a cláusula
geral de nulidade, conservando uma enumeração exemplificativa, refletida na
manutenção da frase são, designadamente, nulos, criou uma perplexidade: se os atos
nulos são agora apenas aqueles que a lei diz que são nulos, então qual o papel
desempenhado pelo advérbio designadamente?
Existem outros atos nulos para além daqueles para os quais a lei comina
expressamente a nulidade? Talvez atos para os quais a lei não a comina expressamente,
mas cujo regime específico é, por si, impositivo da nulidade? Ou outros? E, a ser assim,
qual o fio condutor da nulidade, uma vez desaparecidas as nulidades por natureza?
186
No sentido de que as nulidades por natureza desapareceram mesmo, MÁRIO AROSO DE ALMEIDA,
Teoria Geral do Direito Administrativo, cit., p. 265. Mas não é nada seguro que o legislador tenha tido
êxito: PAULO OTERO sustenta que a cláusula geral de nulidade constante do n.º 2 do artigo 284.º do Código
dos Contratos Públicos deve ser «alargada aos atos administrativos, desde logo a todos aqueles que
tenham um objeto passível de contrato administrativo e a nulidade for o desvalor do contrato. E
acrescenta que este alargamento não exclui a possibilidade de ainda existir espaço para possíveis
“nulidades por natureza” de atos administrativos» – Direito do Procedimento Administrativo, cit., p. 638.
187
Cfr. «A invalidade do ato administrativo no projeto...», cit., p. 47.
188
«“O inverno do nosso descontentamento”– As impugnações...», cit., pp. 123-124.
189
«A invalidade do acto administrativo...», cit., pp. 886 a 890.
190
«O fim (?) da nulidade por natureza no novo Código do Procedimento Administrativo», in O Novo
Código do Procedimento Administrativo, Braga, 2015, pp. 487 a 491.
147
85. Sanação dos atos inválidos
191
Cfr. DIOGO FREITAS DO AMARAL, Curso…, cit., Volume II, pp. 369 a 371.
192
Cfr. RUI MACHETE, «Sanação», in Dicionário Jurídico da Administração Pública, Volume VII, pp.
341 a 343. Sobre este tema, cfr. ANTÓNIO LEITÃO AMARO, «A estabilização dos efeitos dos actos
administrativos anuláveis pelo decurso do tempo», in Direito e Justiça, Volume XIX, Tomo II, 2005, pp.
69 a 155.
193
Não acompanhamos DIOGO FREITAS DO AMARAL quando sustenta que «é incontroverso que
[decorrido o prazo de impugnação judicial] a Administração deixa também de poder anular o ato
administrativo segundo o regime previsto no artigo 168.º do CPA», apenas podendo fazê-lo com base no
regime da revogação. É que o n.º 5 deste mesmo artigo prevê precisamente que o ato já inimpugnável
judicialmente «possa [só possa] ser objeto de anulação administrativa oficiosa» – cfr. Curso…, cit.,
Volume II, p. 370.
148
CAPÍTULO IV
OS ATOS SECUNDÁRIOS
A EXTINÇÃO DO ATO ADMINISTRATIVO
Leituras aconselhadas194:
194
Algumas das leituras aconselhadas no capítulo anterior também interessam para o presente capítulo.
195
Uma suposta terceira categoria seria preenchida pela homologação, que consiste na apropriação
dos fundamentos e das conclusões de uma proposta ou de um parecer da autoria de outro órgão. A
verdade é que, contra o que anteriormente sustentámos, a homologação, conferindo a qualidade de
decisão a comportamento administrativo que a não tinha, deve ser considerada um ato administrativo
primário.
149
• a aprovação (e o visto), que exprime concordância com um ato praticado por outro
órgão – a aprovação confere eficácia a uma decisão que era ineficaz;
• o ato confirmativo, que reitera e mantém em vigor um ato administrativo anterior
da autoria do mesmo órgão ou de um subordinado seu.
86.4. São de três espécies os atos modificativos, que alteram atos administrativos
anteriores:
• a retificação, que corrige erros manifestos, materiais ou de cálculo, de um ato
administrativo anterior (cfr. artigo 174.º do CPA);
• a substituição, que a lei atual equipara à alteração do ato (artigo 173.º);
• a suspensão, que paralisa temporariamente os efeitos de ato administrativo anterior
[cfr. artigo 152.º, n.º 1, alínea e)].
À substituição e à alteração é aplicável o regime legal da revogação (cfr. artigo 173.º,
n.º 1); a retificação tem um regime legal próprio, constante do artigo 174.º .
86.5. Até há bem pouco, o principal ato secundário desintegrativo era a revogação,
ato administrativo que, dizia-se, visava destruir ou fazer cessar os efeitos de um ato
anterior.
A importância fundamental da revogação decorria da circunstância de este ato
representar o momento crucial do relacionamento entre a Administração Pública e os
particulares, momento em que se torna mais delicado o equilíbrio entre o princípio da
prossecução do interesse público e o respeito pelos interesses dos cidadãos.
Na verdade, enquanto o primeiro princípio recomenda que se reconheça à
Administração a faculdade de eliminar um seu ato anterior, agora julgado inadequado a
uma correta reavaliação dos interesses públicos a prosseguir, já o segundo princípio
196
ANDRÉ SALGADO DE MATOS recorda que esta possibilidade existe há muito no âmbito do direito
civil – «A invalidade do ato administrativo no projeto...», cit., p. 67.
150
aconselha que a confiança que os cidadãos depositaram nos atos da Administração não
seja abalada por inopinadas alterações da avaliação dos interesses públicos, levadas a
cabo por esta.
Compor um equilíbrio razoável entre estes dois propósitos é o objetivo fundamental
de qualquer regime legal da revogação.
O CPA de 2105 introduziu uma alteração significativa na dogmática jurídico-
administrativa portuguesa, ao autonomizar a figura da anulação administrativa, como
espécie de ato administrativo desintegrativo. Até agora, a revogação preenchia todas as
hipóteses de destruição do ato através da prática de outro ato administrativo, ficando o
termo anulação reservado para a destruição dos efeitos do ato administrativo decorrente
de uma sentença judicial. Toda a anulação era, ipso facto, judicial.
A revogação, enquanto ato administrativo, comportava duas modalidades:
• a revogação com fundamento em ilegalidade do ato revogado, com efeitos
retroativos, coberta pelo termo destruir (efeitos);
• a revogação com fundamento em inconveniência ou inoportunidade, desprovida de
efeitos retroativos, coberta pelo termo extinguir ou pela expressão fazer cessar (ainda os
efeitos).
O que o legislador de 2015 fez foi aproximar a nomenclatura portuguesa de outras
predominantes na Europa (França, Espanha, etc.), substituindo a revogação, dita, pela
semelhança da projeção retroativa dos efeitos, anulatória, pela nova anulação
administrativa, fundada em ilegalidade, ficando o termo revogação reservado, em
exclusivo, para a revogação, até agora dita extintiva.
A alteração afigura-se positiva.
Na verdade, existia uma diferença fundamental de natureza entre as antigas
revogação anulatória e revogação extintiva: enquanto a primeira visava objetivos
puramente jurídicos – a reposição da legalidade ofendida –, já a segunda decorria de
uma reavaliação do interesse público prosseguido pelo ato revogando.
Ou seja: a primeira estava mais próxima da anulação judicial do que da revogação
extintiva. A alteração aproximou a nomenclatura da realidade197.
Em função desta alteração, há agora que analisar com autonomia as duas espécies de
atos secundários desintegrativos: a anulação administrativa, primeiro; a revogação,
depois.
87.1. O novo texto do CPA autonomizou a anulação administrativa, mas não cortou o
cordão que a liga à revogação: não só as disposições do código que regulam ambas se
encontram na mesma secção – a Secção IV do capítulo dedicado ao ato administrativo –
, como muitas das disposições que integram esta secção se aplicam a ambas, isto para
além da própria epígrafe da secção – Da revogação e da anulação administrativas198.
Dos oito artigos que se ocupam da matéria (165.º a 172.º), somente um contempla
exclusivamente a revogação (o artigo 167.º) e apenas dois visam exclusivamente a
anulação administrativa (os artigos 168.º e 172.º).
197
Cfr. DIOGO FREITAS DO AMARAL, Curso..., cit., Volume II, p. 376.
198
Estranho uso do plural, uma vez que não existe outra revogação que não seja a administrativa.
151
Faz, pois, sentido, começar pelos aspetos do regime comuns às duas espécies de atos.
São eles os atos insuscetíveis de revogação ou anulação administrativa, a competência
para a sua prática e a iniciativa para tal, a forma e as formalidades e os efeitos.
87.2. Sendo a anulação administrativa e a revogação atos que têm por alvo os efeitos
de um ato administrativo anterior, os atos insuscetíveis de revogação e anulação
administrativa, enumerados no artigo 166.º do CPA, são, no essencial, atos que nunca
produziram efeitos ou que já os não produzem – ou porque eram nulos, ou porque foram
anulados por um tribunal administrativo, ou porque, excecionalmente, foram revogados
com eficácia retroativa.
A lei permite ainda a anulação administrativa ou a revogação, com eficácia
retroativa, de atos que já não produzam efeitos, por haverem caducado ou por estes se
terem esgotado (artigo 166.º, n.º 2). O objetivo é, evidentemente, destruir efeitos já
produzidos.
199
Concordamos com CARLA AMADO GOMES quando sustenta que somente o órgão competente para a
prática do ato objeto de revogação ou anulação administrativa pode praticar estes – «A“revogação” do
acto administrativo; uma noção pequena», in Comentários ao Novo Código do Procedimento
Administrativo, Lisboa, 2015, p. 1030. E não acompanhamos DIOGO FREITAS DO AMARAL quando escreve
que «os atos administrativos praticados por órgão incompetente podem ser objeto de anulação
administrativa pelo órgão competente para a sua prática; mas não podem ser por este revogados, porque o
dever de anular atos ilegais não inclui o poder de os revogar por motivos de mérito» – Curso…, cit.,
Volume II, p. 399. Esta distinção não tem arrimo na letra do n.º 6 do artigo 169.º, que considera
explicitamente as duas possibilidades.
152
interessados». Note-se que esta norma tem de ser sensatamente entendida, pois existem
formalidades exigidas para o ato primário que não fazem sentido relativamente ao ato
de anulação administrativa ou de revogação.
É o que ocorre com os pareceres obrigatórios, que condicionam a prática daquele.
87.5. Resta apreciar os efeitos destes atos, regulados no artigo 171.º do CPA.
Não obstante regulados no mesmo artigo, são distintas as regras relativas à produção
de efeitos do ato de anulação administrativa e do ato de revogação.
Quanto ao primeiro, a regra geral, estabelecida no n.º 3, é a de que o ato de anulação
produz efeitos retroativos; no que respeita ao segundo, a regra geral é a oposta: apenas
produz efeitos prospetivos (n.º 1).
Também a produção de efeitos repristinatórios – isto é, a reposição do ato anulado ou
revogado – difere: a anulação administrativa, em princípio, produ-los (n.º 3); a
revogação, pelo contrário, não os produz.
Em qualquer dos casos, a lei admite exceções.
200
Cfr. MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, Teoria Geral do Direito Administrativo, cit., pp. 334 a 336.
201
Merecem ponderação as críticas dirigidas por LICÍNIO LOPES MARTINS, in «A invalidade do acto
administrativo...», cit., pp. 910 a 912, a esta possibilidade, inscrita no n.º 1 do artigo 168.º do CPA: o
regime legal precariza excessivamente as posições dos destinatários de atos que lhes sejam favoráveis.
153
Se o ato administrativo for constitutivo de direitos, o prazo de anulação
administrativa é, em princípio, de um ano (n.º 2)202.
Este prazo, todavia, estende-se a cinco anos quando ocorram as circunstâncias
descritas nas três alíneas do n.º 4 do artigo 168.º.
Atos administrativos constitutivos de direitos são, nos termos do n.º 3 do artigo 167.º
do CPA, os atos que atribuam ou reconheçam situações jurídicas de vantagem ou
eliminem ou limitem deveres, ónus, encargos ou sujeições, salvo quando a sua
precariedade decorra da lei ou da natureza do ato.
202
Merece igualmente ser ponderada a aplicação do prazo de seis meses também à anulação de atos
constitutivos de direitos. Veja-se, neste sentido, ALEXANDRE SOUSA PINHEIRO e outros, Questões
Fundamentais para a Aplicação do CPA, Coimbra, 2016, p. 267.
203
«A figura da “Anulação Administrativa” no Novo Código...», cit., p. 661. No mesmo sentido,
CLÁUDIA GARCIA, «O novo regime da anulação administrativa. O caso particular do dever de anulação do
artigo 168.º, n.º 7, do novo Código do Procedimento Administrativo», in O Novo Código do
Procedimento Administrativo, Braga, 2015, p. 175.
154
saber se a Administração pode ou deve anular os atos administrativos ilegais – se se
trata de um poder discricionário ou de um poder vinculado.
O segundo sublinha que, ainda que haja de distinguir-se no plano da “intensidade”
jurídica, a formulação do n.º 7 do artigo 168.º, quando confrontada com a dos restantes
números deste artigo, a anulação administrativa do ato ilegal «não pode estar na livre
disponibilidade da Administração, pelo simples facto de que dela depende a
reintegração da legalidade ofendida e, com ela, o próprio cumprimento do dever que à
Administração se impunha de não a ter violado, que decorre do princípio da
legalidade»204.
87.8. Específico da revogação é o artigo 167.º do CPA, preceito que se ocupa dos
condicionalismos aplicáveis a esta.
A regra geral na matéria é, não obstante a formulação do n.º 1, a da revogabilidade
dos atos administrativos. Na verdade, eles só não podem ser revogados se tal revogação
consubstanciar um ato contrário à lei – porque a prática do ato revogando decorreu de
imposição legal, ou porque dele resultaram para a administração obrigações legais ou
direitos irrenunciáveis.
Os atos constitutivos de direitos enfrentam, uma vez mais em nome da proteção da
confiança e da boa-fé, sérias limitações à revogação.
204
Teoria Geral do Direito Administrativo, cit., pp. 341 a 363, em especial, p. 349.
155
As segundas encontram-se enumeradas no n.º 2 do artigo 167.º: pressupõem que a
revogação favorece os beneficiários do ato [alíneas a) e b)]; ou assentam na
«superveniência de conhecimentos técnicos e científicos ou em alteração objetiva das
circunstâncias de facto» [alínea c)]; ou, ainda, se a lei tal admitir, têm como fundamento
a reserva de revogação [alínea d)].
Não obstante a lei, uma vez mais preocupada com os beneficiários de boa-fé, ter
reconhecido a estes o direito a indemnização pelo sacrifício, prevê ainda que possam ter
direito a uma indemnização correspondente «ao valor económico do direito eliminado
ou da parte do direito que tiver sido restringida (...) quando a afetação do direito, pela
sua gravidade ou intensidade, elimine ou restrinja o conteúdo essencial desse direito».
Não temos objeções de princípio a este quadro de flexibilização do regime da
revogação, quando confrontado com a rigidez do regime anterior. Receamos, contudo,
que o legislador possa ter ido longe demais, sobretudo quando admite a revogação
fundada em alteração objetiva das circunstâncias de facto e fixa um prazo para a
revogação que pode ir até três anos. Três anos contados do conhecimento de um
conceito relativamente indeterminado – que tem de ser densificado pela Administração
– afigura-se poder introduzir um fator de incerteza excessiva, suscetível de minar a
confiança que o particular deposita no comportamento administrativo.
156
CAPÍTULO V
CONTRATOS PÚBLICOS
Leituras aconselhadas:
157
Nosso Tempo, Coimbra, 2002, pp. 9 a 146; IDEM, «A relação jurídica fundada em
contrato administrativo», in Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 64, Julho/Agosto
de 2007, pp. 55 a 69; IDEM, Regime jurídico das empresas municipais, Coimbra, 2007,
pp. 178 a 189.
B) Sobre o CCP
158
pública, Coimbra, 2011; MARK BOBELA-MOTA KIRBY, «Conceito e critérios de
qualificação do contrato administrativo: um debate académico com e em homenagem ao
Senhor Professor Sérvulo Correia», in Estudos em Homenagem do Prof. Doutor Sérvulo
Correia, Volume II, Coimbra, 2010, pp. 759 a 809; IDEM, «Atos administrativos sujeitos
a procedimentos adjudicatórios de contratação pública – o artigo 1.º, n.º 3, do Código
dos Contratos Publicos», in Revista dos Contratos Públicos, n.º 4 (janeiro - abril de
2012), p. 111; MIGUEL ASSIS RAIMUNDO, «O objecto sujeito à concorrência de mercado
no Código dos Contratos Públicos», in Estudos de Homenagem ao Prof. Doutor Jorge
Miranda, Volume IV, Coimbra, 2012, pp. 675 a 695; IDEM, A Formação dos Contratos
Públicos (uma concorrência ajustada ao interesse público), Lisboa, 2013; IDEM,
«Grelha + nota = fundamentação. A questão da fundamentação numérica», in Cadernos
de Justiça Administrativa, n.º 109, Janeiro/Fevereiro de 2015, pp. 30 e segs; PEDRO
FERNÁNDEZ SÁNCHEZ, «A persistência das dúvidas acerca do alcance das causas de não
adjudicação em procedimentos de contratação pública», in Cadernos de Justiça
Administrativa, n.º 109, Janeiro/Fevereiro de 2015, p. 47; PEDRO GONÇALVES,
«Concorrência e contratação pública (a integração de preocupações concorrenciais na
contratação pública)», in Estudos em Homenagem a Miguel Galvão Teles, Volume I,
Coimbra, 2012, pp. 479 a 516; IDEM, Direito dos Contratos Públicos, Coimbra, 2015;
PEDRO MIGUEL MATIAS PEREIRA, Os poderes do contraente público no Código dos
Contratos Públicos, Coimbra, 2011; RODRIGO ESTEVES DE OLIVEIRA, «O contencioso
urgente da contratação pública», in Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 78,
Novembro/Dezembro de 2009, pp. 3 a 16; RUI GUERRA DA FONSECA, «A execução do
acto administrativo», in http://www.icjp.pt/debate/4268/4285; RUI MEDEIROS, «Âmbito
do novo regime da contratação pública à luz do princípio da concorrência», in Cadernos
de Justiça Administrativa, n.º 69, Maio/Junho de 2008, pp. 3 a 29; VASCO PEREIRA DA
SILVA, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, cit., p. 487; VERA EIRÓ,
«Adjudicar, não contratar e... indemnizar, anotação ao acórdão do STA de 22.10.2009»,
in Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 80, Março/Abril de 2010, pp. 32 a 49; IDEM,
A obrigação de indemnizar das entidades adjudicantes, Coimbra, 2012.
159
O reconhecimento da capacidade da Administração Pública para se vincular por
contrato não implicou que se considerasse que esta se vinculava contratualmente em
termos idênticos aos particulares. Nasceu então a ideia de que os contratos em que a
Administração Pública outorgava constituíam necessariamente uma espécie de contratos
diferente dos outros, contratos típicos da Administração Pública, contratos
administrativos, enfim – o princípio da igualdade das partes parecia dificilmente
conciliável com a autoridade da Administração.
205
Pode encontrar-se uma exaustiva enumeração destes critérios em MARIA JOÃO ESTORNINHO,
Requiem pelo contrato administrativo, cit., pp. 71 a 110.
206
A noção legal em causa é passível de várias interpretações, como refere MARIA JOÃO ESTORNINHO
no seu «Contrato público: conceito e...», já citado, sobre o contencioso dos contratos da Administração
Pública – p. 18, nota 25.
207
«Apreciação da dissertação de doutoramento do Lic. J. M. Sérvulo Correia», in Revista da
Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Volume XXIX, 1988, pp. 166 a 168.
208
Legalidade e autonomia contratual nos contratos administrativos, cit., p. 396.
209
PAULO OTERO considera mesmo sustentável a defesa de «uma preferência legal pela utilização do
contrato administrativo relativamente ao acto administrativo» – Legalidade e Administração Pública...,
cit., p. 838.
160
O contrato administrativo ficou então colocado no mesmo plano do ato
administrativo, enquanto meio normal de exercício da atividade administrativa pública.
210
A propósito desta distinção, é essencial ter presente o pensamento de JOSÉ MANUEL SÉRVULO
CORREIA que, na sua obra fundamental, Legalidade e autonomia contratual nos contratos
administrativos, por mais de uma vez citada, concluiu expressamente, muito antes da publicação do
Decreto-Lei n.º 55/95, «pela natureza administrativa dos actos através dos quais a Administração forma a
vontade de contratar privadamente» (cfr. p. 559). Chama-se especialmente a atenção para as páginas 532-
533 e 549-550.
211
O Decreto-Lei n.º 134/98 tinha por desiderato proceder à transposição das Diretivas 89/665/CEE,
de 21 de Dezembro, e 92/13/CEE, de 25 de Fevereiro, conhecidas por “Diretivas Recursos”. A
circunstância de tal transposição não ter sido adequadamente feita conduziu o legislador a optar por uma
solução curiosa: tendo decidido adiar a entrada em vigor do CPTA para 1 de Janeiro de 2004, alterou
diversas disposições do Decreto-Lei n.º 134/98 para vigorarem somente até 31 de Dezembro de 2003 (cfr.
artigo 5.º da Lei n.º 4-A/2003, de 19 de Fevereiro).
161
Chegados a este ponto – em que coexistiam contratos administrativos e contratos
privados da Administração Pública, a uns e outros se aplicando múltiplas regras
comuns, de direito público umas, de direito privado outras [cfr. artigo 185.º, n.ºs 2 e 3,
alínea b), do CPA de 1991) –, era legítimo inquirir se ainda fazia sentido autonomizar a
figura do contrato administrativo. A história parecia pender para a posição que, a este
respeito, há muito subscreve MARIA JOÃO ESTORNINHO212.
88.4. A Reforma de 2002 da justiça administrativa não utilizou a expressão contrato
administrativo. Não podendo ser atribuída a omissão o sentido de proscrever a
expressão – não só por se tratar de uma lei adjetiva, como porque continuaram em vigor
diversas disposições do CPA de 1991 que a utilizavam –, parecia assistir-se ao
abandono do conceito, cada vez mais difícil de delimitar e de utilidade mais
duvidosa213. Diversos autores propuseram mesmo a generalização da expressão
contratos públicos para designar todos os contratos em que é outorgante a
Administração Pública214.
88.5. O último passo desta evolução é recente, representado pelo Código dos
Contratos Públicos (CCP), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 18/2008, de 29 de Janeiro,
que entrou em vigor no dia 30 de Julho daquele mesmo ano215.
Uma vez mais sopraram de Bruxelas os ventos que impulsionaram o legislador
nacional em direção a uma nova regulamentação da contratação pública. Na verdade,
era necessário proceder à transposição das Diretivas 2004/17/CE e 2004/18/CE
fundamentalmente relativas a procedimentos pré-contratuais públicos. Aproveitando a
ocasião, o legislador decidiu adotar um conjunto homogéneo de regras relativas àqueles
procedimentos e juntou-lhe ainda uma plêiade de disposições substantivas relativas à
contratação pública e, em particular, à execução dos contratos administrativos. Bem
pode dizer-se, por isso, que o CCP teve dois legisladores: o europeu e o nacional.
As diretivas europeias de 2004 foram entretanto revogadas, tendo sido aprovadas três
novas diretivas, aplicáveis aos procedimentos de formação dos contratos de
concessão216, de aquisição de bens, obras e serviços nos designados setores clássicos217
212
Esta Autora é quem mais tem aprofundado o tema: começou no seu Requiem pelo contrato
administrativo, Coimbra, 1990, em especial a «Nota Final», a pp. 183-184, e voltou a ele no escrito
Algumas questões de contencioso dos contratos da Administração Pública, já referido.
213
Pese embora o meritório esforço de Autores como PEDRO GONÇALVES – cfr. O Contrato
Administrativo..., cit., pp. 45 a 50.
214
Cfr. MARIA JOÃO ESTORNINHO, «Contrato público: conceito e limites», in Estudos em Homenagem
ao Prof. Doutor Armando Marques Guedes, Lisboa, 2004, pp. 387 a 397; AFONSO D’OLIVEIRA MARTINS,
«Para um conceito de contrato público», in Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Inocêncio
Galvão Telles, Volume V – Direito Público e Vária, Coimbra, 2003, pp. 475 a 493; CARLOS CADILHA,
«Contratos Públicos: do Decreto-Lei nº. 134/98, de 15 de Maio, à Reforma do Contencioso
Administrativo. Uma análise da Jurisprudência» in Scientia Iuridica, Janeiro - Abril de 2002, Tomo LI –
n.º 292, pp. 51 a 62.
215
O Decreto-Lei n.º 18/2008 foi retificado pela Declaração de Rectificação n.º 18-A/2008, de 28 de
Março. O CCP foi alterado pela Lei n.º 59/2008, pelo Decreto-Lei n.º 223/2009, pelo Decreto-Lei n.º
278/2009, pela Lei n.º 3/2010, pelo Decreto-Lei n.º 131/2010, pela Lei n.º 64-B/2011, pelo Decreto-Lei
n.º 149/2012 e, por último, pelo Decreto-Lei n.º 214-G/2015, de 2 de outubro, tendo sido sujeito a
adaptação para as Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira, operadas através dos Decretos
Legislativos Regionais n.º 27/2015/A, de 29 de dezembro e n.º 34/2008/M, de 14 de Agosto.
216
Diretiva 2014/23/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de fevereiro de 2014, relativa à
adjudicação de contratos de concessão.
217
Diretiva 2014/24/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de fevereiro de 2014, relativa
aos contratos públicos e que revoga a Diretiva 2004/18/CE.
162
e de aquisição de bens, obras e serviços nos setores especiais218. Estas três diretivas
foram aprovadas em 2014 e teriam de ser transpostas, na maioria das suas disposições,
até 18 de abril de 2016.
Por ora, o CCP ainda não foi adaptado nem revisto para garantir a transposição
destas diretivas. Apenas a Região Autónoma dos Açores veio regular matérias
específicas de contratação pública – aqui se incluindo os procedimentos de formação
dos contratos públicos – e também no que toca ao regime substantivo dos contratos
administrativos, expressando em diploma regional a intenção de transpor as diretivas de
2014 para aquela Região.
O CCP é um texto extenso – 473 artigos e seis anexos – e muito complexo – e
bastante desagradável de ler, apresentando normativos que quase necessitam de um
curso de formação para serem compreendidos219. Não obstante essa extensão e a
circunstância de consubstanciar uma codificação de direito substantivo, não apresenta
vocação exclusivista, deixando em vigor, integral ou parcialmente, inúmera legislação
avulsa – opção que, de resto, origina problemas delicados.
Ao contrário do que deixava antever a Reforma de 2002 da justiça administrativa, o
Código não apenas se manteve fiel, como sublinhou a autonomia conceptual e
dogmática do contrato administrativo. Para o legislador, nem todos os contratos da
administração são contratos administrativos220, nem todos os contratos públicos são
contratos administrativos e nem todos os contratos administrativos são contratos
públicos.
Ao arrepio da evolução ocorrida até ao CPTA de 2002, a sistematização do Código
reflete a (tentativa de) perpetuação da distinção: enquanto a Parte III se aplica apenas
aos contratos administrativos, que aí encontram o seu regime substantivo, já a Parte II
se aplica à contratação pública, dispondo apenas em matéria de formação dos contratos
públicos – que poderão ser ou não contratos administrativos. Esta pretendida autonomia
conceptual e dogmática do contrato administrativo reflete-se mesmo na consolidação e
no aprofundamento do regime geral desta espécie de contratos221.
A distinção entre contratos administrativos e contratos de direito privado surge de
novo no artigo 200.º, n.º 1, do CPA. A prática, porém, desmente a relevância desta
distinção, na medida em que os contratos privados da Administração surgem hoje em
situações cada vez mais residuais222. Por isso mesmo, melhor seria abandonar a figura
do contrato administrativo, fazendo aplicar a Parte III do CCP a todos os contratos
públicos223.
Vários aspetos do CCP, para além dos já mencionados, justificam uma referência.
218
Diretiva 2014/25/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de fevereiro de 2014, relativa
aos contratos públicos celebrados pelas entidades que operam nos setores da água, da energia, dos
transportes e dos serviços postais e que revoga a Diretiva 2004/17/CE.
219
Parágrafos enormes, como o n.º 3 do artigo 22.º, ou a alínea b) do n.º 1 do artigo 27.º, são um
verdadeiro desafio à paciência, senão mesmo à inteligência.
220
Mantendo-se, pois, aquilo que VASCO PEREIRA DA SILVA impressivamente designa de «dualidade
conceptual esquizofrénica» entre os contratos administrativos e os outros contratos da administração – O
Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, cit., p. 487.
221
Parece, portanto, ter obtido vencimento a tese de PEDRO GONÇALVES, a qual é agora sublinhada no
seu mais recente manual, Direito dos Contratos Públicos, cit., p. 434.
222
Ou, conforme refere ALEXANDRE LEITÃO, senão mesmo inexistentes. Cfr. Lições de Direito dos
Contratos Públicos, Lisboa, 2015, p. 40.
223
Ou a quase todos, tendo em conta que os contratos públicos celebrados pelas entidades que são
entidades adjudicantes apenas nos designados setores especiais são, em princípio, abrangidos por um
regime substantivo de direito privado (cfr. artigo 8.º do CCP).
163
Desde logo, a existência de diversos princípios que iluminam o texto e a que
voltaremos adiante: o princípio da igualdade, o princípio da concorrência, o princípio da
transparência, o princípio da conexão material e da proporcionalidade das prestações
contratuais, o princípio da boa-fé, o princípio da colaboração recíproca.
Depois, o enriquecimento da tipologia procedimental contratual, através da
introdução de novas vias de celebração de contratos: o ajuste direto sob fatura, o
procedimento de negociação, o diálogo concorrencial, a contratação eletrónica, a
intervenção das centrais de compras, os acordos-quadro.
Em terceiro lugar, a (tentativa de) simplificação, uniformização e aceleração dos
procedimentos pré-contratuais.
Por último, a adequação das regras procedimentais às novas formas de financiamento
dos contratos (o project finance), inspiradoras dos contratos particularmente complexos
a que se refere o artigo 30.º, envolvendo, nomeadamente, o reconhecimento dos direitos
de step in e de step out das entidades financiadoras (cfr. artigo 322.º).
No momento da ultimação deste texto aguarda-se a aprovação e publicação dos
diplomas que se destinarão a transpor as diretivas de 2014. Não sendo conhecido
qualquer projeto de diploma destinado a proceder a esta transposição, no texto que se
segue utilizar-se-á como referência tão só o CCP em vigor, acrescentando-se infra
breves notas sobre as disposições das diretivas de 2014 relativas às questões mais
relevantes.
88-A Não sendo este o lugar para fazer uma análise detalhada das alterações que estes
instrumentos de direito da União poderão determinar para o Código dos Contratos Públicos,
importa apontar alguns dos seus traços essenciais, até porque, tendo já decorrido o prazo de
transposição, algumas das suas normas poderão produzir o designado efeito direto vertical na
medida em que sejam claras, precisas e incondicionais224-225.
Seguimos, neste domínio, a apresentação esquemática de alguns pontos de relevo já
desenvolvidos por MIGUEL ASSIS RAIMUNDO naquele que se afigura um trabalho de análise
aprofundada das Diretivas de Contratação Pública e da sua influência no ordenamento jurídico
português226.
Assim, do novo regime das Diretivas de Contratação Pública, importa destacar:
a) A existência de um regime próprio aplicável aos contratos de concessão, que resulta agora
diretamente do texto das diretivas – não se ficando pelos princípios do TJUE227;
b) A afirmação de verdadeiros princípios gerais de contratação pública228;
c) A aprovação de um regime, mais simplificado, para a contratação de serviços sociais e
outros serviços específicos – abandonando-se, assim, o Anexo II-B da Diretiva 2004/18/CE229;
d) A possibilidade de os Estados-membros prosseguirem fins sociais através da adjudicação
de contratos públicos, com influência nos critérios de avaliação de propostas e de candidaturas;
224
Veja-se, a este propósito, os acórdãos do TJUE que estabeleceram o princípio do efeito direto
vertical, incluindo, para além dos demais, o Acórdão Van Duyn, de 4 de Dezembro de 1974 e o Acórdão
Ratti, de 5 de Abril de 1979.
225
Em Espanha, confrontado com a não transposição atempada das diretivas, o Governo aprovou uma
recomendação onde se identificam as regras das diretivas que, por produzirem efeito direto, determinam
alterações às regras espanholas de contratação pública. Cfr. Recomendación de la junta consultiva de
contratación administrativa del estado a los órganos de contratación en relación con la aplicación de las
nuevas directivas de contratación pública.
226
Cfr. «Uma primeira análise das novas directivas, Parte I e Parte II», in Revista de Contratos
Públicos, n.º 9, setembro/dezembro de 2013, pp. 5 a 57, e n.º 10, janeiro/abril de 2014, pp. 131 a 171.
227
Cfr. Diretiva 2014/23/EU relativa à adjudicação de contratos de concessão.
228
Cfr. artigo 18.º da Diretiva 2014/24/EU.
229
Cfr. artigos 74.º e seguintes da Diretiva 2014/24/UE, que estabelecem um regime especial de
contratação pública aplicável aos serviços sociais e outros serviços específicos.
164
e) A densificação e concretização de algumas condições de igualdade na participação de
candidatos ou concorrentes em procedimentos de formação de contratos públicos230;
f) A clarificação e o desenvolvimento de causas adicionais de exclusão – relacionadas com o
mau desempenho em contratos anteriores e com a violação de regras de natureza
jusconcorrencial, entre outros; paralelamente, as novas diretivas contemplam medidas de self
cleaning que permitem aos concorrentes ou candidatos “redimirem-se” das suas faltas e serem
novamente participantes em procedimentos de formação de contratos públicos231;
g) A densificação e consagração legislativa do designado regime in house e da cooperação
entre entidades públicas, que permite que entidades adjudicantes distintas, mas que (i) se
comportam como se de uma só entidade adjudicante se tratasse, ou que (ii) pretendem apenas a
partilha de recursos públicos, possam vir a contratar diretamente sem prévia necessidade de
seguir um procedimento de formação de um contrato público232;
h) A clarificação do regime aplicável à modificação objetiva e subjetiva de um contrato
público e às causas de invalidade subsequente de um contrato público, fazendo das normas das
Diretivas um verdadeiro repositório daquele que era já o sentido da jurisprudência do TJUE233;
i) A consagração de um novo tipo procedimental – a parceria para a inovação –, que concede
ma maior margem para entidade adjudicante e concorrentes negociarem os termos das propostas
apresentadas234.
Muitas mais alterações poderiam destacar-se neste momento, mas a sua identificação
extravasaria claramente o escopo deste escrito. Importa apenas notar que a transposição das
Diretivas de Contratação Pública não impõe, só por si e da nossa perspetiva, uma alteração de
grande monta ao Código dos Contratos Públicos, contentando-se com meros ajustes e
aperfeiçoamentos235.
230
Cfr. artigos 41.º e 57.º, n.º 5, alíneas e) e f), da Diretiva 2014/24/UE.
231
Cfr. artigo 57.º da Diretiva 2014/24/UE.
232
Cfr. artigo 12.º da Diretiva 2014/24/UE.
233
Cfr. artigos 72.º e 73.º da Diretiva 2014/24/UE.
234
Cfr. artigo 31.º da Diretiva 2014/24/UE.
235
O legislador não está, naturalmente, impedido de aproveitar a oportunidade para introduzir outras
alterações ao código. Veja-se sobre esta possibilidade, MARIA JOÃO ESTORNINHO, «A transposição das
diretivas europeias de 2014 e o Código dos Contratos Públicos: (2) proposta de transposição não
minimalista das diretivas», in A transposição das diretivas europeias de 2014 e o Código dos Contratos
Públicos, 2016, pp. 29 a 36.
236
Seguimos aqui JOÃO CAUPERS, «Âmbito de aplicação subjectiva do Código dos Contratos
Públicos», in Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 64, Julho/Agosto de 2007, pp. 9 a 14, para o qual se
remetem os detalhes explicativos.
165
Perante a irresistível tentação dos governos de manipularem tais categorias, como forma
de limitarem e condicionarem a aplicabilidade do direito da União Europeia, sobretudo
no domínio das garantias da concorrência, as instâncias comunitárias vieram impondo,
nomeadamente nas diretivas sobre contratação pública e sobre a resolução judicial dos
litígios emergentes destes, uma conceção de contrato público que dispensa quaisquer
exigências quanto à natureza jurídico-pública das entidades que outorgam contratos cujo
objeto se prende com a prossecução de interesses públicos, atendendo, sobretudo, à
finalidade do contrato e à respetiva fonte de financiamento.
Trata-se de uma conceção que desloca o centro de gravidade do conceito do plano
orgânico-jurídico para o plano funcional-económico.
O direito administrativo nacional, com alguma relutância e visível desconforto, vem
correspondendo às exigências da UE, abdicando progressivamente da tradicional
distinção entre pessoas coletivas públicas e pessoas coletivas privadas, sempre que estas
prossigam interesses de natureza pública, em condições suscetíveis de limitar ou
condicionar a concorrência237.
Diga-se em abono da verdade que a utilização da personalidade jurídica pública
como instrumento para traçar a fronteira da atividade contratual pública tem sido
corroída por outras causas, que não apenas a influência europeia.
As disposições relevantes no que respeita ao âmbito de aplicação subjetiva de regime
procedimental do CCP são os artigos 2.º, 7.º, 275.º, 276.º e 277.º.
O artigo 2.º do CCP delimita o universo das entidades adjudicantes de contratos
públicos em função de vários critérios.
Nas alíneas a) a f) do n.º 1 do artigo encontramos a enumeração das entidades
dotadas de personalidade jurídica pública, aquelas que a doutrina tradicional
considerava integrarem a Administração Pública em sentido orgânico238: o Estado, em
sentido jurídico-administrativo, as regiões autónomas, as autarquias locais, os institutos
públicos, as fundações públicas e as associações públicas – excluem-se as empresas
públicas.
Substituindo o critério jurídico da personalidade jurídica pública por um critério de
base económica – o financiamento público maioritário – ou por um critério assente no
controlo público dos centros de decisão, a alínea g) adiciona àquelas entidades públicas
as associações constituídas nos termos da lei geral, desde que sejam maioritariamente
financiadas por dinheiros públicos ou sejam dirigidas, administradas ou controladas, por
agentes designados por pessoas coletivas públicas; todas estas entidades têm,
naturalmente, estatuto jurídico-privado.
O n.º 2 do artigo 2.º acrescenta às entidades adjudicantes já mencionadas uma
extensa lista de entes, cuja base lógica procurámos surpreender. O financiamento
público maioritário e a administração, a direção ou o controlo público, parecem
constituir, conjuntamente, o critério fundamental subjacente às alíneas a) - ii), b), c) e d)
deste número. Já no que respeita à alínea a) - i), com aqueles critérios conflui um outro:
o propósito subjacente à criação do ente, que terá necessariamente tido em vista a
satisfação de necessidades de interesse geral, sem carácter industrial ou comercial (v.
supra). Conseguimos identificar nesta norma a intenção do legislador de garantir uma
adequada transposição das diretivas europeias e do conceito abrangente de organismo
237
É neste ponto que releva o conceito comunitário de organismo de direito público, analisado por
JOÃO CARLOS AMARAL DE ALMEIDA no seu texto «Os “Organismos de direito público” e o respectivo
regime de contratação: um caso de levantamento do véu», in Estudos em Homenagem ao Professor
Doutor Marcello Caetano, Volume I, Coimbra, 2006, pp. 633 a 656.
238
Cfr. DIOGO FREITAS DO AMARAL, Curso..., cit., Volume II, pp. 472-473.
166
de direito público. Neste número 2 do artigo 2.º incluem-se no conceito de entidade
adjudicante todas as entidades que, sendo consideradas pelas diretivas europeias
organismos de direito público, não estejam já cobertas pelo número 1 desse mesmo
preceito.
O artigo 7.º alarga o universo das entidades adjudicantes a quaisquer pessoas
coletivas não abrangidas no artigo 2.º que exerçam atividade nos setores da água, da
energia, dos transportes e dos serviços postais desde que se encontrem numa das
seguintes situações:
a) Estejam submetidas, direta ou indiretamente, a influência dominante exercida por
alguma das entidades incluídas no artigo 2.º;
b) Gozem de direitos especiais ou exclusivos, não atribuídos através de um
procedimento de concorrência internacional, que lhes reservem determinada(s)
atividade(s) ou afetem substancialmente a capacidade de outras entidades para a(s)
exercer(em).
O alargamento abrange ainda os entes exclusivamente constituídos por aquelas
entidades, ou que sejam maioritariamente financiados por elas, ou sujeitos ao seu
controlo de gestão ou, ainda, que tenham os seus órgãos de administração, direção ou
fiscalização compostos por membros maioritariamente designados por elas.
Deve notar-se que o conceito de entidade adjudicante pode vir a sofrer alteração de
nomenclatura na próxima revisão do CCP, uma vez que, nas diretivas de contratação
pública de 2014, o legislador da União opera agora uma nova distinção entre as
designadas autoridades adjudicantes – que abrangem todas as entidades hoje incluídas
no artigo 2.º do CCP – e as entidades adjudicantes – que abrangem não só as
autoridades adjudicantes mas também as entidades incluídas no artigo 7.º do CCP no
âmbito dos setores da água, da energia, dos transportes e dos serviços postais239.
Há ainda que tomar em consideração o disposto no artigo 275.º, que determina a
aplicação do regime procedimental do CCP aos contratos de empreitada de obras
públicas e de aquisição de serviços celebrados por entidades não abrangidas nos artigos
2.º ou 7.º, desde que sejam financiados em mais de 50 por cento por qualquer entidade
adjudicante referida no artigo 2.º; ou o preço contratual seja igual ou superior ao
determinado nas diretivas comunitárias aplicáveis; ou, finalmente, e apenas para os
contratos de empreitadas de obras públicas, quando se trate de trabalhos
complementares, dependentes ou por outra forma relacionados com um contrato de
empreitada a que se aplique o regime procedimental do código.
239
Cfr. a definição de autoridade adjudicante constante do artigo 2.º, n.º 1, 1), da Diretiva 2014/24/UE
e a definição de entidade adjudicante constante do artigo 4.º da Diretiva 2014/25/UE.
167
natureza jurídico-privada [n.º 2, alíneas b) e c)] ou, ainda, por se enquadrarem na
atividade de radiodifusão [n.º 2, alínea d)].
Quanto ao artigo 5.º, a resposta é mais complexa, num quadro pleno de regras,
exceções e... exceções a estas: o regime procedimental aplica-se, em princípio, à
formação de quaisquer contratos celebrados por uma das entidades adjudicantes
referidas no artigo 2.º do Código, qualquer que seja a designação atribuída a tais
contratos. Excluem-se, porém, as situações contempladas no normativo.
Nos contratos identificados não irão aplicar-se a maioria das regras de formação de
contratos previstas na Parte II do Código e a estes contratos aplicar-se-ão as regras
constantes da Parte III do Código relativas à execução de contratos administrativos.
A primeira exclusão abrange os contratos «cujo objeto sejam prestações que não
estão nem sejam suscetíveis de estar submetidas à concorrência de mercado,
designadamente em razão da sua natureza ou das suas características, bem como da
posição relativa das partes no contrato ou do contexto da sua própria formação» (n.º 1).
A “marca de origem” europeia liga indissociavelmente as regras relativas à
contratação pública à defesa e promoção da concorrência. Onde não existir, nem puder
existir, concorrência, não há por que aplicar tais regras.
A segunda exclusão respeita à chamada contratação “in house”. Este conceito
designa relações contratuais cujo contexto preenche cumulativamente duas condições:
por um lado, que a entidade adjudicante exerça sobre a atividade da entidade co-
contratante um «controlo análogo ao que exerce sobre os seus próprios serviços»; por
outro, que esta entidade desenvolva o essencial da sua atividade em benefício de uma ou
várias entidades adjudicantes que exerçam sobre ela um controlo daquele tipo (n.º 2)240.
O n.º 4 do artigo 5.º enumera mais nove espécies de contratos excluídos do âmbito de
aplicação da Parte II.
Registe-se, ainda, que a exclusão de aplicação da Parte II do CCP nem sempre é
integral: os n.ºs 5 e 7 do artigo 5.º determinam a aplicação de diversas disposições do
CCP aos contratos em princípio excluídos.
Finalmente, o n.º 6 do artigo 5.º – disposição que pode considerar-se paralela à do n.º
3 do artigo 2.º do CPA – determina a aplicação dos princípios gerais da atividade
administrativa e das normas do CPA que concretizem preceitos constitucionais à
contratação excluída pelos n.ºs 1 a 4; e, tratando-se de contratos com objeto passível de
ato administrativo e de outros contratos sobre o exercício de poderes públicos, manda
aplicar-lhes, em geral, as normas do CPA, com as necessárias adaptações.
Mas não se ficam por aqui as peripécias em matéria de delimitação do âmbito de
aplicação objetivo da Parte II do CCP. Há ainda que tomar em consideração o artigo 6.º.
Este normativo opera duas restrições àquele âmbito cuja formulação não é fácil de
compreender.
240
Sobre contratação in house, cfr. ALEXANDRA LEITÃO, «Contratos de prestação de bens e serviços
celebrados entre o Estado e as empresas públicas e relações in house», in Cadernos de Justiça
Administrativa, n.º 65, Setembro/Outubro de 2007, pp. 12 a 27; CLÁUDIA VIANA, «Contratos públicos in
house, – em especial as relações contratuais entre municípios e empresas municipais e intermunicipais»,
in Direito Regional e Local, n.º 00, Outubro/Dezembro de 2007, pp. 34 a 43; DURVAL TIAGO FERREIRA,
Contratação in House, Coimbra, 2013; JOÃO AMARAL E ALMEIDA e PEDRO FERNÁNDEZ SÁNCHEZ,
«Contratação in house: o critério para a determinação da parte “essencial” da actividade de uma entidade
sujeita a um “controlo análogo”», in Temas de Contratação Pública, Coimbra, 2011, pp. 137 a 174;
PEDRO GONÇALVES, Regime jurídico das empresas municipais, Coimbra, 2007, pp. 178 a 189; RUI
MEDEIROS, «Âmbito do novo regime da contratação pública à luz do princípio da concorrência», in
Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 69, Maio/Junho de 2008, pp. 3 a 29.
168
Segundo o n.º 1 do artigo 6.º, tratando-se de contratos a celebrar entre entidades
adjudicantes referidas no n.º 1 do artigo 2.º (os chamados «contratos inter-
administrativos»241) – entes que, grosso modo, integram a Administração Pública em
sentido orgânico, como dissemos –, a aplicação da Parte II do CCP restringe-se aos
contratos «cujo objecto abranja prestações típicas dos contratos de empreitadas de obras
públicas, concessão de obras públicas, concessão de serviços públicos, locação ou
aquisição de bens imóveis e aquisição de serviços».
Tratando-se, porém, de uma outra entidade adjudicante – as referidas no n.º 2 do
artigo 2.º, a que se junta o Banco de Portugal – a Parte II do CCP somente se aplica à
«formação dos contratos cujo objecto abranja prestações típicas» daqueles mesmos
contratos!
O CCP não concentra todos os princípios relativos à contratação pública num local
único, é preciso procurá-los ao longo do texto. Apontaremos no Código seis princípios
de maior relevância:
O princípio da igualdade, consagrado no n.º 4 do artigo 1.º do CCP, que é, como se
sabe, um princípio essencial da Constituição da República Portuguesa aplicável,
designadamente, à atividade administrativa pública, impõe o tratamento equalitário de
todos os interessados na adjudicação de um contrato público que se encontrem em
condições objetivamente idênticas relativamente à capacidade de execução das
prestações contratuais.
O princípio da concorrência, também reconhecido naquela disposição, recomenda
que todas as disposições aplicáveis à contratação pública sejam interpretadas e aplicadas
no sentido mais favorável à participação nos procedimentos pré-contratuais do maior
número de interessados, evitando-se exclusões por motivos meramente formais. O
princípio da concorrência, aliado ao princípio da proporcionalidade, surge igualmente
como limite à liberdade de conformação dos documentos concursais pelas entidades
adjudicantes. Em particular os critérios de qualificação, de avaliação das propostas e de
habilitação do adjudicatário devem ser adequados ao objeto do contrato a celebrar242.
O princípio da transparência, mencionado ainda naquela mesma disposição, exige
que as decisões tomadas pelos responsáveis pelos procedimentos pré-contratuais sejam
explicitadas e devidamente fundamentadas, de modo a surgirem como lógicas, racionais
e, tanto quanto possível, incontroversas, para todos os intervenientes. O artigo 315.º,
para além de outros, concretiza o princípio numa obrigação de transparência, que a lei
faz impender sobre o contraente público, de publicitar na internet qualquer acordo com
o co-contratante que implique modificação objetiva do contrato e represente um valor
acumulado superior a quinze por cento do preço contratual.
O artigo 38.º do CCP expressa um outro corolário do princípio no que respeita à
escolha do procedimento a adotar, determinando que esta deve ser devidamente
fundamentada.
Também o artigo 49.º consagra um corolário do mesmo princípio, incorporando um
conjunto detalhado de exigências relativas às especificações admissíveis nos cadernos
241
Sobre estes contratos, cfr. ALEXANDRA LEITÃO, «Os contratos interadministrativos », in Estudos de
Contratação Pública, Coimbra, 2008, pp. 733 a 776.
242
Sobre este tema em particular, cfr. PEDRO GONÇALVES, Direito dos Contratos Públicos, cit., pp.
264-265.
169
de encargos. É sabido como as especificações técnicas constituem tradicionalmente um
refúgio para as piores idiossincrasias nacionais, no seu afã de cercear a concorrência das
empresas estrangeiras, ou mesmo de garantirem a adjudicação a um concorrente
preferido.
O princípio da boa-fé dispensa grandes observações. É suficiente dizer que os
artigos 76.º, 79.º e 105.º concretizam o principal corolário do princípio no que se refere
à contratação pública. Estas disposições do CCP impõem o dever de adjudicar,
estabelecem as consequências do respetivo incumprimento e determinam as
circunstâncias que tornam lícita a não adjudicação.
O princípio da colaboração recíproca, explicitamente consagrado no artigo 289.º,
dita aos contraentes o dever de se informarem mutuamente sobre tudo quanto releve no
âmbito da execução do contrato.
O princípio da conexão material e da proporcionalidade das prestações
contratuais encontra a sua origem no n.º 2 do artigo 179.º do CPA de 1991. Este
preceito, revogado pelo CCP, ditava a impossibilidade de o contraente público impor ao
co-contratante prestações desprovidas de ligação ao objeto do contrato ou que se
revelassem desproporcionadas.
O artigo 281.º do CCP, que aparentemente lhe sucedeu, representa uma resposta mais
equilibrada às preocupações do legislador: o contraente público «não pode assumir
direitos ou obrigações manifestamente desproporcionados ou que não tenham uma
conexão material directa com o fim do contrato».
A ideia de proporcionalidade está presente noutras disposições do CCP,
designadamente no n.º 2 do artigo 303.º, em que se dispõe, a propósito dos poderes de
direção e fiscalização do contraente público, que estes devem «salvaguardar a
autonomia do co-contratante, limitando-se ao estritamente necessário à prossecução do
interesse público» e, no n.º 4 do artigo 283.º, em matéria da invalidade do contrato, a
que voltaremos adiante.
170
Nos artigos 23.º a 30.º, o CCP esquece o valor do contrato e passa a enumerar uma
panóplia de circunstâncias e fatores que, independentemente daquele valor,
condicionam a adoção das diversas formas de procedimento pré-contratual.
O artigo 24.º contém as regras gerais que possibilitam a via do ajuste direto
relativamente a quaisquer contratos.
Os artigos 25.º, 26.º e 27.º acrescentam condições específicas para o ajuste direto nos
contratos de empreitada de obras públicas, nos contratos de locação ou aquisição de
bens móveis e nos contratos de aquisição de serviços.
O artigo 29.º estabelece as condições em que é permitida a escolha do processo de
negociação e o artigo 30.º aquelas em que se autoriza o uso do procedimento de diálogo
concorrencial.
Relativamente a este último, trata-se de um procedimento concebido para os
contratos particularmente complexos, aqueles em que a entidade adjudicante pretende
contratar mas não sabe bem o quê: ou porque não está segura da solução técnica mais
adequada, ou por não ser capaz de determinar os recursos materiais necessários, ou,
ainda, porque não é capaz de definir, em termos suficientemente claros e precisos, a
estrutura jurídica ou a estrutura financeira do contrato a celebrar. Nestes casos, o
diálogo concorrencial permite à entidade adjudicante, com a colaboração dos
interessados, ir esclarecendo e determinando o objeto do contrato (cfr. artigo 30.º).
Note-se, ainda, que este procedimento não pode ser adotado relativamente às
atividades exercidas nos setores da água, da energia, dos transportes e dos serviços
postais (cfr. artigo 33.º, n.º 2).
Duas observações finais.
A primeira, para salientar que o ajuste direto pode ser adotado quando se trate de
contratos de sociedade e de contratos de concessão de serviços públicos e desde que
«razões de interesse público relevante o justifiquem» (artigo 31.º, n.º 3).
A segunda, para sublinhar as restrições à celebração de contratos mistos: estes apenas
podem ser celebrados quando «as prestações a abranger pelo respectivo objecto forem
técnica ou funcionalmente incindíveis ou, não o sendo, se a sua separação causar graves
inconvenientes para a entidade adjudicante» (cfr. artigo 32.º, n.º 1).
171
A principal competência do júri resume-se em duas frases: apreciar as propostas
recebidas pelo órgão da Administração e propor a adjudicação a uma delas.
A apreciação das propostas envolve o dever de excluir aquelas que preencham a
previsão do n.º 2 do artigo 70.º.
O júri tem o poder de solicitar esclarecimentos aos proponentes (cfr. artigo 72.º).
Apreciadas as propostas, sucede-se o ato de adjudicação, que a lei define como «o
acto pelo qual o órgão competente para a decisão de contratar aceita a única proposta
apresentada ou escolhe uma de entre as propostas apresentadas» (cfr. artigo 73.º, n.º 1).
A lei admite dois critérios possíveis para a adjudicação: o da proposta
economicamente mais vantajosa para a entidade adjudicante – que constitui a regra – e
o do preço mais baixo, que somente pode ser utilizado num número restrito de situações
(cfr. artigo 74.º).
93.2. Uma das questões que têm suscitado maior controvérsia entre a doutrina
jusadministrativa – e com repercussões relevantes na prática – é a de saber se o CCP
consagra um verdadeiro dever de adjudicação.
A resposta é, quanto a nós, positiva. Pode não se concordar com esta opção
legislativa, e considerar-se mesmo que surge ao arrepio das melhores práticas
contratuais, mas a verdade é que o legislador, nas normas contidas nos artigos 76.º e
79.º, n.º 4, consagrou um verdadeiro dever de adjudicar e um elenco taxativo das causas
que poderão – e nalguns casos deverão – fundamentar a decisão de não adjudicação ou
de não outorga do contrato243.
93.3. A regra geral relativa à forma do contrato não sofreu alteração no CCP: os
contratos públicos devem ser celebrados por escrito (cfr. artigo 94.º, n.º 1). A lei admite
exceções a esta regra, constantes do artigo 95.º. Tais exceções tomam sobretudo em
consideração o reduzido valor do contrato.
A lei estipula o conteúdo mínimo do contrato, cominando a nulidade deste por falta
de qualquer dos elementos exigidos (cfr. artigo 96.º, n.º 1).
Assume especial relevo no conteúdo do contrato o preço contratual, que a lei define
como «o preço a pagar pela entidade adjudicante, em resultado da proposta adjudicada,
pela execução de todas as prestações que constituem o objecto do contrato» (cfr. artigo
97.º, n.º 1).
O n.º 5 do artigo 1.º determina que o regime substantivo dos contratos públicos
estabelecido na Parte III do Código se aplica aos «contratos que revistam a natureza de
contrato administrativo». O número seguinte determina que reveste tal natureza «o
acordo de vontades, independentemente da sua forma ou designação, celebrado entre
contraentes públicos e co-contratantes ou somente entre contraentes públicos» que se
integre numa das categorias que enumera:
a) Contratos legal ou contratualmente qualificados como contratos administrativos;
243
Sobre o regime deste ato, nomeadamente quanto ao dever de adjudicar, cfr. JOÃO AMARAL E
ALMEIDA e PEDRO FERNÁNDEZ SÁNCHEZ, «Abertura de procedimento pré-contratual e dever de
adjudicação», in Temas de Contratação Pública, cit., pp. 275 a 289. Contra, PEDRO GONÇALVES, Direito
dos Contratos Públicos, cit., pp. 340-343.
172
b) Contratos legal ou contratualmente submetidos a um regime substantivo de direito
público;
c) Contratos com objeto passível de ato administrativo;
d) Outros contratos incidindo sobre o exercício de poderes públicos;
e) Contratos que confiram ao co-contratante direitos especiais sobre coisas públicas;
f) Contratos que atribuam ao co-contratante o exercício de funções dos órgãos do
contraente público;
g) Contratos que a lei submeta, ou admita que sejam submetidos, a um procedimento
de formação regulado por normas de direito público e em que a prestação do co-
contratante possa condicionar ou substituir, de forma relevante, a realização das
atribuições do contraente público.
Este normativo justifica duas observações.
A primeira respeita ao abandono pelo legislador do conceito de contrato
administrativo, inscrito no ora revogado artigo 178.º do CPA de 1991.
Agora, em vez de uma noção completada por uma enumeração, temos apenas uma
enumeração – e não uma enumeração de espécies contratuais, mas de categorias de
contratos.
A segunda salienta a visível influência que teve no legislador do n.º 6 do artigo 1.º do
CCP a norma da alínea e) do n.º 1 do artigo 4.º do ETAF de 2002.
Na verdade, como observou MÁRIO AROSO DE ALMEIDA244, a disposição do CCP
retomou a formulação do ETAF de 2002, acrescentando aos contratos já previstos na
norma deste mais dois: os contratos que atribuam ao co-contratante direitos especiais
sobre coisas públicas ou o exercício de funções dos órgãos do contraente público e os
contratos que a lei submeta, ou admita que sejam submetidos, a um procedimento de
formação regulado por normas de direito público e em que a prestação do co-contratante
possa condicionar ou substituir, de forma relevante, a realização das atribuições do
contraente público.
Partilhamos da apreciação que aquele autor faz da formulação do CCP e, sobretudo,
da convicção de que «a lei deve ser clara na determinação das espécies de contratos que
entender dever submeter a um regime de direito público».
E, pela nossa parte, seria mesmo preferível qualificar como administrativos, ou
públicos consoante se prefira, todos os contratos celebrados por entidades públicas245.
244
Cfr. «Contratos administrativos e poderes de conformação do contraente público no novo Código
dos Contratos Públicos», in Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 66, Setembro/Outubro de 2007, pp.
6-7.
245
MÁRIO AROSO DE ALMEIDA voltou posteriormente ao tema, reafirmando a sua posição e
perguntando-se mesmo à face do CCP, que contratos da Administração Pública ainda são, afinal,
contratos de direito privado – «Contratos Administrativos e regime da sua modificação no novo Código
dos Contratos Públicos», in Estudos em Homenagem do Prof. Doutor Sérvulo Correia, Volume II,
Coimbra, 2010, pp. 818-819 (cfr. também pp. 822-823). MARCELO REBELO DE SOUSA e ANDRÉ SALGADO
DE MATOS – Direito Administrativo Geral. Contratos Públicos, Tomo III, Lisboa, 2008, p. 40 – sustentam
mesmo poder concluir-se que, «na sua generalidade, os contratos da administração tradicionalmente
entendidos como de direito privado devem hoje ser considerados como contratos administrativos, na
medida em que correspondem à prossecução de atribuições administrativas através de meios de direito
público».
173
O CCP não contém, já o dissemos, norma paralela à que constava do artigo 178.º do
CPA de 1991: uma enumeração exemplificativa dos principais contratos
administrativos. Não obstante, tal enumeração pode fazer-se a partir das epígrafes dos
diferentes capítulos do Título II da Parte III do Código.
Encontramos assim:
a) O contrato de empreitada de obras públicas, contrato oneroso através do qual um
particular se encarrega de executar, ou de conceber e executar, uma obra pública (cfr.
artigo 343.º, n.º 1);
b) O contrato de concessão de obras públicas, por via do qual um particular se
encarrega de executar, ou de conceber e executar, uma obra pública, adquirindo, como
contrapartida, o direito de explorá-la, eventualmente recebendo um preço (cfr. artigo
407.º, n.º 1);
c) O contrato de concessão de serviços públicos, mediante o qual o co-contratante
assume o encargo de gerir um serviço público durante um certo período de tempo,
fazendo-o em nome próprio e sob sua responsabilidade, sendo pago através dos
resultados financeiros da sua gestão ou remunerado pelo contraente público (cfr. artigo
407.º, n.º 2);
d) O contrato de locação de bens móveis, que não é mais do que um contrato de
locação em que o locatário é um contraente público (cfr. artigo 431.º, n.º 1);
e) O contrato de aquisição de bens móveis, que não passa de um contrato de compra
e venda em que o comprador é um contraente público (cfr. artigo 437.º) e que sucede ao
antigo contrato de fornecimento contínuo;
f) O contrato de aquisição de serviços, que é um contrato oneroso de prestação de
serviços em que estes são prestados a um contraente público (cfr. artigo 450.º); sucede
ao antigo contrato de prestação de serviços para fins de imediata utilidade pública.
Fora da enumeração exemplificativa do CCP ficaram o contrato de uso privativo do
domínio público, através do qual a Administração Pública proporciona a um particular a
utilização económica exclusiva de bens do domínio público (v. supra), e o contrato de
concessão de exploração de jogos de fortuna ou azar, por meio do qual a
Administração Pública encarrega um particular da exploração de um casino, sendo
retribuído pelo lucro das receitas provenientes do jogo.
Quanto ao contrato de concessão de exploração do domínio público, através do qual
a Administração Pública transfere para um particular a gestão de bens do domínio
público (v. supra), cujo gozo este, por sua conta e risco, se encarregará de proporcionar
aos interessados, aparece referido no artigo 408.º do CCP apenas para lhe mandar
aplicar, a título subsidiário, a regulamentação legal dos contratos de concessão de obras
públicas e de serviços públicos.
Seria despropositado, numa obra de carácter introdutório, analisar especificamente
cada um dos contratos objeto de tratamento no CCP. Não obstante, salientamos um
ponto que nos parece muito relevante e em que é decisiva a influência do direito da
União Europeia.
Trata-se da distinção entre os contratos de empreitada de obras públicas e de
concessão de obras públicas. Esta distinção assentava tradicionalmente na forma de
remuneração do contraente privado: se este recebia um pagamento diretamente do dono
da obra estávamos perante uma empreitada; se recebia o direito de explorar a obra,
sendo remunerado através de taxas pagas pelos utentes, era uma concessão.
174
Demos conta noutra oportunidade de que esta contraposição estava a esbater-se,
muito sob o peso do direito da União Europeia246.
O aparecimento de contratos de concessão em que não existe lugar ao pagamento de
taxas pelos utentes – como sucede com as antigas SCUTs, em que as portagens eram
virtuais, servindo de fundamento a pagamentos devidos pelo concedente ao
concessionário – contribuiu para tal esbatimento.
O CCP veio alterar as noções dos dois contratos: por um lado, a definição de
empreitada de obras públicas mantém a onerosidade do contrato mas omite a tradicional
referência ao pagamento pelo dono da obra; por outro lado, a noção de concessão de
obras públicas acentua a vertente de risco associada ao direito de exploração da obra,
não exigindo, porém, o carácter oneroso, admitindo mesmo que possa não existir
qualquer pagamento feito diretamente pela entidade concedente.
246
JOÃO CAUPERS, «Empreitadas e concessões de obras públicas: fuga para o direito comunitário?», in
Direito e Justiça – VI Colóquio Luso-Espanhol de Direito Administrativo, pp. 89 a 98.
247
Uma questão que merece ser suscitada a este propósito é a de saber se os atos praticados no âmbito
do exercício destes poderes são atos administrativos que beneficiam ainda de autotutela executiva ou se,
considerando o novo regime do CPA nesta matéria, são atos cuja execução – fora casos de urgência – está
dependente da intervenção de um tribunal. No sentido de que nestas situações o contraente público
beneficia de mais poderes de autotutela executiva do que aqueles que hoje resultam da atuação unilateral
da Administração, cfr. RUI GUERRA DA FONSECA, A execução do acto administrativo in
http://www.icjp.pt/debate/4268/4285, e DORA LUCAS NETO, «O processo executivo nos Tribunais
Administrativos», in Comentários à Revisão do ETAF e do CPTA, Lisboa, 2016, p. 632, nota 30.
248
Cfr. Requiem pelo contrato administrativo, cit., p. 147.
175
Este poder, porém, para além de enfrentar os limites decorrentes da necessidade de
preservar o conteúdo essencial do contrato (artigo 313,º, n.º 1, do CCP)249, tem o seu
exercício condicionado:
a) Em primeiro lugar, pelo dever de manutenção do equilíbrio financeiro do contrato,
dever que dita, em condições normais, a alteração das contrapartidas financeiras do co-
contratante privado, que podem consistir, nomeadamente, no aumento do preço devido
pelo contraente público, ou na prorrogação do prazo contratual;
b) Em segundo lugar, pela necessidade de garantir que o contrato modificado não
seja considerado um novo contrato.
A questão de saber se a modificação objetiva de um contrato – resultante do
exercício do poder de modificação unilateral deste – consubstancia a celebração de um
novo contrato tem sido objeto de debate, na nossa doutrina e na jurisprudência dos
tribunais portugueses, incluindo tanto os tribunais administrativos como o Tribunal de
Contas.
Os critérios a utilizar para identificação dos novos contratos resultantes de uma
modificação de contratos administrativos anteriores são largamento tributários do
direito da União Europeia, em particular da jurisprudência do TJUE e, ainda, daquilo
que as novas diretivas de 2014 vêm estabelecer sobre esta matéria.
Assumem hoje particular relevância as normas contidas nos artigos 43.º da Diretiva
2014/23/UE e 72.º da Diretiva 2014/24/EU, as quais, muito embora, como se disse
noutro ponto, não tenham ainda sido transpostas, surgem como repositório da
jurisprudência do TJUE sobre esta matéria, a qual haverá inevitavelmente de servir de
orientação interpretativa para a boa aplicação do artigo 313.º do CCP250.
96.2. O CCP preocupa-se com a regulamentação precisa dos poderes de direção e
fiscalização, dedicando ao tema os artigos 303.º a 306.º. As sanções previstas são, em
geral, de carácter pecuniário – multas e sanções compulsórias (cfr. artigos 329.º e 403.º,
n.º 1).
Duas disposições do CCP, de alguma forma relacionadas entre si, justificam
apreciação especial.
A primeira é o artigo 307.º, relativo à natureza das declarações do contraente público.
O n.º 1 deste artigo mantém, aparentemente, a regra de que as declarações do contraente
público sobre interpretação e validade do contrato, ou sobre a sua execução, têm a
natureza de declarações negociais – e não de atos administrativos. O n.º 2, todavia,
estabelece exceções a esta regra, determinando que diversas declarações do contraente
público sobre a execução do contrato revestem a natureza de ato administrativo.
Estão neste caso:
• as ordens, diretivas ou instruções emitidas no exercício dos poderes de direção e de
fiscalização;
• a modificação unilateral do conteúdo contratual e do modo de execução das
prestações por motivos de interesse público;
• a aplicação das sanções previstas para a inexecução do contrato
• a resolução unilateral do contrato.
Não podemos deixar de criticar o retrocesso que esta norma representa: qualificar
todas as mais importantes declarações do contraente público como atos administrativos,
disfarçando de exceção uma verdadeira e infeliz regra, significa atribuir, em geral, ao
contraente público poderes de autotutela declarativa, em princípio incompatíveis com
249
Cfr. PEDRO MIGUEL MATIAS PEREIRA, Os poderes do contraente público no Código dos Contratos
Públicos, Coimbra, 2011, p. 63.
250
Sobre esta matéria, cfr. PEDRO GONÇALVES, Direito dos Contratos Públicos, cit., pp. 568 a 576.
176
uma verdadeira relação jurídica contratual, remetendo do mesmo passo para o
contencioso de impugnação a maioria dos litígios sobre contratos administrativos.
A segunda disposição a justificar um comentário é o artigo 309.º: aqui se estabelece
que os atos administrativos do contraente público relativos à execução do contrato
constituem título executivo, não podendo o contraente público, em regra, impor
coercivamente o cumprimento de obrigações decorrentes daqueles atos.
No que respeita ao co-contratante, salientamos um dever e um direito.
Em primeiro lugar, o dever de execução pessoal das prestações contratuais. Como
corolário deste dever está a proibição de transmitir a terceiros as responsabilidades
assumidas perante o contraente público, atenuada pelas normas que possibilitam a
cessão da posição contratual e a subcontratação (cfr. artigo 288.º).
Em segundo lugar, o direito de obter do contraente público proteção adequada contra
comportamentos de terceiros suscetíveis de perturbar a boa execução do contrato ou
impedir a perceção das receitas a que o co-contratante tenha direito (cfr. artigo 291.º).
Sobre ambos os contraentes recaem ainda os deveres de informação e de sigilo (cfr.
artigo 290.º).
177
tribunal tem obrigatoriamente de determinar a redução da duração do contrato inicial ou
o pagamento de uma sanção pecuniária de montante inferior ou igual ao preço
contratual – não sendo claro quem pagará esta sanção pecuniária, nem a quem...
De notar que, mesmo quando o tribunal não afaste o efeito anulatório, o n.º 5 do
artigo 283.º-A autoriza o juiz a combinar a anulação do contrato com a preservação dos
efeitos já produzidos por este, restringindo desta forma os efeitos da anulação.
No que respeita à invalidade própria do contrato, o artigo 284.º estabelece um
regime semelhante ao que o CPA prevê para a invalidade dos atos administrativos:
a) O contrato que ofenda princípios ou normas injuntivas é, em princípio, anulável;
b) Se, porém, o vício que afeta o contrato for um dos previstos no artigo 161.º do
CPA – que veio substituir o regime consagrado no artigo 133.º do CPA de 1991 – como
causa de nulidade do ato administrativo ou outro que deva ter idêntica consequência
«por aplicação dos princípios gerais de direito administrativo», o contrato será nulo.
O n.º 3 do mesmo artigo estabelece a aplicação aos contratos administrativos das
disposições do Código Civil relativas à falta e vícios da vontade.
As consequências da invalidade do contrato são objeto de tratamento no artigo 285.º.
Assim:
a) Aos contratos administrativos com objeto passível de ato administrativo – quando
a celebração de um contrato administrativo surja como alternativa à prática de um ato
administrativo – e a outros contratos relativos ao exercício de poderes públicos –
nomeadamente quando o contrato obrigue a Administração a praticar ou a não praticar
um ato administrativo –, aplica-se o regime da invalidade que seria hipoteticamente
aplicável a um ato administrativo «com o mesmo objecto e idêntica regulamentação da
situação concreta»;
b) Aos restantes contratos administrativos – os designados contratos administrativos
de colaboração – é aplicável o regime da invalidade consagrado no direito civil. Quer
isto dizer que serão os artigos 285.º a 294.º do Código Civil a determinar o regime
aplicável aos casos de anulabilidade ou nulidade do contrato administrativo.
178
De notar que o n.º 6 deste artigo contém uma regra muito favorável ao contraente
público: na falta de disposição contratual em contrário, o atraso num ou mais
pagamentos não determina o vencimento antecipado dos restantes.
Os reflexos do interesse público subjacente ao contrato são evidentes no regime
estabelecido no artigo 337.º do CCP para a exceção de não cumprimento do contrato e
no regime fixado no artigo 332.º para a resolução do contrato por iniciativa do co-
contratante.
A admissibilidade da invocação da exceção de não cumprimento do contrato por
parte de co-contratante suscita dificuldades sérias. Não podendo olvidar-se que o objeto
do contrato é a prossecução de interesses públicos, da invocação daquela exceção
poderia resultar a não prossecução, pelo menos temporária, de tais interesses. Não
admira, por isso, que o legislador tenha exibido sensata prudência no tratamento da
matéria251.
Assim, em regra o co-contratante pode invocar a exceção de não cumprimento do
contrato «desde que a sua recusa em cumprir não implique grave prejuízo para a
realização do interesse público subjacente à relação jurídica contratual» (cfr. artigo
327.º, n.º 1).
Não ocorrendo essa situação, isto é, ainda que se produza tal prejuízo, a possibilidade
de invocação da exceção de não cumprimento do contrato subsiste dependendo, porém,
da verificação de uma de duas circunstâncias, ambas reguladas no n.º 2 do mesmo
normativo:
a) Que «a realização das prestações contratuais coloque manifestamente em causa a
viabilidade económico-financeira do co-contratante»;
b) Que a «realização das referidas prestações se revele excessivamente onerosa» para
o co-contratante, devendo, neste caso, «ser devidamente ponderados os interesses
públicos e privados em presença».
Sublinhe-se que a determinação da existência de prejuízo grave para a realização do
interesse público, resultante da recusa do co-contratante em cumprir o contrato, é feita
exclusivamente pelo contraente público, embora tenha de ser fundamentada (cfr. artigo
327.º, n.º 4).
Para possibilitar o exercício da prerrogativa do contraente público, o co-contratante
tem de dar-lhe conhecimento antecipado da invocação da exceção e dos respetivos
fundamentos, conforme estipula o n.º 3 do artigo 327.º.
Registe-se que este mesmo regime, com as necessárias adaptações, é aplicável à
invocação, pelo co-contratante, do direito de retenção (cfr. artigo 328.º).
No que respeita à resolução do contrato por iniciativa do co-contratante, o artigo
332.º somente a permite nos seguintes casos:
a) Incumprimento definitivo do contrato ou mora muito significativa do contraente
público [cfr. n.º 1, alíneas b) e c)];
b) Não acatamento pelo contraente público de decisões judiciais ou arbitrais relativas
ao contrato [cfr. alínea e) do mesmo número];
c) Exercício ilícito dos poderes de conformação contratual do contraente público (v.
supra), quando a exigência por parte deste da manutenção do contrato seja contrária à
boa-fé [cfr, alínea d) do mesmo número];
d) Alteração anormal e imprevisível das circunstâncias [cfr. alínea a), ainda do
mesmo número].
251
Cfr. MARCELO REBELO DE SOUSA e ANDRÉ SALGADO DE MATOS, Direito Administrativo Geral.
Contratos Públicos, cit., p. 136.
179
Note-se que esta última causa de resolução apenas pode ser invocada em condições
idênticas àquelas em que a lei admite a invocação da exceção de não cumprimento do
contrato por parte do co-contratante (cfr. artigo 332.º, n.º 2).
180
CAPÍTULO VI
A RESPONSABILIDADE DO ESTADO E OUTROS ENTES PÚBLICOS252
Leituras aconselhadas:
252
Optou-se por tratar também da responsabilidade civil emergente de atos praticados no âmbito das
funções jurisdicional e legislativa. Talvez se devesse ter excluído estas modalidades, que não têm a ver
com o exercício da função administrativa; mas a verdade é que não seria possível excluir o plano
contencioso, uma vez que os meios processuais adequados à efetivação de qualquer tipo de
responsabilidade do Estado pertencem hoje à jurisdição administrativa.
181
responsabilidade do Estado por actos lícitos, Coimbra, 1974; GUILHERME DA FONSECA,
«A responsabilidade civil por danos decorrentes do exercício da função jurisdicional»,
in Julgar. Revista da Associação Sindical dos Juízes Portugueses, n.º 5, pp. 51 a 57;
JOÃO CAUPERS, «Os malefícios do tabaco», Anotação ao Acórdão do Tribunal
Constitucional de 13.04.2004, in Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 46,
Julho/Agosto de 2004, pp. 3 a 20; JOÃO RAPOSO, «Novas fronteiras da responsabilidade
civil extracontratual da Administração», in Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 58,
Julho/Agosto de 2006, pp. 67 a 73; JORGE MIRANDA, «A Constituição e a
responsabilidade civil do Estado», in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Rogério
Soares, Coimbra, 2001, pp. 927 a 934; JOSÉ MANUEL SÉRVULO CORREIA, «Da sede do
regime de responsabilidade objectiva por danos causados por normas emitidas no
desempenho da função administrativa», in Revista da Ordem dos Advogados, Ano 61,
III, Dezembro de 2001, pp. 1313 a 1348; LUÍS SOUSA DA FÁBRICA, «Comentário ao
artigo 13.º», in Comentário ao Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do
Estado e demais Entidades Públicas, Lisboa, 2013, p. 361; LUÍS CATARINO, «Contributo
para uma reforma do sistema geral de responsabilidade civil extra-contratual do
Estado», in Revista do Ministério Público, n.º 88; IDEM, «Responsabilidade por facto
jurisdicional – contributo para uma reforma do sistema geral de responsabilidade civil
extra-contratual do Estado», in Responsabilidade civil extra-contratual do Estado.
Trabalhos preparatórios da reforma, Ministério da Justiça, Coimbra, 2002; MARGARIDA
CORTEZ, «A reforma de 2002 e o âmbito da jurisdição administrativa», in Cadernos de
Justiça Administrativa, n.º 35, Setembro/Outubro de 2002, pp. 257 a 264; IDEM, «A
responsabilidade civil da Administração por omissões», in Cadernos de Justiça
Administrativa, n.º 40, Julho/Agosto de 2003, pp. 32 a 38; MARIA DA GLÓRIA F. P. DIAS
GARCIA, A responsabilidade civil do Estado e demais pessoas colectivas públicas,
Lisboa, 1997; MARIA JOSÉ RANGEL DE MESQUITA, «Influência do direito da União
Europeia nos regimes da responsabilidade pública», in Cadernos de Justiça
Administrativa, n.º 88, Julho/Agosto de 2011, pp. 6 a 13; IDEM, O Regime da
Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas e o
Direito da União Europeia, Coimbra, 2009; IDEM, «Direito Administrativo III –
Responsabilidade civil extracontratual decorrente do exercício da função
administrativa», Separata da Revista da Faculdade de Direito da Universidade de
Lisboa, Coimbra, 2012; MARIA LÚCIA AMARAL, Responsabilidade do Estado e dever de
indemnizar do legislador, Coimbra, 1998; IDEM, «Dever de legislar e dever de
indemnizar: a propósito do caso Aquaparque do Restelo», in THEMIS. Revista da
Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, Ano I, n.º 2, 2000; IDEM,
«Responsabilidade do Estado-legislador: Reflexões em torno de uma reforma», in
THEMIS. Revista da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, Ano II, n.º
4, 2001; MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, «A responsabilidade do legislador no âmbito do
artigo 15.º do novo regime introduzido pela Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro», in
Julgar. Revista da Associação Sindical dos Juízes Portugueses, n.º 5, pp. 39 a 50;
PAULO OTERO, «Causas de exclusão da responsabilidade civil extracontratual da
Administração Pública por facto ilícito», in Estudos em Homenagem do Prof. Doutor
Sérvulo Correia, Volume II, Coimbra, 2010, pp. 965 a 985; PEDRO MACHETE, «A
responsabilidade da Administração por facto ilícito e as novas regras de repartição do
ónus da prova», in Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 69, Maio/Junho de 2008, pp.
30 a 40; RITA GUIMARÃES FIALHO D’ALMEIDA, «Breves notas acerca da responsabilidade
civil do Estado por actos da função jurisdicional», in Lisbon Law Review, 2016/1, pp.
203 a 246; RUI CARDONA FERREIRA, «A responsabilidade das entidades adjudicantes», in
Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 97, Janeiro/Fevereiro de 2013, pp. 11 a 25; RUI
182
MEDEIROS, Ensaio sobre a responsabilidade civil do Estado por actos legislativos,
Coimbra, 1992, pp. 85 e segs.; IDEM, Responsabilidade Civil dos Poderes Públicos –
Ensinar e investigar, Lisboa, 2005; VASCO PEREIRA DA SILVA, «“É sempre a mesma
cantiga”. O contencioso da responsabilidade civil pública», in Estudos em Homenagem
do Prof. Doutor Sérvulo Correia, Coimbra, 2010, Volume II, pp. 1205 a 1229; VAZ
SERRA, «Responsabilidade civil do Estado e dos seus órgãos e agentes», in Boletim do
Ministério da Justiça, n.º 85, pp. 446 a 520; VERA EIRÓ, A obrigação de indemnizar das
entidades adjudicantes. Fundamento e Pressupostos, Coimbra, 2012; IDEM,
«Responsabilidade civil extracontratual e danos de perda de chance», in Novos temas da
responsabilidade civil extracontratual das entidades públicas, e-book, Lisboa,
Dezembro de 2012, pp. 49 a 68.
183
receios paralisantes dos funcionários no desempenho das suas funções e de dificuldades
para os cidadãos lesados por funcionários insolventes.
Foram três os principais fatores que determinaram a evolução no sentido da
responsabilização do Estado:
a) A consolidação e o aprofundamento do princípio da legalidade;
b) Os reflexos das conceções organicistas no enquadramento jurídico da relação entre
o Estado e o funcionário, que acarretaram a suscetibilidade de imputação aos entes
públicos dos danos emergentes dos atos ilegais materialmente praticados pelos seus
funcionários, solução mais adequada à necessidade de garantir efetivamente o regular
exercício do poder público;
c) O alargamento da intervenção económica, social e cultural do Estado253.
A primeira tentativa de fundar a obrigação de indemnizar prejuízos causados a
particulares por parte do Estado em princípios autónomos, não reconduzíveis ao direito
civil, foi o célebre acórdão Blanco, proferido em 8 de fevereiro de 1873 pelo Tribunal
dos Conflitos francês, já referido noutro ponto. Este acórdão afirmou também
expressamente a competência dos tribunais administrativos em matéria de
responsabilidade do Estado.
De notar, ainda, que durante muito tempo se considerou que apenas os atos
praticados no exercício da função administrativa poderiam gerar responsabilidade do
Estado; quanto aos atos legislativos e aos atos do poder judicial, estes seriam
insuscetíveis de tal consequência254.
Esta era a opinião jurídica dominante entre nós, até há poucos anos. De resto, não
obstante o entendimento maioritário na doutrina de que a Constituição já funda
suficientemente tal direito255, foi preciso esperar até ao novo regime legal para que o
legislador ordinário reconhecesse expressamente, como princípio de âmbito geral, o
direito à reparação pelo Estado dos prejuízos causados por atos legislativos e
jurisdicionais.
100.3. Até há bem pouco tempo, a responsabilidade civil extracontratual do Estado
era regulada pelo Decreto-Lei n.º 48051, de 21 de Novembro de 1967, publicado na
sequência do Código Civil256.
Complementando este código, que dispunha, no artigo 501.º, sobre a chamada
responsabilidade civil por atos de gestão privada – isto é, aqueles comportamentos em
que a Administração Pública atua despojada dos seus poderes de autoridade e que são
enquadrados por normas de direito privado –, aquele diploma legal veio regular a
responsabilidade do Estado por atos de gestão pública, isto é, emergente de condutas
autoritárias da Administração Pública, adotadas sob a égide de regras e princípios de
253
Cfr. GOMES CANOTILHO, O problema da responsabilidade do Estado por actos lícitos, Coimbra,
1974, pp. 45 a 55.
254
Significativamente, as obras de direito administrativo francês tratam do problema da
responsabilidade sob a designação de responsabilidade administrativa; cfr. também MARIA LÚCIA
AMARAL, Responsabilidade do Estado e dever de indemnizar do legislador, Coimbra, 1998, pp. 450-451.
255
Cfr., neste sentido, RUI MEDEIROS, Ensaio sobre a responsabilidade civil do Estado por actos
legislativos, Coimbra, 1992, pp. 85 e segs.; cfr. Também LUÍS CATARINO, «Responsabilidade por facto
jurisdicional – contributo para uma reforma do sistema geral de responsabilidade civil extracontratual do
Estado», in Responsabilidade contratual do Estado. Trabalhos preparatórios da reforma, Ministério da
Justiça, Coimbra, 2002, p. 269.
256
Cfr., sobre este diploma legal, DIOGO FREITAS DO AMARAL, A responsabilidade da Administração
no direito português, Lisboa, 1973, pp. 29 e segs.
184
direito administrativo. A distinção de regime substantivo refletia-se no plano adjetivo,
isto é, na determinação da jurisdição competente para o julgamento das ações de
responsabilidade – a comum, no primeiro caso, a administrativa, no segundo.
Já há muito que a doutrina debatia a necessidade de rever o velho regime legal. Tal
revisão ganhou, de resto, maior urgência com a entrada em vigor do novo ETAF e do
CPTA, diplomas que concretizaram a Reforma da Justiça Administrativa de 2002. Na
verdade, por força desta, a jurisdição administrativa passou a ser competente para toda e
qualquer ação de responsabilidade a propor contra o Estado e outras entidades públicas,
trate-se de atos de gestão pública ou de gestão privada, distinção que a lei processual já
não reconhece [cfr. alíneas h) e i) do n.º 1 do artigo 4.º do ETAF].
Nos finais da década de 1990, uma comissão de juristas prestigiados, constituída no
âmbito da Ordem dos Advogados, havia preparado um projeto de diploma destinado a
substituir o velho Decreto-Lei n.º 48051. Posteriormente, o XIV Governo
Constitucional aprovara, na reunião do Conselho de Ministros de 21 de junho de 2001, a
Proposta n.º 95/VIII, que foi divulgada e chegou a ser objeto de debate público257.
Ao contrário da Reforma da Justiça Administrativa, que seguiria o seu curso e
culminaria em 2002, a revisão do regime da responsabilidade civil extracontratual do
Estado e outras entidades públicas atolou-se num pântano de indecisões e receios. Duas
vezes aprovada, na generalidade, na Assembleia da República, por duas vezes
sucumbiria ingloriamente em resultado de dissoluções do parlamento. Dizia-se, até, que
dava azar aos governos, que não sobreviviam à tentativa de concretizá-la.
Foi o XVII Governo Constitucional que a concluiu e fez aprovar na Assembleia da
República. Estranhamente – ou talvez não, consideradas as resistências que a
responsabilização dos poderes públicos ainda encontra em alguns espíritos mais
“napoleónicos” – o diploma, que conseguiu a unanimidade dos partidos parlamentares,
foi objeto das dúvidas do Presidente da República, que recusou a sua promulgação,
devolvendo-o ao parlamento. Este viria, naturalmente, a confirmá-lo.
Trata-se da Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro, que aprova em ANEXO o Regime da
Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas. Este
regime já conheceu uma alteração, constante da Lei n.º 31/2008, de 17 de Julho.
101.1. A primeira observação que a nova lei justifica tem precisamente a ver com o
seu âmbito material: ao contrário do diploma anterior, o novo regime legal aplica-se à
responsabilidade civil extracontratual decorrente de atos das funções administrativa,
legislativa e judicial (cfr. artigo 1.º, n.º 1).
Trata-se, como antecipámos, de uma importantíssima inovação, tardia mas essencial
ao aprofundamento da qualidade do Estado de direito. Não está em causa que as
responsabilidades do Estado-legislador e do Estado-juiz devam ser apuradas mediante a
aplicação de princípios e regras que não são, nem podem ser, totalmente idênticos às do
Estado-administrador. Muito menos se contesta que o apuramento daquelas
responsabilidades deva necessariamente revestir-se da mais cuidadosa ponderação, em
domínios em que a imprudência pode ser fatal ao bem que pretende preservar-se.
O que está em causa é a ideia fundamental de que nada do que acontece em nome do
Estado e no suposto interesse da coletividade, mediante as ações ou omissões das suas
257
Cfr. CARLOS ALBERTO FERNANDES CADILHA, Regime da responsabilidade civil extracontratual do
Estado e demais entidades públicas, Coimbra, 2008, já citado.
185
instituições, pode ser imune ao dever de reparar os danos provocados aos particulares.
Podem discutir-se as condutas relevantes, os danos ressarcíveis, as circunstâncias, a
profundidade, as condições e os limites da reparação; mas o que não pode, em nosso
entender, é discutir-se o princípio.
Bem andou o legislador em admiti-lo. Adiante apreciar-se-ão as regras que decidiu
estabelecer.
Cabe ainda uma derradeira observação a propósito do âmbito de aplicação material
do novo regime legal. Muito embora tenha desaparecido a referência a atos de gestão
pública, a verdade é que a situação da dualidade de regimes substantivos de
responsabilidade se mantém, com todas as dificuldades inerentes258: é que a nova lei se
aplica apenas a ações e omissões adotadas no exercício de prerrogativas de poder
público ou reguladas por disposições ou princípios de direito administrativo. Dúvidas
não existem quanto a este ponto: é precisamente por isso que o artigo 501.º do Código
Civil não foi revogado pelo novo diploma legal259.
Note-se que os atos de gestão privada, quando praticados por um ente público, criam
uma relação jurídica regulada pelo direito público260.
Acrescente-se ainda que a Lei n.º 67/2007, no seu artigo 2.º, salvaguarda os regimes
especiais de responsabilidade civil por danos decorrentes da função administrativa,
como é o caso do regime jurídico da responsabilidade por danos ambientais.
258
Cfr., sobre estas dificuldades, MARIA DA GLÓRIA F. P. DIAS GARCIA, A responsabilidade civil do
Estado e demais pessoas colectivas públicas, Lisboa, 2007, pp. 30 a 32.
259
Opinião oposta tem VASCO PEREIRA DA SILVA, sustentando que o novo diploma «põe termo a
dicotomias legislativas, unificando todo o regime jurídico da função administrativa em matéria de
responsabilidade civil» – «“É sempre a mesma cantiga”. O contencioso da responsabilidade civil pública»
in Estudos em Homenagem do Prof. Doutor Sérvulo Correia, Coimbra, 2010, Volume II, p. 1228. Bem
gostaríamos que o Autor tivesse razão, porque seria a solução legislativa acertada. Infelizmente, julgamos
que não é assim.
260
Cfr. Acórdão do Tribunal de Conflitos de 26 de Setembro de 2007, referenciado na Súmula de
Jurisprudência, Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 66, Setembro/Outubro de 2007, pp. 70-71.
261
Cfr. CARLOS ALBERTO FERNANDES CADILHA, Regime da responsabilidade civil extracontratual do
Estado e demais entidades públicas, cit., p. 49.
186
O objetivo primeiro da responsabilização do Estado e de outras entidades envolvidas
no exercício de atividades de natureza pública é a transferência do dano sofrido pelo
cidadão para o seu causador262.
Os princípios que a lei consagra em matéria de responsabilização podem sintetizar-se
assim:
a) Manifesta-se uma clara preferência pela reparação in natura, a reconstituição da
situação hipotética, isto é, a situação que se verificaria no caso da não ocorrência do
dano263;
b) Nesta ordem de ideias, a indemnização em dinheiro é apenas uma segunda
escolha, somente aceitável na hipótese de impossibilidade ou excessiva onerosidade da
reparação em espécie;
c) A reparação abrange toda a extensão dos prejuízos, os danos patrimoniais como os
danos morais, e tanto os danos já ocorridos como os futuros (cfr. artigo 3.º, n.º 3);
d) Subsiste em matéria de direito à indemnização e de direito de regresso a remissão
para o artigo 498.º do Código Civil, o mesmo valendo por dizer que o prazo
prescricional se mantém nos três anos.
A lei recorta dois conceitos específicos em matéria de prejuízos: os danos especiais e
os danos anormais.
Os danos especiais são aqueles que atingem um grupo determinado de pessoas,
colocando estas numa situação diversa e mais desfavorável do que a das outras pessoas;
os danos anormais são aqueles que, excedendo os custos inerentes à vida em sociedade,
sejam suficientemente graves para justificar a tutela do direito (cfr. artigo 2.º)264.
262
Já não podemos dizer, como o que ficou sustentado até à 9.ª edição desta obra, que o objetivo da
responsabilidade se alcança «por via do pagamento de uma quantia em dinheiro, a indemnização». Era, de
facto, assim, no domínio da lei anterior, que parecia excluir a realização específica do direito, ou eparação
natural, concentrando-se na reparação pecuniária do dano; cfr., neste sentido, MARIA DA GLÓRIA F. P. DIAS
GARCIA, A responsabilidade civil do Estado e demais pessoas colectivas públicas, Lisboa, 1997, p. 37.
263
Na certeza, porém, de que uma ação administrativa de responsabilidade civil não poderá servir para
alcançar os mesmos efeitos da propositura de uma ação administrativa de impugnação de um ato
administrativo, se já tiver transcorrido o prazo de impugnação (cfr. artigo 38.º, n.º 2, do CPTA).
264
Cfr. CARLOS ALBERTO FERNANDES CADILHA, Regime da responsabilidade civil extracontratual do
Estado e demais entidades públicas, cit., p. 66.
265
Aqui se incluindo igualmente os contratos administrativos e os atos constitutivos de direitos.
187
Dessa ação ou omissão há de ter resultado a ofensa de direitos ou interesses
legalmente protegidos de alguém (cfr. artigo 9.º).
266
Sobre o anormal funcionamento do serviço, cfr. CARLA AMADO GOMES, Três Textos sobre o Novo
Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas, Lisboa, 2008,
pp. 32-33.
188
Supomos poder dizer que esta espécie de responsabilidade substitui o fundo ético da
responsabilidade subjetiva – fez-se o que não devia ter-se feito, daí a censura e o castigo
– por uma base económica. Na verdade, a responsabilização objetiva não radica em
qualquer juízo de reprovação do comportamento do causador do dano, antes decorrendo
de comportamentos que, não obstante perfeitamente aceitáveis no plano social, são
especialmente vantajosos para aquele que, adotando-os, causa o prejuízo, conduzindo a
lei a determinar que este deve ser por ele suportado. A responsabilidade objetiva é, no
essencial, um instrumento de repartição de encargos, que associa o prejuízo causado
pela conduta aos benefícios decorrentes desta.
É esta circunstância que explica o carácter excecional da responsabilidade objetiva
pelo risco nas relações jurídico-privadas, resultante da formulação restritiva do n.º 2 do
artigo 483.º do Código Civil. O mesmo não ocorre com a responsabilidade objetiva pelo
risco, que encontra fundamento, como princípio geral, na norma do n.º 1 do artigo 11.º,
não tendo, pois, carácter excecional.
A lei determina que, fora do contexto da ilicitude, o Estado e outras entidades
públicas sejam responsáveis pelos prejuízos causados por «actividades, coisas ou
serviços administrativos especialmente perigosos» (cfr. artigo 11.º, n.º 1)267.
Na verdade, estas atividades, coisas ou serviços existem no interesse da coletividade
e para satisfazer necessidades desta. Quando deles resultem prejuízos para os
particulares, não será justo que estes suportem a totalidade do prejuízo. Por esta razão, o
dano é, no essencial, transferido para a coletividade, por via do pagamento de uma
indemnização, financiada com o dinheiro dos contribuintes.
De referir que também nesta espécie de responsabilidade o montante da
indemnização devida pode ser reduzido, ou mesmo excluído, quando concorrer culpa do
lesado e, ainda, em caso de força maior (cfr. artigo 11.º, n.º 1).
105.1. Com absoluta novidade268, a lei trata dos prejuízos causados por atos e
omissões no exercício da função jurisdicional. No seguimento das previsões
constitucionais, relativas ao erro judiciário e à prisão preventiva ilegal ou injustificada,
contemplam-se agora duas situações bem distintas entre si: os danos decorrentes do
deficiente funcionamento do aparelho judiciário, com destaque para a pior das
deficiências, que é o insuportável arrastamento de muitos processos – a violação do
direito a uma decisão judicial em prazo razoável – e o erro judiciário (cfr. artigos 12.º e
13.º).
A primeira das situações nada tem de extraordinário: trata-se simplesmente de aceitar
que aqueles que pagam, e caro, a justiça, têm o direito de exigir do Estado que esta
funcione razoavelmente; na medida em que tal não aconteça, devem os particulares
poder ressarcir-se dos prejuízos que lhes forem causados pelo funcionamento
deficiente269.
267
A lei anterior utilizava o advérbio excecionalmente, que a atual substituiu por especialmente. Sobre
o sentido desta alteração, cfr. CARLA AMADO GOMES, Três Textos sobre o Novo Regime..., cit., p. 70.
268
Novidade, numa lei com este âmbito, uma vez que, como bem refere MARIA DA GLÓRIA F. P. DIAS
GARCIA, a responsabilidade do Estado pelo exercício da função jurisdicional foi a primeira a ser regulada
em Portugal, no velho Código de Seabra, – A responsabilidade civil do Estado..., cit., p. 54.
269
«O deficiente funcionamento da justiça há-de, por conseguinte, caracterizar-se por um facto ou
uma série de factos que revelem a inaptidão do serviço para o cumprimento da sua missão, e, quando seja
imputável ao serviço globalmente considerado, poderá traduzir-se numa acumulação de falhas que, não
sendo relevantes quando consideradas isoladamente, acabam por pôr em causa a eficiência do sistema,
189
O legislador, compreensivelmente, resolve o problema determinando a extensão a
estes casos do regime da responsabilidade civil decorrente de factos ilícitos praticados
no exercício da função administrativa (cfr. artigo 12.º).
Nem se compreenderia que os cidadãos pudessem exigir o regular funcionamento
dos serviços públicos, em geral, e não tivessem idêntico direito relativamente aos
tribunais, que são os serviços públicos da justiça.
190
Em acórdão de 9 de julho de 2015, o Tribunal Constitucional concluiu já, porém,
pela não inconstitucionalidade da norma em causa274.
Em homenagem ao princípio da irresponsabilidade dos juízes pelas decisões judiciais
que tomem – que a lei, de resto, expressamente reafirma – os magistrados judiciais e do
Ministério Público275, apenas estão sujeitos ao exercício do direito de regresso por parte
do Estado relativamente aos montantes indemnizatórios que hajam sido pagos em
reparação dos prejuízos causados pelos respetivos atos quando tenham agido com dolo
ou culpa grave276.
Note-se que, ao contrário dos restantes funcionários públicos – relativamente aos
quais o exercício do direito de regresso é, como se disse, obrigatório –, o direito de
regresso contra os magistrados tem o seu exercício dependente da vontade dos órgãos
de governo próprio das magistraturas (cfr. artigo 14.º). Não parece fácil justificar esta
diferença de tratamento.
274
Cfr. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 363/2015, em que o tribunal decidiu não julgar
inconstitucional a norma do artigo 13.º, n.º 2, do Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do
Estado e Demais Entidades Públicas, segundo o qual «o pedido de indemnização fundado em
responsabilidade por erro judiciário deve ser fundado na prévia revogação da decisão danosa pela
jurisdição competente».
275
Estes, menos compreensivelmente.
276
Na certeza, porém, de que sempre haverá de perguntar-se se o requisito de que haja erro manifesto
na decisão não haverá necessariamente de levar à conclusão de que a atuação lesiva foi cometida com
culpa grave.
277
A responsabilidade civil do Estado..., cit., p. 62.
278
Cfr. «Responsabilidade civil do Estado por omissão de medidas legislativas – o caso Aquaparque»,
in Revista de Direito e de Estudos Sociais, Agosto/Dezembro de 2000, Ano XLI (XIV da 2.ª série) n.ºs 3
e 4, pp. 380-381; RUI MEDEIROS, Ensaio sobre a responsabilidade civil do Estado..., cit., pp. 85 a 88.
191
comunitário jurisprudência no sentido da responsabilidade dos Estados-membros por
atos legislativos praticados no âmbito da transposição de diretivas.
106.2. A voz discordante nesta matéria tem sido a de MARIA LÚCIA AMARAL.
Vejamos o essencial da sua argumentação279.
«Falar da existência de responsabilidade civil do Estado por atos legislativos lícitos é
falar de um contrassenso». A Autora funda esta asserção na circunstância de, em sua
opinião, uma lei que seja “lícita” só poder causar prejuízos a privados num único caso:
quando imponha a estes sacrifícios graves e especiais que mereçam ser compensados
justamente pelo carácter de gravidade e de especialidade de que se revestem. Só que, se
tal for o caso, «aquilo que, na aparência, surge como um problema de
“responsabilidade” do Estado por prejuízos causados por leis, revela-se assim, à
reflexão, como um problema de validade, ou de constitucionalidade, dos actos
legislativos que “prejudicam”»280. Restariam, pois, as leis “ilícitas”.
Sucede, porém, que a Autora considera que o conceito de “ilicitude” não é sinónimo
de antijuridicidade, antes remetendo para um tipo particular de comportamento
antijurídico, «que se consubstancia na omissão do comportamento devido que vincula
certo sujeito de direito a outro sujeito. Ora, nenhum particular individualmente
considerado pode ser considerado como “titular”de um direito “subjetivo” à emissão de
leis conformes à Constituição»281.
Nesta lógica, MARIA LÚCIA AMARAL rejeita a hipotética criação de «uma acção
autónoma de responsabilidade do Estado por prejuízos causados pelos chamados “factos
ilícitos” do legislador, que consubstanciaria uma forma nova, atípica, de controlo da
constitucionalidade, forma essa que é estranha ao sistema de justiça constitucional que
os artigos 221, 204 e 277 a 283 da CRP consagram»282.
Restaria, conclui a Autora, uma possibilidade: o apuramento da responsabilidade por
atos legislativos “ilícitos” ser feito a título subsidiário, uma vez obtida uma decisão de
inconstitucionalidade «e apenas nos casos em que a eficácia retroactiva desta última
decisão se não tenha mostrado capaz de eliminar todos os prejuízos sofridos pelo
privado» por causa da vigência da lei inconstitucional «e durante o período de tempo
que mediou entre o momento da entrada em vigor da lei e o momento da certificação
jurisdicional da sua invalidade»283.
106.3. Esta controvérsia, por estimulante que seja – e por atraente que se considere a
posição de MARIA LÚCIA AMARAL – é anterior à nova lei, que regula a matéria no artigo
15.º.
O preceito começa por afirmar solenemente o princípio da responsabilidade civil «do
Estado e das regiões autónomas pelos danos anormais causados aos direitos ou
interesses legalmente protegidos dos cidadãos por actos que, no exercício da função
279
Citaremos dois estudos da Autora sobe a questão. Para uma análise mais aprofundada das suas
posições é indispensável a leitura da obra Responsabilidade do Estado. O dever de indemnizar do
legislador, especialmente as páginas 419 a 467, centradas na análise do artigo 22.º da Constituição.
280
«Responsabilidade do Estado-legislador: Reflexões em torno de uma reforma», in THEMIS. Revista
da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, Ano II, n.º 4, 2001, pp. 9 a 11.
281
«Dever de legislar e dever de indemnizar: a propósito do caso “Aquaparque do Restelo”», in
THEMIS. Revista da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, Ano I, n.º 2, 2000, pp. 90-91.
282
«Responsabilidade do Estado-legislador: Reflexões...», cit., p. 17.
283
«Dever de legislar e dever de indemnizar...», cit., p. 88.
192
político-legislativa, pratiquem, em desconformidade com a Constituição, o direito
internacional, o direito comunitário, ou acto legislativo de valor reforçado».
A primeira observação que o preceito justifica vai no sentido do reconhecimento de
que, para o legislador, a responsabilidade civil por ato legislativo (ou omissão
legislativa) consubstancia um comportamento antijurídico subjetivável – chame-se-lhe
ou não ilícito (e o legislador chama-lhe, bem ou mal, assim, no n.º 4 do artigo 15.º).
Parece que existe mesmo um direito a que não sejam praticados atos – ou não ocorram
omissões – contrários à Constituição, pelo menos na medida em que produzam danos
anormais a certas pessoas.
A segunda observação tem a ver com a articulação que o legislador estabeleceu entre
a desconformidade constitucional da lei e a suscetibilidade de reparação dos danos
causados por esta (cfr. artigo 15.º, n.ºs 2 e 5). Na verdade, nos termos destas
disposições, o direito à reparação dos danos depende de duas condições: a
anormalidade destes284 e a prévia emissão de um juízo de inconstitucionalidade sobre a
lei ou a omissão legislativa danosa285.
Esta articulação confirma que, na lógica do legislador, a produção de leis
inconstitucionais ou contrárias a convenções internacionais vinculativas do Estado
português não só consubstancia um comportamento antijurídico, como, se o dano
produzido for anormal, gera na esfera jurídica do lesado um verdadeiro direito subjetivo
público à sua reparação.
A terceira observação vai para a aferição da antijurisdicidade: esta não se contenta
com a ofensa do texto constitucional, antes ponderando também a desconformidade da
lei interna ordinária com o direito internacional, com o direito da União Europeia e com
as leis de valor reforçado286.
106.4. Claro que o legislador, tendo feito a sua opção – que terá, por certo, entendido
decorrer da Constituição –, não ignorou as dificuldades do tema. Prudentemente,
estabeleceu que a existência e a extensão da responsabilidade são determinadas em
cada caso concreto, fornecendo três critérios para iluminar esta determinação:
• o «grau de clareza e precisão da norma violada» – sabendo-se que as normas
constitucionais comportam níveis de densificação muito variáveis;
• o tipo de inconstitucionalidade – material, orgânica ou formal;
• a circunstância de «terem sido adoptadas ou omitidas diligências susceptíveis de
evitar a situação de ilicitude» – a diligência bastante do legislador no intuito de obviar
ao resultado danoso pode excluir a responsabilidade por este (cfr. artigo 15.º, n.º 4).
284
Cfr. CARLA AMADO GOMES, Três Textos sobre o Novo Regime..., cit., p. 133.
285
Sobre as dificuldades que a lei coloca a uma efetiva responsabilização do legislador em casos de
omissão inconstitucional, cfr. MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, «A responsabilidade do legislador no âmbito do
artigo 15.º do novo regime introduzido pela Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro», in Julgar. Revista da
Associação Sindical dos Juízes Portugueses, n.º 5, p. 47. O Autor chama a atenção para que a prévia
verificação da inconstitucionalidade por omissão pelo Tribunal Constitucional “tropeça” na falta de
legitimidade dos eventuais interessados para promover esta.
286
Nestes casos não se tratará de uma inconstitucionalidade em sentido próprio, – embora haja quem
fale em inconstitucionalidade indireta – cfr. JORGE MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, Volume
III, Coimbra, 2014, pp. 23 a 27.
193
O último preceito da nova lei, o artigo 16.º, estatui sobre um tema que é
tradicionalmente incluído entre nós na temática da responsabilidade.
Estão em causa aquelas situações em que o Estado ou outras entidades públicas
«imponham a particulares encargos ou causem danos especiais e anormais no interesse
da colectividade – por razões de interesse público», na letra da lei.
O prejuízo será especial, na medida em que viole o princípio da igualdade, isto é,
quando atinja determinado ou determinados cidadãos em particular; será anormal, se
ultrapassar de forma intolerável os custos próprios da vida em sociedade – trabalhos
prolongados na via pública à porta de um estabelecimento comercial, por exemplo287.
Esta situação era reconduzida no domínio da lei anterior a uma espécie de
responsabilidade, a responsabilidade objetiva pela prática de atos lícitos, e aproximada
da responsabilidade pelo risco. Tratava-se, bem vistas as coisas, de uma ficção: na
verdade, esta suposta responsabilidade não só não envolvia qualquer ilícito, como não
punha, de forma alguma, em causa qualquer comportamento do “responsável”.
Ora, se ainda pode compreender-se a passagem da ideia de responsabilidade
subjetiva para a de responsabilidade objetiva, com a inerente substituição da ideia de
castigo pela conduta adotada pela ideia de compensação pelos benefícios decorrentes
da adoção de uma conduta – uma vez que, em qualquer caso, ainda está em causa um
comportamento, agora já lícito, gerador da consequência responsabilizante – e se não se
discute que qualquer delas pode abranger as omissões, já não faz sentido responsabilizar
alguém... por coisa nenhuma, já que não adotou, nem sequer omitiu, qualquer
comportamento.
Incluir estas situações sob o manto da responsabilidade civil significa desligar por
completo o nome da coisa: estas não são, não podem ser, situações geradoras de
responsabilidade – ou então este termo deixa de ter qualquer significado288.
Não se pondo em causa a bondade e a justiça da regra – devem ser compensadas as
desvantagens económicas produzidas aos particulares nas situações descritas no preceito
–, não estamos, porém, perante uma situação de responsabilidade. Bem andou o
legislador em não utilizar o termo, optando pela designação, que também já era comum,
de indemnização pelo sacrifício. Na verdade, estamos muito mais perto de uma situação
como a expropriação por utilidade pública do que de um caso de responsabilidade civil.
Perguntar-se-á então: por que razão regular aqui, a encerrar o regime da
responsabilidade civil do Estado e outras entidades públicas, esta matéria? Bom, tinha
de estar regulada em algum lado, e o seu tratamento a propósito da responsabilidade
civil corresponde à tradição portuguesa. Não será resposta satisfatória, mas também não
justifica grandes especulações.
287
Cfr. CARLA AMADO GOMES, «A compensação administrativa pelo sacrifício: reflexões breves e
notas de jurisprudência», in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Jorge Miranda, Volume IV,
Coimbra, 2012, pp. 160 a 172.
288
No mesmo sentido, com argumentação superiormente formulada, cfr. CARLA AMADO GOMES, Três
Textos sobre o Novo Regime..., cit., pp. 173 a 176.
194
CAPÍTULO VII
O PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO
Leituras aconselhadas:
195
254 a 271; MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, Teoria Geral do Direito Administrativo, cit., pp.
41 a 125; MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA, Código do Procedimento Administrativo
Comentado, Volume I, Coimbra, 1993, pp. 85 a 131 e 347 a 381; MIGUEL ASSIS
RAIMUNDO, «Os princípios no novo CPA e o princípio da boa administração, em
particular», in Comentários ao Novo Código do Procedimento Administrativo, 2.ª
edição, 2015, pp. 169 a 206; MIGUEL PRATA ROQUE, «O procedimento administrativo
electrónico», in Comentários ao Novo Código do Procedimento Administrativo, 2.ª
edição, 2015, pp. 377 a 408; NUNO MIGUEL MOTA, «O princípio da boa administração no
novo Código do Procedimento Administrativo – Breves Anotações», in O Novo Código
do Procedimento Administrativo, Braga, 2015, pp. 317 a 327; PAULO FERREIRA DA
CUNHA, O procedimento administrativo, Coimbra, 1987, pp. 57 a 127; PAULO OTERO,
Direito do Procedimento Administrativo, Volume I, Coimbra, 2016, pp. 19 a 240;
PEDRO MACHETE, A audiência dos interessados no procedimento administrativo, Lisboa,
1995, pp. 19 a 90; ROGÉRIO SOARES, «Codificação do procedimento administrativo
hoje», in Direito e Justiça, Volume VI, 1992, pp. 17 a 24; IDEM, «A Administração
pública e o Procedimento Administrativo», in Scientia Iuridica, n.ºs 238/240, Julho –
Dezembro de 1992, pp. 195 a 205; TIAGO SERRÃO, «A conferência procedimental no
novo Código do Procedimento Administrativo», in Comentários ao Novo Código do
Procedimento Administrativo, 2.ª edição, 2015, pp. 553 a 579; VASCO PEREIRA DA
SILVA, Em busca do acto administrativo perdido, cit., pp. 301 a 400; IDEM, «Functions
and Purposes of the Administrative Procedure: new problems and new solutions», in
Lisbon Meeting on Administrative Procedure – Functions and purposes of the
administrative procedure: new problems and new solutions (e-book).
108. Noção
196
Quer isto dizer que o legislador português do CPA não utilizou a distinção entre
procedimento e processo tal como é habitualmente feita pela doutrina italiana: para esta,
o procedimento consubstancia uma sucessão ordenada de atos e formalidades, sendo o
processo uma espécie de procedimento caracterizado pelo litígio entre interesses
antagónicos, corporizados em partes.
Note-se que, com a publicação, em 1999, do Código de Processo e de Procedimento
Tributário, o termo processo ganhou um sentido próprio, mais próximo da lógica
italiana, passando a designar o processo contencioso tributário, ou, mais corretamente,
o processo judicial tributário. O Código de Processo nos Tribunais Administrativos
(CPTA), adotou a nomenclatura. Manteve-se, assim, um equívoco terminológico
interessante: o processo tanto pode ser o suporte material do procedimento
administrativo, como o processo judicial da competência da jurisdição administrativa e
tributária.
109.2. Seguindo uma tradição que remonta ao projeto de 1968, o CPA não trata
apenas do procedimento administrativo propriamente dito, dando-se mesmo a
circunstância, um tanto insólita, de a sua Parte III apresentar epígrafe idêntica ao nome
do próprio código: Do Procedimento Administrativo.
Para além desta, o código tem uma primeira parte integrada por disposições gerais,
uma segunda relativa aos órgãos da administração pública e uma quarta regulando a
atividade administrativa.
197
Disciplina, pois, bem mais do que o procedimento administrativo. O artigo 2.º do
CPA contém as regras que determinam o âmbito de aplicação do código289.
Muito embora o legislador não tenha começado por aí, sublinhamos a definição do
perímetro da Administração Pública, escrita em letra maiúscula, representando um
afloramento da conceção orgânica desta, que vimos afastada na noção de ato
administrativo.
Na identificação de tal perímetro, feita pelo n.º 4, o legislador incluiu entidades, nas
alíneas b) a d), e órgãos, na alínea a).
Não terá grande coerência, mas traduz o reconhecimento de uma realidade para que
chamámos a atenção noutro ponto: a pouca relevância distintiva da personalidade
jurídica pública.
A Administração Pública é assim integrada por pessoas coletivas – as autarquias
locais e as suas associações e federações de direito público, as entidades administrativas
independentes, os institutos públicos e as associações públicas – e por órgãos de pessoas
coletivas – do Estado e das regiões autónomas.
Partindo desta identificação, podem estabelecer-se diferentes âmbitos de aplicação
das disposições do código, que se indicarão por ordem crescente de amplitude.
1.º As disposições que integram a Parte II do código, relativas aos órgãos da
Administração Pública, apenas se aplicam dentro dos limites do perímetro desta (n.º 2).
2.º Os princípios gerais da atividade administrativa, consagrados nos artigos 3.º a
19.º, e as normas de concretização constitucional, incluídas nos artigos 82.º a 85.º
(direito à informação), 100.º e 121.º a 125.º (participação dos cidadãos na formação das
decisões que lhes digam respeito), 110.º a 114.º (notificações) e 152.º a 154.º
(fundamentação dos atos administrativos), também se aplicam exclusivamente no
perímetro da Administração Pública, mas a todas as suas atuações, ainda que de gestão
privada ou de natureza meramente técnica (n.º 3).
3.º As disposições que respeitam ao procedimento e à atividade administrativa
(Partes III e IV do código) são aplicáveis às condutas de quaisquer entidades,
independentemente da sua natureza, adotadas no exercício de poderes públicos ou
reguladas de modo específico por disposições de direito administrativo (n.º 1) – o
mesmo vale por dizer no exercício de uma atividade materialmente administrativa.
109.3. Justificam-se três observações, duas delas tendo como ponto de referência a
formulação da lei anterior, contida no mesmo n.º 1 do artigo 2.º: uma elogiosa, outra
crítica e uma terceira interrogativa.
A primeira refere-se a substituição da expressão órgãos da Administração Pública
pela expressão «quaisquer entidades, independentemente da sua natureza». Esta
alteração traduz a substituição de uma visão orgânica da Administração Pública por uma
visão material ou funcional, que adotámos.
A segunda, complementar da primeira, reporta-se à substituição da expressão
desempenho da atividade administrativa de gestão pública pela expressão «adotada no
exercício de poderes públicos».
Se a eliminação da expressão gestão pública afasta os equívocos que esta sempre
implicou290, já a referência ao exercício de poderes públicos afigura-se representar um
289
Cfr. PAULO OTERO, Direito do Procedimento Administrativo, Volume I, Coimbra, 2016, pp. 65 a
69.
290
Cfr. DOMINGOS SOARES FARINHO, «O âmbito de aplicação do novo Código do Procedimento
Administrativo», in Comentários ao Novo Código do Procedimento Administrativo, 2.ª edição, 2015, pp.
143 a 150.
198
retrocesso na conceção do direito administrativo, fazendo-o recuar, pelo menos
aparentemente, a uma época que o associava ao exercício da autoridade.
Como refere VASCO PEREIRA DA SILVA, «mais do que a ideia de “poder”, o que deve
relevar é a ideia de “função” administrativa»291.
A última incide sobre o uso da expressão princípios gerais, igualmente constante do
n.º 1 do artigo 2.º. Esta disposição começa por referir «as disposições do presente
Código respeitantes aos princípios gerais». Sucede, porém, que o código apenas
conhece «princípios gerais da atividade administrativa», na epígrafe do Capítulo II da
Parte I – princípios esses que estão mencionados no início do n.º 3 do artigo 2.º – e
«princípios do procedimento administrativo», referidos nos artigos 56.º a 60.º. Parece
que tratar-se-á dos primeiros.
Por último, tenha-se presente que se extrai do n.º 5 do artigo 2.º que o código apenas
se aplica, a título principal, ao procedimento administrativo comum. A sua eventual
aplicação aos procedimentos administrativos especiais far-se-á a título subsidiário.
109.4. O CPA inclui, como se disse, dois tipos de princípios; em primeiro lugar, os
princípios gerais da atividade administrativa, constantes dos artigos 3.º a 19.º292:
• o princípio da legalidade (cfr. artigo 3.º);
• o princípio da prossecução do interesse público e da proteção dos direitos e
interesses dos cidadãos (cfr. artigo 4.º);
• o princípio da boa administração (cfr. artigo 5.º);
• o princípio da igualdade (cfr. artigo 6.º);
• o princípio da proporcionalidade (cfr. artigo 7.º);
• os princípios da justiça e da razoabilidade (cfr. artigo 8.º);
• o princípio da imparcialidade (cfr. artigo 9.º);
• o princípio da boa-fé (cfr. artigo 10.º);
• o princípio da colaboração com os particulares (cfr. artigo 11.º);
• o princípio da participação (cfr. artigo 12.º);
• o princípio da decisão (cfr. artigo 13.º);
• o princípio da gratuitidade (cfr. artigo 15.º);
• o princípio da responsabilidade (artigo 16.º);
• o princípio da administração aberta (artigo 17.º – cfr. artigo 61.º do código
anterior);
• o princípio da proteção dos dados pessoais (artigo 18.º);
• o princípio da colaboração leal com a União Europeia (artigo 19.º).
O código inclui ainda, no artigo 14.º, princípios relativos à administração eletrónica,
a que se voltará noutro ponto.
199
É discutível se a alteração do nome envolveu uma modificação efetiva do alcance do
princípio. Há quem entenda que não, criticando-lhe o conservadorismo de valores
relativamente ao direito anterior293.
Pela nossa parte, sempre manifestámos a nossa desconfiança relativamente a um
princípio que, pela imprecisão e leveza dogmática, nos parecia poder contribuir para
lançar alguma confusão nas fronteiras entre o administrativo e o judicial, arriscando
comprometer o exercício do primeiro sem vantagens evidentes para os particulares.
A enfatização da necessidade de alargamento do controlo jurisdicional da
“qualidade”, ou da “eficiência”, ou da “economicidade” da atividade administrativa
pública causa-nos, sobretudo, preocupação.
E nem mesmo a hábil argumentação de MIGUEL ASSIS RAIMUNDO nos tranquiliza294.
Partilhamos, sim, da convicção de MÁRIO AROSO DE ALMEIDA relativamente à
«necessidade de preservar o núcleo irredutível do mérito, no âmbito do qual se deve
admitir que as escolhas da Administração Pública devem pautar-se por critérios não
juridicizados e, como tal, insindicáveis pelos tribunais»295.
O princípio do acesso à justiça, anteriormente constante do artigo 12.º, esse
desapareceu mesmo. E bem, porque não se compreende a que título constava de um
código de procedimento administrativo.
Princípios novos – ou, pelo menos, formulados agora como tais – são os constantes
dos artigos 14.º, 16.º, 18.º e 19.º.
O princípio da responsabilidade, inscrito no artigo 16.º, já era por nós incluído entre
os princípios da administração pública, pelo que a sua explicitação só pode merecer a
nossa concordância.
O princípio da proteção dos dados pessoais, inscrito no artigo 18.º, constitui
inovação, ao menos no texto do código. No texto anterior apenas se encontrava uma
referência a dados pessoais no n.º 2 do artigo 62.º. Não obstante a existência de uma lei
específica – Lei n.º 67/98, de 26 de Outubro, na redação resultante da Lei n.º 103/2015,
de 24 de agosto –, faz sentido incluí-lo entre os princípios da atividade administrativa
pública.
O princípio da colaboração leal com a União Europeia, constante do artigo 19.º, tem
sobretudo um valor simbólico e fica bem em qualquer lei de procedimento
administrativo dos “28”.
No que toca aos restantes princípios, os dos artigos 3.º, 4.º, 6.º, 7.º, 8.º, 9.º e 10.º já
foram objeto de tratamento, na introdução deste escrito.
293
Cfr. ANA RITA CARNEIRO, LUCIANA SOUSA SANTOS e RITA BARROS, «O princípio da boa
administração: grande nau, grande tormenta?», in O Novo Código do Procedimento Administrativo,
Braga, 2015, p. 56.
294
«Os princípios no novo CPA e o princípio da boa administração, em particular», in Comentários ao
Novo Código do Procedimento Administrativo, 2.ª edição, 2015, pp. 199 a 205; cfr., em sentido idêntico,
ANA RITA CARNEIRO, LUCIANA SOUSA SANTOS e RITA BARROS, «O princípio da boa administração...», cit.,
pp. 73 a 76.
295
Teoria Geral do Direito Administrativo, cit., p. 59. No mesmo sentido, afigura-se razoável e
equilibrada a visão de NUNO MIGUEL MOTA, quando escreve que «o princípio da boa administração
pretende incluir sob a sua égide um núcleo de princípios jurídicos e não jurídicos, que deverão estar
presentes na actuação da administração pública. Nesses termos, e numa primeira linha, o princípio deverá
funcionar como um dever objectivo que se impõe à administração, ao qual, em regra, não corresponderá
um direito subjectivo na esfera jurídica dos particulares passível de tutela jurisdicional – ainda que se
admita, em casos circunstanciados, essa tutela» – «O princípio da boa administração no novo Código do
Procedimento Administrativo – Breves Anotações», in O Novo Código do Procedimento Administrativo,
Braga, 2015, p. 323.
200
Restam o princípio da participação (artigo 12.º), que serve de enquadramento à mais
importante inovação introduzida pelo código anterior, a audiência dos interessados no
procedimento, regulada nos artigos 100.º e 121.º a 125.º; o princípio da decisão (artigo
13.º), que assegura aos cidadãos o direito a obterem uma decisão administrativa quando
o requeiram ao órgão competente e não incorram na previsão do n.º 2 (dever de
pronúncia); e o princípio da gratuitidade (artigo 15.º).
Uma observação final sobre estes princípios. Tal como sucedia no texto anterior,
existe uma certa confusão, agora algo agravada, embora sem consequências de monta,
entre princípios, direitos e deveres.
Assim, os artigos 8.º a 14.º não tratam propriamente de princípios, mas de
verdadeiros deveres da Administração, e os artigos 17.º e 18.º consagram direitos dos
particulares.
201
O artigo 61.º evidencia que o legislador não encarou o uso de meios eletrónicos pela
administração pública como uma mera possibilidade, ainda que desejável, antes
manifestou explicitamente uma preferência pelo recurso a tais meios. A partir de agora,
a atividade administrativa pública deve normalmente desenrolar-se por forma eletrónica.
Conjuntamente, os n.ºs 1 e 2 do artigo 63.º confirmam esta preferência. Na verdade, não
obstante a formulação aparentemente restritiva do n.º 1 – que, por via do uso da palavra
só, aponta no sentido de a comunicação eletrónica com os interessados constituir
exceção –, o n.º 3 evidencia que a regra é a oposta: mesmo que o interessado não haja
manifestado expressamente a sua opção por tal forma de comunicação, tal opção é
presumida quando ele «tenha estabelecido contacto regular através daqueles meios».
O legislador manifesta uma preocupação muito compreensível com aquilo a que
poderia chamar-se “despersonalização” da atividade administrativa, de algum modo
associada à desmaterialização inerente aos procedimentos eletrónicos. Por isso, o n.º 2
do artigo 61.º procura assegurar a identificação do responsável pela direção do
procedimento e do órgão competente para a decisão: os decisores públicos têm sempre
um nome e exercem sempre uma função específica previamente determinada – não são
bits anónimos. As máquinas dependem sempre deles, sendo meros instrumentos, ainda
que sofisticados.
Uma vez estabelecida a preferência pelo recurso a meios eletrónicos, o legislador,
numa lógica de promoção da administração eletrónica, procurou evidenciar as
vantagens dessa escolha para os particulares, concretizando os benefícios que dela
advêm.
Por um lado – seguramente o mais aliciante –, o direito de conhecer através de meios
eletrónicos o estado dos procedimentos em que se encontrem envolvidos297; por outro, o
direito de obter os instrumentos indispensáveis à comunicação por via eletrónica –
nomes de utilizador, palavras-passe, conta de correio electrónico e assinatura digital
certificada (cfr. artigo 61.º, n.º 3).
O artigo 62.º regula o balcão único eletrónico. Este pode ser definido como um local
físico ou virtual onde se concentra a prestação de serviços pela administração pública. O
adjetivo único sugere que se trata de um sítio onde pode tratar-se de tudo quanto
respeita a um certo assunto ou tipo de assuntos, sendo, por isso, o único onde o
particular tem de “deslocar-se”.
As preocupações do legislador centraram-se, por um lado, em maximizar as
utilidades do balcão eletrónico, por outro, em clarificar alguns aspetos que, devido à
desmaterialização do procedimento administrativo, poderiam ser causa de dúvidas.
É o que sucede com os prazos e a sua contagem e com o pagamento das taxas que
sejam devidas298.
297
O n.º 4 do artigo 82.º complementa este direito, determinando que «nos procedimentos
electrónicos, a Administração deve colocar à disposição dos interessados, na Internet, um serviço de
acesso restrito, no qual aqueles possam, mediante prévia identificação, obter por via electrónica a
informação sobre o estado de tramitação do procedimento». Note-se que este direito já estava reconhecido
pelo n.º 2 do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 135/99, de 22 de Abril, na redação que lhe foi dada pelo
Decreto-Lei n.º 73/2014, de 13 de maio.
298
ANA FRANÇA JARDIM e MIGUEL ASSIS RAIMUNDO, «Balcão Único Electrónico», in Comentários ao
Novo Código do Procedimento Administrativo, 2.ª edição, 2015, pp. 433 a 444, e MIGUEL PRATA ROQUE,
«O procedimento administrativo electrónico», in ibidem, p. 395, tecem várias críticas à regulamentação
do balcão electrónico contida no CPA, os primeiros por imprecisão conceptual – aparente confusão entre
balcão electrónico e balcão único electrónico –, o segundo por insuficiência da regulamentação. JOÃO
CAUPERS, «O princípio da colaboração da administração pública com os particulares», in Comentários ao
Novo Código do Procedimento Administrativo, 2.ª edição, 2015, p. 248, chamou igualmente a atenção
para este ponto.
202
110. Espécies de procedimentos administrativos
299
Confessamos que também nos parece algo estranho colocar no mesmo plano de legitimação
procedimental os titulares de posições ativas – direitos e interesses legalmente protegidos – e aqueles que
ocupam posições passivas, sobre eles recaindo deveres, encargos, ónus ou sujeições – cfr. FRANCISCO
PAES MARQUES, «Os interessados no novo Código do Procedimento Administrativo», in in Comentários
ao Novo Código do Procedimento Administrativo, 2.ª edição, 2015, p. 495.
203
Em terceiro lugar, temos uma forma de legitimação procedimental, próxima da
anterior, e com tradições entre nós, que “herda” o papel outrora desempenhado pela
antiga ação popular, regulada nos artigos 369.º e 822.º do Código Administrativo de
1936/1940, nas suas espécies supletiva e corretiva, respetivamente. Continua a tratar-se,
essencialmente, de assegurar a defesa de bens das pessoas coletivas públicas de base
territorial afetados por ações ou omissões da administração. E continua a ser uma
legitimação que privilegia o plano territorial, na medida em que se restringe, nas
palavras da lei, aos «residentes da circunscrição em que se localize ou tenha localizado
[por ter, entretanto, perecido] o bem defendido» (n.º 3).
Por último, temos uma situação, descrita na primeira parte do n.º 4 – já que a parte
final trata, ainda, de interesses difusos – de forma pouco clara, que parece ter subjacente
um potencial conflito entre órgãos da administração pública: um, que afeta ou pretende
afetar posições de vantagem de que beneficia o outro; e este, que quer evitar ou
minimizar tal afetação.
204
hajam prestado serviços, há menos de três anos, a qualquer dos sujeitos privados
participantes na relação jurídica procedimental300.
300
Trata-se, como referiram já outros Autores, de uma verdadeira situação de incompatibilidade e não
tanto de um caso de impedimento – cfr. ALEXANDRE SOUSA PINHEIRO e outros, Questões Fundamentais
para a Aplicação do CPA, Coimbra, 2016, p. 144. A norma em causa não se afigura particularmente clara
e poderá induzir uma aplicação verdadeiramente excessiva e limitativa para entidades privadas que
desenvolvam como atividade principal o aconselhamento em matérias administrativas – e, em particular,
advogados especialistas em Direito Administrativo. Sobre as perplexidades que a aplicação desta norma
poderá suscitar, veja-se a obra citada, especialmente as pp. 145 a 149.
301
Cfr. «A conferência procedimental no novo Código do Procedimento Administrativo», in
Comentários ao Novo Código do Procedimento Administrativo, 2.ª edição, 2015, p. 560. No mesmo
sentido, cfr. PAULO OTERO, Direito do Procedimento Administrativo, cit., p. 109.
302
Cfr. JOÃO CAUPERS, Introdução à Ciência da Administração Pública, cit., p. 100.
205
órgãos participantes; nas conferências de coordenação, as várias decisões a tomar são-
no em simultâneo (artigo 80.º, n.º 1, do CPA).
Note-se ainda que a conferência procedimental não tem resultado garantido. Na
verdade, de acordo com o n.º 1 do artigo 82.º, termina, quando as coisas correm bem,
com a prática do ato ou dos atos que ela visou preparar ou com a outorga do contrato
previsto no n.º 4 do artigo 77.º.
Quando as coisas correm mal, termina no final do prazo – sessenta dias, prorrogáveis
por mais trinta –, sem que tal ato ou atos tenham sido praticados (artigo 81.º, n.º 1).
303
Acordos de conteúdo estritamente procedimental e acordos de conteúdo substantivo, na
terminologia proposta por JOANA DE SOUSA LOUREIRO, «Os acordos endoprocedimentais no novo CPA»,
in Comentários ao Novo Código do Procedimento Administrativo, 2.ª edição, 2015, p. 367.
304
Para aprofundar esta polémica, IDEM, ibidem, pp. 357 a 376.
206
CAPÍTULO VIII
A MARCHA DO PROCEDIMENTO
COMUM DECISÓRIO DE 1.º GRAU
PARA A TOMADA DE UMA DECISÃO ADMINISTRATIVA
Leituras aconselhadas:
207
115.1. Nos procedimentos de iniciativa pública, o arranque do procedimento pode
dever-se a impulso processual autónomo – quando o órgão com competência para
decidir é aquele que inicia o procedimento –, ou a impulso processual heterónomo – se
o órgão que inicia o procedimento carece de competência para a decisão final.
Em qualquer dos casos há que cumprir o dever fixado no n.º 1 do artigo 110.º do
CPA: a comunicação aos interessados do início do procedimento.
208
116.1. A fase da instrução é aquela em que se procede à recolha e ao tratamento dos
dados indispensáveis à decisão.
A direção desta fase do procedimento é atribuída, pelo n.º 1 do artigo 55.º do CPA,
em primeiro lugar, ao órgão competente para a decisão. O n.º 2 do mesmo artigo,
porém, determina que este órgão «delega em inferior hierárquico seu, o poder de
direção do procedimento». Será este o responsável.
Diferentemente do que sucedia no antigo CPA, em que a delegação era uma mera
faculdade (cfr. artigo 86.º, n.º 2), o legislador de 2015 quer que, em princípio, essa
delegação aconteça. Da leitura do preâmbulo do diploma que aprovou o código (ponto
7) fica a saber-se que foram sobretudo preocupações com a imparcialidade do órgão
competente para decidir que ditaram esta opção305.
305
O que MÁRIO AROSO DE ALMEIDA confirma – Teoria Geral do Direito Administrativo, cit., p. 87.
ANA FERNANDA NEVES, por seu lado, explica que trata-se de «assegurar a autonomia técnica e funcional
no tratamento dos assuntos e no funcionamento dos serviços» – «Garantias de imparcialidade», in
Comentários ao Novo Código do Procedimento Administrativo, 2.ª edição, 2015, p. 536.
209
têm de ser acatadas pelo órgão decisor, trata-se de pareceres vinculativos306; se tal não
sucede, são pareceres não vinculativos (cfr. artigo 91.º do CPA).
Situação muito comum é a dos pareceres que são vinculativos quando desfavoráveis
– impondo, neste caso, uma decisão negativa –, mas que são não vinculativos quando
favoráveis – permitem uma decisão positiva, mas não impedem uma decisão negativa
(desde que devidamente fundamentada, entenda-se).
Esta circunstância é facilmente explicável: em regra, o parecer incide apenas sobre
uma parte das condicionantes da decisão administrativa, correspondente a um interesse
público específico; o órgão consultivo (ou o especialista) que o emite limita-se a afirmar
se, na parte que lhe cumpre apreciar, existem ou não obstáculos à tomada da futura
decisão, tal como o seu autor a configura. No caso de considerar que tais obstáculos
existem, compreende-se que a decisão não possa ser tomada contra o sentido do parecer
– é aqui que opera a vinculatividade.
No caso contrário, ou seja, se o órgão consultivo considerar que não existem
obstáculos a uma futura decisão administrativa favorável, isso apenas quer significar
que esta não poderá ser desfavorável desde que fundada nos fatores que o órgão
consultivo tinha o dever de ponderar. Mas poderá, naturalmente, ser desfavorável com
outros fundamentos que o órgão consultivo não tinha competência para ponderar, mas
que o órgão decisório pode e deve, legalmente, tomar em consideração.
A emissão de pareceres está sempre sujeita a prazo. Este pode ser fixado, entre
quinze e quarenta e cinco dias, pelo instrutor do procedimento; se este o não fizer, a lei
estabelece um prazo legal supletivo de trinta dias (artigo 92.º, n.ºs 3 e 4, do CPA).
Regra inovadora é a estabelecida no n.º 5 deste mesmo artigo: no caso de o prazo
para a emissão do parecer não ser respeitado, o procedimento pode mesmo assim
prosseguir e vir a ser decidido, o que evita que a ação administrativa seja embaraçada
pela demora na emissão de um parecer. Só assim não será se a lei expressamente o
proibir307.
306
Sobre pareceres vinculativos, cfr. PEDRO GONÇALVES, «Apontamento sobre a função e a natureza
dos pareceres vinculantes» e «Anotação ao acórdão do STA-1 de 19 de Dezembro de 1995», ambos
publicados em Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 0, Novembro/Dezembro de 1996, pp. 3 a 12 e 30 a
39.
307
CARLA AMADO GOMES insurge-se contra esta novidade, entendendo que degrada o parecer
obrigatório vinculativo, permitindo que o decisor dele prescinda. Não sendo mentira, também não deixa
de ser verdade que a falta de emissão oportuna de parecer vinculativo coloca a Administração – e o
legislador – perante uma escolha embaraçosa: atrasar a decisão ou prescindir do parecer? Cfr. «Da
inutilidade dos pareceres no novo Código do Procedimento Administrativo », in Comentários ao Novo
Código do Procedimento Administrativo, 2.ª edição, 2015, pp. 645 a 665.
210
sentido mais adequado da futura decisão – pontos de vista que visam, naturalmente, a
formação esclarecida da vontade administrativa.
d) Audição de pessoas.
A audição de pessoas, nomeadamente daquelas que possuem informação relevante
sobre os factos e as circunstâncias que podem operar como condicionantes da decisão
administrativa, não é muito frequente na maioria dos procedimentos administrativos, o
que não quer dizer que não possa assumir particular relevo em muitos deles.
308
Cfr. JOSÉ MANUEL SÉRVULO CORREIA, «O direito à informação e os direitos de participação dos
particulares no procedimento», in Estudos sobre o Código do Procedimento Administrativo, Legislação.
Cadernos de Ciência de Legislação, INA, n.ºs 9/10, Janeiro/Junho de 1994, p. 147.
309
Desapareceu na atual lei a distinção que o artigo 103.º do anterior CPA fazia entre inexistência da
audiência e dispensa da audiência. Agora a lei exige sempre uma decisão do responsável pela direção do
procedimento.
211
a) A inutilidade da audiência – ou porque a decisão da administração é inteiramente
favorável aos interessados, ou porque estes já se pronunciaram sobre as questões
relevantes para a decisão e sobre as provas produzidas [alíneas e) e f)];
b) A impossibilidade, por facto imputável aos interessados, de fixar nova data para a
realização da audiência cujo adiamento aqueles haviam solicitado [alínea b)];
c) A urgência da decisão [alínea a)];
d) A previsibilidade razoável de a realização da audiência poder prejudicar a
execução ou a utilidade da decisão [alínea c)];
e) A circunstância de o número de interessados a ouvir ser tão elevado que a
audiência seja impraticável [alínea d)].
No novo CPA o legislador manteve uma formulação que criticámos e continuamos a
criticar. Nesta última circunstância – o elevado número de interessados –, enfrentou a
dificuldade “degradando” a audiência em consulta pública, o que, por si, não justifica
crítica. Mas acrescentou que esta se faria «quando possível, pela forma mais adequada».
Consideradas as formas que a consulta pública pode revestir – incluindo o recurso a
instrumentos de administração eletrónica, que o código tanto acarinhou –, continuamos
a não conseguir imaginar em que situações a consulta pública, sucedânea de uma
inviável audiência dos interessados, é, ela própria, impossível.
310
JOSÉ MANUEL SÉRVULO CORREIA, «O direito à informação...», cit., pp. 155 a 159; VASCO PEREIRA
DA SILVA, Em busca do acto..., cit., pp. 429 a 431; PAULO OTERO, Direito do Procedimento
Administrativo, cit., p. 574.
311
DIOGO FREITAS DO AMARAL, «Fases do procedimento decisório do 1.º grau», in Direito e Justiça,
Volume VI, 1992, p. 32; e Curso..., cit., Volume II, p. 297; PEDRO MACHETE, A audiência dos
interessados..., cit., pp. 526-527. Foi também este o sentido da decisão do STA no acórdão de 15 de
Dezembro de 1994, publicado em Acórdãos Doutrinais do Supremo Tribunal Administrativo, n.º 403, pp.
783 e segs. Para um panorama completo do estado do debate doutrinário (em 2008), cfr. MIGUEL PRATA
ROQUE, «Acto nulo ou acto anulável? – A jusfundamentalidade do direito de audiência prévia e do direito
à fundamentação», anotação ao Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 594/2008, de 10.12.2008, in
Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 78, Novembro/Dezembro de 2009, pp. 17 a 32.
212
118.1. Esta fase inicia-se usualmente com o relatório do instrutor, peça que só não
existirá se a instrução tiver sido dirigida pelo próprio órgão competente para a decisão
(cfr. artigo 126.º do CPA). Neste relatório dá-se conta do pedido do interessado,
resumem-se as fases do procedimento e propõe-se uma decisão.
No comum dos casos, o procedimento administrativo que tem por objeto a prática de
um ato administrativo termina com a prática deste (cfr. artigo 93.º do CPA).
O novo código, porém, introduziu expressamente uma possibilidade, provavelmente
por influência italiana, que se traduz na circunstância de o procedimento terminar com a
outorga de um contrato (artigo 127.º).
No que toca aos procedimentos de iniciativa particular, o n.º 1 do artigo 128.º do
CPA estabelece para a conclusão do procedimento um prazo geral de noventa dias,
prorrogável, a título excecional, por períodos que não excedam, no seu conjunto, outros
tantos dias. Estas prorrogações exigem o assentimento do órgão competente para a
decisão final do procedimento.
Já quanto aos procedimentos de iniciativa pública ou oficiosa de que possam resultar
decisões com efeitos desfavoráveis para os interessados, o código impõe um prazo de
cento e oitenta dias para a respetiva caducidade (artigo 128.º, n.º 6). Para os restantes
procedimentos de iniciativa pública, não existe qualquer prazo, nem tal se justificaria.
118.2. Para além da decisão expressa, o procedimento pode extinguir-se por outras
quatro causas:
1.ª A desistência do pedido e a renúncia dos interessados aos direitos ou interesses
que pretendiam fazer valer no procedimento (cfr. artigo 131.º do CPA);
2.ª A deserção dos interessados, expressão da falta de interesse destes pelo
andamento do procedimento (cfr. artigo 132.º);
3.ª A falta de pagamento de taxas ou despesas, que constitui causa de extinção do
procedimento nos casos previstos no n.º 1 do artigo 132.º;
4.ª Um ato tácito de deferimento.
213
A formulação do n.º 1 do artigo 130.º do CPA – «Existe deferimento tácito quando a
lei ou regulamento determine que a ausência de notificação da decisão final sobre
pretensão dirigida a órgão competente dentro do prazo legal tem o valor de
deferimento» – não estabelece uma regra geral sobre a formação daquele, limitando-se a
esclarecer que cada caso de deferimento tácito depende de específica previsão legal.
De acordo com o n.º 2 do mesmo artigo, o deferimento tácito produz-se no termo do
prazo para a decisão, estabelecido nos termos do n.º 1 do artigo 128.º.
312
Afigura-se uma boa ideia tratar em conjunto as diversas situações em que a inércia administrativa
apresenta consequências jurídicas: deferimento tácito, comunicações prévias, omissão de regulamentos,
etc. Foi a opção de PAULO OTERO, no seu Direito do Procedimento Administrativo, dedicando o § 12 ao
tema da inatividade administrativa (pp. 395 a 434).
313
JOÃO MIRANDA distingue as duas situações, chamando a esta última «falsa comunicação prévia» e
propondo para ela a designação de declaração prévia, sem dúvida mais apropriada – «A comunicação
prévia no novo Código do Procedimento Administrativo», in Comentários ao Novo Código do
Procedimento Administrativo, 2.ª edição, 2015, pp. 831 a 836.
214
PARTE III
GARANTIAS DOS PARTICULARES
215
CAPÍTULO I
GARANTIAS ADMINISTRATIVAS
Leituras aconselhadas:
217
120.1. O Provedor de Justiça tem origem no ombudsman sueco, um magistrado
escolhido pelo parlamento para ouvir as razões de queixa do povo contra o poder. A
figura generalizou-se na Europa, graças ao empenho do Conselho da Europa, tendo
surgido, entre outros, o parliament commissionary (Reino Unido), o médiateur
(França), o diffensore civico (Itália) e o defensor del pueblo (Espanha).
Entre nós, a instituição começou a ser falada no Congresso Democrático de Aveiro
(1970) e no Congresso dos Advogados (1972). O Provedor de Justiça, contudo, somente
veio a ser criado após 25 de Abril de 1974, através do Decreto-Lei n.º 212/75. O artigo
23.º da Constituição de 1976 viria a consagrar a figura do Provedor de Justiça.
Também no Tratado da União Europeia (cfr. artigo 138.º-E) se prevê a figura do
Provedor de Justiça europeu, a designar pelo Parlamento Europeu, com poderes para
receber queixas apresentadas por qualquer cidadão da União ou qualquer pessoa
singular ou coletiva com residência ou sede estatutária num Estado-membro.
120.2. O estatuto do Provedor de Justiça consta da Lei n.º 9/91, de 9 de Abril, com a
redação que lhe foi dada pela Lei n.º 17/2013, de 18 de fevereiro. Vejamos os seus
aspetos principais.
O âmbito subjetivo de atuação do Provedor de Justiça encontra-se
constitucionalmente delimitado pelo n.º 1 do artigo 23.º da CRP, através da referência
aos poderes públicos, expressão que parece pouco adequada para designar entidades de
natureza jurídico-privada, que não exerçam poderes especiais de autoridade suscetíveis
de contender com os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos.
A lei ordinária atual (artigo 2.º) dispõe que as ações do Provedor de Justiça se
exercem, nomeadamente «no âmbito da actividade dos serviços da administração
pública central, regional e local, das Forças Armadas, dos institutos públicos, das
empresas públicas ou de capitais maioritariamente públicos ou concessionárias de
serviços públicos ou de exploração de bens do domínio público, das entidades
administrativas independentes, das associações públicas, designadamente das ordens
profissionais, das entidades privadas que exercem poderes públicos ou que prestem
serviços de interesse geral».
A Lei n.º 17/2013 alargou o âmbito de intervenção do Provedor de Justiça, tal como
já havia feito a Lei n.º 9/91, continuando a utilizar a técnica da enumeração
exemplificativa, fazendo tendencialmente coincidir o campo de intervenção do Provedor
de Justiça com a nossa delimitação da Administração Pública – sentido orgânico.
Quanto ao âmbito material de atuação do Provedor de Justiça, a Constituição
esclarece que ele inclui tanto ações – comportamentos positivos da Administração
Pública –, como omissões (cfr. artigo 23.º, n.º 1).
218
• as inspeções, com as quais procura averiguar como funcionam os serviços públicos,
normalmente alertado por queixas de cidadãos ou pelos órgãos de comunicação social
[cfr. artigo 21.º, n.º 1, alínea a), da Lei n.º 9/91];
• o relatório anual, que envia à Assembleia da República e que constitui uma
importante fonte de informação sobre as condições em que se exerce a atividade
administrativa pública (cfr. artigo 23.º, n.ºs 1 e 2, da Lei n.º 9/91);
• o recurso aos meios de comunicação social para fazer chegar à opinião pública o
seu alerta e o seu descontentamento sobre aspetos do comportamento dos órgãos da
Administração Pública (cfr. artigo 35.º, n.º 2, da Lei n.º 9/91).
A atuação do Provedor de Justiça – e dos serviços da Provedoria de Justiça – rege-se
por dois princípios fundamentais:
• o informalismo, que significa que o Provedor de Justiça deve procurar a verdade e o
esclarecimento dos factos através de todos os meios ao seu alcance, sem submissão a
rituais preeterminados (cfr. artigo 28.º, n.º 1, da Lei n.º 9/91);
• o contraditório, que representa uma exigência básica de justiça, impedindo o
Provedor de Justiça de criticar ou censurar qualquer órgão da Administração Pública
sem que lhe tenha previamente assegurado o direito de esclarecer e sustentar a sua
posição (cfr. artigo 34.º da Lei n.º 9/91).
314
Cfr. VASCO PEREIRA DA SILVA, «“O inverno do nosso descontentamento”...», cit., pp. 124-125.
219
O novo CPA continua a acolher a distinção, desta feita formulada no n.º 1 do artigo
185.º: «As reclamações e os recursos são necessários ou facultativos, conforme
dependa, ou não, da sua prévia utilização a possibilidade de acesso aos meios
contenciosos de impugnação ou condenação à prática de ato devido».
No número seguinte, porém, o legislador estabelece, como regra, o carácter
facultativo da reclamação e dos recursos, esclarecendo que apenas são necessários
aqueles que a lei denominar como tais.
Ora, isto significa que o legislador está autorizado a restringir o acesso aos tribunais
administrativos, sem mesmo dispor de qualquer critério suscetível de apontar os casos
em que tal seria admissível.
O n.º 1 do artigo 3.º do decreto preambular que aprovou o CPA, perante o contexto
de controvérsia que há muito rodeia a questão da natureza necessária ou facultativa das
garantias administrativas impugnatórias, nomeadamente o recurso hierárquico, contém
uma disposição curiosa. Aí se dispõe, sob a epígrafe Impugnações administrativas
necessárias:
«As impugnações administrativas existentes à data da entrada em vigor do presente
decreto-lei só são necessárias quando previstas em lei que utilize uma das seguintes
expressões:
a) A impugnação administrativa em causa é “necessária”;
b) Do ato em causa “existe sempre” reclamação ou recurso;
c) A utilização de impugnação administrativa “suspende” ou “tem efeito suspensivo”
dos efeitos do ato impugnado».
A curiosidade que esta disposição desperta reside em ela utilizar uma técnica que não
é muito frequente na redação legislativa: pretende eliminar dúvidas quanto ao regime
aplicável às distintas impugnações administrativas de uma forma radical, limitando
estas aos casos em que o legislador utilizou determinados termos ou expressões.
Recorda o formalismo do antigo direito romano, em que a admissibilidade de uma ação
dependia de o respetivo autor utilizar certas expressões.
Da utilização do termo só no proémio decorre a assunção de que a regra é a do
carácter facultativo das impugnações administrativas. Sendo melhor do que a dúvida,
teria sido preferível, em nosso entender, simplesmente acabar com as impugnações
necessárias.
121.2. Um aspeto a ter em conta quando se pretende reagir contra a omissão ilegal de
um ato administrativo, seja através de reclamação, seja de recurso, é que tal reação deve
ter lugar dentro do prazo de um ano, contado da data do incumprimento do dever de
decisão (artigos 187.º e 188.º, n.º 3, do CPA).
No caso de a reação consistir na impugnação de um ato administrativo, os efeitos do
ato impugnado são suspensos quando a reclamação ou o recurso sejam necessários
(artigo 189.º, n.º 1); se estes forem facultativos, o efeito suspensivo não se produz, a não
ser que ocorram as circunstâncias descritas na parte final do n.º 2 do artigo 189.º.
Podem igualmente produzir-se efeitos sobre os prazos que condicionem a utilização
de outros meios de garantia.
A reclamação, quando tenha por objeto atos ou omissões sujeitos a recurso
administrativo necessário, suspende o prazo de interposição deste; nos demais casos, tal
não acontece (artigo 190.º, n.ºs 1 e 2).
A reclamação e os recursos, quando tenham por objeto a impugnação de atos
administrativos e sejam facultativos, suspendem o prazo de propositura de ações nos
220
tribunais administrativos, que só recomeça a sua contagem nas condições previstas no
n.º 3 do artigo 190.º.
122. A reclamação
315
Referimo-nos às reclamações administrativas, já que o mesmo se não aplica às reclamações
judiciais. E, evidentemente, tratando-se de omissão, esta não tem propriamente um autor.
221
competência deste for exclusiva, resta-lhe ordenar a prática do ato ilegalmente omitido
(artigo 197.º, n.º 5).
222
CAPÍTULO II
AS GARANTIAS JURISDICIONAIS
A JUSTIÇA ADMINISTRATIVA
Leituras aconselhadas:
223
Doutor Jorge Miranda, Volume IV, Coimbra, 2012, pp. 219 a 240; CLÁUDIA VIANA,
«Recentíssimas alterações do contencioso relativo à formação dos contratos públicos»,
in Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 37, Janeiro/Fevereiro de 2003, pp. 3 a 12;
DIOGO FREITAS DO AMARAL e MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, Grandes Linhas da Reforma
do Contencioso Administrativo, Coimbra, 2002; JOÃO RAPOSO, «Os pressupostos
processuais no nóvel Código de Processo nos Tribunais Administrativos», in Estudos
em Homenagem ao Professor Doutor Germano Marques da Silva, Coimbra, 2004, pp.
183 a 201; JOÃO TIAGO DA SILVEIRA, «A extensão dos efeitos de sentenças a casos
idênticos no contencioso administrativo», in Estudos em Homenagem a Miguel Galvão
Teles, Volume I, Coimbra, 2012, pp. 827 a 851; JORGE MIRANDA, «Os parâmetros
constitucionais da reforma do contencioso administrativo», in Cadernos de Justiça
Administrativa, n.º 24, Novembro/Dezembro de 2000, pp. 3 a 10; JOSÉ CARLOS VIEIRA
DE ANDRADE, A Justiça Administrativa (Lições), 12.ª edição, Coimbra, 2012, pp. 23 a
162; IDEM, «Os poderes de cognição e de decisão do juiz no quadro do actual processo
administrativo de plena jurisdição», in Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 101,
Stembro/Outubro de 2013, pp. 37 a 44; JOSÉ MANUEL SÉRVULO CORREIA, «A reforma do
contencioso administrativo e as funções do Ministério Público», in Estudos em
homenagem a Cunha Rodrigues, Coimbra, 2001, pp. 295 a 329; IDEM, «Contencioso
administrativo e responsabilidade democrática da Administração», in Estudos em
Memória do Prof. Doutor J. L. Saldanha Sanches, Volume I, Coimbra, pp. 595 a 612;
JOSÉ MÁRIO FERREIRA DE ALMEIDA, «No caminho da efectividade da tutela jurisdicional
administrativa – a execução forçada da sentença que condena à prestação de facto», in
Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Jorge Miranda, Volume IV, Coimbra, 2012,
pp. 519 a 539; MARIA JOÃO ESTORNINHO, «A reforma de 2002 e o âmbito da jurisdição
administrativa», in Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 35, Setembro/Outubro de
2002, pp. 3 a 8; MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, «Breve introdução à reforma do contencioso
administrativo», in Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 32, Março/Abril de 2002,
pp. 3 a 10; IDEM, «O objeto do processo no novo contencioso administrativo», in
Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 36, Novembro/Dezembro de 2002, pp. 13 a 16;
IDEM, Manual de Processo Administrativo, Coimbra, 2010, pp. 37 a 74; IDEM, «Sobre a
legitimidade popular no contencioso administrativo português», in Cadernos de Justiça
Administrativa, n.º 101, Setembro/Outubro de 2013, pp. 50 a 56; MÁRIO AROSO DE
ALMEIDA e CARLOS ALBERTO FERNANDES CADILHA, Comentário ao Código de Processo
nos Tribunais Administrativos, 3.ª edição revista, Coimbra, 2010; PEDRO GONÇALVES, O
Contrato Administrativo. Uma Instituição..., cit., pp. 147 a 171; IDEM, «A
justiciabilidade dos litígios entre órgãos da mesma pessoa colectiva pública», in
Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 35, Setembro/Outubro de 2002, pp. 9 a 23;
VASCO PEREIRA DA SILVA, «Vem aí a Reforma do Contencioso Administrativo?», in
Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 19, Janeiro/Fevereiro de 2000, pp. 3 a 19;
WLADIMIR BRITO, Lições de Direito Processual Administrativo, 2.ª edição, Coimbra,
2008.
224
Justiça, Novembro de 2000, contendo a maioria das intervenções nos debates públicos
sobre a reforma do contencioso administrativo; AAVV, in Cadernos de Justiça
Administrativa, n.º 47, Setembro/Outubro de 2004, contendo uma primeira análise do
estado de execução da Reforma do Contencioso Administrativo de 2002; AAVV, O
anteprojeto de revisão do Código de Processo nos Tribunais Administrativos em
Debate, CARLA AMADO GOMES, ANA FERNANDA NEVES e TIAGO SERRÃO (coord.), Lisboa,
2014; AAVV, Comentários à revisão do ETAF e do CPTA, CARLA AMADO GOMES, ANA
FERNANDA NEVES e TIAGO SERRÃO (coord.), Lisboa, 2016; CARLA AMADO GOMES,
«Legitimidade processual popular, litispendência e caso julgado», in O Direito, Ano
148.º, 2016, I, pp. 33 a 52; FERNANDA MAÇÃS, «A tutela pré-cautelar em revisão: breves
reflexões», in Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 106, Julho/Agosto de 2014, pp.
103 a 110; JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, A Justiça Administrativa (Lições), 14.ª
edição, Coimbra, 2016, pp. 11 a 161; JOSÉ MANUEL SÉRVULO CORREIA, «Da ação
administrativa especial à nova ação administrativa», in Cadernos de Justiça
Administrativa, n.º 106, Julho/Agosto de 2014, pp. 49 a 60; LICÍNIO LOPES MARTINS,
«Âmbito da jurisdição administrativa no Estatuto dos Tribunais Administrativos e
Fiscais revisto», in Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 106, Julho/Agosto de 2014,
pp. 2 a 25; MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, Manual de Processo Administrativo, 2.ª edição
revista, Coimbra, 2016.
225
comportamentos da administração pública316, como acontecia, e acontece ainda, em
países como o Reino Unido e os EUA.
O resultado desta conceção foi a dualidade de jurisdições: a jurisdição
administrativa, destinada à revisão da legalidade de decisões da administração pública,
como instrumento da composição de litígios emergentes de relações jurídico-
administrativas, e a jurisdição comum, encarregada da composição dos conflitos inter-
privados de interesses317.
A primeira concretização histórica do modelo francês foi o sistema do
administrador-juiz: nascido da evolução do recurso hierárquico, depositava ainda nas
mãos da Administração Pública, embora com a intervenção necessária de um órgão
colegial especificamente vocacionado para a apreciação das contestações aos
comportamentos administrativos, a decisão destas.
O sistema dos tribunais administrativos, adotado em 1930, assentou na criação de
órgãos especiais da Administração Pública, de tipo jurisdicional, que julgavam as
impugnações das decisões administrativas.
Este sistema sofreu uma transformação fundamental a partir de 1974 – o processo de
jurisdicionalização dos tribunais administrativos:
a) O Decreto-Lei n.º 250/74, de 12 de Junho, procedeu à transferência dos tribunais
administrativos do âmbito da Presidência do Conselho de Ministros para o Ministério da
Justiça;
b) O n.º 3 do artigo 212.º da CRP (1976) previu a existência de tribunais
administrativos integrados no poder judicial;
c) O Decreto-Lei n.º 256-A/77, de 17 de Junho, jurisdicionalizou o processo de
execução das sentenças dos tribunais administrativos;
d) O artigo 16.º do antigo Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (1984)
determinou a eleição do presidente do Supremo Tribunal Administrativo pelos seus
pares.
316
Conceção esta muito marcada pelas condições que se viviam em França no início do século XIX,
com Napoleão necessitado de fazer escapar as profundas reformas da administração pública, em que os
seus governos se encontravam empenhados, ao controlo dos tribunais comuns, maioritariamente
integrados por juízes conservadores.
317
Como nota PAULO OTERO, «a criação de uma jurisdição administrativa própria, subtraindo a
resolução dos litígios jurídico-administrativos aos tribunais comuns, apesar de alicerçada na ideia de que
“julgar a Administração ainda é administrar”, não teve qualquer intuito garantístico, antes se baseou na
desconfiança dos revolucionários franceses contra os tribunais judiciais...» – Legalidade e Administração
Pública. O Sentido da Vinculação..., cit., p. 275.
226
introduzir alterações pontuais positivas num quadro normativo que era ainda, no
essencial, o do contencioso administrativo assente na ideia de revisão de legalidade e de
subsequente destruição jurídica das decisões unilaterais da administração consideradas
ilegais. O ordenamento jurídico do contencioso administrativo havia-se transformado
numa espécie de “colcha” que, à força de tão remendada, já não era de renda francesa,
mas de um anónimo e quase incompreensível patchwork.
Entre 1988 e 2002, ano da publicação da reforma de fundo do contencioso
administrativo, passaram catorze anos, de vicissitudes e peripécias várias, de que meia
dúzia de anteprojetos constituíram testemunho eloquente.
Se houve caso em que o ano 2000 – para além de polémica relativa a saber se
constituía o fim do segundo milénio ou o princípio do terceiro – teve um especial
significado, foi o do contencioso administrativo.
O passo decisivo no sentido da aceleração do processo de reforma do contencioso
administrativo foi consubstanciado pela submissão a discussão pública, em janeiro de
2000, de três projetos de diplomas legais que haviam sido preparados, com base em
trabalhos anteriores – que remontavam, como se disse, a 1988 – por um grupo de
magistrados da jurisdição administrativa318.
A aceleração do processo encontrava motivação acrescida, uma vez mais, na revisão
constitucional de 1997 que, como sucedera com as anteriores, havia procedido a
alteração significativa do artigo 268.º da lei fundamental.
125.4. O ano de 2000 foi de uma extrema e invulgar efervescência: sob o impulso do
Gabinete de Política Legislativa e Planeamento do Ministério da Justiça319, realizaram-
se diversos e extensos debates sobre a reforma, nas cinco faculdades de direito públicas
portuguesas (Coimbra, Lisboa, Lisboa - Nova, Porto e Braga) e nas faculdades de
direito de Lisboa e do Porto da Universidade Católica Portuguesa). A doutrina
jusadministrativa portuguesa, que já havia manifestado o propósito de influenciar a
reforma do contencioso320, não deixou passar a oportunidade, participando
massivamente no debate321.
Paralelamente a este debate, decorreram outros trabalhos considerados
imprescindíveis à reforma:
a) Um projeto de investigação realizado no âmbito do Centro de Estudos Sociais da
Universidade de Coimbra, sob responsabilidade do Prof. Vital Moreira, sobre a Justiça
Administrativa em Portugal; a versão provisória do relatório preliminar, datada de Julho
de 2000, foi discutida em debate público realizado na Faculdade de Direito daquela
universidade;
b) Um Estudo de Organização e Funcionamento dos Tribunais Administrativos, da
autoria conjunta de Sérvulo Correia & Associados e de Andersen Consulting, SA (hoje,
318
Cfr. a publicação do Ministério da Justiça Reforma do Contencioso Administrativo, datada de
Janeiro de 2000.
319
E, sobretudo, do seu principal responsável, o Mestre João Tiago Silveira.
320
Leia-se o Manifesto de Guimarães sobre a Justiça Administrativa, aprovado pelos participantes no
II Seminário de Justiça Administrativa, realizado naquela cidade nos dias 16 e 17 de Abril de 1999 e
publicado no n.º 14 dos Cadernos de Justiça Administrativa, Março/Abril de 1999, contracapa. Esta
publicação, de resto, jamais abrandou a pressão sobre o poder legislativo no sentido de uma verdadeira
reforma do contencioso administrativo, dedicando-lhe muitas e muitas páginas.
321
As intervenções proferidas em tais debates encontram-se publicadas no volume Reforma do
Contencioso Administrativo. Trabalhos Preparatórios. O Debate Universitário, Ministério da Justiça,
Novembro de 2000.
227
Accenture, SA), escolhidos para tal tarefa através de um concurso público
internacional322.
Simultaneamente, o Ministério da Justiça abria e mantinha uma página na internet
para onde todos os interessados puderam enviar as suas críticas e sugestões.
Durante o ano de 2001, uma equipa constituída no âmbito do Gabinete de Política
Legislativa e Planeamento do Ministério da Justiça, sob coordenação do Prof. Mário
Aroso de Almeida, ouviu, uma vez mais, dezenas de académicos e outros especialistas
nas matérias incluídas na reforma, procedendo a sucessivos aperfeiçoamentos dos
projetos dos dois diplomas legais que haveriam de consubstanciar aquela. O resultado
foram as Propostas de Lei n.ºs 92/VIII e 93/VIII, apresentadas à Assembleia da
República ainda nesse ano, e que viriam a dar origem às Leis n.ºs 13/2002 (Estatuto dos
Tribunais Administrativos e Fiscais) e 15/2002 (Código de Processo nos Tribunais
Administrativos), publicadas no Diário da República dos dias 19 e 22 de Fevereiro,
respetivamente.
125.6. O último passo relevante prende-se com a aprovação do Decreto-Lei n.º 214-
G/2015, de 2 de outubro que, entre outros diplomas, veio rever o CPTA e o ETAF.
Ao contrário do que sucedeu em 2002, esta revisão não foi acompanhada de amplo
debate público, tendo sido sobretudo objeto do trabalho feito por uma comissão
coordenada por Fausto de Quadros323. Não se questionando a oportunidade de revisão
322
Reforma do Contencioso Administrativo. Trabalhos Preparatórios, Ministério da Justiça, Setembro
de 2000.
323
Cfr. Despacho do ministro de Estado e das Finanças e da ministra da Justiça n.º 9415/2012, de 12
de julho, que cria a comissão de revisão do Código do Procedimento Administrativo, do Estatuto dos
Tribunais Administrativos e Fiscais e do Código de Processo nos Tribunais Administrativos.
228
do CPTA e do ETAF – cuja lei de aprovação previa, inclusivamente, a revisão do CPTA
no prazo de três anos a contar da sua data de entrada em vigor – acreditamos que
algumas das recentes opções legislativas teriam beneficiado de maior discussão pública
e maior preparação.
De entre estas, destaca-se a abertura da justiça administrativa aos meios de resolução
alternativa de litígios admitindo-se, em particular, que a validade de atos
administrativos seja conhecida em árbitros. Trata-se de uma alteração profunda da nossa
justiça administrativa, que bem teria merecido maior discussão e melhor debate324.
324
Sobre algumas das questões que esta alteração suscita, cfr. SUSANA TAVARES DA SILVA,
«Alargamento da jurisdição dos tribunais arbitrais», in Anteprojecto de revisão do Código de Processo
nos Tribunais Administrativos e do Estatudo dos Tribunais Administrativso e Fiscais em Debate, Lisboa,
2014, pp. 401 a 421.
325
Sobre as relações jurídicas administrativas cujo contencioso se inclui na jurisdição administrativa,
cfr. JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, A Justiça Administrativa (Lições), cit., pp. 56 a 59.
229
Na Reforma de 2015 foi dado mais um passo no sentido de tendencialmente «fazer
corresponder o âmbito da jurisdição aos litígios de natureza administrativa e fiscal que
por ela devem ser abrangidos»326.
326
Cfr. Exposição de Motivos do Decreto-Lei n.º 214-G/2015, de 2 de outubro.
327
É certo que tanto o STA, como os TCAs, continuam a deter competências de primeira instância:
mas, como se verá noutro ponto, assumem já um significado diminuto [cfr. artigos 24.º, n.º 1, alíneas a) a
f), e 38.º, alíneas c) a f)].
230
128.1. Contrariamente à lei anterior (artigos 3.º e 4.º do antigo ETAF), que
delimitava a jurisdição administrativa através da conjugação de uma cláusula geral
como uma enumeração de exclusões, a atual lei, mesmo após a revisão de 2015, no n.º 1
do artigo 4.º, opta por uma formulação positiva, contendo uma enumeração
exemplificativa dos litígios que considera incluídos no âmbito da jurisdição
administrativa. Complementarmente, mantém a delimitação negativa desta, nos n.ºs 2 e
3.
A análise do n.º 1 do artigo 4.º do ETAF reflete alguma heterogeneidade na forma de
enunciar os litígios que o legislador entendeu submeter à jurisdição administrativa.
Na verdade, esses litígios são referidos, em alguns casos, a partir da natureza da
intervenção judicial:
• fiscalizar a legalidade, nas alíneas b), c) e d);
• promover a prevenção, a cessação ou a reparação de violações, na alínea k);
• execução da satisfação de obrigações ou respeito, na alínea n);
• condenação à remoção..., na alínea i).
Noutros casos, porém, o legislador atendeu à natureza das questões submetidas a
apreciação judicial:
• tutela de direitos fundamentais – alínea a);
• validade de atos pré-contratuais e interpretação, validade e execução de..., na
alínea e);
• responsabilidade civil, nas alíneas f), g) e h);
• impugnações judiciais de decisões da Administração Pública..., na alínea l);
• contencioso eleitoral, na alínea m);
• relações jurídicas administrativas e fiscais em geral, na alínea o).
Na alínea j) e no n.º 2 do artigo 4.º, a lei optou por uma terceira via: referir os
sujeitos da relações jurídicas, ao invés da natureza da intervenção judicial ou do âmbito
das questões.
Supomos que a heterogeneidade é mais aparente do que real: de uma ou outra forma
é, em regra, a natureza da questão que determina a competência da jurisdição. Mesmo
nos casos em que o legislador optou por acentuar a natureza da intervenção do tribunal,
é ainda o âmbito da questão que lhe está subentendido:
• a tutela de direitos fundamentais reporta-se, naturalmente, a comportamentos
jurídico-públicos que os ponham em causa;
• as normas e os atos que são objeto de fiscalização e os contratos que são objeto de
verificação da invalidade são-no porque, por via de regra, são produzidos no exercício
de atividades reguladas por normas de direito administrativo, por entidades de natureza
pública ou privada a quem se encontra atribuído o exercício de atividade administrativa
pública, ou a quem seja atribuída a natureza de entidade adjudicante;
• a intervenção da jurisdição administrativa nas relações jurídicas entre pessoas
coletivas de direito público, entre órgãos públicos ou, nos casos em que são
conjuntamente demandadas entidades públicas e particulares, é legitimada por se tratar
de litígios no âmbito dos interesses que lhes cumpre prosseguir, isto é, de interesses
públicos;
• os litígios relativos a responsabilidade civil conhecidos pelos tribunais
administrativos reportam-se, sempre, a atuações ou omissões cometidas por entidades
públicas ou por entidades privadas, neste último caso quando reguladas por regras de
direito administrativo.
Na revisão de 2015 existe, porém, um aspeto a sublinhar, que se prende com a
preocupação do legislador em incluir na jurisdição administrativa a maioria dos litígios
231
relativos a todos os comportamentos das entidades públicas, independentemente da sua
qualificação como atos de gestão pública.
Assim, é agora da competência dos tribunais administrativos dirimir quaisquer
litígios:
• relativos ao apuramento da responsabilidade civil resultante de atuações ou
omissões de entidades públicas – sendo indiferente que se trate de atos de gestão
pública ou de gestão privada;
• destinados a garantir a prevenção, cessação ou reparação de violações a valores e
bens constitucionalmente protegidos, em matéria de saúde pública, habitação, educação,
ambiente, ordenamento do território, urbanismo, qualidade de vida, património cultural
e bens do Estado, quando cometidas por entidades públicas e independentemente da
forma que assumam;
• respeitantes à remoção de situações constituídas em via de facto, sem título que as
legitime; em causa estarão situações que se reconduzem a uma atuação da
administração328;
• relativos a ilícitos de mera ordenação social, quando se trate de aplicação de coimas
por violação de normas em matéria de urbanismo.
Por último, a alínea o) do n.º 1 do artigo 4.º do ETAF vem agora servir de cláusula
de salvaguarda: são ainda da competência dos tribunais administrativos os litígios
relativos a relações jurídicas administrativas e fiscais que não digam respeito às
matérias previstas nas restantes alíneas do artigo 4.º.
328
No sentido de que a alínea i) do n.º 1 do artigo 4.º do ETAF se refere aos litígios «decorrentes de
situações de via de facto, em que a Administração atue sem título que a legitime», MÁRIO AROSO DE
ALMEIDA, Manual de Processo Administrativo, Coimbra, 2016, p. 171.
232
Excluída da jurisdição continua, finalmente, a competência para fixar a
indemnização devida em caso de expropriação por utilidade pública329.
128.3. Maior interesse tem verificar aquilo que, estando anteriormente excluído do
âmbito da jurisdição administrativa, passou, desde 2002, a pertencer-lhe. Assim, o
confronto do artigo 4.º do antigo e do atual ETAF evidencia que aquela passou a ter
novas competências, as quais se foram justificando pelo alargamento da rede de
tribunais administrativos e pelo crescente número de magistrados integrados nesta
jurisdição.
Destaque, antes de mais, para a evolução muito positiva ocorrida no plano da
responsabilidade civil: a jurisdição administrativa recebeu competência para apreciar as
questões de responsabilidade civil emergente de atos das funções política, legislativa e
jurisdicional, satisfazendo-se uma pretensão antiga da doutrina.
Por outro lado, a jurisdição administrativa passou a ser competente para a apreciação
de todas as questões de responsabilidade civil que envolvam pessoas coletivas de direito
público, independentemente da questão de saber se tais questões se regem por um
regime de direito público ou por um regime de direito privado. Como é sabido, a
necessidade de esclarecer este ponto antes de escolher a jurisdição a que confiar uma
ação de responsabilidade, a fim de evitar conflitos negativos de competência, constituía
um verdadeiro quebra-cabeças para aqueles que pretendiam ver-se ressarcidos de
comportamentos lesivos de agentes públicos, sobretudo quando tais comportamentos
consubstanciavam operações materiais e não atos jurídicos da administração.
233
público se estes contratos forem celebrados nos termos da legislação relativa à
contratação pública. Bastará a existência de regras de natureza juspublicista que
regulem a formação do contrato para se considerar que o contrato foi celebrado nos
termos da legislação sobre contratação pública.
129.1. Por razões que se prendem com o âmbito da disciplina a cujo ensino este texto
pretende servir de suporte, não se fará qualquer referência ao contencioso tributário.
Mantém-se, antes de mais, o princípio de que o âmbito da jurisdição administrativa e
a competência dos tribunais administrativos são de ordem pública e que o seu
conhecimento precede o de qualquer outra matéria, reafirmado no artigo 13.º do CPTA.
Subsiste igualmente a regra de que a competência do tribunal se fixa no momento da
propositura da ação, sendo irrelevantes posteriores modificações de facto ou de direito
(cfr. artigo 5.º, n.º 1, do ETAF).
A primeira instância da jurisdição administrativa é, como se disse, preenchida pelos
tribunais administrativos de círculo. A competência destes tribunais é hoje definida por
exclusão de partes, consolidando assim a ideia de que eles constituem os tribunais
comuns da jurisdição administrativa: nos termos do n.º 1 do artigo 44.º do ETAF,
pertence-lhes conhecer, em primeira instância, «todos os processos do âmbito da
jurisdição administrativa e fiscal que incidam sobre matéria administrativa e cuja
competência, em primeiro grau de jurisdição, não esteja reservada aos tribunais
superiores».
Às Secções de Contencioso Administrativo dos TCAs encontra-se, nos termos do
artigo 37.º do ETAF, atribuído o conhecimento:
a) Em primeira instância, das ações de regresso propostas contra magistrados
judiciais e do Ministério Público dos tribunais administrativos de círculo (e dos
tribunais tributários) e, ainda, dos processos relativos a atos administrativos que
apliquem sanções disciplinares previstas no Regulamento de Disciplina Militar de
gravidade igual ou superior à de detenção (cfr. artigo 6.º da Lei n.º 34/2007, de 13 de
Agosto);
b) Em segunda instância, dos recursos das decisões proferidas em matérias do
contencioso administrativo por tribunais arbitrais e dos recursos das decisões dos
tribunais administrativos de círculo para que não seja competente o STA.
Por último, à Secção de Contencioso Administrativo do STA, conforme estatui o
artigo 24.º do ETAF, encontra-se reservado o conhecimento:
a) Em primeira instância: dos processos relativos a atos ou omissões de titulares de
órgãos de soberania e de outros órgãos superiores do Estado (Presidente da República;
Assembleia da República e respetivo presidente; Conselho de Ministros e primeiro-
ministro; Tribunal Constitucional, Supremo Tribunal Administrativo, Tribunal de
Contas, Tribunais Centrais Administrativos (e respetivos presidentes), Conselho
Superior de Defesa Nacional; Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e
Fiscais e seu presidente; Procurador-Geral da República e Conselho Superior do
Ministério Público; dos processos eleitorais previstos no ETAF; dos procedimentos
cautelares relativos a processos da sua competência, da execução dos seus julgados e
dos pedidos cumulados nos seus processos; das ações de regresso, fundadas em
responsabilidade por danos resultantes do exercício das suas funções, contra
magistrados judiciais do Ministério Público, do STA e do TCA;
234
b) Em segunda instância: dos recursos de acórdãos dos TCAs proferidos em primeiro
grau de jurisdição; dos recursos de revista sobre matéria de direito interpostos de
acórdãos da Secção de Contencioso Administrativo do TCA e de decisões dos tribunais
administrativos de círculo (cfr. artigos 150.º e 151.º do CPTA);
c) Dos conflitos de competência entre tribunais administrativos.
235
129.3. Resta ver o que sucede em caso de erro quanto à determinação do tribunal
competente por parte do autor.
Existem duas possibilidades:
a) O autor enganou-se no tribunal administrativo competente mas não se enganou na
jurisdição – o processo será oficiosamente remetido ao tribunal administrativo
competente (cfr. artigo 14.º, n.º 1, do CPTA);
b) O autor enganou-se na jurisdição – não há lugar à remessa oficiosa do processo,
mas o interessado dispõe do prazo de trinta dias, a contar do trânsito em julgado da
decisão que declare a incompetência, para requerer tal remessa ao tribunal competente
(artigo 14.º, n.º 2, do CPTA).
129.4. Na nona edição desta obra, referiu-se que a repartição de competências entre
os diversos tribunais administrativos, no quadro da existência de um único tribunal
administrativo central, que era a que se verificava então, se nos afigurava corresponder
a uma fase transitória. Especulámos então com duas possíveis linhas de evolução:
a) O desaparecimento, por redundância, do STA ou do TCA;
b) Ou a instituição de três graus de jurisdição, em vez de dois, o que justificaria a
criação de, pelo menos, mais um tribunal central administrativo.
A opção do legislador ainda não estabilizou o sistema: passou a haver dois tribunais
administrativos centrais mas prevalecem os dois graus de jurisdição. O sistema ainda
não atingiu o equilíbrio, salvando-se à custa de mecanismos imaginativos como os dos
artigos 151.º (recurso per saltum para o STA) e 93.º (reenvio prejudicial para o STA).
130.1. Os sujeitos
130.1.1. As partes
236
causador – sendo, por isso, devedor dessa indemnização – para, depois, decidir se
recebe ou não a ação: isso seria absurdo, pois significaria que o tribunal iria despender
tempo e recursos a apreciar o conflito sem saber se aquele que se lhe dirigiu podia ou
não fazê-lo.
O que o tribunal faz é, compreensivelmente, o contrário: condiciona a sua
intervenção na composição do conflito à verificação prévia de que, admitindo que os
aspetos invocados pelo autor quanto à relação material controvertida são tal como ele os
apresenta – o que somente se saberá quando o mérito do litígio for apreciado –, ele e o
réu são os sujeitos adequados da relação processual. Só após esta verificação positiva o
tribunal se considera em condições de dirimir o litígio.
130.1.1.1. O autor
330
Cfr. artigo 2.º da Lei n.º 83/95, de 31 de Agosto.
331
Sobre esta questão, com raízes na velha ação popular, cfr. a anotação de LUÍS SOUSA DA FÁBRICA
ao acórdão do TCA (1) de 13 de Maio de 1999, publicada com o título sugestivo «A acção popular já não
é o que era» nos Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 38, Março/Abril de 2003, pp. 35 a 54.
237
Como se verá nos lugares próprios, existem regras especiais relativas à legitimidade
ativa, na ação administrativa de impugnação de atos administrativos, de condenação à
prática do ato devido, de impugnação de normas e condenação à emissão de normas,
relativa à validade e execução de contratos.
Note-se, finalmente, que a lei permite a coligação, isto é, que vários interessados se
juntem numa mesma demanda e que vários réus possam ser demandados
conjuntamente, quando exista identidade da causa de pedir ou, ainda que tal não ocorra,
«quando os pedidos estejam entre si numa relação de prejudicialidade ou de
dependência ou a procedência dos pedidos principais dependa essencialmente da
apreciação dos mesmos factos ou da interpretação e aplicação dos mesmos princípios ou
regras de direito» (cfr. artigo 12.º, n.º 1, do CPTA).
130.1.1.2. O réu
Como se disse, é o autor quem “escolhe” o réu: é ele que aponta ao tribunal com
quem quer litigar, isto é, quem é, na sua versão do caso, o outro sujeito da relação
material controvertida. A legitimidade passiva pertence a este.
A lei (cfr. artigo 10.º, n.º 1, do CPTA) diz precisamente isto, acrescentando que a
legitimidade passiva pertence também a quem for titular de «interesses contrapostos aos
do autor».
Por duas razões: por um lado, para legitimar processualmente os contra-interessados;
por outro, pela intenção de cobrir aquelas situações em que, nomeadamente nos
conflitos relativos a interesses difusos, não é fácil descortinar uma relação jurídica
material entre o autor – suponhamos a pessoa que pretende impugnar o ato de aprovação
de um projeto de construção de um edifício nas proximidades do Mosteiro dos
Jerónimos – e o réu – o autor de tal ato.
O referido artigo 10.º do CPTA prevê ainda uma apreciável quantidade de situações
objeto de tratamento especial em matéria de legitimidade passiva. Pode dizer-se que tais
previsões resultam, regra geral, da necessidade de tratar devidamente problemas
decorrentes das particularidades da personalidade jurídica coletiva pública, da
complexidade da organização administrativa pública e da tendência crescente para
confiar a entidades privadas o desenvolvimento de atividades de natureza administrativa
pública. Assim se explica que aí se misturem, sob o amplo guarda-chuva da
legitimidade passiva, pessoas coletivas públicas, ministérios, órgãos públicos e, mesmo,
entidades privadas332.
Existem também regras especiais em matéria de legitimidade passiva, que serão
referidas nos locais apropriados.
130.1.2. O juiz
238
Os juízes dos tribunais administrativos têm um estatuto próprio, essencialmente
integrado pelas normas dos artigos 57.º a 84.º do ETAF. Beneficiam das garantias de
independência dos outros magistrados judiciais e são também abrangidos por idêntico
regime de incompatibilidades, só podendo ser responsabilizados pelas suas decisões nos
muito limitados casos previstos na lei (cfr. artigo 3.º do ETAF).
A configuração dos poderes dos juízes dos tribunais administrativos decorre do
disposto no artigo 3.º do CPTA.
Antes de mais, tem de acentuar-se que o juiz da jurisdição administrativa não tem por
missão controlar o mérito ou a oportunidade da atuação administrativa pública, apenas
lhe cabendo julgar do cumprimento pela administração pública das normas e dos
princípios jurídicos a que deve obediência (cfr. n.º 1).
A reafirmação desta ideia é tanto mais importante quanto o CPTA veio possibilitar a
condenação da Administração Pública pelos tribunais administrativos à prática de um
ato administrativo legalmente devido: o legislador quis deixar claro que esta nova
capacidade do juiz administrativo se destina a melhorar o controlo da jurisdicidade da
atividade administrativa pública e não a transformar a jurisdição administrativa num
“governo de juízes”, montado sobre os escombros do princípio da separação de poderes,
num quadro em que as valorações subjacentes às decisões tomadas pelos órgãos da
administração pública seriam substituídas pelas valorações judiciais.
Dentro dos limites decorrentes deste princípio, a lei permite que o juiz administrativo
atribua a sentenças proferidas contra a Administração Pública os efeitos de um ato
administrativo que deveria ter sido praticado e, contra as normas e os princípios
jurídicos que impunham tal prática, não foi (cfr. n.º 4).
A lei permite também ao juiz administrativo fixar aos órgãos da administração
pública prazos para cumprir os deveres que o tribunal decida impor-lhes e aplicar-lhes
sanções pecuniárias pelo desrespeito de tais prazos (cfr. n.º 2).
Por último, e esta foi mais uma das novidades da Reforma de 2002, mantida em
2015, a lei autoriza o juiz administrativo, em determinadas circunstâncias, a juntar
vários processos, a fim de simplificar e acelerar a respetiva decisão. Para este
mecanismo – que a lei designa por «seleção de processos com andamento prioritário» –
poder operar, é necessário verificarem-se certos requisitos, enunciados no n.º 1 do artigo
48.º:
a) Que tenham sido intentados mais de dez processos relativos a comportamentos da
mesma entidade administrativa;
b) Que esses processos «digam respeito à mesma relação jurídica material» ou que,
muito embora respeitem a relações jurídicas diversas, possam ser decididos «com base
na aplicação das mesmas normas a idênticas situações de facto».
Quando estes requisitos se verifiquem, o juiz pode determinar que seja dado
andamento somente a um ou alguns dos processos, suspendendo-se a tramitação dos
demais – caso o juiz determine o andamento de mais do que um processo, proceder-se-á
à respetiva apensação.
O juiz pode ainda determinar a suspensão da tramitação de processos idênticos ao
escolhido que venham a ser intentados na pendência deste (cfr. artigo 48.º, n.º 2).
239
Neste quadro, o Ministério Público continua a exercer a ação pública (cfr. artigos:
9.º, n. º 2; 11.º, n.º 1; 77-A, n.º 1, alínea b); 55.º, n.º 1, alínea b); 68.º, n.º 1, alínea b);
73.º, n.ºs 3 e 4; 77.º, n.º 1; e 104.º, n.º 2, todos do CPTA), assistindo-lhe igualmente
legitimidade para interpor recursos (cfr. artigos 141.º e 155.º, n.º 1) e para suscitar ao
STA que proceda à uniformização de jurisprudência (cfr. artigo 152.º, n.º 1).
O Ministério Público conserva também, nos termos do artigo 62.º do CPTA, a
faculdade de substituir-se ao autor da ação, nos casos em que este se tenha afastado do
processo, nomeadamente por desistência – isto, naturalmente, quando entender que a
defesa da legalidade impõe que o processo seja levado até ao seu termo.
Nos casos, que são a maioria, em que o Ministério Público não é autor, nem se
substitui a este, os seus poderes processuais encontram-se regulados nos artigos 85.º e
146.º, n.º 1, do CPTA:
a) Tem vista do processo no momento da citação da entidade demandada e dos
contra-interessados, ou logo após a distribuição, no caso dos recursos;
b) Nos processos impugnatórios pode solicitar a realização de diligências
instrutórias;
c) Pode pronunciar-se sobre o mérito da causa.
O Ministério Público dispõe ainda de outras faculdades, reguladas no mesmo
preceito, especificamente nos processos de natureza impugnatória – adiante voltar-se-á
a este ponto; dispõe igualmente de faculdades especiais no domínio da tutela cautelar
(cfr. artigo 130.º, n.º 2, do CPTA) e no âmbito da solução de conflitos de competência
jurisdicional e de atribuições (cfr. artigo 136.º).
No âmbito da Reforma de 2002, foram introduzidas duas modificações na posição
processual do Ministério Público – ambas no sentido da redução do papel da instituição
– que merecem referência especial: a primeira, reside no desaparecimento da vista final
do processo ao Ministério Público; a segunda, consiste no fim da presença do
representante do Ministério Público nas sessões de julgamento.
Estas modificações ajustam-se às jurisprudências do Tribunal Constitucional
português e do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, merecendo também o
aplauso de boa parte da doutrina. Acolhem-se, assim, as críticas ao alegado peso
excessivo do Ministério Público no processo contencioso, peso esse que sustentaria
acusações de violação do princípio da igualdade de armas entre as partes333.
130.2. O objeto
Não é este o local (nem a disciplina) adequado para dissertar sobre a questão do
objeto do processo. Na doutrina processualista civil debatem-se, a este propósito, três
grandes teses que, somente a título de informação, se referem:
• o objeto do processo seria a pretensão do autor (conceção germânica);
• o objeto do processo seria a relação jurídica material controvertida;
• o objeto do processo seria o litígio (conceção italiana).
No CPTA, o objeto do processo é referido a propósito da ação administrativa.
A análise do n.º 1 do artigo 37.º do CPTA confirma que o legislador considerou que
o «objeto do processo é a pretensão do autor». Note-se, porém, que a lei não prima,
nesta matéria, pelo rigor: logo no artigo 50.º, utiliza a palavra objeto em sentido
333
As referências jurisprudenciais – juntamente com uma posição muito crítica relativamente à
solução que viria ser adoptada pelo legislador – podem encontrar-se no escrito de JOSÉ MANUEL SÉRVULO
CORREIA, de leitura imprescindível, «A reforma do contencioso administrativo e as funções do Ministério
Público», in Estudos em homenagem a Cunha Rodrigues, Coimbra, 2001, pp. 322 a 328.
240
totalmente diverso, como sinónimo de “objetivo” ou “fim” – «a impugnação do ato
administrativo tem por objeto a anulação ou declaração de nulidade (...)»334.
Na verdade, no quadro legal anterior à Reforma de 2002 entendia-se que o objeto da
impugnação contenciosa era o ato administrativo – ou a norma regulamentar – cuja
validade se pretendia ver apreciada pelo tribunal, conceção que ainda encontrava raízes
na ideia de Laferrière do processo feito ao ato. A anulação ou a declaração da nulidade
ou da inexistência jurídica do ato não era o objeto do processo, mas o pedido. Idêntica
conceção pode extrair-se da conjugação do n.º 1 do artigo 2.º do CPTA – que menciona
a pretensão – com a alínea d) do n.º 2 do mesmo artigo – que se refere à anulação ou
declaração de nulidade ou inexistência de atos administrativos.
A leitura do artigo 66.º permite confirmar a ideia de que a pretensão, tal como resulta
do n.º 1, é, neste caso, de condenação da administração pública a praticar um ato que
ilegalmente omitiu ou recusou; o objeto do processo, conforme disposto no n.º 2, é a
própria pretensão335.
130.3. O pedido
334
No mesmo sentido, cfr. o n.º 1 do artigo 63.º do CPTA, onde se prevê a ampliação do objeto do
processo à impugnação de novos atos, e o n.º 1 do artigo 72.º, também do CPTA, onde se escreve que a
impugnação de normas no contencioso administrativo tem por objeto a declaração de ilegalidade de
normas.
335
Cfr., neste sentido, MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, «O objecto do processo no novo contencioso
administrativo», in Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 36, Novembro/Dezembro de 2002, p. 9; e
Anulação de actos administrativos e relações jurídicas emergentes, Coimbra, 2002, p. 188.
241
f) De recurso – artigo 141.º, n.º 1.
Refira-se ainda que, no âmbito da justiça administrativa, é habitual a aproximação
entre o pedido de declaração da nulidade – que é um pedido com a natureza de simples
apreciação, visando o reconhecimento judicial de um desvalor jurídico original – e o
pedido de anulação – que apresenta natureza constitutiva, pretendendo que o tribunal
torne inválido aquilo que, antes de tal intervenção judicial, era tido por válido.
Tendo em consideração os objetivos comuns a estes pedidos e, ainda, que eles
podem, em abstrato, ter por alvo atos administrativos, normas regulamentares ou
cláusulas contratuais, utiliza-se habitualmente a expressão impugnação (ou pedido de
impugnação) para designá-los a todos.
Finalmente, e muito embora tal exigência pareça supérflua, registamos que a lei
impõe que a petição inicial apresentada pelo autor formule expressamente o pedido (cfr.
artigo 78.º, n.º 2, alínea g), do CPTA).
A causa de pedir consiste nos factos constitutivos da situação jurídica que o autor
pretende fazer valer em juízo. São, em termos simples, as razões pelas quais se pede
aquilo que se pede. Aqueles factos podem variar muito, dependendo das circunstâncias.
Exemplificando:
• se o autor pede a anulação de um ato administrativo ou de uma cláusula contratual,
ou a declaração de nulidade de uma norma regulamentar, a causa de pedir são os factos
em que, em seu entender, assenta a invalidade do ato, da cláusula ou da norma, por
desrespeitarem as regras ou os princípios jurídicos com que deveriam conformar-se;
• se o autor pede a condenação da administração ao pagamento de uma prestação de
segurança social, ou à prática de um ato administrativo, a causa de pedir são os factos
que, em seu entender, lhe conferem um direito a tal prestação ou à prática desse ato;
• se o autor pede ao juiz que determine uma providência cautelar destinada a evitar a
consumação da lesão de um interesse para o qual pediu proteção judicial, lesão essa
tornada provável, ou até mesmo certa, pelo decurso do tempo, a causa de pedir reside
nas circunstâncias que estão na origem da probabilidade ou da certeza da produção de
tal lesão.
O artigo 78.º CPTA não utiliza a expressão causa de pedir. Mas é indiscutivelmente
a esta que se refere a alínea f) do n.º 2 do artigo 78.º: são os factos que o autor expõe – e
que, na sua maioria, terá de provar – que fundam a pretensão que dirige ao tribunal. Isto
mesmo é confirmado pela norma do n.º 1 do artigo 4.º, ao prever a cumulação de
pedidos quando a causa de pedir seja a mesma [alínea a)], ou mesmo em certos casos
em que a causa de pedir é diversa [alínea b)].
Pode, pois, concluir-se que a causa de pedir é tão essencial à apreciação e eventual
satisfação do pedido do autor como o próprio pedido.
242
avultam a independência e a imparcialidade –, aos quais os cidadãos apresentam os seus
pleitos, órgãos entre nós designados tribunais.
Compreende-se, assim, que seja indispensável que o cidadão que entende, bem ou
mal, que a ordem jurídica protege um seu interesse, possa pedir a um desses órgãos que
tome as providências adequadas a garantir a proteção desse interesse.
É precisamente este o sentido do princípio do acesso à justiça, consignado no artigo
20.º da CRP, e que surge aqui configurado como um direito subjetivo público, o direito
de ação A todo o direito corresponde a ação adequada a fazê-lo reconhecer em juízo,
ensinava o saudoso Prof. Castro Mendes aos seus alunos – corresponde a uma
verdadeira exigência civilizacional (cfr. artigo 2.º, n.º 2, do Código de Processo Civil).
Claro.
Se a ordem jurídica reconhecesse a alguém a titularidade de um direito mas não lhe
garantisse a faculdade de para ele pedir proteção judicial, restaria ao titular tentar fazê-
lo valer pelos seus próprios meios – e teríamos a barbárie em vez da civilização.
Todos nós temos, pois, o direito de pedir a um tribunal – e se tivermos razão, de
obter deste – que defenda os nossos interesses.
No domínio das relações jurídico-administrativas, porém, não é suficiente a
afirmação de tal direito. Na realidade, uma tradição hiper-formalista, ciosamente
defendida, fez com que a história do contencioso administrativo português seja também
– sobretudo até à reforma de 1984/1985 –, em alguma medida, uma história da
denegação do acesso à justiça.
A manipulação de conceitos como o de contencioso de mera legalidade, de ato
definitivo, de recurso hierárquico necessário, de indeferimento tácito, etc., etc.,
transformou o acesso à jurisdição administrativa numa “corrida de obstáculos”, em que
as barreiras iam sendo colocadas progressivamente mais alto, à medida que o “atleta” ia
revelando maior cansaço. Quase pode dizer-se que os tribunais administrativos
despendiam maiores energias e mais tempo a procurar demonstrar por que razão não
podiam resolver litígios do que a resolvê-los...
É bem compreensível que o legislador do CPTA, logo em 2002, tenha aprofundado o
princípio, subsumindo nele a ideia de promoção do acesso à justiça, constante do artigo
7.º do CPTA, inalterado na Reforma de 2015. O que agora se diz é que o princípio do
acesso à justiça abrange também a interpretação das normas jurídicas que regulam tal
acesso: este só é efetivamente garantido se essas normas forem interpretadas pelo
tribunal no sentido de promover pronúncias sobre o mérito das pretensões formuladas.
Trata-se de recuperar a velha fórmula in dubio pro actione.
Por outras palavras: as normas que integram o ordenamento jurídico da justiça
administrativa devem ser interpretadas de forma a favorecer a composição efetiva dos
litígios jurídico-administrativos. Fazer justiça implica, em geral, na nossa sociedade, dar
razão a uma das partes – e não explicar por que motivos se não dá razão a nenhuma
delas.
243
Começando por adotar esta mesma expressão como epígrafe, o artigo 2.º do CPTA
desenvolveu e pormenorizou, com detalhe quase obsessivo, o conteúdo do princípio.
Respigamos do n.º 1 deste preceito quatro ideias que se nos afiguram fundamentais:
1.ª A tutela jurisdicional efetiva impõe justiça “à medida” e justiça equitativa, ou
seja, uma intervenção judicial especificamente concebida para conferir proteção eficaz e
adequada à pretensão deduzida em juízo;
2.ª A tutela jurisdicional efetiva exige justiça oportuna, isto é, justiça tão rápida
quanto possível – é a ideia de celeridade processual;
3.ª A tutela jurisdicional efetiva recomenda aquilo que designaríamos por
“flexibilidade” da instância, isto é, que o processo possa adaptar-se às vicissitudes da
vida. É esta ideia que explica as disposições relativas à modificação do objeto do
processo e à ampliação da instância (artigos 45.º e 63.º do CPTA), à alteração da
instância (artigo 70.º), ou à substituição do ato impugnado, quando este haja sido
administrativamente anulado e substituído por outro (artigo 64.º, n.º 1).
Com a desejável flexibilidade da instância se relaciona ainda a possibilidade de o
tribunal administrativo decidir questão que se inclua no âmbito de jurisdição distinta da
administrativa, muito embora a decisão da questão prejudicial produza efeitos restritos
ao processo em que foi suscitada (cfr. artigo 15.º, n.º 3);
4.ª A tutela jurisdicional efetiva reclama justiça estável, ou seja, decisões
jurisdicionais definitivas sobre o direito aplicável ao litígio – com força de caso
julgado. E não se ficou por aqui: receando que o tribunal de primeira instância não
compreendesse totalmente o absoluto empenho do legislador no sentido do reforço do
acesso à justiça administrativa e da efetiva tutela jurisdicional, garantiu que,
independentemente de quaisquer razões, sempre que o processo fosse dado por
concluído sem que o mérito da causa houvesse sido apreciado, a decisão que assim
determinasse seria sempre passível de recurso [cfr. artigo 142.º, n.º 3, alínea d)].
336
Cfr. JOSÉ LEBRE DE FREITAS, Introdução ao Processo Civil. Conceito e Princípios Gerais à luz do
novo código, Coimbra, 3.ª edição, 2013, p. 136.
337
IDEM, ibidem, p. 136.
244
Ao contrário do particular, a Administração Pública não pode ocultar do tribunal
factos e circunstâncias que lhe sejam inconvenientes, o que se compreende, dado que,
por muito subjetiva que seja a conceção do acesso à justiça administrativa na reforma de
2002, não é possível olvidar que a Administração prossegue necessariamente um
interesse público, não estando em juízo para defender meros interesses privados egoístas
– talvez por esta razão, o legislador preferiu enquadrar aquela obrigação no princípio da
cooperação e boa-fé processual. Esta desigualdade, desfavorável à Administração,
assenta, pois, num traço específico desta338.
O CPTA, no mencionado artigo 6.º, põe expressamente termo a uma das mais
criticadas desigualdades, favoráveis à Administração, decorrentes do quadro legal
anterior: a impossibilidade de o tribunal condenar a Administração Pública como
litigante de má-fé.
338
Cfr. MÁRIO AROSO DE ALMEIDA e CARLOS ALBERTO FERNANDES CADILHA, Comentário ao Código
de Processo nos Tribunais Administrativos, 3.ª edição revista, Coimbra, 2010, pp. 59 a 62.
339
Sobre acumulação de pedidos, cfr. CECÍLIA ANACORETA CORREIA, «O Princípio da cumulação de
pedidos no Código de Processo nos Tribunais Administrativos», in Estudos de Homenagem ao Prof.
Doutor Jorge Miranda, Volume IV, Coimbra, 2012, em especial pp. 221 a 231.
245
no tratamento jurisdicional da causa – a revogação do ato administrativo impugnado,
por exemplo.
Da ideia de economia processual extraiu o corolário de que as partes não devem
requerer a realização de diligências que não tenham utilidade para a composição do
litígio, nem adotar expedientes dilatórios, isto é, comportamentos que apenas sirvam
para fazer perder tempo.
246
Cada pretensão dirigida aos tribunais administrativos deve adotar um determinado
meio processual, isto é, uma forma tipificada de veiculá-la, sem o que não pode ser
recebida pelo tribunal.
Os meios processuais próprios da jurisdição administrativa distribuem-se por dois
grupos, os meios principais e os meios acessórios. A diferença entre uns e outros
assenta no critério da autonomia: a utilização de cada meio principal é independente do
eventual uso de qualquer outro meio processual; já a utilização de um meio acessório se
encontra na dependência de outro meio processual, este de carácter principal.
Os meios processuais principais, por seu lado, também podem subdividir-se em dois
grupos: os meios processuais urgentes – que beneficiam de regras que visam acelerar a
sua tramitação – e os outros meios processuais – que são tramitados a uma velocidade,
digamos, “normal”.
Na nossa lei atual os meios processuais principais urgentes são:
a) O contencioso de atos administrativos em matéria eleitoral da competência dos
tribunais administrativos;
b) O contencioso de atos administrativos praticados no âmbito de procedimentos de
massa;
c) O contencioso dos atos relativos à formação de contratos;
d) A intimação para a prestação de informações, consulta de processos ou passagem
de certidões;
e) A intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias.
O outro meio processual principal é a ação administrativa. Depois da reforma de
2015, o processo declarativo administrativo concretiza-se numa só forma de ação, que
se intitula ação administrativa. Esta forma de ação veio, assim, substituir
simultaneamente a ação administrativa especial – ainda sucessora, em certa medida, do
antigo recurso contencioso de anulação – e a ação administrativa comum340.
O processo civil continua subsidiariamente aplicável, mas foi propósito da Reforma
de 2015 consagrar um verdadeiro modelo de tramitação próprio dos litígios
administrativos e adequado às especialidades desta jurisdição341.
Quanto aos meios processuais acessórios, encontram-se englobados no grupo dos
processos cautelares.
Qualquer destes meios processuais veicula um primeiro pedido de intervenção
judicial, isto é, não tem como antecedente nenhuma outra intervenção de um tribunal
administrativo.
Mas também existem meios processuais somente utilizáveis após uma primeira
intervenção de um órgão da jurisdição administrativa:
a) Os processos executivos, com os quais procura assegurar-se que uma anterior
sentença de um tribunal administrativo produza os efeitos pretendidos;
b) Os recursos, através dos quais visa conseguir-se uma alteração de uma decisão
jurisdicional anterior.
340
Sobre esta mudança de meios processuais preconizada pela legislação de 2015, JOSÉ MANUEL
SÉRVULO CORREIA, «Da ação administrativa especial à nova ação administrativa», in Cadernos de Justiça
Administrativa, n.º 106, Julho/Agosto de 2014, pp. 49 a 60.
341
Cfr. MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, Manual de Processo Administrativo, cit., pp. 340 e segs.
247
133.1. O valor da causa «representa a utilidade económica do pedido», dispõe o n.º
1 do artigo 31.º do CPTA. E dispõe mais: a qualquer causa «deve ser atribuído um valor
certo, expresso em moeda legal».
Claro que o apuramento da utilidade económica do pedido pode ser mais ou menos
fácil, tudo dependendo daquilo que se pede:
• se for pedida a condenação de uma entidade pública a pagar uma indemnização ou
a realizar uma prestação de segurança social, o valor da causa é, evidentemente, o da
indemnização ou da prestação;
• se for pedida a anulação de um contrato outorgado entre um particular e uma
entidade pública, o valor da causa coincide com o do próprio contrato;
• mas se se pede a anulação de uma decisão administrativa ou a declaração de
ilegalidade de uma norma regulamentar, qual o valor da causa?
O legislador, consciente da novidade – no quadro legal anterior à Reforma de 2002
as impugnações de atos administrativos não tinham valor – estabeleceu diversas regras,
destinadas a contemplar distintas situações, regras que distribuiu pelos artigos 32.º e
33.º do CPTA. Na maioria delas torna-se evidente que o critério subjacente foi o da
utilidade económica do pedido (cfr. n.ºs 1 a 6 do artigo 32.º e todas as alíneas do artigo
33.º).
Resignou-se, porém, a que existem casos em que não é possível estabelecer o valor
da causa, dada a natureza imaterial do bem em jogo ou a indeterminabilidade das
situações de aplicação – no caso de estarem em causa normas e não decisões. Para estes
casos estabeleceu aquilo a que chamou valor indeterminável (cfr. artigo 34.º, n.º 1).
248
CAPÍTULO III
AÇÃO ADMINISTRATIVA
Leituras aconselhadas:
A) No domínio da legislação anterior à Reforma de 2002 – sobre o recurso
contencioso de anulação
DIOGO FREITAS DO AMARAL, Direito Administrativo, Volume IV, cit., pp. 109 a 261;
COLAÇO ANTUNES, A tutela dos interesses difusos em direito administrativo: para uma
legitimação procedimental, Coimbra, 1989, pp. 143 e segs.; JOÃO CAUPERS, «A marcha
do processo de recurso contencioso», in Revista Jurídica, n.ºs 9-10, Janeiro-Junho de
1987, pp. 187 a 194; JOSÉ MANUEL SÉRVULO CORREIA, «Impugnação de actos
administrativos», in Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 16, Julho/Agosto de 1999,
pp. 11 a 15; IDEM, Acto administrativo e âmbito da jurisdição administrativa, cit., pp.
1155 a 1187; MARCELLO CAETANO, «O interesse como condição de legitimidade no
recurso directo de anulação» e «Sobre o problema da legitimidade das partes no
contencioso administrativo português», in Estudos de Direito Administrativo, Lisboa,
1974, pp. 219 a 250 e 11 a 38, respetivamente; MARIA DA GLÓRIA F. P. DIAS GARCIA, Da
justiça administrativa em Portugal. Sua origem e evolução, Lisboa, 1994, pp. 300 a 366
e 646 a 673; MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, Sobre a autoridade do caso julgado das
sentenças de anulação de actos administrativos, Coimbra, 1994; IDEM, «Utilidade da
anulação contenciosa de actos administrativos», in Cadernos de Justiça Administrativa,
n.º 8, Março/Abril de 1998, pp. 49 a 56; IDEM, Anulação de actos administrativos e
relações jurídicas emergentes, Coimbra, 2002, pp. 165 a 197; MÁRIO E RODRIGO
ESTEVES DE OLIVEIRA, Concursos e outros Procedimentos de Adjudicação
Administrativa. Das Fontes às Garantias, Coimbra, 1998, pp. 666 a 672; MÁRIO
TORRES, «A garantia constitucional do recurso contencioso», in Scientia Iuridica, Tomo
XXXIX, n.ºs 223/228, Janeiro-Dezembro de 1990, pp. 36 a 49; NUNO MARQUES
ANTUNES, O Direito de Acção Popular no Contencioso Administrativo Português,
Lisboa, 1997; PAULO OTERO, «As garantias impugnatórias dos particulares no Código do
Procedimento Administrativo», in Scientia Iuridica, Tomo XLI, n.ºs 235/237, Janeiro-
Junho de 1992, pp. 58 a 62; PEDRO GONÇALVES, Relações entre as impugnações
administrativas necessárias e o recurso contencioso de anulação de actos
administrativos, Coimbra, 1996; ROBIN DE ANDRADE, A acção popular no direito
administrativo português, Coimbra, 1967; RUI MACHETE, «Caso julgado (nos recursos
directos de anulação)», in Estudos de Direito Público e Ciência Política, Lisboa, 1991,
pp. 270 a 292; IDEM, «Algumas notas sobre os interesses difusos, o procedimento e o
processo», in Estudos em honra do Professor Doutor João de Castro Mendes, Lisboa,
1994, pp. 151 a 181; RUI MEDEIROS, «Anotação ao acórdão do STA (1) de 16 de Abril
de 1998», in Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 13, Novembro/Dezembro de 1998,
pp. 37 a 41; VASCO PEREIRA DA SILVA, A natureza jurídica do recurso directo de
anulação, Coimbra, 1985; IDEM, O recurso directo de anulação. Uma acção chamada
recurso, Lisboa, 1987; IDEM, Para um contencioso administrativo dos particulares.
Esboço de uma teoria subjectivista do recurso directo de anulação, Coimbra, 1989;
IDEM, Em busca do acto administrativo perdido, cit., pp. 629 a 690.
249
BERNARDO AYALA, «A Tutela Contenciosa dos Particulares em Procedimentos de
Formação dos Contratos da Administração Pública: Reflexões sobre o Decreto-Lei n.º
134/98, de 15 de Maio», in Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 14, Março/Abril de
1999, pp. 23 e segs.; DIOGO FREITAS DO AMARAL, Direito Administrativo, Volume IV,
cit., pp. 279 a 300; ISABEL CELESTE FONSECA, «A Justiça Administrativa dos Contratos
da Administração. Da (ainda) Ária de Inútil Precaução», in Scientia Iuridica, Maio-
Agosto de 2002, Tomo L, N.º 290, pp. 83 e segs.; JOÃO CAUPERS, «Imposições à
Administração Pública», in Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 16, Julho/Agosto de
1999, pp. 49 a 51; LUÍS SOUSA DA FÁBRICA, «A acção para o reconhecimento de direitos
e interesses legalmente protegidos», separata do Boletim do Ministério da Justiça,
Lisboa, 1987; MARIA JOÃO ESTORNINHO, Algumas questões de contencioso dos
contratos..., cit.; IDEM, «A propósito do Decreto-Lei n.º 134/98, de 15 de Maio, e das
alterações introduzidas ao regime do contencioso dos contratos da Administração
Pública», in Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 11, Setembro/Outubro de 1998, pp.
3 a 9; IDEM, «Contencioso dos contratos da Administração Pública», in Cadernos de
Justiça Administrativa, n.º 16, Julho/Agosto de 1999, pp. 28 a 32; MARIA LÚCIA
AMARAL, «Anotação ao acórdão do STA-1 de 26 de Outubro de 1997», in Cadernos de
Justiça Administrativa, n.º 12, Novembro/Dezembro de 1998, pp. 31 e segs; RUI
MACHETE, «A garantia contenciosa para obter o reconhecimento de um direito ou
interesse legalmente protegido», in Estudos de Direito Público e Ciência Política, pp.
423 a 441; RUI MEDEIROS, «Estrutura e âmbito da acção para o reconhecimento de um
direito ou interesse legalmente protegido», in Revista de Direito e de Estudos Sociais,
Ano XXXI, n.ºs 1/2, Janeiro-Junho de 1989, pp. 1 a 102; IDEM, «Brevíssimos tópicos
para uma reforma do contencioso da responsabilidade», in Cadernos de Justiça
Administrativa, n.º 16, Julho/Agosto de 1999, pp. 33 a 40; VASCO PEREIRA DA SILVA, «A
acção para o reconhecimento de direitos», in Cadernos de Justiça Administrativa, n.º
16, Julho/Agosto de 1999, pp. 41 a 48.
250
Especial», in Temas e Problemas do Processo Administrativo, 2.ª edição revista e
atualizada (e-book); JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, «O novo modelo de impugnação
judicial dos actos administrativos – tradição e reforma», in Colóquio Luso-Espanhol –
O Acto no Contencioso Administrativo. Tradição e Reforma, Coimbra, 2005, pp. 189 a
212; IDEM, A Justiça Administrativa (Lições), cit., pp. 183 a 222; JOSÉ MANUEL SÉRVULO
CORREIA, «O recurso contencioso», in Reforma do Contencioso Administrativo.
Trabalhos Preparatórios. O Debate Universitário, Ministério da Justiça, Novembro de
2000, pp. 125 e segs.; IDEM, «O incumprimento do dever de decidir», in Cadernos de
Justiça Administrativa, n.º 54, Novembro/Dezembro de 2005, pp. 6 a 32; LUÍS SOUSA DA
FÁBRICA, «A contraposição entre acção comum e acção especial no Código de Processo
nos Tribunais Administrativos», in Estudos em Homenagem do Prof. Doutor Sérvulo
Correia, Volume II, Coimbra, 2010, pp. 631 a 656; IDEM, «Reflexões breves sobre o
objecto do processo de impugnação de actos administrativos», in Estudos em
Homenagem ao Prof. Doutor Jorge Miranda, Volume IV, Coimbra, 2012, pp. 589 a
607; MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, «O acto administrativo e as formas de processo no
novo Código de Processo nos Tribunais Administrativos», in Colóquio Luso-Espanhol –
O Acto no Contencioso Administrativo. Tradição e Reforma, Coimbra, 2005, pp. 143 a
168; IDEM, «Considerações em torno do conceito de acto administrativo impugnável»,
in Estudos em Homenagem do Professor Doutor Marcello Caetano, Coimbra, 2006, pp.
259 a 293; IDEM, Manual de Processo..., cit., pp. 74 a 112, 268 a 336 e 367 a 405; IDEM,
«Sobre as acções de condenação à prática de actos administrativos», in Temas e
Problemas do Processo Administrativo, 2.ª edição revista e atualizada (e-book); MÁRIO
JORGE LEMOS PINTO, Impugnação de Normas e Ilegalidade por Omissão (no
contencioso administrativo português), Coimbra, 2008; PAULO OTERO, «A impugnação
de normas no anteprojecto de Código de Processo nos Tribunais Administrativos», in
Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 22, Julho/Agosto de 2000, pp. 45 e segs.; IDEM,
«A impugnação de normas», in Reforma do Contencioso Administrativo. Trabalhos
Preparatórios. O Debate Universitário, Ministério da Justiça, Novembro de 2000, pp.
135 e segs.; RICARDO BRANCO, «As sentenças substitutivas de atos administrativos no
contencioso administrativo português», in Estudos em Homenagem do Prof. Doutor
Sérvulo Correia, Volume II, Coimbra, 2010, pp. 1025 a 1116; RUI MACHETE, «A
condenação à prática do acto devido – algumas questões», in Cadernos de Justiça
Administrativa, n.º 50, Março/Abril de 2005, pp. 3 a 8; IDEM, «Sobre a legitimidade dos
particulares nas acções administrativas especiais», in Estudos em Homenagem do Prof.
Doutor Sérvulo Correia, Volume II, Coimbra, 2010, pp. 1117 a 1126; RUI TAVARES
LANCEIRO, «A condenação à abstenção de comportamentos no Código de Processo nos
Tribunais Administrativos», in Estudos em Homenagem do Prof. Doutor Sérvulo
Correia, Volume II, Coimbra, 2010, p. 1147; VASCO PEREIRA DA SILVA, «“O nome e a
coisa” – A acção chamada recurso de anulação e a reforma do contencioso
administrativo», in Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 22, Julho/Agosto de 2000,
pp. 36 e segs; IDEM, «“Do Velho se Fez Novo”. A Acção Administrativa Especial de
Anulação de Acto Administrativo», in Temas e Problemas do Processo Administrativo,
2.ª edição revista e atualizada (e-book);
JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, A Justiça Administrativa (Lições), cit., pp. 163 a
182; JOSÉ MANUEL SÉRVULO CORREIA, «Contencioso Administrativo e Responsabilidade
Democrática da Administração», in Estudos em Memória do Prof. Doutor J. L.
Saldanha Sanches, Coimbra, 2011, pp. 595 a 612; JOSÉ MÁRIO FERREIRA DE ALMEIDA,
251
«No caminho da efectividade da tutela jurisdicional administrativa…», cit., pp. 528-
529; MARCO REAL MARTINS, «Sentenças substitutivas de actos administrativos sob o
signo da tutela jurisdicional efectiva – em especial nos procedimentos de formação de
contratos públicos», in O Direito, Ano 143.º, 2011, II, pp. 391 a 424; MÁRIO AROSO DE
ALMEIDA, Manual de Processo Administrativo..., cit., pp. 112 a 134, e 337-338; RUI
MACHETE, «A acção para efectivação da responsabilidade civil extracontratual», in
Reforma do Contencioso Administrativo. Trabalhos Preparatórios. O Debate
Universitário, Ministério da Justiça, Novembro de 2000, pp. 143 e segs; VASCO PEREIRA
DA SILVA, «“Era uma vez...” o contencioso da responsabilidade civil pública», in
Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 40, Julho/Agosto de 2003, pp. 60 a 69; IDEM,
«“É sempre a mesma cantiga”...», cit., pp. 1205 a 1229.
252
Na Reforma de 2002, o legislador encetou uma divisão dos meios processuais
distinguindo:
a) As ações em que os pedidos eram de uma natureza tal que, considerados em
abstrato, poderiam ser dirigidos contra qualquer particular – reconhecer uma qualidade
ou uma situação jurídica do autor, pagar uma quantia, entregar uma coisa, adotar ou
omitir uma conduta material, executar um contrato. Nestes casos, seria adequada a
utilização da designada ação administrativa comum;
b) As ações em que os pedidos, por se reportarem a comportamentos jurídicos, ou às
respetivas omissões, estavam intimamente ligados ao estatuto competencial da
Administração Pública, não sendo concebível que pudessem dirigir-se contra
particulares; um particular não pode praticar – nem, evidentemente, omitir – atos
administrativos ou regulamentos, comportamentos jurídicos que pressupõem a
titularidade de poderes públicos, que somente podem pertencer às entidades
empenhadas na prossecução de atividade administrativa pública. Nestes casos, seria
adequada a ação administrativa especial.
A este propósito, sublinhámos que os poderes que o tribunal administrativo utilizava
quando decidia contra a Administração Pública numa ação administrativa comum eram
idênticos aos que o tribunal comum utiliza quando decide ações cíveis contra quaisquer
cidadãos ou empresas, em nada perturbando a atividade administrativa pública:
condenar o Estado a pagar uma indemnização não é diferente de condenar um cidadão a
fazer o mesmo.
Inversamente, o tribunal administrativo, ao julgar procedente uma ação
administrativa especial, interferia na atividade administrativa pública, podendo mesmo
determinar a prática pela Administração de atos que esta gostaria de poder evitar343.
A prática veio, porém, demonstrar que nem a tramitação da ação administrativa
especial era assim tão diferente da tramitação do processo civil, nem a tramitação da
ação administrativa comum poderia prescindir de algumas especificidades
jusadministrativistas do litígio. Por isso mesmo, na Reforma 2015, o legislador
entendeu estabelecer uma única forma de processo declarativo não-urgente, aplicável a
todos os pedidos que podem ser formulados perante os tribunais administrativos.
Nasceu assim a ação administrativa, regulada no Título II do CPTA, que veio
substituir a ação administrativa especial e a ação administrativa comum.
Esta substituição parecia dar azo à ideia de que, depois da Reforma de 2015, as
mesmas normas aplicar-se-iam aos litígios relativos à impugnação de um ato
administrativo e aos litígios relativos à validade e interpretação de contratos, por
exemplo.
Sucede que, da análise das disposições gerais que constituem o denominador comum
dos diferentes pedidos a formular no âmbito das novas ações administrativas, resulta
claro que são mais as disposições particulares que distinguem as ações administrativas
umas das outras – em função do pedido formulado – do que as disposições gerais que
deveriam unir as ações administrativas sob o mote de um só meio processual. E resulta
também claro que, apesar de alteração do nome, há uma maior afinidade entre as ações
administrativas relativas a atos e a normas administrativas do que entre estas e as ações
administrativas relativas à validade e execução de contratos.
343
Ou mesmo, em certas condições, emitir uma sentença substitutiva do ato que a administração
omitiu ilegalmente – cfr. RICARDO BRANCO, «As sentenças substitutivas de acto administrativo no
contencioso administrativo português», in Estudos em Homenagem do Prof. Doutor Sérvulo Correia,
Volume II, Coimbra, 2010, pp. 1077 a 1086; cfr., designadamente, o n.º 6 do artigo 167.º do CPTA.
253
Por isso mesmo, ir-se-á manter a análise tendo por base os pedidos formulados e a
especialidade de cada um deles.
Primeiro, os pedidos relativos a atos e normas, regulados nas Secções I, II e III do
Capítulo II, do Título II do CPTA – tributários da antiga ação administrativa especial –,
seguindo, aliás, a nossa ideia de que estes serão os pedidos mais comuns da justiça
administrativa.
Só depois será feita a referência aos pedidos relativos à validade e execução de
contratos e aos restantes pedidos que não se reconduzam a nenhum dos anteriores.
Por último, será feita referência à tramitação comum a todas as ações
administrativas, qualquer que seja o pedido.
Uma impugnação tem sempre por finalidade a destruição daquilo que se impugna;
tratando-se de impugnação judicial, o objetivo é conseguir uma decisão do tribunal que
anule ou declare a nulidade do ato administrativo impugnado, por se apresentar
desconforme com as regras e os princípios jurídicos que deveria respeitar, ou resultar de
uma vontade administrativa viciada (cfr. artigo 50.º, n.º 1).
254
impugnabilidade judicial dos atos administrativos, abrindo caminho para aqueles que
viram na alteração constitucional a morte ansiada do ato definitivo e executório (v.
supra).
Os defensores desta orientação nem sempre estavam de acordo quanto às respetivas
consequências, que passavam pela caducidade por inconstitucionalidade superveniente
do n.º 1 do artigo 25.º da LEPTA, pela necessidade de construção de um conceito de ato
lesivo e, até, pelo fim do recurso hierárquico necessário344.
No mínimo, e como se escreveu no Acórdão n.º 499/96 do Tribunal Constitucional,
parece que «objectivamente considerada, a evolução normativa revela a troca de um
entendimento formal e conceptualista do direito de acesso aos tribunais administrativos
por uma visão material, assente numa ideia de justiça orientada teleologicamente
(afectada à tutela de direitos ou interesses)».
Contra esta orientação continuou a pronunciar-se parte da jurisprudência do STA,
podendo citar-se a propósito o Acórdão STA-P de 15 de Janeiro de 1997, sustentando o
carácter necessário do recurso hierárquico interposto dos atos dos diretores-gerais – o
mesmo é dizer, o carácter não definitivo destes345.
Tratava-se, contudo, de jurisprudência instável, podendo citar-se, em sentido oposto,
o Acórdão STA-1 de 12 de Dezembro de 1996, em cujo sumário se escreveu: «a partir
da revisão constitucional de 1989 a recorribilidade contenciosa dos actos
administrativos passou a aferir-se através da sua idoneidade para lesarem direitos ou
interesses»346.
137.1.2. A lei ordinária atual, mais precisamente os n.ºs 1, 2 e 3 do artigo 51.º, o n.º 1
do artigo 52.º, o artigo 53.º e o n.º 1 do artigo 54.º do CPTA, procede à delimitação do
círculo dos atos administrativos suscetíveis de impugnação judicial, em termos que
possibilitam o desenho de um quadro que desenvolve e completa a previsão
constitucional.
Em primeiro lugar, apenas são impugnáveis os atos administrativos dotados de
eficácia externa, isto é, com capacidade para projetar os seus efeitos nas relações
jurídicas que se estabelecem entre a administração pública e os particulares – ou entre
pessoas coletivas públicas distintas ou, ainda, entre órgãos da mesma pessoa coletiva.
Excluída fica, como sempre esteve, a impugnação judicial de comportamentos
administrativos cujos efeitos se contenham no âmbito da entidade pública cujo órgão os
adotou347.
344
Pode ter-se uma boa ideia da polémica doutrinária sobre este ponto – independentemente de
concordar-se ou não com o Autor –, lendo as páginas que VASCO PEREIRA DA SILVA dedicou ao problema
no seu Em busca do acto administrativo perdido, já citado, pp. 629 a 736. Vale também a pena ler os
Acórdãos do Tribunal Constitucional n.ºs 603/95, 115/96 e 499/96; recomenda-se especialmente a leitura
atenta do voto de vencida da Conselheira Professora Fernanda Palma no Acórdão n.º 115/96.
345
Publicado com anotação de JOÃO PEDRO MIRANDA, nos Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 9,
Maio/Junho de 1998, pp. 39 a 47.
346
Cfr. Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 8, Março/Abril de 1998, pp. 13 e segs.; cfr., no
mesmo sentido, o Acórdão do STA-1 de 19 de Fevereiro de 1978, publicado nos Acórdãos Doutrinais do
Supremo Tribunal Administrativo, n.º 444, pp. 1531 e segs., bem como os acórdãos aí referenciados em
anotação.
347
ALBERTO DA COSTA REIS, «A identificação dos actos susceptíveis de impugnação através da acção
administrativa especial», in Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 95, Setembro/Outubro de 2012, pp.
19 a 25; e JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, A Justiça Administrativa (Lições), cit., p. 164.
255
Em segundo lugar, a impugnabilidade do ato não depende da forma que este revista,
como já dispunha a lei anterior e estabelece a própria CRP (cfr. artigo 268.º, n.º 4), e o
artigo 52.º, n.º 2, do CPTA. O facto de o ato administrativo integrar uma lei não impede
a sua impugnação nos tribunais administrativos.
Em terceiro lugar, a impugnabilidade do ato é também independente da respetiva
eficácia, sendo suficiente para a admissibilidade da impugnação que a execução do ato
se tenha iniciado ou que seja certo, ou muito provável, que a sua eficácia virá a
produzir-se (cfr. artigo 54.º, n.º 2, do CPTA). Na verdade, se as consequências do ato já
se fazem sentir, ou se é apenas questão do inevitável decurso do tempo para que tal
suceda, compreende-se que a lei não force o lesado a aguardar passivamente a produção
efetiva e plena dos efeitos jurídicos do ato para então, e somente então, possibilitar a sua
impugnação, com o provável aumento dos danos que tal acarretaria348.
Em quarto lugar, a circunstância de um ato administrativo não consubstanciar a
decisão final de um procedimento administrativo – ou seja, o facto de se tratar de um
ato interlocutório ou preparatório, ou mesmo se revestir a forma de parecer vinculativo
– não constitui obstáculo à sua impugnação – desde que, evidentemente, ele produza
efeitos jurídicos externos.
Em quinto lugar, também não obsta à impugnação de um ato praticado no exercício
de uma atividade administrativa pública, ou seja, de uma atividade regulada por normas
de direito administrativo, a circunstância de o seu autor não ser um órgão de uma pessoa
coletiva pública. A prevalência crescente de uma noção material de administração
pública, que sublinhámos noutro lugar, em detrimento de uma noção orgânica, conduz a
que a proteção jurisdicional administrativa não dependa da natureza pública das
entidades sujeitas à justiça administrativa, mas da natureza pública da atividade
desenvolvida, como claramente decorre do n.º 1 do artigo 51.º do CPTA.
Em sexto lugar, o artigo 53.º determina que a natureza meramente confirmativa do
ato administrativo – ou seja, o facto de este se limitar a reiterar um ato administrativo
anterior, o que faz, pelo menos, duvidar de que se trate de um verdadeiro ato
administrativo, por lhe faltar o indispensável conteúdo decisório – somente obsta à sua
impugnação quando o ato confirmado haja sido impugnado pelo mesmo interessado, ou
lhe tenha sido notificado ou, ainda, quando haja sido objeto de publicação – neste
último caso, apenas se a notificação ao interessado não fosse obrigatória.
Em sétimo lugar, apesar de o artigo 51.º, n.º 1, estabelecer que são impugnáveis os
atos administrativos que produzem efeitos jurídicos externos numa situação individual e
concreta, a verdade é que o artigo 52.º, n.º 3, admite a existência de atos gerais
impugnáveis – com um regime próprio de impugnação349.
Por último, a lei não estabelece qualquer exigência genérica relativamente a uma
hipotética impugnação administrativa prévia do ato que se pretende atacar
judicialmente. Os artigos 51.º e 59.º, n.ºs 4 e 5, não contêm tal exigência – que, a existir,
seria seguramente feita numa destas normas. Em consequência, todos os atos
administrativos que produzem efeitos jurídicos externos numa situação individual e
concreta são, em princípio, suscetíveis de impugnação contenciosa.
Em todo o caso, não se veja nesta afirmação uma certidão de óbito de toda e qualquer
impugnação administrativa necessária atualmente existente350. Haverá, naturalmente, de
ter presente o atual CPA e, em concreto o seu artigo 185.º, n.º 2, e o artigo 3.º do
Decreto-Lei n.º 4/2015, que aprovou o novo CPA, tal como já referido.
348
Cfr. MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, Manual de Processo Administrativo, cit., pp. 259 a 289.
349
Cfr. CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, A Justiça Administrativa (Lições), cit., p. 163, nota 364.
350
Cfr. MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, Manual de Processo Administrativo, cit., pp. 290 a 297.
256
137.2. Causa de pedir
O confronto dos artigos 24.º, 37.º e 44.º do ETAF possibilita uma conclusão muito
simples: os pedidos de impugnação de atos administrativos são, em regra, da
competência dos tribunais administrativos de círculo.
Excetuam-se, integrando a competência do STA, os pedidos de impugnação de atos
do Presidente da República, da Assembleia da República e do seu presidente, do
Conselho de Ministros, do primeiro-ministro, do Tribunal Constitucional e do Tribunal
de Contas (e dos respetivos presidentes), do Presidente do Supremo Tribunal
Administrativo, do Presidente do Supremo Tribunal Militar, do Conselho Superior de
Defesa Nacional, do Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais e do
seu presidente, do Procurador-Geral da República, do Conselho Superior do Ministério
Público e, ainda, os pedidos de impugnação de atos praticados no âmbito de processos
eleitorais previstos no ETAF (presidente e vice-presidentes do STA e presidente e vice-
presidentes dos TCA).
Quando, como sucede na grande maioria dos casos, a competência material pertença
aos tribunais administrativos de círculo, a competência territorial é determinada
através das seguintes regras:
1.ª Se o autor do ato impugnado integrar a administração regional autónoma, a
administração autárquica, entidades intermunicipais ou pessoas coletivas de utilidade
pública, o tribunal administrativo de círculo territorialmente competente é aquele que
351
Cfr. MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, «O objeto do processo no novo contencioso administrativo», in
Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 36, Novembro/Dezembro de 2002, p. 7.
257
corresponder geograficamente à sede do autor do ato administrativo impugnado (cfr.
artigo 20.º, n.º 1 do CPTA);
2.ª Relativamente aos restantes atos administrativos cuja impugnação se faça nos
tribunais administrativos de círculo, nomeadamente os atos da autoria de órgãos da
administração direta do Estado ou de entidades que integrem a administração indireta
deste, o tribunal territorialmente competente é o da residência habitual ou da sede do
autor ou da maioria dos autores (cfr. artigo 16.º do CPTA).
137.3.2. Legitimidade
352
Interessado é aquele que pode e espera obter um benefício com a destruição dos efeitos do ato
impugnado; esse interesse é direto, quando se repercute imediatamente, e pessoal, quando tal repercussão
ocorre na esfera jurídica do próprio impugnante.
258
No que toca à legitimidade passiva, isto é, à determinação daquele contra quem é
dirigido o pedido de impugnação, aplicar-se-ão as regras gerais, constantes dos n.ºs 2 e
3 do artigo 10.º do CPTA, as quais admitem várias possibilidades353:
• o pedido de impugnação deve ser dirigido contra a pessoa coletiva pública em cujo
âmbito o ato foi praticado, se não tiver sido o Estado – um município, um instituto
público, uma associação pública;
• no caso de se tratar da pessoa coletiva Estado ou as regiões autónomas, o pedido de
impugnação deve ser dirigido contra o ministério ou a secretaria regional a cujos órgãos
seja imputado o ato posto em crise;
• se se tratar de entidade administrativa independente destituída de personalidade
jurídica, o pedido deve ser dirigido contra o Estado ou contra a pessoa coletiva pública
em que o autor se integrar.
Regista-se, com aplauso, o facto de o legislador ter optado por não “castigar” o autor
do pedido, se este, porventura mal informado ou distraído, tiver indicado como réu na
demanda o órgão que praticou o ato administrativo – e não a entidade pública ou o
ministério.
Em tal caso, o pedido ter-se-á como dirigido contra a pessoa coletiva pública a que o
órgão pertence – ou, tratando-se do Estado, contra o ministério no âmbito do qual se
integrar o autor do ato (cfr. o n.º 4 do artigo 10.º).
A pior tradição portuguesa teria mandado “punir” o equívoco com a sanção da
ilegitimidade passiva, por via da qual se sacrificaria a realização da justiça ao
comodismo judicial.
De notar que a lei manteve a legitimidade passiva nos processos de impugnação de
atos administrativos dos chamados contra-interessados, isto é, das pessoas a quem o
procedimento do pedido de impugnação possa prejudicar ou que tenham legítimo
interesse na manutenção do ato impugnado, obrigando o autor do pedido de impugnação
a demandar também essas pessoas (cfr. artigo 57.º).
Compreende-se facilmente porquê: se aos titulares de interesses opostos aos do
impugnante não fosse possibilitada a intervenção no processo, então a decisão judicial
que viesse a considerar procedente o pedido não poderia produzir efeitos em relação
àqueles, sob pena de grave ofensa do princípio do contraditório. A única forma de
assegurar a plena eficácia à sentença é garantir que os contra-interessados possam
intervir no processo de impugnação354.
137.3.3. Oportunidade
353
Os n.ºs 5, 6 e 7 do artigo 10.º do CPTA contemplam casos particulares de legitimidade passiva.
354
Cfr. JOÃO RAPOSO, «Os pressupostos processuais no nóvel Código de Processo nos Tribunais
Administrativos», in Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Germano Marques da Silva, Coimbra,
2004, p. 195.
259
• o Ministério Público dispõe de um prazo de um ano;
• os demais impugnantes dispõem de um prazo de três meses.
De notar, contudo, que o prazo de que dispõe o Ministério Público pode ser
estendido a outros impugnantes, sempre que se verifique uma das circunstâncias
previstas na alínea c) do n.º 3 do artigo 58.º – quando o atraso do impugnante seja
considerado desculpável, devido à complexidade do quadro legal ou à identificação ou
qualificação do objeto da impugnação.
A impugnação será também admitida para além do prazo de três meses referido
quando o erro do impugnante relativamente ao prazo de que dispunha para a
impugnação tenha sido induzido pela Administração Pública, não sendo exigível a um
cidadão normalmente diligente a tempestiva apresentação da petição.
Quer-nos parecer que, neste ponto, o legislador foi longe demais. Da leitura da lei
fica-nos uma dúvida e uma certeza.
A dúvida consiste em saber que aplicação farão os tribunais administrativos da
disposição em causa: uma aplicação timorata, que, tendo presente que caberá ao
impugnante invocar e provar as circunstâncias ali previstas, propenderá para nunca
considerar satisfatória tal prova; ou uma aplicação generosa, que tenderá a converter o
prazo de um ano no prazo normal de impugnação?
A certeza é a de que o legislador optou por uma solução que faz o que de pior pode
fazer-se a um prazo garantístico: torna-o incerto. A segurança jurídica recomenda, em
nosso entender, que os prazos para a utilização das garantias judiciais dos
administrados, mais longos ou menos longos, sejam certos e incontroversos355.
Às nossas críticas escapa a invocação do justo impedimento, uma vez que este se
encontra regulado no artigo 140.º do Código de Processo Civil, existindo sobre ele
ampla e variada jurisprudência, o que, naturalmente, reduz a margem de incerteza na
sua apreciação.
O CPTA contém também regras aplicáveis à contagem dos prazos; nesta matéria a
Reforma de 2015 trouxe novidades: a remissão que existia no anterior artigo 58.º, n.º 3,
para o regime constante do Código de Processo Civil, deixou de existir, sendo agora
feita para o artigo 279.º do Código Civil (cfr. artigo 58.º, n.º 2).
Assim, onde ontem existia um prazo de três meses que se suspendia durante as férias
judiciais, hoje conta-se, por força desta remissão, um prazo de três meses, contínuo, que
corre durante as férias judiciais356.
Não podemos deixar de criticar esta alteração – de propósito pouco claro e que não
servirá para garantir a celeridade da tramitação das ações administrativas –, que
introduz uma alteração nas práticas judiciais muito relevante e com consequências
graves para quem comete o erro de contar o prazo “à antiga”. Melhor teria sido manter o
regime anterior, que estava já interiorizado pelos atores relevantes (advogados e juízes).
O artigo 59.º dispõe relativamente ao início da contagem dos prazos. O n.º 4 deste
artigo merece uma referência especial, na justa medida em que estabelece que todos os
meios de impugnação administrativa, ainda que hajam de ser qualificados como
facultativos, suspendem o prazo de impugnação contenciosa.
355
Cfr., em sentido oposto, MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, Manual de Processo Administrativo, cit., pp.
298-299.
356
IDEM, ibidem, p. 299.
357
Sobre o significado e os limites da introdução deste pedido na lei portuguesa, cfr. CARLOS ALBERTO
FERNANDES CADILHA, «Os poderes de pronúncia jurisdicionais na acção de condenação à prática de acto
260
138.1. Pedido
138.3.2. Legitimidade
O artigo 68.º do CPTA regula a legitimidade ativa para estes pedidos. Dispõem
dela:
a) Aqueles que invoquem a titularidade de um direito ou interesse legalmente
protegido dirigido à prática do ato [cfr. alínea a) do n.º 1];
b) As pessoas coletivas públicas e privadas, relativamente à defesa dos direitos e
interesses que lhes cumpre defender [cfr. alínea c) do n.º 1];
261
c) O Ministério Público [cfr. alínea b) do n.º 1], somente quando o dever de praticar
o ato decorra diretamente da lei e a recusa ou omissão agrida direitos, interesses ou
valores muito relevantes, enunciados nessa disposição legal;
d) Os titulares de interesses difusos [cfr. alínea f) do n.º 1 e n.º 2 do artigo 9.º do
CPTA];
e) Presidentes de órgãos colegiais, relativamente à conduta do respetivo órgão, bem
como outras autoridades, em defesa da legalidade administrativa, nos casos previstos na
lei [cfr. alínea e) do n.º 1 do artigo 68.º].
Quanto à legitimidade passiva, nada há a acrescentar ou a alterar à referência, feita
no contexto dos pedidos de impugnação, às regras dos n.ºs 2, 3 e 4 do artigo 10.º.
138.3.3. Oportunidade
Na realidade, o dever que recai sobre o órgão competente para decidir é o de tomar
uma decisão que respeite todas as vinculações absolutas (v. supra) – forma,
359
Este prazo é, salvo o disposto em lei especial, de noventa dias (cfr. artigo 128.º, n.º 1, do CPA).
360
Com a exceção constante do n.º 2 do artigo 13.º do CPA.
262
formalidades, fim, etc. – e que concretize suficientemente as vinculações tendenciais
decorrentes dos princípios constitucionais condutores da atividade administrativa –
igualdade, imparcialidade, proporcionalidade, boa-fé, etc. É apenas isto que o tribunal
administrativo pode sindicar, porque é somente isto que é legalmente devido. E é apenas
a isto que o tribunal pode condenar a Administração Pública.
Em nosso entender, é este o sentido da regra fundamental do n.º 2 do artigo 71.º do
CPTA: para um ato administrativo com um conteúdo específico ser devido é
indispensável que a lei permita afastar, como ilegal, todo e qualquer ato de conteúdo
diverso.
No caso, que é o mais comum, de tal não ser possível, subsistindo duas, ou três (ou
dez, ou cem) possibilidades de conteúdo para o ato administrativo, todas conformes à
lei, todas igualmente respeitadoras das vinculações legais, então o mais que o tribunal
pode considerar devido é o cumprimento pela Administração de tais vinculações.
À semelhança do que sucede na ação administrativa de impugnação de atos, a
propositura dessa ação administrativa de condenação à prática de ato devido pode estar
dependente da prévia utilização de garantias administrativas de natureza necessária361.
361
MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, Manual de Processo Administrativo, cit., p. 317.
263
Estão nestas condições, nomeadamente, os regulamentos aprovados por decreto
regulamentar, por resolução do Conselho de Ministros e por portaria.
Nos restantes casos, o processo deve ser instaurado num tribunal administrativo de
círculo.
139.2.2. Legitimidade
139.2.3. Oportunidade
Quando o autor não seja o Ministério Público e a norma regulamentar não seja
diretamente exequível – isto é, independente de um ato administrativo ou jurisdicional
de aplicação – o Ministério Público tem o dever de pedir a declaração de ilegalidade
com força obrigatória geral sempre que «a aplicação da norma tenha sido recusada por
qualquer tribunal, em três casos concretos, com fundamento na sua ilegalidade» (cfr.
artigo 73.º, n.º 4, primeira parte).
362
Este prazo resulta, aliás, do estabelecido no artigo 144.º, n.º 2, do CPA.
264
b) Sempre que o Ministério Público o peça, porque a aplicação da norma foi
recusada, com fundamento na sua ilegalidade, por qualquer tribunal, em três casos
concretos, a sentença que declara a ilegalidade da norma tem força obrigatória geral.
O artigo 76.º esclarece os efeitos desta declaração, que tem o seu modelo, herdado da
lei anterior, na CRP. O que de mais característico existe nesta força obrigatória geral é,
por um lado, a retroatividade, sendo a norma eliminada da ordem jurídica desde o
momento em que foi editada; e, por outro, o chamado efeito repristinatório, ou seja, a
circunstância de tal eliminação ter como consequência o “renascimento” da norma
regulamentar que havia sido revogada e substituída pela norma que o tribunal declarou
ilegal (cfr. artigo 76.º, n.º 5, do CPTA)363.
No que à declaração de ilegalidade por omissão respeita, a sentença favorável ao
autor tem o efeito de obrigar a entidade com competência regulamentar, dentro do prazo
fixado pelo tribunal, mas nunca inferior a seis meses, a editar as normas regulamentares
em falta (artigo 77.º, n.º 2).
140.1. Pedido
140.2.1. Competência
140.2.2. Legitimidade
363
O que se compreende facilmente, se se recordar o que noutro local dissemos quanto à
impossibilidade legal de revogar um regulamento sem substituí-lo por outro: existe uma espécie de
“horror” ao vazio regulamentar, que torna inviável qualquer ato ou efeito desregulamentador.
265
validade de contratos que devam ser conhecidos na jurisdição administrativa não
importa só às partes, pelo que terceiros com especial relação com o contrato, nalguns
casos, ou no âmbito da ação popular ou da defesa pública, noutros, deverão poder
dirigir-se aos tribunais para pugnarem pela legalidade da atuação contratual do
contraente público e/ou entidade adjudicante.
O artigo 77.º-A do CPTA inclui três enumerações de circunstâncias que conferem
legitimidade ativa nas ações relativas a contratos364:
a) A enumeração do n.º 1 respeita às ações cujo pedido é o da invalidade, total ou
parcial, do contrato;
b) A enumeração do n.º 2 refere-se às ações cujo pedido é o da invalidade parcial ou
total dos contratos, quando essa invalidade resulte de falta ou vícios da vontade;
c) A enumeração do n.º 3 refere-se a ações sobre a execução do contrato.
140.3. Oportunidade
141.1. Âmbito
364
Note-se que, nos termos do artigo 825.º do Código Administrativo, somente os contraentes tinham
legitimidade, ativa e passiva, nas ações sobre contratos administrativos. Havia, é certo, quem entendesse
que a velha disposição se encontrava derrogada – o que a jurisprudência do Supremo Tribunal
Administrativo nunca aceitou. Era o caso de BERNARDO AYALA, «A Tutela Contenciosa dos Particulares
em Procedimentos de Formação de Contratos da Administração Pública: Reflexões sobre o Decreto-Lei
n.º 134/98, de 15 de Maio», in Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 14, Março/Abril de 1999, p. 23.
Sabemos hoje que PEDRO GONÇALVES partilha de tal entendimento, uma vez que escreveu: «o facto de o
contrato administrativo ser um contrato de direito público é ou deve ser, por si só, título suficiente para
que um terceiro, que considere o contrato lesivo da sua esfera jurídica, possa atacá-lo directamente num
tribunal...» – O Contrato Administrativo – Uma Instituição..., cit., p. 89.
266
O n.º 1 deste mesmo artigo enumera exemplificativamente os pedidos que podem ser
processualmente veiculados através da ação administrativa. Alguns deles foram já
referidos – por lhes serem aplicáveis regras especiais relativas ao seu objeto e aos
pressupostos processuais aplicáveis – outros prendem-se com:
a) Pedidos de simples apreciação, consubstanciados no reconhecimento de situações
jurídicas subjetivas, de qualidades ou do preenchimento de condições – alíneas f) e g);
b) Pedidos condenatórios – a pagar uma quantia, a entregar uma coisa ou a adotar
uma conduta material positiva ou omissiva – alíneas h), i) e j);
c) Pedidos constitutivos – alíneas k) e m).
A ação administrativa é ainda utilizável para a composição judicial de litígios entre
entidades públicas – alínea n).
141.2.1. Competência
141.2.2. Legitimidade
141.3. Oportunidade
267
A regra geral, constante do n.º 1 do artigo 41.º do CPTA, é a de que a ação
administrativa pode ser proposta a todo o tempo, isto é, não está submetida a qualquer
prazo de caducidade. Importa, porém, não esquecer que em função dos pedidos
formulados a ação administrativa estará sujeita a distintos prazos, conforme se referiu.
268
pelo autor – o que sucede em muitas ações cíveis, nomeadamente nas ações de dívida.
Naturalmente que, muito embora essas omissões não impliquem a confissão do réu, este
sairá prejudicado, uma vez que o tribunal «aprecia livremente essa conduta para efeitos
probatórios», como refere o mesmo preceito.
Como já antecipámos noutro local, o réu deve enviar ao tribunal, com a contestação
ou dentro do respetivo prazo, «o original do processo administrativo, quando exista, e
todos os demais documentos respeitantes à matéria do processo de que seja detentor»
(cfr. artigo 84.º, n.º 1). A lei (n.º 5 do mesmo artigo) determina consequências sérias
para o incumprimento deste dever.
Em circunstâncias normais, não existem mais articulados no processo. Todavia,
ocorrendo circunstâncias especiais, como a superveniência de factos constitutivos,
modificativos ou extintivos, podem ser apresentados novos articulados, nos termos do
artigo 86.º).
368
A absolvição da instância é uma forma de pôr termo ao processo sem que o tribunal proceda à
apreciação do pedido do autor, por este não reunir as condições indispensáveis para ser apreciado;
distingue-se da absolvição do pedido, que ocorre quando o tribunal, após ter apreciado o pedido do autor,
coclui que ele não merece ser satisfeito.
269
A audiência prévia tem natureza tendencialmente obrigatória (cfr. artigo 87.º-A) e, à
semelhança do processo civil, desempenha funções essenciais para determinação da
tramitação subsequente do processo. Pode ainda ser um momento decisivo para o
processo, se o juiz considerar que dos articulados já resultam demonstrados factos que
permitem o conhecimento do mérito – no todo ou em parte – da causa.
A audiência prévia pode assim servir dois propósitos fundamentais:
a) Promover o termo do processo – seja através da conciliação entre as partes, seja
através do conhecimento pelo juiz do mérito do processo, quando as características da
causa assim o permitam;
b) Preparar as fases subsequentes do processo, através de discussão com as partes.
Este momento processual está também consagrado na lei processual civil, pelo que
os tribunais administrativos incluíam já a audiência prévia na tramitação da antiga ação
administrativa comum. Na revisão de 2015, tornou-se claro que este momento, de
natureza tendencialmente obrigatória, deve existir em qualquer ação administrativa não
urgente369.
369
Sobre a audiência prévia na revisão de 2015 do CPTA, cfr. CARLOS ALBERTO FERNANDES CADILHA,
«A revisão do Código de Processo nos Tribunais Administrativos», in Comentários à revisão do ETAF e
do CPTA, Lisboa, 2016, pp. 19-20; e JOSÉ DUARTE COIMBRA, «A audiência prévia no contexto da
tramitação da nova ação administrativa», in ibidem, pp. 409 a 456.
370
Note-se que, nos termos do n.º 2 do artigo 87.º do CPTA, a decisão do juiz que resolva uma destas
questões tem efeito preclusivo, isto é, não pode ser reapreciada em momento posterior; identicamente, o
facto de uma dessas questões não haver sido suscitada e decidida no âmbito do saneamento do processo
obsta a que venha a sê-lo posteriormente.
371
Remetemos neste ponto para o que dissemos, noutro local, a propósito da instrução do
procedimento administrativo.
372
Na legislação anterior à Reforma de 2002 subsistiam significativas e injustificadas limitações
probatórias na instrução de muitos dos processos de recurso contencioso – meio processual que, como se
disse, antecedeu a ação administrativa especial – que dificultavam, ou inviabilizavam mesmo, uma eficaz
270
Em geral, as provas são oferecidas pelas partes, com o intuito de convencer o juiz da
sua versão dos factos. No entanto, o juiz administrativo tem amplos poderes em matéria
de produção de prova, podendo não só ordenar as diligências probatórias «que considere
necessárias para o apuramento da verdade», como rejeitar a utilização de meios de
prova ou a realização de diligências probatórias que tenha por claramente
desnecessárias (cfr. artigo 90.º, n.º 3).
142.5.3. Não sendo suscitado o reenvio prejudicial, o processo irá então ser decidido
pelo juiz, ou pelo juiz-relator e juízes adjuntos – ou, ainda, por todos os juízes do
defesa do particular. A Reforma de 2002 pôs termo a essa situação, deixando a lei de incluir quaisquer
restrições probatórias.
271
tribunal administrativo de círculo, no caso de o presidente, verificando-se os mesmos
condicionalismos legais que podem justificar o reenvio prejudicial, optar pelo exercício
da faculdade que lhe confere a primeira parte do n.º 1 do artigo 93.º.
Na sentença, se o tribunal for singular, ou no acórdão, se o tribunal for coletivo,
deve o tribunal decidir «todas as questões que as partes tenham submetido à sua
apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a
outras, e não pode ocupar-se senão das questões suscitadas, salvo quando a lei lhe
permita ou imponha o conhecimento oficioso de outras» (cfr. artigo 95.º, n.º 1).
Note-se que nos pedidos de impugnação o tribunal deve conhecer todas as causas de
invalidade que tenham sido invocadas contra o ato impugnado e, ainda, identificar a
existência de outras causas de invalidade diversas das invocadas (cfr. artigo 95.º, n.º 2).
O conteúdo da sentença ou do acórdão deve respeitar o determinado pelo artigo 94.º.
272
CAPÍTULO IV
AÇÃO ADMINISTRATIVA URGENTE
Leituras aconselhadas:
273
breves notas sobre a reforma do CPTA», in e-Publica, n.º 7/2016; ESPERANÇA MEALHA,
«Contencioso (urgente) dos procedimentos de massa», in Cadernos de Justiça
Administrativa, n.º 106, Julho/Agosto de 2014, pp. 79 a 87; JOÃO RAPOSO, «O novo
contencioso urgente dos procedimentos de massa», in Cadernos de Justiça
Administrativa, n.º 106, Julho/Agosto de 2014, pp. 88 a 92; MÁRIO AROSO DE ALMEIDA,
Manual de Processo..., cit., pp. 240 a 242, 325 a 332 e 387 a 391; PAULO PEREIRA
GOUVEIA, «A nova ação administrativa de contencioso pré-contratual», in Julgar.
Revista da Associação Sindical dos Juízes Portugueses, n.º 26, Coimbra, 2015, pp. 41 a
56; PEDRO MELO e MARIA ATAÍDE CORDEIRO, «O regime do contencioso pré-contratual
urgente», in Comentários à revisão do ETAF e do CPTA, Lisboa, 2016, pp. 481 a 506;
SARA AUGUSTO DE MATOS, «Do âmbito da Acção Administrativa Urgente», in e-
Publica, n.º 2/2014.
373
Sobre este ponto é de grande utilidade a leitura da obra de ISABEL CELESTE FONSECA, Introdução
ao Estudo Sistemático da Tutela Cautelar no Processo Administrativo, Coimbra, 2002, pp. 404 a 408.
274
A Reforma de 2015 delimitou dois tipos de processos declarativos principais
urgentes. As designadas ações administrativas urgentes, reguladas no Capítulo I do
Título III do CPTA, e as intimações, reguladas no Capítulo II.
São ações administrativas urgentes as relativas a:
a) Contencioso de atos administrativos em matéria eleitoral;
b) Contencioso dos atos administrativos praticados no âmbito de procedimentos de
massa;
c) Contencioso dos atos relativos à formação de contratos.
Iremos começar pelas três ações administrativas declarativas urgentes referidas,
deixando para os capítulos subsequentes as intimações e a tutela cautelar.
144.2.2. Legitimidade
144.2.3. Oportunidade
Caso não exista disposição especial aplicável ao processo eleitoral em causa, o prazo
de impugnação é de sete dias, contados da data em que seja possível o conhecimento do
ato ou da omissão (cfr. artigo 98.º, n.º 2).
144.3. Tramitação
275
Os pedidos de impugnação de atos administrativos em matéria eleitoral são
tramitados segundo as regras aplicáveis à ação administrativa, com algumas
particularidades decorrentes da natureza urgente do processo, nomeadamente:
a) O ónus de impugnação dos atos com eficácia externa anteriores ao ato eleitoral
como condição para a impugnação de atos subsequentes com fundamento em
ilegalidades de que enfermam os atos anteriormente praticados (cfr. artigo 99.º, n.º 3);
b) O encurtamento de vários prazos (cfr. artigo 99.º, n.º 4).
145.2.2. Legitimidade
276
coletiva pública, a presidentes de órgãos colegiais em relação a atos praticados pelo
respetivo órgão, e às pessoas e entidades referidas no n.º 2 do artigo 9.º [cfr. artigo 55.º
ex vi artigo 97.º, n.º 1, alínea b)]375.
A legitimidade passiva pertence à entidade pública no âmbito da qual tenham sido
praticados os atos ou as omissões impugnadas.
145.2.3. Oportunidade
145.3. Tramitação
375
Cfr. MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, Manual de Processo Administrativo, cit., p. 240.
277
O primeiro aspeto a sublinhar relativamente a este meio processual é que ele não se
aplica a todos os contratos celebrados por entidades adjudicantes: somente pode ser
utilizado no âmbito de procedimentos administrativos tendentes à celebração de
contratos de empreitada e de concessão de obras públicas, de aquisição de serviços, de
concessão de serviços públicos e de aquisição ou locação de bens móveis (cfr. artigo
100.º, n.º 1, do CPTA).
O âmbito do contencioso pré-contratual foi alargado pela Reforma de 2015. Com
efeito, de acordo com o regime vigente desde a Reforma de 2002, estava abrangida pelo
contencioso pré-contratual urgente tão-só a impugnação de atos praticados no decurso
de procedimentos de formação de contratos de concessão de obra pública, empreitada
de obra pública e aquisição de bens e serviços.
Em 2015 procurou-se responder às críticas da doutrina que pugnavam pela inclusão
de um maior número de contratos, se não mesmo todos, no âmbito desta via processual
urgente376.
O segundo aspeto a acentuar, a respeito deste meio processual urgente, é o de que ele
se aplica não só aos atos administrativos relativos à formação dos contratos em sentido
próprio – a exclusão de um concorrente, a adjudicação do contrato, etc. –, mas também
a atos que, não sendo por natureza atos administrativos, são equiparados a atos
administrativos quando praticados por entidades adjudicantes, e ao «programa do
concurso, ao caderno de encargos e a qualquer outro documento conformador do
procedimento de formação» daqueles contratos (cfr. artigos 100.º, n.º 2 e 103.º).
146.3. Pressupostos processuais
146.3.2. Legitimidade
A legitimidade ativa pertence a quem se sentir lesado pelo ato administrativo pré-
contratual; a legitimidade passiva pertence à entidade adjudicante ou ao ministério no
âmbito do qual tiver sido praticado o ato.
Note-se que nestes processos existem quase sempre contra-interessados, visto que se
trata, em geral, de procedimentos administrativos abertos à concorrência.
Convém, pois, não esquecer que o pedido deve ser dirigido também contra os outros
envolvidos no procedimento pré-contratual, ou seja, como dispõe o artigo 10.º do
CPTA, «contra as pessoas ou entidades titulares de interesses contrapostos aos do
autor».
146.3.3. Oportunidade
376
Cfr. a este respeito as críticas formuladas por PEDRO GONÇALVES – «Contencioso administrativo
pré-contratual», in Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 44, Março/Abril de 2004, p. 11.
278
146.4. Tramitação
377
Satisfez-se uma pretensão da doutrina que considerava o prazo anterior, de quinze dias, demasiado
curto.
378
Sobre esta questão, mas relativamente à aplicação do antigo artigo 102.º, n.º 5, do CPTA, veja-se
VERA EIRÓ, «Quanto vale uma sentença? Notas sobre a aplicação do artigo 102.º, n.º 5, do Código de
Processo nos Tribunais Administrativos», in Estudos comemorativos dos 10 anos da Faculdade de
Direito da Universidade Nova de Lisboa, Coimbra, 2008, pp. 803 a 839. No âmbito do novo CPTA,
IDEM, «O regime de antecipação da sentença por causa legítima de inexecução no CPTA revisto», in
Comentários à revisão do ETAF e do CPTA, Lisboa, 2016, pp. 213 a 244.
279
mostrem superiores aos que podem resultar da sua não adoção, sem que tal lesão possa
ser evitada ou atenuada pela adoção de outras medidas» (cfr. artigo 103.º-B).
280
CAPÍTULO V
INTIMAÇÕES
Leituras aconselhadas:
JOANA DE SOUSA LOUREIRO, «Processo de intimação para proteção de direitos,
liberdades e garantias: breves notas a propósito da nova reforma do Contencioso
Administrativo», in Comentários à revisão do ETAF e do CPTA, Lisboa, 2016, pp. 529
a 555; JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, A Justiça Administrativa (Lições), cit., pp. 226
a 239; MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, Manual de Processo Administrativo, cit., pp. 390 a
394; SARA YOUNIS AUGUSTO DE MATEUS, «Intimação para a prestação de informações,
consulta de processos ou passagem de certidões: entre o que se fez e o que ficou por
fazer», in Comentários à revisão do ETAF e do CPTA, Lisboa, 2016, pp. 507 a 527.
147.1. Origem
281
Todas intimações para a prestação de informações, consulta de processos ou
passagem de certidões são da competência dos tribunais administrativos de círculo379.
147.2.2. Legitimidade
A legitimidade ativa pertence a quem tenha solicitado, sem êxito total, a obtenção
de uma informação, a consulta de um processo administrativo, a passagem de uma
certidão (cfr. artigo 104.º, n.º 1, do CPTA) ou, ainda, a compleição de uma notificação
deficiente (cfr. artigo 60.º, nº .2).
A legitimidade passiva pertence à entidade pública a quem o pedido haja sido
dirigido.
147.2.3. Oportunidade
Conforme dispõe o artigo 105.º, n.º 2, do CPTA, a intimação deve ser requerida ao
tribunal no prazo máximo de vinte dias, contado:
• do decurso do prazo legalmente estabelecido para prestar a informação solicitada,
permitir a consulta do processo ou passar a certidão pretendida380;
• do indeferimento do pedido;
• ou, ainda, da satisfação parcial deste.
379
Faz sentido que as intimações relativas à prática de atos por entidades mencionadas no artigo 24.º,
alínea a) do ETAF sejam da competência do STA.
380
Faz sentido que as intimações relativas à prática de atos por entidades mencionadas no artigo 24.º,
alínea a) do ETAF sejam da competência do STA.
282
Se o tribunal der razão ao requerente, fixa um prazo, não superior a dez dias, para
cumprimento da intimação; o eventual incumprimento desta sujeita o intimado ao
pagamento de uma sanção pecuniária compulsória, para além da responsabilidade civil,
disciplinar e criminal a que houver lugar (cfr. artigos 108.º e 169.º).
148.2.2. Legitimidade
A legitimidade ativa para o pedido de intimação pertence a quem quer que necessite
de tutela judicial a fim de não ver precludido o exercício, em tempo útil, de um direito,
liberdade ou garantia – ainda que de natureza análoga – de que seja titular.
A legitimidade passiva pertence, em primeira linha, ao órgão da Administração que
esteja a pôr em causa aquele exercício; mas pode também o requerimento ser dirigido
contra um particular, designadamente um concessionário, quando a Administração
esteja a omitir a tomada de providências adequadas a prevenir ou a reprimir condutas
lesivas dos direitos, liberdades e garantias do autor (cfr. artigo 109.º, n.º 2, do CPTA).
381
Nas palavras de MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, «trata-se, pois, de um instrumento que se define pelo
conteúdo impositivo, condenatório, da tutela jurisdicional a que se dirige, cobrindo, de modo transversal,
todo o universo das relações jurídico-administrativas» – Manual de Processo Administrativo, cit., p. 137.
283
Para ser admissível o recurso a este meio processual, a lei (artigo 109.º, n.º 1) exige
que não seja possível ou suficiente para assegurar o exercício, em tempo útil, do direito
em causa, o decretamento provisório de uma providência cautelar. Isto significa que o
legislador tratou esta intimação como um meio processual de carácter supletivo,
sujeitando-a a um pressuposto processual específico negativo382.
148.3. Tramitação
382
CARLA AMADO GOMES chama-lhe, com razão, ultima ratio – «Pretexto, contexto e texto da
intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias», in Estudos em Homenagem ao Professor
Doutor Inocêncio Galvão Telles, Coimbra, 2003, Volume V – Direito Público e Vária, pp. 541 a 577.
MÁRIO AROSO DE ALMEIDA e CARLOS ALBERTO FERNANDES CADILHA sublinham que esta intimação «não é
a via normal de reacção a utilizar em situações de lesão ou ameaça de lesão de direitos, liberdades e
garantias» – Comentário ao Código de Processo..., cit., p. 724.
383
Cfr. MARCO REAL MARTINS, «Sentenças substitutivas de actos administrativos sob o signo da tutela
jurisdicional efectiva – em especial nos procedimentos de formação de contratos públicos», in O Direito,
Ano 143.º, 2011, II, pp. 402 e 410.
284
CAPÍTULO VI
PROCESSOS CAUTELARES
Leituras aconselhadas:
A) No domínio da legislação anterior à Reforma de 2002
285
Administrativa (Lições), cit., pp. 303 a 334; MARIA FERNANDA MAÇÃS, «As medidas
cautelares», in Reforma do Contencioso Administrativo. Trabalhos Preparatórios. O
Debate Universitário, Ministério da Justiça, Novembro de 2000, pp. 355 e segs.; MARIA
DA GLÓRIA F. P. DIAS GARCIA, «As medidas cautelares entre a correcta prossecução do
interesse público e a efectividade dos direitos dos particulares», in Cadernos de Justiça
Administrativa, n.º 22, Julho/Agosto de 2000, pp. 49 e segs; MÁRIO AROSO DE ALMEIDA,
Manual de Processo Administrativo, cit., pp. 437 a 498; IDEM, «Medidas cautelares no
ordenamento contencioso», in Direito e Justiça, Volume XI, Tomo 2, pp. 141 a 159;
MÁRIO e RODRIGO ESTEVES DE OLIVEIRA, Concursos e outros Procedimentos de
Adjudicação Administrativa..., cit., pp. 672 a 677; PAULO PEREIRA GOUVEIA, «As
realidades da nova tutela cautelar administrativa», in Cadernos de Justiça
Administrativa, n.º 55, Janeiro/Fevereiro de 2006, pp. 3 a 16; SOFIA HENRIQUES, A tutela
cautelar não especificada no novo contencioso administrativo português, Coimbra,
2006; TIAGO DUARTE, «Providência cautelar e resolução fundamentada: The winner
takes it all?», in Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 55, Janeiro/Fevereiro de 2006,
pp. 36 a 47.
Dissemos noutro ponto que o andamento dos processos judiciais não acompanha a
rapidez da vida moderna e que, por isso, o tempo judicial pode obstar à realização da
justiça em tempo útil. Acrescentámos que uma das formas de tentar contrariar essa
disfunção temporal é acelerar o tempo judicial quando as circunstâncias da vida
reclamam uma justiça rápida. Mas não é a única.
Constitui, como se sabe, regra fundamental num Estado de direito que a composição
de litígios esteja confiada a órgãos independentes, especialmente concebi dos e
vocacionados para tal, os tribunais. O princípio da plenitude da tutela jurisdicional
efetiva impõe que para todo e qualquer conflito que mereça composição judicial seja
possível encontrar um tribunal competente e um meio pro cessual que confira proteção
adequada e suficiente aos interesses envolvidos dignos de tutela jurídica.
Este princípio projeta-se, naturalmente, na jurisdição administrativa: qualquer direito
subjetivo ou interesse legítimo relevante no quadro do relacionamento jurídico-
administrativo tem de receber dos tribunais, regra geral administrativos, a proteção
indispensável à sua defesa. Nunca foi objeto de contestação signi ficativa que é este o
sentido da frase inicial do atual n.º 4 do artigo 268.º da Constituição.
A composição judicial de conflitos tende a ser, insistimos, demasiado lenta: cir
cunstâncias ligadas aos princípios do direito processual – contraditório, segu rança da
prova, etc. –, somadas a problemas de logística judiciária – deficiente gestão de
magistrados e insuficiência de funcionários judiciais, designadamente –, contribuem
poderosa mente para o desespero dos cidadãos envolvidos em causas que se arrastam
286
nos tribunais sem fim à vista. Este problema ocorre também, e em dimensão muitas
vezes extrema, na jurisdição administrativa.
Não é possível resolver tal problema, em todos os casos, através da atribuição de
natureza urgente ao processo. Qualquer pessoa compreende que o alargamento do
número de processos urgentes teria duas consequências: por um lado, a urgência seria
cada vez menor; por outro, os processos não urgentes seriam cada vez mais lentos. É
óbvio que a generalização da urgência significa o seu fim.
Daí uma outra ideia: a da proteção cautelar ou provisória.
Em face de uma situação que parece justificar proteção, o tribunal como que antecipa
tal proteção, colocando os direitos ou interesses de quem os invoca com uma aparente
razão ao abrigo dos atos de quem se encontra em condições de lesá-los, obstando assim
a tal lesão e ganhando tempo até à decisão final do litígio. É como se, perante a
impossibilidade de resolver o litígio, de forma definitiva, em tempo útil, com base na
convicção, devidamente fundada, do juiz, se admita que este o resolva provisoriamente,
com base na perceção que a experiência por si acumulada permite ter daquele tipo de
situações.
Surgiram desta forma os procedimentos cautelares, processualmente configurados
como meios processuais acessórios, isto é, meios processuais cuja utilização somente
faz sentido quando acoplados a um meio processual principal, de que visam assegurar a
efetividade.
Na jurisdição comum, a lógica da proteção cau telar é a seguinte: partindo da ideia de
que o princípio da tutela jurisdicional efetiva se aplica tanto à proteção definitiva como
à proteção cautelar, a lei fornece um conjunto de meios processuais adequados às
especificidades exigidas pela proteção provisória dos diferentes tipos de direitos e
interesses ameaçados – o arresto, a restituição provisória de posse, o embargo de obra
nova, etc. No caso de nenhum deste meios assegurar proteção cautelar apropriada e
bastante, recorre-se então às providências cautelares não especificadas, definidas no n.º
1 do artigo 362.º do Código de Processo Civil. De uma ou outra forma, pode obter-se a
proteção necessária. É a ideia de atipicidade da proteção cautelar384.
Lastimavelmente, esta lógica não prevaleceu na jurisdição administrativa até à
Reforma de 2002 que, só por isso, mereceria apreço: uma visão incompreensivelmente
restritiva do princípio da tutela jurisdicional efetiva, limitando a sua aplicação à
proteção definitiva – predominante tanto na jurisprudência administrativa, como na
constitucional –, deu como resultado a tese da tipicidade dos procedimentos cautelares
utilizáveis na jurisdição administrativa.
Consequentemente, seria impossível utilizar as providências cautelares não
especificadas, importando esta impossibilidade um de dois resultados: ou os
procedimentos cautelares regulados no contencioso administrativo tinham cabimento
ou, se tal não ocorria, não existia, pura e simplesmente, proteção cautelar – note-se que
esta orientação não parecia ter na devida conta a aplicação subsidiária na jurisdição
administrativa da legislação processual civil, determinada pelo artigo 1.º da antiga
LEPTA.
Contra esta maneira de ver, sustentou-se que a situação fora esclarecida pela revisão
constitu cional de 1997: a inclusão, no n.º 4 do artigo 268.º, da frase final (...) e a
adopção de medidas cautelares adequadas, teve exatamente o efeito de tornar clara a
384
Ou, na expressão de CARLA AMADO GOMES, a criação de um espaço aberto – cfr. «O regresso de
Ulisses: um olhar sobre a reforma da justiça cautelar administrativa», in Cadernos de Justiça
Administrativa, n.º 39, Maio/Junho de 2003, p. 4.
287
aplicabilidade do princípio da tutela jurisdicional efetiva também à proteção provisória
pedida aos tribunais administrativos.
385
Note-se que uma providência cautelar do tipo conservatório pode implicar que a entidade
demandada tenha de atuar para garantir que a situação não se altera com o decurso do tempo. Por
exemplo, numa suspensão de eficácia de um ato administrativo que tenha determinado a demolição de um
imóvel – e se essa demolição tiver já tido início – pode ser necessário que, ao decretar a suspensão de
eficácia do ato, o tribunal condene a entidade demandada a atuar de forma a garantir a manutenção das
condições do imóvel à data da decisão do decretamento da providência.
288
o recurso àquele. É esta natureza do processo cautelar que conduz o legislador a dizer
que este depende da causa que tem por objeto a decisão sobre o mérito. Adiante
aprecia-se-rão as consequências desta dependência.
O segundo aspeto para que releva o n.º 1 do artigo 113.º do CPTA tem a ver com o
momento do desencadear do pedido de proteção cautelar.
Na verdade, com muita frequência o interessado requer proteção cautelar para o seu
direito ou interesse ainda antes de instaurar o processo principal, antevendo desde logo a
necessidade de tal proteção. Mas pode suceder, e sucede, que somente na pendência do
processo principal e por força das vicissitudes deste o autor se aperceba de que necessita
de proteção cautelar.
Para cobrir estas duas possibilidades, a lei permite que o processo cautelar seja
intentado como preliminar ou como incidente do processo principal, ou seja, antes da
instauração deste ou durante a respetiva pendência.
Em suma, a regra temporal quanto à proteção cautelar é simples: pode ser pedida
quando se precisa dela.
O pedido num processo cautelar pode ser muito variado, variedade que decorre da
natureza atípica da proteção. A título exemplificativo, pode pedir-se ao tribunal, de
acordo com o artigo 112.º, n.º 2, do CPTA:
• que suspenda os efeitos de um ato administrativo ou de uma norma regulamentar;
• que pratique um ato de carácter provisório, determinando a regulação provisória de
uma situação jurídica, a admissão provisória a um concurso ou a um exame, a atribuição
provisória da disponibilidade de um bem ou a autorização provisória para começar ou
continuar a fazer algo;
• que intime a Administração ou um particular para fazer ou deixar de fazer algo;
• que impeça a continuação de uma obra;
• que determine a apreensão judicial de bens do réu, etc., etc.
A causa de pedir num processo cautelar é bastante menos variada do que o pedido:
relaciona-se sempre com a probabilidade de o tempo necessário à decisão do processo
principal possibilitar ou consolidar a lesão do interesse do autor, ou com a aparência da
situação jurídica do autor como sendo de uma situação que irá merecer proteção do
tribunal no processo definitivo – ou ambas as coisas.
A regra nesta matéria consta do n.º 2 do artigo 114.º do CPTA: a proteção cautelar é
requerida ao tribunal competente para decidir definitivamente o litígio. Assim se
compreende o disposto na alínea c) do n.º 1 do artigo 24.º do ETAF.
Percebe-se a razão de ser da regra: existe toda a conveniência em que o tribunal em
que pende o processo principal, ou que dispõe de competência para este, decida também
da proteção cautelar. Não só devido a aspetos logísticos, que recomendam a
concentração dos documentos e elementos probatórios num mesmo local, mas também
porque assim se possibilita a apensação dos dois processos, facilitando uma visão global
do litígio por parte do juiz.
289
152.2. Legitimidade
153. Tramitação
A tramitação dos processos cautelares encontra-se regulada nos artigos 114.º a 118.º
do CPTA.
Sublinhamos os aspetos que nos parecem mais importantes.
O juiz admite ou rejeita o requerimento do interessado, fundamentando a sua decisão
em caso de rejeição (cfr. artigo 116.º, n.º 1); as causas de rejeição consistem na
ilegitimidade ativa ou passiva, na ilegalidade do pedido ou na irregularidade, não
corrigida, do requerimento (cfr. artigos 116.º, n.º 2, e 114.º, n.º 3).
No caso de o tribunal admitir o requerimento, segue-se a citação da entidade
requerida e dos contra-interessados, se existirem, para deduzir oposição no prazo de dez
dias (cfr. artigo 117.º, n.º 1).
A falta de oposição leva a presumir que os factos invocados pelo requerente são
verdadeiros; os requeridos podem oferecer prova juntamente com as suas contestações
e, mesmo que o não façam, o juiz pode determinar a realização de diligências
probatórias (cfr. artigo 118.º, n.ºs 1 a 3).
154. Decisão
154.3. Por último, justifica-se uma reflexão sobre o artigo 121.º do CPTA, que
contém (mais) uma disposição, de inspiração italiana, absolutamente inovadora entre
nós.
Como já dissemos, a atribuição a um processo principal da qualificação de urgente e
a proteção cautelar são duas formas diferentes de procurar aproximar o tempo da justiça
do tempo da vida das pessoas. Em princípio, são duas formas alternativas, isto é, nuns
casos a lei opta pela provisoriedade da tutela cautelar, noutros pela aceleração da tutela
definitiva.
O artigo 121.º consubstancia um mecanismo muito interessante: o cruzamento, antes
impossível, dessas duas vias. Pode suceder que, confrontado com um requerimento de
291
providência cautelar, o juiz conclua que nenhum mecanismo cautelar previsto na lei,
nem que ele seja capaz de conceber, é adequado a conferir àqueles interesses a proteção
que ele considera necessária e apropriada. Numa tal situação, convicto de que só a
decisão do processo principal lhe permite fazer justiça, a lei concede-lhe uma faculdade
invulgar: antecipar essa decisão.
Para autorizar este comportamento anómalo, porém, a lei faz duas exigências:
• a primeira é a de que haja «manifesta urgência na resolução definitiva do caso,
atendendo à natureza das questões e à gravidade dos interesses envolvidos», ou «que a
simplicidade do caso o justifique»;
• a segunda é que do processo cautelar constem todos os elementos indispensáveis à
tomada da decisão no processo principal.
A proteção cautelar tem, pela sua própria razão de ser, carácter provisório: trata-se de
proteger interesses, enquanto o tribunal lhes não confere proteção definitiva. Esta
característica comporta dois corolários: por um lado, a flexibilidade da proteção
cautelar, por outro, o seu regime de caducidade.
No que respeita à flexibilidade da proteção, o artigo 124.º, n.º 1, do CPTA faz oscilar
esta em função da modificação das circunstâncias que a ditaram. Aí se prevê que a
alteração destas circunstâncias possa conduzir à revogação, modificação ou substituição
da decisão que tiver decretado uma providência cautelar – ou que a haja recusado –, por
iniciativa do próprio tribunal ou a requerimento de qualquer dos interessados – ou do
Ministério Público, quando tenha sido este o requerente.
Esta instabilidade da decisão cautelar é perfeitamente compreensível: trata-se, não é
demais repeti-lo, de uma decisão ditada muito mais pelas circunstâncias do que por uma
avaliação sólida e fundada de direitos subjetivos e interesses legítimos. É, por isso
mesmo, muito mais permeável à alteração daquelas.
O regime de caducidade da decisão cautelar, constante do artigo 123.º do CPTA, por
seu lado, resulta da ligação estreita que existe entre a decisão cautelar e o processo
principal. Esta ligação determina a caducidade da decisão cautelar em resultado de
certas vicissitudes do processo principal, geralmente resultantes de omissões do
requerente ou do desfecho daquele processo:
a) A inércia do requerente, alíneas a), b) e c) (parcialmente) e d) do n.º 1 do artigo
123.º do CPTA;
b) A tomada, no processo principal, de decisão desfavorável ao requerente ou a
execução da decisão desse processo favorável a ele – alíneas c) (parcialmente) e f);
c) A extinção do direito ou interesse protegido pela decisão cautelar – alínea e).
292
Nada de mais errado.
No que respeita ao requerente, é conveniente ter bem presente que, no caso de ter
usado de dolo ou negligência grosseira, pode ser obrigado a indemnizar os prejuízos que
tenha causado ao requerido ou aos contra-interessados (cfr. artigo 126.º, n.º 1, do
CPTA).
No que se refere à Administração Pública, o CPTA, no artigo 127.º, determina, por
um lado, que a decisão que decrete uma providência cautelar pode ser objeto de
execução forçada; por outro lado, que, resultando para a administração, da decisão
judicial, a obrigação de adotar ou omitir comportamentos infungíveis – isto é, que não
podem ser adotados por outrem, em substituição da Administração –, o tribunal pode
desencadear imediatamente o mecanismo da sanção pecuniária compulsória, já referido
noutro ponto, contra quem deva agir ou abster-se de tal.
293
CAPÍTULO VII
PROCESSO EXECUTIVO
Leituras aconselhadas:
JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, A Justiça Administrativa (Lições), cit., pp. 337 a
370; MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, Manual de Processo Administrativo, cit., pp. 471 a
499; DORA LUCAS NETO, «O processo executivo nos Tribunais Administrativos», in
Comentários à Revisão do ETAF e do CPTA, 2016, pp. 617 a 637.
386
Importa notar que devem ser consideradas entidades públicas também as entidades que, tendo
natureza jurídica privada, tenham sido demandadas no processo declarativo, por terem atuado – ou terem
omitido uma atuação devida – à luz de prerrogativas de direito público. Também neste sentido, MÁRIO
AROSO DE ALMEIDA, Manual do Processo Administrativo, cit., p. 472; em sentido próximo, JOSÉ CARLOS
VIEIRA DE ANDRADE, A Justiça Administrativa (Lições), cit., p. 368 e RUI MACHETE, «A execução de
sentenças administrativas...», cit., p. 60.
296
Em resultado desta sobreposição, qualquer decisão administrativa que contrarie uma
sentença de um tribunal administrativo é nula (cfr. artigo 158.º, n.º 2). Mas não é esta a
única consequência do desrespeito pela decisão judicial: os prevaricadores incorrem
também em responsabilidade civil, pelos prejuízos que causem, em responsabilidade
penal, decorrente do crime de desobediência, e em responsabilidade disciplinar (cfr.
artigo 159.º).
387
Cfr. LUÍS FILIPE COLAÇO ANTUNES, «O artigo 161.º do Código de Processo nos Tribunais
Administrativos: uma complexa simplificação», in Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 43,
Janeiro/Fevereiro de 2004, p. 21.
388
A expressão transitada em julgado significa que a sentença produz efeitos de caso julgado, isto é,
que já não pode ser modificada por outra decisão judicial. A decisão judicial transitada adquire a força de
uma verdade tendencialmente imutável.
297
158.3. O CPTA regula três formas de execução distintas, tendo a distinção que ver
com o objetivo do exequente, por sua vez dependente do tipo de pedido declarativo que
ele fez valer em tribunal:
a) Na execução para pagamento de quantia certa, a mais simples das três, o
exequente pretende que o tribunal constranja o réu na ação declarativa a pagar o
montante pecuniário em que foi condenado e que não se dispôs a pagar voluntariamente
(cfr. artigos 170.º a 172.º do CPTA);
b) Na execução para prestação de factos ou de coisas, o exequente pretende que o
tribunal force a Administração a adotar uma determinada conduta, que pode consistir na
entrega de uma coisa ou na adoção de outro comportamento, factual ou jurídico,
incluindo a prática de um ato administrativo (cfr. artigos 162.º a 169.º do CPTA);
c) Na execução de sentença de anulação de um ato administrativo, o exequente
pretende que o tribunal obrigue a Administração a extrair de uma sentença de anulação
ou de declaração de nulidade de um ato administrativo todas as suas consequências,
procedendo à reconstituição da situação que existiria se o ato em causa não tivesse sido
praticado (cfr. artigos 173.º a 179.º).
Optámos pelo estudo do processo executivo de uma forma diversa da utilizada
noutros meios processuais, que nos pareceu mais adequada a sublinhar os aspetos mais
importantes da execução das sentenças proferidas pelos tribunais administrativos contra
a Administração Pública.
389
Ou, tratando-se de execução para pagamento de quantia certa, invocando um facto superveniente,
modificativo ou extintivo da obrigação – cfr. artigo 171.º, n.º 1, do CPTA.
298
o executado não cheguem a acordo quanto ao montante da indemnização devida pela
inexecução (cfr. artigo 166.º, n.º 2);
b) Reagir à inércia da Administração por via da adoção das providências
«necessárias para efetivar a execução da sentença» (cfr. artigo 167.º, n.º 1);
c) Declarar a «nulidade dos atos desconformes com a sentença e anular os atos que
mantenham, sem fundamento válido, a situação ilegal» (cfr. artigo 179.º, n.º 2);
d) Proceder à «entrega judicial da coisa devida ou determinar a prestação de facto
devido por outrem, se o facto for fungível» (cfr. artigo 167.º, n.º 5);
e) Fixar um prazo limite para a prestação de facto infungível (cfr. artigo 168.º, n.º 1);
f) Proferir sentença «que produza os efeitos do ato ilegalmente omitido» (cfr. artigo
167.º, n.º 6);
g) Especificar os atos e as operações em que a execução deve consistir (cfr. artigos
168.º, n.º 2, e 179.º, n.º 1);
h) Mandar pagar a quantia em dívida ao exequente pela dotação orçamental inscrita à
ordem do Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais [cfr. artigos 170.º,
n.º 2, alínea b), e 172.º, n.ºs 3 a 8];
i) Decretar a compensação do crédito do exequente com dívidas deste para com a
mesma entidade pública ou o mesmo ministério [cfr. artigos 170.º, n.º 2, alínea a) e
172.º, n.º 2];
j) Aplicar à Administração incumpridora uma sanção pecuniária compulsória, aspeto
a que já nos referimos (cfr. artigos 168.º, n.º 1, 169.º e 179.º, n.º 3).
299
159.4. Um dos problemas mais complexos da execução ocorre quando ela só pode
ser assegurada através do sacrifício de um ato administrativo de cuja prática resultou um
benefício para alguém. Revela-se, no tratamento legal de situações deste tipo, aquele a
que pode chamar-se o princípio da ponderação de interesses de terceiros inocentes.
Imagine-se a situação de um dirigente da Administração Pública afastado das suas
funções por uma sanção disciplinar de demissão que, não se conformando com tal
decisão, a impugna na jurisdição administrativa, pedindo também que a Administração
seja condenada a reinvesti-lo nas suas funções. Suponhamos que o tribunal lhe
reconhece razão e, consequentemente, anula o ato de demissão, condenando a
Administração à prática do ato de readmissão.
Entretanto passaram, na melhor das hipóteses, vários meses. A probabilidade é a de a
Administração, não podendo deixar de assegurar as funções que eram desempenhadas
pelo dirigente demitido, ter nomeado outro para o substituir – uma pessoa “inocente”,
isto é, que nada teve a ver com as razões que determinaram o afastamento do seu
antecessor.
Ao recair sobre a Administração o dever de executar a sentença, coloca-se,
naturalmente, uma questão delicada: que fazer ao atual titular do cargo, que não o seria
não fora o ato anulado pelo tribunal, mas que nenhuma responsabilidade teve na
demissão? Não há uma resposta simples para esta situação de conflito de interesses,
sendo apenas certo e seguro que não podemos ter duas pessoas a exercer o mesmo
cargo.
O CPTA procurou resolver este problema nos n.ºs 3 e 4 do artigo 173.º, fazendo
assentar a solução numa ponderação de interesses:
a) Como regra, o interesse do exequente na reintegração prevalece sobre o interesse
do atual titular do cargo em mantê-lo, tendo este, se desconhecesse, sem culpa, a
precariedade da sua situação, direito a uma indemnização;
b) O interesse do atual titular do cargo, contudo, prevalecerá sobre o interesse do
exequente no caso de os prejuízos que este sofra com o afastamento das funções que
vinha exercendo serem «de difícil ou impossível reparação e for manifesta a
desproporção existente entre o seu interesse na manutenção da situação e o interesse na
execução da sentença anulatória»;
c) Neste último caso, o exequente que vir precludido o seu direito à reintegração em
benefício de quem tenha a seu favor situação constituída por ato administrativo
praticado há mais de um ano «tem direito a ser provido em lugar de categoria igual ou
equivalente àquela em que deveria ser colocado, ou, não sendo isso possível, à primeira
vaga que venha a surgir na categoria correspondente, exercendo transitoriamente
funções fora do quadro até à integração neste».
390
Cfr. Comentário ao Código de Processo nos Tribunais..., cit., p. 1117.
300
a) A reconstituição daquilo a que DIOGO FREITAS DO AMARL chamou situação atual
hipotética, isto é, a situação que se verificaria à data da execução, caso não tivesse sido
praticado o ato invalidado pelo tribunal391;
b) O cumprimento de deveres em que a Administração haja decaído por se considerar
dele dispensada pelo ato invalidado;
c) A eventual substituição do ato invalidado por outro, expurgado das ilegalidades
que o afetavam.
160.2. A regra geral é, naturalmente, a de que quem deve executar é a parte vencida
na ação declarativa, isto é, a entidade pública ou o ministério que foram réus nesta.
O CPTA contém alguns preceitos relativos à determinação daquele que se encontra
sujeito ao cumprimento do dever de executar; sublinhamos três situações:
a) Se se tratou de uma impugnação de ato administrativo, o dever de executar recai
sobre o órgão autor do ato (cfr. artigo 174.º, n.º 1);
b) No caso de tal órgão ter sido extinto, o dever de executar transfere-se para o órgão
administrativo que lhe tenha sucedido ou ao qual tenha sido conferida a competência
(cfr. artigos 162.º, n.º 2 e 174.º, n.º 3);
c) Na execução para prestação de factos ou de coisas, pode ocorrer a substituição do
obrigado a executar, que o não fez espontaneamente, pelo respetivo superior hierárquico
ou pelo órgão que exerce poderes de superintendência sobre o obrigado (cfr. artigo
167.º, n.º 2).
391
Cfr. A execução das sentenças dos tribunais administrativos, 2.ª edição, Coimbra, 1997, p. 41.
301
Já referimos que parece resultar do atual artigo 175.º do CPA o abandono do
princípio geral da autotutela executiva, o qual assume – pelo menos até à aprovação de
legislação especial – natureza excecional392.
Quer isto dizer que, no presente, a Administração só poderá executar coercivamente
atos administrativos em duas diferentes situações:
a) A execução coerciva de obrigações pecuniárias, autorizada pelo n.º 2 do artigo
176.º do CPA – a qual deverá ser feita através do processo jurisdicional de execução
fiscal;
b) Para fazer face a «situações de urgente necessidade pública», coberta pela norma
da parte final do n.º 1 do artigo 176.º.
Esta última configura, em rigor, a única verdadeira exceção à execução jurisdicional
dos atos administrativos393.
Considerando este novo enquadramento da lei procedimental e até que legislação
especial venha a ser aprovada, a execução de atos administrativos – que não sejam
voluntariamente acatados pelos seus destinatários – só poderá ser coercivamente
determinada com a intermediação de um tribunal.
Mais, conforme sublinha DORA LUCAS NETO, «o interessado que beneficie de um ato
administrativo carecido de execução, pode reagir à inércia administrativa em promovê-
la». Nestes casos, exige-se que o ato a executar seja já inimpugnável, por ter decorrido o
decurso do prazo processual de impugnação e/ou o prazo procedimental de anulação ou
revogação administrativa394.
392
Fez-se já referência ao entendimento crítico de PEDRO MACHETE relativamente a este “rompimento”
com uma antiga tradição do direito administrativo português – «Eficácia e execução do ato
administrativo...», cit., p. 43.
393
Cfr., neste sentido, RUI DUARTE ROCHA, «Um novo Paradigma na Execução do Ato
Administrativo... Perhaps oui, perhaps non!» in O Novo Código do Procedimento Administrativo, Braga,
2015, pp. 406 a 408.
394
Cfr. DORA LUCAS NETO, «O processo executivo nos Tribunais Administrativos», in Comentários à
Revisão do ETAF e do CPTA, Lisboa, 2016, pp. 620 e 625-626.
302
CAPÍTULO VIII
RECURSOS
Leituras aconselhadas:
O juiz não tem o dom da infalibilidade: procura decidir o litígio que lhe é submetido
de acordo com o direito, aquilo que ele entende ser o direito. Na maioria da vezes,
provavelmente, a sua decisão é acertada e justa, fazendo justiça, a justiça humana
possível.
Mas não é, evidentemente, de excluir que o juiz – ou os juízes, quando decidem em
tribunal coletivo – se engane, que não tenha visto bem a questão, que não tenha
procedido a uma correta identificação das normas aplicáveis ou a uma adequada
determinação do seu sentido e alcance. Perante esta possibilidade, existem duas
respostas possíveis:
a) Encolher os ombros e conformarmo-nos com a fraqueza própria da natureza
humana, na convicção de que, mesmo as melhores leis que possam conceber-se,
incluindo as processuais, não podem resolver bem 100 por cento dos litígios – já será
satisfatório se resolverem aceitavelmente 80 ou 90 por cento;
b) Criar um mecanismo que possibilite a verificação do acerto da decisão judicial por
parte de outros juízes, com base no pressuposto de que quanto mais elevado for o
número de magistrados encarregados de equacionar a melhor composição do litígio – e
mais rica a respetiva experiência profissional –, maior será a probabilidade de este ser
bem decidido.
303
A segunda opção é, evidentemente, a mais satisfatória, na medida em que aumenta as
probabilidades de uma justiça “justa”, tendendo a aproximar a justiça humana da
perfeição inatingível de uma justiça divina.
Todavia, não é possível esquecer que a justiça tem um preço: o aparelho judiciário é
dispendioso e comporta uma oferta de justiça limitada pelos recursos humanos e
materiais disponíveis. Por esta razão, o sistema judicial combina as duas opções,
fazendo depender a possibilidade de obter uma segunda – e, até, uma terceira –
apreciação do litígio, da importância deste.
Quando se trata de um litígio menor, medido pelo reduzido valor económico dos
interesses envolvidos, a lei considera que a decisão do juiz é insuscetível de
reapreciação: bem ou mal, o conflito está resolvido.
Quando o litígio apresenta maior valor económico ou incide sobre situações que, pela
natureza muito relevante dos interesses em jogo, justifica especial ponderação, o
legislador possibilita uma, ou mais, reapreciações judiciais.
Recurso é precisamente o termo que designa o pedido de reapreciação de uma
decisão judicial dirigido a tribunal distinto daquele que a proferiu.
164. Espécies
165.1. Competência
165.2. Recorribilidade
304
Pode recorrer-se, conforme dispõe o artigo 142.º do CPTA, quando a decisão judicial
esteja numa das seguintes circunstâncias:
a) Tenha, em primeiro grau de jurisdição, conhecido do mérito da causa, esta seja de
valor superior à alçada do tribunal que a produziu e a decisão impugnada seja
desfavorável ao recorrente em valor superior a metade da alçada desse tribunal;
b) Tenha considerado improcedente um pedido de intimação para proteção de
direitos, liberdade e garantias;
c) Diga respeito a matéria sancionatória;
d) Contrarie jurisprudência uniformizada do STA;
e) Ponha termo ao processo sem conhecer do mérito da causa;
f) Qualquer outra situação prevista no Código de Processo Civil.
O recurso de revista, ou seja, o recurso para o STA de decisões proferidas pelos
TCAs em segundo grau de jurisdição, só excecionalmente é admitido, razão pela qual o
triplo grau de jurisdição continua a não se aplicar na jurisdição administrativa (cfr.
artigo 150.º do CPTA).
As razões excecionais que tornam admissível o recurso de revista encontram-se
enunciadas no n.º 1 do artigo 150.º e preenchem duas situações:
• quando o processo envolva a apreciação de uma questão que, «pela sua relevância
jurídica ou social, se revista de importância fundamental»;
• quando a admissão do recurso «seja claramente necessária para uma melhor
aplicação do direito».
165.3. Legitimidade
A regra geral é muito simples: recorre quem perde. A lei, no n.º 1 do artigo 141.º do
CPTA, atribui legitimidade para recorrer de uma decisão jurisdicional à parte
vencida. Tem ainda legitimidade para recorrer o Ministério Público, quando «a decisão
tiver sido proferida com violação de disposições ou princípios constitucionais ou
legais».
A legitimidade passiva pertence, evidentemente, à parte vencedora.
165.4. Oportunidade
395
Efeito devolutivo traduz os casos em que a decisão recorrida, não obstante não transitar em julgado,
produzirá todos os seus efeitos até decisão em contrário do tribunal para que se recorre.
305
No primeiro tipo de situações, a inexistência de efeito suspensivo decorre de uma
imposição legal, contida no n.º 2 do artigo 143.º: os recursos interpostos de intimações
para proteção de direitos, liberdades e garantias, de decisões respeitantes à adoção de
providências cautelares e de decisões proferidas por antecipação do juízo sobre a causa
principal nos termos do artigo 121.º, não têm efeito suspensivo.
Compreende-se facilmente porquê: se o recurso interposto da decisão judicial que
decreta uma providência cautelar tivesse efeito suspensivo, ficaria inutilizada a razão de
ser da tutela cautelar, que é, como se viu noutro ponto, a de proteger rapidamente a
aparência do bom direito e evitar ou minimizar a consumação de prejuízos. Seria como
que retirar com uma das mãos aquilo que se havia dado com a outra.
No segundo tipo de situações, a exclusão do efeito suspensivo não resulta de uma
imposição legal, mas de uma decisão do juiz, habilitado pela lei, a proceder a uma
ponderação de interesses entre as consequências de atribuir efeito suspensivo ao recurso
e as de não lhe atribuir tal efeito (cfr. artigo 143.º, n.ºs 3, 4 e 5, do CPTA).
167.1. Tramitação
167.2. Decisão
306
julgamento deste caiba a todos os juízes que compõem a Secção, com o objetivo de
assegurar a uniformidade da jurisprudência (cfr. artigo 148.º, n.º 1). Pode fazê-lo por
iniciativa própria, a requerimento das partes, ou sob proposta do relator (cfr. artigo
148.º, n.º 2).
307
CAPÍTULO IX
ARBITRAGEM
Leituras aconselhadas:
A) No domínio da legislação anterior à Reforma de 2002
309
particulares e a Administração Pública sobre situações regidas pelo Direito
Administrativo», in Estudos em memória do Conselheiro Artur Maurício, Coimbra,
2014, pp. 683 a 720; MARCO CALDEIRA e TIAGO SERRÃO, «As arbitragens pré-contratuais
no Direito Administrativo português: entre a novidade e o risco de inefectividade», in
Arbitragem e Direito Público, pp. 289 a 329; MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, Manual de
Processo Administrativo, cit., pp. 501 a 525; IDEM, «Apresentação», in Arbitragem e
Direito Público, Lisboa, 2015, pp. 14-15; SUSANA TAVARES DA SILVA, «Alargamento da
jurisdição dos tribunais arbitrais», in Anteprojecto de revisão do Código de Processo
nos Tribunais Administrativos e do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais em
Debate, Lisboa, 2014, pp. 401 a 421; RAUL RELVAS MOREIRA, «A competência dos
tribunais arbitrais administrativos para a decisão de questões prejudiciais», in Lisbon
Law Review, LVII, 2016/1, pp. 169 a 201.
168. Noção
396
Note-se que, no que respeita à arbitragem em matéria administrativa, o artigo 182.º do CPTA
“força” o acordo da parte pública, ao constrangê-la a aceitar a arbitragem sempre que a parte privada a ela
pretenda recorrer. Parece óbvio que o objetivo principal do legislador é “empurrar” para a via arbitral a
composição dos litígios emergentes de determinadas relações jurídico-administrativas.
397
Nas arbitragens em matéria jurídico-administrativa este juiz do Estado encontra-se num Tribunal
Central Administrativo [cfr. artigo 59.º, n.º 1, alínea g), e n.º 2 da Lei de Arbitragem Voluntária, e artigo
185.º-A do CPTA].
310
pública e um particular, cujo objeto constitua matéria regulada pelo direito
administrativo.
Muito embora já então prevalecesse a ideia da admissibilidade do recurso à
arbitragem, designadamente em litígios relativos à interpretação, validade, ou execução
dos contratos administrativos, só na Reforma do Contencioso Administrativo de
1984/1985 essa possibilidade veio a obter reconhecimento expresso do legislador,
através do preceito do n.º 2 do artigo 2.º do ETAF (de 1984), onde podia ler-se: «são
admitidos tribunais arbitrais no domínio do contencioso dos contratos administrativos e
da responsabilidade civil por prejuízos decorrentes de actos de gestão pública, incluindo
o contencioso das acções de regresso».
Em 1986, a Lei n.º 31/86, de 29 de Agosto – Lei da Arbitragem Voluntária –, no n.º
4 do artigo 1.º, viria a habilitar expressamente o Estado e outras pessoas coletivas de
direito público a celebrarem convenções de arbitragem, desde que para tanto fossem
autorizados por lei especial ou elas tivessem por objeto litígios respeitantes a relações
de direito privado.
Partilhámos sempre do entendimento, comum na doutrina, de que «o n.º 2 do artigo
2.º do ETAF constituía um exemplo óbvio das “leis especiais” a que aludia o então em
vigor n.º 4 do artigo 1.º da LAV»398.
O principal obstáculo decorre da indisponibilidade da competência. As competências
são incontestavelmente poderes jurídicos mas não constituem direitos subjetivos. Se
admitirmos que os direitos subjetivos são faculdades jurídicas orientadas para a
realização de um interesse próprio do seu titular, teremos que aceitar que as
competências, apesar de serem poderes jurídicos, não são verdadeiros direitos
subjetivos. Na verdade, elas visam a realização de um interesse que não é próprio do
órgão administrativo, ou seja, um interesse público da coletividade – estadual ou outra –
que instituiu a pessoa coletiva pública a que tal órgão pertence.
Uma vez que as competências são verdadeiros poderes funcionais, o seu exercício
não está confiado ao livre arbítrio do órgão administrativo: a autonomia da vontade –
que permite a qualquer pessoa, em princípio, dispor dos seus direitos – dá lugar ao
respeito pela legalidade, acarretando a indisponibilidade dos poderes funcionais. Na
medida em que a arbitragem pode exigir uma certa “gestão” dos poderes jurídicos dos
órgãos da Administração Pública, sobretudo nos casos em que o tribunal poderá decidir
segundo a equidade ou seguindo uma visão segundo a qual a arbitrabilidade estaria
relacionada com a disponibilidade do objeto do litígio, ela pode ser dificultada pela
indisponibilidade destes poderes.
Esta visão das coisas foi afastada na justa medida em que se conclui que:
a) O critério da disponibilidade do direito não serve para delimitar as fronteiras da
arbitrabilidade;
b) Discricionaridade não se confunde com disponibilidade;
c) Os tribunais arbitrais – à semelhança de quaisquer outros tribunais – não poderão
conhecer do mérito das decisões administrativas – devendo sempre mover-se no campo
da legalidade, sob pena de violação do princípio da separação de poderes.
Assentes nestas três premissas, alcançamos o ponto de partida do legislador do
CPTA de 2015, que veio reconhecer a possibilidade de a maioria do objeto das ações
administrativas poder ser conhecida em árbitros nos termos e para os efeitos do artigo
180.º do CPTA.
398
Cfr. JOSÉ MANUEL SÉRVULO CORREIA, «A arbitragem voluntária no domínio dos contratos
administrativos», in Estudos em Memória do Professor Doutor João de Castro Mendes, Lisboa, 1994, p.
240.
311
170. Âmbito material dos litígios suscetíveis de resolução por via arbitral
399
Não deixa de ser curioso que, relativamente àqueles poucos litígios respeitantes a atos
administrativos em que o recurso à via arbitral é possível, pode haver arbitragem ad hoc, mas não
arbitragem institucional.
400
Cfr. Les solutions alternatives aux litiges entre les autorités administratives et les personnes
privées: conciliation, mediation et arbitrage, Conselho da Europa, 2000, pp. 105-107.
401
Cfr. «A arbitragem voluntária no domínio dos contratos administrativos...», cit., pp. 234-235, nota
10.
402
Cfr. Comentário ao Código de Processo..., cit., p. 1146.
312
• funcionalismo público;
• sistemas públicos de proteção social;
• urbanismo.
Se a abertura à via arbitral em matéria de contratos e de responsabilidade da
administração corresponde a uma tradição portuguesa, não merecendo, por isso,
especial referência, as restantes matérias constituíram novidade.
No que respeita à possibilidade do recurso à arbitragem para resolver questões
relativas a atos administrativos, a lei de 2002 adotou uma formulação claramente
restritiva: somente poderiam ser submetidos a arbitragem litígios relativos a atos legais
não constitutivos de direitos, visto que apenas estes podem ser revogados com
fundamento em inconveniência. Poderemos pensar, quer em atos que concedem
vantagens aos interessados, como os relativos à utilização privativa de bens do domínio
público, pacificamente considerados como precários, quer em atos constitutivos de
encargos ou sujeições, como as sanções disciplinares.
Na referência legislativa a sistemas públicos de proteção social, admitimos estarem
incluídos litígios emergentes, designadamente, das relações jurídicas de segurança
social; por exemplo, o conflito relativo ao alegado direito ao subsídio de desemprego,
que a Administração entende não existir, ou ao seu montante, quando seja
controvertido. Não estamos, porém, seguros de que a arbitragem pudesse funcionar
nestes casos, uma vez que as prestações de segurança social são objeto de direitos
subjetivos públicos, cujas atribuição e liquidação estão apenas dependentes da
verificação de ertos pressupostos precisamente enumerados e descritos na lei.
Já quanto às questões urbanísticas, a previsão da via arbitral surgia adequada: dada a
natureza das relações jurídicas multipolares que caracterizam o direito do urbanismo e a
complexidade técnica e económica de muitos litígios – imagine-se a aplicação de
mecanismos de compensação urbanística – a arbitragem apresenta inúmeras
possibilidades.
170.2. A Reforma de 2015 veio alterar de forma relevante o âmbito das matérias
administrativas que podem ser submetidas a arbitragem. Em particular, podem hoje
estar sujeitos a arbitragem administrativa:
• questões respeitantes a contratos, incluindo a anulação ou declaração de nulidade
de atos administrativos relativos à respetiva execução;
• questões respeitantes a responsabilidade civil extracontratual, incluindo a
efetivação do direito de regresso, ou indemnizações devidas nos termos da lei;
• questões relativas à validade de atos administrativos;
• questões respeitantes a relações jurídicas de emprego público, quando não estejam
em causa direitos indisponíveis e quando não resultem de acidente de trabalho ou de
doença profissional;
• questões relativas à validade de atos administrativos respeitantes à formação de
contratos, conquanto que no programa do procedimento esteja previsto o modo de
constituição do tribunal arbitral e do regime processual a aplicar403.
A alteração mais relevante a este propósito prende-se com a submissão à arbitragem
das questões relacionadas com a validade de atos administrativos.
403
Sobre algumas questões que podem ser suscitadas a propósito desta referência no programa de
procedimento – ou no convite, no caso de ajustes diretos –, cfr. MARCO CALDEIRA e TIAGO SERRÃO, «As
arbitragens pré-contratuais no Direito Administrativo português: entre a novidade e o risco de
inefectividade», in Arbitragem e Direito Público, pp. 289 a 329.
313
Trata-se, quanto a nós, de uma opção do legislador que se adequa à configuração
constitucional dos tribunais arbitrais, enquanto categoria de tribunal, tal como
estabelece o artigo 209.º, n.º 2, da CRP. Todavia, esta abertura à sujeição em árbitros
daquele que é o principal objeto da justiça administrativa – o conhecimento das
questões relacionadas com a validade de atos administrativos – poderá suscitar
diferentes questões práticas de difícil resolução.
Em particular, preocupa-nos a necessidade que haverá de garantir, conforme bem
refere MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, que os árbitros «reúnem as garantias que permitam
esperar deles decisões imbuídas do espírito próprio que deve presidir à fiscalização
jurisdicional da legalidade do exercício de poderes de autoridade da Administração»404.
Considerando os critérios de capacidade técnica que haverá de procurar-se e a
dimensão da comunidade jurídica portuguesa, poderá ser difícil garantir que os árbitros
– que não o sejam em exclusividade – não se apresentem de alguma forma
“contaminados” por algum dos interesses em presença, por força das relações que
possam estabelecer, ou ter estabelecido, com ou contra a entidade pública em litígio.
As alterações de 2015 não se resumem, porém, à arbitrabilidade das questões
relacionadas com a validade dos atos administrativos. Com efeito, existem outros
aspetos que foram agora introduzidos na nossa lei de processo a propósito da arbitragem
e que são relevantes.
São eles:
• a obrigatoriedade de publicidade das decisões arbitrais, depois do seu trânsito em
julgado;
• a obrigatoriedade de, nos litígios sobre questões de legalidade, os árbitros deverem
imperativamente decidir segundo o direito constituído; nesta medida, os árbitros não
poderão pronunciar-se sobre a conveniência ou oportunidade da atuação administrativa,
nem julgar segundo a equidade.
171.2. Dispõe o artigo 182.º que «o interessado que pretenda recorrer à arbitragem no
âmbito dos litígios previstos no artigo 180.º pode exigir da Administração a celebração
de compromisso arbitral, nos termos da lei».
O artigo subsequente determina a suspensão dos prazos «de que dependa a utilização
dos meios processuais próprios da jurisdição administrativa» até ao despacho do
requerimento veiculando a exigência a que se refere o artigo 182.º – despacho esse que,
nos termos do artigo 184.º, deve ser proferido no prazo de trinta dias.
A lei prevê um direito à outorga de compromisso arbitral e esclarece que o
interessado pode exigir à Administração a outorga do compromisso arbitral. A questão
que pode colocar-se é a de saber qual a natureza deste direito. Será mesmo um direito
404
Cfr.«Apresentação», in Arbitragem e Direito Público, Lisboa, 2015, pp. 14-15.
314
subjetivo? Que é que sucede se a Administração recusar a exigência do interessado, ou
nem mesmo lhe responder?
O problema radica na circunstância de a norma legal remeter a formatação jurídica
da exigência do particular para uma lei que não existe. Não existia em 2002 e continua
sem existir agora. E, inexistindo tal lei, também não estão determinados os pressupostos
e as circunstâncias do exercício de tal direito.
Já se defendeu, quando o CPTA de 2002 era ainda apenas um projeto, «que o poder
de exigir a celebração de compromisso arbitral não parece produzir nenhum efeito
jurídico automático na esfera jurídica da entidade pública a quem seja dirigida tal
exigência: muito embora esta tenha a obrigação de celebrar o compromisso arbitral, a lei
não faz recair sobre ela quaisquer consequências da recusa». Por isso se rejeita
qualificar tal poder como um direito potestativo405.
Idêntica é a opinião de MÁRIO AROSO DE ALMEIDA406.
Parece pois que, de momento, o poder de exigir a celebração de compromisso arbitral
que a lei consagra não tem acoplado a si qualquer mecanismo de constrangimento
suscetível de torná-lo eficaz. É uma solução claramente insatisfatória.
A derradeira questão que pode colocar-se a este propósito é a de saber se, em face da
recusa, expressa ou tácita, em celebrar o compromisso arbitral solicitado pelo
interessado, este poderá recorrer à jurisdição administrativa, eventualmente através de
uma ação administrativa, pedindo a condenação da Administração à prática do ato
devido – a outorga do compromisso.
Independentemente de poder discutir-se a admissibilidade teórica de uma tal
possibilidade, a verdade é que ela consubstanciaria um absurdo no plano prático: sendo
necessário recorrer à jurisdição administrativa, o recurso à via arbitral não terá perdido a
sua razão de ser, sendo então preferível confiar a solução do litígio àquela?407
É sabido que, em geral, as decisões arbitrais podem ser tomadas segundo a lei ou
segundo a equidade, sendo que, na falta de autorização específica das partes para
recorrer a esta, a decisão apenas pode fundar-se no direito constituído (cfr. artigo 39.º,
n.º 1, da LAV).
O CPTA não dispõe de preceito similar ao artigo 39.º, n.º 1, da LAV.
Todavia, o recurso à equidade surge interdito nos litígios sobre questões de
legalidade, nos quais os árbitros deverão decidir estritamente segundo o direito
405
Cfr. JOÃO CAUPERS, «A arbitragem na nova justiça administrativa», in Cadernos de Justiça
Administrativa, n.º 34, Julho/Agosto de 2002, p. 66.
406
Cfr. Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, cit., p. 1016.
407
Cfr. JOÃO CAUPERS, «A arbitragem na nova justiça administrativa», cit., p. 66. No mesmo sentido,
MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, Manual de Processo Administrativo, cit., pp. 522. Contra, ROBIN DE
ANDRADE, «Arbitragem e contratos públicos», in Estudos de Contratação Pública, Volume I, Coimbra,
2008, pp. 943 e segs.
315
constituído, não podendo pronunciar-se sobre a conveniência ou oportunidade da
atuação administrativa, nem julgar segundo a equidade (cfr. artigo 185.º, n.º 2).
Entendimento contrário, aliás, estaria ferido de inconstitucionalidade, por força da
violação do princípio da separação de poderes408.
Quer isto dizer ainda que o legislador ocupou-se em esclarecer expressamente que o
recurso à equidade não poderá, em caso algum, servir de fundamento para afastar
imposições legais, sob pena de violação do princípio da legalidade.
408
Veja-se, sobre as matérias em que o tribunal arbitral poderá decidir segundo a equidade, JOSÉ
DUARTE COIMBRA, «O recurso à equidade nas arbitragens de Direito Administrativo», in Arbitragem e
Direito Público, pp. 133 a 193.
316
ÍNDICE
NOTA INTRODUTÓRIA .................................................................................................................................... 5
PRINCIPAIS ABREVIATURAS ......................................................................................................................... 7
PLANO ................................................................................................................................................................. 9
ELEMENTOS DE ESTUDO ............................................................................................................................... 11
INTRODUÇÃO
317
CAPÍTULO II – OS RECURSOS DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA
54. Os recursos humanos ...................................................................................................................................... 99
55. Estatuto constitucional da função pública ...................................................................................................... 101
56. O quadro legal atual ........................................................................................................................................ 101
57. A disciplina na Administração Pública .......................................................................................................... 103
58. Os bens (domínio público) – origens e natureza ............................................................................................ 104
59. Composição do domínio público .................................................................................................................... 105
60. O quadro constitucional .................................................................................................................................. 106
61. O quadro legal ................................................................................................................................................ 106
62. Utilização do domínio público por particulares ............................................................................................. 107
63. Os problemas do domínio público .................................................................................................................. 108
318
CAPÍTULO VII – O PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO
108. Noção ............................................................................................................................................................ 196
109. A codificação das regras do procedimento administrativo – o Código do Procedimento Administrativo .. 197
110. Espécies de procedimentos administrativos ................................................................................................. 203
111. Os sujeitos do procedimento ......................................................................................................................... 203
112. Garantias da imparcialidade ......................................................................................................................... 204
113. A conferência procedimental ........................................................................................................................ 205
114. Os acordos endoprocedimentais ................................................................................................................... 206
CAPÍTULO V – INTIMAÇÕES
147. Intimação para a prestação de informações, consulta de processos ou passagem de certidões .................... 281
148. Intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias ......................................................................... 283
319
158. Aspetos gerais ............................................................................................................................................... 296
159. Princípios do processo executivo ................................................................................................................. 298
160. O dever de executar: em que consiste e sobre quem recai? .......................................................................... 300
161. Pressupostos processuais .............................................................................................................................. 301
162. Execução judicial de atos administrativos .................................................................................................... 301
CAPÍTULO IX – ARBITRAGEM
168. Noção ............................................................................................................................................................ 310
169. Admissibilidade do recurso à arbitragem .................................................................................................... 310
170. Âmbito material dos litígios suscetíveis de resolução por via arbitral ......................................................... 312
171. O compromisso arbitral ................................................................................................................................ 314
172. Constituição e funcionamento do tribunal arbitral ....................................................................................... 315
173. A decisão arbitral .......................................................................................................................................... 315
174. Contencioso da decisão arbitral .................................................................................................................... 316
320