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É comum pensarmos que definir algo que poderão ser submetidos ao processo
como crime é discutir uma lei que crimina- penal, também integram a disputa pela
lize ou descriminalize uma determinada atribuição de sentido. Pensemos, por exem-
conduta. De fato, essa disputa fica mais vi- plo, sobre o debate em torno do foro espe-
sível no âmbito do poder legislativo. É pos- cial (competência para julgar crimes co-
sível identificar movimentos na esfera pú- metidos por funcionários públicos), da
blica que discutem a possibilidade de deixar idade mínima para a imputabilidade pe-
de tratar determinadas questões com a ca- nal, entre vários outros.
tegoria crime e com o aparato conceitual e
Ao observarmos as disputas que
institucional do direito criminal – por
ocorrem na esfera pública ao redor de to-
exemplo, as discussões em torno do aborto
dos esses temas, percebemos que o pro-
e do uso de entorpecentes. Contudo, há de-
cesso legislativo constitui uma etapa de
mandas exatamente no sentido contrário –
formalização – fundamental no Estado de
no sentido da criminalização, como ocorre
Direito –, mas que não esgota, e sequer re-
no caso da homofobia3.
sume este processo de atribuição de senti-
No entanto, a criminalização ou não do. Ademais, mesmo após a conclusão do
de uma determinada conduta constitui tão processo legislativo, com a entrada em vi-
somente um dos componentes da engre- gor de uma determinada norma, é possível
nagem de categorias jurídicas que parti- dizer que as disputas pela atribuição de
cipam do que Álvaro Pires denominou sentido permanecem durante a atuação do
processo de transformação de um fato sistema de justiça – ou de “aplicação” da
qualquer em crime4. Além das normas de lei penal.
comportamento (que criminalizam ou não
Assim, a definição de crime é disputa-
condutas), as normas de sanção e de pro-
da também ao longo do processo penal, um
cesso, bem como uma série de outras nor-
procedimento regulado em lei que se inicia
mas que dizem respeito à seleção dos casos
assim que a notícia de ocorrência de um
fato – que a princípio pode se encaixar em
3.
Referimo -nos ao Projeto de Lei da Câmara dos Deputados
n. 122, de 2006, que criminaliza a homofobia. Foi proposto um tipo penal – é recebida por um dos ato-
e aprovado pela Câmara em 2006 e ainda aguarda votação
res do sistema de justiça criminal. Da lavra-
no Senado. Sobre a utilização do direito penal na luta por
reconhecimento, cite -se um texto de intervenção na esfera tura de um boletim de ocorrência até a sen-
pública, ainda atual: MACHADO, Marta; RODRIGUEZ, José
Rodrigo. Qual a língua da liberdade? Folha de S.Paulo, Ten- tença condenatória irrecorrível5, uma série
dências e Debates, 25 de agosto de 2007.
4.
Para uma descrição do processo de mise en forme penal,
ver PIRES, Álvaro P. Consideraciones preliminares para una 5.
É importante registrar que nem todos os casos que percor-
teoría del crimen como objeto paradojal. Revista Ultima Ra- rem o sistema de justiça criminal têm início com a atuação
tio, ano 1, n. 0, p. 213 -255, 2006. da autoridade policial. Especialmente nos setores em que
de instituições e atores são postos em mo- sitos para que uma determinada conduta
vimento e desenvolvem estratégias de atua- seja considerada crime. Isso envolve re-
ção sob as regras do processo penal. É no construir esses critérios, que estão espa-
âmbito desse debate regulamentado que lhados pelo sistema de justiça – além do
são discutidas e concretizadas as regras de que está descrito na lei, há também a ela-
definição de determinado fato como crime, boração jurisprudencial e doutrinária (teo-
bem como as regras de imputação de res- ria do delito8) –, bem como articular tudo
ponsabilidade a uma pessoa . E, por fim, 6
isso aos elementos do caso concreto.
dá-se a determinação das consequências
Todos os casos envolvem um espaço
jurídicas que podem se seguir a esta opera-
para interpretação e para argumentação
ção de atribuição de responsabilidade, que
em muitos sentidos: se o fato ocorreu ou
denominamos imputação7.
não; se o fato tem todos os elementos e
O juiz – sempre ouvindo as partes e
pode se encaixar na descrição do tipo pe-
os experts, bem como considerando as
nal; se o eventual resultado lesivo decor-
provas – deverá interpretar a lei e os requi-
reu da conduta ou se relaciona causalmen-
te com outro evento; quem agiu e em que
há duplicidade de regulamentação jurídica (penal e admi-
nistrativa), a primeira fase de coletas de dados e informa-
medida; se os pretensos autores eram ca-
ções referentes à violação da norma (penal, inclusive) pode pazes segundo o direito; se agiram ou não
ocorrer em outros órgãos governamentais e ser encami-
nhada diretamente ao Ministério Público. É necessário re- em situação permitida pelo direito (por
gistrar também que nem toda sentença penal condenatória exemplo, em legítima defesa ou estado de
transitada em julgado é definitiva, pois o Código de Proces-
so Penal prevê a possibilidade de revisão dessas decisões necessidade); se nas condições em que
em casos muito específicos (arts. 621 a 631).
6.
No direito penal brasileiro, trata-se, na maior parte dos ca-
agiram poderiam ter feito diferente; e as-
sos, de uma pessoa física. As exceções ficam por conta da sim por diante. A discussão de todas essas
responsabilização penal da pessoa jurídica prevista para os
crimes ambientais. Esta questão foi analisada em profundi- questões está condicionada ao que se con-
dade por uma das autoras deste texto: MACHADO, Marta seguiu provar validamente durante o pro-
(Coord.). Responsabilidade penal das pessoas jurídicas.
Brasília: Secretaria de Assuntos Legislativos do Ministério cesso, ou seja, a um patamar razoável de
da Justiça do Brasil, 2009. v. 18.
7.
Na realidade, o processo de definição e atribuição das con-
certeza de acordo com as normas proces-
sequências jurídicas da imputação de responsabilidade al-
cança uma decisão na sentença. É possível dizer que a
sentença condenatória constitui uma decisão inicial sobre a 8.
No campo da teoria penal, a noção de crime é dada pelo que
sanção. Inicial, porque nosso sistema, norteado pela “pro- se costumou chamar de teoria do delito. A dogmática do
gressão de regime”, exige sucessivas revisões da decisão campo penal se constitui nos países de tradição romano-
sobre a sanção fixada na sentença condenatória. Sobre este -germânica (e especialmente por influência da teoria ale-
processo de gestão da sanção no sistema de justiça, ver: mã) sob a forma de um conjunto de conceitos que, articula-
FERREIRA, Carolina; MACHADO, Maira. Exclusão social dos, permitem que se descrevam as características da
como prestação do sistema de justiça: um retrato da produ- “conduta criminosa”. Diversos autores e escolas se suce-
ção legislativa atenta ao problema carcerário no Brasil. In: deram na definição das categorias do crime, e esse é, como
RODRIGUEZ, J. R. (Org.). Pensar o Brasil: problemas nacio- dissemos, um debate em aberto, sujeito a redefinições pela
nais à luz do direito. São Paulo: Saraiva, 2012. teoria e pelos próprios atores do sistema.
suais estabelecidas – e, é claro, até os pa- puta no decorrer do processo. Nesse caso,
râmetros de razoabilidade podem ser obje- teria praticado um ato típico, antijurídico,
to de discussão9. porém não seria possível afirmar sua cul-
Para que fique mais concreta a com- pabilidade. Enfim, há uma série de ques-
veis de serem consideradas lesões corpo- Ou seja, embora esse processo seja
rais poderiam ser percebidas como em total formalizado, ele não cristaliza, a princípio,
desconexão com as práticas sociais e cultu- a resposta12. A possibilidade de reinterpre-
rais de uma determinada sociedade. E, em tar as normas aplicáveis e mudar a solução
função disso, poderíamos dizer que tanto o está sempre presente13. É por isso que
lutador de MMA como o médico podem apontar um fato como crime ou alguém
exercer suas profissões com alguma segu- como criminoso antes mesmo que este
rança de que não serão acusados de violar processo esteja terminado é um equívoco
uma norma penal. do ponto de vista do sistema jurídico. Além
disso, mesmo diante desse fato (jurídico)
O que fica claro nesses casos é que os
que faz nascer a declaração (jurídica) de
limites dos conceitos jurídicos não são ob-
que um crime aconteceu, não levar em
jetivos. Não são certos, são disputáveis,
consideração a complexidade e a contin-
ainda que dentro de certos limites. A rede
gência dessa declaração seria um sinal de
de conceitos dogmáticos funciona muito
inocência ou de má-fé. Neste ponto, é pre-
mais como o juiz que fixa as regras do jogo
ciso ficar atento a posições que naturali-
(argumentativo) do que como o oráculo
zam a categoria crime e criminoso, levan-
que nos dá respostas (ainda que em al-
do em conta o processo de definição – por
guns casos se queira fazê-la parecer com o
oráculo). Exemplos limítrofes como esses
integrá-la ao processo jurisdicional. Seu texto inaugural e
apenas tornam mais visível o fato de que a de ruptura dentro do campo da dogmática penal alemã é de
1970 e foi traduzido para o português: ROXIN, Claus. Polí-
classificação do problema em termos de
tica criminal e sistema jurídico-penal. Tradução de Luís
teoria do delito envolve uma disputa que Greco. Rio de Janeiro: Renovar, 2002.
12.
Pelo menos a princípio, pois é evidente que determinado
se refere a um determinado acordo social sistema pode chegar a ser mais estático, mas isso é apenas
que foi (provisoriamente) alcançado sobre uma de suas condições contingentes.
13.
Exemplo disso é a recente e controvertida decisão do Tribu-
o que é lícito ou ilícito e sobre o que é cri- nal de Colônia, Alemanha, que ao julgar um processo con-
tra um médico muçulmano entendeu que a circuncisão de
me ou não. O que estamos aqui ressaltan- menores por razões religiosas – prática tradicional tanto
do é que essa disputa está presente não só entre muçulmanos como entre judeus – deve ser conside-
rada crime de lesão corporal, ainda que praticada propria-
no momento em que se discute no âmbito mente por médico e com o consentimento dos pais. Cf.
Beschneidung von Jungen aus religiösen Gründen ist straf-
do processo legislativo criminalizar ou não
bar, publicado no Süddeutsche Zeitung, disponível em:
criminalizar uma conduta, mas também < http://www.sueddeutsche.de /panorama /urteil -des-
landgerichts -koeln -beschneidung -von -jungen -aus-
no curso do processo penal11. religioesen-gruenden-ist-strafbar-1.1393536>. Acesso
em: 19 ago. 2012; e Circumcision ruling condemned by
Germany’s Muslim and Jewish leaders, no The Guardian,
11.
Essa discussão aparece no campo da teoria do direito penal disponível em: <http://www.guardian.co.uk/world/2012/
por intermédio de Claus Roxin, que defende a necessidade jun/27/circumcision -ruling -germany -muslim -jewish>.
de abrir o sistema da teoria do delito à política criminal e Acesso em: 19 ago. 2012.
são, ela não é a única forma de regular – e muitos elementos, o que torna o processo
tampouco a melhor – as situações conside- decisório bastante complexo.
radas problemáticas em uma determinada Internamente, o direito penal cir-
sociedade. E, para concluir este texto, tra- cunscreveu e organizou esse debate no
taremos dos efeitos contraproducentes – que chamamos de teoria do delito. Aqui,
para dizer assim eufemisticamente – da são dados os elementos e as definições do
centralidade da pena de prisão na atualida-
que seja crime, o que simultaneamente
de (item 18.3).
subsidia e justifica o processo de imputa-
ção. A ideia de uma dogmática penal cir-
18.2. A pena previne a violência? cunscrita a um sistema em que se articu-
lam os elementos de definição do delito
Desde sua formação no final do sécu-
surgiu com Liszt no final do século XVIII e
lo XVIII, o direito criminal construiu uma
permanece até hoje na maior parte dos
forma estável e monótona de responder a
países de tradição romano-germânica co-
problemas sociais, por meio da imposição
mo o princípio que organiza o debate teó-
de penas aflitivas (que causam sofrimen-
rico no campo da dogmática penal17.
to). Isso pode ser considerado hoje uma
dessas ideias que se sedimentaram de tal É claro que, a partir desse momento,
maneira ao longo dos séculos até produzir este campo foi movido por um intenso de-
um efeito de naturalização: se chegarmos bate em que distintas teorias e escolas de
à conclusão de que um crime aconteceu, pensamento se sucederam ao longo dos
segue-se naturalmente daí que uma pena séculos. É interessante notar que, por
que consiste em inflição de sofrimento mais acirrado que tenha sido esse debate
será aplicada ao autor dessa conduta. – que envolveu intensos confrontos sobre
os pressupostos filosóficos adotados para
Falamos até agora do processo de
construir o sistema de categorias –, duas
definição de uma conduta como crime.
características permaneceram estáveis.
Isso se dá, como vimos, pela ação de mui-
Primeiro, a sua organização na forma de
tas e sucessivas instituições e pela intera-
um sistema de categorias fixas que com-
ção de diversos atores do sistema políti-
co, do sistema de justiça, eventualmente
do sistema médico, dos cidadãos etc. Vi- 17.
A reconstrução do campo teórico da teoria do delito nesses
termos foi objeto da tese de doutorado MACHADO, Marta
mos também que o debate sobre a ocor- Rodriguez de Assis. Do delito à imputação: a teoria da im-
rência ou não de um crime (e sobre sua putação de Günther Jakobs na dogmática penal contempo-
rânea. Tese de doutorado defendida na Universidade de
autoria) sempre exige a articulação entre São Paulo em julho de 2007.
põem a chamada teoria do delito18, como feitas todas as ressalvas que acabamos de
mencionamos acima. E, em segundo lugar, expor sobre a noção de crime, teremos que
a residual tematização da pena aflitiva. olhar para o que dizem as teorias da pena.
Notamos que as diferentes teorias e esco- Em outras palavras, dado que estamos tra-
las têm em comum o fato de aceitarem tando de um universo limitado de fatos
que, uma vez chegada à conclusão de que sociais – isto é, aqueles cuja definição legal
um dado comportamento apresenta todas envolve algum tipo de lesão a uma vítima,
as características – de acordo com as cate- que foram selecionados pelas instituições
gorias da teoria adotada – do que se pode penais e que no curso do processo de defi-
chamar de crime, seguir-se-á naturalmen- nição alcançaram o estágio final que seria
te uma pena no sentido da inflição de um a sentença penal condenatória transitada
sofrimento. Na realidade, a pena será te- em julgado. Para esses casos, o que dizem
matizada por outro campo dos estudos so-
as justificativas da pena sobre a sua capa-
bre o sistema penal: as teorias da pena19.
cidade de contenção da violência?
Então, se quisermos responder à per-
Essa pergunta nos remete ao conjun-
gunta que está no título deste capítulo a
to de argumentos que nos últimos dois sé-
partir do campo das “ciências penais” 20,
culos foram oferecidos pelas teorias (mo-
dernas) da pena – retribuição, dissuasão,
18.
Os elementos que compõem a definição de crime, seguindo reabilitação e prevenção geral positiva (ou
o sistema da teoria do delito, são os seguintes: ação, tipici-
dade, antijuridicidade e culpabilidade. denunciação). Essas quatro teorias, com
19.
Vemos que dogmática penal (ou as teorias do delito) e teo-
rias da pena tiveram por muito tempo desenvolvimentos que
algumas variações internas, contribuíram
podemos chamar de relativamente independentes. Discutir a e ainda contribuem para justificar a atua-
função da pena não esteve entre as preocupações centrais
dos autores que escreveram sobre teorias dogmáticas do ção do direito penal como mecanismo pre-
delito. Pode-se dizer que esse padrão foi quebrado apenas
recentemente por Roxin (em 1970) e por autores chamados
cípuo de controle e contenção da violência
de funcionalistas, como Günther Jakobs, que introduzem a
pena no sistema de categorias, para guiar sua interpretação.
As consequências dessa separação e os limites da discussão
nos termos dos funcionalistas foi desenvolvida em MACHA- senschaft), composta por três eixos: (i) as ciências dedica-
DO, Marta. Punishment, Guilt and Communication: the pos- das ao estudo causal-empírico do delito e da pena (crimi-
sibility of overcoming the idea of infliction of suffering in the nologia e penologia); (ii) a política criminal no exercício da
theoretical debate. In: DUBÉ, R.; GARCIA, Margarida; MA- tarefa política que se concretiza nas propostas de revisão e
CHADO, Maira. La rationalité pénale moderne: réflexions reforma da legislação penal; (iii) a dogmática como “ciên-
conceptuelles et explorations empiriques. Ottawa: Les Pres- cia sistemática” e “ciência prática”. É interessante notar
ses de l’Université d’Ottawa, 2012. como a organização do campo é ainda hoje persistente. Ver
20.
Referimo -nos aqui à expressão de Liszt. Em 1882, este au- LISZT, F. von. Der Zweckgedanke im Strafrecht. In: Strafre-
tor propôs uma organização do campo teórico da produção chtliche Aufsätze und Vorträge. Utilizaremos a tradução para
do conhecimento sobre direito penal e alocou as dimen- o espanhol de Carlos Pérez del Valle: LISZT, Franz von. La
sões política e empírica do sistema penal no que chamou de idea del fin en el derecho penal. Programa de la Universidad
“ciência global do direito penal” (gesamte Strafrechtswis- de Marburgo, 1882. Granada: Editorial Comares, 1995.
Ainda que tais teorias da pena pare- E “reabilitação não prisional” para aque-
çam se diferenciar bastante entre si – es- las que, reconhecendo os custos e os efei-
pecialmente quanto aos objetivos que se tos contraproducentes que a exclusão do
colocam –, todas elas compartilham uma cidadão do convívio social impõem ao seu
única definição de punição: a pena deve- retorno, ampliaram substancialmente o
rá sempre significar um mal para o impu- rol de sanções disponíveis no direito pe-
tado. A imposição de sofrimento por in- nal para incluir formas de suspensão con-
termédio de uma privação do patrimônio dicional do processo e da pena, prestação
(pena de multa), da liberdade (pena de de serviços à comunidade, advertências,
prisão) ou da vida (pena de morte) cons- mecanismos de mediação, entre outros24.
titui, assim, o elemento central do concei- Mas é interessante observar que a diver-
to de punição. Até mesmo no âmbito das sificação de penas não elimina necessa-
teorias da reabilitação essa concepção de riamente o forte apego à ideia de pena
pena como um mal pode ser encontrada. como um mal. Não é incomum encontrar-
Utilizamos o plural para fazer referência à mos no debate público brasileiro propos-
teoria da reabilitação porque não é possí- tas voltadas a desenhar penas alternati-
vel identificar uma única matriz teórica vas à prisão que maximizem o sofrimento
relevante a este conjunto de ideias. Entre do cidadão que receberá a pena 25.
as várias organizações possíveis, parece-
Ainda que formem o núcleo duro de
-nos mais interessante distingui-las em
um modo muito difundido de pensar a puni-
função do papel que atribuem à institui-
ção em todo o ocidente, essas teorias vêm
ção prisional para a ressocialização do in-
sofrendo uma série de críticas por autores
divíduo. Dessa forma, falamos em “reabili-
tação prisional” para descrever as teorias
que apostaram nos programas e tratamen- 24.
Para um panorama sobre as teorias da reabilitação, espe-
cialmente no que diz respeito às diferenças no tocante à
tos no interior das instituições prisionais. determinação da pena, ver: MACHADO, Maira; PIRES,
Álvaro; FERREIRA, Carolina; SCHAFFA, Pedro. A comple-
xidade do problema e a simplicidade da solução : a questão
va na coletividade. Para citar dois autores importantes nes- das penas mínimas. Brasília: Secretaria de Assuntos Legis-
se debate, ver: HASSEMER, Winfried. Einführung in die lativos do Ministério da Justiça do Brasil, 2009. v. 17.
Grundlagen des Strafrechts. 2. ed. Munique: C.H. Beck, 25.
Um dos exemplos discutidos no Congresso Nacional de
1990 (Tradução para o português: HASSEMER, Winfried. Alternativas Penais (CONEPA), realizado em Campo Gran-
Introdução aos fundamentos do direito penal. Porto Alegre: de em 2011, foi a especificação do tipo de serviço à comu-
Sergio Antonio Fabris, 2005); e JAKOBS, Günther. Strafre- nidade que deveria ser imposto a determinados tipos de
cht, Allgemeiner Teil: die Grundlagen und die Zurechnungs- infração. Para crimes decorrentes de condução perigosa ou
lehre. 2. ed. Berlin: de Gruyter, 1991 (Tradução para o es- sob efeito de álcool, a prestação de serviço à comunidade
panhol: JAKOBS, Günther. Derecho penal parte general: deveria ser realizada nas ambulâncias que socorrem víti-
fundamentos y teoría de la imputación. Tradução de Joa- mas de acidente de trânsito, por exemplo. O fundamento
quin C. Contreras; Jose Luis S. G. De Murillo. 2. ed. cor. desse tipo de proposta é tornar a experiência da sanção a
Madrid: Marcial Pons, 1997). mais negativa possível.
26.
BRAITHWAITE, John; PETIT, Philip. Not just deserts: a re-
publican theory of criminal justice. Oxford: Oxford Univer- gere que “o sistema jurídico como um todo tenha um efeito
sity Press, 1990. p. 3. dissuasório”. DOOB, Anthony; WEBSTER, Cheryl. Senten-
27.
Esses autores enfatizam também que a ausência de correla- ce severity and crime: accepting the null hypothesis. Crime
ção entre severidade da punição e taxas de crimes não su- and Justice 30: 143 -95, 2003, p. 143.
determinada pessoa pela violação de uma Klaus Günther aponta isso justamen-
certa norma penal) da decisão sobre a te chamando atenção para a importância
sanção (definição do tipo e da quantidade sociológica do conceito de responsabilida-
de pena, se for o caso). de, que acaba passando desapercebido
nesse arranjo do sistema jurídico. Aquilo
Para compreender como essa segun-
que fundamenta a culpabilidade – ou seja,
da decisão é tomada, temos novamente
os elementos que permitem dizer que um
que observar a existência de diferentes
crime aconteceu e que determinada pes-
etapas no decorrer de um procedimento
soa é seu autor – justifica a imputação de
do qual participam distintas instituições e
responsabilidade (penal) que se dá na de-
atores. Ao discutir a criação de um crime,
claração da sentença condenatória. É essa
o legislador define também a qual sanção
comunicação da responsabilidade que or-
estará sujeito aquele que for declarado seu ganiza a teia de elementos e interações so-
autor. No Brasil e em vários outros países, ciais e lhe dá um sentido29.
acopla-se à descrição da conduta proibida
Abre-se a partir daí um novo campo
uma pena de prisão – expressa com um
de decisão sobre a resposta estatal que se
mínimo e um máximo de tempo de pri-
segue a essa declaração. Não há nada que
são28. Este esquema sancionatório altamen-
nos obrigue a ligar essa declaração a uma
te naturalizado impõe ao menos dois obs- sanção e muito menos a uma pena aflitiva.
táculos a ampliar e sofisticar o campo de Se isso vem acontecendo há muito tempo,
possibilidades em matéria de penas. trata-se de uma decisão, que pode ser co-
O primeiro deles diz respeito ao vín- locada em questão a qualquer momento.
culo entre a decisão de condenação e a im- Ou seja, é possível discutir e decidir –
posição de uma pena. dando-se novos fundamentos, que não
aqueles que justificaram a responsabiliza-
ção –, conforme o caso que se tem em
28.
A exceção mais radical e recente encontra-se na nova lei de
drogas, que previu pena de advertência para o usuário de mãos, se após a comunicação da imputa-
substância entorpecente (art. 28 da Lei n. 11.340/2006).
ção haverá mais algum tipo de resposta do
Estamos tão acostumados com o fato de que o legislador
define para todo crime uma pena de prisão que a discussão
que se seguiu à promulgação dessa lei foi a de que haveria
ocorrido a descriminalização do uso de entorpecentes – o 29.
GÜNTHER, Klaus. Responsabilidade na sociedade civil. In:
que não é correto afirmar, já que essa conduta continua Novos Estudos 63, 2002, p. 105 -118. Originalmente publi-
sendo crime, continua sujeita ao processo penal, e o que cado em MÜLLER-DOOHM, Stefan (Org.). Das Interesse
mudou foi somente a sanção prevista em lei. Ver, nesse der Vernunft, Frankfurt am Main: Suhrkamp, 2000, p. 465-
sentido, PIRES, Álvaro; CAUCHIE, Jean François. Um caso 485. Publicado em português também em: PÜSCHEL, Fla-
de inovação “acidental” em matéria de penas: a lei brasilei- via; MACHADO, Marta R. A. Teoria da responsabilidade no
ra de drogas. Revista Direito GV 13, v. 7, n. 1, p. 299 -329, Estado Democrático de Direito. Textos de Klaus Günther.
jan./jun. 2011. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 1-26.
sistema jurídico e qual será ela – indeniza- nutenção da sanção prisional na esmaga-
ção, advertência, reparação à vítima, acor- dora maioria dos crimes em vigor na nossa
dos restaurativos, multa, serviço comuni- legislação reforça a ideia de que somente a
tário, prisão etc.30. pena de prisão é capaz de gerir e prevenir
utilização quase exclusiva da sanção pri- Em um cenário como esse, não surpreen-
sional na redação dos tipos penais. O legis- de que os debates públicos sobre todo tipo
máximos aos quais deve se ater a sentença vimento de judicialização da gestão da pena
do juiz, os critérios que deve levar em conta que ocorreu no Brasil, sobretudo a partir da
na definição da sanção e também as circuns- década de 1980. Da mesma maneira, a redu-
tâncias em que pode determinar que a pena ção da margem de decisão do juiz em face
de prisão seja substituída por uma pena al- dos períodos mínimos obrigatórios de per-
ternativa33. Além disso, depois de fixada ini- manência em regime fechado tem limitado o
cialmente a pena, entra em jogo um outro espaço do juiz para individualizar a pena36.
juiz que acompanha o caso durante o cum- Em suma, importa-nos chamar aten-
primento da pena e que também pode tomar ção aqui para a necessidade de refletirmos
uma série de decisões que envolvem a sua e problematizarmos sobre a forma como
gestão34 – por exemplo, progressão de regi- em cada sociedade se decide responder às
me, comutação de tempo de prisão por tra- situações problemáticas sobre as quais se
35
balho, indulto, liberdade condicional etc. . decidiu definir como crime.
Esse arranjo constitui uma das possi- Embora a esmagadora maioria dos
bilidades de construção do processo decisó- sistemas penais esteja ainda girando em
rio sobre a sanção. Ele nem sempre foi assim torno da prisão e da inflição de sofrimento
e não necessariamente chegou a sua melhor – e não vamos por ora nos perguntar por
forma. A divisão de tarefas entre o juiz e o que –, essa é apenas uma, dentre muitas,
administrador público, por exemplo, vem das possíveis estratégias de lidar com o
sendo objeto de intenso debate desde o mo- crime. Essa discussão só vai começar
quando assumirmos a contingência dessa
33.
Enquanto os mínimos e máximos estão previstos nos tipos decisão – isto é, um crime ao qual não está
penais, logo abaixo das normas de comportamento, as de-
associada uma pena de prisão não consti-
mais regras estão previstas na parte geral do código penal,
respectivamente arts. 59 e 44. tui uma anomalia, tampouco pode ser en-
34.
A expressão “gestão da sanção” busca captar a participa-
ção de diferentes atores (defensores, promotores, diretores tendido como impunidade. A partir daí,
de instituições prisionais, grupos técnicos etc.) nas suces- abre-se um leque de soluções – que podem
sivas etapas do processo decisório que se desenvolve a
partir do momento em que uma pena é definida em senten- ser mais criativas e menos deletérias que a
ça judicial. Para um panorama sobre a complexidade desse pena de prisão – para se pensar qual a me-
processo decisório a partir das proposições legislativas
apresentadas entre 1984 e 2011, ver: FERREIRA, Carolina; lhor política pública para lidar com deter-
MACHADO, Maira. Exclusão social como prestação do sis-
tema de justiça: um retrato da produção legislativa atenta
minado problema social.
ao problema carcerário no Brasil. In: RODRIGUEZ, J. R.
(Org.). Pensar o Brasil: problemas nacionais à luz do direi-
to. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 77-105. 36.
Sobre estes dois últimos pontos, ver: FERREIRA, Carolina.
35.
É importante lembrar que a menção às figuras do legislador Legislar sobre a exclusão social: um estudo sobre a ativida-
e do juiz acumula os vários atores que participam da dinâ- de legislativa sobre cumprimento da pena privativa de li-
mica do processo legislativo e do processo jurisdicional, berdade de 1984 a 2011. Dissertação de mestrado em Di-
tal como discutimos no item anterior. reito e Desenvolvimento (Direito GV, 2011).
Não é por acaso que a ideia de impu- aconteceria caso o direito penal deixasse
nidade é sempre retomada quando o que de funcionar por meio da atribuição de uma
internas do direito penal e, com mais ênfa- as experiências em que conflitos – inclusive
se, quando se discute a ampliação e a com- violentos – foram resolvidos sem o direito
plexificação das sanções previstas. Tudo penal não tiveram esse resultado.
18.3. Para concluir: o direito penal é vilegiado: somos o quarto país que mais
capaz de conter sua própria encarcera no mundo, perdendo apenas
violência? para EUA, China e Rússia. Nossa popula-
ção carcerária já ultrapassa meio milhão
Em várias sociedades contemporâ-
de pessoas, na razão de 270 presos a cada
neas, inclusive no Brasil, uma das formas
100 mil habitantes40.
de violência mais aguda a ser contida pelo
direito é aquela produzida pelo próprio di- Mas, para discutirmos a fundo a
reito penal. Essa constatação, a nosso ver, questão carcerária aqui no Brasil, não po-
exige que este texto abarque um conjunto demos deixar de considerar as condições
de problemas que muitas vezes escapa à de vida nas instituições prisionais brasilei-
discussão sobre criminalidade e violência. ras. Isto quer dizer que nossa tarefa envol-
Por violência produzida pelo próprio direi- ve não somente questionar a limitação da
to penal, referimo-nos às implicações so- solução prisional em si mesma, isto é, per-
ciais da centralidade da prisão no sistema guntarmo-nos a respeito dos ganhos so-
39
de justiça . Esta problemática tem recebi- ciais em se sequestrar pessoas e excluí-las
do, nas últimas décadas, enorme atenção do convívio social por longos períodos,
por parte das ciências sociais. Contudo, o mas também as circunstâncias concretas
conhecimento ali produzido tem sido pouco das condições de vida nas instituições pri-
ou nada aproveitado para a reflexão sobre sionais brasileiras. Celas superlotadas, au-
a reforma do sistema de justiça criminal sência de condições mínimas de higiene,
contemporâneo. alimentação inadequada e insuficiente, in-
Considerar essa questão nos parece salubridade do ambiente são algumas das
fundamental em um momento em que a características que aparecem comumente
ênfase a políticas encarceradoras convive em inspeções e pesquisas voltadas a cole-
com o problema, cada vez mais contun- tar informações sobre a situação carcerá-
dente, da superpopulação prisional. Esse
paradoxo pode ser observado em diversos 40.
As informações sobre a população carcerária no Brasil são
países, mas no Brasil ocupa um lugar pri- compiladas e disponibilizadas pelo Infopen – uma base
de dados gerenciada pelo Ministério da Justiça, mas ali-
mentada por cada um dos Estados. O relatório referente a
dezembro de 2011 encontra-se disponível em: <http://por-
39.
Neste texto, associamos “violência produzida pelo direito tal.mj.gov.br/data/Pages/MJD574E9CEITEMIDC37B2AE-
penal” com o problema prisional por considerarmos ser 94C6840068B1624D28407509CPTBRIE.htm> (Acesso em:
este, de longe, o mais urgente no contexto brasileiro. É cla- 6 ago. 2012). Para informações sobre a população prisional
ro que o direito penal produz outras formas de violência, nos demais países, ver: WALMSLEY, R. World prison popula-
como a estigmatização das pessoas submetidas à investi- tion list. 8. ed. King’s College London International Centre for
gação ou à persecução penal, a abertura à exploração mi- Prison Studies, 2009. Disponível em: <http://www.prisonstu-
diática de determinados casos etc. dies.org/info/downloads/wppl8th_41.pdf>.
ria no país41. Essas limitações estruturais e aos seus aplicadores, que continuam se
somam-se ainda à precariedade dos pro- utilizando cada vez mais da prisão como so-
gramas de saúde, trabalho e educação no lução, como se essa questão não existisse
interior das instituições prisionais. ou não fosse de sua alçada.
Esta forma sistemática de violência Em poucas palavras, o direito repro-
produzida pelo sistema penal vem sendo in- duz suas estruturas – várias delas concebi-
tensamente pesquisada e discutida pelas das para lidar com a conflituosidade social
ciências sociais, mas parece não integrar o e as instituições jurídicas do século XVIII
quadro de preocupações dos juristas com- – sem atentar para as descobertas das ciên-
prometidos com a reforma do direito penal. cias sociais e essas, por sua vez, dificil-
Para utilizar os termos de Margarida Garcia mente arriscam-se a entender e integrar,
(2011), ciências sociais e direito encontram- em suas análises, a contribuição do pró-
-se aqui em um “diálogo sem troca”. De um prio direito para esse estado de coisas. Por
lado, não encontramos com frequência pes- via de consequência, também não são ca-
quisas desenvolvidas no campo da sociolo-
pazes de apontar possíveis intervenções
gia do direito que levem em conta as estru-
dentro do campo do direito que poderiam
turas internas do direito penal – tanto no
impactar neste diagnóstico.
plano normativo quanto no dogmático –
Diante desse conjunto de questões –
para compreender e explicar o problema
prisional. De outro lado, no campo jurídico, que são apenas algumas da gama de outras
é possível dizer que este problema é ampla- questões que envolvem o funcionamento do
mente ignorado – quando é reconhecido, sistema penal e que tiveram que ficar fora
costuma ser mais atribuído à política que deste texto –, é que nos parece importante,
ao próprio direito; e frequentemente ao po- em um texto escrito para um manual de so-
der executivo, que não resolve o problema ciologia jurídica, chamar atenção para o
do déficit de vagas nas prisões, e não à lei fato de não ser possível discutir direito pe-
nal e pena hoje em dia sem olhar para as
41.
Sobre as violações de direitos humanos em ambiente pri-
implicações concretas do funcionamento
sional, ver Relatório dos Direitos Humanos das Pessoas Pri- do sistema de justiça criminal – quem está
vadas de Liberdade nas Américas, publicado em dezembro
de 2011 pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos preso e sob quais condições – sob pena de
da OEA. As decisões do Tribunal de Justiça de São Paulo nas
aumentar a violência e agudizar processos
ações civis públicas versando sobre superpopulação carce-
rária corroboram este quadro. Resultados parciais de pes- de exclusão social. E, de outro lado, parece-
quisa neste sentido estão descritos em: MACHADO, Maira.
Superpopulação prisional e desenvolvimento sustentável. -nos inócuo observar esta realidade sem
In: OLIVEIRA, Carina; SAMPAIO, Romulo (Org.). Instru- olhar para a operação do sistema do direito
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