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São Paulo - SP
2023
Toda imagem de ser humano é ideologia, exceto a negativa
Theodor W. Adorno
Os índios não têm que estar presos às imagens que os brancos construíram para os índios
Denilson Baniwa
Introdução
Em 2018, na 33ª Bienal de Artes de São Paulo, Denilson Baniwa 1 fez uma
performance artística gravada em que, após circular pelo espaço reservado para as
amostras artísticas, comprou uma obra da autora Susie Hodge chamada “Breve História
da Arte” e logo após retornar a sua posição original, proferiu um discurso de
aproximadamente 4 minutos que confrontava e questionava a própria institucionalização
da arte indígena, rasgando paginas do livro recentemente adquirido e denunciando tanto
a ausência de obras indígenas no exemplar quanto a noção imprópria do indígena como
algo do passado, perdido no tempo:
Breve história da arte. Tão breve, mas tão breve, que não vejo a arte indígena. Tão
breve que não tem indígena nessa história da arte. Mas eu vejo índios nas referências,
vejo índios e suas culturas roubadas. Breve história da arte. Roubo. Roubo. Roubo.
[...] Os índios não pertencem só ao passado. [...] Estamos livres, livres, livres. Apesar
do roubo, da violência e da história da arte. Chega de ter branco pegando arte
indígena e transformando em simulacros! (BANIWA, 2018)
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Aspectos esses que poderiam em certa medida exprimir uma não-identidade entre
o indígena segundo a ótica colonial – que certamente ainda permeia a realidade
contemporânea – e sua presença objetiva no Brasil neoliberal. Em última instância,
estamos vendo os indígenas enfrentarem a própria ideologia de uma sociedade danificada,
com modos de subjetivação que produzem indivíduos alienados. Tal aspecto pode ser
visto claramente na performance da personagem “Pajé-Onça”, em que o agente da cultura
consumida acaba por parecer um transgressor ao invés de autor.
O filósofo Theodor W. Adorno foi um dos pioneiros de sua época nas emergentes
releituras de Hegel e sua dialética, delineando um percurso entre outros que foram objeto
de intenso debate por todo o século XX, tanto na estética quanto na política. Tendo
inclusive pontos de encontro com muitos outros pensadores pós-modernos como Lacan,
Žižek e Safatle entre muitos outros. A razão para essa exposição se deve principalmente
aos materiais dados em três de suas principais obras: Dialética Negativa, Três estudos
sobre Hegel e Introdução à Dialética, em que se entra em detalhes a específica releitura
que Adorno sujeitou Hegel à. A saber, Hegel foi um pensador influente que moldou direta
e indiretamente o pensamento de muitas das tendências intelectuais futuras, e entre elas,
principalmente o marxismo e a teoria crítica. Seu sistema filosófico de conceitos,
entretanto, foi sujeito à uma série de justas críticas que demonstravam não só as
incongruências entre o Idealismo Alemão e o capitalismo desenvolvido, mas também os
tons ideológicos de sua arquitetura teórica no novo pano de fundo social do século XX.
Adorno lembra que falar em totalidade no interior de uma situação, como aquele em
que Hegel viveu, na qual o Estado nacional era um ganho de racionalidade e de
direito em relação ao arbítrio dos interesses locais, era muito diferente de falar em
totalidade em uma época, como a nossa, de afirmação global da falsa universalidade
do Capital. (SAFATLE, 2013)
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Isto é, o modo de pensar dialético, que executa uma Suprassunção [Aufhebung] a partir
de uma negação determinada sob a égide de uma totalidade objetiva da realidade social,
coloca em questão se as próprias categorias dialéticas não deveriam ser dialetizadas para
escapar de um momento ideológico. Detalhando mais essa questão levantada primeiro
por Adorno e futuramente por muitos outros autores, se foi desenvolvido uma crítica de
que a interpretação da dialética hegeliana – assim como a marxiana – como um mero
processo e método lógico que afirma algo em vigência de uma totalidade, usando a
negação determinada para estruturar um objeto e seu conceito de acordo com a história,
é uma hipostasia do processo de subsunção, que engendra uma figura ideológica.
Ideológica pois a figura total da história só pode ser pensada a partir da própria
superestrutura em que o sujeito está situado, isto é, ser produz uma interpretação absoluta
que sobrepõe um conceito no objeto, de tal maneira que se consome toda particularidade
que o colocaria em contradição interna em primeiro lugar. Aqui se vê uma manifestação
do princípio da identidade como problemático, algo emblemático da razão instrumental
que consome e domina ao invés de propriamente apreender seu objeto.
[...] o conceito só existe como coisificação, uma vez que não pode ser arrancado da
totalidade e nem ela reduzida a conceitos. A identidade se torna “a forma originária
da ideologia (...) transforma-se na instância de uma doutrina da adaptação na qual o
objeto pelo qual o sujeito tem de se orientar paga de volta a esse sujeito aquilo que
ele lhe infringiu” [...] Os elementos da dialética negativa se constituem num “meio-
termo” entre a realidade da vida danificada2 e os aspectos críticos para desbaratá-la.
Eles passam a ser nossos condutores para a análise da colonialidade. (ZWICK, 2015)
homens teriam tido numa determinada situação da sua vida, se tivessem sido capazes de compreender
perfeitamente essa situação e os interesses dela decorrentes, tanto em relação à ação imediata, quanto
em relação à estrutura de toda sociedade conforme esses interesses” (LUKÁCS, Gyorg. História e
consciência de classe, São Paulo: WMF Martins Fontes - POD, 2018)
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todo objeto independente de seu conteúdo –, e, assim, nessa descentralização o primado
da crítica imanente transforma a simples negação em uma finitude que antagoniza o
pensamento totalizante e autoritário que domina o Outro. Vemos aqui a manifestação de
uma dialética dos periféricos, que dá palco aos ‘resquícios’ abandonados que não foram
reconhecidos pela lógica impiedosa do Estado e lei do Capital homogeneizador.
O nome dialética diz de início nada mais senão que os objetos não se esgotam em
seu conceito, que eles entram em contradição com a norma convencional da
adequatio. A contradição [...] é índice da inverdade da identidade, do esgotamento
do conceituado no conceito. No entanto, a ilusão da identidade é imanente ao próprio
pensamento segundo sua forma pura. Pensar significa identificar. [...] Para a
consciência do caráter ilusório da totalidade conceitual resta apenas romper de
maneira imanente a ilusão da identidade total. [...] A dialética é a consciência
consequente da não-identidade. (ADORNO, 2009)
Assim, a totalidade não pode ser definida aqui como o que permite a compreensão
semântica de todos os elementos que ela subsume [...], mas como a perspectiva que
permite a compreensão sintática do movimento de reabsorção contínua do que
inicialmente apareceu como indeterminado e contingente. Pois há, no interior mesmo
da ontologia hegeliana, um risco de indeterminação que sempre devemos
inicialmente presumir para poder após conjurar. (SAFATLE, 2013)
3
Isso se torna claro quando Zwick (2015) remonta Adorno no cenário histórico do Brasil em colocações
como: “Adorno afirma o “caráter manipulador” como elemento típico da personalidade
autoritária, que se resume numa consciência coisificada, por princípio incapaz de qualquer
experiência.”
4
“Se a História progride é para olhar para trás; se é progressão de uma linha de sentido é por
retrospecção [...] a ‘Necessidade-Providência’ hegeliana é tão pouco autoritária que mais parece
aprender, com o curso do mundo, o que eram os seus desígnios” (LEBRUN, Gérard. O avesso da dialética,
São Paulo: Companhia das Letras, 1988, p. 34-6)
5
SAFATLE, Vladimir. Os deslocamentos da dialética: Introdução à edição brasileira de “Três estudos sobre
Hegel”, São Paulo: Unesp, 2013
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HEGEL, G.W.F. Fenomenologia do Espírito, Petrópolis: Vozes, 2014
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e percebido; é essencialmente o retorno a partir do ser-Outro”7. Safatle destrincha esses
trechos a partir de uma leitura adorniana, tendo como análise que:
O que é indicado aqui como oportunidade – porém sempre se deve relembras das
dificuldades inerentes à essa tarefa –, é a capacidade da arte – em um movimento dialético
– se apresentar não mais como sintética e completada por unidade, assim manifestando
em seu fenômeno as contradições da arte massificada, que em sua maior sofisticação
burguesa são apontadas por Adorno como o produto sintomático de uma dessemelhança
entre existência e mundo.
7
Idem
8
A escolha da transcrição da palavra com todas as letras minúsculas foi intencional, de modo a não
confundir o uso de Adorno do eu freudiano (Ich, Über-Ich e Es) e o Eu hegeliano (Self).
6
impulsionar cegamente sua autoalienação até a imagem ilusória da igualdade entre
o que são para si e o que são em si. (ADORNO, 2015)
Com uma dialética negativa, se revela uma realidade que dá ênfase às minucias e
particularidades do objeto que são frequentemente dispensadas pela consciência
coisificada tão contemporânea. A articulação crítica dessa realidade oferece uma leitura
capaz de ser anti-ideológica em tempos que a próprio discurso e conhecimento estão
suscetíveis para a reprodução e perpetuação de um status quo brutal.
Adorno nos aponta que dessa tendência a cristalizar sínteses, numa imitação mediada
com o conceito, deriva aquilo que se quer em última instância promulgar como
verdadeiro. Mas esse todo pode tornar irreconhecível a realidade concreta, pois é
falso. (ZWICK, 2015)
A dialética não é um método, uma visão de mundo ou uma apresentação das regras
do pensamento, ela pretende ir às coisas, ela só pode acontecer nos objetos, e não à
parte, pois se crê subsumida às regras que lhe são impostas por cada um deles, o que
de resto explica as imensas dificuldades, senão a impossibilidade, de se formalizar a
9
MARX, Karl. Livro 1, O Capital, São Paulo: Boitempo, 2023
7
dialética à maneira da lógica tradicional, uma vez que ela não pode ser subtraída por
completo de todo conteúdo. A dialética não pressupõe, de início, uma identidade
entre o Ser e o Pensar. No interior da dialética, a relação Ser-Pensar só pode existir
como mediação, o que significa que ela é um resultado, não uma identidade posta de
início. (HUSSNE, 2021)
Já foi aludido inúmeras vezes nesse texto o caráter, cultural e simbólico, das
subjetividades no capitalismo, entretanto, também se referenciou implicitamente como a
constelação dada aqui deve necessariamente ser entendida por uma metodologia negativa,
que dê sentido próprio às periferias do saber. A saber, é imprescindível considerar como
ponto de análise a presença dominadora do pensamento colonial no Brasil
contemporâneo, algo que por vezes tende a ser mal compreendido por uma leitura
dialética vulgar.
Parte da leitura da arte indígena que traz em seu bojo essa potencialidade negativa
deve dar um devido valor à história de dominação colonial. É um período tão marcante
na construção ideológica do que é o Brasil, assim como o que configurou muito de seu
crescimento econômico e político, e ambos ainda persistem tanto na gestão política do
país quanto na percepção dos indivíduos socializados da atualidade. Ainda mais, se deve
entender como essa trajetória de dominação europeia sempre trouxe em si mitos e
justificativas ideológicas, que dentro de todo século com diferentes modalidades,
naturalizou a ainda persistente lógica colonial. Lógica esta que construiu todo espaço
simbólico de expressão cultural do que é o Brasil, assim como criou específicas
gramáticas de reconhecimento do Outro, que além de influenciarem a administração
política contemporânea, pautam muita da falsa consciência frequente no meio artístico.
Como foi bem colocado por muitos autores, entre eles mais notadamente a
Marilena Chauí, o Brasil é uma nação construída por mitos fundadores que dão para nós
uma identidade do brasileiro. Isso é tão perceptível que nossa própria origem colonial não
escapa desse caráter ideológico:
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Só podemos entender a envergadura desses mitos na dimensão estético ao
apreender os efeitos do colonialismo e modernismo que, continuamente, participaram na
transformação do Brasil colonial para o Estado capitalista de hoje, porém, com as mesmas
feridas ainda não cicatrizadas, ou seja, semiformado e danificado. O próprio país é uma
síntese artificial, utiliza o mito da modernidade – que seria a racionalidade europeia, isto
é, a razão instrumental do esclarecimento – para adquirir identidade, ser reconhecido
como idêntico a si mesmo, assim como fechado em unidade, completo e capaz de ser
afirmado como “ordem” e “progresso”. Simultaneamente se reproduz suas cicatrizes
coloniais e sua totalidade falsa, e assim, sua formação não integral é naturalizada e
encoberta por uma ideologia; nas palavras de Adorno “a ideologia impele cada vez mais
o pensamento a ser positivo”10. Nesse ato, sua violência é censurada e não expressa, é um
mito na medida que esconde sua não-identidade sobre uma lógica falsa.
Se lembrar que esse povo ainda existe, ainda luta por sua agência política, ainda
persiste em viver nos mesmos territórios conquistados, é impossível enquanto houver a
presença daquela mesma ideologia que absorve falsamente para si o que é sua contradição
imanente. Será, com efeito, incapaz de raciocinar sobre a inexistência de uma identidade
brasileira universal e sintética, pois está danificado com a razão irracional, a ausência de
um estatuto crítico e reflexivo difuso largamente no seu saber e cultura é sinal que a
colonialidade ainda persiste. Ao contrário, o neoliberalismo “humanista” e “inclusivo” é
nada mais senão o mais brutal silenciamento da violência implícita em cada afirmação do
que o Brasil é e foi: “Dos tempos de outrora, quando a dominação foi violenta, até sua
10
ADORNO, Theodor W. Dialética Negativa, Rio de Janeiro: Zahar, 2009.
9
reconfiguração sobre as bases simbólicas da sutileza, seus efeitos não deixaram de se
abater menos sobre o país”11.
Considerações finais
11
ZWICK, Elisa. Introdução à Crítica Dialética Negativa da Gestão Pública Brasileira: a Constelação
Colonialidade em suas Bases da Recusa do Não Idêntico, Belo Horizonte: XXXIX Encontro da ANPAD,
2015.
12
ADORNO, Theodor W. Dialética Negativa, Rio de Janeiro: Zahar, 2009.
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Para ver uma relação mais clara, basta se lembrar da dialética do senhor e do servo desenvolvida por
Hegel. De maneira análoga, o cenário histórico-social, embora expresso através de dor, é
inevitavelmente impulsionado pela negatividade. Adorno, mesmo criticando Hegel, reconheceu a
negatividade, não-identidade e mimesis como categorias fundamentais para o delineamento de um
novo modelo crítico sob o capitalismo, assim como sua potencialidade formadora de horizontes de
transformação social.
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A autora aborda as relações sujeito-objeto e suas possíveis inversões no âmbito da arte e política. Para
saber mais, consulte: KILOMBA, Grada. Memórias da plantação Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.
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O propósito e missão central da arte indígena deve ser o mesmo da dialética
negativa: ser antissistema; ser anti-ideológica; e por fim demonstrar determinação sob a
égide da negação da identidade.
Uma tal semiformação inautêntica [...] diz da acriticidade de uma consciência que
herda e passa a enxergar somente o caráter instrumental da eficácia da técnica, mas
ignora as determinações históricas e contraditórias que a fundam e determinam,
reforçando a subalternidade. É uma relação dialética de recepção e reprodução da
dominação. Na análise da política e da estruturação administrativa no Brasil, os
elementos do colonialismo e da colonialidade perfilam o extenso processo histórico
que impõe, material e simbolicamente, a recusa do não idêntico. [...] A tarefa de uma
crítica dialética negativa é denunciar a atrofia dessa realidade ou vida danificada.
Não a de lhe projetar correções morais ou utópicas preconcebidas, mas apostar que
a negação do que é negado em sua potencialidade positiva é a tarefa aberta e
verdadeiramente crítica que a dialética tem a cumprir. (ZWICK, 2015)
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ADORNO, Theodor W. Ensaios sobre psicologia social e psicanálise, São Paulo: Unesp, 2015.
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REFERÊNCIAS
______. Ensaios sobre psicologia social e psicanálise, São Paulo: Unesp, 2015.
LEBRUN, Gérard. O avesso da dialética, São Paulo: Companhia das Letras, 1988.
LUKÁCS, Gyorg. História e consciência de classe, São Paulo: WMF Martins Fontes -
POD, 2018.
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