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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA MARIA

CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS


LICENCIATURA PLENA EM CIÊNCIAS SOCIAIS

Daltro Campanher

RESENHA CRÍTICA DA OBRA “A IDENTIDADE CULTURAL


NA PÓS-MODERNIDADE”, DE STUART HALL

Santa Maria, RS
2019
Introdução

Com o intuito de analisar, contextualizar e promover uma reflexão crítica, será


elucubrado o presente trabalho sobre a obra A Identidade Cultural na Pós-
Modernidade, do proeminente sociólogo jamaicano Stuart Hall. Com sua primeira
edição publicada em 1992, o texto até hoje é de vasto alcance nas ciências sociais.
Hall é reconhecido como um “gigante intelectual da contemporaneidade”, tendo feito
sua carreira acadêmica na Universidade de Birmingham até o final dos anos setenta
(posteriormente, permaneceu lecionando na The Open University até o fim de sua
carreira, no Reino Unido), sendo de grande importância para o ramo dos Estudos
Culturais britânicos, fato esse que o levou a ser, inclusive, líder da Associação
Britânica de Sociologia entre os anos de 1995 e 1997. A edição da obra a ser usada na
presente análise, enquanto referência, foi publicada em 2006, tendo sido traduzida por
Tomaz Tadeu da Silva e Guaracira Lopes Louro, editada pela DP&A, do Rio d
Janeiro.

2. A crise de identidade e o processo de descentramento do sujeito em Hall

Destarte, logo ao início de sua obra, o jamaicano Stuart Hall fala de uma
“crise de identidade”, a questionando. Diversos são os questionamentos feitos, e esses
- é possível estabelecer - constituem uma espécie de raison d’être de diversas
discussões centrais da obra: “Que pretendemos dizer com "crise de identidade"? Que
acontecimentos recentes nas sociedades modernas precipitaram essa crise? Que
formas ela toma? Quais são suas consequências potenciais?” (HALL, 2006, p. 7).
Posteriormente, Hall salienta o caráter muito mais analítico que descritivo de sua
teorização, e não hesita em tomar como posição pessoal a possibilidade do sujeito
pós-moderno que, conforme posta, está entrelaçado à uma concepção de
multiplicidade das identidades em um único sujeito, visando uma superação total do
dualismo cartesiano, das concepções iluministas de sujeito, que não teriam sido de tal
modo superadas mesmo com o advento da sociologia (Ibid., p. 33). Esse é um
posicionamento que se alinha com a cunhada “pós-modernidade”, que não por acaso
se faz presente no título da obra referenciada. Não apenas o essencialismo da
identidade, do sujeito, são questionados, mas também a própria singularidade, a
unidade desses entes (Ibid., p. 7-23).

Recorrendo a Mercer, Hall, em concordância, atesta que “a identidade


somente se torna uma questão quando está em crise” (MERCER, 1990, p. 43 apud
HALL, op. cit., p. 9). Tal tese posta em xeque a figura de uma concepção de sujeito
que é inabalada. O sujeito é englobado dentro de um movimento dialético que é
imparável e contínuo no contexto da modernidade tardia, com o advento do
capitalismo e o crescimento potencial da divisão do trabalho pelo mundo, fortificando
um processo de transformações irreversíveis a partir do fim do séc. XIX (Ibid., p. 7-
23).

Ao que se segue, após essa breve introdução a qual fora acá referenciada,
segue-se à enumeração de três diferentes concepções de identidade ou sujeito as quais
foram sendo construídas de acordo com o contexto histórico próprio de cada qual
dessas: a do sujeito do Iluminismo, a do sujeito sociológico e a do sujeito pós-
moderno.

A primeira dessas construções, a qual remete principalmente ao período do


século XVII ao XVIII, do Iluminismo, às descobertas filosóficas que embasaram a
criação das ciências e tiveram como uma das características o antropocentrismo.
Nessa perspectiva, o homem é tomado como centro das discussões e perspectivas
mais teocentradas, que privilegiavam um certo determinismo e davam força à religião
foram perdendo força. O sujeito que é tomado como centro é visto de forma também
essencialista, autocentrada, tendo uma identidade imutável, um vínculo de si para
consigo mesmo que não é transmutável no decorrer da vida, e acaba por ser
mantenedor de sua identificação (loc. cit.).

O próprio autor reforça que tal asserção de que o sujeito fora, certa vez,
“unificado” para posteriormente ser “descentrado”, de acordo com as passagens entre
as diversas conceituações de sujeito, não passa de mera simplificação que possibilita a
explicação e maior facilidade em prol da compreensão de que as concepções de
sujeito e identidade podem variar conforme o tempo; o que faz com que não seja
impossível o vislumbre de um total desmembramento ou “morte” da identidade (Ibid.,
p. 23-25).

A partir do momento em que Descartes atesta seu duradouro dubito, ergo


cogito, ergo sum (“duvido, logo penso, logo existo”), estabelece um dualismo entre
mente e matéria, entre substância pensante e substância espacial. (Ibid., p. 26-27)
Essa concepção desloca o indivíduo da materialidade a qual se insere, o “isolando” do
mundo sensível. Locke complementa a visão iluminista de sujeito ao atestar que ele é
quem é por sofrer as consequências de sua prática, tornando o indivíduo “soberano”,
atrelando a identidade como contínua, única e fixa para cada sujeito (Ibid., p. 27-28).
Com aporte de Williams, Hall atesta que há uma relação entre o surgimento de tais
concepções modernas de indivíduo e o deliberado “colapso da ordem social,
econômica e religiosa medieval”, agora abalada por um movimento que dá maior
ênfase à “existência pessoal do homem” (WILLIAMS, 1976, p. 135-136 apud HALL,
op. cit., p. 29).

Já a perspectiva do sujeito sociológico remete, principalmente, à construção


do self realizada pelo interacionismo simbólico, o qual coloca a necessidade de se
observar não uma essência inata para a compreensão da identidade do sujeito, mas
principalmente a sua experiência, a sucessão dialética constante de construções de
auto-imagem que é inerente à sua condição de ser humano. A identidade preenche o
vácuo do sujeito entre seu mundo pessoal e seu mundo público, sendo constituída da
relação de um “eu real” com as suas relações para com quem lhe é próximo. São as
interações sociais, o processo de socialização que permite a apreensão de símbolos
significativos que passam a construir a identidade do sujeito, ocorrendo assim um
afastamento de noções metafísicas as quais colocariam a identidade do sujeito como
imanente a ele mesmo.

Tal perspectiva se dá apenas com a cristalização do processo iniciado com a


modernidade, tornando-se agora em modernidade tardia. O empreendedor individual
que era ator em “A Riqueza das Nações”, agora é uma corporação com diversos
empregados. Há maior cooperação, diria Durkheim, maior solidariedade orgânica.
Essa emergência de uma concepção mais “social” que individual, postou o indivíduo
agora dentro das instituições, das suas interações e relações sociais. O dualismo
novamente aparece separando o “cogito” - reservado agora à psicologia – do “ergo
sum” - que agora tem sua tese racionalista questionada amplamente pela sociologia.
Entretanto, ao mesmo tempo, para além dessa tendência, em diversos momentos
desse período há indícios de um descentramento da identidade, vide as diversas
ocasioões em que o indivíduo fora, por assim dizer, “colocado na parede” contra a
multidão, contra a replicação cada vez mais usual do blasé, tornando-o um sujeito
“isolado”. Não obstante, mesmo a concepção do sujeito sociológico era acusada de ter
resquícios de cartesianismo justamente por considerar o indivíduo e a sociedade
enquanto entes distintos em uma relação (Ibid., p. 30-33).

Ao final do primeiro capítulo, a fim de ofertar ao leitor uma aproximação


menos abstrata de sua teorização, Hall cita o caso de um juiz negro com
posicionamentos conservadores na política, aliado de Bush nos EUA, que fora
acusado de abuso por uma mulher negra. Diversas questões de interseccionalidade
fizeram-o ser lido de diversas formas dependendo do ponto de perspectiva do
observante, o que viria a ser para o autor um reflexo da multiplicidade de identidades
do sujeito (Ibid., p. 15-23).

Mas afinal, o que teria causado o descentramento final do sujeito unificado


cartesiano, racional e lógico, dotado de características que o tornavam essencialmente
humanos? Hall cita cinco grandes avanços teóricos nas ciências sociais que teriam
proporcionado essa “virada” na conceituação do sujeito, da identidade (Ibid., p. 34):

1. A possibilidade do indivíduo enquanto ator histórico


O primeiro desses avanços teria sua origem na tradição marxista das ciências
sociais, a qual, no decorrer do desenvolvimento e das reinterpretações da frase
“os homens fazem a história, mas apenas sob as condições que lhes são
dadas”, chegou à conclusão de que há, no marxismo, um deslocamento de
qualquer noção de agência individual, tornando o indivíduo totalmente
dependente da ação alheia a fim de se postar socialmente. Althusser e outros
estruturalistas marxistas compartilham de tal visão. Para ele, Marx deslocou a
proposição de que há uma essência universal do homem (Ibid., p. 36).

2. O “inconsciente” de Freud
A descoberta do “inconsciente” por Freud e, sobretudo, as leituras
psicanalíticas de sua obra feitas especialmente por Lacan, teriam abalado
fortemente a concepção cartesiana de sujeito, dado que as pulsões e processos
formadores do ego não mais estão dadas, aqui, como processos conscientes.
Lacan interpreta que a criança apenas gradual e parcialmente apreende a
própria auto-imagem de forma unificada e nuclear, com muita dificuldade. A
identidade, assim, seria algo formado apenas ao longo do tempo e por meio de
um processo produzido, sobretudo, por processos inconscientes, sendo a
“pessoa” unificada apenas uma fantasia, uma ilusão (Ibid., p. 36-40).

3. O trabalho em linguística realizado por Saussure


Em suas investigações, Ferdinand de Saussure, de proeminente influência em
diversas áreas das Humanidades, chegou à conclusão de que as coisas são não
pelo que são em si, mas sim pelo que não são. Tal concepção deriva-se do
pressuposto de que a língua preexiste a nós, o que faz com que em momento
nenhum sejamos “autores” de quaisquer verbetes ou invenções da língua,
estand seus componentes entrelaçados em meio a um sistema social – que é a
língua – e não num sistema individual. Assim, o significado sempre procura
“o fechamento (a identidade) mas é constantemente perturbado (pela
diferença”) (Ibid., p. 41).

4. A concepção foucaultiana de “poder disciplinar”


Tal concepção traz uma forma de poder que estaria disseminado com a
modernidade tardia, fazendo vigilância “da espécie humana ou de populações
inteiras e, em segundo lugar, do indivíduo e do corpo” (Ibid., p. 42), de modo
a manter praticamente todos os aspectos da vida do sujeito sob o estrito
controle do poder “dos regimes administrativos, do conhecimento
especializado dos profissionais e do conhecimento fornecido pelas
“disciplinas” das Ciências Sociais” (loc. cit.).

5. A insurgência do feminismo enquanto movimento social


O autor destaca como em diversos movimentos sociais desse período da
segunda metade do século XX, houve uma identidade atribuída a cada um
desses (movimentos). O feminismo é especialmente elencado por questionar a
barreira entre o que é da “vida pública” e da “vida privada”, abrindo à
contestação política elementos da vida privada como sexualidade, trabalho
doméstico, divisão do trabalho, cuidado com as crianças etc. Acabou também
por politizar a subjetividade, a identidade e o processo de identificação,
posteriormente tendo se expandido a fim de incluir um movimento pela
formação das identidades sexuais e de gênero. Também teve papel em afirmar
a divergência de identidades entre homem e mulher, não mais generalizando
num véu de “humanidade”, e o substituindo pela questão da diferença sexual.

3. Considerações finais e ponderações após reflexão

Seria no mínimo inconveniente a ignorância para com a obra de Stuart Hall,


autor tão conclamado e proeminente nas ciências sociais contemporâneas. A
Identidade Cultural na Pós-Modernidade é, sem dúvida, uma obra essencial a ser lida
por (futuros) sociólogos ou quaisquer aspirantes a autores nas Humanidades. Apesar
de não tão atual, sua obra ainda apresenta elementos que parecem aplicáveis à
realidade a qual nos inserimos, apresentando uma sólida análise histórica da
construção da modernidade, que parece realmente “casar” bem com a perspectiva
decolonial da modernidade, onde a colonialidade não é dissociável da modernidade.

Sua perspectiva sobre a globalização, onde intervém pela criação de novas


identidades culturais em detrimento da tese – muitas vezes xenófoba – de
homogeinização cultural, também me agrada. O fato da análise levar em conta as
distinções da forma como se dá processo de hibridização cultural em países da
periferia me parece pontual.
O que não me agrada é a relação conturbada que a sociologia parece
desenvolver com a filosofia algumas vezes, algo que pode advir de interpretações
supérfluas. Não me parece adequada a percepção de que a nova concepção de sujeito
pós-moderno de alguma forma solapa – por assim dizer - a concepção iluminista de
sujeito: ambas apenas pertencem a campos distintos, não são aplicáveis aos mesmos
problemas e fenômenos. Assim, não enxergo exatamente uma transformação da
concepção de sujeito de acordo com a história, mas tão somente um deslocamento de
acordo com o desenvolvimento das investigações relativas aos temas, deslocamento
esse que não apenas afeta a concepção iluminista mas certamente também a
concepção pós-moderna de sujeito.
Referências bibliográficas

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Trad. Tomaz Tadeu da


Silva e Guacira Lopes Louro. 11. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2006, p. 7-23.

MERCER, K. "Welcome to the jungle". In: Rutherford, J. (org.). Identitiy. Londes:


Lawrence and Wishart, 1990.

WILLIAMS, R. Keywords. Londres: Fontana, 1976.

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