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Nº USP: 3666325
16/01/2012
indivíduo entre os medievalistas nas ultimas décadas, apontando para o espaço de discussão entre
dois autores vistos no curso e o como estes podem contribuir com estas discussões. Não se trata de
defender ou datar o surgimento do indivíduo na Idade Media e sim analisar alguns conceitos e
media. Somente a partir dos anos 70, salvo alguns trabalhos pontuais, foi que o interesse por esse
tema começou a motivar pesquisas de forma um pouco mais regular entre os medievalistas. Alfons
datando a origem da tradição individualista ocidental entre os antigos germanos. Walter Ullmann,
em seu livro publicado em 1966, The individual and society in the middle ages, desenvolveu três
teses sobre a questão do indivíduo, apontando os anos 1150-1250 como anos chaves para a
emergência do cidadão: a tese abstrata, onde o ponto central está na eclesiologia medieval, a tese
pratica, dando conta dos relações feudais de governo, e a tese humanista, que argumenta como a
Outro medievalista, pouco anterior aos anos 1970, mas que contribuiu bastante para a questão do
indivíduo foi o padre Marie-Dominique Chenu, o qual aponta em 1969, para um “despertar da
consciência” na Idade Media. Historiadores do direito também haviam trabalhado com a tese de
O trabalho que levou a questão do indivíduo para o campo dos medievalistas foi a obra, já
considerada clássica, de Colin Morris, The Discovery of the Individual 1050-1200 publicado em
1972. O trabalho de Morris foi influenciado pelas obras de Haskis, The Renaissance of the Twelfth
Century (1927), e de outros pesquisadores como Walter Ullmann, no exame dos aspectos do
escritores eclesiásticos do século XII e XIII. Sua atenção se voltou para o século XI e XII,
de elementos que estavam presentes na antiguidade, e que haviam sido relidos pelo cristianismo e
anos entre 1050 e 1200. Não estava restrito somente a um grupo de pensadores. Seus
principais traços podem ser encontrados em diversos círculos: a preocupação com o auto
por uma avaliação pessoal das intenções internas em vez de seus atos externos.1
Um segundo trabalho de síntese sobre o assunto foi a obra de Aron J. Gourevitch La naissance
de l'individu dans l'Europe Médiévale de 1997. Gourevitch, em seu primeiro capítulo, além de fazer
1
MORRIS, Colin. The Discovery of the Individual 1050-1200. pg 158.
um balanço historiográfico sobre o tema, também nos indica duas correntes de pesquisa. A primeira
Sobre a busca de uma individualidade, estes autores procuram descobrir as características nas
obras dos escritores medievais e renascentistas que manifestem uma auto-reflexão. O problema,
...sistema de valores; os atores dessa corrente se deixam, voluntariamente ou não, guiar pela
idéia da individualidade tal como ela se afirmou na Europa ao longo dos Tempos
medieval parece capaz de ‘descobrir’ nele mesmo a individualidade. (...)seria mais correto
sociedades, ela toma consciência dela mesma e se manifesta como tal, chegando a dominar o
principio do grupo ou do clã. Se a pessoa é uma qualidade inalienável do ser humano que vive em
Gourevitch nos aponta para a necessidade de uma mais rigorosa conceitualização e também para
valores modernos para documentos medievais. O uso do conceito de pessoa permite não
2
GOMES, J. A Idade Média e um (im)possível individuo. pg 23.
3
GOUREVITCH, Aron J. La naissance de l'individu dans l'europe médiévale. Pg 23.
Uma série de trabalhos sobre o assunto foram produzidos nestas últimas duas décadas. Tanto
Gourevitch quanto Iogna-Prat explicam esse recente interesse no tema pelo fato de a sociedade
ocidental capitalista, após a queda do comunismo, estar vivendo uma redefinição de identidade.
Pode-se acrescentar também a ligação entre esta “era do individuo” que vivenciamos4, e o
desenvolvimento do neoliberalismo.
Historiadores como Jean-Claude Schmitt, C.W. Bynum, J.E. Benton, M. Clanchy e outros
trabalham ou já trabalharam este tema de diferentes formas, o que colaborou em muito para o
A mais recente síntese sobre o assunto é o livro dirigido por Dominique Iogna-Prat e Miriam
historiadores no esforço de mostrar alguns dos campos possíveis de pesquisa, seus limites,
especificidades e possibilidades.
levantamento historiográfico de conceitos e nos apresenta três principais direções nos trabalhos
de culturalista.
No primeiro caso que figura, se estima que o individualismo é fruto de uma evolução mais
ou menos longa, que a história deve explicar; a segunda posição faz das diversas culturas da
história uma infinidade de mundos separados cujos os sistemas de valores resistem a toda
tentativa de comparação.5
Iogna-Prat afirma que mesmo que a maioria dos historiadores de épocas antigas (Antiguidade e
Idade Media), sejam seguidores da corrente culturalista, os historiadores que contribuíram com a
As pesquisas presentes no livro de Iogna-Prat seguem três caminhos: O estudo das questões do
4
IOGNA-PRAT, D. et BEDOS-REZAK, B. M. (orgs). L'Individu au Moyen Âge. Pg 7.
5
Ibid. p. 9.
Individuo pela filosofia medieval; a renovação do gênero da biografia e os modos e usos da
expressão de si.
uma evolução nos estudos, hoje mais especializados, da filosofia medieval, tanto na área da
dos universais.
produzir herois para as nações, mas sim de observar a relação do personagem com a sociedade que
vive.
individualismo ocidental está na prática do “falar de si”. Sob esse título bastante amplo está o
interesse pela renovação do gênero autobiográfico no século XII, realizada por figuras como
Abelardo, Guibert de Nogent e outros, que tomaram como modelo mais ou menos fiel a Confissões,
de Agostinho, porém já com um novo sentido devido ao novo contexto teológico moral, que
pela confissão privada, estas obras estão ligadas mais a uma tentativa de entrar em conformidade
com a sociedade por meio de uma nova teologia e eclesiologia, do que a uma expressão original de
si.6
...convém ser cuidadoso com o que nos carregamos de nossa cultura quando queremos
singularizar a expressão “falar de si”. A Idade Média não conheceu nossas aspirações a
personalidade original.7
Outra questão fundamental, que o autor nos mostra para a problemática do individuo na Idade
6
IOGNA-PRAT, D. et BEDOS-REZAK, B. M. (orgs). L'Individu au Moyen Âge. Pg. 21.
7
IOGNA-PRAT, D. et BEDOS-REZAK, B. M. (orgs). L'Individu au Moyen Âge. Pg. 22.
Média, é a diferenciação entre eixos de trabalho – os que falam de individuação e de
que permitem significar ao mesmo tempo a singularidade do agente empírico, e também o uso
diferenciado e sobretudo combinado dos signos de identidade, não tendo, estes últimos, razão de ser
fora das referências do grupo a que pertencem. Sobre a individualização – quer dizer, segundo todas
discurso gira mais em torno da adequação de um modelo, que sobre a afirmação original de um
impossível “eu”, forma que a Idade Media latina não sabia nomear de forma substancial.8
Segundo Horkheimer, o indivíduo não é um ser eterno. Indivíduo aqui entendido não como
um membro particular da espécie humana, mas como uma entidade histórica que compreende
Para o autor, o conceito de individualidade começa sua história na Grécia antiga com o herói
porem não completamente, pois na luta entre tradição, tribo, polis e indivíduo, o último sempre é
derrotado9. Devemos lembrar também que o herói grego é essencialmente o representante de uma
determinada cidade, ele em si é um modelo para os membros de determinada polis, aquele em que
se reflete a identidade ideal da cidade, que por vezes quebra com as antigas tradições e paradigmas
que levasse em consideração sua existência e seu lugar na sociedade, projetando assim um
equilíbrio entre liberdade individual e controle coletivo. Na filosofia de Platão, este equilíbrio se
dava tanto no campo prático como no campo teorico definiu para cada estamento da sociedade
funções e direitos, correlacionando a estrutura da sociedade com a natureza dos seus membros10. No
plano teórico, foi construída uma estrutura hierárquica universal que assegurava a participação de
cada indivíduo nos arquétipos ideais. Platão legitima a liberdade individual na medida em que o
homem constróe a si próprio, porem somente desenvolvendo as suas potencialidade inatas. Não é
possível, para este sistema, que o homem se desenvolva indefinidamente; ele o faz por vontade
própria mas somente na medida de seu potencial, de seu destino, dado por uma ordem, força, razão
ou entidade fora e estranha ao próprio homem. Segundo Horkheimer, “inerente ao sistema de Platão
Em primeiro lugar, é importante lembrar que a relação entre estes conceitos não é de oposição,
tempo, com a predominância de uma sobre a outra. Historicamente na sociedade ocidental houve
Em nossa sociedade ocidental a razão objetiva se estruturou na Grécia antiga e pode denotar
tanto a existência de “... uma estrutura inerente à realidade que por si mesma exige um modo
específico de comportamento em cada caso, seja uma atitude prática ou seja teórica”12, como o
uma estrutura fundamental ou totalmente abrangente do ser e de que disso pode derivar
10
HORKHEIMER,M. Eclipse da razão., p 17.
11
Ibid, pg 138.
12
Ibid, pg 137.
13
Ibid, p 17.
Em Sócrates vemos pela primeira vez a razão concebida como compreensão universal,
devendo assim determinar as relações humanas, seus sistemas de crença e sua interação com a
natureza, mas foi na filosofia de Platão que os atributos socráticos da intuição e da consciência,
novas forças de natureza divina dentro do sujeito começaram a propor mudanças nas próprias
ordem eterna das coisas pela razão, através da filosofia, e com isso seguir uma linha de ação na
ordem temporal.
O conceito de uma racionalidade extra humana não exclui uma racionalidade subjetiva. A
Quando a razão é vista como uma faculdade subjetiva da mente, somente o sujeito pode
verdadeiramente ter razão, ela não existe fora da mente do homem enquanto ser empírico, “em
ultima instancia, a razão subjetiva se revela como a capacidade de calcular possibilidades e desse
No século XVII os aspectos objetivos da razão ainda predominavam, porem a medida em que
a razão e a religião, cada vez mais, separavam-se, os aspectos formais e subjetivos começaram a
ganhar força como manifesto durante o período iluminista. Desde a renascença, segundo
Horkheimer, filósofos se esforçam para formular “(...) uma doutrina tão ampla como a teologia, e
que valesse por si própria, em vez de aceitar de uma autoridade espiritual os seus valores e
explicações e modelos explicativos para essa ordem externa ao ser humano, assim revelando a
Mesmo conservando Deus, estes autores eliminaram a graça, essencial no modelo agostiniano para
diretamente com a religião nos campos da ética, metafísica e política. Ao mesmo tempo empiristas
14
HORKHEIMER,M. Eclipse da razão. p. 11.
15
Ibid, p. 20.
como Locke, desenvolviam sistemas que não entravam em embate direto com a religião, porem
retiravam dela qualquer possibilidade de compreensão de uma razão objetiva, pois a negavam
completamente.
Com a ética cristã agora secularizada, o conceito de verdade objetiva não era mais garantido
por qualquer dogma exterior ao próprio pensamento, mesmo que a suposição de idéias inatas e de
instituições evidentes por si ainda norteassem as atividades sociais e individuais das pessoas.
sido explicitas nos pioneiros da ideologia burguesa tais como Montaigne, e que
O golpe final na razão objetiva foi dado pelos iluministas que ao atacarem a religião em nome
da razão, o que realmente derrubaram foi a metafísica e o próprio conceito de razão objetiva.
Para Horkheimer a passagem da razão objetiva para a razão subjetiva, na sociedade ocidental
indivíduo e a passagem da predominância da razão objetiva para a razão subjetiva estão ligados à
passagem de uma sociedade que, de forma geral, baseia suas teorias políticas, ideais éticos e
estruturas ideais ou divinas, para uma sociedade onde a ética, a teoria política e as instituições são
dirigidas pela razão, na medida em que os homens que as conduzem ou as praticam adéquam os
A insistência sobre a ordem imutável do universo, que implica uma visão estática da
16
HORKHEIMER,M. Eclipse da razão. p. 21.
17
HORKHEIMER,M. Eclipse da razão. pg 138.
eterna infância tanto na comunidade quanto na natureza. 18
Porem, foi também na Idade Media que houve o amadurecimento do cristianismo e com isso
um imenso reforço nas aspirações à individualidade. Devido a idéia de que o mundo terreno é
somente um trecho na longa peregrinação das almas e de que estas são iguais em valor, pois foram
criadas por Deus a sua imagem e semelhança, houve uma valorização nunca antes experimentada de
elementos e características interiores. Com a associação proposta pelo cristianismo entre o domínio
e o abandono dos impulsos naturais e com o amor universal para a salvação da alma, a idéia de
empírico, o indivíduo adquire uma nova profundidade e complexidade”19. Esta negação da vontade
da autopreencher em favor da alma eterna afirmou o valor infinito de cada homem; negando-se a si
mesmo pela imitação de Cristo, o individuo adquire simultaneamente uma nova dimensão e um
novo ideal pelo qual modelar sua vida sobre a Terra. Quando a Igreja estabelece seus domínios
sobre a vida interior, uma esfera nunca invadida pelas instituições sociais da Antiguidade clássica,
ela cria e alimenta um espaço que não poderá limitar ao logo do tempo.
Tal como a mente nada é sendo um elemento da natureza desde que persiste em sua
biológico desde que é apenas a encarnação de um ego definido pela coordenação das
absoluto insubstituível20.
de razão objetiva e subjetiva, pode servir para nos aproximar de algumas idéias e hipóteses lançadas
por alguns medievalistas, auxiliando a melhor entender, discutir e criticar algumas de suas posições.
Este dialogo também é útil para melhor explorar a constituição do indivíduo na obra de
18
HORKHEIMER,M. Eclipse da razão. p. 138
19
ibid. p. 141
20
Ibid, idem.
Horkheimer, sua formação enquanto processo histórico qual presupõe maiores detalhamentos e
Podemos perceber algumas das idéias de Horkheimer nas pesquisas sobre o indivíduo na
Idade Media quando estas apontam para a complexificarão dos sistemas de ordenação social e
Embora a idéia de uma sociedade medieval com papéis sociais rigorosamente estabelecidos
esteja sendo revista por historiadores como Dominique Iogna-Prat, segundo o qual, “a sociedade
medieval sempre foi de um holismo bem moderado e suas estruturas de controle relativamente
plásticas”21, é possível localizar, nas próprias palavras de Abelardo, referências sobre uma vocação,
No entanto, como parecia que o Senhor me havia concedido, para o ensino das Escrituras,
um talento não inferior ao que me dera para a ciência profana, a minha escola começou a
Consequentemente, provoquei, contra mim, o ódio e a inveja dos outros mestres. Estes,
rebaixando-me em tudo que podiam, objetavam, em minha ausência, sobretudo duas coisas,
ou seja, que era muito contrário aos propósitos do monge deter-se no estudo dos livros
profanos, e que eu havia ousado assumir o magistério da ciência divina sem um mestre.
Assim, incitaram os bispos, arcebispos e abades e todas as autoridades religiosas que podia,
Pode-se perceber, nesta passagem da Historiae Calamitatum, uma contradição entre a vontade
divina que, segundo o próprio Abelardo, lhe deu um dom, um talento, um atributo individual, e o
ordenamento e a categorização funcional do mundo que, por sua vez – segundo aqueles que
produziram e difundiram estes modelos de ordenação – tinham origem também na vontade divina.
A História das minhas calamidades (Historiae calamitatum, 1131-1132), carta que Pedro
21
Dominique IOGNA-PLAT, Ordem(ns), p. 313. in: J. LEGOFF ; J-C. SCHIMITT. Dicionário Temático do Ocidente
Medieval.
22
PEDRO ABELARDO, Primeira carta ou a historia das minhas calamidades, p. 105.
autobiográficos23. Esta carta que justifica os atos de Abelardo, através de suas intenções, mostra sua
obediência à ordem divina e à forma pela qual foi punido quando não seguiu esta ordem. Segundo
Michael Clanchy, esta carta deve seu sentido à obra Ética ou conhece-te a ti mesmo, onde Abelardo
sustenta que a ação em si mesma é indiferente, sendo que a intenção consiste em pecado ou não, e,
portanto somente Deus e o próprio sujeito da ação/intenção podem saber verdadeiramente o que é
holísticas para uma onde as relações dominantes serão do tipo individualista. Este tema foi
estudado pelo antropólogo Louis Dumont em sua obra, O individualismo uma perspectiva
mundo, pois existe a possibilidade de “ser não social” em pensamento, e continuar de fato vivendo
sociedade em que vive. O renunciante pode viver tanto como eremita solitário, quanto juntar-se em
indivíduo-fora-do-mundo numa comunidade que caminha na terra mas tem seu coração no céu” 27
permitem que Dumont explique, aqui de forma esquematizada, a passagem de uma sociedade de
Com a relativização da ordem mundana, ou seja, que subordinados a uma ordem superior e
23
Em relação ao termo autobiográfico, não podemos entendê-lo da mesma forma que se entende hoje – esta carta de
Abelardo não foi escrita para reivindicar uma singularidade pessoal, possibilidade esta anacrônica (segundo Jean-
Claude Schimitt em La conversion d'hermann le juif: autobiographie, histoire et fiction. pg 63 a 70).
24
CLANCHY, M. Abélard, pg. 168.
25
IOGNA-PRAT, M. Ordem(ns), p. 317.
26
DUMONT, L. O individualismo. p.38.
27
DUMONT, L. O individualismo, p. 44.
transcendente, cria-se uma dicotomia ordenada, onde o mundano e o sagrado estão ordenados pelos
mesmos critérios e submetidos a uma hierarquia absoluta. Por estarem submetidos a este todo
mundanos, de natureza laica, quando estes estão em acordo com esta ordem divina. Dumont usa
como exemplo o ensinamento paulino “dê a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”,
onde a simetria aparente mostra que é por causa da vontade de Deus que se deve honrar César.
Segundo o autor, ainda podemos ver na história este valor supremo exercer pressão sobre o
elemento mundano antitético e por etapas; estes elementos serão impregnados por elementos
mundo28.
força, portanto deve-se analisá-lo em termos de combate e guerra, uma guerra prolongada, e não
relações de produção. Sua prática seria a repressão, acontecendo como uma perpétua relação de
constituem o corpo social, não sendo possível dissociá-las, estabelece-las ou te-las sem uma
Um principio geral, apontado por Foucault, diz respeito às relações entre o direito e o poder.
28
DUMONT, L. O individualismo, p. 45.
29
FOUCAULT, M. Microfísica do Poder, p. 175.
Parece-me que nas sociedades ocidentais, desde a Idade Media, a elaboração do
pensamento jurídico se faz essencialmente em torno do poder real. É a pedido do poder real,
A instituição do poder real, assim como a institucionalização da igreja, foi, em grande parte,
obra de juristas apadrinhados por estes senhores para construir e justificar seus poderes. Com a
reativação do direito romano no século XII começou a construção do grande edifício jurídico que
fixara a legitimidade do poder, centrado na questão da soberania. Isto implica, segundo Foucault,
em afirmar que nas sociedades ocidentais o discurso e a técnica do direito tiveram a função de
amenizar a dominação dentro do poder construindo para isso um discurso que tornava legítimos os
O projeto geral da obra de Foucault, nos anos que antecederam a publicação do livro A
microfísica do poder, foi o de analisar e fazer emergir aspectos da dominação no intimo do discurso
procedimento de sujeição. Propõem-se também a analisar como o direito põe em prática e veicula
Por dominação eu entendo não o fato de uma dominação global de um sobre os outros, ou
de um grupo sobre outros, mas as múltiplas formas de dominação que podem se exercer na
sociedade. Portanto, não o rei em sua posição central, mas os súditos em suas relações
recíprocas: não a soberania em seu edifício único, mas as múltiplas sujeições que existem e
Portanto o problema seria evitar a questão da soberania e da obediência dos indivíduos que lhe
são submetidos e fazer aparecer em seu lugar o problema da dominação e da sujeição. Para isso
Foucault alerta para cinco precauções metodológicas que devem orientar este tipo de pesquisa.
Deve-se procurar e orientar a pesquisa para a dominação, os seus operadores materiais, os usos e as
30
FOUCAULT, M. Microfísica do Poder, 180.
31
Ibid, p.181.
Trata-se de captar o poder em suas extremidades, nas suas formas e instituições mais regionais
e locais, quando este ultrapassa as regras do direito, e penetramem instituições, assim ganhado
corpo nas técnicas e nos instrumentos de intervenção material. Logo após esta primeira
enquanto constituição dos sujeitos, indagando como as coisas funcionam no nível dos processos de
elementos a serem destacados são os minúsculos mecanismos de poder, sua história, técnicas e
táticas, e o como estes ainda são investidos, colonizados, deslocados por mecanismos cada vez mais
gerais e por formas de dominação global. Foucault, ao se referir a estes mecanismos, deixa claro
que não se trata de um movimento descendente por parte do mecanismo global e, sim, de anexações
A quarta precaução trata de levar em consideração que as grandes máquinas de poder podem
ter sido acompanhadas de produções ideológicas. Para exercer-se, o poder é obrigado a formar,
como técnicas de registros, métodos de investigação, procedimentos de inquérito que não são
construções ideológicas.
sobre os outros, de um grupo sobre os outros, de uma classe sobre as outras; mas ter bem
presente que o poder – desde que não seja considerado de muito longe – não é algo que se
possa dividir entre aqueles que o possuem e o detêm exclusivamente e aqueles que não o
O poder, como Foucault entende, funciona em rede, onde os indivíduos não atuam como alvos
e sim como pontos de transmissão e retransmissão. Sua concepção de indivíduo aparece claramente
nesta precaução. O indivíduo não é concebido como um núcleo elementar ou uma matéria múltipla
32
FOUCAULT, M. Microfísica do Poder, 183
e inerte que o poder golpearia até o estraçalhar. Um dos primeiros efeitos do poder é justamente
fazer com que corpos, gestos, discursos e desejos sejam identificados e se constituam enquanto
indivíduos. Somente há indivíduo na medida que um corpo exerce e transmite poder, estas formas
de transmissão e exercício do poder variam de acordo com a sociedade em que o indivíduo está
emerso. Existem situações onde não é possível se falar de indivíduos, ou só se pode de forma muito
tanto podem ser econômicos quanto políticos e militares -, estamos diante do que pode
A grande contribuição que Michel Foucault deixou para os medievalistas, de forma geral e
metodológicas propostas foram incorporadas por diversos autores o que levou a uma mudança nos
Grande parte das pesquisas em história medieval que investigam os processos de surgimento
do indivíduo, atentam, em maior ou menor grau, para aspectos das relações de poder entre
indivíduos ou grupos para com outros indivíduos ou grupos, focalizando as relações locais e
medieval, relatou o caso de Opicínio Canistris, um clérigo que viveu na primeira metade do século
XIV, e sua autobiografia em forma de quatro “auto-retratos”. Gourevitch escolheu este clérigo por
tarefa é estabelecer um elo entre ela e a cultura da época considerada. O que lhe importa
33
FOUCAULT, M. Ética, sexualidade, politica. pg 266.
saber, é justamente de que maneira aquele homem era louco.”
Jean-Claude Schmitt também teve como objeto de estudo um marginalizado em seu trabalho
sobre a autobiografia na Idade Media. Sua obra, La conversion d´Hermann le juif: autobiographie,
histoire et fiction, analisa um relato escrito supostamente por um judeu do século XII, originário de
Cologne, que se converteu ao cristianismo. Um dos supostos problemas dessa obra está na questão
quem o escreveu, um judeu convertido ou clérigos cristãos . Ao analisar o texto produzido e não
quem o produziu, Schimitt concentra-se nas relações de poder presentes nestes discursos, o que
diálogo entre medievalistas e autores com Horkheimer, Foucault e outros apresentados no curso
sobre uma sociedade diferente da atual mas que carrega em si elementos para a síntese que vai gerar
o mundo moderno, por outro, quadros conceituais e análises que possibilitam o desenvolvimento e