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Em “Erguer a Voz”, bell hooks apresenta uma reflexão potente e provocadora, que consegue

combinar elementos de confissões profundamente autobiográficas com enfrentamentos


teóricos igualmente desafiadores. Ao fazê-lo, ela produz um texto de difícil leitura, não pelo
empolamento da linguagem - o que ela, aliás, critica duramente -, mas pela intensidade da
jornada constante entre experiências que tocam fundo em quem lê e as proposições
articuladas a partir delas.

No fundo, essa dicotomia - entre vivência e teoria - vai se desmanchando ao longo do texto, na
justa medida em que o frequente ir-e-vir entre uma coisa e outra acaba produzindo ideias-
síntese que contribuem no debate do feminismo negro. Se no início do texto a sensação é de
estar numa montanha-russa, onde a pessoa que lê se vê entre a emoção e a gana de assistir
os argumentos se desenvolverem, conforme os capítulos se desenrolam a sensação é de estar
num trem-bala: uma viagem suave, mas ao mesmo tempo se dirigindo ao seu destino com uma
velocidade espantosa.

O texto se inicia fazendo uma reflexão análoga a essa sensação, tratando da convergência
entre o público e o privado na construção teórica do feminismo negro, num tom confessional: a
autora fala sobre, em última instância, uma luta da memória, contra o esquecimento. E ressalta
como é importante que certas coisas, circundadas de um medo de compartilhar experiências,
sejam compartilhadas. Com isso, ela posiciona o livro e antecipa esse método argumentativo,
que resgata a experiência como legítima produtora de conhecimento.

À seguir, bell hooks define o título do livro - “Erguer a Voz” - como o ato que remete à memória
infantil sobre um comportamento altamente reprovável em seu contexto social: o de falar como
igual frente a uma figura de autoridade - no caso, os mais velhos. Porém, destaca ela, o desafio
não é só ter uma voz, usá-la, como na transgressão da autoridade paterna; mas saber qual voz
ter. Nesse processo, ela rememora o início de sua relação com a escrita, as dores de ter ela
revelada contra sua vontade, e a conclusão de que, para o oprimido, encontrar e erguer a voz é
um ato de cura e libertação.

Essa voz, também, é uma ameaça; a todas as figuras de autoridade que esperam reprimi-la,
sobretudo. Talvez por isso ela argumente em favor do entendimento da dominação sobre as
crianças como o modelo constitutivo de todas as demais dominações - em detrimento da
concepção, atribuída às feministas brancas, de que o patriarcado seria a forma ancestral de
dominação que gera todas as outras.

Na constituição psicológica do sujeito, as experiências infantis de silenciamento para a


manutenção da autoridade parental é análoga, em sua visão, ao comportamento “fora de casa”,
de impotência frente a outras forças dominantes. O questionamento a isso, porém, leva o
sujeito a um estado de dor, e é preciso apontar o que está do outro lado dessa dor; ao indicar
esses problemas de maneira equivocada - seja na linha da “auto-ajuda” que responsabiliza os
indivíduos pelo seu próprio sofrimento, seja na linha do feminismo branco que falha em
interseccionar e reconhecer as relações de raça, gênero e classe - tende a produzir dor e
paralisia, e não a superação da dor a partir da libertação.
É por isso, argumenta ela, que é preciso defender uma autorrecuperação através da retomada
de sua própria voz. Para isso, é necessário cruzar, ao mesmo tempo, muitos limites do elitismo
acadêmico, no qual são inseridas as teorias feministas; a cisão entre as mulheres brancas
como produtoras de uma teoria empolada, isolada e elitista, e as mulheres não-brancas como
relatoras de experiências particulares; e as reações instintivas de anti-intelectualismo que se
produz contra essa hegemonia branca dentro do feminismo.

A proposição que bell hooks formula, após esse passeio de montanha-russa e trem-bala, é um
projeto que combine a alfabetização com a legitimação de outras formas de produzir e distribuir
conhecimento, como a conversa em pequenos grupos; um projeto que combine a produção
teórica com a experiência vivida, que reverta a teoria feminista de um gueto de elitismo
acadêmico branco para uma produção cotidiana de todas as mulheres; que, por fim, seja capaz
de construir relações horizontais e interseccionais entre os sujeitos que experimentam as
estruturas de dominação nas mais diversas posições, na construção de uma aliança pela
libertação que, necessariamente, contribua para que toda encontrem e ergam suas vozes.

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