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RESUMO
A Campanha Pela Divisão Justa do Trabalho Doméstico é uma iniciativa da Rede
Feminismo e Agroecologia do Nordeste e organizações associadas, que tem como
objetivo aprofundar o debate acerca da sobrecarga de afazeres domésticos e de
cuidados, desvelando sua natureza violenta no cotidiano das mulheres. Nesse
sentido, o presente trabalho faz um recorte, especificando como a divisão sexual do
trabalho tem agravado as dinâmicas de vida das mulheres rurais no atual contexto
de pandemia de Covid-19. Para tal, buscou-se através de revisão bibliográfica e as
principais pesquisas e dados relacionados ao tema, conjuntamente com o diálogo
permanente da Campanha com as mulheres, constatar a injusta divisão do trabalho
doméstico e o crescimento da violência de gênero, intensificada pelos indicadores
de raça, classe e territorialidade. Assim, a Campanha destaca a necessidade do
tema ser tratado como responsabilidade de toda sociedade, visando uma mudança
1 Graduada em Licenciatura Plena em História pela UFRPE, integra o Núcleo Jurema: Feminismos,
agroecologia e realidades/UFRPE. E-mail: karinne_33@hotmail.com.
2 Professora, negra, mãe de uma menina, feminista, membra da coletiva CAIANA, da ABA e do
núcleo de Artes e Letras da UFSB; Mestra em Educação, Educadora Griô em formação, Educadora
pedagógica da ETAPAS. E-mail: rodrigues.domenica@gmail.com.
INTRODUÇÃO
A pandemia, causada pelo novo Coronavírus, tem provocado o
aprofundamento das desigualdades históricas no Brasil, gerando um saldo
assustador que faz o país ocupar o segundo lugar com mais mortes por infecção no
mundo. Nesse cenário, as populações mais vulneráveis, como as mulheres, além de
serem obrigadas a lidar com os efeitos negativos da pandemia, entre eles as crises
social ,econômica e sanitária, também se veem diante de um aumento espantoso
dos índices de desigualdades e violências de gênero, os quais são agravados pelos
indicadores de raça, classe e territorialidade.
Com o distanciamento social, considerado a principal medida de contenção
da pandemia, a sobrecarga de trabalho doméstico e de cuidados se configura como
um dos desdobramentos da violência contra as mulheres, tendo em vista o
isolamento dos familiares concentrar as atividades do cotidiano no ambiente
doméstico, sobretudo com o fechamento de escolas e creches, o cuidado com os
doentes e a pressão nos agroecossistemas 5 para a produção do autoconsumo,
condicionando as mulheres ao aumento da sobrecarga física, à violência doméstica
e ao adoecimento mental.
No mundo rural, onde as mulheres enfrentam uma invisibilidade tanto no
campo considerado produtivo com a produção de alimentos (roça/quintal produtivo),
quanto no que se refere ao trabalho doméstico e de cuidados, as relações sociais de
gênero demarcam com mais força a divisão sexual do trabalho, refletindo no
aprofundamento das desigualdades e em maiores jornadas de trabalho para as
mulheres. (MORAES; JALIL; OLIVEIRA, 2017). A Pesquisa Nacional por Amostra de
Domicílio Contínua (2013), dialoga com essa realidade quando mostra que as
mulheres rurais realizam uma jornada de trabalho doméstico semanal de 16h a mais
9 SOF Sempreviva Organização Feminista; Gênero e Um, (2020); HILLENKAMP; LOBO, 2021;
TELLES et. al., 2021; WEITZMAN et. al., 2021, são algumas das pesquisas.
10 Faz parte da Pesquisa Nacional Cadernetas Agroecológicas-Feminismo e Agroecologia:
Repensando a Economia a Partir das Práticas das Mulheres Rurais, coordenada pela
Universidade Federal de Viçosa -MG e pelo Grupo de Trabalho de Mulheres da Articulação Nacional
de Agroecologia (GT Mulheres da ANA).
11 Projeto proposto pelo Programa SEMEAR Internacional - PSI em parceria com o Grupo de
Trabalho de Mulheres da Articulação Nacional de Agroecologia – GT de Mulheres da ANA.
mulheres rurais com filhos menores de 10 anos tiveram rendimento médio mensal
menor em comparação com as mulheres sem filhos, comprovando que a sobrecarga
de trabalho doméstico e de cuidados impede as mulheres de ter acesso à maior
renda monetária. (FIDA, 2020).
A pesquisa também observou que 85% das mulheres rurais afirmaram não
trabalhar fora de casa, comprovando que elas enfrentam a dificuldade em separar o
trabalho doméstico não remunerado e os cuidados com as pessoas dos outros tipos
de trabalho que desenvolvem. Esse acúmulo do trabalho doméstico com outras
atividades (de cuidados, produtivas, de participação, etc) dificultam o acesso delas
ao mercado, fazendo com que 60% tenha afirmado como estratégica principal a
comercialização em casa, seguida da venda na comunidade (36%).
Mas, até mesmo esses espaços criados como estratégias de autonomia estão
sendo perdidos em meio à pandemia, como mostra a pesquisa sobre o impacto do
novo Coronavírus na vida das mulheres 12, em que 62,1% delas informaram que não
estão produzindo alimentos. Dos 37,9% de mulheres que estão produzindo, 24,5%
não está comercializando e 22,4% produz para alimentação da família. Do total de
mulheres entrevistadas, 19,9% perdeu o trabalho ou deixou de trabalhar. Além do
mais, o fechamento das feiras e das escolas da rede pública teve um forte impacto
na agricultura familiar, já que comprometeu a compra de alimentos pelo PAA
(Programa de Aquisição de Alimentos) e PNAE (Programa Nacional de Alimentação
Escolar), do qual a agricultura familiar é uma fornecedora. (TELLES et. al., 2021).
Nesse momento as mulheres estão numa situação de maior vulnerabilidade
socioeconômica, retrocedendo na conquista de sua autonomia, assim como estão
mais propensas a desenvolverem relações de dependência, que aprofundam as
desigualdades que elas já vivenciam, sobretudo no âmbito doméstico. No entanto,
com o decorrer da pandemia, outras pesquisas (HILLENKAMP; LOBO, 2021;
TELLES et. al., 2021; WEITZMAN et. al., 2021) foram realizadas mostrando a
capacidade de resiliência das agricultoras agroecológicas.
As pesquisas envolvendo as mulheres da Rede Agroecológica de Mulheres
Agricultoras da Barra do Turvo (RAMA), das regiões da Zona da Mata (MG) e da
Articulação de Agroecologia do Rio de Janeiro (AARJ), mostraram que as mulheres
12 Submetido à publicação. A pesquisa foi realizada pelo Núcleo Jurema: Feminismos Agroecologia
e Ruralidades, em parceria com a Rede Feminismo e Agroecologia do Nordeste e o Fundo
Internacional do Desenvolvimento Agrícola (FIDA).
trocaram as feiras pela venda de cestas com produtos agroecológicos via Whatsapp
e que estratégias locais de maneira coletiva foram traçadas para que as mulheres
continuassem a venda de seus produtos, como a mobilização pela garantia de
políticas públicas como PAA e PNAE, cisternas coletivas, hortas comunitárias, entre
outras estratégias que foram fundamentais para as mulheres enfrentarem esse
momento de pandemia. (HILLENKAMP; LOBO, 2021; TELLES et.al., 2021;
WEITZMAN et. al., 2021).
Ainda de acordo com as pesquisas, é consenso entre as mulheres uma maior
sobrecarga do trabalho doméstico e de cuidados, e de que apesar do aumento não
houve a divisão desse trabalho com os membros da família, sobretudo o marido e os
filhos. No caso das agricultoras a sobrecarga também recai sobre o
agroecossistema, uma vez que diante da pandemia e do aumento do preço de
alguns itens de necessidades alimentícias como feijão e arroz, as mulheres
intensificaram a produção de alimentos para o autoconsumo da família, o que
evidencia que a produção diversificada das mulheres tem se mostrado central na
garantia da segurança alimentar nesse momento de crise.
A pandemia e o decorrente confinamento dos familiares acendem o alerta
também para o adoecimento mental das mulheres, como constata a pesquisa feita
pela Care International, a pandemia de Covid-19 desencadeou uma crise global na
saúde mental das mulheres, revelando que elas têm quase três vezes mais
probabilidade de ter sua saúde mental afetada. (OPPENHEIM, 2020). No mundo
rural, onde as mulheres sobrecarregadas com o aumento das jornadas de trabalho,
afastadas dos seus espaços de socialização em grupo, além do medo causado pela
pandemia, desenvolvem processos psicológicos que podem se agravar diante da
dificuldade de obter atendimento médico especializado nos territórios. De acordo
com Weitzman et. al., (2021. p. 86),
A pandemia evidenciou a importância das redes de solidariedade e,
sobretudo, do papel das mulheres nas relações que alimentam e sustentam
essas redes. Para algumas, o isolamento social e a ameaça de contrair o
vírus desencadearam intensas crises psicológicas, revelando que os grupos
de convivência entre mulheres tinham significados que iam muito além dos
objetivos formalmente definidos.
O trabalho do cuidado direcionado aos familiares, sejam eles crianças,
enfermos ou idosos, também aumentou consideravelmente. Em 2019 36,8% das
mulheres afirmaram realizar esse tipo de trabalho (PNAD, 2020), que passou para
50% depois da pandemia, percentual que chega a 62% no caso das mulheres rurais.
Entre as mulheres responsáveis por essas atividades, 72% afirmaram que aumentou
a necessidade de monitoramento e companhia (SOF; GN, 2020).
Quando se trata de mulheres negras a divisão do trabalho é ainda mais
injusta, porque ela se torna também social, o mundo do trabalho formal para as
mulheres negras têm sido injusto e doentio para elas. Nesse período pandêmico
essas mulheres têm sido confinadas e principalmente levadas a se inserir no
ambiente informal de trabalho, sobretudo no serviço doméstico, resultando em
extensas jornadas tanto em suas casas quanto fora delas, o que também contribui
para a “feminização da pobreza”. Como relata Liliam Telles et. al. (2021p. 60),
As agricultoras da comunidade rural em Viçosa [...] remanescente de
quilombo se mostraram mais vulneráveis economicamente. Ainda que
trabalhem na produção para o autoconsumo e eventualmente em serviços
agrícolas, realizados em propriedades rurais, a principal fonte de renda
monetária é a realização de serviços não agrícolas, geralmente em
atividades de faxina ou trabalho como babás. Com a perda dos postos de
trabalho tiveram dificuldades para pagar as contas de água e de energia
elétrica. No caso de uma delas, até faltou comida para a família.
13 Patricia Hill Collins (2017), a partir de diversas obras de feministas negras, se refere a
interseccionalidade como uma ferramenta importante no campo da intelectualidade e das lutas
políticas, sobretudo na busca de justiça social e políticas emancipatórias para pessoas cujas
experiências de vida estavam circunscritas por um cruzamento de opressões, tais como racismo,
sexismo, exploração de classe, nacionalismo, religião e homofobia.
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
ALVES, Luciana Medeiros et. al. Caderneta agroecológica e os quintais :
Sistematização da produção das mulheres rurais no Brasil. Minas Gerais:
Centro de Tecnologias Alternativas da Zona da Mata, 2018.
17 De acordo com Moraes et. al., nome dado ao “fazer diferente” durante a construção do Projeto
Ater, Feminismo e Agroecologia com os seminários, intercâmbios, sistematizações de experiências,
cartografia social e feminista, e outras formas de linguagem - subjetivas e corporais – utilizadas no
processo.
BARBOSA, Glauce Freire Arzua; SOUZA, Ingrid Delcristyan de Assunção Farias;
SANTOS, Janaína Henrique dos. A Campanha Pela Divisão Justa do Trabalho
Doméstico: quando uma questão tornar-se uma pedagogia (metodologia) de
comunicação feminista. In JALIL, Laetícia Medeiros; ESMERALDO, Gema Galgani
Silveira Leite; OLIVEIRA, Maria do Socorro de Lima. Rede Feminismo e
Agroecologia do Nordeste. Recife, 2017. p. 74-84.
MELO, Hildete Pereira; MORANDI, Lucilene; DWECK, Ruth Helena. Uso do tempo
e valoração do trabalho não remunerado no Brasil. In: MELO, Hildete Pereira;
MORAES, MORAES, Lorena Lima de. A arte de tecer o tempo: perspectivas
feministas (Orgs). Campinas: Pontes Editores, 2020. p. 109-140.
MORAES, Lorena Lima de; JALIL, Laeticia Medeiros; OLIVEIRA, Maria do Socorro
de Lima. Por que ainda discutir a “justa divisão sexual do trabalho?” Alguns aportes
necessários à luta por igualdade para as mulheres rurais no Brasil. In: JALIL,
Laetícia Medeiros;