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GÊNERO, AGRICULTURA FAMILIAR E (RE)ORGANIZAÇÃO DO ESPAÇO

RURAL EM COMUNIDADES QUILOMBOLAS DE MINAS NOVAS E


CHAPADA DO NORTE – VALE DO JEQUITINHONHA/MG/BRASIL1
Maria Aparecida dos Santos Tubaldini
Universidade Federal de Minas Gerais
ubaldini1@uol.com.br

Raphael Fernando Diniz


Universidade Federal de Minas Gerais
raphaelfdiniz@yahoo.com.br

Eje temático: Población, géneros e identidades culturales: Grupos y


prácticas culturales; identidades; imaginarios y representaciones; movimientos
migratorios; impactos de la movilidad

Resumo

Este artigo enfoca o trabalho feminino em comunidades rurais quilombolas nos


municípios de Minas Novas e Chapada do Norte, Vale do Jequitinhonha-
MG/BR, destacando a rotina de serviços na roça, em casa e em hortos
domésticos. Noções teóricas sobre comunidades e metodologia qualitativa
como instrumento de coleta de informações privilegiam a oralidade como forma
de entendimento dos objetivos propostos. Busca-se analisar a identidade e o
papel da mulher na manutenção das tradições culturais quilombolas, na
preservação de sementes crioulas para os cultivos de alimentos e no
mantenimento da sabedoria tradicional camponesa sobre a medicina popular.
Observou-se que tem ocorrido um expressivo crescimento no fluxo de
mulheres migrando para a colheita de café em outros estados do Brasil,
contribuindo para o sobretrabalho e ameaça à manutenção da cultura e dos
plantios nas roças e quintais. Percebeu-se que além da seca que afeta a
produção agrícola nas comunidades e impulsiona o êxodo rural, a nova forma
de migração sazonal camponesa, incluindo agora as mulheres, também tem se
tornado um grande entrave à agregação da família. O trabalho feminino,
entretanto, ainda preserva os laços de solidariedade típicos de sociedades
afrodescendentes, contribuindo para a agregação da família e continuidade das
raízes culturais da comunidade.
1
Trabalho desenvolvido no âmbito do projeto: Estudo de gênero em Comunidades
Remanescentes de Quilombos: O Trabalho das Mulheres nas Comunidades de Pinheiros e
Moça Santa, manutenção cultural e diversidade – Minas Novas e Chapada do Norte/MG, com
apoio financeiro da FAPEMIG e desenvolvido no Laboratório de Pesquisas Terra & Sociedade,
Núcleo de Estudos em Geografia Agrária e Agricultura Familiar do IGC/UFMG.
Palavras-chave: Gênero e Agricultura Familiar, Comunidades Remanescentes
de Quilombos,Vale do Jequitinhonha.
Conta, canta contador,
Conta a história que eu pedi
Dizem que o Jequi tem onha,
2
Conta as onhas do jequi
(GONZAGA MEDEIROS, Poeta do Vale do Jequitinhonha)
Introdução
Estudos científicos têm demonstrado que a agricultura familiar
representa, atualmente, um inestimável papel para o desenvolvimento
econômico do Brasil, principalmente pelo fato de que grande parte dos
alimentos consumidos no país é produzida pelo trabalho dos agricultores
familiares (SABOURIN, 2007; BUAINAIN et al., 2003). Ademais, constata-se
que a agricultura familiar responde pela fixação de relativa parcela da mão de
obra no campo, como vem também contribuindo para a construção de um novo
paradigma de produção agrícola no espaço rural brasileiro, a agricultura
agroecológica.
No entanto, ao passo que diversas pesquisas são realizadas com
enfoques nos aspectos econômicos, agronômicos e sociais da agricultura
familiar, percebe-se que atenção menor tem sido dada a uma compreensão
mais aprofundada das questões que envolvem as relações de gênero e a
agricultura familiar. Dentre os poucos trabalhos já realizados neste âmbito,
merecem destaque os estudos de Heredia e Cintrão (2006) e Bruschini,
Lombardi e Unbehaum (2006), os quais enfatizam questões como os avanços
e os desafios das políticas públicas no campo e os impedimentos para o
acesso das mulheres a programas de desenvolvimento rural, como o Programa
Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar – PRONAF.
No Vale do Jequitinhonha/MG, região de expressivos contrastes na
literatura científica, ora conhecida pela exuberância de sua rica formação
biogeográfica, com ecossistemas de Cerrado, Mata Atlântica, Caatinga e
Veredas (SAINT HILAIRE, 1938; SPIX & MARTIUS, 1981), ora retratada em
estudos como uma região “economicamente deprimida” (CODEVALE, 1973,

2
Reza a lenda que o nome do rio Jequitinhonha e, por conseguinte, do Vale originou-se dos
indígenas que habitavam a região. Os povos primitivos do Vale usavam o "jequi", uma espécie
de armadilha, para capturar peixes, os quais eram chamados de “onhas”. Os índios lançavam o
“jequi” no rio durante o entardecer e, pela manhã do dia seguinte, os mais velhos da tribo
pediam para os mais novos: "Vai menino, vai ver se no “jequi” tem “onha".
1991; FJP, 1988, 2000), a agricultura familiar tem resistido durante décadas
aos constantes avanços da monocultura do eucalipto e à escassez de políticas
públicas voltadas para o pequeno produtor rural.
A manutenção da agricultura familiar nos territórios rurais do Vale do
Jequitinhonha só é possível graças a uma combinação de fatores – migração
sazonal camponesa, trabalho feminino, preservação dos conhecimentos
tradicionais, ação de ONGs, dentre outros – que permitem às famílias
camponesas manter a reprodução socioespacial de seus membros no campo,
ainda que com grandes dificuldades produzidas pela escassez de chuvas e
pela desterritorialização provocada pelas “florestas” de eucaliptos.
Diante desta constatação, o presente artigo procura realizar um estudo
acerca das relações de gênero em Comunidades Remanescentes de
Quilombos do Vale, buscando identificar a importância do trabalho feminino
para a agregação da família e da comunidade, para a preservação dos saberes
tradicionais e para a manutenção das tradições culturais quilombolas.
Buscamos também avançar em análises preliminares já realizadas sobre as
relações de gênero em comunidades quilombolas do Vale, como em Tubaldini,
Diniz e Silva (2010) e Diniz, Tubaldini e Silva (2010).
Acredita-se que a realização de estudos como este representa um
inegável papel na construção de novos conhecimentos acerca da importância
das relações de gênero na agricultura familiar e, principalmente, na
(re)organização do espaço rural em Comunidades Remanescentes de
Quilombos do Vale do Jequitinhonha em Minas Gerais.

Metodologia
A metodologia que norteia a pesquisa é essencialmente qualitativa,
trabalhando informações obtidas em campo através de entrevistas semi-
estruturadas concedidas pelas agricultoras quilombolas.
Foram estudadas 10 (dez) comunidades rurais nos municípios de Minas
Novas e Chapada do Norte, no Vale do Jequitinhonha/MG, a saber: Macuco,
Pinheiros e Mata Dois (Minas Novas); Gravatá 1, Moça Santa, Córrego Santa
Rita, Córrego dos Gamelas, Paiol, Cuba e Misericórdia (Chapada do Norte). As
comunidades de Minas Novas, juntamente com Gravatá 1, estão reunidas em
torno da Associação Comunitária União Quilombola do Macuco. Já Moça
Santa, Córrego Santa Rita, Córrego dos Gamelas e Paiol fazem parte da
Associação Comunitária União Quilombola de Moça Santa, enquanto que Cuba
e Misericórdia estão vinculadas a duas outras associações em Chapada do
Norte. Ressalta-se que todas são reconhecidas pela Fundação Cultural
Palmares – FCP – como Comunidades Remanescentes de Quilombos.
Os trabalhos de campo ocorreram nos anos de 2009 e 2010, nos quais
foram realizadas entrevistas semi-estruturadas junto às agricultoras
quilombolas e às lideranças locais, objetivando compreender as questões que
envolvem, atualmente, as relações de gênero no âmbito da agricultura familiar
nestes núcleos afrodescendentes.
Por meio destas entrevistas foi possível também catalogar espécies
vegetais utilizadas na medicina popular quilombola e identificar os manejos e
as práticas tradicionais da agricultura familiar.
Foram feitos registros iconográficos – fotografias e croquis – dos
agroecossistemas cultivados pelas mulheres em hortos domésticos e nas
roças, de onde se retiram os alimentos consumidos pelas famílias e rendas
extras advindas da comercialização dos cultivos em feiras livres na zona
urbana de seus respectivos municípios.
O trabalho feminino, bem como as manifestações culturais nas danças e
cantigas foram também registrados por fotografias.
Destaca-se ainda que as etapas metodológicas contemplaram a
elaboração de uma revisão bibliográfica sobre noções teóricas de
comunidades, a fim de compreender melhor a realidade empírica pesquisada
nos territórios quilombolas.

Noções teóricas de comunidades


O território no Alto Vale do Jequitinhonha, enquanto distribuição dos
agricultores no espaço geográfico, normalmente está associado à noção de
comunidades rurais que, em grande parte, são nomeadas de acordo com a
toponímia local dos córregos que cortam as terras camponesas. Com
dimensões variadas, as comunidades rurais (quilombolas e não-quilombolas)
possuem uma organização interna pautada na propriedade individual (de uso
exclusivo da família) e coletiva da terra, esta evidenciada pelas “roças
comunitárias”, nas quais um grupo de agricultores planta e colhe alimentos em
espaços de cultivos comuns.
A respeito deste uso singular da terra, GALIZONI et al. (2002, p. 12)
colocam:
O sentido de pertencimento ao território vem da ascendência, do
convívio e da parentela, que se unificam sobre uma terra que todos,
em maior e menor grau, conservam certos direitos comuns. Assim a
terra da comunidade efetiva e permite o exercício dos direitos
derivados da ancestralidade: poder coletar lenha e frutos com
liberalidade, ter acesso exclusivo ou cessão parcial privilegiada de um
determinado barreiro ou nascente, dispor de madeiras - paus-de-
cerne - que podem ser cedidas ou recebidas nas áreas mais
privativas daquela comunidade.
Entretanto, há a necessidade de se tentar clarear o conceito de
comunidade e comunidade rural, uma vez que estes termos são
recorrentemente utilizados no presente trabalho. Ademais, este esclarecimento
torna-se pertinente na medida em que, principalmente a partir da década de
1970, o termo comunidade reaparece através da participação de grupos
ligados à Igreja Católica, com a formação das Comunidades Eclesiais de Base
– CEBs3. Este movimento contribuiu para a (re)organização dos agricultores
familiares na luta por seus direitos através da formação de comunidades rurais
e associações, como é o caso do Vale do Jequitinhonha, e, dentro deste
contexto, o município de Minas Novas, onde estão inseridas as comunidades
rurais quilombolas alvo deste estudo.
O emprego do termo Comunidade4 não é recente, mas continua
recorrentemente sendo utilizado e vem ganhando cada vez mais diferentes
significados. Entretanto, o mais comum é a sua utilização para identificar

3
Comunidades Eclesiais de Base - As CEBs são grupos formados por leigos que se
multiplicam pelo país após a década de 1960, sob a influência da Teologia da Libertação. Sua
idealização se deve ao então cardeal-arcebispo do Rio de Janeiro, dom Eugênio Sales,
integrante da corrente católica mais conservadora. Com o decorrer do tempo, principalmente
frente as injustiças e perseguições a movimentos reivindicatórios durante o Regime Militar, as
CEBs vinculam o compromisso cristão à luta por justiça social e participam ativamente da vida
política do país. Um dos principais teóricos do movimento é o ex-frade brasileiro Leonardo Boff.
Apesar do declínio que experimentam nos anos 90, continuam em atividade milhares de
núcleos em todo o país. Fonte: http://www.portalbrasil.net/religiao_catolicismo.htm Acessado
em: 15 de outubro de 2009.
4
Atualmente o termo comunidade é empregado em diversas ciências (sociologia, psicologia,
geografia, filosofia, etc.), e em inúmeras situações e ambientes sociais: no meio urbano em
vilas e favelas; no meio rural; em grupos sociais e culturais (funk, samba, cinéfolos, etc);
atividades (pescadores, artesãos, catadores, extrativistas); grupos étnicos e religiosos (judeus,
indígenas, quilombolas); comunidades virtuais na web, entre outras. Para este estudo, contudo,
será abordado apenas o conceito de comunidade e comunidades rurais dentro da sociologia e
da geografia rural.
grupos de pessoas que têm em comum uma característica relevante. Desta
forma, é normal encontrarmos o seu emprego em denominações relacionadas
à etnia, religião, nacionalidade, ocupação, entre outros. Dentro da sociologia,
diversos autores consideram que o conceito de comunidade não é um modelo
terminado, e que está em um constante processo de transformação e
readaptações. Conforme Peixoto (2006), a comunidade seria constituída a
partir da união das vontades individuais, ou seja, representa o predomínio do
“nós” sobre o “eu”. Sendo assim, a comunidade teria suas principais
expressões simbolizadas através da família, da religião, da nação e da etnia.
Outro autor clássico recorrentemente citado em trabalhos envolvendo
comunidade e sociedade é Ferdinand Tönnies, sociólogo Alemão da segunda
metade do século XIX e início do século XX. Conforme Brancaleone (2008) e
Peixoto (2006), comunidade para Tönnies pode ser definida como sendo um
grupo social caracterizado pelo envolvimento de seus membros com pessoas
completas, unidas pelo compartilhamento de sentimentos e emoções e vivendo
de forma íntima, privada e exclusiva. Dentro deste contexto, a comunidade
pode ser representada pela família, pelos grupos de vizinhança, pela aldeia
rural, etc. Vale ainda destacar que, para Tönnies, o conceito de comunidade
não pode ser confundido ao de “sociedade” ou “associação”, os quais “referem-
se a um envolvimento com pessoas a partir de papéis parciais e específicos,
condicionados por um acordo racional de interesses no âmbito de uma vida
pública, onde os indivíduos ingressam de forma consciente e deliberada”
(PEIXOTO, 2006, p.5).
Trazendo estas considerações para a realidade das comunidades rurais
quilombolas estudadas, embora o espírito comunitário entre os moradores
delas seja forte, com os laços de amizade, solidariedade e parentesco, nem
todos os membros participam da associação comunitária formada pelas quatro
comunidades rurais em questão, que é uma entidade jurídica e registrada,
contendo estatuto e regulamentos.
O conceito de comunidade quilombola no Brasil relaciona-se ao
campesinato negro habitante dos “sertões”, das serras e dos vales interioranos,
com predominância de populações de matriz africana residindo em seu
território, as quais em tempos anteriores resistiram bravamente à opressão e
exploração do sistema político-econômico das elites governantes do país.
O Contexto Geográfico das Comunidades Estudadas: a dura realidade de
vida das mulheres quilombolas
As comunidades estudadas são compostas por residências construídas
com paredes de adobe, telhado em estilo colonial, havendo em média três a
quatro cômodos por casa. As moradias são desprovidas de saneamento
básico, sendo o esgoto doméstico destinado às fossas negras e a água para o
consumo familiar retirada de poços artesianos comunitários e/ou cisternas
feitas para a captação de água da chuva.
O acesso às comunidades e às propriedades camponesas é, em grande
parte, precário, com estradas não pavimentadas, repletas de buracos e muita
lama no período das chuvas, o que as torna muitas vezes inacessíveis ao
tráfego de automóveis. Acrescenta-se ainda que o acesso às moradias
camponesas torna-se mais difícil quando as residências são construídas nas
vertentes íngremes dos morros que formam as serras suavemente onduladas
da região, o que é muito comum no território em estudo.
O regime climático nas comunidades é caracterizado por duas estações
tipicamente definidas: um verão chuvoso, com chuvas concentradas em
poucos meses do ano – geralmente entre novembro a março, e um inverno
seco, com longos períodos de estiagens. A rede hidrográfica até décadas atrás
era caracterizada por uma densa rede de córregos que margeavam os vales
encaixados entre as íngremes vertentes das comunidades. Entretanto, hoje
poucos córregos ainda permanecem perenes durante o ano, fato que se
acredita estar intimamente ligado à ação antrópica, como desmatamentos nas
áreas de nascentes, queimadas, extração de pedras preciosas e ao plantio de
eucalipto nas unidades geomorfológicas das chapadas.
Já os solos são caracterizados por possuírem índices baixos e médios
de fertilidade, sendo os mais férteis encontrados na planície de inundação dos
córregos e os menos férteis nas chapadas e em suas vertentes.
São comunidades que se caracterizam por um elevado fluxo
populacional de homens que migram sazonalmente para o corte da cana e
para a colheita de café no interior dos estados brasileiros, um fenômeno
característico de grande parte dos territórios rurais do Vale do Jequitinhonha.
A partir desta breve caracterização geográfica nota-se, de antemão, que
o trabalho feminino encontra sérias limitações no território rural das
comunidades quilombolas, o que é agravado ainda mais com os crescentes
índices de migração sazonal de mulheres para a colheita do café, como será
visto a seguir.
Aqui é tanta coisa pra agente preocupar, que aqui é
assim: começa o dia e a menina sai... começa o dia e eu
tenho que fazer de tudo, que eu cuido de boi, eu cuido
de galinha, eu lavo vazia, eu faço almoço... Que quando
é onze horas os menino vai pra escola, eu tenho que
arrumar a cozinha de novo, eu tenho que lavar roupas...
eu tenho que dar conta da janta, tenho que cuidar dos
três netos que mora mais eu...tem o outro menino, da
vizinha ali de cima que foi pro café, que mora mais eu, tá
aqui com nóis... eu tenho que cuidar de tudo...e aí vem a
doença e eu fico mais preocupada... Meu marido sai pro
café também, e é eu quem cuida de tudo... (Agricultora
Quilombola, 57 anos, Comunidade Remanescente de
Quilombos de Moça Santa, Chapada do Norte, Vale do
Jequitinhonha/MG, 2009)

As Viúvas de Maridos Vivos: o trabalho feminino nas comunidades


durante a migração sazonal masculina
Os territórios estudados são expressivamente caracterizados pelo
grande número de homens que migram sazonalmente para o corte de cana no
interior de estados como São Paulo, Bahia e Mato Grosso, e para a colheita do
café em cidades do interior de Minas Gerais. Dentre as principais razões que
justificam a migração sazonal camponesa, destacam-se a ausência de
emprego remunerado no campo e nas zonas urbanas vizinhas, além das
constantes perdas agrícolas provocadas pelos longos períodos de estiagem.
Os homens que migram geralmente já estão na idade adulta, mas tem
sido muito comum a saída de jovens a partir de 16 anos, já que as condições
para se garantir a reprodução socioespacial das famílias camponesas têm sido
cada vez mais limitadas. O período de tempo que a mão de obra masculina
chega a permanecer fora da comunidade geralmente varia entre 7 (sete) a 9
(nove) meses, o que justifica o nome popular dado às esposas dos agricultores
migrantes: viúvas de marido vivo.
Durante todo o período em que os homens estão migrando, cabe a suas
mulheres a realização de todos os trabalhos na propriedade, desde o cuidado
com os plantios dos hortos domésticos e da roça até a construção de cercas,
currais e moradias (FIG. 1).
Figura 1: Mulher quilombola no trabalho da construção civil: a escassez
de mão de obra masculina no campo obriga as mulheres a realizarem
inúmeros e diversificados trabalhos nas propriedades rurais.
Comunidade Quilombola do Córrego dos Gamelas, Município de
Chapada do Norte, Vale do Jequitinhonha/MG, 2009. Fonte: DINIZ, R.F.

Para garantir a reprodução socioespacial da família durante o ano, as


mulheres cultivam em hortos domésticos uma variedade muito expressiva de
cultivos alimentares, como milho, feijão andu, feijão de corda, cana, fava,
frutíferas e hortaliças, alem de criarem pequenos animais, como porcos, aves e
bovinos. A criação destes animais, além de fornecerem alimentos e renda aos
agricultores, representa também um relevante papel nos manejos com os
agroecossistemas cultivados nas roças e nos hortos domésticos, uma vez que
se tornam importantes fontes de adubo orgânico para o solo.
Para exemplificar a (bio)diversidade dos cultivos nestes
agroecossistemas, foram registradas fotografias (FIG. 2 e 3) dos plantios, os
quais são cultivados através de princípios da agroecologia, como sistemas de
policultivos, uso de adubação orgânica (FIG. 4) e preservação da vegetação
rasteira como estratégia de proteção do solo (FIG. 5).

Figura 2: Horto doméstico cultivado na Figura 3: Horto doméstico cultivado na


Comunidade Quilombola de Pinheiros: cultivo Comunidade Quilombola de Gravatá 1: cultivo
de cereais, leguminosas e frutíferas. Município de frutíferas e hortaliças. Município de Chapada
de Minas Novas, Vale do Jequitinhonha/MG, do Norte, Vale do Jequitinhonha/MG, 2009.
2009. Fonte: DINIZ, R. F. Fonte: DINIZ, R. F.
Figura 4: Manejo Agroecológico em quintal de Figura 5: Cobertura morta do solo: manejo
propriedade quilombola na comunidade agroecológico utilizado para evitar perda
Pinheiros: adubo orgânico produzido a partir excessiva de água em períodos de estiagem.
de vegetação rasteira disposto em formato Comunidade Quilombola de Pinheiros,
longitudinal, as leiras. Município de Minas Município de Minas Novas, Vale do
Novas, Vale do Jequitinhonha/MG, 2009. Jequitinhonha/MG, 2009. Fonte: DINIZ, R. F.
Fonte: DINIZ, R. F.

Além das fotografias, os hortos domésticos foram também registrados


em croquis, como na figura a seguir (FIG. 6), na qual pode-se ter uma noção do
arranjo espacial dos cultivos.
Para a manutenção dos cultivos, muitas mulheres contam com a ajuda
do trabalho dos filhos jovens, os quais continuam residindo na comunidade por
não poderem migrar devido à pouca idade (como pode ser observado na FIG.
3, onde se vê uma criança molhando as hortaliças num quintal).
Constatou-se que alem dos cultivos alimentares, as mulheres cultivam
também diversas espécies vegetais de uso medicinal, como alecrim, angico,
arruda, boldo, galuína, quina de papagaio, unha d’anta, barbatimão, dentre
outras inúmeras espécies catalogadas em nossas pesquisas. Os
conhecimentos acerca dos usos medicinais destas plantas são passados de
geração para geração, tendo as mulheres o papel de guardiãs dos saberes
tradicionais quilombolas.
Destaca-se que grande parte cultivos são plantados através da
manutenção de sementes crioulas, como do feijão andu, da fava, de hortaliças
e de frutíferas. A preservação destes materiais genéticos é de responsabilidade
também das mulheres, que guardam a cada colheita as sementes para o
plantio dos cultivos do ano seguinte. Entretanto, constatou-se que para outros
cultivos, como do milho e de abóboras, as sementes utilizadas são híbridas, o
que tem representado uma ameaça constante à preservação da variabilidade
genética dos cultivos alimentares dos agricultores quilombolas.
Acrescenta-se ainda que a preservação destes agroecossistemas tem
sido cada vez mais ameaçada pela migração sazonal. Constatou-se que nos
últimos anos tem ocorrido um elevado fluxo de mulheres migrando em busca
de trabalho, principalmente na colheita de café no interior de Minas Gerais. A
migração sazonal feminina é um fenômeno recente e resultado do expressivo
corte na oferta de emprego aos homens na colheita da cana em São Paulo 5, o
que implica na queda dos rendimentos do núcleo familiar e no agravamento do
quadro econômico dos camponeses quilombolas.
Aqui é poucas mulheres [que permanecem na comunidade] ... aqui
em Moça Santa, Paiol, tudo tão migrano pra São Paulo, só fica
mesmo aqui olha...ficou eu, minha cunhada ... aqui o máximo que
pode ficar é 40% das mulheres. (Agricultora Quilombola, líder
comunitária na Comunidade de Moça Santa, Chapada do Norte, Vale
do Jequitinhonha/MG, 2009).

Vale também ressaltar que a migração sazonal feminina tem


contribuição muito significativa no sobretrabalho da mulher, uma vez que, ao
retornarem para suas comunidades, cabe a elas a realização de todos os
serviços deixados por fazer no período em que estavam fora de casa. Sendo
assim, constatou-se que a rotina diária de trabalho das mulheres migrantes tem
sido muito intensa durante os meses em que retornam para suas moradias, o
que já tem causado sérios problemas de saúde às chefes de família.
Além dos trabalhos a serem realizados nas propriedades, constatou-se
que muitas mulheres cuidam também de inúmeras crianças que permanecem
nas comunidades quando os pais e as mães migram juntos para o trabalho
sazonal. Na comunidade de Moça Santa, a líder comunitária chegou a afirmar
que em 2008 recebeu em sua residência cerca de 8 (oito) crianças que ficaram
“órfãs” durante o período em que seus pais migravam para o corte de cana e a
colheita do café.
Já as mulheres idosas, as quais tem (re)conquistado o reconhecimento
dentro do âmbito familiar e da comunidade por se tornarem arrimos de famílias
com o salário de suas aposentadorias, mesmo com toda dificuldade enfrentada
pelas limitações da idade, ainda desempenham importantes trabalhos

5
A diminuição na oferta de empregos no corte da cana em São Paulo se deve à Lei 11.241, de
19 de setembro de 2002, que dispõe sobre a eliminação gradativa da queima da palha da
cana-de-açúcar. Sem a queima, os grandes produtores de cana são obrigados a substituir o
corte manual pelo uso de máquinas. Para mais informações, consultar:
http://www.al.sp.gov.br/legislacao/norma.do?id=217
Figura 6: Horto doméstico cultivado em propriedade quilombola da comunidade do Macuco, Município de Minas Novas, Vale do
Jequitinhonha/MG, 2009. Autor: DINIZ, R. F.
para a agregação da família camponesa e para a manutenção dos
agroecossistemas de cultivos alimentares.
Destaca-se também que as relações socioculturais estabelecidas dentro
das comunidades quilombolas mesclam, hoje em dia, práticas típicas do
matriarcalismo com alguns fortes resquícios de patriarcalismo. Assim, a
autoridade do pai, “perdida” no tempo em que o homem sai para a migração
sazonal, retorna para ele quando de sua volta para casa, tornando-se
novamente o chefe da família e o responsável pelas decisões mais importantes
sobre a roça, a propriedade e as criações. Além disso, muitas mulheres ao se
casarem mudam-se para a propriedade de seus maridos, mesmo que eles
ainda não tenham construído uma moradia, indicando, dessa forma, o papel de
“submissão” feminina à autoridade do homem nas comunidades quilombolas.
Eles pensa que “se eu morar do terreno da muié” o povo vai falar que
“eu não pude levar pro meu, não pude fazer minha casa”... Aqui de
jeito nenhum a gente [as mulheres] pode ter uma casa antes de a
gente casar, pode ter, mas o homem não vai lá dentro, é racismo...eu
por exemplo, nóis morava numa casa de meu irmão que ele deu pra
mim, era de quatro cômodos, enorme, ele [o marido] não quis de jeito
nenhum, morou um ano, quis morar na casa que ele fez... (Agricultora
Quilombola, 25 anos, Comunidade Remanescente de Quilombos do
Macuco, Minas Novas, Vale do Jequitinhonha/MG, 2009)

Algumas vezes, para as mulheres que convivem em um sistema


patriarcal muito arraigado na cultura familiar, esta “autoridade” do marido chega
até a afetar sua liberdade, impedindo-a inclusive de trabalhar.
Eu não sei porque eu tô trabalhano como agente de saúde não,
porque eles [os homens] não deixam não, os homes não deixa a
mulher trabalhar não, porque, tipo assim, é um racismo que eles tem
de achar que, se trabalhar, fulano lá vai achar que eu [o marido] não
tô dano conta de tratar da mulher, aí não deixa [as mulheres]
trabalhar... quase todas comunidades aqui é assim, eles [os maridos]
não gosta que [a mulher] trabalha.... eu mesma tenho três irmã que
casaram e as mulheres deles só vivem dentro de casa...porque os
outro vão achar que eles não tão dano conta de tratar... (Agricultora
Quilombola, 25 anos, Comunidade Remanescente de Quilombos do
Macuco, Minas Novas, Vale do Jequitinhonha/MG, 2009)

Entretanto, as relações entre gênero não são estáticas e imutáveis, mas


sim dinâmicas e em constante transformação. Neste sentido, percebe-se que
diversas mudanças já são observadas na vida e no papel das mulheres jovens
dentro das comunidades e em seus núcleos familiares, podendo algumas delas
agora estudar, trabalhar fora da comunidade e ser responsáveis por decisões
da propriedade que antes eram restritas à autoridade do homem.
Em relação ao acesso aos seus direitos como cidadãs e como
agricultoras rurais, constatou-se que foram poucas as mulheres que
conseguiram receber o salário maternidade ou adquiriram empréstimos pelo
programa federal do Pronaf Mulher. Este fato se deve principalmente à
ausência de documentações como registro de identidade (RG), Cadastro de
Pessoas Físicas (CPF) e até mesmo de títulos da propriedade da terra onde
residem. Cabe ainda ressaltar, que a falta de informação sobre o direito de
recebimento destes benefícios também contribuiu relevantemente para que
muitas mulheres deixassem de ter acesso às conquistas que vem tendo nas
últimas décadas.
Por fim, destaca-se que a importância da mulher para a família e para a
comunidade vai muito além do que se constatou até aqui. No que diz respeito à
manutenção das tradições culturais afrodescendentes, percebeu-se que é de
responsabilidade das mulheres a preservação e o ensinamento das danças e
dos cantos tradicionais de sua cultura. Nestas danças, as letras das músicas
tocadas referem-se a animais típicos das matas nativas das comunidades,
como o Curiango (FIG. 7) e o Dudu, e as mulheres, ao dançarem, encenam os
movimentos destes animais nas matas.

Figura 7: Dança do Curiango: Tradicional dança


encenada somente por mulheres. Comunidade
Remanescente de Quilombos de Moça Santa,
Chapada do Norte, Vale do Jequitinhonha/MG.
Fonte: DINIZ, R. F.

Além disso, em períodos de festividades nas comunidades, cabe à elas


a preparação dos pratos típicos (FIG. 8 e 9), chamados popularmente de
quitandas, a serem servidos e leiloados nas celebrações.
Figura 8: Tradicional requeijão moreno Figura 9: Mulheres carregando bacias com
produzido nas comunidades quilombolas de quitandas para festa em tradicional celebração
Chapada do Norte e Minas Novas. Comunidade festiva no encontro de comunidades
Remanescente de Quilombos do Córrego Santa quilombolas. Comunidade Remanescente de
Rita, Chapada do Norte, Vale do Quilombos dos Alves, Chapada do Norte, Vale
Jequitinhonha/MG, 2009. Fonte: DINIZ, R. F. do Jequitinhonha/MG, 2009. Fonte: DINIZ, R. F.

Considerações Finais

A partir do presente trabalho, constatou-se o relevante trabalho


desenvolvido pelas mulheres nas comunidades quilombolas de Chapada do
Norte e Minas Novas, assumindo um papel de protagonistas na dinâmica dos
processos socioeconômicos e culturais que vem ocorrendo nestes territórios
rurais caracterizados pela expressiva migração da mão de obra masculina.
Os trabalhos por elas realizados contribuem para o fortalecimento e
agregação da família camponesa, para manutenção dos cultivos em hortos
domésticos e nas roças e para a geração de renda através da comercialização
do excedente das colheitas em feiras livres de seus respectivos municípios.
Além disso, ressalta-se que a preservação dos conhecimentos tradicionais
sobre a medicina popular quilombola, a produção de comidas típicas, as
danças e os cantos de roda são trabalhos realizados pelas mulheres que
adquirem fundamental importância para a manutenção da matriz cultural
afrodescendente destas comunidades.
Deste modo, o trabalho feminino nas Comunidades Remanescentes de
Quilombos representa, cada vez mais, um inestimável valor para a agregação
da família e das comunidades, além de manter viva a tradição sociocultural
guardada há gerações pelos antigos moradores destes núcleos de resistência
da cultura afrodescendente no país.

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