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Resumo
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Reza a lenda que o nome do rio Jequitinhonha e, por conseguinte, do Vale originou-se dos
indígenas que habitavam a região. Os povos primitivos do Vale usavam o "jequi", uma espécie
de armadilha, para capturar peixes, os quais eram chamados de “onhas”. Os índios lançavam o
“jequi” no rio durante o entardecer e, pela manhã do dia seguinte, os mais velhos da tribo
pediam para os mais novos: "Vai menino, vai ver se no “jequi” tem “onha".
1991; FJP, 1988, 2000), a agricultura familiar tem resistido durante décadas
aos constantes avanços da monocultura do eucalipto e à escassez de políticas
públicas voltadas para o pequeno produtor rural.
A manutenção da agricultura familiar nos territórios rurais do Vale do
Jequitinhonha só é possível graças a uma combinação de fatores – migração
sazonal camponesa, trabalho feminino, preservação dos conhecimentos
tradicionais, ação de ONGs, dentre outros – que permitem às famílias
camponesas manter a reprodução socioespacial de seus membros no campo,
ainda que com grandes dificuldades produzidas pela escassez de chuvas e
pela desterritorialização provocada pelas “florestas” de eucaliptos.
Diante desta constatação, o presente artigo procura realizar um estudo
acerca das relações de gênero em Comunidades Remanescentes de
Quilombos do Vale, buscando identificar a importância do trabalho feminino
para a agregação da família e da comunidade, para a preservação dos saberes
tradicionais e para a manutenção das tradições culturais quilombolas.
Buscamos também avançar em análises preliminares já realizadas sobre as
relações de gênero em comunidades quilombolas do Vale, como em Tubaldini,
Diniz e Silva (2010) e Diniz, Tubaldini e Silva (2010).
Acredita-se que a realização de estudos como este representa um
inegável papel na construção de novos conhecimentos acerca da importância
das relações de gênero na agricultura familiar e, principalmente, na
(re)organização do espaço rural em Comunidades Remanescentes de
Quilombos do Vale do Jequitinhonha em Minas Gerais.
Metodologia
A metodologia que norteia a pesquisa é essencialmente qualitativa,
trabalhando informações obtidas em campo através de entrevistas semi-
estruturadas concedidas pelas agricultoras quilombolas.
Foram estudadas 10 (dez) comunidades rurais nos municípios de Minas
Novas e Chapada do Norte, no Vale do Jequitinhonha/MG, a saber: Macuco,
Pinheiros e Mata Dois (Minas Novas); Gravatá 1, Moça Santa, Córrego Santa
Rita, Córrego dos Gamelas, Paiol, Cuba e Misericórdia (Chapada do Norte). As
comunidades de Minas Novas, juntamente com Gravatá 1, estão reunidas em
torno da Associação Comunitária União Quilombola do Macuco. Já Moça
Santa, Córrego Santa Rita, Córrego dos Gamelas e Paiol fazem parte da
Associação Comunitária União Quilombola de Moça Santa, enquanto que Cuba
e Misericórdia estão vinculadas a duas outras associações em Chapada do
Norte. Ressalta-se que todas são reconhecidas pela Fundação Cultural
Palmares – FCP – como Comunidades Remanescentes de Quilombos.
Os trabalhos de campo ocorreram nos anos de 2009 e 2010, nos quais
foram realizadas entrevistas semi-estruturadas junto às agricultoras
quilombolas e às lideranças locais, objetivando compreender as questões que
envolvem, atualmente, as relações de gênero no âmbito da agricultura familiar
nestes núcleos afrodescendentes.
Por meio destas entrevistas foi possível também catalogar espécies
vegetais utilizadas na medicina popular quilombola e identificar os manejos e
as práticas tradicionais da agricultura familiar.
Foram feitos registros iconográficos – fotografias e croquis – dos
agroecossistemas cultivados pelas mulheres em hortos domésticos e nas
roças, de onde se retiram os alimentos consumidos pelas famílias e rendas
extras advindas da comercialização dos cultivos em feiras livres na zona
urbana de seus respectivos municípios.
O trabalho feminino, bem como as manifestações culturais nas danças e
cantigas foram também registrados por fotografias.
Destaca-se ainda que as etapas metodológicas contemplaram a
elaboração de uma revisão bibliográfica sobre noções teóricas de
comunidades, a fim de compreender melhor a realidade empírica pesquisada
nos territórios quilombolas.
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Comunidades Eclesiais de Base - As CEBs são grupos formados por leigos que se
multiplicam pelo país após a década de 1960, sob a influência da Teologia da Libertação. Sua
idealização se deve ao então cardeal-arcebispo do Rio de Janeiro, dom Eugênio Sales,
integrante da corrente católica mais conservadora. Com o decorrer do tempo, principalmente
frente as injustiças e perseguições a movimentos reivindicatórios durante o Regime Militar, as
CEBs vinculam o compromisso cristão à luta por justiça social e participam ativamente da vida
política do país. Um dos principais teóricos do movimento é o ex-frade brasileiro Leonardo Boff.
Apesar do declínio que experimentam nos anos 90, continuam em atividade milhares de
núcleos em todo o país. Fonte: http://www.portalbrasil.net/religiao_catolicismo.htm Acessado
em: 15 de outubro de 2009.
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Atualmente o termo comunidade é empregado em diversas ciências (sociologia, psicologia,
geografia, filosofia, etc.), e em inúmeras situações e ambientes sociais: no meio urbano em
vilas e favelas; no meio rural; em grupos sociais e culturais (funk, samba, cinéfolos, etc);
atividades (pescadores, artesãos, catadores, extrativistas); grupos étnicos e religiosos (judeus,
indígenas, quilombolas); comunidades virtuais na web, entre outras. Para este estudo, contudo,
será abordado apenas o conceito de comunidade e comunidades rurais dentro da sociologia e
da geografia rural.
grupos de pessoas que têm em comum uma característica relevante. Desta
forma, é normal encontrarmos o seu emprego em denominações relacionadas
à etnia, religião, nacionalidade, ocupação, entre outros. Dentro da sociologia,
diversos autores consideram que o conceito de comunidade não é um modelo
terminado, e que está em um constante processo de transformação e
readaptações. Conforme Peixoto (2006), a comunidade seria constituída a
partir da união das vontades individuais, ou seja, representa o predomínio do
“nós” sobre o “eu”. Sendo assim, a comunidade teria suas principais
expressões simbolizadas através da família, da religião, da nação e da etnia.
Outro autor clássico recorrentemente citado em trabalhos envolvendo
comunidade e sociedade é Ferdinand Tönnies, sociólogo Alemão da segunda
metade do século XIX e início do século XX. Conforme Brancaleone (2008) e
Peixoto (2006), comunidade para Tönnies pode ser definida como sendo um
grupo social caracterizado pelo envolvimento de seus membros com pessoas
completas, unidas pelo compartilhamento de sentimentos e emoções e vivendo
de forma íntima, privada e exclusiva. Dentro deste contexto, a comunidade
pode ser representada pela família, pelos grupos de vizinhança, pela aldeia
rural, etc. Vale ainda destacar que, para Tönnies, o conceito de comunidade
não pode ser confundido ao de “sociedade” ou “associação”, os quais “referem-
se a um envolvimento com pessoas a partir de papéis parciais e específicos,
condicionados por um acordo racional de interesses no âmbito de uma vida
pública, onde os indivíduos ingressam de forma consciente e deliberada”
(PEIXOTO, 2006, p.5).
Trazendo estas considerações para a realidade das comunidades rurais
quilombolas estudadas, embora o espírito comunitário entre os moradores
delas seja forte, com os laços de amizade, solidariedade e parentesco, nem
todos os membros participam da associação comunitária formada pelas quatro
comunidades rurais em questão, que é uma entidade jurídica e registrada,
contendo estatuto e regulamentos.
O conceito de comunidade quilombola no Brasil relaciona-se ao
campesinato negro habitante dos “sertões”, das serras e dos vales interioranos,
com predominância de populações de matriz africana residindo em seu
território, as quais em tempos anteriores resistiram bravamente à opressão e
exploração do sistema político-econômico das elites governantes do país.
O Contexto Geográfico das Comunidades Estudadas: a dura realidade de
vida das mulheres quilombolas
As comunidades estudadas são compostas por residências construídas
com paredes de adobe, telhado em estilo colonial, havendo em média três a
quatro cômodos por casa. As moradias são desprovidas de saneamento
básico, sendo o esgoto doméstico destinado às fossas negras e a água para o
consumo familiar retirada de poços artesianos comunitários e/ou cisternas
feitas para a captação de água da chuva.
O acesso às comunidades e às propriedades camponesas é, em grande
parte, precário, com estradas não pavimentadas, repletas de buracos e muita
lama no período das chuvas, o que as torna muitas vezes inacessíveis ao
tráfego de automóveis. Acrescenta-se ainda que o acesso às moradias
camponesas torna-se mais difícil quando as residências são construídas nas
vertentes íngremes dos morros que formam as serras suavemente onduladas
da região, o que é muito comum no território em estudo.
O regime climático nas comunidades é caracterizado por duas estações
tipicamente definidas: um verão chuvoso, com chuvas concentradas em
poucos meses do ano – geralmente entre novembro a março, e um inverno
seco, com longos períodos de estiagens. A rede hidrográfica até décadas atrás
era caracterizada por uma densa rede de córregos que margeavam os vales
encaixados entre as íngremes vertentes das comunidades. Entretanto, hoje
poucos córregos ainda permanecem perenes durante o ano, fato que se
acredita estar intimamente ligado à ação antrópica, como desmatamentos nas
áreas de nascentes, queimadas, extração de pedras preciosas e ao plantio de
eucalipto nas unidades geomorfológicas das chapadas.
Já os solos são caracterizados por possuírem índices baixos e médios
de fertilidade, sendo os mais férteis encontrados na planície de inundação dos
córregos e os menos férteis nas chapadas e em suas vertentes.
São comunidades que se caracterizam por um elevado fluxo
populacional de homens que migram sazonalmente para o corte da cana e
para a colheita de café no interior dos estados brasileiros, um fenômeno
característico de grande parte dos territórios rurais do Vale do Jequitinhonha.
A partir desta breve caracterização geográfica nota-se, de antemão, que
o trabalho feminino encontra sérias limitações no território rural das
comunidades quilombolas, o que é agravado ainda mais com os crescentes
índices de migração sazonal de mulheres para a colheita do café, como será
visto a seguir.
Aqui é tanta coisa pra agente preocupar, que aqui é
assim: começa o dia e a menina sai... começa o dia e eu
tenho que fazer de tudo, que eu cuido de boi, eu cuido
de galinha, eu lavo vazia, eu faço almoço... Que quando
é onze horas os menino vai pra escola, eu tenho que
arrumar a cozinha de novo, eu tenho que lavar roupas...
eu tenho que dar conta da janta, tenho que cuidar dos
três netos que mora mais eu...tem o outro menino, da
vizinha ali de cima que foi pro café, que mora mais eu, tá
aqui com nóis... eu tenho que cuidar de tudo...e aí vem a
doença e eu fico mais preocupada... Meu marido sai pro
café também, e é eu quem cuida de tudo... (Agricultora
Quilombola, 57 anos, Comunidade Remanescente de
Quilombos de Moça Santa, Chapada do Norte, Vale do
Jequitinhonha/MG, 2009)
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A diminuição na oferta de empregos no corte da cana em São Paulo se deve à Lei 11.241, de
19 de setembro de 2002, que dispõe sobre a eliminação gradativa da queima da palha da
cana-de-açúcar. Sem a queima, os grandes produtores de cana são obrigados a substituir o
corte manual pelo uso de máquinas. Para mais informações, consultar:
http://www.al.sp.gov.br/legislacao/norma.do?id=217
Figura 6: Horto doméstico cultivado em propriedade quilombola da comunidade do Macuco, Município de Minas Novas, Vale do
Jequitinhonha/MG, 2009. Autor: DINIZ, R. F.
para a agregação da família camponesa e para a manutenção dos
agroecossistemas de cultivos alimentares.
Destaca-se também que as relações socioculturais estabelecidas dentro
das comunidades quilombolas mesclam, hoje em dia, práticas típicas do
matriarcalismo com alguns fortes resquícios de patriarcalismo. Assim, a
autoridade do pai, “perdida” no tempo em que o homem sai para a migração
sazonal, retorna para ele quando de sua volta para casa, tornando-se
novamente o chefe da família e o responsável pelas decisões mais importantes
sobre a roça, a propriedade e as criações. Além disso, muitas mulheres ao se
casarem mudam-se para a propriedade de seus maridos, mesmo que eles
ainda não tenham construído uma moradia, indicando, dessa forma, o papel de
“submissão” feminina à autoridade do homem nas comunidades quilombolas.
Eles pensa que “se eu morar do terreno da muié” o povo vai falar que
“eu não pude levar pro meu, não pude fazer minha casa”... Aqui de
jeito nenhum a gente [as mulheres] pode ter uma casa antes de a
gente casar, pode ter, mas o homem não vai lá dentro, é racismo...eu
por exemplo, nóis morava numa casa de meu irmão que ele deu pra
mim, era de quatro cômodos, enorme, ele [o marido] não quis de jeito
nenhum, morou um ano, quis morar na casa que ele fez... (Agricultora
Quilombola, 25 anos, Comunidade Remanescente de Quilombos do
Macuco, Minas Novas, Vale do Jequitinhonha/MG, 2009)
Considerações Finais
Referências Bibliográficas
BRUSCHINI, C.; LOMBARDI, M. R. ; UNBEHAUN, S. Trabalho, renda e políticas
sociais: avanços e desafios. In: O Progresso das Mulheres no Brasil. Brasília:
UNIFEM; FUNDAÇÃO FORD; CEPIA. 2006. Disponível em:
http://www.generoracaetnia.org.br/publicacoes/Progresso%20das%20Mulheres-BR.pdf
Acesso em 30/07/2009.
HEREDIA, Beatriz Maria Alásia de; CINTRÃO, Rosângela Pezza. Gênero e acesso a
políticas públicas no meio rural brasileiro. In: O Progresso das Mulheres no Brasil.
Brasília: UNIFEM; FUNDAÇÃO FORD; CEPIA. 2006. Disponível em:
http://www.generoracaetnia.org.br/publicacoes/Progresso%20das%20Mulheres-BR.pdf
Acesso em 30/07/2009.
SABOURIN, Eric. Que política pública para a Agricultura Familiar no segundo Governo
Lula? In: Sociedade e Estado, Brasília, v. 22, n. 3, p. 715-751. Set/dez. 2007
SPIX, Johan Baptist Von & MARTIUS, Karl Friedrich Phillip Von. Viagem pelo Brasil
(1817-1820). Tradução de Lúcia Furquim Lahmeyer. Belo Horizonte: Itatiaia, 1981. 389
p. Título original: Reise in Brasilien.