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XIII Reunião de Antropologia do Mercosul

22 a 25 de Julho de 2019, Porto Alegre (RS)


Grupo de Trabalho 02 - A Antropologia e a Alimentação: perspectivas, desafios e
propostas para a leitura do mundo

COMIDAS TRADICIONAIS DOS POVOS DO MAR COMO IDENTIDADE CULTURAL


DO CEARÁ: CONSIDERAÇÕES SOBRE A COMUNIDADE DA BOCA DA BARRA -
SABIAGUABA - FORTALEZA/CE

Carolinne Melo dos Santos (IFCE - Campus Fortaleza)


Anna Erika Ferreira Lima (IFCE- Campus Fortaleza/Coordenadora do Neabi-Campus
Fortaleza)
Ana Cristina da Silva Morais (IFCE- Campus Fortaleza)
Ricardo da Silva Pedrosa (IFCE- Campus Fortaleza/Vice-Coordenador do
Neabi-Campus Fortaleza)
Akemi Alves Teruya (IFCE- Campus Fortaleza)
RESUMO:

A comunidade da Boca da Barra está localizada no litoral leste da cidade de Fortaleza,


e embora inserida na área urbana mantém importantes elementos socioculturais que a
caracterizam como uma comunidade tradicionais, os quais diversos deles são comuns
aos povos indígenas do litoral cearense. A alimentação, para além da ingestão de
nutrientes, é forma de resistência cultural; o modo de comer, onde e como se come são
rituais que falam sobre um povo. No Ceará, podemos perceber a relevância do caju,
mandioca, coco e batata doce inseridos nas preparações do mocororó, grolado,
tombancia e a cambica nas tradições das comunidades litorâneas. As comidas
tradicionais se perpetuam com o tempo, embora o saber fazer envolto as preparações
sejam passados por décadas através da oralidade. Este trabalho busca entender as
influências indígenas no saber fazer das preparações para as comunidades litorâneas,
como a Comunidade da Boca da Barra. A pesquisa de cunho bibliográfico documental,
aliada a trabalhos de campo com entrevistas semi-estruturadas junto a lideranças da
comunidade supracitada no período de julho a dezembro de 2018, onde pôde-se
efetivar uma comparação dos hábitos alimentares desse grupo social aos alimentos
tradicionais indígenas. Os resultados mostram a aproximação da cultura gastronômica
da Boca da Barra às etnias indígenas do cearenses onde se apresentam sinais de
resistência cultural desses grupos familiares, além do consumo de insumos que
historicamente são cultivados por etnias como os Jenipapo-Kanindé, os Tremembé,os
Anacé e os Tapeba; povos que apresentam relação com os ecossistemas litorâneos​.

Palavras-Chaves: cultura alimentar, povos indígenas, tombancia, grolado, cambica

1.PROBLEMATIZAÇÃO

No estado do Ceará há 14 etnias indígenas reconhecidas pela Funai,


totalizando cerca de 32 mil indígenas,além dos povos em processo de reconhecimento.
De acordo com o artigo 231 da Constituição Federal “São reconhecidos aos índios sua
organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários
sobre suas terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las,
proteger e fazer respeitar todos os seus bens.” Pensando nisso, o presente artigo
entende que o conhecimento acerca das comidas tradicionais dos povos indígenas
devem ser preservadas a fim de que não se perca o saber- fazer envolto as tradições.
As tradições alimentares de um povo são forma de resistência cultural que
mantém a relação íntima com a identidade ancestral dos povos indígenas. ​No Ceará
encontramos com mais frequência a utilização do caju, batata doce, coco, carnes de
caça e crustáceos e frutos do mar na região litorânea do estado. Entretanto, optou-se
por enfocar nas comidas feitas à base de frutos, sementes e plantas dos grupos sociais
pesquisados, uma vez que estabelecer uma pesquisa sobre as comidas à base da
caça desses sujeitos necessitaria de uma discussão mais ampla que a proposta.
A comunidade da Boca da Barra, é uma comunidade tradicional1¹ pesqueira que
encontra-se em processo de (auto) reconhecimento enquanto povos indígenas,
conforme o pescador da Comunidade Boca da Barra, Roniele Silva em agosto de 2018.
A referida comunidade está situada no bairro de Fortaleza conhecido como
Sabiaguaba,no litoral leste da cidade, e possui três subdivisões marcadas na fala dos
moradores mais antigos são elas: Boca da Barra, Gereberaba e Sabiaguaba. A
comunidade em questão habita tradicionalmente a área delimitada como Boca da
Barra (Figura 1 ), situada no encontro do rio Cocó com o mar tendo acesso a área de
mangue da região sendo este inserido no Parque Natural das Dunas da Sabiaguaba
(PNMDS).
Durante os meses de agosto a dezembro de 2018, o Núcleo de Estudos
Afro-brasileiros e Indígenas (Neabi), do Instituto Federal do Ceará (IFCE) - Campus
Fortaleza junto a Biblioteca Comunitária Casa Camboa, localizada na Boca da Barra,
realizou o curso de extensão intitulado “Digitais de Diálogos” do qual foram trabalhadas
09 oficinas para 20 crianças da comunidade da Boca da Barra com as temáticas que
envolviam cultura e soberania alimentar além de questões ambientais relacionadas ao
meio onde vivem. Para a realização da oficina de interpretação ambiental: Cultura
Alimentar da Sabiaguaba foram realizadas reuniões junto às lideranças da comunidade

1
O conceito jurídico de comunidade tradicional adotado nesse trabalho é trazido no Decreto Presidencial
n0 6040 de 2007 que institui a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e
Comunidades Tradicionais que preceitua no art. 3: Povos e Comunidades Tradicionais: grupos
culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de
organização social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua
reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e
práticas gerados e transmitidos pela tradição.
a fim de escolher os pratos tradicionais que fossem tradicionais aos mais velhos e de
alguma forma o consumo destes esteja se perdendo tornando necessário , na visão
das lideranças, o “resgate”, pois não se encontra facilmente no dia a dia e a maioria
das crianças desconhece.

Figura 1 – Mapa de localização da Comunidade Boca da Barra, no Bairro Sabiaguaba,


Fortaleza/CE.

Elaboração: Oliveira; Santos Júnior (2019).

Na referida oficina, foram elaborados três pratos pelas lideranças da


comunidade onde os insumos como suco de caju, castanha, farinha, batata doce,
rapadura e/ou coco estão presentes, foram estes: Tombancia, grolado e cambica.
Nesse sentido, constituiu-se como questão problematizadora: - Quais as comidas
tradicionais que representam a comunidade da Boca da Barra - Sabiaguaba - Ceará?
Como esses são elaborados pela comunidade e em quais situações? Quais as
comidas tradicionais comuns entre os povos do mar da Sabiaguaba e os povos
indígenas localizados na Zona Costeira Cearense?
Assim, o objetivo da pesquisa versou por analisar a importância das comidas
tradicionais para os povos do mar, buscando semelhanças da comunidade da
Sabiaguaba aos povos indígenas Tremembé, Anacé, Tapeba e Jenipapo - Kanindé.

2. METODOLOGIA

A pesquisa de caráter qualitativo perpassou pela realização de uma revisão


bibliográfica perpassando por autores que trabalham cultura alimentar , tradição e
saberes tradicionais indígenas, à exemplo de Poliana Bruno Zuin,Luís Fernando
Soares Zuin,Dolores Freixa e Guta Chaves. Conforme Tozoni-Reis (2007), a
metodologia qualitativa tem sido utilizada para conceituar investigações científicas que
levam em consideração a importâncias dos aspectos qualitativos da realidade que se
utilizam de instrumentos próprios que buscam revelar, compreender, analisar e
interpretar; em que se busca responder não somente o questionamento “o que é isso?,
mas, sim, o “porque é isso” (SOUSA, 2015).
A pesquisa também se caracteriza etnográfica, uma vez que, conforme segundo
Bogdan; Taylor (1975 ​apud FINO, 2003), definiram a observação participante como
uma investigação que se caracteriza por um período de interações sociais intensas
entre o investigador e os sujeitos, no meio destes, durante o qual os dados são
recolhidos de forma sistemática.
Nesse contexto, a presente pesquisa se configurou como qualitativa e
etnográfica, cuja base é entendida como capaz de incorporar aos atos, às relações e
as estruturas sociais, a questão do significado e da intencionalidade, decorrentes de
construções, humanas significativas. Estudos qualitativos possibilitam o conhecimento
de hábitos alimentares, a partir de cuidadosas observações e relatos dos sujeitos sobre
a significação desse objeto da cultura. Em cada contexto específico, códigos da cultura
podem ser decifrados e representações sociais podem justificar condutas, hábitos e
valores. (MINAYO, 1994; SOUSA, 2015).
Vale ressaltar que a pesquisa foi desenvolvida a partir de etapas dentre as quais
constam: 1) levantamento de dados, dos quais se seguiram a organização e análise do
material (entrevistas, bibliografias, fotos, vídeos, sites e jornais); 2) a segunda etapa foi
realizada com mulheres e homens que elaboram comidas consideradas como
tradicionais, em que constam perguntas que tratam: da forma de preparo, a utilização
de ingredientes, como se deu o aprendizado, se é repassado, ou seja, foram realizadas
cinco entrevistas com: a) Pescadora da Sabiaguaba, 55 anos, Comunidade da Boca da
Barra; Índio Anacé, 71 anos, Aldeia Japuara; Índia Anacé, 85 anos, Aldeia Mangabeira;
Índio Tremembé da Barra do Mundaú, 23 anos, Aldeia São José; Índio Tapeba, 25
anos, aldeia Lagoa dos Tapeba, Índio Jenipapo Kanindé , 44 anos, aldeia Lagoa
Encantada no qual tais sujeitos sociais possuem vínculos diretos com esses alimentos,
tendo em consideração a perspectiva da história oral. (THOMPSON, 1998); e 3)
Levantamento bibliográfico referente a povos indígenas, comunidades e povos
tradicionais, cultura, etnografia, a exemplo de autores como Gomes (2012), Castro
(1999); Diegues (1999), a Relação entre a biodiversidade e as comunidades
tradicionais; e Cascudo (2011), História da alimentação no Brasil.
Dentre os conceitos, abordaremos a discussão sobre alimentos com autores
como Zuin; Zuin (2007), os quais tratam de alimentos tradicionais e da produção dos
mesmos; Soeiro (2000), que indica a disponibilidade dos produtos tradicionais e os
quais não eram percebidos pela sua importância nutricional; Pollan (2008), que discute
o que seria a comida de verdade e Gimenes (2011), que caracteriza o alimento típico.
Nesse sentido, será debatida a compreensão entre alimento e comida, por meio
dos conceitos de autores como Santos (2007), Sousa (2015) e Nascimento (2016), o
quais falam sobre as concepções de alimento e comida na perspectiva das Ciências
Humanas; Da Matta (1997), que concebe a comida como importante “Código de
expressão da sociedade brasileira”; Maluf (2007), que discute Segurança alimentar e
nutricional e Salgado (2007), que discute a segurança alimentar e nutricional em terras
indígenas.
Ressalta-se que optou-se por preservar os nomes dos entrevistados, nos
limitando à indicar o sexo, nome da sua comunidade e a idade.
Ademais, afirma-se que os saberes que constam nesse artigo serão
relacionados aos saberes da história, sobre a vida, o espaço e a cultura. Esses saberes
em si, conforme Nascimento (2016), são o reflexo do que foi passado pelos laços
afetivos e de familiaridade. Para a autora, tanto a prática da narrativa quanto a escuta
dessas histórias de vida, permitiram que o valor dos saberes sejam resguardados e
passados de geração para geração como tradição, o que permite, portanto, que os
narradores e até os ouvintes sejam protagonistas da história, do saber. De acordo com
Vansina (2010), esses tipos de conhecimento são na verdade tradições orais,
elocuções - chaves que possibilitam a preservação da sabedoria dos ancestrais algo
que possa ser transmitido verbalmente para as gerações futuras.
De acordo com Nascimento (2016), a aproximação com as comunidades
permitem dar visibilidade a esses conhecimentos locais, que por diversas vezes são
desvalorizados pela ciência moderna eurocentrada que expropriam as vozes dos
produtores do saber. Nesse contexto, acredita-se que a reafirmação dos saberes locais
é uma forma de elevar e valorizar os principais sujeitos que dão vida à narrativa do
saber.

3. COMIDAS TRADICIONAIS DOS POVOS INDÍGENAS DO MAR NO CEARÁ -


BRASIL

O Estado do Ceará tem 14 povos (Figura 2); dos 24 territórios indígenas com
processo de demarcação em curso, apenas a Terra Indígena Tremembé de Almofala
teve a homologação publicada, em 06 de maio de 2003. ​Destes, cerca de 4 etnias
possuem territórios localizados na Zona Costeira, sendo que existem comunidades que
além dos povos indígenas, enfrentam as mesmas problemáticas relacionadas ao
reconhecimento de seus territórios pelo Estado.
O Pescador da Sabiaguab​a, 29 anos, Comunidade da Boca da Barra, afirmou
que “A gente passa por esse mesmo processo dos indígenas. Nossa comunidade não
é reconhecida e querem nos tirar do lugar em que vivemos, que tem até sítio
arqueológico com datação de mais de 4 mil de anos” (2019). O Governo do Estado do
Ceará, conforme o "Mapa dos Conflitos envolvendo a Injustiça Ambiental e Saúde no
Brasil" (2019) alega que a área ocupada pela comunidade de pescadores é um parque
de proteção ambiental, o Parque do Cocó, Decreto nº 11.986 de 2006. Há uma
proposta, elaborada pelo Ecos da Cidade, para manter a comunidade Sabiaguaba
como Área de Preservação Ambiental (APA), um território essencial para a
conservação dos costumes da Comunidade.

Figura 2 - Mapa das Etnias e Territórios Indígenas do Ceará


Fonte: PALITOT, Estevão Martins (org.). Na Mata do Sabiá: contribuições sobre a presença
indígena no Ceará. Fortaleza: Museu do Ceará/ Imopec,2009, p.35.

Os territórios tradicionais além de assegurar a sobrevivência dos povos e


comunidades tradicionais:
[...] constituem a base para a produção e a reprodução de todo o
seu patrimônio cultural. A realidade atual reflete a necessidade de
mudanças que permitam a estes povos e comunidades a
experiência de viver sua cidadania, sem que tenham que abrir
mão de suas práticas culturais, sociais e econômicas (BRASIL,
1998 ​apud M ​ ONTE ALTO, 2012, p. 52).
Conforme Nascimento (2016), o conceito de tradicional pode ser explicado por
diversos autores, de acordo com Little (2010), surgem dois novos conceitos na década
de 1990 com origens ligadas a dois elementos distintos: o movimento ambientalista e
dos direitos étnicos. Devido a isto foi instituída pelo Governo Federal em 2007 pelo
Decreto nº 6.040 a ​Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e
Comunidades Tradicionais ​(​PNPCT​) ​que visa estimular o desenvolvimento sustentável
dos povos e comunidades tradicionais, com foco no reconhecimento, garantindo seus
direitos territoriais e seu espaço na sociedade valorizando sua identidade e seu modo
de organização.
Muitos desses grupos resistiram às tentativas dos
conservacionistas de tomar o controle das terras que habitavam e
que constituíam o sustento do seu modo de vida. Também não
aceitaram passivamente as novas categorias que lhes foram
colocadas. Uma das respostas dos grupos sociais impactados
pela criação das áreas protegidas foi reivindicar o status de “ser
tradicional” como arma na sua luta para ganhar reconhecimento
étnico do Estado brasileiro e para defender seus recursos culturais
frente a sua potencial expropriação ou desaparecimento [...]
​ ITTLE, 2010, p. 11).
(LITTLE, 2004, ​apud L

Para Lima (2008), o Território é condição indissociável para garantia das


condições mínimas que levarão à constituição dos modos de vida das comunidades
autóctones, onde devem ser protegidos seus recursos culturais. Nesses ambientes
serão definidas as relações sociais e as elaborações das comidas que são comuns aos
diversos grupos sociais. Invariavelmente, os grupos que ocupam a Zona Costeira terão
entre seus alimentos tradicionais, elaborações advindas do que é endêmico dos
Tabuleiros Pré-Litorâneos, como o caso da cajueiro e muricizeiro, bem como do que
advém do mar.
Vale ressaltar, conforme Souza (1998), que os tabuleiros pré-litorâneos
representam a faixa de transição entre o domínio das terras altas e da planície costeira,
moldados nos sedimentos mio-pleistocênico da Formação Barreiras. Sua distribuição é
ao longo da linha de costa estando situados na retaguarda da frente marinha, sendo
interrompidos pelos estuários dos rios que atingem o litoral. Sua forma de relevo é
tabular e é dissecado pelos riachos litorâneos de vales alongados e fundo chato.
Penetram cerca de 40 km no interior do continente e tem altitude média de 30 a 50
metros, raramente ultrapassando 80 metros. Muitas vezes, chegam ao litoral,
constituindo falésias mortas ou vivas (SOUZA, 1988).
No entanto, o artigo foca na produção que vem da terra, o que por muitos
séculos, conforme a Pescadora da Sabiaguaba, 55 anos, Comunidade da Boca da
Barra, afirmara que "era o que estava bem próximo da gente...ali no quintal. Nas
nossas mãos, sabe?!"(Entrevista realizada em 12/06/19).
Os alimentos ditos tradicionais são aqueles que contam a história de um povo,
as características sociais , familiares destes coletivos que passam o conhecimento dos
saberes-fazer através da oralidade onde se destacam o uso de insumo presente no
meio ambiente em que se encontram caracterizando uma região.
Alimentos tradicionais são aqueles que nos chegam vindos de um
passado longínquo, por meio de gerações que foram produzindo,
recriando e atualizando. Construídos desta maneira, a história
desses produtos é também a história de coletivos sociais
(comunidades), de suas formas de organização social, de seus
recursos, de sua existência.​ ( ZUIN, ZUIN, 2009, p.98).

Na visão do entrevistado índio Tremembé da Barra do Mundaú (Itapipoca-


Ceará), aldeia São José, 23 anos, em entrevista realizada em 15/06/19, comida
tradicional é o alimento cujo o consumo passa de geração pra geração que é sagrado,
é cultura e passa a ser considerado tradição porque o conhecimento acerca do
processo de fabricação se mantém com o passar dos anos. ​Muller (2012) conceitua
Gastronomia Tradicional da seguinte forma:
[...] o conjunto de produtos alimentares e processos produtivos
característicos de uma região, elaborados em conformidade com
valores simbólicos , tradicionais ou históricos que expressa a
história , geografia, clima e organização social, podendo ser
inserida no conjunto de bens que compõem os chamados
Patrimônios Culturais Imateriais. (p.51)

O índio Anacé, aldeia Japuara, 71 anos, em entrevista realizada em 12/06/19, cita


alguns alimentos que considera tradicionais de sua aldeia “Nossa comida tradicional,
pra nós aqui , que eu conheço, é o peixe, a carne e a caça.”
Para o Índio Tapeba, aldeia lagoa dos Tapeba, 25 anos, em entrevista realizada
em 12/06/19, comida tradicional é “Comida tradicional são as comidas típicas (..) É a
comida típica, né? Do nosso povo? É o inhame, macaxeira, preá , mocó, tejo,
tamanduá, mambira, tatu ,peba são algumas comidas tradicionais dos povos indígenas,
inclusive do meu povo ”
Segundo ​Freixa e Chaves (2015)​, a culinária indígena tem forte ligação com a
pesca e com a caça, e podemos perceber estes hábitos na atualidade :
Os índios ainda hoje se fartam com os pescados de rio (como o
pintado,o tucunaré, o pirarucu, a corvina e a piranha). E conhecem
vários processos para capturá-los ( flecha, arpão, pua[rede]) e um
tipo de veneno vegetal, o timbó que paralisa o peixe. Os indígenas
do litoral sempre apreciaram os moluscos e crustáceos capturados
à mão ou com armadilhas. As possibilidades de caça também
eram muitas. A começar pelas carnes dos mamíferos, como
porco-do-mato,capivara,caititu,paca,veado, macaco e anta. Entre
as aves mais consumidas estavam jacus,mutuns,
pavão-do-mato,macuco, rolas, patos selvagens e peru (p.172)

Os entrevistados apresentam bastante similaridades no que diz a respeito ao


consumo de peixes, crustáceos, carnes de caça, caju e seus derivados, mandioca e
seus derivados.
O Índio Tremembé da Barra do Mundaú, 23 anos, aldeia São José, descreve
uma íntima relação da comunidade com com os alimentos retirados do mangue e do
ma ligados a relação ancestral com a terra:
Não tem como eu definir um alimento que seja do coletivo em
geral, mas posso citar alguns alimentos que todos tenham
acesso que é o beiju de forno, pirão de farinha branca, pirão de
peixe molinho, o peixe assado na brasa … na fogueira, na
verdade, a ostra na fogueira, peixe com muito caldo no leite de
coco.. E daí também se faz o pirão desse peixe, dessa peixada,
o caranguejo na batata doce são coisas que são muito forte no
território ancestral do povo tremembé da Barra do Mundaú (..)
Você também vai ver muito a galinha caipira com o baião ou
feijãozinho. ( Entrevista realizada em 15/06/19)

A Pescadora da Sabiaguaba, comunidade Boca da Barra, 55 anos, em entrevista


realizada em 12/06/19, nos descreveu sua forte relação com a pesca de peixe e
mariscos como siri, caranguejo e também nos revelou que seu pai além de pescador
era caçador e costumavam consumir aves e répteis como no seguinte trecho da
entrevista :
Eram aves selecionadas, as que tinha aqui eram Karão que a gente
mais consumia (...) ele matava chicóia, nambu, ele matava (...) jacu , aí
tinha os réptil que a gente comia que hoje em dia a gente não consegue
mais (...) o tempo passa e o estômago da gente vai rejeitando certas
comidas. Porquê a gente consumia bastante (...) Era o camaleão,
tijuaçu … a gente comia cozido.

4. COMIDAS E PREPARAÇÕES DA COMUNIDADE DA BOCA DA BARRA -


SABIAGUABA - FORTALEZA - CEARÁ.

Durante o curso de extensão Digitais de Diálogos realizado através de parceria


do Neabi- Campus Fortaleza com a Biblioteca Comunitária Casa Camboa localizada na
comunidade da Boca da Barra foi executada a oficina intitulada ​Oficina de Interpretação
ambiental: Cultura Alimentar da Sabiaguaba, ​no qual lideranças da comunidade
prepararam a tomabancia, a cambica e o grolado , durante a mesma podemos
perceber que a maioria das crianças nunca tinham experimentado a tombancia,
algumas conheciam a cambica e todas foram capaz de reconhecer o grolado.
A tombancia (Figura 3) apresenta em sua elaboração vários traços da culinária
tradicional como é o caso do suco de caju, da farinha e da rapadura utilizados no
preparo. A tombancia é um prato feito a frio, sem necessidade de fogo, onde são
misturados castanha de caju triturada, rapadura, suco de caju e farinha até que fique
homogêneo com consistência próxima a de pirão.
Em entrevista realizada em 12/06/19 com Pescadora, 55 anos, comunidade
Boca da Barra, lembra de sua infância quando ​torrava2 as castanhas com sua mãe
para a preparação da tombancia :
A tombancia era quando chegava a época das castanhas, ai nós ia
coletar castanha porque nós vendia castanha. A gente juntava sacas de
castanha, porque tinha muito cajueiro e nós juntava muita castanha. (...)
E nós ia tudo quebrar castanha em casa (..) Era quebrando e desviando
pra boca e ela dizia que não ia sobrar castanha pra fazer a
tombancia.(..) ela tinha um pilão bem grande (...) Ela levava pro pilão,
minha filha, colocava as castanhas dentro com rapadura e fazia aquela

2
Processo artesanal de tostar a castanha em telhas de aluminio em churrasqueira improvisada.
farofa da castanha com rapadura, quando chegava a época do caju ela
olhava pra mim e já mandava eu coletar uns cajus (...)

Figura 3: Tombancia sendo preparada na Oficina de Cultura alimentar na Boca


da Barra

Fonte: Pesquisa Direta (Neabi - Campus Fortaleza, 2018).

Em entrevista no dia 12/06/19 o Índio Tremembé da Barra do Mundaú, 23 anos,


da Aldeia São José, reconhece a tombância por outro nome, para seu povo o prato
recebe o nome de timbancia, a cambica e o grolado também fazem parte dos hábitos
alimentares de seu povo, contudo o mesmo ressalta que a timbancia e a cambica são
preparações sazonais, pois o caju e a batata doce não estão disponíveis durante todo o
ano. Já o grolado, faz parte do cotidiano de seu povo, pois sempre tem farinha
advindas das casas de farinha da comunidade.
Contudo, em entrevista realizada em 17/06/19 com Ìndio Jenipapo- Kanindé, 44
anos, aldeia Lagoa Encantada, mostrou estranheza ao ouvir o nome “tombância” e
disse não reconhecer tal prato.
A Cambica (Figura 4) é um purê de sabor levemente adocicado preparado com
batata doce, leite de coco e sal, pegando a batata doce cozida amassando com o garfo
e adicionando aos poucos o leite de coco preparado na hora com o coco seco, colhido
na comunidade, ralado para a produção do leite de coco e uma pitada de sal e não
necessita ir ao fogo.
Figura 4: Cambica sendo preparada na oficina de cultura alimentar na Boca da
Barra.

Fonte: Pesquisa Direta (Neabi - Campus Fortaleza, 2018).

Em entrevista com a pescadora da comunidade da Boca da Barra,55 anos,em


12/06/19, lembra de sua mãe fazendo a cambica constantemente em sua infância:
A princípio minha mãe plantava batata em casa, tanto no sítio na Lagoa
Redonda como aqui na Sabiaguaba. (..) Quando ela tava disposta,
chegava cedo e cozinhava. Para nós que éramos crianças, fazíamos
aquele pratão grande de cambica. Ela pegava a batata cozinhava a
batata todinha… não tinha esse negócio de tirar a casca da batata não.
A batata era toda lavada, cozida e tirava o leite enquanto ia cozinhando..
Ela ia raspando o coco pra fazer o leite de coco. Pegava uma vasilha
grande, amassava a batata dentro e depois botava o leite de coco, fazia
o que ela chamava de cambica.

Em entrevista realizada em 17/06/19 com Ìndio Jenipapo-Kanindé, 44 anos,


aldeia Lagoa Encantada, o mesmo descreve, sem muita riqueza de detalhes, outra
preparação que conhece com o nome de quarenta ou cambica :
A gente tem dois modelos de faze,um a gente chama de cambica e
outro de quarenta.(...) Pega o milho, amassa, bota na panela, mexe e
deixa ele virar o angú pra fazer a cambica, depois tira e ele fica dura
igual um bolo.

O Grolado é bastante reconhecido como comida que faz parte do dia a dia dos
povos indígenas do Ceará, ​Antunes ​et al.​ (2016) destaca esta produção como memória
povo Jenipapo - Kanindé :
Concluímos que a preparação do produto Grolado, se dar por meio do
reaproveitamento da borra , ue está entre a goma resultado do
procedimento descrito. Mais um prato típico do grupo indígena Jenipapo-
Kanindé faz-se referência à memória e à identidade cultural dos povos
indígenas e consequentemente à cultura alimentar cearense.
Pretende-se realizar uma reflexão, a partir da tradição na produção e no
consumo local, o que nos remete às nossas próprias raízes históricas.
(p.40).

O Grolado, por ser mais popular entre as crianças não foi executado, apenas
houve um debate a respeito da preparação. Contudo o grolado é uma “espécie” de
farofa feita com a goma de tapioca e coco .
Durante as entrevistas foi questionado aos entrevistados se eles reconheciam as
três preparações como comida tradicional de sua comunidade, apenas um não
reconheceu as três preparações, contudo dos demais nem todos as consideram a
comida mais tradicional ou como elemento que caracterize como identidade da
comunidade priorizando outros insumos ou preparações.
Em entrevista realizada em 12/06/19 com o índio Tapeba,aldeia lagoa dos
Tapeba, 25 anos, conta que nunca comeu tombancia, contudo nos informou que
algumas famílias de sua aldeia costumam consumir a preparação. Ao ser questionado
sobre a cambica, ele reconhece a preparação, mas não a considera uma comida
tradicional para seu povo. Para o mesmo, comida tradicional é algo mais ancestral, ele
considera que para seu povo o tradicional seria : o aluá de coco babão também
conhecido como catolé e a farinha também feita deste coco. Já o grolado e outras
preparações com a goma de tapioca são preparações que fazem parte do seu dia a
dia.
A Índia Anacé, 85 anos, Aldeia Mangabeira, lembra, em entrevista realizada em
12/06/19, que no passado costumava consumir o grolado com camarão, com piabuçú,
piaba e cará .

4. CONSIDERAÇOES FINAIS
As preparações a partir do caju, mandioca, batata doce acompanhadas de
peixes, mariscos e frutos do mar fazem parte da identidade cultural dos povos
indígenas da zona costeira cearense.
Analisando as preparações realizadas na oficina de cultura alimentar na
comunidade da Boca da Barra na Sabiaguaba que são tombancia, cambica e grolado é
notória a similaridade aos hábitos alimentares indígenas dos povos entrevistados como
Tremembé da Barra do Mundaú, Anacé da Japuara, Tapeba e Jenipapo- Kanindé .
Durante as cinco entrevistas realizadas durante o mês de junho de 2019
podemos perceber também que ainda é significativa a presença das carnes de caça
nas refeições dos entrevistados.
A respeito de cultura alimentar a fala dos entrevistados nos revela uma relação
bem mais profunda onde está em pauta a relação com a ancestralidade, os
ensinamentos que ultrapassam gerações há séculos, a relação espiritual de sagrado
com a terra onde procura-se consumir preferencialmente aquilo que está ao alcance
das mãos respeitando a sazonalidade das plantas e o defeso dos animais para que
nunca falte alimento.
5. REFERÊNCIAS
ANTUNES, Ticiana et al. Grolado: Comida de Ìndio?: Considerações sobre a relação
entre comida e cultura do povo indígena Jenipapo- Kanindé do Ceará. ​Gastronomia​:
Da tradição a Inovação, Fortaleza, v. 1, n. 1, p.39-40, 23 set. 2016. Anais do II
Congresso Internacional de Gastronomia. Disponível em:
<http://pubhtml5.com/gzqg/sfcv/basic>. Acesso em: 16 jun. 2019.

DaMATTA, Roberto. ​O que faz o brasil, Brasil?​ 8. ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.

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