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Socioantropologia de Povos e

Comunidades Tradicionais
Costeiras e Ribeirinhas

Flávio Bezerra Barros


Francisca de Souza Miller
Cristiano Wellington Noberto Ramalho
EDITORA
Socioantropologia de Povos e
Comunidades Tradicionais
Costeiras e Ribeirinhas
Flávio Bezerra Barros
Francisca de Souza Miller
Cristiano Wellington Noberto Ramalho

Socioantropologia de Povos e
Comunidades Tradicionais
Costeiras e Ribeirinhas

EDITORA

Belém, PA
2023
Universidade Federal do Pará - UFPA
Reitor - Emmanuel Zagury Tourinho
Vice-Reitor - Gilmar Pereira da Silva

Instituto Amazônico de Agriculturas Familiares - INEAF


Diretor - William Santos de Assis
Diretor Adjunto - Paulo Fernando da Silva Martins

EDITORA

Editora do INEAF
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Sônia Barbosa Magalhães

Editoração Eletrônica
Cauã Victor Silva

Revisão
Flávio Bezerra Barros

Normalização
Naiara Soraia Lisboa Lima

Capa: Dia de Mariscar


Andreia Santos
Acrílica sobre Tela, 27 x 35
2021

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


de acordo com ISBD
Biblioteca do INEAF/UFPA-Belém-PA

S678 Socioantropologia de povos e comunidades tradicionais


costeiras e ribeirinhas [recurso eletrônico] /
Organizadores: Flávio Bezerra Barros, Francisca
de Souza Miller, Cristiano Wellington Noberto
Ramalho – Belém: INEAF, 2023.
PDF (202 p.) : il. color.

Inclui bibliografias
ISBN 978-65-89473-05-3 (livro digital)

1. Antropologia. 2. Comunidades tradicionais.


I. Barros, Flávio Bezerra, org. II. Miller, Francisca
de Souza, org. III. Ramalho, Cristiano Wellington
Noberto, org.

CDD 22. ed. – 305.8981

Elaborado por Naiara Soraia Lisboa Lima – CRB- 2/1563

Realização
Instituto Amazônico de Agriculturas Familiares (INEAF/UFPA)
Rua Augusto Corrêa, nº 1, Campus Universitário do Guamá, Belém, Pará
CEP: 66075-110 - Fone: (91) 3201-7913
E-mail: editoraineaf@ufpa.br
SUMÁR O
A PRE S E NTA Ç Ã O . . . . . . . . . . . . ............................. 7

PRE F Á C I O . . . . . . . . . . . . . . . . . .............................. 10

CAP Í TU L O I O caso da pesca artesanal da Ilha do Maio, Cabo Verde, em perspectiva 12


etnográfica: um ensaio sobre o contexto de crise do pescado e seus
desdobramentos no cotidiano da pesca

João Paulo Araújo Silva

CAP Í TU L O I I “Ninguém sabe que a gente existe”: reflexões antropológicas com 37


pescadoras embarcadas da pesca artesanal lagunar no Rio Grande do
Sul
Liza Bivalha Martins , Gianpaolo Knoller Adomilli

CAP Í TU L O I I I Breve etnografia do comércio de peixes em dois municípios do Sul 59


do Espírito Santo: aspectos morais do Sistema de Crédito Econômico
Local
Márcio Filgueiras, Ana Beatriz Oliveira, Edilson de Oliveira Costa,
Higor Goltara Bianchine, Wagner Lieres dos Santos

CAP Í TU L O I V O Cajueiro: uma releitura etnocartográfica do processo de 74


territorialidade

Luciana Railza Cunha Alves, Gerson Carlos Pereira Lindoso,


Christiane de Fátima Silva Mota

CAP Í TU L O V O leme: histórias e lutas das pescadoras 89

Maria do Rosário de Fátima Andrade Leitão, Amanda Gonçalves Pereira

CAP Í TU L O V I O cultivo de ostra do mangue pelos Potiguara no litoral norte da 114


Paraíba: alternativa produtiva e sustentabilidade

Fabiana Bezerra Marinho, Maristela Oliveira de Andrade,


Maria Cristina Crispim

CAP Í TU L O V I I Turismo de base comunitária e o fortalecimento dos movimentos de 134


resistência territorial: o caso na comunidade tradicional quilombola do
Cumbe, Aracati, Ceará, Brasil
Anderlany Aragão dos Santos, Francisca de Souza Miller,
Doris Almeida Villamizar Sayago

CAP Í TU L O V I I I Turismo e agência entre os ribeirinhos: a casa de chocolate da Ilha do 154


Combú, Pará

Thainá Guedelha Nunes, Lourdes de Fátima Gonçalves Furtado

CAP Í TU L O I X Práticas extrativistas na Ilha do Marajó, Pará: influências do Programa 177


Bolsa Família e de fatores endógenos e exógenos na dieta alimentar
de famílias ribeirinhas

Vivianne Nunes da Silva Caetano, Flávio Bezerra Barros

SOB RE ORGA NI Z A D ORE S E A UT ORES ................... 199


7 Socioantropologia de Povos e Comunidades Tradicionais Costeiras e Ribeirinhas

A P R E S E N TA Ç Ã O

A ideia da construção desse livro nasceu a partir do Grupo de Trabalho


(GT) “Antropologia de povos e comunidades tradicionais costeiras e ribeirinhas”,
o qual reuniu resultados de estudos de pesquisadores e pesquisadoras de várias
partes do Brasil, durante a VI Reunião Equatorial de Antropologia, ocorrida em
Salvador/BA, entre 9 e 12 de dezembro de 2019. O GT teve como objetivo refletir
acerca do contexto das pesquisas antropológicas sobre grupos que habitam as
regiões costeiras e ribeirinhas brasileiras desde seus processos de percepção e
percursos no ambiente marítimo-costeiro e ribeirinho.

Em face da qualidade e importância dos trabalhos para o


conhecimento socioantropológico dessas categorias sociais que desenvolvem, a
partir dos seus diferentes modos de viver e criar, suas práticas sociais cotidianas
para a reprodução material e simbólica de suas famílias, consideramos que
este empreendimento seria de enorme relevância para dar a conhecer esses
contextos no Brasil, e também um caso em Cabo Verde, África.

No capítulo um, João Paulo apresenta resultados de sua pesquisa


de mestrado levada a cabo na Universidade Federal de Minas Gerais, cujo
foco foi compreender o processo de invisibilização de comunidades de
pescadores artesanais em Porto Inglês, na Ilha do Maio, Cabo Verde. Partindo
de uma abordagem histórica, e também etnográfica, com trabalho de campo
conduzido no terreno das águas marinhas da região insular, o pesquisador quis
também entender os desdobramentos sociais e políticos dessa invibilização no
cotidiano das pescas no contexto dos conflitos locais.

Já o segundo capítulo do livro nos transporta para o Rio Grande do


Sul, com o estudo preconizado por Liza e Gianpaolo, envolvendo mulheres
pescadoras embarcadas na Lagoa Mirim e no estuário da Lagoa dos Patos.
A pesquisa se desenvolveu com base numa perspectiva etnográfica a fim de
compreender os processos de aprendizagem, criatividade, improvisação e
subversão constituidores dessas mulheres e das práticas cotidianas de corpos
femininos engajados nos ambientes, desde uma pegada das epistemologias
ecológicas. No emaranhado da vida e das lutas cotidianas em um cenário de
conflitos socioambientais no território em causa, essas mulheres da pesca
constroem suas vidas, histórias e desafios junto ao desejo de pescar, de se
manter na pesca, de serem reconhecidas e de ensinar e aprender com as novas
gerações, tal como afirmam os autores.

Saímos do Rio Grande do Sul e partimos para o litoral do Espírito


Santo. Neste terceiro capítulo, os autores nos brindam com o estudo conduzido
em dois municípios do sul do estado, com o propósito de entender, partindo de
uma abordagem etnográfica, os aspectos da comercialização de peixes e outros
produtos do mar, identificando suas bases culturais e como a atividade afeta a
organização dos negócios locais.

A quarta contribuição, que constitui o capítulo de número quatro,


intitulada “O Cajueiro: uma releitura etnocartográfica do processo de
Socioantropologia de Povos e Comunidades Tradicionais Costeiras e Ribeirinhas 8

territorialidade”, de autoria de Luciana Alves, Gerson Lindoso e Christiane Mota,


nos lança agora para o Nordeste do Brasil, mais precisamente para o Maranhão.
Neste texto, os autores socializam resultados de estudos desenvolvidos no
Território do Cajueiro frente ao processo de expansão de empreendimento
portuário privado na área do Itaqui Bacanga, em São Luís. A investigação
procurou analisar as lutas e como este grande projeto dito de desenvolvimento
vem afetando a vida de moradores que encontram na atividade da pesca seu
modo de viver. O enredo caminha por questões que envolvem as formas de
apropriação do território pelos sujeitos, destacando a pesca, as religiosidades,
relações de parentesco, dentre outras. Partindo do Maranhão, os ventos nos
levam agora para Pernambuco.

O LEME: histórias e lutas das pescadoras. Esse é o título do quinto


capítulo que compõe o livro. De autoria de duas mulheres pesquisadoras, Maria
do Rosário e Amanda Pereira, o manuscrito aborda a questão da divisão sexual
do trabalho e suas consequências na precarização do trabalho das pescadoras
e na vulnerabilidade social que as atinge; e a luta e o engajamento político
das mulheres pescadoras por direitos e políticas públicas que lhes contemplem
e pela ocupação dos espaços de poder e tomada de decisões, no contexto
da pesca artesanal em Pernambuco. Seguindo viagem pelas águas do litoral
brasileiro, nosso barco ruma para a Paraíba.

O sexto capítulo que integra a obra se intitula “O cultivo de ostra


do mangue pelos Potiguara no Litoral Norte da Paraíba: alternativa produtiva
e sustentabilidade”, também de autoria de três mulheres pesquisadoras,
Fabiana Marinho, Maristela Andrade e Cristina Crispim. No presente texto, as
autoras socializam a análise que fizeram em torno da atividade da ostreicultura
desenvolvida pelos indígenas da etnia Potiguar, no litoral norte paraibano. Em
decorrência da diminuição do pescado e, consequentemente, afetando a vida
das comunidades pesqueiras, tais grupos sociais vêm exercendo novas formas
produtivas e de obtenção de renda, como o trabalho no corte de cana-de-
açúcar e a construção civil. Nossa próxima paragem será no litoral cearense,
novamente sob a companhia de três mulheres: Anderlany, Francisca e Doris.

O capítulo sete analisa uma experiência de turismo de base comunitária


(TBC) no litoral do Ceará, mais precisamente na comunidade quilombola e
pesqueira do Cumbe. Os estudos desenvolvidos pelas autoras demonstraram
que essa iniciativa fortaleceu a luta e o movimento de resistência territorial
dos atores locais em razão dos conflitos ocasionados por empreendimentos de
produtores de camarão e energia eólica na área em comento. Tendo como ponto
de partida a pergunta “como o turismo de base comunitária pode fortalecer
movimentos de resistência territorial?”, o texto nos mostra como a organização
social e política em torno de um propósito pode fortalecer as lutas por direitos
territoriais das comunidades tradicionais. Estamos quase chegando ao fim da
viagem. Nossas próximas paragens acontecerão na região amazônica, Norte do
Brasil, ambas no Pará, e em contextos de águas doces e povos ribeirinhos.

A partir de um estudo de cunho etnográfico, a investigação


compartilhada no oitavo e penúltimo capítulo se debruçou no intento de
compreender as tramas de um empreendimento de uma mulher ribeirinha,
dona Nena, que idealizou sua fábrica de chocolate a partir da valorização de
produtos e recursos locais existentes na Ilha do Combu, localizada na região
9 Socioantropologia de Povos e Comunidades Tradicionais Costeiras e Ribeirinhas

insular de Belém. Considerando o processo de invisibilidade por qual passou a


referida ilha e seus moradores ribeirinhos, o turismo trouxe várias possibilidades
de renda para as famílias locais. As autoras, partindo dos temas da Antropologia
do Turismo e Antropologia das populações tradicionais, nos contam aqui sobre
esse caso. Para finalizar essa incrível viagem, cujo planejamento teve início
em São Salvador da Bahia, em 2019, apresentamos um estudo conduzido na
comunidade ribeirinha de Santa Luzia, na Ilha do Marajó, no Pará.

Assim, o nono e derradeiro capítulo dessa obra nos remete ao interior


das águas amazônicas, para mostrar os resultados de estudo que investigou os
impactos das políticas públicas assistenciais na vida das populações ribeirinhas,
neste caso, o Bolsa Família (atual Auxílio Brasil). Com base numa perspectiva
antropológica, a investigação concluiu que a política pública em referência
trouxe diversas transformações no modo de vida das famílias rurais, sobretudo
no que confere os hábitos alimentares, sem, contudo, abandonar suas formas
de obtenção de recursos alimentares e modos de comer na sua relação com a
natureza por meio de suas atividades produtivas na pesca, na agricultura e no
extrativismo vegetal.

Agradecemos vivamente aos autores e autoras que aceitaram


compartilhar seus estudos de inconteste relevância para a construção do
conhecimento socioantropológico em contextos costeiros e ribeirinhos
envolvendo povos e comunidades tradicionais. Desejamos que esta obra possa
contribuir com a reflexão de processos sociais, políticos e acadêmicos, sobretudo
em tempos de intensificação de conflitos sociais, desqualificação da ciência
pelo Governo Federal, sobretudo no campo das ciências sociais e humanas, e
tentativa de aniquilação do meio ambiente e dos territórios sagrados de povos
e comunidades tradicionais, incluindo pescadoras e pescadores artesanais do
Brasil. Uma prazerosa leitura!

Flávio Barros
Francisca Miller
Cristiano Ramalho
(Organizadores)
Socioantropologia de Povos e Comunidades Tradicionais Costeiras e Ribeirinhas 10

PREFÁC IO

Diversidade social e diversidade ambiental são temas de fundo que


aparecem na cena deste livro, para os quais confluem os artigos e ensaios
contidos nos nove capítulos que o compõe, cujos títulos e temas aportados
por seus organizadores e autores, foram embarcados no convés deste barco
à luz de teorias e metodologias pertinentes, acompanhadas de experiências
de trabalhos de campo. Chegaram aqui a partir de portos, praias, rios, ilhas e
comunidades humanas tradicionais de zonas costeiras, estuarinas e insulares -
no Brasil e em Cabo Verde. Alguns oriundos de teses de pós-graduação e de
cursos do ensino superior (neste caso, me parece ser muito interessante para o
incentivo e diversificação de pesquisas no Brasil). Assim, trazem contribuições
científicas para as temáticas em epígrafe e para a compreensão de outras
situações e questões correntes que estão a permear a vida contemporânea
destes povos e comunidades, em cujo universo afloram, vivificam práticas
tradicionais e reproduzem saberes, conhecimentos, acenando para outras
ontologias – outras visões de mundo para além da ocidental no mundo
contemporâneo – isto é, para outras lógicas no perceber e se relacionar com
a natureza - práticas tradicionais construídas e transmitidas por gerações no
cotidiano com a natureza.

Os Organizadores deste livro, que sai em nova viagem após um


evento científico, – Professores Doutores Flávio Barros (Universidade Federal
do Pará), Francisca Miller (Universidade Federal do Rio Grande do Norte) e
Cristiano Ramalho (Universidade Federal de Pernambuco) e os autores, trazem
na bagagem experiências densas de pesquisa com recortes teóricos e trabalhos
de campo consistentes, as quais vêm contribuir para atualizar conhecimentos
e a compreensão do ser e do fazer destes povos, dos movimentos e
configurações relacionados à dinâmica social que os permeia, cenários, valores
comunitários, contradições entre regramentos tradicionais e estatais, situações
recorrentes, expectativas e perspectivas pertinentes ao devir destes povos e
comunidades tradicionais costeiras e ribeirinhos. Povos e comunidades cujos
estudos aqui apresentados sob olhar e conteúdo diversos, tais como os aqui
contidos neste livro, vêm trazer materiais contributivos à reflexão, ao avanço e
enriquecimento da produção acadêmica neste contexto. E mais, contribuir para
o fortalecimento de um subcampo disciplinar da Antropologia relacionado aos
povos pescadores tradicionais, dentre outros, como já pensava o antropólogo
Yvan Breton, da Université Laval - Québec, grande parceiro nosso no âmbito
do projeto RENAS do Museu Paraense Emílio Goeldi, em uma de suas obras
(Breton, Yvan. L’anthropologie sociale et les sociétés de pêcheurs: réflexions sur
la naissance d’un sous-champ disciplinairs. Université Laval. 1981 vol. 5, numéro
1).

E nessa linha teórico-metodológica seguida pelos autores,


onde o olhar, ouvir e escrever (Cardoso de Oliveira, Roberto. O trabalho do
antropólogo. 3. Ed. Brasília: Paralelo 15, São Paulo: Editora Unesp, 2006.222p)
estão presentes, este livro vem fortalecer cursos de graduação e pós-
graduação nas universidades brasileiras e prestigiar o protagonismo desses
povos e comunidades aqui tratados durante as pesquisas e trabalhos de
campo. Esta publicação incentivará certamente o diálogo entre pares nacionais
e internacionais, o diálogo interdisciplinar entre as ciências sociais e ciências
11 Socioantropologia de Povos e Comunidades Tradicionais Costeiras e Ribeirinhas

afins fortalecendo-as no contexto científico e no plano da dignidade que


merecem. Por outro lado, fortalecerá o debate no qual os povos e comunidades
tradicionais através de associações, movimentos sociais coletivos comunitários
têm tido destaque em insights, debates, reflexões e críticas pertinentes ao
contexto geral de ações e de políticas públicas que os envolvem.

E finalizando, diria mais: o conteúdo deste livro vem em boa hora


contribuir para o entendimento/compreensão dos movimentos, configurações
político-sociais e ambientais, resultantes de impactos da dinâmica social
transversal que permeiam e afetam o ser e o fazer destes povos e demais
segmentos em sua territorialidade, sua cultura e práticas sociais, assim como
em suas escolhas, visibilidade, ontologias, visão de mundo, percepções e
tratos ambientais, direitos e dignidade, historicidade, processos socioculturais,
enfim, em suas especificidades ou particularismos socioculturais e ambientais
em relação às fronteiras vis-à-vis. Nos traz conteúdos de interesses não só
do campo acadêmico mas dos coletivos comunitários, associações locais e
movimentos sociais também.

Assim, esta obra nos convida a percorrer os itinerários teórico-


metodológicos traçados pelos cientistas sociais que o subscrevem, a dialogar
com as reflexões e conclusões alcançadas com suas análises e, conhecer e
contemplar os cenários que compõem a história, trajetória e vida destes povos
face às dinâmicas sociais que os afetam, do ponto de vista social, cultural,
ambiental e territorial, no contexto dos ecossistemas enfocados! Tudo isso
o leitor encontrará no momento da atracação deste barco no porto a que se
destina.

Os organizadores e autores convidam-nos a entrar neste barco


– chamado Socioantropologia de Povos e Comunidades Tradicionais - para
mergulhar no mar costeiro, nas águas ribeirinhas e imergir no universo
dos povos costeiros e ribeirinhos – cujos territórios mesclam vida, valores,
conhecimentos, tempo e trabalho.

Lourdes de Fátima Gonçalves Furtado


Coordenação de Ciências Humanas e Sociais
Museu Paraense Emílio Goeldi
Socioantropologia de Povos e Comunidades Tradicionais Costeiras e Ribeirinhas 12

O CASO DA PESCA ARTESANAL NA ILHA DO MAIO, CABO


VERDE, EM PERSPECTIVA ETNOGRÁFICA: UM ENSAIO
SOBRE O CONTEXTO DE CRISE DO PESCADO E SEUS
DESDOBRAMENTOS NO COTIDIANO DA PESCA

João Paulo Araújo Silva


Universidade Federal de Minas Gerais

Este ensaio deriva da minha dissertação de mestrado defendida


em 2018 no Programa de Pós-Graduação em Antropologia e Arqueologia da
Universidade Federal de Minas Gerais que tratou do tema da pesca artesanal
na localidade de Porto Inglês, Ilha do Maio. A abordagem teórica do contexto
etnográfico em questão foi construída a partir de uma leitura etnográfica
do conflito socioambiental vivido por estes atores sociais (SILVA, 2018), em
conexão com alguns elementos da teoria decolonial, mais especificamente
de sua abordagem crítica a respeito do caráter colonial da modernidade
(BALLESTRIN, 2013).

Como veremos mais detalhadamente adiante, para além da questão


da invisibilização social vivida e verbalizada pelos pescadores artesanais
desta localidade, uma preocupação central dos atores da pesca é a drástica
diminuição do peixe ocorrida nas últimas décadas (SILVA, 2018).

Esta alteração brusca no volume de pescado tem sido identificada


como consequência da atuação da pesca industrial nacional e estrangeira nos
mares do arquipélago, o que me possibilitou acionar a categoria de “conflito
socioambiental” para remeter a questão a um campo de disputas que pode ser
caraterizado por “um conjunto complexo de embates entre grupos sociais em
função de seus distintos modos de inter-relacionamento ecológico” (LITTLE,
2006, p.91).

Portanto, o conflito socioambiental analisado aqui, opõe esta


atividade artesanal de pesca – caracterizada, dentre outros aspectos, pela
presença de mestres de pesca nos botes, por um saber local transmitido
através das sucessivas gerações de pescadores, por uma intensa participação
das mulheres no mercado da pesca e por um método de pesca sustentável
que garante a reprodução social do grupo no tempo (SILVA, 2018) – aos
métodos mecanizados de captura industrial que, de modo geral, estão voltados
prioritariamente para “a produção de mercadorias” (MALDONADO, 1986, p.17).

Com isso, e em razão da experiência de campo, quando me refiro à


pesca industrial no contexto de Cabo Verde, não diferencio a atividade exercida
pelas embarcações estrangeiras das embarcações nacionais que, apesar de
sua reduzida capacidade de captura quando comparadas às primeiras, operam
a partir da mesma lógica capitalista de produção, situação que as opõe
frontalmente aos modos, práticas e saberes dos pescadores artesanais de linha
de mão de Porto Inglês.
13 O caso da pesca ar tesanal na Ilha do Maio, Cabo Verde, em perspectiva etnográfica

Sobre esta discussão, adotamos o ponto de vista dos pescadores de


Porto Inglês que alertam para o efeito cascata que começa com a atuação das
embarcações estrangeiras provocando a diminuição estrutural do pescado, o
que leva os barcos da pesca industrial nacional a invadirem as áreas tradicionais
da pesca artesanal, mais especificamente, aqueles lugares amplamente
reconhecidos na literatura antropológica como pesqueiros (SILVA, 2018).

Estas são áreas que Acheson (1980, p.281) nomeia de “ecozonas


marinhas” e que Cordell irá caracterizar como “unidades básicas de apropriação
social do espaço marítimo” (2001, p.6,). Tratam-se, portanto, de lugares onde
os pescadores encontram o peixe e que por isso são socialmente apropriadas
a partir de sua nomeação e localizadas por meio de um sistema de “marcação”
que exerce papel fundamental na produção do território da pesca.

Sobre este sistema Maldonado (1993) esclarece que:

A marcação é sem dúvida uma prática social


ligada à territorialidade, conceito que informa
fundamentalmente o conhecimento marítimo
e as outras práticas que a ela se associam na
construção do horizonte de relacionamento
das sociedades pesqueiras com o real
(Maldonado, p. 98, 1993). [...] O que ela tem de
recorrente é o fato de ser, como tenho dito,
um elemento fundamental à apropriação e ao
usufruto do mar pelos pescadores. Assim, cada
grupo constrói sua náutica, os seus Mestres, a
sua marcação e a sua territorialidade tanto em
termos estratégicos como rituais. No mar, os
territórios são mais do que espaços delimitados.
São lugares conhecidos, nomeados, usados e
defendidos. A familiaridade de cada grupo de
pescadores com uma dessas áreas marítimas,
cria territórios que são incorporados a sua
tradição (Maldonado, p. 105, 1993).

Por meio do trabalho de campo realizado em 2017, levantei a situação


da pesca artesanal de linha de mão em Porto Inglês a partir de observação
participante e de entrevistas semi-estruturadas com as quais busquei explorar
o passado recente e o presente das pescas na localidade, o que deixou
evidenciado a enorme distância entre a perspectiva local sobre a situação
dos estoques de peixe e aquilo que aparece nos documentos provenientes da
gestão estatal das pescarias (SILVA, 2018).

Se com este movimento busquei contornar a ausência de estudos


etnográficos sobre a pesca artesanal em Cabo Verde, também procurei analisar
o conflito vivido pelos atores da pesca artesanal tendo como principal referência
crítica a narrativa dos pescadores sobre seu ofício, já que como aponta Little,
a abordagem etnográfica dos conflitos socioambientais “vai além de um
foco restrito nos embates políticos e econômicos para incorporar elementos
cosmológicos, rituais, identitários e morais que não sempre são claramente
Socioantropologia de Povos e Comunidades Tradicionais Costeiras e Ribeirinhas 14

visíveis desde a ótica de outras disciplinas”. (LITTLE, p. 91, 2006).

Sobre a pesca artesanal na Ilha do Maio, acredito ser de fundamental


importância deixar pontuado que não encontrei qualquer mecanismo estatal
estável e confiável que garanta a participação dos pescadores artesanais e
peixeiras na gestão das pescarias, algo que contribui para o agravamento das
contradições no campo das decisões políticas relacionadas à pesca.

Apesar do tema “recurso marinho” sempre aparecer na retórica destes gestores


como uma das principais alternativas à superação das dificuldades estruturais
do país, os agentes do estado têm dedicado uma atenção quase que residual
aos sistemas locais de apropriação do espaço marítimo (SILVA, 2018).

A este quadro, soma-se o fato de estarmos lidando com um segmento


da sociedade caboverdiana que é frequentemente representado como incapaz
de auto-controle e de comportamento racional (SILVA, 2018), situação que
ocorre na esteira de um processo de invisibilização social que acaba por nos
remeter ao que Shiva (2003) considera como uns dos sinais mais explícitos de
violência contra sistemas locais de conhecimento:

O primeiro plano da violência desencadeada


contra os sistemas locais de saber é não
considerá-los um saber. A invisibilidade é a
primeira razão pela qual os sistemas locais
entram em colapso, antes de serem testados
e comprovados pelo confronto com o saber
dominante do ocidente. A própria distância
elimina os sistemas locais da percepção.
Quando o saber local aparece de fato no
campo da visão globalizadora, fazem com
que desapareça negando-lhe o status de um
saber sistemático e atribuindo-lhe os adjetivos
“primitivo” e “anticientífico”. Analogamente,
o sistema ocidental é considerado o único
“científico” e universal. Entretanto, os prefixos 
“científico” para os sistemas modernos e
“anticientífico” para os sistemas tradicionais de
saber tem pouca relação com o saber e muita
com o poder. (SHIVA, 2003, p.22)

A pesca artesanal sempre foi e continua sendo uns dos principais


pilares de sustentação da organização social de Cabo Verde (DOS ANJOS,
JUNIOR & BRUSTOLIN, 2016). O pescado é a fonte de proteína mais acessível
às camadas populares e também garante renda e vida digna para milhares de
famílias do arquipélago (SILVA, 2009).

Em lugares como Porto Inglês, onde ainda se conta com pescado em quantidade
considerável, os pescadores artesanais de linha de mão estão longe de serem
os moradores mais fragilizados social e economicamente. Ao contrário, na vila
de Porto Inglês, muitos dos pescadores mais experientes possuem boas casas,
15 O caso da pesca ar tesanal na Ilha do Maio, Cabo Verde, em perspectiva etnográfica

tem seus barcos e motores próprios e podem alcançar ganhos consideráveis


conforme os peixes que capturam (SILVA, 2018).

Além disso, a pesca artesanal fornece aos seus praticantes algo


considerado essencial e inegociável: a autonomia proporcionada por uma
atividade cujo controle dos métodos e técnicas são comunitários, o que, de
modo geral, tem evitado “a dissociação do produto de seu trabalho e do seu
distanciamento dos processos decisórios relativos à pesca”, o que ocorre com
frequência quando estes pescadores passam, por exemplo, a trabalhar em
empresas de pesca (MALDONADO, p.26, 1986).

Figura 1 - O jovem pescador Nuno exibindo uma curubina de quase 100 quilos

Fonte: foto do autor, jun. de 2017

Isso significa dizer que quando um pescador não quer ou não pode
ir às pescas, simplesmente não vai. Isso também significa dizer que quando se
pega um bom peixe logo no início das pescas, é possível voltar para casa mais
cedo, pois ir ao mar significa permanecer em estado de tensão, já que o mar
é vivo, perigoso e traiçoeiro e ninguém melhor do que um pescador artesanal
marítimo para saber disso.

Portanto, para estes pescadores, o que está em jogo não é


simplesmente a falta do peixe. O que está em jogo é um modo de vida que
apesar de todos os riscos que a atividade no mar implica e apesar de todos os
estigmas que carregam, trata-se de algo que se faz com enorme entusiasmo,
a considerar, por exemplo, que as pescas são uma atividade vivida com muita
solidariedade entre seus praticantes, mas também com muita competição e,
Socioantropologia de Povos e Comunidades Tradicionais Costeiras e Ribeirinhas 16

por isso, vivida muitas vezes como uma espécie de jogo caloroso que implica
segredos bem guardados, parcerias, atritos e troféus (MALDONADO, 1986;
DIEGUES, 1983; CORDELL, 2001).

Apesar de ser um país com raízes socioculturais profundamente


conectadas com as comunidades de pesca e com a agricultura de pequena
escala, para DOS ANJOS, JUNIOR & BRUSTOLIN, 2016, politicamente, a elites
governantes vem apostando no escanteamento destas atividades em nome,
principalmente, das diretrizes de investimento impostas desde fora, pelo capital
internacional.

Essa recusa da política institucional em reconhecer a importância


econômica e social dos coletivos de pesca artesanal, no que ela me pareceu
mais importante em termos etnográficos, foi seu efeito junto aos pescadores do
Maio que de forma coesa passam a articular um discurso marcado pela crítica
contra o estado e, ao mesmo tempo, de valorização da atividade pesqueira
pela demonstração, sempre muito bem pormenorizada, das vantagens de um
sistema de conhecimento que garante o sustento de tantas famílias, ao mesmo
tempo que se mostra um sistema ecologicamente viável de exploração do mar.

Cabe ressaltar, no entanto, que não estamos defendo que a situação


da pesca simplesmente piorou nos últimos anos ou que não há qualquer tipo
de avanço em relação ao reconhecimento social da atividade ao longo das
últimas décadas. Há conquistas importantes, como o reconhecimento legal de
áreas exclusivas para a pesca artesanal, que apesar de não serem respeitadas,
indicam algum grau de discussão política sobre a importância destes coletivos
para o arquipélago (SILVA, 2018).

Contudo, aquilo que mais chama a atenção na narrativa dos pescadores


de Porto Inglês sobre seu ofício, é a correlação que estabelecem entre a
situação atual vivida nas pescas com a inauguração dos acordos internacionais
de pesca com a União Europeia ocorrida no início da década de 1990, após o fim
do regime de partido único que perdurou desde a independência de Portugal
ocorrida em 1975 (SILVA, 2018).

A articulação desse discurso local com as críticas ao desenvolvimento


como um instrumento discursivo e ideológico de dominação articulado a partir
de um mundo moderno que não superou seu passado colonial, como defende
Escobar (2007), se mostrou um caminho profícuo de interlocução ao longo da
pesquisa.

Por meio desta exploração mecanizada do mar e com o agravamento


da escassez do pescado em função desta atividade, acredito ser possível
falarmos de uma atualização das questões coloniais a partir dos relacionamentos
entre as elites políticas locais e os representantes dos interesses privados das
empresas de pesca nacional, bem como dos interesses macro econômicos
ligados ao bloco europeu.

Daí a necessidade de dialogar com teóricos decoloniais na tentativa


de dar conta deste jogo duplo que, apesar de ser articulado desde fora das
17 O caso da pesca ar tesanal na Ilha do Maio, Cabo Verde, em perspectiva etnográfica

fronteiras nacionais de Cabo Verde, necessariamente precisa encontrar respaldo


político no arquipélago para ser operado.

O conceito da colonialidade do poder amplia


e corrige o conceito foucaultiano de poder
disciplinar, ao mostrar que os dispositivos
panópticos erigidos pelo Estado moderno
inscrevem-se numa estrutura mais ampla,
de caráter mundial, configurada pela relação
colonial entre centros e periferias devido
à expansão europeia. Deste ponto de vista
podemos dizer o seguinte: a modernidade é
um projeto na medida em que seus dispositivos
disciplinares se vinculam a uma dupla
governamentabilidade jurídica. De um lado, a
exercida para dentro pelos estados nacionais, em
sua tentativa de criar identidades homogêneas
por meio de políticas de subjetivação; por outro
lado, a governamentabilidade exercida para
fora pelas potências hegemônicas do sistema-
mundo moderno/colonial, em sua tentativa
de assegurar o fluxo de matérias-primas da
periferia em direção ao centro. Ambos os
processos formam parte de uma única dinâmica
estrutural (CASTRO-GOMEZ, 2005).

Com isso, ao ignorar as demandas políticas dos pescadores artesanais


a partir da simples indiferença em relação aos pleitos de valorização social da
atividade e da fiscalização das áreas tradicionais de pesca, a situação informa
mais sobre as estruturas de poder do estado, do que propriamente sobre a
comunidade pesqueira.

Esta omissão deliberada reforça o argumento do universo pesqueiro


sobre os vínculos do estado com um modelo de desenvolvimento cujas
diretrizes passam ao largo de suas necessidades mais elementares, ao mesmo
tempo que reforça o argumento da teoria crítica com a qual nos dispusemos
a dialogar.

A desarticulação de territorialidades tradicionais no sul global


é suficientemente estudada pela antropologia para sabermos quais são
os efeitos de seu avanço nestas áreas. Nesse sentido, acredito ser papel da
antropologia trabalhar na direção de alertarmos para a potência latente das
inúmeras territorialidades historicamente subalternizadas que por uma ironia
fina do destino, se fizeram detentoras de práticas e saberes que se mostram
extremamente eficazes em um horizonte de catástrofe ambiental.
Socioantropologia de Povos e Comunidades Tradicionais Costeiras e Ribeirinhas 18

UMA BREVE CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA DO ARQUIPÉLAGO DE


CABO VERDE

A historiografia de Cabo Verde registra que as primeiras Ilhas do


arquipélago foram avistadas inabitadas em 1º de maio de 1460 pelo navegador
de origem genovesa António da Noli, enquanto explorava a costa oeste africana
a serviço da coroa portuguesa (ALBUQUERQUE, 2001, p. 39).

Levando em conta sua posição geográfica estratégica em relação ao nascente


circuito comercial atlântico, rapidamente as Ilhas se transformaram em um
valioso porto, passando a dar suporte aos navegadores europeus em suas
arriscadas viagens pelo atlântico, ao mesmo tempo em que foram sendo
transformadas no primeiro grande entreposto comercial administrado por
Portugal fora do seu território. Como aponta a historiadora Elisa Silva Andrade:

Entre as ilhas e arquipélagos do Atlântico, Cabo


Verde, pela sua posição privilegiada, a meio
caminho entre os três continentes e demais,
em frente à costa dos escravos, desempenhará
um papel muito importante como ponto de
escala e de ligação da navegação transatlântica
e do comércio triangular que se desenvolvia na
época do seu achamento, sobretudo no que
respeita ao tráfico de escravos para o qual se
tornará, logo, um interposto que durará cerca
de quatro séculos.” (ANDRADE, 1996, p.53).

Para CABRAL (2001), será em Cabo Verde que pela primeira vez no
ocidente surgirá “uma sociedade escravagista, na qual a exploração contínua do
trabalho do escravo negro constituía a base de suporte da estrutura econômica
e social” (CABRAL; SANTOS; SOARES; TORRÃO, 2001, p. 2-3).

A soma desses elementos conduziu ao surgimento de uma elite


mercantil privilegiada por um sistema de donatarias e de concessões comerciais
que dará suporte à colonização efetiva das Ilhas a partir de um modelo de
controle e de administração do território que será utilizado, um pouco mais
tarde, na colonização do território brasileiro (SCHWARCZ, 2015, p.30).

Até as primeiras décadas do século XVII, o porto de Ribeira Grande, na


Ilha de Santiago, conheceu uma notável ascensão, chegando a ser comparado
à Lisboa em termos de prosperidade econômica, até que a coroa portuguesa
desobriga as escalas do tráfico negreiro em Cabo Verde e as Ilhas vão ser
rapidamente abandonadas pela população de origem europeia. Situação
que possibilitará a primeira ascensão social de “elites crioulas” em domínios
coloniais europeus (CABRAL; SANTOS; SOARES; TORRÃO, 2001).

Com isso, uma das características sócio históricas mais marcantes da


ocupação do arquipélago passará pelo fato de que, durante séculos, as Ilhas
foram sendo povoadas e atividades econômicas foram se desenvolvendo,
numa relação estreita com a vocação que cada Ilha possuía para fornecer
19 O caso da pesca ar tesanal na Ilha do Maio, Cabo Verde, em perspectiva etnográfica

produtos que pudessem circular nas redes de trocas comerciais do atlântico.


Para Andrade (1996), “desde o início, a organização do espaço caboverdiano
será uma resultante de sua utilização especulativa” (ANDRADE, p. 42).

Figura 2 - Mapa do arquipélago de Cabo Verde

Fonte: Disponível em: <https://legacy.lib.utexas.edu/maps/africa/cape_verde_


pol_2004.jpg>, acesso em 27 de nov de 2017.

Por estarem localizadas numa faixa de transição entre o clima


do deserto do Saara e o das savanas africanas, a cerca de 500 quilômetros
do Senegal, as Ilhas apresentam índices muito baixos de pluviosidade que
aproxima o arquipélago de climas desérticos (DIREÇÃO GERAL DOS RECURSOS
MARINHOS, 2015, p.2).

O clima é tropical e irregular, com um regime de


precipitações aleatório, às vezes caracterizado
pela sua concentração sobre um período de
tempo muito curto e outras, pela sua ausência,
o que põe em perigo as colheitas, a vida dos
animais e, portanto, a dos homens. A estação
das chuvas situa-se entre Julho e Outubro.
Desde há séculos, as ilhas são frequentemente
atingidas por crises de secas que, no passado,
provocavam fomes dizimando, por vezes, até
trinta mil pessoas. (ANDRADE, 1996, p.21).

Desde a primeira crise mais grave, ocorrida no período entre 1579-


1581 e registrada em carta de 1592 por Frei Brandão, até o presente, fala-se em
ao menos 25 períodos de grandes fomes (ANDRADE, 1996, p.80).
Socioantropologia de Povos e Comunidades Tradicionais Costeiras e Ribeirinhas 20

O DIA-A-DIA DAS PESCAS NO MAIO

O censo de 2010 registrou na Ilha do Maio 6761 pessoas habitando


as localidades de Porto Inglês (antiga Vila do Maio), Morro, Calheta, Morrinho,
Cascabulho, Pedro Vaz, Pilão Cão, Ribeira Don João, Figueira Horta, Barreiro,
Santo António e Praia Gonçalo.

Porto Inglês é o centro administrativo do Maio, com cerca de 2500


habitantes. Ali também estão localizados o único cais da Ilha e um pequeno
aeroporto que ligam a população local com a capital do país, a cidade da Praia,
na Ilha de Santiago. O barco Sotavento faz a rota Praia/Porto Inglês três vezes
por semana, sendo o meio de transporte mais utilizado pela população da Ilha.

Em Porto Inglês há ainda um centro de saúde que atende toda a


população da Ilha, um Liceu, duas escolas de ensino primário e uma dezena
de pequenas mercearias. Há também cerca de uma dúzia de restaurantes e
pousadas que em sua maioria, pertencem a europeus, basicamente italianos
e franceses.

A vila conserva suas casas baixas, ruas de granito e um clima pacato


do qual os moradores da Ilha se orgulham, principalmente quando o contrastam
com a vida agitada da cidade da Praia.

Dentre as dez Ilhas que compõem Cabo Verde, Maio possui um


dos menores índices de pluviosidade do conjunto, o que de certa forma
é compensado por sua rica biodiversidade marinha em função de uma
característica geológica: trata-se da Ilha com uma das maiores plataformas
continentais do arquipélago1:

A plataforma da Ilha está estimada em 2.450 km


quadrados, formando juntamente com a vizinha
ilha de Boa Vista, a maior plataforma insular
do país com cerca de 6.450 km quadrados, o
que faz com que seu potencial em recursos
pesqueiros seja muito grande. A Ilha do Maio
possui alguns dos maiores bancos de pesca do
arquipélago. (DIREÇÃO GERAL DOS RECURSO
MARINHOS, 2015, p.7)

1. “As plataformas continentais representam menos de 10% da área total dos


oceanos. No entanto, a maioria das plantas aquáticas, animais e algas do
oceano vive nelas devido à abundância de luz solar, águas rasas e sedimentos
ricos em nutrientes que fluem para eles a partir das saídas dos rios. Como
resultado, espécies de peixes tão importantes como o atum, o bacalhau, a
cavala e outros, prosperam nas, e ao redor, das plataformas continentais. Alga
marinha, algas gigantes, algas e plantas aquáticas crescem para se tornarem
fontes de alimento na base das cadeias alimentares. Como resultado, as áreas
de plataforma continental fornecem 90% do peixe produzido no mundo,
de acordo com vários estudos.” Disponível em https://marsemfim.com.br/
plataforma-continental/, acessado em 13/11/2020.
21 O caso da pesca ar tesanal na Ilha do Maio, Cabo Verde, em perspectiva etnográfica

A pesca de linha de mão nos pequenos botes boca-aberta de Porto Inglês é


uma atividade essencialmente costeira, especializada na exploração de áreas
bastante específicas desta plataforma, os lugares conhecidos como pesqueiros.

O mar é como a terra. Você veio lá de Porto


Inglês até aqui e no caminho você não viu
nenhuma casa e nenhuma pessoa não é
mesmo? Quando você chegou aqui viu a vila,
com muitas casas e pessoas. É isso que são os
pesqueiros. No mar, às vezes você navega por
um bom tempo e não encontra o peixe e de
repente você chega no pesqueiro e aí moram
os peixes. (Lugy, marceneiro naval da Ilha do
Maio, morador da vila de Calheta, entrevista
concedida em 20 de jun. de 2017).

A atividade pesqueira começa por volta das 4 horas da madrugada, em


função do comportamento das espécies que são exploradas. É preciso chegar
aos pesqueiros por volta das 6 horas que é quando, segundo os pescadores,
os peixes que procuram se alimentam, o que os tornam mais vulneráveis aos
esforços empreendidos para sua captura (SILVA, 2018).

Com isso, no meio da madrugada, de todos os cantos de Porto


Inglês surgem pescadores que caminham em direção à praia da baía. Todos,
invariavelmente, trazem de casa baldes de plástico contendo uma infinidade de
utensílios necessários às atividades no mar.

Como é relativamente comum que as peixeiras sejam as esposas dos


pescadores, apesar de não saírem de casa no meio da madrugada, pareceu-
me que também as mulheres estejam de pé no meio da noite, colaborando na
organização do que será levado para os botes.

Característica extensível a praticamente todo o arquipélago e que


encontra paralelo com outras comunidades de pesca artesanal do continente
africano (ACHESON, 1980; ROSABAL, 2016; MALDONADO, 1986), em Porto
Inglês as mulheres dominam o mercado do pescado, controlando quase que
a totalidade das transações de venda, distribuição e conservação das capturas.

Por esse motivo também são notáveis conhecedoras das espécies capturadas
pelos pescadores que diante da ausência dos grandes peixes migratórios que
exploram, têm por hábito mudar o foco de seu esforço de pesca para uma
infinidade de espécies menores, mas sempre buscando preservar o valor do
peixe no mercado.
Socioantropologia de Povos e Comunidades Tradicionais Costeiras e Ribeirinhas 22

Figura 3 - Peixeira preparando-se para levar o pescado ao mercado

Fonte: foto do autor, jun. de 2017

Como mostra ACHESON (1980), em muitos outros contextos de


pesca marítima, diante da frequente imprevisibilidade em relação às capturas
e diante das oscilações no preço do pescado, há uma tendência em se buscar
relacionamentos duradouros e confiáveis com intermediários.

Ocorre que também há uma tendência destes relacionamentos serem


carregados de tensão, porque intermediários, com muita frequência, estão em
condições de explorar o trabalho de pescadores artesanais (ACHESON, 1980).

Nesse sentido, além do trabalho das peixeiras resultar numa distribuição muito
eficaz do pescado, driblando a falta crônica de infraestruturas de conservação,
elas praticamente eliminam o problema do intermediário e garantem que uma
parcela maior do dinheiro auferido com a venda do peixe permaneça com os
agentes da pesca, logrando um importante reforço do orçamento doméstico
das famílias envolvidas com a atividade (SILVA, 2018).

Normalmente, as primeiras peixeiras começam a chegar na área dos


botes para recolher o peixe para a venda somente quando os primeiros barcos
estão retornando para a praia, o que começa a ocorrer por volta das 09:00 da
manhã.

A chegada dos primeiros barcos na praia desencadeia um vai e vem intenso de


pescadores, peixeiras e compradores que pode se prolongar até o fim da tarde,
já que toda a rotina de trabalho nas pescas vai variar “conforme o peixe”, que
por sua vez varia conforme a lua, as marés, os ventos, a sorte e como dizem
muitos: “ conforme a vontade de Deus” (SILVA, 2018).
23 O caso da pesca ar tesanal na Ilha do Maio, Cabo Verde, em perspectiva etnográfica

A PERSPECTIVA LOCAL DA ESCASSEZ

Para Ramalho, é através de uma rígida “educação corporal” que


pescadores ampliam o conhecimento sensível exigido pela “natureza aquática”,
“como condição insuprimível do viver nas (e das) águas” (2011, p.316).
Conhecimento com o qual os pescadores irão driblar a imprevisibilidade das
espécies que exploram, mas que também será um elemento valioso diante do
ambiente hostil e arriscado das águas.

Diegues compreende o conhecimento tradicional na pesca:

(...) como um conjunto de práticas cognitivas


e culturais, habilidades práticas e saber-fazer
transmitidas oralmente nas comunidades
de pescadores artesanais com a função de
assegurar a reprodução de seu modo de vida”
. [...] Em outras palavras, a apropriação do mar
e de seus recursos requer o conhecimento de
um código de saber-fazer que é construído e
ritualizado no mar pela tradição, aprendizado,
experiência e intuição (DIEGUES, 2004, p. 196
e 198).

Se há algo que a Antropologia da pesca esclarece de forma


incontestável, é o fato de que para se tornar um mestre experiente, pescadores
marítimos precisam passar por muitos anos de experimentação e de
acumulação de uma série de conhecimentos que formam a cultura marítima
a que pertencem. E na medida em que os reconhecimentos como mestres
tradicionais, não há razão para excluí-los de qualquer discussão que tenha a
pesca como tema, tanto mais quando se trata de algo tão sensível como o é
para estes a questão da escassez socialmente construída do pescado.

Por isso creio ser de fundamental importância deixar esclarecido que


não acreditamos ser possível falar sobre a falta do peixe em Cabo Verde sem
levar em conta, em primeiro plano, aqueles que se formaram como mestres
do mar e que ao longo de toda uma vida, se dedicaram a explorar o espaço
marítimo com o mesmo afinco que qualquer cientista experimentado costuma
conduzir seus trabalhos.

Para os pescadores de linha de mão mais experientes de Porto Inglês,


o peixe no Maio começa a diminuir de forma mais intensa a partir do final da
década de 1990. Localmente, o fenômeno é identificado como resultante de
um efeito cascata, desencadeado a partir da intensificação da atuação da pesca
industrial estrangeira nos mares do arquipélago (SILVA, 2018).

A intensificação dessa exploração em escala industrial, segundo os


pescadores locais, acaba por comprometer os estoques de peixes de outras
Ilhas, o que por sua vez multiplica a presença da pesca semi-industrial nacional
nas áreas tradicionais de pesca da Ilha do Maio.
Socioantropologia de Povos e Comunidades Tradicionais Costeiras e Ribeirinhas 24

Peixe diminui quando governo deu licença pra


barco europeu pescar na água de Cabo Verde.
Então aqueles grandes barcos de pesca com
rede pega aquela quantidade de peixe, tanto
pequeno, quanto grande, peixe tá diminuindo.
É uma preocupação imensa. Principalmente nós
aqui no Maio tem aqueles barco de Praia que
bota rede no pesqueiro, é uma maneira que
não deixa peixe entra no pesqueiro. (Entrevista
concedida pelo pescador Xibéu em 24 de jun.
de 2017).

Esta clara sobreposição de diferentes sistemas de exploração do


pescado relatada por Xibéu é vivida de forma dramática pesca comunidade
pesqueira. Suas áreas tradicionais de pesca são, ao menos formalmente,
reconhecidas pelo estado que por meio de leis, decretos e portarias reconhece
a importância dos pesqueiros para a reprodução social da pesca artesanal.

Como exemplo desse reconhecimento jurídico/estatal pode-se citar


a Resolução nº 56 de 31 de julho de 2014 do Ministério das Infraestruturas e
Economia Marítima que teve como finalidade, estabelecer “Medidas de Gestão
das Pescarias e de Conservação dos Recursos da Pesca”.

A medida executiva é sensível às demandas políticas dos pescadores


artesanais porque impõe limites à atividade industrial. Um dos pontos tratados
na Resolução 56 é sobre a delimitação de áreas destinadas a cada modalidade
de pesca. As doze milhas náuticas partindo do litoral de cada Ilha é reservada
exclusivamente à frota nacional, sendo que dentro desta área, as 3 milhas
náuticas partindo do litoral das Ilhas seriam exclusivas da pesca artesanal.

A resolução cria ainda os defesos de várias espécies como lagosta


rosa, lagosta costeira e camarão soldado, congela o número de redes de arrasto,
de embarcações na pesca da lagosta e proíbe práticas como a comercialização
da cavala no período do defeso, além de proibir a pesca de lagostas ovadas, etc.

A questão é que os pescadores artesanais do Maio denunciam que


regulamentações desta natureza não tem qualquer aplicação prática, já que
reconhecem vínculos estreitos entre a atividade industrial e o estado (SILVA,
2018).

No Maio tinha muito peixe, peixe em quantidade,


mas barco só falta coloca rede dentro de casa.
Geralmente ali, capitania não age. Eles vem
colocar rede dentro das três milhas e capitania
não agi, então Câmara tem que tomar iniciativa,
tem que chamar a atenção porque ora que eles
panha todo pescado ali, nós que fica prejudico,
povo de Maio também fica prejudicado. Pesca
de linha é importante porque você pode pesca
todo o tempo. Pesca de linha você pesca todo
25 O caso da pesca ar tesanal na Ilha do Maio, Cabo Verde, em perspectiva etnográfica

tempo e tem uma vida pra sobreviver, porque


geralmente no Maio, se era pesca só de linha
pescador estava na melhor situação. Nesses
tempos ali, atum corre, atum corre porque
quando eles vai no pesqueiro panha aqueles
peixeinho e atum não vai mais lá. (Anastácio,
entrevista concedida em 23 de jun. de 2017).

Com isso, sempre que surge a oportunidade de falar sobre o assunto,


são categóricos em relacionar a omissão estatal com o entendimento da pesca
como um negócio, quadro que impede que o estado tome partido na situação
e, consequentemente, que as ações de fiscalização dos territórios pesqueiros
sejam efetivadas (SILVA, 2018).

Nesse contexto, pescadores e peixeiras veem suas queixas sendo


sistematicamente ignoradas pelas autoridades locais enquanto sentem,
diariamente, seus estoques tradicionais de pesca se exaurirem, situação que por
sua persistência, consequência e alcance permite com que possamos apontar
para um quadro de injustiça ambiental que para Zhouri & Laschefsky (2010):

(...) é a condição de existência coletiva própria a


sociedades desiguais onde operam mecanismos
sociopolíticos que destinam a maior carga
dos danos ambientais do desenvolvimento a
grupos sociais de trabalhadores, populações de
baixa renda, segmentos raciais discriminados,
parcelas marginalizadas e mais vulneráveis da
cidadania. (ZHOURI & LASCHEFSKY, 2010, p.4).

Os pescadores de linha de mão de Porto Inglês dependem dos


cardumes de pequenos peixes que frequentam a plataforma continental da Ilha
para apanhar os peixes maiores que são o foco de sua atividade.

Figura 4 - O pescador César sorri exibindo uma isca viva no pesqueiro de ponto riba

Fonte: foto do autor, jun. de 2017


Socioantropologia de Povos e Comunidades Tradicionais Costeiras e Ribeirinhas 26

O equipamento de pesca disponível é um pequeno bote de madeira


que condiciona a distância das expedições, colocando pescadores artesanais
em risco maior quando precisam navegar distâncias mais longas para apanhar
o pescado.

Nesse contexto, a atividade industrial avança, mas não sem aumentar


sensivelmente a imprevisibilidade das pescas, o que por sua vez aumenta
os níveis de tensão psicológica já naturalmente elevados que caracterizam
atividade (ACHESON, 1980; MALDONADO, 1986; RAMALHO, 2007).

Esse quadro de insegurança crescente fratura as narrativas dos


pescadores sobre sua atividade, revelando uma nítida cisão entre passado
e presente no que diz respeito à quantidade de pescado disponível, com o
passado sendo identificado com o tempo da abundância que sempre marcou
as pescas na Ilha, em contraposição ao presente de angústias atravessado por
uma perspectiva de futuro dominada pela incerteza.

Pesca era melhor que agora, porque antes tinha


muito peixe, peixe era barato, mas peixe era
muito. Maio está abandonado, barcos de pesca
chega e bota rede no porto e levam toda a isca
e a gente não acha nada quando vai pescar.
Barcos botam rede aqui noite e dia e não temos
mais lugar de pesca. Governo sempre fala que
vai toma iniciativa, mas não faz nada e a pesca é
a sobrevivência pra todo povo porque quando
a gente não pega o peixe o povo sofre também.
(Entrevista concedida pelo pescador Olegário
em 27 de jun. de 2017).

Localizada em uma das extremidades de uma longa praia de areia


branca, onde se inicia uma série de altos paredões rochosos com cerca de 1 km
de extensão que seguem para o sul, a vila de Porto Inglês tem a sua frente uma
baía de águas relativamente tranquilas de onde partem os botes em direção
aos pesqueiros.

Caminho para os pesqueiros de Banca e Nunes, os mais frequentados


pelos pescadores de Porto Inglês, toda essa área de encostas rochosas é
tradicionalmente utilizada para o apanho de iscas vivas sem as quais se torna
improvável a captura dos grandes peixes migratórios na linha de mão.

Ocorre que a presença da pesca industrial nacional nessas áreas e


em muitas outras ao longo de todo o entorno da Ilha, a presença de barcos
que se utilizam de redes de cerco para a captura de cardumes inteiros, além
de mergulhadores que atuam nestas áreas em busca de lagostas ou para a
pesca com arpão, tem obrigado os pescadores artesanais a reorganizações
constantes dos usos de seus espaços tradicionais.

Ao longo dos 40 dias em que estive junto aos pescadores de linha de


mão de Porto Inglês, presenciei inúmeras vezes a chegada de barcos industriais
27 O caso da pesca ar tesanal na Ilha do Maio, Cabo Verde, em perspectiva etnográfica

de outras Ilhas na baía da cidade. Chegam à Ilha enquanto ainda é dia e ao


anoitecer seguem em direção aos pesqueiros.

São embarcações que surgem com mais intensidade no tempo do


“sucuro”, ou seja, nos períodos sem lua, utilizando-se de holofotes que são
direcionados para o mar, atraindo os cardumes para áreas próximas aos barcos.
Feito isso, lançam as redes de cerco e capturam, sem qualquer princípio de
seletividade, uma quantidade muito grande de peixe.

Pesca de linha não acaba com peixe, você pode


pega dois ou dez, aquele outro que escapa vai
desovar. Pesca de rede apanha tudo. No Maio,
somente pesca de linha é suficiente, dá peixe
pro Maio e vai pra Praia ainda, eu pego 3 atum
é 120 quilo, outro pega 3 é 120 quilo, trinta e
tal bote, aí já suficiente pro Maio. (Entrevista
concedida pelo pescador José em 11 de jun. de
2017).

Com isso, a rede de cerco da pesca industrial aparecerá nas narrativas


dos pescadores artesanais como sinônimo, por excelência, de desequilíbrio
socioambiental. Do ponto de vista dos pescadores, a rede acentua uma sorte de
relação com o meio, ou seja, a competitividade desigual do modo de produção
industrial capitalista, que caminha no sentido oposto à vida relativamente
tranquila que as técnicas artesanais sempre asseguraram (SILVA, 2018).

Em relação ao Maio, o aumento da presença da pesca industrial vem


produzindo um cenário de dura escassez nunca antes vivido numa das Ilhas
mais famosas pelo pescado fácil e de altíssima qualidade.

Se por um lado a escassez tem provocado confrontos incontornáveis e


reorganizações constantes da atividade, por outro tem feito surgir um discurso
de consenso e contra hegemônico que quando cuidadosamente ouvido, aponta
importantes caminhos de superação do conflito socioambiental em questão.
Socioantropologia de Povos e Comunidades Tradicionais Costeiras e Ribeirinhas 28

NOVOS TEMPOS NA PESCA DE PORTO INGLÊS

Ao longo do levantamento bibliográfico para a dissertação de


mestrado, encontrei algumas fontes apontando a pesca de linha de mão em
Cabo Verde como um fenômeno antigo e surgido a partir da ação de agências
subalternas atuando por séculos nas margens da sociedade colonial: “É a arte
de pesca mais antiga praticada em Cabo Verde, representando 63% da captura
total da pesca artesanal e 93% do esforço da pesca artesanal” (DIREÇÃO GERAL
DAS PESCAS, p.14, 2004).

Tomo de empréstimo o termo “agência subalterna” de Dos Anjos,


Junior & Brustolin (2016) para caracterizar os coletivos de pesca artesanal em
Cabo Verde que, assim como aqueles grupos no Brasil ora abarcados pela
categoria de povos e comunidades tradicionais, souberam criar na contramão
do projeto colonial conhecimentos, práticas e saberes que se constituíram
como bases de sustentação de territorialidades que se caracterizarão,
fundamentalmente, como espaços de liberdade e de resistência.

No âmbito desta discussão, um dos paradigmas mais importante


para se pensar estas agências são os quilombos, surgidos a partir da resistência
ao regime escravocrata no Brasil (ARRUTI, 2006) e que lutam arduamente
para o reconhecimento de seus territórios, bem como de suas identidades
diferenciadas em contexto ainda bastante hostil a suas reivindicações.

A fragilização das relações dos povos não-


brancos com seus territórios é o traço mais
geral da mecânica da instrumentalização das
existências e da pretensão de subordinação
de todos os modos de produção de vidas ao
capitalismo. Inadequados ao desenvolvimento,
modos de produção de vidas que podiam ser
suprimidos ou relegados à inanição, persistiram
graças às potências das agências subalternas.
(DOS ANJOS, JUNIOR & BRUSTOLIN, 2016,
p.18).

No que diz respeito à pesca artesanal marítima surgida após a


colonização europeia, estamos falando de um fenômeno social amplo e
complexo que também ocorrerá em todo o litoral brasileiro, como a pesca em
jangadas, desenvolvida pelas mãos dos escravizados africanos e que ainda
se encontra fortemente presente do litoral da Bahia ao estado do Maranhão
(SILVA, 1993).

Ocorre que a região de Cabo Verde, como toda a costa oeste africana,
ao longo das últimas décadas vem sendo cada vez mais explorada por grandes
embarcações, originárias de países industrializados cujos estoques de peixe
encontram-se comprometidos em função da sobrepesca (DIEGUES, 1983;
BELHABIB, 2014).
29 O caso da pesca ar tesanal na Ilha do Maio, Cabo Verde, em perspectiva etnográfica

A sobrepesca resulta no esgotamento de muitos


recursos marítimos renováveis nos litorais dos
países industrializados, cujas frotas de navios de
pesca partem para as águas dos demais países,
geralmente os menos desenvolvidos, inclusive
através de acordos comerciais com empresas já
existentes ali, como os que foram estabelecidos
pela Rússia com os governos de Angola, Cabo
Verde e Guiné-Bissau. (MALDONADO, 1986)

Estamos falando de países ricos, com mercados internos que


apresentam demanda crescente por peixe (FAO, 2016) e que são detentores
de frotas pesqueiras poderosas, capazes de navegar grandes distâncias e de
estocar toneladas de pescado em seus porões (DIEGUES, 1983).

No início da década de 1980, esse avanço da pesca industrial encontra


pela frente a Convenção das Nações Unidas Sobre o Direito do Mar (1982). A
partir desse documento, ratificado pelo governo de Cabo Verde em 1987, cria-
se as chamadas zonas exclusivas econômicas e garante-se a precedência da
exploração dos recursos marinhos nessas áreas aos signatários do documento.

Ocorre que é justamente nesse período da ratificação da


convenção da ONU que entra em cena no arquipélago a figura jurídica dos
acordos internacionais de pesca no âmbito dos quais se passou a negociar,
protocolarmente, a cessão de parcelas dos recursos marinhos aos países
industrializados a partir de contrapartidas financeiras.

Em Cabo Verde, ainda é preciso levar em conta o incremento da


pesca industrial nacional que ganha forte impulso por meio de financiamentos
públicos a partir da independência de Portugal ocorrida em 1975 (SILVA, 2018).

Para Maldonado, de modo geral, “a mecanização da pesca tem coincidido


não só com a exploração da força de trabalho do pescador, mas também com
a sobrepesca e a poluição ambiental” (1986, p.43). Acheson viu esse avanço
mecanizado em escala industrial como “uma tragédia de dimensões ecológicas
e humanas” (1980, p. 301).

Em Cabo Verde, onde a malha da pesca artesanal é extensa e alcança


uma quantidade significativa da população, os efeitos da mecanização das
pescas se mostram especialmente nocivos e agravam o quadro de desigualdade
social e política que tanto caracterizam a estrutura social do arquipélago.
Socioantropologia de Povos e Comunidades Tradicionais Costeiras e Ribeirinhas 30

OS MARES DE CABO VERDE COMO “RESERVAS DE MERCADO”

A primeira onda de exploração estrangeira em escala industrial


dos mares de Cabo Verde que se tem notícia ocorrerá com a pesca de baleia
por navios norte-americanos, atividade iniciada em fins do século XVII e que
permaneceu ativa até o final do século XIX (LIMA, 1985, p. 230).

Ao longo do século XX, e mais precisamente até a independência


ocorrida em 1975, se consolidarão nas Ilhas mais prósperas em peixe, grandes
fábricas de conserva de pescado, majoritariamente administradas por europeus
que destinavam parte significativa de seus produtos à exportação (SILVA, 2018).

Já a partir de 1990, entrarão em vigor os acordos internacionais de


pesca que estão sempre sendo retomados pelos pescadores como os principais
vetores por meio dos quais o pescado se esvai, consolidando um cenário de
escassez que ameaça a vida relativamente tranquila que o peixe garante.

Pesca artesanal é base dessa população.


Diretamente e indiretamente, número de
pessoas que está ligada a pesca é muito. Se
nosso peixe acaba não tem ninguém que
sustenta todas essas pessoas. Eu posso dar
um exemplo...um bote de pesca alimenta três
ou quatro casa diferente. Eu tenho meu bote,
tem alguém que pesca junto comigo, tem
peixeira vendendo peixe, tem os ajudantes...
então só um bote alimenta 4 famílias então,
juntamente com criação de gado que muitos
pescadores são pastores também. Ilha do Maio
sem peixe é igual praia sem areia. Têm muitos
médicos, professores que tudo são de famílias
pescatórias, se eles parassem e pensassem eles
dariam um pouco mais de importância para
nossa pesca aqui no Maio. (Nuno, entrevista
concedida em 20 de jun. de 2017)

Nos dias atuais, os acordos internacionais de pesca com a União Europeia


apresentam-se como o principal instrumento de manutenção do fluxo histórico
de pescado caboverdiano para o estrangeiro.

Os acordos versam sobre a entrada de barcos industriais de pesca


europeus, mais especificamente barcos portugueses, franceses e espanhóis,
que sob o abrigo desses protocolos, pescam nos mares de Cabo Verde a partir
de condições pré-estabelecidas, o que inclui não avançar para dentro das áreas
exclusivas à pesca nacional, respeitar a quantidade pré-fixada de capturas e
restringirem-se somente à pesca do atum (FERREIRA, 2011).

Em junho de 2020, quando o governo renovou o acordo vigente de


pescas com a União Europeia por mais cinco anos, houve certa mobilização
contra tal medida e foi possível ouvir algumas vozes críticas aos poucos mais
31 O caso da pesca ar tesanal na Ilha do Maio, Cabo Verde, em perspectiva etnográfica

de 5 centavos de euro que a União Europeia pagará à Cabo Verde pelo quilo
de atum: “Os cabo-verdianos pagam 600 escudos [5,40 euros] por um quilo de
atum e nós estamos a vendê-lo à União Europeia a seis escudos [cinco cêntimos]
o quilo. Você que é cabo-verdiano acha que isso é justo? Você que é europeu
acha que isso é justo?”. 2

Nos termos do acordo, as embarcações


comunitárias só podem operar para além
das 12 milhas náuticas. No entanto, algumas
organizações de pesca e pescadores artesanais
afirmam que os navios estrangeiros têm
violado essa zona e entrado sistematicamente
na zona reservada aos pescadores industriais
e artesanais. Isto é agravado pelo facto de os
recursos serem cada vez mais escassos, o que
obriga os pescadores artesanais e industriais a
percorrerem distâncias maiores para conseguir
menores resultados, segundo a percepção dos
pescadores. (FERREIRA, 2011, p. 75)

A partir do arquipélago, a ONG Biosfera já acusou por diversas vezes


a captura ilegal de tubarões pelos barcos europeus ao abrigo dos acordos de
pesca do atum. 3 Algumas destas denúncias acabam por chegar ao parlamento
europeu, mas não encontrei qualquer evidencia de que tais procedimentos
chegaram a acarretar sanções contra os abusos cometidos em mares alheios,
ou mesmo que chegaram a impedir, atrasar ou dificultar a renovação de novos
protocolos de pesca.

2. Disponível em: https://www.noticiasaominuto.com/economia/1532333/no-


vo-acordo-de-pesca-entre-cabo-verde-e-uniao-europeia-ja-entrou-em-vigor,
acessado em 11/11/2020.
3. Disponível em: http://divemag.org/ong-pede-proibicao-de-pesca-de-tuba-
rao-para-extracao-de-barbatanas-em-cabo-verde/, acessado em 11/11/2020.
Socioantropologia de Povos e Comunidades Tradicionais Costeiras e Ribeirinhas 32

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Atuando durante mais de quatro décadas junto ao povo Yanomami, o


antropólogo Bruce Albert desenvolveu um modo particular de pacto etnográfico
no qual “fazer justiça de modo escrupuloso à imaginação conceitual” dos seus
anfitriões, “levar em conta com todo rigor o contexto sociopolítico, local e
global, com o qual sua sociedade está confrontada” e “manter um olhar crítico
sobre o quadro da pesquisa etnográfica em si” (ALBERT & KOPENAWA, 2015,
p.520), são pilares de sustentação de seu compromisso de pesquisa.

Acho importante terminar este texto dialogando com a ideia de


“pacto etnográfico” de Bruce Albert (2015) para tentar explicar, ainda que de
forma bastante resumida, como se deu meu envolvimento com o tema da pesca
em Cabo Verde.

Enquanto aluno de graduação em Antropologia, estive pela primeira


vez em Cabo Verde no ano de 2015 e motivado pelo meu envolvimento, naquela
altura, com a literatura antropológica sobre povos e comunidades tradicionais,
me interessei quase que de imediato pelas comunidades artesanais pesqueiras
da Ilha de Santiago.

Com esse interesse em mente, procurei conhece-las, passei a busca-


las na história escrita sobre o arquipélago, procurei por elas na universidade e
tentei conversar com os caboverdianos que ia conhecendo sobre a atividade da
pesca no país.

Desta busca inicial, as pessoas com quem ia conversando –


principalmente os colegas de universidade e os funcionários e internos da
moradia estudantil onde residi – aumentaram significativamente meu interesse
pelo tema. As histórias de pescadores que ficaram à deriva e que vieram parar
no Brasil após semanas sozinhos no mar, certamente foram decisivas para que
eu me decidisse aprofundar a minha busca.

Muito menos motivadores do que estes contatos, também


encontrei certo número de trabalhos com os quais dialoguei na dissertação,
de documentos estatais a trabalhos acadêmicos, que em sua grande maioria
tratam da pesca a partir de uma perspectiva de gestão de recursos, dando
muito pouca atenção ao que dizem mestres de pesca com 20, 30, 40 anos de
vida no mar.

Devo esclarecer que tratam-se de trabalhos importantes, muitos


deles com informações bastante sensíveis para se compreender o fenômeno
pesqueiro nas Ilhas, mas que não me satisfizeram pela pouca presença das
vozes dos pescadores nos documentos. Como observa Baptista (et al. 2009)
em relação aos estoques de peixe da Ilha de Santiago: “o aspecto qualitativo
e etnográfico da situação dos recursos tem sido negligenciado, acarretando
muitas vezes um distanciamento entre os discursos dos pescadores e
investigadores” (p.1).
33 O caso da pesca ar tesanal na Ilha do Maio, Cabo Verde, em perspectiva etnográfica

Diante dessa situação e motivado por meus colegas de sala, após


cerca de um mês de pesquisas e de tímidas aproximações, me decidi pelos
primeiros contatos com os atores da pesca, incialmente sem nenhuma
pretensão bem definida, afora minha curiosidade de estudante de antropologia
em querer ouvir o que os pescadores tinham a dizer, e se eles iriam querer dizer
algo sobre si a um estrangeiro.

Fui surpreendido positivamente com estes primeiros contatos


porque não só fui muito bem recebido pela grande maioria dos pescadores
que procurei, como comecei a perceber que eles tinham muito a dizer sobre a
pesca, sobre Cabo Verde e mais especificamente sobre o assunto com o qual
eu iria me ocupar nos próximos anos, ou seja, com a escassez estrutural do
pescado nos mares do arquipélago.

Hoje, quando me lembro destes primeiros contatos e depois de ler o


que Bruce Albert escreveu sobre seu “pacto etnográfico” junto aos Yanomamis,
percebo que estava sendo reeducado pelos pescadores para olhar o universo
pesqueiro a partir de sua demanda política mais urgente.

Comecei a ter a impressão de que os pescadores podem enfrentar


qualquer provação no mar, mas que a falta do peixe os deixa profundamente
angustiados, pois não há por parte dos agentes do estado, qualquer esforço
político para incluir em suas equações de gestão das pescarias, as demandas
tão bem fundamentadas da pesca artesanal.

Como não contava com qualquer estudo etnográfico sobre as pescas


artesanais de Cabo Verde, para melhor compreender a organização social
pesqueira no arquipélago, recorri à antropologia da pesca desenvolvida no
Brasil, o que me auxiliou sobremaneira no entendimento do sistema de marcação
local, na compressão do segredo nas pescas, e no tema dos pesqueiros.

Esforcei-me, portanto, para compreender as demandas pesqueiras a


partir de seus próprios termos, para compreender o contexto social e político
em questão e para defender a ideia de que a ausência dos pescadores artesanais
da gestão estatal das pescarias não ocorre por desconhecimento dos agentes
do estado sobre sua importância, mas pela necessidade de sustentação de
decisões políticas que se estruturam a partir de um processo de comoditização
do pescado cuja coerência interna somente é alcançada na ausência das
reflexões conceituais que sustentam os saberes tradicionais da pesca artesanal
do arquipélago.

Por fim, ao longo de todo o tempo em que estive envolvido com a


questão das pescas, busquei me engajar nas pautas do universo pesqueiro,
exercício que deixou evidente, ao menos para mim, que ou a pesca artesanal
entra na agenda política com todo o peso que lhe é devido em função de sua
importância social e econômica, ou a única tarefa que nos resta é esperar que os
agentes estatais responsáveis pela gestão das pescarias reconheçam o caráter
colonial tanto da modernidade, como da perspectiva de desenvolvimento que
estes tem abraçado com tanto afinco.
Socioantropologia de Povos e Comunidades Tradicionais Costeiras e Ribeirinhas 34

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37 Socioantropologia de Povos e Comunidades Tradicionais Costeiras e Ribeirinhas

“NINGUÉM SABE QUE A GENTE EXISTE”: REFLEXÕES


ANTROPOLÓGICAS COM PESCADORAS EMBARCADAS DA
PESCA ARTESANAL LAGUNAR NO RIO GRANDE DO SUL

Liza Bilhalva Martins


Universidade Federal do Rio Grande

Gianpaolo Knoller Adomilli


Universidade Federal do Rio Grande

Sabemos que a presença feminina nas diversas atividades que


compreendem a pesca artesanal brasileira é inegável (MARTINEZ &
HELLEBRANDT, 2019). Sabemos também que historicamente há muito tempo
elas estão nas águas do mundo, pescando e navegando em embarcações ao
lado de pescadores ou sozinhas (GERRARD, 2018). Apesar dessa constatação, a
participação das mulheres nas atividades pesqueiras no Brasil só foi reconhecida
a partir do final da década de 1980, quando atividades produtivas de pequeno
porte e realizadas no âmbito familiar passaram a ganhar ênfase, emergindo
assim a nomeação da “mulher pescadora”.

Ainda assim, esse “status” tende de estar sempre sendo vigiado e


reafirmado frente aos estrabismos e insistentes políticas de exclusão da
mulher trabalhadora no país. Embora estejam participando ativamente das
atividades pesqueiras, conformando assim um grupo heterogêneo e plural de
trabalhadoras da pesca (pescaria embarcada, coleta na beira d’água, trabalho
de evisceração, beneficiamento e comercialização do pescado, construção
de redes artesanais de pesca) elas não são percebidas como tal, mas sim,
muitas vezes, comumente relegadas à categoria de “ajudantes” tanto pela
sociedade, como pela comunidade em que se situam, pelo poder público e em
certas situações até por elas mesmas, as quais encontram dificuldades em se
autorreconhecerem. (MARTINEZ & HELLEBRANDT, 2019)

Soma-se a isso a própria academia, através da escassa atenção dispendida


em pesquisas que versem sobre os temas mulher, gênero e pesca, o que nos
permite afirmar que o primado da invisibilidade permeia também o olhar
hegemônico de pesquisadores e pesquisadoras quando o tema da pesca e dos
processos de aprendizagem sobre essa aparecem.

Podemos vislumbrar isso a partir do panorama histórico entre o final da


década de 1960 e meados da década de 1970 quando houve um crescimento
das áreas de ciências humanas em compreender as relações sociais e ambientais
vinculadas a pesca artesanal. No entanto, as mulheres não eram identificadas
nesses estudos como participantes ativas nessa cadeia produtiva. (SOUZA ET
AL. 2017:25).

Somente nos anos de 1980 e seguintes começaram a se desenvolver


investigações, ainda que de forma bastante tímida, demonstrando o papel
de fundamental relevância das mulheres nas comunidades pesqueiras, bem
como sua condição de exclusão e invisibilidade. Importante evidenciar que esse
“Ninguém sabe que a gente existe“: reflexões antropológicas com pescadoras 38

desenvolvimento teve motivação principalmente pelas vozes do movimento


feminista que promoveu a institucionalização dos estudos sobre a mulher e o
desenvolvimento da categoria gênero (SCOTT, 1995) como variável estruturante
da organização social das relações entre homens e mulheres. (COSTA ET AL,
2019; DUARTE, 2019).

Soma-se também a esse panorama o surgimento, uma década antes, do


Ecofeminismo, o qual constitui uma vertente do movimento feminista que
conecta a luta pela igualdade de direitos e oportunidades entre homens e
mulheres com a defesa do meio ambiente e sua preservação.

Algumas das pesquisadoras que inauguram a discussão sobre mulher e


pesca desenvolvendo pesquisas em várias regiões do país são: Anamaria Beck,
1979; Maria Angélica Motta-Maués, 1977; Ellen Woortmann, 1991, Edna Alencar,
1993; Maria Cristina Maneschy, 1995. Seguindo essas pioneiras, nos anos 2000
cresce o interesse nas pesquisas, como podemos ver a partir do balanço da
produção em teses e dissertações publicadas entre os anos de 2007-2017 sobre
mulheres na atividade pesqueira no Brasil (SOUZA ET AL, 2017).

O referido estudo demonstra que embora as pesquisas revelem que “a


participação feminina é determinante para a preservação dos modos de vida
da pesca artesanal, os números de publicações ainda não são tão significativos
se compararmos aos trabalhos que desconsideram a temática do gênero”
(IDEM:29). Apontam ainda para o fato de que têm ficado à cargo das mulheres
pensarem e refletirem sobre a temática tão relevante e obscurecida.

Paradoxalmente ao apagamento dessas trabalhadoras na história da


pesca brasileira, os dados da FAO – Organização das Nações Unidas para a
Alimentação e Agricultura1 nos mostram que só no Brasil, dos quase um milhão
de pescadores artesanais, 45% são mulheres. Se os dados são preocupantes,
a situação se agrava ainda mais quando situamos nossa atenção para as
pescadoras embarcadas, ou seja, aquelas que atuam na etapa da captura do
pescado em embarcação.

Mas afinal, existe mulher pescando? Essa pergunta vem à cabeça da maioria
das pessoas quando citamos a existência dessas trabalhadoras. Segundo a
literatura (ALENCAR, 1990, BECK, 1991, WOORTMANN, 1992) sabemos que há
uma divisão sexual do trabalho nas comunidades pesqueiras e que esse modelo
se caracteriza pela ênfase que é dada a distinção das atividades e dos espaços
de acordo com os gêneros. A pesca de captura de forma embarcada, ou seja,
estar nas águas e não em terra, é tida como a atividade mais significativa para
a economia do grupo, a mais valorizada, a que requer força e coragem e,
portanto, acaba por ser atribuída aos homens.

1. Dados no texto de Simone Santarém na plataforma da FAO http://www.fao.


org/brasil/noticias/detail-events/pt/c/1237574/ Acesso: 28/04/2020
39 Socioantropologia de Povos e Comunidades Tradicionais Costeiras e Ribeirinhas

A pesquisa2,que deu origem a este artigo, nos leva a descontruir essa


afirmação sexista a partir de uma série de experiências a seguir descritas que
nos levam a entender que precisa de força e coragem para pescar sim, assim
como precisa de força e coragem para viver e lutar frente ao Estado, as políticas
excludentes, as práticas criminosas em relação aos ambientes pesqueiros, aos
homens, a sociedade e a cultura.

Essas trabalhadoras existem e estão presentes na Lagoa dos Patos


e Lagoa Mirim, ambas localizadas no extremo sul do Brasil. Entretanto, a
pesquisa aponta para o fato de que suas trajetórias se dão atravessadas por
outras dimensões da vida, como por exemplo a tripla jornada da mulher, o
apagamento dessa cidadã trabalhadora nas categorias ocupacionais da pesca e
a negação de sua participação na gestão pesqueira o que, consequentemente,
acarretou tardiamente a busca por direitos e reconhecimento.

A investigação utiliza o método etnográfico privilegiando a


observação participante através do convívio intenso e profundo com as
interlocutoras e suas realidades. No diálogo entre as áreas da Antropologia
e Educação Ambiental, a pesquisa tem como objetivo apreender os sentidos
do viver a pesca, procurando observar como, onde e porque estas mulheres
se reconhecem e são reconhecidas como pescadoras embarcadas, no esforço
de compreender de que forma os saberes ligados às suas práticas de trabalho,
territorialidades e, de forma mais ampla, o modo de vida, se formam, atualizam
e são transmitidos em processos educativos frente as adversidades existentes
nas realidades socioambientais experienciadas.

O trabalho de campo compreendeu até então a definição das


localidades pesquisadas, descoberta e contato com sete interlocutoras,
acompanhamento das pescarias, no cotidiano em terra e nas rotinas diárias
dessas trabalhadoras.

Os lugares da pesquisa perfazem quatro localidades lagunares no


extremo sul do Rio Grande do Sul, são elas: Colônia de pescadores Z-3 em
Pelotas, Z-2 na Quinta Secção da Barra de São José do Norte, ambas Colônias
localizadas no Estuário da Lagoa dos Patos (Mapa da Figura 1) e Z-16 no Porto
de Santa Vitória do Palmar e Z-25 em Jaguarão, localizadas na Lagoa Mirim
(Mapa da Figura 2).

2. Os dados de campo aqui apresentados referem-se a pesquisa de doutorado


da primeira autora, intitulada Lagoa de Mulheres: pescadoras embarcadas
no sistema lagunar costeiro do Rio Grande do Sul, iniciada em 2018 junto ao
PPGEA – FURG, sob orientação de Gianpaolo Adomilli (segundo autor). Agência
Financiadora CAPES.
“Ninguém sabe que a gente existe“: reflexões antropológicas com pescadoras 40

Mapas das localidades pesquisadas:

Figuras 1 e 2 - Mapa das localidades

Afirmar que mulheres atuam como embarcadas na pesca artesanal3


implica dizer que trabalham na captura do pescado em embarcações pequenas
típicas dessas regiões lagunares 4 (barcos, botes e caícos)5 medindo cerca de
3 a 10 metros com ou sem motor, se deslocando à lagoa e retornando à terra
diariamente ou acampando nas embarcações na costa das lagoas.

Elas têm entre 28 e 70 anos e foram iniciadas na pesca muito cedo


com seus pais, a maioria entre os 8 e 10 anos de idade e trajetórias pautadas
por dificuldades econômicas, de pobreza, onde o sustento da família provinha

3. O Capítulo IV da Lei 11.959, em seu artigo 8º, classifica pesca como I. Comercial: a) artesanal: quando
praticada diretamente por pescador profissional, de forma autônoma ou em regime de economia familiar,
com meios de produção próprios ou mediante contrato de parceria; podendo utilizar embarcações
de pequeno porte; b) industrial: quando praticada por pessoa física ou jurídica e envolver pescadores
profissionais, empregados ou em regime de parceria por cotas-partes, utilizando embarcações de pequeno,
médio ou grande porte, com finalidade comercial.

4. Os estuários são ecossistemas costeiros semifechados que possuem ligação livre com o mar e onde a
água marinha mistura-se com água doce oriunda das áreas terrestres. O estuário da Lagoa dos Patos ocupa
uma área de 963,8km² correspondendo, aproximadamente, a um décimo da área total da lagoa. Apresenta
um volume de 1,67x10 9m³, sendo um ambiente raso, com profundidade média de 1,74m. Cerca de 76%
de sua área tem profundidade inferior à 2m. O estuário tem uma importante função social e econômica
para as comunidades que vivem em seus arredores, onde são encontrados muitos pescadores artesanais,
algumas indústrias de pescados e um potente pólo industrial. Também, serve como corredor de escoamento
fluvial da produção interna do estado e do país através do Super Porto (um dos maiores de exportação da
América Latina) (SCHWOCHOW & ZANBONI, 2007). A Lagoa Mirim faz parte do sistema lagunar Patos-
Mirim, localizada no sul do Rio Grande do Sul com parte de seu limite fazendo fronteira com o Uruguai.
Assentada, sobre a planície costeira, possui uma área aproximada de 3.750 Km2 de área de superfície, destes
2.750 Km2 em território brasileiro e 1.000 Km2 em território uruguaio. No lado brasileiro compreende os
municípios de Santa Vitória do Palmar e Rio Grande em sua margem leste, e os municípios de Arroio Grande
e Jaguarão em sua margem oeste, e as províncias de Cerro Largo, Treinta y Tres e Rocha do lado uruguaio
(PIEDRAS et al., 2012).

5. Na classificação das pescadoras barcos seriam as embarcações maiores, medindo entre 8 e 15 metros,
construídas em madeira, com motor, consideradas Barco/Casa com as quais fazem os grandes deslocamentos
até os lugares de acampamento. Nessas embarcações encontram-se a cozinha, as camas, os mantimentos,
roupas, e os freezers para o armazenamento do pescado. Os botes e caícos seriam as embarcações menores,
medindo entre 3 e 5 metros, também de madeira, com ou sem motor que servem para o trabalho diário da
pesca, nessas embarcações são levadas as redes para o lançamento, boia, âncora e caixas de plástico para
armazenar os peixes que puxados (safados) das redes.
41 Socioantropologia de Povos e Comunidades Tradicionais Costeiras e Ribeirinhas

exclusivamente da pesca. Os filhos e filhas, atuavam como ajudantes no barco


atendendo as necessidades de menor impacto e força. Muitas delas casaram
com pescadores e se mantiveram na atividade com eles, outras continuam
pescando com o pai, irmãos(as), filhos(as), parentes e amigos(as) e algumas,
inclusive, pescam sozinhas e são donas de suas embarcações.

As pescadoras das lagoas do extremo sul do Brasil estão em seus


barcos, botes ou caícos na busca pelo pescado, é claro, mas não se esgota
aí. Pescar para elas parece extrapolar a noção de trabalho produtivo, traz
em si também uma série de questões ontológicas dessa mulher brasileira e
pescadora. A lagoa é um lugar sagrado, a pesca é liberdade e terapia, os peixes
são desejados, a lua, as estrelas, o sol, as marés são companheiras, o corpo é
instrumento e a terra aparece como um lugar que fica num segundo plano, um
lugar que não se deseja ficar.

É sobre essas ontologias e epistemologias que esse texto vem tratar e


evidenciar que a construção de ser pescadora traz muitos elementos consigo. A
partir da prática cotidiana engajada nos ambientes, pautada nos processos de
aprendizagem, criatividade e improvisação que as pescadoras existem, e assim,
conseguem realizar suas aspirações e enfrentar os desafios e conflitos.

Importante destacar, que há uma especificidade quando olhamos


para as pescadoras embarcadas uma vez que o espaço da terra e das relações
socioambientais extrapola para as águas e, consequentemente, as relações
advindas daí vão além do tempo das mulheres em terra e dos homens no mar,
tema recorrente no imaginário social e também nas pesquisas sobre pesca
no Brasil. A Figura 3 nos convida a pensar essa relação que conecta mulheres,
ambientes, coisas e seres perpassados pelos fluxos da natureza.

Para se compreender a pesca para a mulher é fundamental


compreender a mulher na pesca e, para isso, a definição de alguns conceitos e
paradigmas são necessários.

Figura 3 - Márcia em sua embarcação na Lagoa Mirim


preparada para a captura da Viola.
Fonte: Foto da autora
“Ninguém sabe que a gente existe“: reflexões antropológicas com pescadoras 42

NOVOS PARADIGMAS: DELIMITANDO CONCEITOS

Quando olhamos para o sistema da pesca artesanal no Brasil, vemo-


nos diante de um fenômeno cultural onde os saberes e práticas são transmitidas
de geração em geração, pautados por habilidades aprendidas e desenvolvidas
de acordo com a dinâmica da vida e do viver. São práticas atravessadas por fluxos
da vida que se intercambiam através das formas de habitar e das habilidades
desenvolvidas a partir de experiências concretas. (INGOLD, 2010; LAVE, 2015)

Esses conhecimentos aprendidos e transmitidos na pesca, conforme


nos dizem diversos autores (ADOMILLI, 2003 e 2007; GERBER, 2015), estão
intimamente relacionados às concepções simbólicas acerca dos recursos
da fauna, flora, fenômenos naturais, relações humanos e não-humanos e às
concepções práticas do conhecimento do manejo do ambiente e apropriação
de seus recursos, como o desenvolvimento e uso de tecnologias específicas e
adequadas de acordo com sua disponibilidade no ambiente.

De acordo com Ingold (2010), conhecer é fundamentalmente uma


habilidade que adquirimos na relação com os outros organismos e seres que
habitam o mesmo mundo e não uma prerrogativa humana que se processaria
no espaço restrito da mente como uma operação racional. Daí vem a virada
epistemológica proposta por diversos autores de diversas origens disciplinares
e diferentes opções teóricas, no esforço comum para a superação das
dualidades modernas, tais como natureza e cultura, sujeito e sociedade, corpo
e mente, artifício e natureza, sujeito e objeto.

No esforço para desconstruir tais dualidades e colocar em simetria


humanos e não-humanos, esses autores propõem, através de pistas conceituais,
o que Steil e Carvalho (2014) chamam de Epistemologias Ecológicas, as quais são
necessariamente plurais, pois se constituem como uma área de convergência
de novos horizontes de compreensão, elas reivindicam a materialidade e
autonomia do mundo, repensam o estatuto da realidade. Elas se contrapõem à
perspectiva representacional, libertando o conhecimento da mente humana e
centrando na ação.

Segundo Ingold (2015), nessa perspectiva a observação deixa de ser


o oposto da participação, e torna-se condição para o conhecimento, pois o
mundo que nos é dado a observar é um mundo em movimento. Diante disso,
a questão da simetria aparece como central na produção do conhecimento,
não mais “sobre”, mas “com” a/o outra/o, trata-se, portanto, de uma fusão da
história humana e da história natural.

O observador não olha a partir de um corpo que


se situa como uma totalidade independente dos
fluxos de luz, som e texturas do ambiente, mas,
ao contrário, ele é atravessado por esses fluxos,
que lhe dão a possibilidade de compreender o
mundo. (STEIL e CARVALHIO, 2014,168).
43 Socioantropologia de Povos e Comunidades Tradicionais Costeiras e Ribeirinhas

Assim, no lugar de pensar a natureza apenas como recurso,


propomos pensá-la enquanto espaço do aprender (ADOMILLI et al, 2017) onde
os saberes cotidianos das pescadoras embarcadas estariam relacionados a uma
territorialidade, o que chamamos, segundo Little (2005) de Territórios Sociais,
o qual abarca a diversidade de grupos humanos que apresentam diferentes
formas de apropriação do espaço, em uma perspectiva cosmológica possibilita
uma abordagem em torno do viver/habitar no mundo.

Diante desses paradigmas, conceitos e formas de ver e interpretar


o mundo, centraremos agora nossa atenção nas formas de aprendizagem das
pescadoras embarcadas. Como constroem-se, como tornam-se e ao mesmo
tempo como lidam com os diversos conflitos socioambientais que as atingem.

APRENDIZAGENS E VISIBILIDADES DAS PESCADORAS EMBARCADAS NA


PESCA ARTESANAL GAÚCHA

Ser pescador/a é um ethos, um modo de viver que se apoia no


trabalho em uma cadeia familiar, ou seja, tem a ver com as relações de
parentesco, solidariedade e temporalidades (DIEGUES 1979; WOORTMANN,
1991, ADOMILLI, 2007). Nesse sentido, ou seja, na dinâmica das experiências,
como já foi dito anteriormente, as pescadoras da pesquisa iniciam o processo
de aprendizado na pesca em família, geralmente com seus pais e avós.

Esse processo percorrido pelo aprendizado, que se inicia e continua


na repetição e na imitação cotidiana, bem como na sua transformação e
movimento, enquanto molda corpos e constrói sujeitos, fortalece os laços
familiares, ou seja, o aprendizado da pesca, com quem se aprende, está
intimamente imbricado com as relações de parentesco. Esse aprender contínuo
constrói essas mulheres, fazendo-as se constituírem enquanto pescadoras num
incessante processo de construção e duração (BACHELAR,1994). A interlocutora
Betinha nos diz:

Aprendi a pescar com meu pai aos oito anos


e hoje meu filho de 4 anos já está no ritmo,
ele já começou a aprender a pescar, é incrível.
(Betinha, pescadora Quinta Secção da Barra)

Rose Gerber (2015), que pesquisou com pescadoras embarcadas


de Santa Catarina, observou um panorama muito semelhante e nos traz
uma dimensão interessante: ela destaca que quando o foco da análise são
as mulheres pescadoras, a relação de aprendizado que em outros contextos
sociais seria de mulher-mulher, na pesca embarcada passa a ser também de
homem-mulher, ou seja, se dá de forma inter e intragênero:

Se ponderarmos sobre a construção dos


sujeitos a partir de com quem se aprende, será
possível chegar a um ponto em comum entre as
pescadoras que embarcavam que diz respeito
“Ninguém sabe que a gente existe“: reflexões antropológicas com pescadoras 44

a uma quebra na relação mulher-mulher posto


que o aprendizado passe a ser homem-mulher.
Enquanto as mulheres que trabalhavam na
pesca em terra aprenderam entre mulheres, de
mãe para filha, de avó para neta, de vizinha para
vizinha, de amiga para amiga, as embarcadas
com as quais convivia aprenderam com os
homens, pais, maridos ou com um estranho
que se tornou da família. (GERBER, 2015:166)

Elas aprendem, se constroem enquanto pescadoras e duram nessa


existência pescando. Acordam cedo, enfrentam a intempéries, driblam os
preconceitos e partem para a lagoa nas embarcações. Fazem isso há muitos
anos, aprendem novas tecnologias, se adaptam frente aos desafios e as crises
socioambientais, se reinventam a todo o instante e aprendem a sobreviver e
lutar numa sociedade que as exclui, que finge não as enxergar. Que processo é
esse que faz com que elas aprendam a pescar e, consequentemente, lutar por
reconhecimento? Nesse sentido Márcia nos diz:

Ninguém sabe que a gente existe, né, mas eu


nasci pescando e vou morrer pescando, é o
que eu gosto de fazer, e mesmo diante das
dificuldades, aqui estamos nós sobrevivendo.
(Márcia – pescadora de Santa Vitória do Palmar)

A atual legislação brasileira destinada a regular as relações políticas


e de produção pesqueira no Brasil, tende a reforçar a ideia de que pesca é
“coisa de homem”, pois assume como natural no corpo da lei os sentidos/
significados masculinizantes culturalmente estabelecidos. Essa afirmação pode
ser sustentada, nas categorias ocupacionais relativas à pesca presentes na
Classificação Brasileira de Ocupações – CBO, bem como a legislação sobre a
pesca tanto de nível federal (Lei nº 11.959/2009) como estadual (Lei 15.223/2018)
que utilizam uma categoria masculina na representação identitária para a
ocupação - Pescador Profissional.

Tal adjetivação parece ser algo sem importância, porém, a ausência


da presença do artigo feminino “a” na construção das categorias profissionais
tanto da CBO, como nas legislações sobre a atividade, revelam a invisibilidade,
e assim, acarretam prejuízos concretos e econômicos para a vida das mulheres.

Além disso, a pesquisa tem mostrado que a invisibilidade


pode ser explicada a partir da organização sociocultural estabelecida
e, consequentemente, da correlação prática entre reprodução social e
reconhecimento social e político. Reprodução social porque está relacionada ao
fato das mulheres assumirem simultaneamente as atividades em dois contextos
distintos: atividades na pesca e atividades domésticas e familiares, embora
esteja consolidado o entendimento na literatura sociológica e antropológica
de que elas conciliam de forma mais radical que os homens as posições
fundamentais nas esferas do lar e na atividade pesqueira em geral. (MARTINEZ
& HELLEBRANDT, 2019).
45 Socioantropologia de Povos e Comunidades Tradicionais Costeiras e Ribeirinhas

No caso especifico da pescadora embarcada, há uma série de fatos


e acontecimentos que atravessam o dia a dia dessa mulher fazendo com que
ela não esteja disponível para a captura vinte e quatro horas por dia, nem
vista em trapiches ou galpões, ou mesmo estando, como é o caso de uma das
interlocutoras que permanece acampada na lagoa por muitos dias. Casa e barco
formam um sistema integrado interdependente. Se não está no barco está me
casa. Cuidados com a família e filhos, doenças de parentes, tempo de filhos na
escola, são apenas alguns dos eventos que atravessam a vida da pescadora
embarcada e performam suas práticas.

Aprendem na prática os desafios de ser pescadora embarcada e


encontram estratégias para se manterem na atividade, como por exemplo a
rede de apoio feminina, que se traduz fundamental para que se mantenham
na atividade, percebemos isso de forma muito clara nas práticas e falas das
interlocutoras, bem como nos momentos de conversa com a pesquisadora,
conforme Figura 4 e 5, onde a mãe e irmã da pescadora Betinha sempre se
faziam presentes, vejamos:

Mulher pesca sim! Estamos aqui há muito


tempo, desde a minha bisavó. Cuido da casa,
da família e pesco, mas gosto mais de ficar
pescando, é o que eu gosto de fazer, mas a
mulher tem que fazer de tudo. Se não fosse
a minha mãe que cuida do meu filho desde
que nasceu eu não poderia pescar. (Betinha
pescadora da Quinta secção da Barra em São
José do Norte)

O barco é como se fosse a casa, quando estou


na lagoa faço a mesma coisa que em casa, e lá
(casa) faço tudo novamente. (Márcia pescadora
de Santa Vitória do Palmar)

Agora estou parada porque a minha filha está


de férias da escola, mas estou louca para voltar
a pescar. (Michele pescadora de Jaguarão)

Figura 4 - Betinha com o filho e a mãe Marta no momento da conversa com a autora
Fonte: Foto da autora
“Ninguém sabe que a gente existe“: reflexões antropológicas com pescadoras 46

Figura 5 – Pescadora Betinha com o filho, mãe e irmã


Quinta Secção da Barra/São José do Norte
Fonte: Foto da autora

No reconhecimento social e político, a invisibilidade e exclusão se dá


a partir do acesso, ou melhor, do não acesso que elas têm aos lugares de fala e
poder e, assim não estarem representadas nas arenas públicas falando sobre a
especificidade de ser mulher pescadora e na luta por direitos e pelo território.

Importante destacar que, todas as interlocutoras da pesquisa


possuem carteira de pesca emitida pela Marinha do Brasil, assim como
matrícula e licença para pesca, essa conquista é proveniente dos Movimentos
das Mulheres Pescadoras (MMP), como por exemplo a Articulação Nacional das
Pescadoras (ANP) iniciada por volta de 1970 em Pernambuco.

Os documentos têm uma importância crucial no fazer-se pescadora,


pois possuem em si um significado sagrado e ao mesmo tempo sacrificial
nos termos propostos por SCHAVELZON (2010). Sagrado porque a partir da
existência deles se constituem perante o Estado como Pescadoras e a partir
daí possuem a licença para pescar e serem reconhecidas. Sacrificial porque
demandam uma série de burocracias que nem todas conseguem cumprir,
são capturadas pelas exigências, prisioneiras delas. Como expressão desse
sentimento de fazer-se elas aprendem a força política de uma identidade, e
assim, todas, sem exceção, fazem questão de mostrá-los nos momentos das
entrevistas. A Figura 6 nos demonstra esse sentimento, a satisfação em portar a
Carteira de Pesca. “Queres ver meus documentos? Tenho tudo, e guardo numa
pastinha e levo comigo a bordo.” (Pescadora Betinha).
47 Socioantropologia de Povos e Comunidades Tradicionais Costeiras e Ribeirinhas

Figura 6 - Betinha em sua casa


Quinta Secção da Barra/ São José do Norte.
Fonte: Foto da autora

PESCANDO ESTRATÉGIAS FRENTE AOS CONFLITOS SOCIOAMBIENTAIS

As pescadoras embarcadas que, por sua vez, estão envolvidas desde


a etapa da captura do pescado, estão sujeitas também a outros conflitos de
ordem socioambiental que as afetam diretamente. Na imersão do trabalho de
campo, se percebe uma série de saberes, orientações, estratégias e desafios
daquelas que estão direta e cotidianamente envolvidas no uso dos recursos
naturais, fazendo com que se perceba a articulação desses conhecimentos
práticos com as contingências no ecossistema e na vida social.

Pesquisas de cunho etnográfico nos mostram que pescadoras e


pescadores brasileiros detêm um conhecimento profundo e detalhado sobre
seus universos pesqueiros, interpretam fases lunares, marés e ventos e as
formas como tais eventos interferem na pesca. As investigações localizam
critérios morfológicos, ecológicos, comportamentais e sensíveis na classificação
desse mundo por essas e esses artífices da pesca nas comunidades estudadas.
(MILLER, 2005; RAMALHO, 2011).
“Ninguém sabe que a gente existe“: reflexões antropológicas com pescadoras 48

No universo desta pesquisa, trazemos alguns dos desafios enfrentados


no dia a dia pelas pescadoras das Lagoas Mirim e dos Patos, que traduzem a
violência epistêmica e prática silenciadoras dos conhecimentos, saberes e da
própria existência dessas mulheres através das ações verticais e excludentes
por parte do poder público e da sociedade. São eles: políticas e estudos
realizados sem a participação das pescadoras e pescadores; lagoas entendidas
como espaços homogêneos cujas diretrizes não consideram as particulares
dos ambientes lagunares; facilitação para a pesca em grande escala com a
consequente escassez do estoque pesqueiro; espécies em extinção baseadas
em estudos desinformados; formas de pesca e dimensões dos instrumentos
de pesca (redes e os demais petrechos e equipamentos utilizados na atividade
pesqueira) determinados por lei e seus regulamentos que não são atualizados
diante da dinâmica pesqueira; envenenamento das lagoas pelo escoamento
nelas das plantações de arroz e soja.

Esses desafios atingem pescadores e pescadoras das comunidades


investigadas, mas as pescadoras embarcadas ainda são alvo de outras violências
que as atingem de forma mais agressiva pois conformam um grupo específico
dentro desse universo pesqueiro. São mulheres pescando nas lagoas e esse
fato as fazem sofrer o preconceito dos homens, da comunidade em geral e de
grupos pesqueiros. Preconceito pelo fato de serem “mulheres fazendo coisa
de homem” ou melhor, “mulheres em espaços que não são para elas”, gerando
estranhamento pela comunidade e pelos pescadores, com interdições inclusive
em alguns espaços de trabalho como na pesca industrial, por exemplo.

São ora vistas como ameaça ao modelo patriarcal instituído (homem


na lagoa, mulher em casa) ou como mulheres-homens, ou seja, mulheres
masculinizadas, gerando o caos pela não definição. Vejamos o que as
interlocutoras falam sobre essa questão:

Vivem gozando da gente, até hoje, mas não


dou bola pra isso, pesco mesmo e até melhor
que eles [homens]. (Lourdes – Quinta secção da
Barra)

Me chamavam de Maria-João no colégio, mas


nunca dei bola. Imagina gurias no mar no meio
dos homens? Muito preconceito. (Betinha –
Quinta Seção da Barra)

Complicado ser mulher pescadora, sofro


preconceito das mulheres do Porto porque
trabalho na lagoa onde os maridos delas estão
e elas não. (Márcia – Santa Vitória do Palmar)

Paradoxalmente, aquelas que rompem com as interdições sociais e


lutam para se manterem na atividade, parecem ter seu trabalho mais valorizado
socialmente perante ao trabalho das pescadoras que beneficiam e processam
o pescado em terra. Isso parece ser devido ao fato de que a atividade que
executam como embarcadas na captura do peixe é trabalho forçoso e,
49 Socioantropologia de Povos e Comunidades Tradicionais Costeiras e Ribeirinhas

portanto, trabalho de homem para a sociedade ocidental e, assim, se traduz


como mais valorizado perante os trabalhos que as mulheres geralmente
executam em terra. Elas enfrentam a lagoa, as intempéries, algumas moram nos
barcos permanecendo meses na lagoa, capturam o peixe, colocam e puxam as
redes, safam (denominação êmica sobre a retirada do peixe da rede) e limpam
o pescado, comercializam e lidam com as embarcações e motores, forcejando
como uma mulher forceja.

Essas mulheres que tu está entrevistando são


pescadoras mesmo, elas vão pra lagoa e fazem
a mesma coisa que o homem faz. (Pescador de
Santa Vitória do Palmar)

A mulher faz a mesma coisa que o homem faz


dentro do barco. Não tem diferença. (Marcia-
Santa Vitoria do Palmar)

Mulheres e homens embarcados trabalham de igual para igual, e


por isso elas acabam recebendo reconhecimento como “se homem fossem”,
mas são mulheres fazendo o que as mulheres sempre fizeram e fazem, ou seja,
trabalhando para si e para a reprodução e manutenção do grupo. Nas Figuras
7 e 8 podemos observar a Márcia puxando rede e organizando o barco para a
partida, prática diária de uma pescadora.

Figura 7 - Márcia, puxando a rede na embarcação


Fonte: Foto da autora
“Ninguém sabe que a gente existe“: reflexões antropológicas com pescadoras 50

Figura 8 - Márcia organizando na caixa o peixe que foi retirado da rede


Fonte: Foto da autora

Outro fator que merece destaque é que para dar conta dessa
desvalorização, não reconhecimento e pela luta política frente aos conflitos,
as interlocutoras da pesquisa, trabalhadoras da pesca embarcada, estão nos
movimentos sociais do setor pesqueiro desde as primeiras reuniões datadas
de meados dos anos 2000 no estado do Rio Grande do Sul, onde iniciaram o
movimento pelo reconhecimento social e político do trabalho das mulheres
pescadoras.

Nós estamos aqui e precisamos nos unir. A


mulher é parte nisso. (Rosa, presidente da
Colônia de Pescadoras de Jaguarão)

Somos poucas, mas cada vez tem mais mulheres


no movimento. (Andiara, pescadora da Lagoa
Mirim)

Entraram para as arenas políticas de enfrentamento das desigualdades


e reconhecimento de direitos para as mulheres, ocupando cargos na presidência
de associações e colônias, participando ativamente dos Fóruns da Lagoa dos
Patos e Mirim, contribuindo de forma ativa no movimento político das mulheres
na pesca artesanal, várias delas, inclusive, compondo, atualmente, o grupo que
luta ativamente contra a pesca predatória no RS, na busca por justiça social.
51 Socioantropologia de Povos e Comunidades Tradicionais Costeiras e Ribeirinhas

Rozi, de Santa Vitória do Palmar venceu as eleições de 2019 para


presidência da Associação dos Pescadores daquela cidade. Pela primeira vez
a associação tem uma mulher no comando. Rosa, pescadora da cidade de
Jaguarão, foi fundadora da Colônia de Pescadoras em 2007 e hoje é presidenta
do Conselho da Lagoa Mirim e membro ativo nas reuniões do setor pesqueiro
gaúcho. Durante toda sua trajetória contribuiu e continua a contribuir
fortemente para o reconhecimento das pescadoras perante os órgãos públicos,
tais como o Instituto Nacional do Seguro Social - INSS, Ministério da Pesca,
entre outros.

Márcia, Alessandra e Adriana (pescadoras da Lagoa dos Patos e


Mirim), obtiveram formação junto ao Movimento dos Sem Terra e até hoje
participam dos movimentos de luta social.

Formei muita mulher aqui, e sempre ensinei


para elas que se gostamos temos sim que usar
baton e pintar a unha, não é porque somos
pescadoras e vivemos nos barcos ou com o
peixe na mão que não vamos nos cuidar, O
INSS tem que respeitar como somos..( Rosa –
Jaguarão)

“Minha formação veio toda do MST, foi a


Alessandra que me levou, quando fui morar nos
barracões aprendi meus direitos como mulher
e como pescadora, a partir dali tive força e
coragem para comprar meu barco e pescar
sozinha, sustentei meus filhos e construí minha
vida. Agora quero voltar para o Movimento,
sinto falta de lutar pela pesca, precisamos nos
unir, porque só querem destruir o pequeno
(pescador e a pescadora artesanal) e agigantar
o grande rico pescador, acabar com as lagoas
e com os peixes, só querem ganhar e ganhar”
(Márcia – pescadora Santa Vitória do Palmar - o
complemento em itálico é nosso.)

Pescando peixes e direitos elas estão há muito tempo nas águas


lagunares do Rio Grande do Sul, a luta por reconhecimento se deu a partir
delas, assim como o direito de permanecer pescando numa atividade vista
socialmente e culturalmente como masculina. O que precisamos é dar atenção,
olhar e ver essas trabalhadoras na atividade diária de ser pescadora e assim
compreender os processos que as constituem e que constituem a pesca
brasileira. Os conflitos surgem e são necessários para que as subjetividades e
diferenças de pontos de vistas sejam reveladas e negociadas.

É preciso negociar, esse é o verbo que parece reger a vida das


pescadoras nas lagoas Mirim e dos Patos. A antropóloga Luceni Hellebrandt
(2019) quando pesquisou sobre a pesca na colônia Z-3 em Pelotas, escreveu
sobre essa questão intitulando seu artigo “Negociando com homens e
entregando a Deus” o qual nos revela as relações de poder entre os sexos e a fé
“Ninguém sabe que a gente existe“: reflexões antropológicas com pescadoras 52

que é necessária para continuar exercendo a pesca frente aos conflitos.

Fé, criatividade e inovação, pois conforme nos diz Leff (2001), o


desenvolvimento do saber ambiental leva a um diálogo e amálgama de saberes,
e que é nesse encontro/desencontro de diferentes subjetividades que nascem
os processos conflitivos. Aqui as ciências sociais e ambientais têm um papel
fundamental de análise: os espaços dos conflitos socioambientais enquanto
campo de investigação.

Os pescadores e pescadoras artesanais das localidades investigadas


já se apropriaram do discurso científico para legitimar a luta de preservação e
renovação do estoque pesqueiro e de seus territórios onde estejam protegidos
das políticas centradas no lucro a qualquer preço. Para Zhouri e Laschefski
(2010), os conflitos ambientais, revelam, portanto, modos diferenciados de
existência que expressam a luta por autonomia de grupos que resistem ao
modelo de sociedade moderna. Nesse sentido nos dizem as pescadoras:

É preciso preservar nosso ambiente com uma


pesca sustentável e auto produtiva. (Pescador,
presidente do Forúm da Lagoa dos Patos)

A culpa é sempre nossa, e a mineração? E os


agrotóxicos das lavouras que são soltos na
lagoa? (Pescadora Betinha)

Nós dependemos do mar! Precisamos


recuperar os estoques afastando a pesca
predatória feita pelos Catarinas. (Catarinas é
como são chamados os pescadores provenientes
do estado de Santa Catarina que pescam em
grandes traineiras devastando o espaço marítimo e
lagunar). (Pescadora Rosa – o complemento e
itálico é nosso)

Evidencia-se, assim um encontro de saberes e práticas locais e um


saber científico, que acabam por conformar um saber ambiental compartilhado
por essas trabalhadoras da pesca que, longe de se constituírem um grupo
homogêneo, partilham saberes e formas de viver e, sobretudo, sobreviver,
próprias de quem depende dos recursos naturais. As formas de pescar nas
lagoas diferem muito, pois para cada peixe há uma forma de capturá-lo, cada
lagoa possui um ritmo e um tempo, cada tipo de embarcação possui uma
dinâmica, cada pescadora é um ser único e que nessa pesquisa são percebidas
na sua individualidade e experiência no engajamento com seus ambientes.

Para isso, a etnografia, método desenvolvido nessa pesquisa,


privilegia o contato e coloca a pesquisadora como elo entre culturas por força
de sua vivência em ambas. É esse conhecimento e essa competência que
mobilizo ao descrever e explicar a cultura estudada (WAGNER, 2010).
53 Socioantropologia de Povos e Comunidades Tradicionais Costeiras e Ribeirinhas

Seguindo Sauvè, defendemos que a educação ambiental não deve


impor uma visão de mundo. É preciso levar em conta a cultura de referência
das populações ou das comunidades envolvidas, uma vez que “a corrente
etnográfica propõe não somente adaptar a pedagogia às realidades culturais
diferentes, como se inspirar nas pedagogias de diversas culturas que têm outra
relação com o meio ambiente” (SAUVÉ, 2005, 35).

Nessa onda, o trabalho de campo vai revelando essas pedagogias


e, conforme nos ensinou Freire (1983), no encontro dialógico vai nos dando
pistas para compreender por dentro e por elas esse modo de vida, os saberes e
aprendizagens que se dão na estreita relação com seus territórios sociais, seus
lugares de pertencimentos.

Ao experienciar a cultura das pescadoras me deparo com a complexa


rede em que estão envolvidas, rede essa que elas tecem e ao mesmo tempo
por elas são tecidas. Ou seja, que se constitui numa grande malha (INGOLD,
2015) que trama todas as dimensões da vida com nós e emaranhados que são o
acaso, as incertezas e os imponderáveis que se atravessam e dão outro sentido
ou caminho e, assim, nos deparamos com a criatividade em todos os níveis da
vida, resistindo às adversidades de um mundo cujo pensamento está em crise,
centrado na destruição planetária, no patriarcado, na perspectiva dicotômica
e alienada.

Agora estamos pescando a Viola, mas porque


não temos mais os outros como a Traíra, Tainha,
e muitos outros, o peixe está desaparecendo
e precisamos aprender coisas novas. A Viola
ninguém pescava, mas agora é o que os resta,
tive que aprender a pescá-la, é muito diferente.
(Márcia, pescadora Santa Vitória do Palmar).

A gente tem um jeito de pescar, que nos foi


ensinado e que vamos passando, e vamos
aprendendo coisas novas também, o que me
deixa muito furiosa é que quem decide como
devemos fazer são pessoas que nunca entraram
num barco ou nunca pescaram um peixe.

Não paro nunca de aprender, comecei ainda


criança e até hoje aprendo todo dia. Cada
pesca é de um jeito, todo dia aprendo. (Márcia,
pescadora Santa Vitória do Palmar)

Resta evidente, portanto, que o que está posto nos conflitos


socioambientais é o confronto entre racionalidades, via de regra, no campo de
lutas sociais e políticas entre o poder do Estado e das instituições privadas e
pescadores locais com seus saberes técnicos e práticas locais, e as pescadoras,
estas também plurais, estão posicionadas na base, e como vimos são atingidas
de forma mais agressiva pelas desigualdades social, cultural, política e ambiental
do setor.
“Ninguém sabe que a gente existe“: reflexões antropológicas com pescadoras 54

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Tendo como objeto as mulheres na pesca embarcada artesanal, o


texto buscou revelar que ao contrário do que habita no imaginário brasileiro e
no olhar do Estado as mulheres estão há muito tempo pescando nas lagoas do
extremo sul do Brasil. A observação empírica, aliada ao arcabouço teórico sobre
o tema, nos levam a desconstruir a abordagem convencional que identifica a
pesca embarcada artesanal como atividade exclusivamente masculina.

Ao analisarmos os fatores que acarretam invisibilidade, desigualdade


e exclusão a partir das relações trabalho de mulheres na atividade pesqueira
identificamos as expressões das hierarquias sociais estruturantes de relações
de inclusão/exclusão e igualdade/desigualdade

As interlocutoras da pesquisa aprenderam a ser pescadoras e essa


aprendizagem se deu e se dá na prática e como prática, ou seja, a aprendizagem
aconteceu e continua a acontecer incessantemente em todos os momentos da
vida dessas mulheres (LAVE, 2015). A capacidade criativa de superar e conviver
com as adversidades da vida e da pesca, aliada à luta contra as restrições de
direitos sociais, políticos e econômicos, ou seja, o enfrentamento aos conflitos
socioambientais, forjam essas mulheres e as constroem como pescadoras,
sujeitos de direitos e cidadãs do mundo.

Como observamos, os conflitos vividos e enfrentados por essas


mulheres não são poucos. Reside aí a preocupação central dessa pesquisa:
compreender esse viver a partir dos saberes, das práticas, dos engajamentos
em seus territórios e das estratégias daquelas que vivem diretamente as
consequências da crise socioambiental, vivendo e sobrevivendo com a baixa
renda, com tripla jornada e com as desigualdades produzidas e reproduzidas
no próprio ofício.

A etnografia, aliada à corrente etnográfica da educação ambiental,


se traduz como ferramenta fundamental que atua nesse processo na forma de
revelação e interpretação dos modos de aprender e se relacionar no ambiente
a partir das experiências das pescadoras e com elas, configurando um contexto
de interlocução com diferentes saberes e práticas compartilhadas por grupos
que vivem e habitam o ambiente lagunar. Nesse movimento de trazê-las elas
são percebidas e ao mesmo tempo percebem e tomam consciência de que
são ao mesmo tempo produto e produtoras de cultura, e assim lhe despertam
potencialidades e mobilizam suas capacidades políticas de participar, discutir,
decidir. Como resultado, elas não mudam apenas o mundo, mas mudam
também suas posições diante do mundo.

A revelação da participação das mulheres na etapa da captura do


pescado de forma embarcada e cada vez mais crescente na gestão pesqueira
gaúcha revela a transformação alicerçada numa perspectiva do reconhecimento
e valorização da pescadora, do saber das comunidades, da experiência e da
diversidade. Perceber a especificidade do trabalho das pescadoras, seus
conhecimentos, significados e ações resulta na ampliação e complexificação
das noções de ambiente, educação e conflitos socioambientais.
55 Socioantropologia de Povos e Comunidades Tradicionais Costeiras e Ribeirinhas

Assim, na busca de estratégias e empoderamentos elas duram no


tempo e, conforme postula Bachelard (1994) quando fala de uma dialética da
duração, essa pressupõe que uma temporalidade para durar precisa ao mesmo
tempo fervilhar de lacunas, repouso e agitação. E é aí, nesta dialética, que oscila
entre luta, prazer, força e sensibilidade, as mulheres se constroem como figuras
centrais para que o mundo da pesca exista, se mantenha e se reproduza.

Para finalizar trago Escobar (2015:29) que em sua análise sobre as


lutas étnico-territoriais na América Latina, nos ensina que ditas lutas constituem
defesas de mundos ou ontologias relacionais e que os conhecimentos das
comunidades incorporam uma proposta avançada contra a crise social e
ecológica dos territórios. Segundo esse entendimento e olhando para o universo
das pescadoras, toda essa densa malha de inter-relações e materialidades
existente na pesca embarcada praticada por mulheres, nos revela que, não há
pescadora, nem peixes, nem barco, nem motor, nem rede, nem maré, nem lua,
nem lagoa como seres discretos, autocontidos, que existem por si mesmos, ou
por sua própria vontade.

O que há é um mundo inteiro que atua minuto a minuto, dia a dia,


através de uma infinidade de práticas que vinculam uma multiplicidade de seres
humanos e não-humanos na luta pela vida, e no caso das pescadoras, na luta
pela vida, direitos e liberdades.
“Ninguém sabe que a gente existe“: reflexões antropológicas com pescadoras 56

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59 Socioantropologia de Povos e Comunidades Tradicionais Costeiras e Ribeirinhas

BREVE ETNOGRAFIA DO COMÉRCIO DE PEIXES EM DOIS


MUNICÍPIOS DO SUL DO ESPÍRITO SANTO: ASPECTOS
MORAIS DO SISTEMA DE CRÉDITO ECONÔMICO LOCAL

Márcio Filgueiras
Instituto Federal do Espírito Santo

Ana Beatriz Oliveira


Instituto Federal do Espírito Santo

Edilson de Oliveira Costa


Instituto Federal do Espírito Santo

Higor Goltara Bianchine


Instituto Federal do Espírito Santo

Wagner Lieres dos Santos


Instituto Federal do Espírito Santo

INTRODUÇÃO

O presente artigo foi produzido no âmbito do Getap1, sob o incentivo


de bolsas de iniciação científica para alunos do ensino médio, oferecidas pelo
IFES2. A pesquisa foi realizada em dois municípios localizados na região sul do
Espírito Santo: Piúma3 e Marataízes.

Este texto reúne dados coletados em diferentes momentos e através


de diferentes estratégias. O trecho que aborda a reforma no mercado de peixes
de Piúma, entre os anos de 2019 e 2020, foi feito a partir de visitas in loco
dos estudantes Ana Beatriz, Higor e Wagner que realizaram observação direta,
entrevistas semiestruturadas e acesso a fontes documentais.

A segunda parte do texto refere-se à pesquisa realizada em uma


peixaria específica, também em Piúma, entre os anos de 2017 e 2018. Como
estratégia de pesquisa foi utilizada a observação participante, em que o
pesquisador Márcio trabalhou esporadicamente na peixaria, limpando peixes
e fazendo entregas, totalizando cerca de 30 visitas a campo, de cerca de três
horas cada, em um período aproximado de quatro.

1. Grupo de Estudos Territoriais e a Atividade Pesqueira, coordenado pelo


professor doutor Eduardo Rodrigues Gomes.

2. Edital Ifes 04/2019 do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica


Júnior – Pibic-Jr.

3. Piúma sedia um dos campi do Instituto Federal do Espírito Santo, onde


existem cursos de ensino médio técnicos nas áreas de aquicultura e pesca, além
de um curso de graduação em Engenharia de Pesca.
Breve etnografia do comércio de peixes em dois municípios do Sul do Espírito Santo 60

A terceira parte do texto refere-se à pesquisa realizada no município


de Marataízes, especificamente no bairro Pontal. Os dados apresentados sobre
Marataízes foram reunidos pelo estudante Edilson, que é pescador local. Assim,
realizou o papel de um participante-observador em que buscou aproximar sua
experiência como pescador das categorias e preocupações da Antropologia,
a partir de temas e discussões suscitados em sala de aula, no curso técnico
integrado em pesca do Ifes, campus Piúma.

Os dados aqui apresentados provém, portanto, de diferentes


estratégias de pesquisa, realizadas por diferentes pesquisadores de nosso grupo
de pesquisa. A possibilidade de que alunos do ensino médio sejam socializados
em pesquisa científica está de acordo com os objetivos do Ifes de articular
ensino, pesquisa e extensão no processo de ensino e aprendizagem. Como
cursam cursos técnicos integrados ao ensino médio, a realização de pesquisa
na área de Antropologia permite que vislumbrem como, além de fonte proteica
e de recursos econômicos, a “cadeia produtiva da pesca” é também uma rede
de relações sociais em um sentido mais amplo, em que as pessoas estão ligadas
não apenas por interdependência econômica, mas por compromissos morais
característicos de relações pessoais longamente estabelecidas no tempo. E é
com a descrição da estrutura destas relações sociais, especialmente aquelas ao
redor da esfera de circulação do pescado, que vamos contribuir neste texto.

Partiremos dos fatos observados em Piúma, e ao final abordamos o


município de Marataízes para então concluirmos o texto apontando princípios
comuns que parecem presentes no comércios dos dois municípios. Adiantando
um pouco a conclusão, identificamos que, como as transações observadas são
momentos dentro de relações entre pessoas que interagem longamente em
diferentes esferas da vida, considerações pessoais se articulam de maneira
complexa com os interesses econômicos, não sendo desejável reduzir o
comércio de peixes local a um negócio, sendo melhor compreendido como um
fato social total (MAUSS, 1974).

O MERCADO DE PEIXES DE PIÚMA

Antes de passar à descrição das relações sociais ali observadas,


procederemos a uma descrição do mercado e dos dilemas suscitados pela
reforma4. Segundo os registros da Prefeitura, o mercado chama-se “Mercado
Antonio Batista” e sua construção dataria de 1984. De acordo com o dono da
peixaria que frequentei, Wilson, a princípio vendiam os peixes nas calçadas.
Depois o poder público fez uma bancada, onde os pescadores dispunham o
peixe, ainda sem gelo. Depois fizeram bancas e depois vieram os boxes. Ele
falou que no início os boxes foram distribuídos “pra quem queria trabalhar”
e que depois as pessoas “passavam” o ponto informalmente por algum valor
monetário que ele falou que geralmente não era alto. Ele disse que tudo era, e
é, feito entre as próprias pessoas, sem a interferência formal da prefeitura.
4. Cabe ainda destacar que o comércio local de peixes não se resume ao
referido mercado, mas dá-se também em peixarias espalhadas pelo município
e também de maneira informal, a partir das residências de moradores. Este
comércio informal foi objeto de Ação Civil Pública, a partir de denúncia do
Sindicato da Indústria da Pesca e Aquicultura do Espírito Santo (SINDIPESCA-
ES) , ao Ministério Público Estadual, tendo como motivo os aspectos sanitários
do processamento do pescado.
61 Socioantropologia de Povos e Comunidades Tradicionais Costeiras e Ribeirinhas

O que acontece é que, apesar do mercado ser formalmente registrado


e ter sido construído como política pública municipal, os usos do mercado, a
distribuição dos boxes e suas exploração não são regulados por legislações,
mas por regras tácitas e negociadas. Wilson me explicou que a prefeitura
“não mandava nada lá”. Mas também contou que pagou durante muito tempo
aluguel para alguém que lhe passou um box, mas que através de contatos que
tinha na Prefeitura, com pessoas que gostavam muito dele, a Prefeitura passou
o box para o nome dele e ele deixou de pagar o aluguel e que esse caso chegou
a ir para a Justiça, mas aparentemente está parado ou foi arquivado.

Assim, se por um lado a Prefeitura “não mandava em nada lá”, foi


através de relações pessoais e políticas com pessoas da Prefeitura que conseguiu
deixar de pagar o “aluguel”. De fato, enquanto instituição republicana, a
prefeitura “não manda nada”. Por outro lado, funcionários e políticos podem
ser acionados, de forma particularizada e através de relações pessoais, para
mediarem e solucionarem situações como esta do aluguel pago por Wilson.

Seu box atual, Wilson passou para uma conhecida. Disse que a
princípio não queria receber, mas ela insistiu, e ele também precisou de
dinheiro. Falou também que a Prefeitura lhe ofereceu um box no novo mercado
e que está considerando aceitar porque o filho dele quer trabalhar vendendo
peixes.

A esposa de Wilson me explicou que com o adoecimento do marido


eles “deixaram” o box com outra pessoa, porque caso contrário a prefeitura ia
pegar o quiosque: “deixamos ela (outra comerciante) lá porque eles iam pegar
se não estivesse trabalhando. Não podemos mais, Wilson não tem mais força”.

Este padrão de posse e transmissão dos boxes encontra semelhanças


com o que identifiquei a respeito dos barracões na Praia da Concha, na Barra do
Jucu (FILGUEIRAS, 2008). Trata-se de uma particularização do uso de espaços
públicos, quando os agentes do Estado não são capazes, ou não se interessam,
em regular estes espaços segundo regras que sejam construídas de forma
explícita e aplicadas de maneira universal, junto aos usuários de tais espaços.
No caso de Piúma, o “Estado” também é parte da sociedade local e expressa em
sua atuação, aproximações e distanciamentos pessoais, como descrito no caso
de Wilson, que conseguiu deixar de pagar o aluguel ao “dono” do box, a partir
das relações pessoais que tinha com funcionários da Prefeitura.

A REFORMA

Em visita ao local, entrevistamos um pescador e comerciante para


conhecermos sua opinião a respeito da obra realizada pela prefeitura no
mercado, e descobriu-se que há um forte conflito de opiniões entre comerciantes,
pescadores e a prefeitura. Na visão da Prefeitura, a reforma do mercado ajudará
no comércio de peixes, adequando a atividade a exigências sanitárias, por
exemplo. Na visão do entrevistado, essa obra só trará prejuízos e será como um
“elefante branco”. Segundo ele, as principais reclamações a respeito da reforma
do mercado de peixes são: o tamanho das cabines onde ficarão as novas
peixarias que, segundo o entrevistado, são bem menores se comparadas às que
Breve etnografia do comércio de peixes em dois municípios do Sul do Espírito Santo 62

eles possuíam; o bloqueio do porto - construído pelos próprios pescadores -


que servia como local de descarregamento; o fato da prefeitura querer instalar
um local de processamento no mercado, aonde as peixarias deverão levar seu
produto para ser processado na unidade e transportá-lo de volta para a peixaria
para que, somente então, possa ser vendido; e, por fim, a falta de diálogo entre
prefeitura, comerciantes e pescadores.

Outros pescadores, como Wilson, vêem na reforma uma adequação


necessária e que melhorará as condições de venda do pescado.

RELATIVIZANDO UMA CATEGORIA FAMILIAR

Acredito ser possível um exercício de relativização de uma categoria


presente no universo da administração dos recursos pesqueiros. A categoria
em foco aqui é a “rastreabilidade”. Do ponto de vista dos agentes de controle
e da ciência da pesca, a rastreabilidade é a capacidade de acessar a origem
de um peixe, as condições técnicas, ecológicas e sociais de sua captura ou
produção. No entanto, no contexto do comércio local de pescado, também
há uma preocupação com sua origem, mas a partir de diferentes parâmetros.
Como a rastreabilidade do pescado não se impõe fortemente aos pescadores
e comerciantes locais pelas agências oficiais, a questão da origem do pescado
se liga muito mais às dinâmicas do próprio mercado local5. Existe todo
um conhecimento sobre tipos de camarões e de peixes, suas origens, suas
adequações “para restaurante” ou para consumo doméstico, etc.

Enquanto para os cientistas e agentes de controle a produção de


dados objetivos e públicos sobre a origem do pescado é fundamental para o
que chamam de manejo do setor (sustentabilidade dos recursos, arrecadação
de impostos, controle sanitário, etc.), as transações locais se utilizam justamente
do procedimento contrário, produzindo uma política de apropriação particular
e desigual das informações.

É possível identificar uma semelhança estrutural entre o observado


em Piúma e o que Geetz (1978) chamou de “clientelização” em sua etnografia
dos mercados marroquinos. Segundo o autor, para superar o deficit de
informação acurada, os participantes do mercado marroquino estabelecem
laços estáveis. Estes laços diferenciam os transeuntes curiosos dos clientes
conhecidos e assim transformam uma massa difusa e confusa em algo familiar,
tornando o processo de busca por informações sobre qualidade e preço algo
menos caótico.

Como mostraremos, em Piúma, relações sociais longamente


estabelecidas são fundamentais para o sucesso de um comerciante, seja para
garantir certo controle sobre a origem e qualidade do pescado, seja para
usufruto de crédito. Como me disse Wilson: “Não fico sem vender porque
tenho nome garantido”. Essa importância de preservar o “nome”, no sentido de
reputação, e a associação com a possibilidade de acessar crédito é um assunto

5. Isso vale especificamente para os mercados locais e não se aplica a empresas


de exportação, que devem cumprir critérios de rastreabilidade .
63 Socioantropologia de Povos e Comunidades Tradicionais Costeiras e Ribeirinhas

recorrente no contexto local de comércio de pescado.

PEIXARIA DO WILSON

Wilson tem cerca de 65 anos e me contou que chegou a cogitar fazer


faculdade quando jovem, mas acabou tornando-se pescador6. Pescou muito em
caíques, pequenos barcos individuais, lançados de uma embarcação maior, que
pernoitavam no mar.

Foi também dono de barcos e ganhou muito dinheiro em certo


período de sua vida vendendo barbatanas de tubarão. Foi também nesse
comércio que acabou perdendo grande parte do seu capital, após um revés. Em
uma ocasião, tomou dinheiro emprestado ao banco para comprar as barbatanas
(galhas) de tubarão, mas, segundo ele, houve uma alta súbita no preço do dólar
que lhe impediu de fechar o negócio e acabou lhe colocando em dívida com o
banco. Teve de vender os onze barcos que tinha e nunca mais voltou ao negócio
das galhas. Wilson me contou essa história diversas vezes, especialmente nas
primeiras semanas da pesquisa e em uma das versões incluiu também um outro
comerciante que teria se antecipado a ele na negociação.

Hoje em dia Wilson é muito mais cuidadoso em suas transações e me


falava sempre sobre o tipo de situações que enfrentava em seu ofício e como
as administrava. Conversas com Wilson sobre o tempo em que vendeu galha de
tubarão, ou as comparações dele entre as “entregas” e o “comércio de balcão”,
permitem notar que ele se refere a estas possibilidades como tipos diferentes
de empreendimentos - “comércios” segundo ele - que demandam cada qual
certo capital, certo conhecimento, certas relações, certos riscos, certos ganhos,
etc. Wilson nunca se refere ao “mercado” de peixes de Piúma de maneira geral,
mas trata sempre de distinguir tipos de “comércios”.

Sobre o comércio de galha de tubarão, ao qual me referi acima,


Wilson disse que “se ainda estivesse nesse negócio, talvez já estivesse morto”.
De acordo com ele “não respeitava ninguém”, ou seja, costumava cruzar a
fronteira do que é considerada a etiqueta de transação comercial. Isso porque
este “comércio” não pressupõe indivíduos economicamente interessados
barganhando em um mercado regulado apenas pela oferta e procura, mas um
espaço social em que pessoas devem respeito umas às outras, sob o risco de
represálias, chegando até o uso da violência. Conforme me contou, chegou
a pagar seguranças para proteger a família. Falou ainda que “para entrar no
negócio você tem de ter o dobro do capital do seus concorrentes para pode
cobrir as ofertas”, dada a quantidade de dinheiro que circula nesse tipo de
comércio.

Este período da vida de Wilson passou-se há cerca de trinta anos.


Atualmente, Wilson não trabalha com galhas de tubarão. Dedica-se às
“entregas” e ao “comércio de balcão”. Segundo ele, o comércio de balcão é
um “comércio de sorte” e que “não acende”, já que vende em um ritmo lento
e demanda custos com gelo para armazenar os peixes. Prefere as “entregas”,

6. Chegou também a ser o responsável pela cooperativa que existia na antiga


Escola de Pesca (CID ET AL, 2018)
Breve etnografia do comércio de peixes em dois municípios do Sul do Espírito Santo 64

como quando buscamos cerca de 120 kg de dourados em Itaipava, a 12 reais o


kg. Wilson limpou o peixe, cortou em postas e vendeu a 14 reais o kg para um
restaurante de Piúma. Nessa ocasião ofereci meu carro, mas Wilson geralmente
precisa pagar um frete.

De acordo com Wilson, a “entrega” pode deixar de ser vantajosa se


vende com prazo. Isso porque fica “descapitalizado”. Por isso prefere várias
entregas pequenas pagas à vista do que uma grande entrega com prazos que o
deixem sem capital para “girar” o negócio:

“Tem muito comércio por aí, que eu


não consigo mais administrar, comércio pra 30
dias, pra 60 dias, isso aí to parando, na hora que
pedir eu posso até entregar, mas tem de ser à
vista... porque... você vende ele a prazo, você
se descapitaliza, se você investe 3 mil na hora
pra receber com 60 dias você tem, 60 dias, 3 mil
presos.”

A pesquisa tem revelado que existe todo um conhecimento sobre


fornecedores, preços, origem e qualidade do pescado, que é um verdadeiro
capital que os comerciantes acumulam ao longo dos anos e sobre o qual estão
sempre fazendo avaliações em conversas cotidianas. Wilson falou em uma
ocasião que estava planejando uma venda de 15 toneladas de peixe (Dourado).
O peixe iria para o nordeste. Ele atuaria como intermediário entre uma empresa
local e o comprador. Disse, no entanto, que o problema de fazer esses negócios
é que a empresa cujo peixe ele vai enviar, depois descobre o contato e “passa
por cima dele”.

Construir relações e estabelecer contatos é tanto uma estratégia


econômica como uma fonte de prestígio local, como quando Wilson comentava
comigo sobre a quantidade de “comércio” com a qual já lidou e que inclusive
“colocou clientes na mão dos outros”, se referindo a seu papel como mediador
entre fornecedores e comerciantes ao longo dos anos. Dessa maneira, Wilson
construiu uma reputação: “Meu camarão tem nome”, me disse certa vez.

Administrar eventuais conflitos nestas transações, evitando rupturas


nas relações, é uma das condições para ser um comerciante bem sucedido.

ADMINISTRANDO CONFLITOS

Para entender como o problema se coloca localmente, vejamos a


seguinte situação de campo. Em uma transação, Wilson me disse que a pessoa
de quem ele ia comprar o camarão, Ellen, dissera que este provinha do sul da
Bahia, mas ele me explicou que “sabia” que era de Conceição da Barra (norte do
ES) . E, para minha surpresa, ele completou: “e ela sabe que eu sei”. A etiqueta
da relação não permitia, no entanto, que Wilson a confrontasse sobre a origem
do camarão, sob o risco de produzir rusgas na relação.
65 Socioantropologia de Povos e Comunidades Tradicionais Costeiras e Ribeirinhas

Nesta situação comprávamos camarão de Ellen para entregar a


Paula, do restaurante MG. Observei a negociação entre Wilson e Ellen e esta lhe
garantiu a qualidade do camarão. Quando chegamos ao restaurante, foi a vez
de Paula questionar Wilson sobre a qualidade do camarão. Wilson confirmou
que não continha sal7 e que era de qualidade: “já trouxe coisa ruim pra vc?”.
Paula disse que comprara um camarão ruim de outro vendedor recentemente.

Cerca de três meses depois, Wilson me disse que Paula não estava
mais atendendo seus telefonemas, já que os pacotes de 1kg que entregamos
tinham, na verdade, 450 gramas. Wilson se justificou para mim dizendo: “Mas
era o camarão que eu tinha pra trabalhar”. Como me explicou, “antigamente o
mercado não aceitava congelado, hoje já aceita”. Segundo Wilson, o camarão
congelado seria mais fácil de ter sua origem, qualidade e peso manipulados:
“Não é um comércio de sabedoria, é um comércio para acompanhar o mercado
hoje”... “Ninguém tá roubando, tá comprando do mercado”. Interpretei que o
comércio “de sabedoria” é aquele em que, através de uma rede de relações
estáveis e confiáveis, você consegue controlar a qualidade da mercadoria que
está negociando. Hoje, por outro lado, o máximo que consegue é “acompanhar
o mercado”, ou seja, tem que trabalhar com “o que tem”.

No caso descrito há uma tensão entre, por um lado, o interesse


econômico das partes e, por outro, o fato de que tratam-se de pessoas que
interagem entre si há décadas e a quem não interessa romper relações. A
possibilidade de ser enganado parece estar sempre presente nessas transações.
No entanto, como aquela transação econômica é somente um momento
em uma longa relação entre as partes, como neste caso, em que conhecem-
se há mais de dez anos, a origem do peixe é uma informação que pode ser
manipulada como parte da estratégia de negociação sem que isso signifique
uma ameaça à relação social, ainda que ocorram sanções. Como no caso de
Paula, que deixou de atender os telefonemas de Wilson, por ter identificado a
“fraude” no camarão.

Como Wilson previra em conversa comigo, meses depois voltou a


realizar transações econômicas com Paula. Como me explicou, possui muito
crédito pessoal com ela, com quem negocia há décadas: “O restaurante dela já
trabalhou muito com o meu dinheiro”, se referindo às vendas à prazo que fez
para Paula ao longo dos anos.

Não quero dar a impressão, com este episódio, de que trata-se de um


sistema baseado em uma “reciprocidade negativa”8. Pelo contrário, a imensa
maioria das transações que presenciei foram percebidas pelas partes como
satisfatórias. Os conflitos, quando ocorrem, são amenizados pelas considerações

7. De acordo com Wilson, a forma de processamento do camarão afeta sua


qualidade. Assim, o camarão descascado à mão seria melhor que o descascado
na máquina. Além disso, algumas vezes acrescentam sal ao camarão em seu
processamento, o que diminuiria sua qualidade.
8. Em “Sociedades Tribais” Marshall Sahlins (1978) apresenta uma tipologia que
atribui a Service e que classifica três tipos de reciprocidade, segundo critérios
que vão desde a ajuda desinteressada, passando pelo cálculo econômico, até a
pilhagem pura e simples. Esta última constituiria a reciprocidade negativa, e as
outras a “generalizada” e a “equilibrada”, respectivamente.
Breve etnografia do comércio de peixes em dois municípios do Sul do Espírito Santo 66

pessoais mútuas e podem ser administrados por estratégias indiretas, como


não atender telefonemas, evitando o confronto direto e desagregador.

O CRÉDITO

Na história do camarão contada acima, o crédito pessoal que Wilson


apontou possuir com os donos do restaurante- já que negociam há tantos anos
- garantiu que a relação social não se rompesse.

Presenciei pelo menos três ocasiões em que Wilson cedeu um


“vale” para pescadores. Este “vale” é um adiantamento que o comerciante dá
ao pescador, que deve pagá-lo com sua produção ou parte dela. Segundo
Wilson, ele não gosta de fazer isso, “não por causa do dinheiro”, mas porque
eventualmente o pescador não retorna para pagar esse “vale” e Wilson acaba
ficando sem o dinheiro, sem peixe e o pescador passa a evitá-lo, rompendo a
relação social, ainda que temporariamente.

Em uma das ocasiões, um pescador pegava um terceiro “vale” e


Wilson comentou comigo que ia “acabar se aborrecendo com ele”, porque
quando o peixe chegasse “a caneta” ia funcionar, ou seja, ia descontar os “vales”.
De acordo com Wilson este pescador provavelmente se zangaria, porque é
“orgulhoso”. Tratava-se de um pescador aparentando ter a mesma idade de
Wilson. Uma consequência de darem-se entre pessoas que se conhecem
longamente é que estas transações não podem ser descritas apropriadamente
como meros contratos motivados pelo interesse utilitário. A expressão
“orgulhoso” indica o reconhecimento de que estamos tratando de relações que
envolvem a substância moral das pessoas. Como observamos, ainda que se
expresse muitas vezes em uma forma econômica, o crédito carrega também
uma forte conotação moral.

Também presenciei situação em que Wilson, ao vender peixes a um


restaurante local, pediu um adiantamento de 200 reais, de um valor total de
1350, prometendo entregar o peixe ao final da semana. Fui ao restaurante
levar esta solicitação ao que o dono do restaurante me questionou: “cadê o
peixe?”. Ele ligou para Wilson e como não conseguira falar com ele, retornei
do restaurante sem o dinheiro. O dono do restaurante ligou novamente para
Wilson, os dois negociaram, e então Wilson me enviou de volta ao restaurante
para buscar os 200 reais. Essas negociações são comuns e são conduzidas
na tensão entre o interesse econômico das partes e a consideração pessoal
mútua9.

9. Também é comum Wilson comprar peixes de algum fornecedor e combinar


de pagar quando entregar para algum restaurante. Também presenciei Wilson
sendo cobrado por um rapaz que ele identificou como sendo boliviano. Wilson
me explicou que ele é agiota e que eventualmente pega dinheiro emprestado
com ele. Wilson também me disse que tem conta em supermercado da região.
67 Socioantropologia de Povos e Comunidades Tradicionais Costeiras e Ribeirinhas

Percebe-se que grande parte das transações econômicas dependem


do crédito para se realizarem. Os exemplos acima mostram que há uma
constante negociação - da concessão e do prazo - do crédito. Como me disse
Wilson: “O bom pagador, ele pede 20 vc leva 50. O mau pagador, ele pede 20
vc leva 10”. Ser bom pagador ou mal pagador, representam categorias morais
antagônicas, de um mesmo universo semântico, em que o sucesso econômico
depende da capacidade de estabelecer (e negociar )relações sociais estáveis no
tempo.

Nesse contexto, a categoria crédito deve ser compreendida em um


sentido mais amplo que o estritamente econômico, ou seja, não apenas como
a um valor a ser pago em um determinado prazo, mas como uma reserva de
relações sociais, cujo estabelecimento parece ser uma das condições para o
sucesso na atividade.

A RECIPROCIDADE GENERALIZADA

As relações de crédito descritas expressam uma modalidade de


reciprocidade que demanda certo equilíbrio nas prestações e contraprestações.
Há ainda alguns eventos, promovidos por comerciantes locais, que expressariam
um outro ponto do continuum da reciprocidade, a sua forma generalizada,
em que as prestações tomam o caráter de doações sem contrapartida, para
pessoas em necessidade, por exemplo (SAHLINS, 1978). Como no caso de uma
festa beneficente promovida por um comerciante local para arrecadar fundos
para o tratamento de saúde de uma moça:

Foto 1 - Outdoor promove a festa de aniversário de um conhecido comerciante local,


Babo Taylor, que também seria um evento beneficente em favor de uma jovem que
realizaria tratamento médico
Breve etnografia do comércio de peixes em dois municípios do Sul do Espírito Santo 68

Outras vezes esta reciprocidade generalizada toma a forma de


rituais de comensalidade. No churrasco oferecido por comerciantes no Dia
do Pescador, em frente ao mercado de peixes, foi deixado claro que qualquer
pessoa poderia comer do churrasco, independente de ter contribuído ou não
para a festa. Ao longo da noite, no palco onde se apresentavam os artistas
foram lidos os nomes das pessoas que contribuíram financeiramente para festa,
até mesmo o meu, que colaborei simbolicamente com vinte reais.

Desta maneira, ao longo do ano com seus negócios e, em datas


especiais, através destes eventos e arrecadações, estes comerciantes
desempenham certo papel de redistribuição de recursos para pessoas em
necessidade ou não, o que acaba reforçando seu prestígio e reconhecimento
local como benfeitores e não apenas como homens de negócios. “Todo ano
fazemos uma ação para alguém” relatou a moradora de Piúma cuja família
possui uma conhecida peixaria local10.

De acordo com a entrevistada, as ações beneficentes foram iniciadas


em 2014, após a morte do pescador Adail Ribeiro Marvila, de 69 anos, que se
afogou em uma pescaria11. Ela relatou que, para ajudar a família do pescador
a pagar o funeral, o primo dela – Babo, conhecido comerciante local de peixes
- organizou o primeiro bingo beneficente. Desde então, ela e o primo são os
organizadores dos eventos. Segundo ela, o evento acontece na praça do porto,
próximo à peixarias, e somente a peixaria de sua família faz parceria direta com
o evento. As outras peixarias e comércios compram diversas cartelas e divulgam
o evento como forma de contribuição. Outros comerciantes, de acordo com a
entrevistada, contribuem com brindes para serem vendidos durante o evento.
Donos de bares próximos doam uma certa quantia em dinheiro e ajudam na
divulgação, com a consciência de que a realização do evento gerará lucro para o
comércio. Relatou que, para montar a estrutura do evento, o dono do palanque,
sabendo que se trata de um evento beneficente, cobra um valor bem abaixo
do normal (cobra somente o custo da montagem da estrutura). E, segundo ela,
artistas locais se apresentam gratuitamente no evento pelo mesmo motivo.
A ação não possui nenhum vínculo religioso, dependendo somente da união
e solidariedade de pessoas da comunidade. São os próprios membros da
comunidade que identificam pessoas que necessitam de ajuda (sejam essas
conhecidas ou não) e realizam o evento para ajudá-las. De acordo com ela, “as
pessoas se compadecem com essas situações e acabam ajudando”.

Ao todo, desde 2014, já foram organizadas quatro ações beneficentes:


três bingos, sendo um desses para a família do pescador Adail, outro para

10. Em entrevista a um portal de notícias: https://www.portal27.com.br/


campanha-busca-ajuda-para-jovem-que-ficou-paraplegico-apos-acidente/.
De acordo com os registros da memória local e também documentos e fotos,
identificamos que a família desta moradora promove esse tipo de evento há
décadas.

11. No entanto, desde pelo menos a década de 1930, a família da entrevistada


realiza festas locais importantes, de acordo com Benedicto Nascimento, em
conversa pessoal com Luciana Nascimento, estudante de Engenharia de Pesca
e também integrante do presente projeto. Benedicto está escrevendo um livro
que conta a origem destas festas.
69 Socioantropologia de Povos e Comunidades Tradicionais Costeiras e Ribeirinhas

comprar uma cama hospitalar para um rapaz que ficou tetraplégico, vítima de
um acidente, e outro para consertar o telhado de uma amiga que não possuía
condições financeiras; e a outra ação foi um almoço beneficente para ajudar
na compra de remédios para uma moça recém-operada12. E existe também a
realização de outros eventos beneficentes para ajudar pescadores em situação
de vulnerabilidade. Segundo ela, na ação feita para restaurar o telhado da casa
de sua amiga, muitas pessoas que não podiam contribuir diretamente com
quantias em dinheiro (por motivos religiosos, por exemplo), doaram materiais
de construção, como telhas, cimento, etc. contribuindo da forma que podiam.

PESCADORES E ATRAVESSADORES EM MARATAÍZES

O município de Marataízes fica localizado 28km ao sul do município


de Piúma. Assim como Piúma, trata-se de uma cidade em que a pesca é uma
importante atividade econômica e fonte de identidade social.

Os atravessadores de peixes foram, no passado, pescadores e


quiseram sair da pesca para conseguir maiores lucros. A função do atravessador
é comprar o pescado das mãos dos pescadores e repassar com um preço
maior para as pessoas que levam para exportação ou eles mesmo entregam a
restaurantes e lojas de comida japonesa. O dono da embarcação é quem escolhe
a qual atravessador, ou peixaria que quer entregar seu pescado. Em períodos
em que a pescaria não supre as necessidades do pescador, como pagar algumas
contas, comprar o diesel, lubrificante, equipamentos, consertos e até mesmo
comprar materiais escolares, o atravessador empresta o valor solicitado pelo
pescador sem juros, sendo descontado esse valor no pagamento da pescaria.
O nome desse empréstimo “vale”, sendo muito comum entre os pescadores e
atravessadores.

Existem casos em que os atravessadores compram barcos para


pescadores, para que eles comecem a trabalhar para eles até debitar o valor
da embarcação. Essa forma faz com que mais barcos trabalhem para ele e ele
possua mais pescados para repassar e ter mais lucros. Não há documentos
assinados judicialmente, somente uma folha, que funciona como um recibo
sendo assinada pelo atravessador e pelo pescador. A dificuldade em conseguir
o seguro-desemprego e o valor não correspondendo ao estilo de vida do
pescador em relação período de defeso, aumentam ainda mais a necessidade
do “vale” disponibilizado pelo atravessador.

O laço entre pescador e atravessador é um laço muito delicado,


se o atravessador abusar dos preços dos pescados, querendo comprar do
pescador em um preço muito abaixo do mercado, o pescador pode chegar a
outro atravessador e trabalhar para ele, pagando o primeiro atravessador com
o tempo. Existe casos em que alguns atravessadores compram o pescado com
um preço mais caro e fazem proposta de comprar a dívida de alguns pescadores
para que trabalhem para ele.

12. É a este último evento que o outdoor se refere.


Breve etnografia do comércio de peixes em dois municípios do Sul do Espírito Santo 70

Assim, nas relações entre credores e devedores observadas, não


pode-se falar em mera dependência, ainda que haja assimetria de oportunidades
econômicas e acesso a mercados. Essa identificação de “assimetria” com
“dependência” nutre-se de um bias que faz equivaler toda relação econômica
baseada em lealdade pessoal e que contenha assimetria entre as partes com a
perda de autonomia pela parte mais “fraca”. Relações deste tipo geralmente
são classificadas como próximas do que Weber (2008) chamou de dominação
tradicional, cujo exemplo clássico em nosso pensamento social nacional são
as formas de coronelismo e mandonismo local descritas por Victor Nunes Leal
(2012). Neste trabalho não verifica-se este padrão de relações patrão-cliente,
já que os pescadores encontram oportunidades de comércio suficientes para
não perderem sua autonomia, ainda que haja assimetrias nas oportunidades
econômicas e de acesso a mercados

ESPAÇOS PÚBLICOS UTILIZADOS PARA A FOFOCA

Os pescadores que não honram com o pagamento sofrem com a


fofoca, sendo apelidado de “veaco”, um apelido dado para quem não honra
suas dívidas. Tendo o seu nome sujo na rua, se negando a pagar uma dívida,
o pescador não recebe o crédito de outros atravessadores que, com o medo
de nunca serem pagos, não disponibiliza seu dinheiro para esses pescadores.
O medo de terem seus nomes mal falados na rua faz com que muitos deles
honrem suas dívidas, pagando-as em dia.

Muitos dos pescadores se reúnem em uma praça localizada no porto.


Podemos encontrá-los com frequência em quase todos os dias conversando
na praça. Lá eles falam sobre como está sendo a pescaria, o tempo, as marés e
sobre os devedores. As pessoas que são citadas nas conversas como “veaco” são
sempre expostas a seus erros do passado, o que enraíza ainda mais a sua fama
de mau pagador. Os atravessadores não escapam de serem tema no “jornal do
dia”, pois os que abusam dos preços baixos e tardam muito os pagamentos da
pescaria, são mal falados entre os pescadores.

Sendo assim, muitos pescadores não vão querer passar seus


pescados para esse atravessador. O bom nome é prezado em ambas as partes,
tendo uma coesão entre os mesmos. Um depende do outro: sem o pescador, o
atravessador perde para seus concorrentes e entra em falência. Por outro lado,
os pescadores precisam escoar a sua produção e ter um auxílio financeiro nas
horas difíceis.

CONCLUSÃO

Esta pesquisa nos permite relativizar, ou seja, colocar sob perspectiva,


o significado da categoria “rastreabilidade” . Diferente do que preconizam
as “boas práticas” de manejo pesqueiro, nos casos observados a ocultação/
revelação da origem e qualidade do pescado são estratégias econômicas
possíveis, não necessariamente disruptivas, ainda que gerem conflitos.

Além de dar outra perspectiva à categoria “rastreabilidade”, esta


pesquisa permite relativizarmos a noção de “informação privilegiada” e seu
71 Socioantropologia de Povos e Comunidades Tradicionais Costeiras e Ribeirinhas

suposto papel negativo no funcionamento dos mercados. De acordo com


as teorias econômicas dominantes13, um mercado competitivo e saudável
depende de que as informações disponíveis sobre preço, qualidade e origem
dos produtos estejam igualmente disponíveis a todos, sob o risco de um
indivíduo ou grupo detentor de informações privilegiadas se beneficiar por
poder se antecipar aos outros agentes em suas decisões de compra ou venda.

Em nossa pesquisa, por outro lado, a apropriação particularizada da


informação e sua ocultação, ou socialização, é parte do capital econômico e
social de um comerciante. É algo que produz vantagens econômicas mas que
depende não apenas de um cálculo racional, mas da capacidade de estabelecer
relações sociais. Trata-se de um sistema em que peixes e informações circulam
em suas respectivas comunidades, de acordo com demandas econômicas,
mas também demandas morais recíprocas que estruturam relações sociais
longamente estabelecidas.

Podemos afirmar, portanto, que trata-se um sistema econômico no


qual o sucesso depende da capacidade de estabelecer relações sociais estáveis
no tempo. A capacidade de estabelecer relações sociais produz reputações.
Reputações conferem crédito a seus possuidores. Esse crédito envolve desde
o vale que eventualmente um comerciante dá a um pescador, ou a garantia
que o comerciante tem de que certo restaurante vai comprar seus produtos se
ele estiver “embuchado”14, até o “prazo” que pode conceder a um comprador
ou usufruir de um fornecedor. Os eventos, promovidos por comerciantes
locais, expressariam um outro ponto do continuum da reciprocidade, a sua
forma generalizada, em que as prestações tomam o caráter de doações sem
contrapartida, para pessoas em necessidade ou não.

Em Marataízes, conseguimos visualizar como a tradição do crédito é


enraizada entre a comunidade pesqueira, tendo um laço de confiança entre o
pescador e o atravessador. O fato de não haver meios jurídicos no empréstimo,
não haver juros e o valor ser descontado entre as pescarias, faz com que o
pescador tenha mais liberdade em pedir o “vale”. Há uma interdependência
entre as partes, tornando o atravessador submisso em alguns momentos e em
outros os pescadores se tornam os submissos. O crédito então é uma relação
que passa por gerações e dificilmente sairá do dia-a-dia dos praticantes, por
causa dos benefícios e interdependência entre as partes

Observamos, aqui, padrões locais estruturalmente semelhantes


àqueles encontrados em outros lugares do mundo e descritos por outros
pesquisadores:

Com um sistema desse tipo é fácil


entender que, seja qual for a sua forma em
outras partes do mundo, a prática burocrática
na Irlanda não é uma aplicação igualitária

13. Especialmente a clássica e a neo clássica.


14. Wilson usava a categoria para descrever a situação em que o comerciante tem
dificuldade em vender seu estoque de peixes, estando portanto “embuchado”
de peixes.
Breve etnografia do comércio de peixes em dois municípios do Sul do Espírito Santo 72

e impessoal das regras aos problemas. Do


mesmo modo, a rigidez de um tal sistema
de contabilidade pode lançar números que
expressem lucro e perda, mas os comerciantes
das cidades da Irlanda não podem ser
compreendidos através dessas estatísticas
(ARENSBERG & KIMBALL, 1973 p.99).

Portanto, é claro que as transações que descrevemos neste artigo


tem como finalidade profícua ganhos econômicos, mas, por outro lado,
não pode-se dizer que comerciantes, pescadores, donos de restaurante
estabelecem relações meramente utilitárias entre si. A preocupação em
estabilizar relações sociais e evitar as consequências disruptivas dos conflitos
tampouco é um mero cálculo econômico, mas responde a necessidades morais
decorrentes de relações sociais longamente estabelecidas no tempo, expressas
em expectativas recíprocas de consideração pessoal, que podem inclusive, mas
não somente, tomar formas econômicas, como “vales”, etc.

Como observamos, a forma de conduzir os negócios pode ou não


fornecer uma boa reputação aos pescadores e comerciantes e isto afeta
diretamente a disponibilidade de crédito nas localidades estudadas. Por outro
lado, assim como as informações sobre reputações circulam, há também
estratégias para que os conflitos não tornem-se desagregadores. Como estas
transações são momentos dentro de relações entre pessoas que interagem
longamente em diferentes esferas da vida, considerações pessoais se articulam
de maneira complexa com os interesses econômicos, não sendo desejável
reduzir o comércio de peixes local a um negócio, sendo melhor compreendido
como um fato social total, ou seja, ao mesmo tempo econômico, moral, afetivo,
jurídico, etc (MAUSS, 1974).

As relaçôes que descrevemos, desde o papel da prefeitura na


regulação informal do mercado, passando por estratégias de negociação
entre comerciantes e donos de restaurante, as formas de crédito utilizadas
e as maneiras através das quais evitam conflitos desagregadores, mostram
que a análise estritamente econômica e administrativa dos mercado locais,
traduzida em categorias como “certificação”, “arrecadação”, “gargalos”, etc.,
deve ser complementada com a compreensão antropológica sobre: quem são
estes comerciantes, agentes públicos, donos de restaurante e pescadores?
Como se relacionam no comércio e em outras esferas da vidas? Através de
quais códigos e expectativas recíprocas? Como equilibram seus interesses
econômicos particulares, ou suas atividades como agentes públicos, com a
longa convivência como membros da mesma comunidade? Estas perguntas
fazem parte da agenda de pesquisa do Getap-Grupo de Estudos Territoriais e a
Atividade Pesqueira, do Ifes, campus Piúma.
73 Socioantropologia de Povos e Comunidades Tradicionais Costeiras e Ribeirinhas

REFERÊNCIAS

ARENSBERG, C. & KIMBALL, S. Relações de crédito na Irlanda Rural. IN:


Antropologia do Direito. DAVIS, Shelton (Org.). Editora Zahar, 1973.

CID, E. & DIAS, Y. Recontando a história da pesca de Piúma. IN: CID. Et al (Org.).
Abordagens territoriais e práticas pedagógicas em territórios pesqueiros.
Cousa. Vitória, 2018.

FILGUEIRAS, M. P. Entre barracões e módulos de pesca: pescaria, meio ambiente


e espaços públicos na Barra do Jucu (Vila Velha-ES). In: Roberto Kant de Lima.
(Org.). Antropologia e direitos humanos 5. 1ed.Brasília; Rio de Janeiro: ABA/
FORD;BookLink, 2008, v. 5, p. 277-318

GEERTZ, C. The Bazaar Economy: Information and Search in Peasant Marketing,


IN: The American Economic Review, Vol. 68, No. 2, Papers and Proceedings of
the Ninetieth Annual Meeting of the American Economic Association (May,
1978), pp. 28-32.

MAUSS, M. 1974. Ensaio sobre a dádiva. Forma e razão da troca nas sociedades
arcaicas. In : _. Sociologia e Antropologia. v. II. São Paulo : Edusp. 1974.

NUNES LEAL, V. Coronelismo, enxada e voto: o município e o regime


representativo no Brasil. Companhia das Letras, 2012.

POLANYI, K. A grande transformação. 2ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2000.

SAHLINS, M. Sociedades Tribais. Zahar. 1978.

WEBER, M. Os Três Tipos Puros de Dominação Legítima. Tradução de Gabriel


Cohen. Rio de Janeiro: VGuedes Multimídia, 2008.
O cajueiro: uma releitura etnocar tográfica do processo de territorialidade 74

O CAJUEIRO: UMA RELEITURA ETNOCARTOGRÁFICA DO


PROCESSO DE TERRITORIALIDADE1

Luciana Railza Cunha Alves


Universidade Federal do Pará

Gerson Carlos Pereira Lindoso


Instituto Federal do Maranhão

Christiane de Fátima Silva Mota


Instituto Federal do Maranhão

INTRODUÇÃO

Revisitar o mapa situacional do Cajueiro elaborado entre os anos 2016


e 2017 em meio a uma pandemia mundial, nos levou a refletir, não somente,
sobre processo do conflito, mas também a luta pela permanência e existência
dos moradores na comunidade. O texto não se reportará somente ao trabalho
de campo realizado nos anos acima citados, como abordará questões atuais do
conflito que aponta para o contínuo processo de desterritorialização. 2

Para nos ajudar a descrever a etnocartografia3 do território do


Cajueiro, iniciaremos com a reflexão pontual da entrevista concedida por Ailton
Krenak (2020) ao jornal Estado de Minas, no mês de março de 2020. O autor
inicia seu relato chamando atenção para seguinte questão: “o mundo está
em suspensão”. Krenak nos convida a pensar não só sobre a pandemia que
se alastrou silenciosamente no mundo, mas sobretudo, nos coloca a refletir
sobre quais questões estão em jogo no mundo? Como os povos e comunidades
tradicionais veem passando por processos de devastação e desmatamento

1. O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de


Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de
Financiamento 001.

2. Entendemos por desterritorialização “o conjunto de medidas designadas


como ‘agroestratégicas’, que têm sido adotadas pelos interesses empresariais
vinculados aos agronegócios para incorporar novas terras aos seus
empreendimentos econômicos [...] liberando-as tanto de condicionadores
jurídico-formais e político-administrativos, quanto de fatores étnicos e culturais
ou determinados pelas modalidades de uso de terras tradicionalmente
ocupadas” (ALMEIDA & ACEVEDO, 2010, p. 141).

3. A inspiração da etnocartografia como instrumento analítico, baseia-se no


esboço conceitual de Bittencourt (2011) que considerou a junção da etnografia
com a cartografia para efeito de apreender a trama das ações dos straightedge
em São Paulo. No contexto do Cajueiro, a etnografia servirá como descrição
analítica das configurações territoriais, das significações, bem como os fluxos
dos agentes sociais pelos seus/entre outros territórios, como a rede de relação
construída por eles, desde a relação de parentesco à relação de amizade.
75 Socioantropologia de Povos e Comunidades Tradicionais Costeiras e Ribeirinhas

em suas terras, devido aos avanços de grandes empreendimentos portuários,


construção e expansão de ferrovias e estradas destinadas à exportação de
commodities. Tais avanços compõem uma estratégia logística de expansão
do mercado internacional, que tem atingido acima de tudo, as terras
tradicionalmente ocupadas.

Durante a entrevista Krenak destaca relevantes contribuições sobre


o modo de viver e fazer desses povos, quando diz que “conversar com árvore,
abraçar árvore, conversar com o rio, contemplar a montanha, como se isso
fosse uma espécie de alienação. Essa é a minha experiência de vida” (KRENAK,
2020). Dessa forma, leva a deduzir que tal modo de viver é fundamentado numa
relação dialógica com os recursos ambientais.

A partir desse ponto de vista passamos a delinear quais as


consequências desencadeadas pelo processo de instalação de um terminal
portuário privado (visando a expansão do mercado nacional e internacional)
recaem sobre as unidades residenciais, o modo de organização social e os
recursos ambientais como: a baía de São Marcos, os igarapés Mata Fome,
Puleiro, Arapapaí e Pindoba, o Rio dos Cachorros, a mata de babaçual etc.

O artigo é resultado da pesquisa de campo do projeto “Cartografia da


cartografia: uma síntese de experiências”, do Projeto Nova Cartografia Social da
Amazônia (PNCSA) que teve como um dos resultados a elaboração do Boletim
Informativo, nº 14, intitulado “Não é o território que é Nosso. Nós é que somos
do Território”, que contempla aspectos importantes sobre o mapeamento
social da situação de conflito, processos mobilizatórios e de resistência para
permanência no território do Cajueiro.

O mapeamento social realizado no Cajueiro, é fruto da “relação de


pesquisa” (BOURDIEU, 1997) entre pesquisadores e agentes sociais 4, que se deu
ao longo dos anos da pesquisa e durante o processo de produção do Boletim,
se estendendo aos dias atuais. Realizamos longas entrevistas com os mais
velhos da comunidade indicados pelas lideranças, tivemos várias conversas
informais, observações diretas, reuniões informais, e formais como audiências
públicas, manifestações públicas contra o avanço do empreendimento, o que
constituiu todo nosso material de pesquisa.

Durante o trabalho de campo, tensões se estabeleciam internamente


na comunidade, tensões recorrentes a lugares que passam pelo processo de
expansão de um grande empreendimento, na maioria das vezes, em virtude
da entrada do “moderno” projeto expansionista do terminal portuário privado,
que além de criar dissenções, tenta recriar “novas” formas de vida para os

4. Faremos uso de agente social, tomando a concepção de Bourdieu (2013, p.


XX) por considerarmos que os agentes são “dotados do sistema de disposições
capaz de engendrar práticas adaptadas às estruturas e contribuindo, por essa
via, para reproduzir tais estruturas. A mediação, operado pelo agente tendo
em vista a reprodução social associa-se, segundo a mesma tradição, ao papel
estratégico que o processo de socialização desempenha [...]. Para muitos os
agentes não vivem outra coisa a não ser suas próprias representações, de onde
derivam a posição e o peso de cada elemento do mundo físico e social”.
O cajueiro: uma releitura etnocar tográfica do processo de territorialidade 76

agentes sociais, desorganizando toda a lógica do modo de conhecimento além


de reforçar modo de viver distinto ao que os agentes sociais vivem.

O território do Cajueiro, 610 hectares, constitui-se por núcleos, como


designado pelos agentes sociais: Morro do Egito, Cajueiro, Guarimanduba,
Andirobal e Parnauaçu. A este território denominado Zona Rural II do
município de São Luís do Maranhão integram ainda as comunidades do Rio
dos Cachorros, Tauá-Mirim, Porto Grande, Limoeiro, Embaubal, Jacamim,
Amapá, Taim, Portinho e Ilha Pequena. Tais comunidades requerem o direito de
reconhecimento de Reserva Extrativista de Tauá-Mirim desde 2003.5

O território do Cajueiro pode ser entendido como, ponto estratégico


para expansão portuária, a sua proximidade com a baía de São Marcos e ao
Porto do Itaqui, “sob o argumento de que as águas profundas da baía de
São Marcos, em cujas margens está localizada a capital do Maranhão, seriam
ideais para a instalação de portos com capacidade para atracagem de navios de
grande calado” (SANT’ANA JÚNIOR 2018, p. 263).

A MEMÓRIA, O SENTIMENTO DE PERTENCIMENTO: O CAJUEIRO

Em um caso linear, talvez teríamos escolhido situar no primeiro


plano a memória social que nos levou a conhecer o Cajueiro, ou Bom Jesus do
Cajueiro, no entanto, recolocamos a história no sentido de entendermos que
“é preciso reconhecer que muitas ocasiões as histórias de vida e as histórias
de família projetadas por informantes vivos, são depoimentos do presente”
(VICENT 1987, p.391).

Neste sentido, os relatos do tempo presente são constituídos pela


memória social da filha do senhor Ventura, dona Maria e do seu Joca Amorim.
O caminho percorrido não é o que se convenciona como líder: aquele líder
carismático, com posse de discursos prontamente políticos, aquele que está nas
reuniões públicas, nas audiências, mas, o da ancianidade.

Conforme as narrativas coligidas durante


o trabalho de pesquisa de campo, há
aproximadamente um século ou mais, uma

5. O processo de criação da RESEX, inicialmente Reserva Extrativista do Taim,


tramita desde 22 de agosto de 2003, iniciado por um baixo assinado por 137
moradores (trabalhadores rurais, pescadores e coletores de caranguejo),
cujo processo solicitava a declaração da Resex a partir dos limites iniciais
estabelecidos pelas comunidades. Em 2005, foi realizada uma vistoria prévia na
área pela equipe do CNPT/IBAMA-MA, dois anos depois, em 2007, foi concluído
o Laudo Socioeconômico e Biológico de Criação da Resex. A conclusão final
do Laudo indica que a Resex representa uma forma de resistência comunitária;
mediante processos de negociações entre ICMbio e comunidades optou-se
pela denominação “Tauá-Mirim”, tendo em vista que já existia reserva chamada
“Tauá”. Além disso, indicou ainda novas propostas de limites cujos os quais foram
aceitas pelas lideranças para que não impossibilitasse a criação da RESEX. (ALVES
et al. 2018).
77 Socioantropologia de Povos e Comunidades Tradicionais Costeiras e Ribeirinhas

leva de moradores povoados de Alcântara-


Maranhão se deslocam dos seus povoados para
a cidade de São Luís. Dentre estes, destacarei
dois grupos, os quais descreveremos mais
detidamente. Dentre os grupos domésticos
saídos de Alcântara, estão os Araújo e os
Amorim, ambos vindos de povoados distintos.
O primeiro: de São Maurício e o segundo de
Raimundo Sul. Os Araújo, conforme dona
Maria, ao saírem de Alcântara foram morar
num lugarejo chamado de Vinhas, somente
depois de alguns anos, que passaram a residir
nas terras chamada de Bom Jesus do Cajueiro,
a qual com os anos e o processo de politização
do conflito em virtude das lutas pelo território,
passa a ser designado pelos agentes sociais
como território ou comunidade do Cajueiro.

O senhor Ventura, o chefe dos Araújo, como


conta dona Maria Araújo. Em uma bela noite
sai para pescar na baia de São Marcos, em
uma área pesqueira próximo ao Porto do
Itaqui. Segundo Maria, a noite ele ouvia e via
embarcações de passavam cheia de mulheres
vinda do centro de São Luís e da baixada
maranhense em direção a um morro. De longe,
no alto do morro via uma casa, para onde as
embarcações se dirigiam em algumas noites
do ano. Um certo dia, curiosamente, resolveu
seguir as embarcações e depois de horas
parado observando as movimentações, o
senhor Ventura ouviu um som do alto vindo
do morro. Na primeira tentativa, não avançou,
mas um dia resolveu avançar e ver com seus
próprios olhos do que se tratava os sons e
aquele povo todo aportando e caminhando em
direção ao morro.

Ao fazer todo o percurso dos embarcados, o


senhor Ventura, notou que se tratava do terreiro
do Egito ou Ilê Nyame. Terreiro este, fundado
por uma africana chamada Massinocô Alapong
ou Basília Sofia, vinda de Cumassi na antiga
Costa do Ouro, atual Gana – África. Na ida ao
terreiro, Seu Ventura conhece a sua sucessora,
Maria Pia. Ao retornar à sua casa no Vinhais.
Maria relata que seu Ventura, não parou de
pensar e de falar do lugar que havia conhecido.
Após dias e dias pensando no lugar que outrora
conheceu, Seu Ventura foi em busca de saber
quem era o dono do lugar. Andando pelo
Cajueiro, foi-se informando quem seria o dono,
onde encontrou um português por nome de
O cajueiro: uma releitura etnocar tográfica do processo de territorialidade 78

Joaquim Maia.

Conforme narrativas de Mariazinha, depois de


longas conversas, Joaquim Maia, acerta com
o senhor Ventura, uma gleba de terra, a qual
poderia fazer uso, plantar, criar seus filhos sem
lhe dá foro da terra. Assim, o senhor Ventura
pôde trazer seus filhos do Vinhas para cria-los
no lugarejo chamado de Bom Jesus do Cajueiro.
Com o passar dos anos, a família Amorim começa
a fazer parte do mesmo lugar, que de acordo
com seu Joca fugindo da fome no interior. Com
os anos e as mudanças conjunturais políticas
no Maranhão, as famílias que já faziam parte
do vilarejo designado Bom Jesus do Cajueiro,
vê na possibilidade de instituir o lugarejo a
um projeto de assentamento. O que para eles
serviriam como meio de ‘legalizar’ as terras ou
seus lotes. (ALVES et al, 2020).

Pelos idos de 1998, já com boa parcela de famílias em Bom Jesus


do Cajueiro, as terras foram regularizadas pelo Instituto de Colonização de
Terras do Maranhão –ITERMA, o que dificultaria a entrada brusca de qualquer
empreendimento portuário.

O MAPEAMENTO SOCIAL...

No ano de 2015 iniciaram-se mobilizações em prol da permanência


dos agentes sociais do Cajueiro ameaçados pelo deslocamento compulsório
e pela desterritorialização. A dinâmica da mobilização política em direção
ao conflito foi se constituindo como resultado de ações estratégicas feitas
pelos agentes sociais (BARTH, 2005). Durante os anos de 2015, 2016 houve
mobilização intensa, principalmente, na área do Morro do Egito ou Terreiro do
Egito que integraram agentes sociais, religiosos com confissões religiosas e de
diferentes comunidades.

Entre as mobilizações ocorreu a caminhada em novembro de 2015


com a presença de importantes lideranças religiosas do Tambor de Mina do
Maranhão, como Pai Airton Gouveia Ilê Ashé Ogum Sogbô do Quilombo da
Liberdade, Seu Biné do terreiro de Yemanjá, do já falecido pai Jorge de Itaci,
representantes da Casa Fanti Ashanti, pai João do terreiro de Mina Mamãe
Oxum e Pai Oxalá da Vila Nova, representantes do terreiro de Mina Kwegbe-se
Tó Vodun Badé So, além dos membros e membras dos grupos de pesquisa em
Religião e Cultura Popular –GPMina, Grupo de Estudo

Desenvolvimento Modernidade e Meio Ambiente-GEDMMA,


professores e alunos das universidades Estadual e Federal, Movimento de
Defesa da Ilha. Além dos agentes sociais de outras comunidades como Taim,
Rio dos Cachorros etc.
79 Socioantropologia de Povos e Comunidades Tradicionais Costeiras e Ribeirinhas

Essa caminhada de agentes sociais e religiosos organizada em defesa


do território do Cajueiro foi conduzida pelas lideranças religiosas de terreiro
da sede da União dos Moradores Proteção de Jesus do Cajueiro ao Terreiro do
Egito como estratégia de resistência, tendo em vista a relevância do Terreiro do
Egito tanto para os povos de terreiros do Maranhão quanto para os moradores
locais.

O terreiro do Egito, localiza-se “no Cajueiro numa elevação próxima


do Porto do Itaqui teria sido fundado pela negra africana Basília Sofia, cujo
nome privado era Massinocô Alapong, vinda de Cumassi, na Costa do Ouro
– atual Gana. Ela teria chegado ao Maranhão em 1864 e falecido em 1911”
(GEDMMA, 2014, p.05). Dessa elevação Jorge de Itaci em “Orixás e Voduns
no Terreiro de Mina” (1987) do alto desse morro era possível avistar o navio
encantado do Rei Dom João no meio da baía de São Marcos que aparecia em
dias de festas no terreiro do Egito.

O terreiro é um dos mais importantes para os povos de religião de


matriz africana, pois é um dos percursores do Tambor de Mina Maranhão6. Na
capital São Luís há dois terreiros remanescentes do Egito: terreiro de Yemanjá,
localizado no bairro da Fé em Deus, fundado por Jorge de Itaci e a Casa Fanti
Ashanti no bairro Cruzeiro do Anil, fundado por Euclides Menezes, ambos
já falecidos. As relações desencadeadas pelos agentes sociais e religiosos
formadas pelos laços pessoais, de parentesco e de amizade vão delineando
uma rede social e envolve conexões que ultrapassam limites (BARNES, 1987) do
espaço físico formando alianças e compromissos que pode ser observada no
“fluxo de interações” (idem, p. 179).

Além da caminhada em novembro de 2015, registraram-se outras


manifestações de resistência como a “Ciranda do Sincretismo”7, a “Carta
Aberta” assinada por lideranças religiosas, protocolada e entregue nos órgãos
governamentais, em defesa da luta e preservação da memória e do espaço
sagrado do Egito.

E é a partir da relação com os agentes religiosos e sociais que o


trabalho de mapeamento social vai se constituindo. O trabalho de campo foi
realizado em conjunto com os agentes sociais, que munidos do aparelho de
GPS foram marcando lugares os quais consideravam relevantes para a luta e
a visibilização da rede de relações construída por eles. No Cajueiro, à época
do mapeamento social havia aproximadamente 350 famílias entre pescadores,
extrativistas, agricultores que sobreviviam de pequenas criações de animais.
Com o passar do tempo e os processos de deslocamento compulsório8
dados principalmente pelas derrubadas de casas ocorridas primeiramente;
em 2014, com a destruição de 21 casas; depois, em 2019 com 23 casas. E
esse território foi sendo desapropriado, “empurrando” os agentes sociais

6. Cf. FERRETTI, Sérgio F. Querebentâ de Zomadônu: Etnografia da Casa das Minas do Maranhão. 3ª ed. Rio
de Janeiro: Pallas, 2009. (Original: 1983, 1ª ed. UFMA: 1986, 2ª ed. EDUFMA: 1996)

7. Cf. Ciranda do Sincretismo. Disponível: https://zemaribeiro.farofafa.com.br/2016/09/04/ciranda-do-


sincretismo/. Acesso: 20/09/2019.

8. Conforme Almeida (1996, p.30), é o “conjunto de realidades factuais em que pessoas, grupos domésticos,
segmentos sociais e/ou etnias são obrigados a deixar suas moradias habituais, seus lugares históricos de
ocupação imemorial ou datada, mediante constrangimentos, inclusive físicos, sem qualquer opção de se
contrapor e reverter os efeitos de tal decisão, ditada por interesses circunstancialmente mais poderosos”.
O cajueiro: uma releitura etnocar tográfica do processo de territorialidade 80

para casa de parentes no centro da cidade ou para casas de aluguel, alguns


moradores que tiveram suas casas derrubadas pela empresa portuária privada,
receberam como compensação aluguel social e cestas básicas. No entanto, tais
compensações não foram suficientes para fixar os moradores em outras regiões,
já que alguns voltaram para o Cajueiro, pois a maioria retirava seu sustento
da pesca realizada na praia de Parnauaçu, conforme relatou a liderança Clovis
Amorim em entrevista no ano de 2019.

Durante as investidas da empresa portuária para desapropriação das


terras do Cajueiro constatam-se devastação e o desmatamento das árvores
nativas, entupimento de nascentes de igarapés. Com o contínuo desmatamento
e o desequilíbrio ambiental, os animais silvestres como cobra, e escorpião
passaram a adentrar nas unidades residenciais causando medo e por vezes
picando moradores, como é o caso do seu Joca, um dos moradores mais
antigos da comunidade.

Figura 1 - Alto do Cajueiro. Foto: Luciana Railza. Dezembro de 2016

No início do mapeamento social não era possível observar com facilidade a


baía de São Marcos, como a foto acima demonstra, já que nessa área havia
muitas árvores nativas como babaçu, mangueiras, pés de caju dentre outros.
Durante o trabalho de campo apreendemos sobre as relações de parentescos
da comunidade e a relação com o próprio território associado ao modo de
vida particular que não se confunde com o modo de vida condicionado pelo
mercado capitalista.

Em entrevista concedida por dona Maria, uma das moradoras mais


antigas, sobre o modo de viver na comunidade do Cajueiro era relata como
a vida se dá a partir do modo de conhecimento que é transmitido entre os
moradores seja pela rede de parentesco ou pela rede de amizade. Conforme
dona Maria, desde que foi morar no Cajueiro aprendeu a pescar olhando os
tios, a pesca era feita de linha, espinhel e rede. Aprendeu desde muito cedo
81 Socioantropologia de Povos e Comunidades Tradicionais Costeiras e Ribeirinhas

a arrastar camarão, tirar caranguejo no igarapé. Ela diz não aceitar alimentos
congelados, ou seja, alimentos que deixam de ter propriedade natural. Além da
pesca, dona Maria quebrava coco babaçu para o sustento da família.

Dona Maria nos diz que há tempos as empresas foram se fixando


ao redor do Cajueiro e devastaram boa parte dos babaçuais. Até a entrada da
empresa portuária privada na comunidade tanto dona Maria, quanto seu Clovis
e seu Joca relataram que faziam visitas uns aos outros, caminhavam sem temer
represálias de terceiros na comunidade, as portas de suas casas passavam boa
parte do tempo aberta ou encostadas. As roças eram organizadas de modo
coletivo, as reuniões na União de Moradores eram organizadas e frequentadas
pela maioria dos moradores. No atual contexto de conflito, tais atividades e
ações foram interrompidas, ou seja, o modo de interagir dos moradores foi aos
poucos sendo modificado devido as fortes dissenções internas provocadas na
maioria das vezes pelas promessas de empregos ou de unidades residenciais
oferecidas pela empresa o que causa conflito intergrupal.

A pesca é uma das principais atividades do dos moradores do


Cajueiro. A praia do Parnauaçu é acessada não somente pelos moradores do
Cajueiro, mas também por moradores de outros bairros como Vila Maranhão
que retiram do mar o sustento da família. Além da pesca, a praia também era
utilizada para a prática de rituais dos religiosos das religiões de matriz africana
como o Tambor de Mina, Umbanda para reverenciar os caboclos, encantados e
orixás próximo ao mar, vindos de diversas partes da cidade.

Ao longo dos anos de 2016 e 2017 quando realizado o mapeamento


social encontramos igarapés, antiga área onde era realizado o festejo de São
Benedito, as igrejas evangélicas e católicas, terreiros de Tambor de Mina, área
de lazer como o antigo e novo campo de futebol, uma área com indícios de
sítio arqueológico no Alto de Parnauaçu. O mapa situacional abaixo, aponta
a rede de relação construída pelos moradores de “dentro” e os de “fora”. No
próximo tópico, contextualizaremos o mapa situacional para apreensão da luta
pelo território.
O cajueiro: uma releitura etnocar tográfica do processo de territorialidade 82

Fonte: Projeto Cartografia da cartografia: uma síntese de experiências, 2018

CAJUEIRO EM CONTEXTO...

O Cajueiro, no mapa acima, está identificado pela cor amarela. O


desenho com o formato de “bota” é a área das investidas da empresa de porto
privada, portanto, a área de conflito. Sant’ Ana Júnior (2018) que vem a pouco
mais de uma década investindo em estudos socioambientais na região, nos
leva a refletir como já dito acima sobre os motivos de interesse na implantação
de um terminal portuário privado nessa região. Conforme o autor é preciso
atentar não somente para os interesses comerciais nacionais, mas também para
83 Socioantropologia de Povos e Comunidades Tradicionais Costeiras e Ribeirinhas

os internacionais. O Cajueiro está na rota do sistema “mina-ferrovia-porto”9,


“a ideia de instalação do Porto do Itaqui, deu-se desde o início da década de
1960 quando foram divulgadas notícias sobre grandes jazidas de minério de
ferro no sudeste do Pará, estado vizinho do Maranhão” (SANT’ANA JÚNIOR,
2016, p. 282).

A praia de Parnauaçu, objeto de disputa, era um lugar calmo e tranquilo,


embora com muitas dificuldades de acesso a saneamento básico, transporte
público. A maioria dos moradores tem como origem comum o município de
Alcântara. Seu Joca afirmou que com a entrada da empresa privada de porto
privada, por volta de 2013 a 2014, houve uma série de pesquisas para comprar
terrenos a baixo custo, que não tinham objetivo esclarecido aos moradores.
Contudo, com o tempo e o avanço do empreendimento sobre as terras do
Cajueiro, passou-se a deduzir que tais pesquisas visavam não só apreender o
modo de vida, mas identificar o tamanho das áreas em que vivem as famílias,
o acesso aos recursos ambientais, as áreas de lazer, a idade e quantidade de
moradores por unidade residencial. Além disso, havia ainda o interesse em
coligir os documentos dos moradores, posteriormente, os agentes sociais
ligados a empresa passaram a “numerar” as unidades residenciais, bem como
definir o valor de cada imóvel.

Tal jogo de interesse da empresa, para ser instalado o porto precisaria


ser portadora do Eia Rima – Estudo e Relatório de Impacto Ambiental com
documentos multidisciplinares com objetivo de avaliar os impactos ambientais
e indicar quais medidas mitigadoras seriam destinadas a região. Há na cidade
de São Luís, estratégias para reconfiguração do Plano Diretor da Cidade, com a
mudança de Zona Rural para Distrito Industrial, o que torna todo o território do
Cajueiro de fácil acesso para entrada de empresas de beneficiamento de grãos,
articulados ao mercado do agronegócio e portos privados.

AS LINHAS QUE “DEMARCAM” OS LIMITES...

A etnocartografia do mapa situacional do Cajueiro, nos faz pensar não


somente os idos de 2016 e 2017, anos de realização da feitura do mapeamento
social; e nos anos de 2018 e 2019, quando acompanhávamos atividades de
resistência e mobilização dos moradores para não serem desterritorializados,
como o caso das unidades residenciais derrubadas com uso de tratores, a
compra de casas, as investidas de compra em uma das casas de um dos mais
velhos da comunidade.

O mapa situacional10 aponta ainda duas questões que ajudam a

9. Cf. SANT’ANA JÚNIOR, Horácio Antunes de et al. Mina- Ferrovia-Porto: no “fim


de linha” uma cidade em questão. In. Mineração: violências e resistências [livro
eletrônico]:um campo aberto à produção de conhecimento no Brasil. / Andréa
Zhouri (Org.); R. Oliveira et all.—1.ed.— Marabá, PA : Editorial iGuana; ABA, 2018.

10. O Boletim Informativo e o mapa social resultados da primeira fase da pesquisa


estão disponíveis no site: http://novacartografiasocial.com.br/download/14-
comunidade-do-cajueiro-nao-e-o-territorio-que-e-nosso-nos-e-que-somos-
do-territorio/
O cajueiro: uma releitura etnocar tográfica do processo de territorialidade 84

entender essa reconfiguração da área, remontando para outros questionamentos


mais pontuais como a entrada e saída do Território do Cajueiro da Resex Tauá-
Mirim. Há duas linhas tracejadas, uma na cor verde escuro e a outra na cor
amarela. Cada uma simboliza o possível limite debatido entre os moradores das
comunidades Taim, Rio dos Cachorros, Limoeiro, Porto Grande, Vila Cajueiro,
Portinho, Ilha Pequena, Embaubal, Jacamim, Amapá, Tauá-Mirim que requerem
o direito ao reconhecimento da região como Resex. A linha na cor verde escura
é a proposta feita pelos moradores no ano de 2003, a qual integra todo o
território do Cajueiro, englobando área de mangue e parte da baía de São
Marcos.

A linha na cor amarela indica a renegociação dos limites da Resex


realizada após a realização do Laudo do Instituto Chico Mendes de Conservação
da Biodiversidade (ICMBIO) a em 2007 que reduziu a área antes propostas pelos
moradores, retirando parte significante do território do Cajueiro, permanecendo
apenas parte da praia de Parnauaçu. Parece que a retirada da comunidade
propicia a entrada de empreendimentos sejam portuários ou não com mais
facilidade. Dessa maneira, percebemos o caso, muito similar ao apontado
por Ioris em “Uma floresta de disputas: conflitos sobre espaços, recursos
e identidades sociais na Amazônia” (2014) ao trabalhar com implantação de
Reservas Ambientais, que tais espaços de disputa, a construção do terminal
portuário privado pode implicar na proibição de “moradores no interior de
suas fronteiras, independentemente das diferenças nos objetivos relacionados
à conservação e exploração dos recursos” (Ioris 2014, p. 41-2).

As áreas de acesso comum antes frequentados por todos os


moradores do Cajueiro e de outras comunidades que retiravam dos recursos
ambientais sua subsistência, não foram ameaçado com a construção do
terminal, mas bem antes todo o processo, pois os impedimentos tem sido feito
desde o ano de 2013, 2014 quando as investidas sobre o território foram feitas,
seja pelo impedimento de acesso à praia, seja na fiscalização de quem entra e
sai dessas áreas de uso comum que passaram a ser controladas pela empresa
como diz seu Clovis, uma das lideranças da comunidade. Como diz Ioris (2014)
os discursos que balizam a estrutura do “desenvolvimento”, não permite a
circulação de pessoas.

CONCLUSÃO

Conforme procuramos demonstrar mapa situacional do Cajueiro tem


importantes reflexões acerca da disputa pelo território em virtude do ponto
estratégico de localização. Atualmente, o lugar não possui mais a mesma
paisagem de dois anos atrás. Toda a área do alto do Parnauaçu encontra-
se desmatada, há estradas que possibilitam acesso de um lado ao outro da
comunidade. As áreas de acesso à praia são monitoradas constantemente. O
único morador, que tem sua casa na área de pretensão da empresa, é seu Joca,
que tem resistido a pressão da empresa.

Ao revisitarmos o mapa situacional do Cajueiro constatamos que


a luta pela “terra” e “território” continuam e implicam no reordenamento da
forma de organização social dos grupos domésticos e na forma de lidar com
os escassos recursos ambientais. A saída de algumas famílias do Cajueiro se
85 Socioantropologia de Povos e Comunidades Tradicionais Costeiras e Ribeirinhas

deu por meio de negociação da empresa (compra-venda) com os agentes


sociais. As negociações se deram de maneira estratégica, pois a medida que
obras para instalação do porto privado era estruturada, desmatamento para
áreas de atracação de navios, estradas etc. estratégia tática muito similar a
terra arrasada, como o caso do deslocamento da população nativa da Argélia
(Bourdieu, P; Sayad, 2006).

As vendas nem sempre era entendida pelos moradores como


alternativa de “melhoria de vida” como foi colocado em debates por
representantes do porto privado, pois para os agentes sociais envolvidos
no processo de negociação, a compra-venda por 40 mil ou 100 mil reais
não compensaria o deslocamento para bairros do centro da cidade, tal
deslocamento representaria um “novo” modo de viver, distinto do modo de
viver e fazer das famílias no Cajueiro. Modo de viver peculiar, onde os meios
de subsistência se dá pela plantação e pela pesca, além da relação com os
recursos ambientais como os rios, igarapés e mata nativa e o mar, os quais
eram utilizados de maneira estratégica, de modo não “arrasar toda a terra”. As
famílias que permanecem no Cajueiro hoje, vivem limitações de circulação no
território, a exemplo da passagem do Alto Parnauaçu para a praia de Parnauaçu
que atualmente é monitorada pelos agentes da empresa responsável pelo
gerenciamento da obra. Assim, as famílias resistentes, resta apenas pequena
fração do território. Desde o ano de 2015 temos acompanhado diversas
situações de conflito na comunidade, desde visita guiada pelos moradores a
recorrentes dissenções internas em razão da entrada do empreendimento.

Embora parte do território do Cajueiro tenha saída de dentro da


área destina a Resex Tauá-Mirim, restando apenas a praia de Parnauaçu, o
que o coloca para “fora” da luta pela delimitação das terras tradicionalmente
ocupadas. Mesmo com a retirada do território do Cajueiro de dentro dos
“limites” da Resex e as recorrentes investidas da empresa de porto privada para
a compra da unidade residencial de seu Joca, localizada próximo a baía, não
criou dissenções dos agentes sociais do Cajueiro com as outras comunidades,
como no caso do Taim. A rede de relação já estabelecida por eles, seja pela
relação de amizade compartilhada muitas vezes pelo processo de mobilização
em defesa do território, seja pelo enfretamento da defesa do “direito à cidadania
diferenciada” (O’ Dwyer, 2018). Nesse caso, a separação burocrática da Resex,
as derrubadas de casas, fortalecem as redes sociais dos diferentes agentes
sociais e religiosos, bem como as comunidades e seus territórios.
O cajueiro: uma releitura etnocar tográfica do processo de territorialidade 86

REFÊRENCIAS

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89 O leme: histórias e lutas das pescadoras

O LEME: HISTÓRIAS E LUTAS DAS PESCADORAS

Maria do Rosário de Fátima Andrade Leitão


Universidade Federal Rural de Pernambuco

Amanda Gonçalves Pereira


Prefeitura de Jaboatão dos Guararapes/PE

“A mulher também é gente! não haverá


libertação, nem promoção do pescador sem a
libertação, sem a promoção da mulher. O que
estamos fazendo para dar vez à mulher?” (O
LEME, 1972).

INTRODUÇÃO

O artigo se propõe a identificar e analisar narrativas do boletim


informativo do Conselho Pastoral dos Pescadores, O LEME, sobre as
lutas e conquistas das mulheres pescadoras, a partir de uma abordagem
epistemológica feminista, ancorada nas categorias divisão sexual do trabalho1
e políticas públicas com transversalidade de gênero2.

Para tanto, mapeamos no discurso do boletim O LEME as notícias


e reflexões sobre as pescadoras3, verificando de que maneira as mudanças
relacionadas ao protagonismo das mulheres são retratadas no periódico, na
perspectiva política, na inserção nos espaços de poder e no acesso às políticas
públicas. A coleta de dados do boletim O LEME se propôs a identificar as
notícias sobre as mulheres pescadoras, a partir das indagações: desde quando
as mulheres aparecem nas notícias? Com qual frequência elas aparecem? Quais
as temáticas informadas?
1. Kergoat (2003) afirma que a divisão sexual do trabalho está fundamentada
na socialização das relações sociais de sexo; culturalmente adaptada a cada
sociedade. Atua de forma a destinar prioritariamente aos homens a esfera
produtiva, e às mulheres a esfera reprodutiva. Palelamente, estabelece uma
hierarquia, na qual homens realizam atividades e ocupam espaços de “forte
valor social agregado”.

2. O conceito de políticas públicas com transversalidade constituiu-se em


pauta dos movimentos de mulheres. Sua operacionalização implica que “os
governos, não unicamente sua incorporação em um ministério ou secretaria
específica de atuação na área da mulher, mas um impacto vinculante a ser
assimilado pelas políticas propostas pelo Estado e desenvolvidas em cada área
governamental. Cada ação política deveria contemplar tal perspectiva, uma
vez que estaria sempre posta: modificar as condições de vida das mulheres e
melhorar sua condição de empoderamento” (BANDEIRA; ALMEIDA, 2013, p.40).
Para aprofundar a utilização do conceito na pesca artesanal, ler: ( LIMA, 2013).

3. Consideramos, neste artigo, a definição de pescadoras, que inclui as mulheres


que atuam nas diversas instâncias da cadeia produtiva da pesca artesanal, ou
seja, as ações de coleta de peixes, mariscos, beneficiamento do pescado, entre
outras atividades.
Socioantropologia de Povos e Comunidades Tradicionais Costeiras e Ribeirinhas 90

A pesquisa leva em consideração a divisão sexual do trabalho,


característica dessa atividade, que, ao longo da sua história, segrega os espaços
da pesca entre “masculinos” e “femininos”, excluindo quase sempre as mulheres
dos processos decisórios (ALENCAR, 1991); (MANESCHY, 1995); (MOTTA-
MAUÉS,1999); (WOORTMANN, 2007); (GEBER, 2013), (LEITÃO, 2019). A exclusão
social e a falta de políticas públicas com transversalidade de gênero também
foram um agravante, que se expressa no tempo de acesso das mulheres ao
Registro Geral da Pesca4, uma vez que, há menos de cinquenta anos5, elas
tiveram o reconhecimento de sua secular atividade produtiva.

Desde a década de 1970, as mulheres trabalhadoras da pesca


artesanal em Pernambuco vêm se organizando e construindo pautas de lutas
por seus direitos sociais. É possível ver um traço dessa realidade expressa em
dados do Conselho Pastoral dos Pescadores e do extinto Ministério da Pesca e
Aquicultura, segundo os quais, ao fim de 2010, das 40 Colônias de pescadores e
pescadoras e 28 Associações de pesca, 136 eram presididas por mulheres.

Esse processo de empoderamento das mulheres dialoga diretamente


com as ações do Conselho Pastoral dos Pescadores (CPP). A instituição se define
em seu site7como: “Uma pastoral social ligada à Comissão Episcopal para o
Serviço da Caridade Solidária, Justiça e Paz da Conferência Nacional dos Bispos
do Brasil”. A instituição é constituída por leigos, religiosos, freiras e padres
comprometidos com pescadores e pescadoras artesanais.

4. Segundo o extinto Ministério da Pesca e Aquicultura, o Registro Geral da


Pesca-RGP está acessível a “toda pessoa que faz da pesca a sua profissão ou o
seu principal meio de vida”. Com o RGP, o pescador ou pescadora profissional
artesanal tem acesso aos programas sociais do Governo Federal.” Disponível
em: http://www.mpa.gov.br/monitoramento-e-controlempa/registro-geral-da-
pesca-rgp. Acesso em: 15 de ago. de 2013.

5. Para aprofundar o tema, ler: (LEITÃO, 2009); (LEITÃO, 2010); (LEITÃO, 2012);
(LEITÃO, 2013); (LEITÃO, 2019).

6. Apesar dessa sub-representação das mulheres pescadoras nos espaços de


poder e decisão, nos primeiros 15 anos do século XXI, cresceu o número de
mulheres presidentes de Colônias de 01 Colônia para 13 Colônias. Sobre o tema
de mulheres e espaço de poder, consultar o site www.gpdeso.com do Grupo
de Pesquisa Desenvolvimento e Sociedade – CNPq/UFRPE, onde há um acervo
de fotos, vídeos, trabalhos científicos, radionovelas e memórias de mulheres
presidentes de Colônias. Sobre as mulheres na presidência de Colônias de
pescadores e pescadoras, consultar (LEITÃO, 2019).

7. Disponível em: http://www.cppnac.org.br. Acesso em 26 de jun. de 2014.


91 O leme: histórias e lutas das pescadoras

O trabalho do CPP, criado em 1968, em Olinda, pelo frei Alfredo


Schnuettgen, expandiu-se pelo litoral norte e sul de Pernambuco e por outros
estados do Nordeste. Fundamentado nas concepções da Teologia da Libertação8,
recebeu o apoio de Dom Helder Câmara, reconhecido nacionalmente pela CNBB
desde 1976. A princípio, recebeu o nome de Comissão Pastoral dos Pescadores,
com sede em Recife. Só em 1988, tornou-se uma entidade autônoma, com seu
próprio estatuto, e passou a se chamar Conselho Pastoral dos Pescadores (SIRY,
2003), (CALLOU, TAUK SANTOS, 2003).

No bojo da luta pela organização política dos pescadores (as)


enquanto categoria profissional, em 1972, foi criado o boletim informativo do
CPP − O LEME −, com o objetivo de promover a circulação das informações
pertinentes aos homens e às mulheres que retiravam da pesca o seu sustento.
A pastoral procurou uma linha de comunicação paulofreiriana, horizontal e
dialógica, que colocasse no centro do debate os interesses desse povo.

Dentre as questões que são destaque no periódico, estão as conquistas


e as violações de direitos dos pescadores e pescadoras; as divulgações de
campanhas locais, regionais e nacionais − como a recente Campanha Nacional
Pela Regulamentação do Território das Comunidades Tradicionais Pesqueiras
e contra a privatização desses estuários, essenciais para a manutenção dessas
comunidades, tanto economicamente como ambiental e culturalmente −;
além da própria visibilização das ações políticas, protestos e mobilizações
convocados pelas lideranças dos movimentos sociais da pesca pelo país.

O artigo está organizado em três partes, nas quais se explicita o


recorte metodológico e o processo de investigação, seguidos de um debate
sobre as relações de gênero na Pesca Artesanal e sobre a análise de publicações
a respeito das mulheres pescadoras no boletim O LEME.

RECORTE METODOLÓGICO E PROCESSO DE INVESTIGAÇÃO

O acervo do boletim O LEME constituiu-se na principal fonte de


dados desta pesquisa qualitativa, um total de 120 exemplares do periódico,
composto pelos jornais impressos e arquivados na biblioteca localizada na
Sede do CPP em Olinda, Pernambuco. A segunda fase de delimitação do corpus
da pesquisa envolveu a leitura desses 120 exemplares, para mapear as notícias e
reflexões publicadas sobre as mulheres pescadoras. Dessa leitura, elaborou-se
uma tabela, na qual foram identificadas 36 publicações sobre as pescadoras, no

8. A teologia da libertação é uma corrente teológica que nasceu na Alemanha,


mas se desenvolveu mais intensamente na América Latina, após a reforma na
Igreja Católica, conhecida como Concílio Vaticano II, na segunda metade do sé-
culo XX. A corrente baseia-se na opção pelos pobres contra a pobreza e pela sua
libertação. Ela propõe o engajamento político dos cristãos contra as injustiças
sociais na construção de uma sociedade mais justa e igualitária e com ideais de
esquerda. Sua materialização deu-se com o desenvolvimento das Comunidades
Eclesiais de Base (CEBs) e o Movimento Educacional Brasileiro (MEB). Essas orga-
nizações influenciaram movimentos sociais por todo o Brasil, inclusive as Colô-
nias de pescadores, que contaram com o apoio do CPP em sua composição como
entidade de classe (TORRES, 2012).
Socioantropologia de Povos e Comunidades Tradicionais Costeiras e Ribeirinhas 92

período entre 1972 e 20049, na qual se identificou a data, o título, a ilustração, o


tema geral da publicação, uma síntese dos assuntos abordados e um resumo da
notícia relativa às mulheres para posterior análise das notícias. Para este artigo,
identificamos dois principais temáticas debatidas pelo boletim O LEME e seus
desdobramentos:

1. A questão da divisão sexual do trabalho e suas consequências na


precarização do trabalho das pescadoras e na vulnerabilidade social
que as atinge;

2. A luta e o engajamento político das mulheres pescadoras por direitos


e políticas públicas que lhes contemplem e pela ocupação dos
espaços de poder e tomada de decisões.

Esses dois eixos temáticos configuram-se como nossas principais


categorias de análise. O jornal está configurado no debate acerca da
comunicação popular e alternativa, que caracteriza a publicação enquanto um
instrumento de informação da pastoral da pesca.

Importante ressaltar que o surgimento de instrumentos de


comunicação, a exemplo do boletim O LEME, deu-se a partir do trabalho de alas
progressistas da Igreja Católica junto aos movimentos sociais, que se organizam
no sentido de estabelecer uma comunicação popular como alternativa aos
meios hegemônicos. Essa forma popular de comunicação, da qual O LEME
tem suas origens, desenvolveu-se no Brasil e América Latina nas décadas de
1960, 1970 e 1980. Segundo (PERUZZO, 2006, p. 2), não se caracteriza como um
tipo qualquer de mídia, mas como um processo de comunicação que emerge
da ação dos grupos populares. Essa ação tem caráter mobilizador coletivo
na figura dos movimentos e organizações populares. Para a autora, falar em
comunicação popular e alternativa significa falar em cultura e, desse modo,
demanda introduzir a dimensão do conflito presente no espaço, onde a cultura
se estabelece.

GÊNERO E PESCA ARTESANAL

As mulheres sempre fizeram parte do espaço da pesca, em suas mais


heterogêneas formas de existência. Seus saberes tradicionais, repassados por
outras gerações, somam-se às necessidades, muitas vezes impostas pela falta
de recursos financeiros, em que a pesca artesanal se apresenta como fonte de
renda e, em muitos casos, subsistência familiar, como mostram os estudos de
(GERBER, 2013) e (MANESCHY, 1995).

A despeito de a atividade pesqueira, em especial, a pesca artesanal,


estar à margem da política de desenvolvimento ruralista brasileira, que privilegia
o agronegócio, os grandes produtores e a pesca industrial/empresarial em seu
detrimento, é possível constatar que as mulheres ainda são as mais excluídas

9. Houve uma pausa, na qual o boletim deixou de ser publicado entre os anos
de 1993 a 1997.
93 O leme: histórias e lutas das pescadoras

dos direitos sociais, pela carência de políticas públicas e investimentos


econômicos10, mesmo que elas tenham uma atuação marcante nesse cenário,
como reconhece a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e
Agricultura (FAO):

Millones de mujeres de todo el mundo


trabajan, con o sin remuneración, en el sector
pesquero. Aunque ellas participan sobre todo
en las ocupaciones anteriores y posteriores
a la pesca misma, a veces también participan
en ésta. En el ámbito artesanal, sus actividades
de preparación consisten en elaborar y reparar
las redes, canastos y vasijas, y los anzuelos
para la carnada, además de prestar servicios
a los barcos pesqueros. Ellas mismas pescan
por razones comerciales o de subsistencia, a
menudo en canoas en zonas próximas a los
lugares donde viven. También recogen larvas
de lagostinos y pescados para alevines para
surtir los estanques de acuicultura. Recogen
algas marinas y mariscos, y a menudo trabajan
con los hombres en el mar11.

A partir dessa afirmação, é possível verificar que as mulheres


desempenham trabalhos fundamentais para a manutenção das comunidades
pesqueiras, embora muitas vezes a sua condição de mulher seja um obstáculo
no acesso a recursos e políticas que lhes contemplem e, até mesmo, que lhes
legitime. Os trabalhos12 que são exercidos por elas em terra, como a limpeza
do pescado, o conserto de redes e utensílios e o processo de beneficiamento

10. Nesse sentido, as autoras (MANESCHY, SIQUEIRA e ÁLVARES, 2012, p. 714)


ressaltam que: “Não obstante as investigações, políticas setoriais têm sido
incipientes na incorporação da dimensão de gênero. Por sua vez, ao se tratar de
comunidades pesqueiras artesanais – também referidas como de “pescadores
de pequena escala” –, é preciso considerar que se trata de comunidades onde
permanece a articulação das várias dimensões da vida (trabalho, lúdico, religião),
enquanto o foco maior das políticas reside nos objetivos de produção em si e de
qualidade de vida entendida como geração de renda. Além disso, ainda é baixo o
interesse em evidenciar as atividades das mulheres na pesca, o que se reflete na
falta de estatísticas. A dinâmica das comunidades costeiras e, portanto, de suas
bases de recursos – águas, peixes, florestas adjacentes etc. – depende justamente
de uma variedade de atividades, de homens e de mulheres, interligadas de
maneira complexa”.

11. Disponível: http://www.fao.org/FOCUS/S/fisheries/women.htm. Acesso em 19


de jun. de 2015.

12. (MANESCHY et al, 2015, 716), no artigo, as autoras mapeiam no QUADRO


1 – Trabalhos feitos por mulheres no setor pesqueiro ou em comunidades
pesqueiras em diferentes regiões do mundo.
Socioantropologia de Povos e Comunidades Tradicionais Costeiras e Ribeirinhas 94

do pescado são, dentro da estrutura patriarcal13 que mantém as relações de


gênero na pesca, desvalorizadas.

Nesse sentido, (MANESCHY et al, 1995, p. 148) afirmam que


a fragmentação do seu trabalho entre as atividades domésticas e não
domésticas: “impede também o reconhecimento e a valorização do trabalho
da mulher, notadamente quando se trata da atividade pesqueira, onde sua
atuação é vista como incomum quando, na verdade, pode constituir estratégia
de sobrevivência do grupo familiar”. Entretanto, a falta de reconhecimento
do labor das mulheres não é uma especificidade da pesca, mas, antes, reflexo
da subordinação feminina que é maior e, de modo geral, está presente em
diversas esferas (LEITÃO, 2010), (MANESCHY, SIQUEIRA e ÁLVARES 2012). Para a
mudança da realidade da pesca, (GERBER, 2013, p. 34) afirma que:

Urge rever o conceito que preconiza que a


pesca é retirar o peixe do mar e quem a faz, por
definição, nos dicionários de Língua Portuguesa,
um ser masculino singular: pescador. A pesca é,
envolve e implica muito mais do que isso. Trata-
se aqui de ponderar que incluí trabalhadoras
que, tanto quanto os homens, são profissionais
da pesca.

As pesquisas sobre as relações de gênero na pesca e sobre o trabalho


das mulheres nas comunidades pesqueiras, tais como (MANESCHY,1995),
(ALENCAR,1993), (MOTTA-MAÚES, 1999), (WOORTMANN,2007), (LEITÃO,
2019), em geral, apontam para uma acentuada divisão sexual do trabalho e
para a visibilidade do trabalho não remunerado exercido por essas mulheres
para a manutenção das suas comunidades, a despeito de serem politicamente
afetadas pela dupla jornada de trabalho.

Vale ressaltar que, desde 1919, quando as colônias de pesca foram


criadas sob a tutela da Marinha de Guerra, as mulheres não eram autorizadas
a se filiar. Considerando que, ao longo de mais de um século, o rompimento
desse ciclo mostra-se distante, apesar das ações contra hegemônicas, muitas
delas retratadas pelo boletim O LEME.

Nesse contexto, a regulamentação da atividade pesqueira para as


mulheres só foi oficializada em 197814, e o acesso ao documento oficial, carteira
de pescadora profissional, expedida pela SUDEPE, em 1979, um instrumento
essencial para garantir o acesso aos direitos trabalhistas, como a aposentadoria
e outros programas sociais que são disponibilizados pelo poder público
(LEITÃO, 2010). Sobre essa conquista histórica, O LEME afirma:
13. O conceito é utilizado neste artigo, a partir do debate feminista, o qual o
define a partir do poder do homem sobre a mulher, gerador de desigualdades
em todos os aspectos na vida das mulheres, no caso aqui do estudo, a
divisão sexual do trabalho produz no patriarcado um lugar de invisibilidade,
de submissão hierárquica e, consequentemente, de desvalorização. Para
aprofundar o tema patriarcado, ler: (AGUIAR, 2015) e (SAFFIOTI, 1987, 2004).

14. O direito foi estabelecido pelo Decreto-Lei nº 81.563, de outubro de 1978.


95 O leme: histórias e lutas das pescadoras

Apesar das inúmeras dificuldades, as


pescadeiras se mostram dispostas a lutar
pelo direito de possuir o seu documento de
Pescadeira Profissional. É comovente observar
a perseverança silenciosa com que elas se
deslocam de um lugar para o outro a fim de tirar
a “folha corrida”, a “Carteira de identidade”, ou,
no caso de não ter o registro civil de nascimento,
o “atestado de pobreza” para a isenção da
multa exigida. Em Itapissuma, 56 pescadeiras já
conseguiram tirar boa parte dos documentos.
Dessas 56, 34 já estão com os documentos
com pleitos na SUDEPE, aguardando receber
muito em breve sua carteira de Pescadeira
Profissional. (O LEME, 1979, p. 6).

Essa tardia regulamentação profissional para as mulheres do setor é


reflexo de uma política de precarização e marginalização da pesca no país, em
especial, da pesca artesanal. Em diversos trechos do boletim, essa situação de
abandono é retratada no número 81 do periódico, publicado no mês de abril. O
texto comenta a campanha da fraternidade do referido ano, “Fraternidade Sim/
Violência Não”, a qual denuncia a situação de precariedade da classe, a exemplo
da afirmação: “companheiros, nós sentimos na própria pele as violências
cometidas contra nós e contra a nossa categoria. Está aí a poluição dos rios,
a devastação dos mangues, a falta de assistência médica etc” (O LEME, 1983,
p.4-5).

Nesse contexto, a realidade era, e ainda é, mais crítica para as


mulheres. Essas se encontram à margem de um universo já periférico. O direito
de se cadastrar como pescadora e, assim, acessar os benefícios e políticas
públicas voltadas para quem exerce a profissão foi conquistado por meio de
reivindicações dessas mulheres, particularmente, as pescadoras de Itapissuma
e Ponte dos Carvalhos, que acamparam na frente da Superintendência de
Desenvolvimento da Pesca- SUDEPE, antigo órgão responsável pela atividade,
até que o direito fosse garantido, é claro, através de muita manifestação. Sobre
esse fato, O LEME, de maio de 1979, noticiou que um grupo de pescadeiras, que
havia enviado seus documentos desde novembro do ano passado à SUDEPE
em fins de março, decidiu ir até o Recife reclamar pessoalmente do Delegado
Regional da SUDEPE a longa demora, quando finalmente foram atendidas em
suas demandas sobre o registro da pesca.

Partindo dessa perspectiva, lembramos que apenas no ano de 1989


foi eleita a primeira mulher presidente de uma Colônia de Pescadores (as) no
Brasil. Seu nome é Joana Rodrigues Mousinho, mulher negra e presidente
mais atuante da colônia Z-10, localizada no município de Itapissuma-PE. Vale
mencionar que, em Itapissuma, ocorreu o importante trabalho de assessoria e
assistência do CPP e da Irmã Nilza Montenegro15, que fazia parte da congregação
das Dorotéias, graduada em Sociologia. A religiosa realizou atividades de
acompanhamento e apoio às causas, especialmente das pescadoras da cidade,
com observações e reuniões periódicas, e suas ações foram essenciais para

15. Para aprofundar o tema, especialmente a atuação da Irmã Nilza Montenegro


com as pescadoras em Itapissuma, ver (FURTADO, 2010).
Socioantropologia de Povos e Comunidades Tradicionais Costeiras e Ribeirinhas 96

que as mulheres conseguissem o direito à carteira de pescadora profissional,


expedida pela SUDEPE (LEITÃO, 2019).

A pesca, assim como outros campos da nossa sociedade, reproduz


as diferenças de gênero. Sobre o conceito de gênero, (BANDEIRA, 2005, p.05),
afirma que é:

O conjunto de normas, valores, costumes e


práticas através das quais a diferença biológica
entre homens e mulheres é culturalmente
significada. A categoria de gênero surgiu como
uma forma de distinguir as diferenças biológicas
das desigualdades sócio culturalmente
construídas e procurou mudar a atenção de um
olhar para mulheres e homens como segmentos
isolados, para um olhar que se fixa nas relações
interpessoais e sociais através das quais elas
são mutuamente constituídas como categorias
sociais desiguais.

Sobre as relações de gênero (SCOTT, 1995, p. 86 - 88), destaca


o caráter político que permeia as relações de gênero, as quais, ao longo da
história, silenciaram e interditaram a mulher como uma não agente política
referenciada e inscrita. Segundo a autora, “o gênero é um campo primário no
interior do qual, ou por meio do qual, o poder é articulado. O gênero não é o
único campo, mas ele parece ter sido uma forma persistente e recorrente de
possibilitar a significação do poder no ocidente, nas tradições judaico-cristãs
e islâmicas”.

É característica dessa relação desigual entre o feminino e o masculino


a divisão sexual do trabalho. “Estas, como todas as relações sociais, têm uma
base material, no caso o trabalho, e se exprimem através da divisão social do
trabalho entre os sexos” (KERGOAT, 2003, p. 55).

Não obstante essa realidade, a pesca artesanal no Brasil, de acordo


com investigações sobre o tema (LEITÃO, 2012), (GERBER, 2013) (ALENCAR,
1993), (MOTTA-MAUÉS, 1999) e (WOORTMANN, 2007) vêm problematizando a
naturalização da existência de trabalhos femininos e masculinos. Nesse sentido,
(ALENCAR, 1993, p. 73) afirma que:

A divisão do trabalho nas comunidades


pesqueiras reflete tanto uma visão de mundo
como também expressa uma maneira de se
apropriar do ambiente produtivo, ou seja, mar
e terra. É uma divisão marcada pelo arbítrio,
e se baseia fundamentalmente na diferença
biológica dos sexos, tomada como referencial
para estabelecer a diferenciação dos gêneros.

É nesse contexto de desigualdades e exclusões das mulheres


97 O leme: histórias e lutas das pescadoras

trabalhadoras na cadeia produtiva da pesca artesanal que O LEME visibiliza os


obstáculos a esses sujeitos sociais e contribui para o processo de construção
de uma resistência que evidencia desigualdades no modelo androcêntrico,
predominante até a inserção oficial das mulheres na pesca artesanal e nos
espaços de poder e decisão nas Colônias.

A configuração da divisão sexual do trabalho na cadeia produtiva


da pesca é evidenciada na compreensão do equívoco de reduzir a cadeia
produtiva da pesca à ação de coletar peixes, o que contribui ainda mais para
que as mulheres se situem à margem nas concepções de políticas públicas para
o setor.

Sobre política pública, (SARAVIA, apud GUIMARÃES e LEITÃO, 2020,


p. 348) afirmam que:

Trata-se de um fluxo de decisões públicas,


orientado a manter o equilíbrio social [...]
condicionadas pelo próprio fluxo e pelas
reações e modificações que elas provocam no
tecido social. [...] poderíamos dizer que ela é
um sistema de decisões públicas que visa às
ações ou omissões, preventivas ou corretivas,
destinadas a manter ou modificar a realidade de
um ou vários setores da vida social, por meio da
definição de objetivos e estratégias de atuação
e da alocação dos recursos necessários para
atingir os objetivos estabelecidos. (SARAVIA,
2006, p. 28-29).

As publicações de O LEME evidenciam, como será visto adiante


neste texto nas análises das matérias publicadas, o contexto de exclusão das
pescadoras, pela falta de diálogo das políticas públicas16 com a perspectiva de
gênero.

AS MULHERES PESCADORAS E O BOLETIM O LEME

O LEME teve a sua primeira edição em 1972. Naquele momento, foi


acordado que o boletim faria parte de um movimento para a promoção dos
pescadores, decisão realizada no encontro regional dos pescadores em Olinda-
PE, organizado pelo CPP e ocorrido entre os dias 13 e 16 de agosto de 1972. O
texto publicado no boletim enfatizou que faria parte de: Um movimento que
quer ajudar o pescador a descobrir seu valor como pessoa, pai, [...], profissional
[...] Um movimento que quer ajudá-lo a tornar-se gente, homem considerado e
respeitado, e finalmente quer despertar nele o espírito associativo e de serviço.

É evidente que a publicação, nesse primeiro momento, teve como


objetivo problematizar as condições de existência do homem pescador, ele é
o interlocutor e a quem O LEME volta suas principais pautas. Não obstante,

16. Para aprofundar o tema, ler: (BANDEIRA, ALMEIDA,2013).


Socioantropologia de Povos e Comunidades Tradicionais Costeiras e Ribeirinhas 98

também em sua primeira edição, encontramos a seguinte afirmativa: “A mulher


também é gente! Não haverá libertação, nem promoção do pescador sem a
libertação, sem a promoção da mulher. O que estamos fazendo para dar vez à
mulher?” Isto é, ainda que o homem seja a figura central do boletim −, o que não
é uma exclusividade apenas do seu discurso, menos ainda em 1972, visto que,
como debatido anteriormente, a pesca ainda é uma atividade androcêntrica,
até mesmo para o discurso governamental e os órgãos que são responsáveis
pelas suas políticas (GERBER, 2013). Mesmo assim, na primeira edição, houve
declaradamente uma preocupação em mencionar a mulher e afirmar que, sem a
sua libertação, também não haverá a libertação da classe, e segue questionando
o que está sendo feito para dar voz a essas mulheres.

A partir desse universo de 120 edições do boletim O LEME, podemos


inferir que as principais pautas do periódico foram destinadas às demandas
mais básicas do contingente que tinham como a pesca sua fonte de renda e seu
modo de vida. Questões como direitos humanos, que apareceram em várias
edições, enfatizando que pescadoras e pescadores são pessoas dotadas de
direitos, e que esses direitos são primários e fundamentais. Outros assuntos
são recorrentes, como o direito de pescadoras e pescadores, enquanto classe,
ocuparem as Colônias, as Federações e a Confederação, que, durante grande
parte do período ditatorial e em diversos cantos do país, estavam sob o
comando de militares ou pessoas ligadas a esses, como salienta O LEME, os
“pelegos”. A questão da conquista da Colônia como entidade representativa
da classe norteia, em grande medida, as publicações do boletim, durante as
décadas de 1970 e 1980.

A legislação e as políticas públicas também são uma pauta


importante na narrativa do boletim O LEME. Ao longo dos anos, as legislações
que envolviam a pesca artesanal e as políticas públicas voltadas para o setor
foram debatidas pelo periódico. Algumas edições chegaram a publicar as leis e
os decretos na íntegra, além de comentários com críticas e reflexões. É o caso
da publicação de maio de 1979, que traz todo o decreto 81.563, de 13 de abril
de 1978. Tal decreto autoriza a emissão da carteira de pescadora profissional,
expedida pela SUDEPE, para as mulheres, reconhecendo-as formalmente como
pescadoras. O LEME também traz vários abaixo-assinados destinados à criação
de leis e políticas públicas. Geralmente, esses documentos eram idealizados
durante as reuniões do CPP com pescadoras e pescadores, e nasciam a partir
de suas queixas.

CARTEIRA DE PESCADORA PROFISSIONAL, EXPEDIDA PELA SUDEPE, E


POLÍTICAS PÚBLICAS NO BOLETIM O LEME

Identificamos quatro matérias que expressaram a visão do boletim


sobre a luta das mulheres para obter os direitos trabalhistas, por meio da
carteira de pescadora profissional, expedida pela SUDEPE.

O Boletim O LEME (1979, p.6), Ano 7, edição publicada em março,


trouxe uma ilustração que ironizou as pesadas exigências a serem cumpridas
pelas pescadoras para terem acesso à carteira de pescadora profissional,
expedida pela SUDEPE e às seguintes informações: “Agora que a profissão de
pescadeira já foi legalizada pela lei n 81.563, de 13 de abril de 1978, todas nós
99 O leme: histórias e lutas das pescadoras

podemos ter nossa Carteira Profissional”.

O texto chamou a atenção sobre a inclusão oficial das mulheres na


cadeia produtiva da pesca, a partir de um decreto. Apesar de ser uma profissão
milenar e as mulheres historicamente trabalharem na atividade, elas não tinham
acesso aos direitos sociais nessa cadeia produtiva. Outra informação importante
desta edição foi sobre o empoderamento dessas pescadoras de Itapissuma,
que lutaram pelo acesso aos direitos trabalhistas, exigindo uma resposta do
poder público, a SUDEPE. A colônia de Pescadores e pescadoras de Itapissuma
esteve na vanguarda dessa luta pelo acesso das mulheres aos direitos sociais e
aos espaços de poder e decisão. Muito se deveu ao trabalho de conscientização
realizado pela irmã Nilza Montenegro.

No mês de maio o boletim, no Ano 7, continuou a publicar sobre a luta


das mulheres para obter o reconhecimento oficial da sua atividade de pesca, ao
informar: “E que pensar da SUDEPE que deixou o decreto do Presidente da
República engavetado, desde abril de 1978 [...]?” (O LEME, 1979, p.7).

A mesma edição do boletim trouxe o decreto 81.563 na íntegra. A


narrativa conteve uma elaboração discursiva sobre o empoderamento das
mulheres e, por outro lado, evidenciou o descaso governamental, a desigualdade
de direitos e oportunidades para diferentes segmentos da sociedade. O
engavetamento das petições das mulheres era uma expressão do exercício de
ação governamental, respaldada em lacunas políticas de transversalidade de
gênero.

No mês de dezembro, em seu Ano 8º, visibilizou, inclusive com dados


quantitativos, as conquistas das pescadoras.

Em Itapissuma as pescadeiras estão fazendo


um grande esforço para tirar documentos. Os
primeiros documentos de pescadeiras que
foram para a SUDEPE ficaram lá por quase 6
meses. Diziam que não conheciam o decreto
do presidente da República que autorizava a
SUDEPE documentar as pescadeiras. Um grupo
de 12 pescadeiras se cansou de esperar e resolveu
vir até a SUDEPE, os documentos chegaram em
15 dias. Hoje já estão documentadas na área de
Itapissuma 220 pescadeiras. A Colônia dá todo
apoio. [...] As pescadeiras que têm documento
estão animando as que não têm para tirar (O
LEME, 1980, p.8).

A ausência de reconhecimento institucional da profissão de pescadora


foi uma das pautas marcantes no discurso do boletim O LEME. Estava presente
nos primeiros anos do boletim, quando as mulheres ainda não tinham sua
profissão reconhecida pela SUDEPE, mas também estava presente na narrativa
sobre a burocratização nas exigências para se comprovar a sua profissão.
Ao final do primeiro ano da década de 1980, o texto acima citado informou
Socioantropologia de Povos e Comunidades Tradicionais Costeiras e Ribeirinhas 100

que um expressivo quantitativo de mulheres possuía a carteira de pescadora


profissional, expedida pela SUDEPE. A informação de que em 1979, 220 mulheres
apresentaram documentação e receberam a carteira de pesca dialogava com a
concepção foucaultiana de que, em toda a sociedade, a produção do discurso
é controlada, selecionada e redistribuída por uma série de procedimentos que
envolvem exclusão, rejeição e deslegitimação. Até hoje, quando falamos em
mulheres pescadoras, as pessoas perguntam: “existem mulheres pescadoras?”,
ou o setor público confunde mulheres pescadoras com esposas de pescadores.

A década de 1980 consistiu em um período profícuo para as


pescadoras de Itapissuma, que se organizaram cooperativamente na jornada
para a documentação, e que terminou com a eleição de Joana Mousinho à
presidência da Colônia.

No mês de dezembro, em seu Ano 9º, publicou um relatório da


Pastoral que fez um balanço sobre a situação da pesca artesanal no Brasil até o
início da década de 1980 (O LEME, 1981). Sistematizou uma breve retrospectiva
sobre a situação das Colônias, Federações e Confederação de Pesca no
país, denunciou o fato de que muitas delas estavam entregues nas mãos de
pelegos ou pessoas ligadas às forças armadas. Debateu sobre a legislação que
rege a atividade, suas mudanças e deficiências, inclusive a falta de extensão
pesqueira e outros serviços voltados para a valorização da pesca. Resgatou
as ações realizadas pela pastoral da pesca. Nas páginas 16 e 17 do boletim,
evidenciou a luta das mulheres de Pernambuco para conseguirem a carteira de
pescadora profissional, expedida pela SUDEPE e transformar a Colônia em uma
organização mais cooperativa.

O conjunto dessas matérias publicadas no boletim informaram,


problematizaram, buscaram soluções e exemplificaram práticas positivas
para que as pescadoras pudessem discutir a legalização da profissão para as
mulheres.

Um tema recorrente foi a necessidade dessas trabalhadoras obterem


a documentação que garanta os direitos trabalhistas. Debateram e denunciaram
as dificuldades impostas pelo Estado para a obtenção da carteira de pesca da
SUDEPE (quantidade de documentos, burocracia e a taxa a ser paga), obstáculos
quase intransponíveis, em uma época na qual muitas não tinham o registro de
nascimento.

As publicações evidenciaram a luta das mulheres pela carteira de


pescadora profissional, expedida pela SUDEPE e as dificuldades enfrentadas por
elas no dia a dia, a pobreza e as especificidades de ser mulher pescadora. Um
dos textos foi assinado pela Irmã Nilza Montenegro, o qual chamava a atenção
sobre o trabalho de evangelização e conscientização das mulheres sobre o
valor que elas têm na sociedade.

Outro conjunto de matérias abordaram questões relacionadas


a aspectos relativos às carências de políticas públicas para os pescadores
em geral e, especialmente, para as pescadoras artesanais, as condições de
trabalho e sobrevivência, a carência da previdência social para a categoria e,
101 O leme: histórias e lutas das pescadoras

fundamentalmente, para as mulheres não legitimadas na cadeia produtiva


da pesca e não valorizadas nas colônias de pescadores/as. A exemplo da
publicação de maio, em seu Ano 2, indica os principais problemas vivenciados
pelas pescadoras:

As suas condições de trabalho são muito mais


miseráveis; Pescando no mangue, entrando
na lama às vezes até o pescoço, parecem mais
caranguejos do que pessoas humanas; a renda
da pescadora é ainda mais baixa do que a do
homem; Águas poluídas e insetos prejudicam
seriamente sua saúde; Elas não têm nenhuma
segurança porque não estão inclusas na lei de
previdência social (O LEME,1974, p.4).

No mês de maio, no Ano 3 e número 2, abordou as precárias condições


de trabalho das mulheres (O LEME, 1975). Nessa edição do boletim, foram
divulgadas as pautas do 4º encontro regional dos pescadores e pescadoras.
Destacaram-se os temas: previdência social; condições de trabalho de
pescadores/as; a necessidade de construção de casas; a lutas das pescadoras;
as diferenças dos trabalhos dos homens no mar e das mulheres nos mangues.
O texto avaliou que as mulheres, devido à dupla jornada de trabalho exaustiva,
não tinham condições de educar os filhos, conforme os padrões da época17.
Além disso, elas conviveram com as águas poluídas pelas usinas, enfrentaram
os obstáculos inerentes ao fato de não serem reconhecidas como pescadoras.
Por isso, buscavam apoio e reconhecimento no PRORURAL e na Marinha

Um exemplo de transversalidade de gênero foi publicado no boletim


O LEME de abril de 1977, Ano 5, onde informou que, em Itapissuma, a Sociedade
de Ajuda Mútua – SAMPESI- mudou o estatuto para acolher as pescadoras.

No mês de maio, Ano 10, publicou que, no dia 18 de abril de 1983,


um quantitativo de 91 mulheres se reuniu no seminário em Olinda-PE, para
discutir sobre os direitos previdenciários das mulheres e homens da pesca,
como: assistência médica (dentista e oculista); aposentadoria por velhice;
aposentadoria por invalidez; pensão por morte; auxílio funeral; auxílio doença;
e amparo previdenciário (O LEME,1982). As conclusões das pescadoras foram
que: “o dinheiro dos benefícios não dá para nada”; “o atendimento médico e
hospitalar são uma lástima”; “outros benefícios deveriam ser oferecidos, como:
auxílio natalidade, auxílio maternidade, auxílio reclusão, auxílio funeral para os
filhos menores, aposentadoria especial após 25 anos de trabalho, aposentadoria
aos 50 anos para as mulheres aos 55 anos para homens direito à casa própria
e outros mais”.

Esse tipo de detalhamento nas demandas por políticas trabalhistas


visibilizou o processo de formação política18 das pescadoras, realizada
17. Geralmente as crianças iam com as mães para a maré e muitas não chegavam
a ser alfabetizadas. Para mudar este quadro foram necessárias políticas públicas
para manter as crianças nas escolas.

18. Para aprofundar o tema, ler: (GUIMARÃES, LEITÃO, 2019).


Socioantropologia de Povos e Comunidades Tradicionais Costeiras e Ribeirinhas 102

especialmente pela irmã Nilza Montenegro no bojo de toda a ação do CPP e o


engajamento dessas mulheres em um processo de empoderamento.

No mês de junho, Ano 13, relatou a aquisição de embarcações para as


pescadoras, obtidas por meio de um projeto da SUDENE e do Centro Josué de
Castro. As mulheres de Itapissuma conseguiram cinco barcos para serem usados
por trinta pescadoras (O LEME, 1985). O texto informou que as pescadoras se
reuniam mensalmente para avaliar os seus trabalhos e procurar soluções para
os seus problemas.

MULHERES E MEIO AMBIENTE NO BOLETIM O LEME PESCA

As questões ambientais entraram na pauta dos movimentos


sociais, debate alavancado especialmente pela realização da Conferência
das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente, em Estocolmo, no ano de 1972.
Dialogar com problemas que envolvem a degradação ambiental e o modelo
de desenvolvimento econômico possibilitaram a criação de instituições, com
a missão de mitigar os prejuízos ambientais. No Brasil, em 1973, foi criada a
Secretaria Especial de Meio Ambiente (SEMA). Posteriormente, em 1981, são
criados instrumentos de gestão ambiental ancorados na Política Nacional de
Meio Ambiente. Em Pernambuco, em 1976, foi criada a Agência Estadual de
Meio Ambiente (CPRH), responsável pela política ambiental em Pernambuco.
Desde 1946, havia a Comissão Permanente de Proteção dos Cursos D’Água
(CPPCA), substituída pela Comissão Estadual de Controle da Poluição Ambiental
(CECPA) na década de 1960, mas que não foram bem-sucedidas no controle dos
dejetos das usinas e indústrias.

Os problemas foram uma constante nas discussões do boletim O


LEME, principalmente no que dizia respeito à poluição causada pelos resíduos
sem tratamento despejados nos rios e mangues pelas usinas e engenhos de
açúcar e por algumas fábricas. Essa poluição causava uma grande mortandade
de peixes e escoava frequentemente em direção ao mangue, provocando
doenças, sobretudo, nas mulheres que estavam mais diretamente ligadas ao
trabalho no manguezal.

No mês de junho, Ano 12, publicou um texto no qual problematizou


as questões ambientais, ao indagar “poluição: procuram-se os responsáveis” (O
LEME, 1984). A narrativa foi construída a partir de notícias sobre um Encontro
com as pescadoras para debater sobre a poluição e a devastação dos mangues.
Na ocasião, concluiu-se que o prejuízo causado pela poluição e devastação
dos mangues é especialmente prejudicial para as mulheres que trabalham
na captação de mariscos nessas áreas. A poluição causa doenças e diminui
também a quantidade de pescado, impactando na renda, aumentando a
vulnerabilidade dessas trabalhadoras. Essa poluição era causada especialmente
pelo lançamento indiscriminado de vinhoto pelas usinas de cana-de-açúcar e
os resíduos de fábricas nos rios, por exemplo, as de cimento.

As questões de saúde e doenças laborais foram tema de diversas


edições da publicação, enfatizando que a fome, especialmente nas décadas
de 1970 e 1980, era a grande causadora das enfermidades que atingiam as
103 O leme: histórias e lutas das pescadoras

pescadoras e pescadores. Esse fato enfatizou que a pauta do boletim O LEME


precisava ser construída a partir de questões elementares das vidas desses
homens e mulheres.

Ainda nesse sentido, em novembro, Ano 10, trouxe uma edição sobre
o encontro entre as pescadoras e os agentes do CPP, ocorrido em 10 de outubro
daquele ano, com o objetivo de discutir sobre saúde e plantas medicinais (O
LEME, 1982). O tema das questões sanitárias continua na pauta e no cotidiano
das pescadoras.

Embora a primeira década do século XXI tenha sido marcada por


avanços socioeconômicos e pelo início da frágil e tímida distribuição de renda,
alguns aspectos da omissão da administração pública com a saúde dessas
mulheres continuam semelhantes, como salienta (STADTLER, 2013, p.3):

Todos os profissionais da saúde, especialmente


da pública, deveriam perguntar a seus
pacientes: qual a sua profissão? Os prontuários
e os registros, até o presente, avaliados nos
Programas de Saúde da Família locais, contém
apenas nome, endereço e, às vezes, um
documento de identificação. Falar em doença
do trabalho é buscar a prevenção para eliminar
os riscos e as condições para recuperação da
trabalhadora.

MULHERES PESCADORAS, COLETIVIDADE E COOPERAÇÃO NO BOLETIM


O LEME

No mês de agosto, Ano 2, relatou o 2º Encontro regional dos


pescadores, cujas principais pautas do encontro foram INPS e PRORURAL
(O LEME,1973). Considerando que são poucos os pescadores que gozam dos
benefícios da Previdência Social, problematizaram estratégias para aproximar
a mulher pescadora para as discussões políticas da pesca. Desse debate,
surgiu a proposta de ampliar as ações realizadas pelas pescadoras de “Ponte
dos Carvalhos- PE, um grupo de mulheres que está se organizando. Seria
interessante levar algumas delas a outras praias, para trocarem ideias sobre
suas vidas e trabalho”.

No mês de dezembro, Ano 2, número 3, argumentou a partir da


problematização “o que é ser livre?” (O LEME, 1973, p.7). Desenvolveu os
argumentos sobre a importância da cooperação para se libertar e se fortalecer.
Exemplificou que “Os companheiros de Ponte dos Carvalhos receberam em sua
sociedade as PESCADEIRAS de mangue e rio. Informa que elas já fizeram um
dia de estudo, apresentando sua vida dura de trabalho no mangue, sua luta
tremenda pela sobrevivência”.

Abordando tema religioso, em abril, Ano 3, número 1, o texto


publicado argumentou sobre a importância da cooperação a partir do exemplo
de Jesus ressuscitado, ao convidar os discípulos para comer com ele um peixe na
Socioantropologia de Povos e Comunidades Tradicionais Costeiras e Ribeirinhas 104

praia, numa retórica de conscientizar sobre a importância de partilhar e não ser


individualista (O LEME,1975). A exemplo das mulheres de “Ponte dos Carvalhos,
as pescadeiras que se lançaram numa luta comum para construir suas casinhas.
Em verdadeira amizade, elas se juntam, preparando a massa, carregando tijolo
e telha, cavando os alicerces e fazendo aterro com o carrinho de mão”.

O tema do boletim que envolveu gênero e trabalho foi publicado


em abril Ano 6, no qual indagou: “por que não reconhecem a profissão
de Pescadeira?” (O LEME, 1978). Na capa, há uma ilustração de uma mulher
com um peixe. Informou sobre as reuniões que estavam programadas para
Itapissuma, Itamaracá e Ponte dos Carvalhos. Noticiaram que foi decidido
que, em Itamaracá, as pescadoras vão se reunir todos os meses, um mês em
cada localidade; que as pescadeiras de Ponte dos Carvalhos darão notícias das
reuniões, e que entrarão em contato com outras marisqueiras. A pauta principal
delas foi doenças/INPS e Sociedade Mútua e Sindicato, INPS, FUNRURAL, a
falta de direitos e a convocação a lutar por todos.

A publicação de maio Ano 9, relatou sobre uma reunião na qual estavam


presentes 86 pescadoras das colônias Z-04 (Acaú), (Goiana e Tejucupapo) Z-11
(Itamaracá), Z-10 (Itapissuma, Igarassu, Cuieiras) e Z-08 (Pontezinha e Ponte dos
Carvalhos) (O LEME, 1981). O principal assunto abordado foi a importância da
Colônia para a organização dos pescadores(as) como classe de trabalhadores(as)
para a conquista de direitos. Após o debate, as pescadoras chegaram a algumas
conclusões acerca do que precisavam fazer para ter uma colônia que, de fato,
trabalhasse em benefício dos(as) pescadores(as). Alguns ficaram responsáveis
por multiplicar em suas localidades as questões e conclusões da reunião (p.7).

O boletim em julho Ano 12, trouxe a informação da ascensão de uma


mulher ao cargo de presidente da Colônia de Pescadores (O LEME, 1984). Por
motivo de doença, o presidente da Z-10 renunciou, assumindo a secretária,
Margarida Mousinho. O texto informou que a nova presidente enfrentou muito
machismo, principalmente dos pescadores mais velhos, mas seguiu fazendo o
seu trabalho.

No mês de março, Ano 13, informou que as mulheres de Itapissuma,


pela escassez de crustáceos, estavam trabalhando na construção, na função
de pedreiras, em obras da prefeitura e na limpeza urbana, mas continuaram
na mobilização política, não faltando às reuniões da Colônia de Pescadores (O
LEME, 1985).
105 O leme: histórias e lutas das pescadoras

VULNERABILIDADE DAS TRABALHADORAS DA PESCA NO BOLETIM O


LEME

Questões que comprometem a saúde, assim como doenças


causadas pelas atividades laborais19, também foram narradas pelo periódico, e
apareceram a partir das denúncias das pescadoras nas reuniões com os agentes
da pastoral. A fome, a miséria, o trabalho em condições precárias e a poluição
surgiram como as principais causas.

Antes mesmo de serem reconhecidas pela Marinha de Guerra como


profissionais da cadeia produtiva da Pesca Artesanal, Ano 2, trouxe uma
retrospectiva de uma reunião na qual houve debate sobre as demandas das
pescadoras. Dentre os principais problemas por elas listados, estavam:

As suas condições de trabalho são muito mais


miseráveis, pescando no mangue, entrando
na lama às vezes até o pescoço, parecem mais
caranguejos do que pessoas humanas; a renda
da pescadora é ainda mais baixa do que a do
homem; Águas poluídas e insetos prejudicam
seriamente sua saúde; Elas não têm nenhuma
segurança porque não estão inclusas na lei de
previdência social (O LEME, 1974, p.4).

Stadtler (2013, p.1) destaca que as “pescadoras brasileiras têm em


comum com outras trabalhadoras a histórica luta pela sustentabilidade da
pesca como economia familiar, direitos trabalhistas e previdenciários e ainda
a constante luta em combate à poluição e degradação ambiental”. A autora
segue elencando alguns problemas que, historicamente, contribuem para
as adversidades das pescadoras, tais como: “a ausência de saneamento, o
derramamento químico de indústrias e agrotóxicos, o lixo que somados a falta
de fiscalização pública originam uma poluição tal que traz para as pescadoras
consequências sérias para saúde”.

Na publicação de junho, Ano 8, problematizou as desigualdades sociais


a partir do Artigo II – Declaração Universal Dos Direitos Humanos: “todo
homem tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal” (O LEME, 1980).
Uma mensagem elaborada por meio de uma história em quadrinhos chamou a
atenção para a fome e a miséria, suas causas e consequências. Na página oito
dessa edição, foi contada a violência de classe e gênero que duas pescadoras
de Itapissuma sofreram ao serem agredidas e ameaçadas por seguranças de
uma fábrica, consequência da privatização dos acessos aos locais de pesca.

19. Tema de uma pesquisa coordenada pelo Grupo de Pesquisa Desenvolvimento


e Sociedade - GPDESO, com o apoio da UFSC, UFBA, UFPA e UFPB, o qual realizou
grupos focais com pescadoras de Colônias de Pescadores de Pernambuco,
Santa Catarina, Paraíba e Pará. Os resultados da pesquisa foram publicados na
cartilha Gênero e Pesca Artesanal em Leitão (2012); no artigo: Gênero, Pesca e
Cidadania em (LEITÃO, 2013).
Socioantropologia de Povos e Comunidades Tradicionais Costeiras e Ribeirinhas 106

No mês de julho, Ano 15, descreveu nessa edição o Relatório da V


Assembleia Nacional do CPP (O LEME, 1987). O texto fez um resumo das pautas
da reunião e destacou a estratégia de provocar pescadores e pescadoras
a trazerem símbolos da sua situação de vulnerabilidade e abandono: “Uma
pescadeira se apresentou, ela mesma símbolo e discriminação da mulher tanto
na pesca como na organização da categoria”.

As mulheres foram o tema da edição de maio do Boletim Ano 16,


quando divulgou notícias dos trabalhos do CPP em diversas partes do Brasil e
destacou a “Vitória das mulheres na Ilha de Deus, Recife, PE” (O LEME, 1988). O
texto contou a conquista, liderada pelas mulheres da Ilha após conseguirem20
a construção da passarela que liga o local ao bairro da Imbiribeira. O nome da
passarela escolhida pela assembleia do Conselho dos moradores foi “Vitória
das Mulheres”.

A presença ativa das mulheres nas Colônias de Pescadores foi tema


da edição de agosto do boletim (O LEME, 1988), Ano 16, que apresentou em
destaque as notícias sobre a importância da conquista das colônias como
entidade de representação de classe e sobre a constituinte. Chamou a atenção
que, no dia 31 de julho do corrente ano, 40 mulheres pescadoras de várias
praias de Pernambuco reuniram-se para fortalecer o engajamento político das
Colônias.

O Boletim de junho Ano 23, tratou da conjuntura política no Brasil


no período do governo de Fernando Henrique Cardoso e dialogou com
os objetivos do milênio (O LEME, 1997). Destacou a notícia do reinício das
atividades na Colônia Z-8 de Gaibu-PE, sob o comando de Josefa Ferreira Silva.

No mês de dezembro, Ano 32, informou que foi um ano importante


no processo de mobilização das pescadoras (O LEME, 2004). Na primeira
página, o boletim enfatizou a mobilização das pescadoras da Bahia no Encontro
Estadual de Mulheres Pescadoras e no Encontro Nacional. Na página três,
houve um texto intitulado “Participando sem medo de ser mulher”, no qual a
coordenado do CPP da Bahia, Maria José Pacheco, relatou a mobilização das
mulheres nos encontros estaduais, organizados pela Secretaria Especial da
Pesca e Aquicultura e no Encontro Nacional das Pescadoras, no qual afirma
que “as mulheres debateram com vigor suas demandas”. O texto ressaltou
que: “As pescadoras ousaram não só em propor mudanças de procedimento
e comportamento do poder público, como também propuseram alteração da
legislação onde está invisibilizado os seus direitos”.

Em síntese, as narrativas que dizem respeito às mulheres pescadoras


estão incluídas em 36 do total de 120 publicações identificadas e analisadas. No
texto elaborado, destaca-se, dentre os principais temas que são abordados, a
luta das mulheres para se legitimar enquanto pescadoras e pela sua inserção
em espaços de luta, seja na Colônia, Federações e Confederação, ou em
sociedades beneficentes. É importante atentar para o quanto ainda é atual a
situação de vulnerabilidade das pescadoras, inclusive no que diz respeito ao
agir governamental, que insiste em impor barreiras ao reconhecimento e ao

20. A publicação foi suspensa de 1993 a 1997.


107 O leme: histórias e lutas das pescadoras

empoderamento dessas mulheres, como é o caso do decreto nº 8. 425, de 31 de


março de 2015, e publicado em abril, modificando os critérios e exigências para
a obtenção da carteira de pescadora profissional, expedida pela Ministério da
Pesca e Aquicultura e, assim, dificultando ainda mais o acesso dessas mulheres
a recursos e políticas públicas. Com relação a essa realidade, (GERBER,2013,
p.41) afirma:

É muito interessante pensarmos que o estado


brasileiro, ao mesmo tempo em que dispõe
de uma Secretaria Especial dos Direitos da
Mulher, que preconiza a igualdade, a simetria
dos direitos, em outras dimensões, como o
Ministério da Pesca e o INSS, por exemplo, tem
dificuldade em reconhecer estes direitos como
iguais invisibilizando mulheres que estão em
certos espaços concebidos como masculinos,
por partir do pressuposto que, ali, elas não
poderiam estar.

Em 2016, a Secretaria Especial de Políticas Para as Mulheres e o


Ministério da Pesca e Aquicultura (MPA) foram aglutinados pelo Ministério das
Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos e pelo Ministério da
Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA), respectivamente, evidenciando
o parco comprometimento do governo com essas pautas. Posteriormente, no
atual governo, foram extintos os ministérios que, de certa forma, conduziam
as demandas das pescadoras: Ministério do Trabalho, Ministério da Pesca e
Aquicultura e Secretaria de Políticas para as Mulheres, afetando lutas históricas
dos movimentos feministas e expondo o conservadorismo e a ausência de
empenho do poder legislativo em erradicar as violências de gênero no trabalho.

CONCLUSÃO

A análise das notícias do boletim O LEME consistiu em uma contribuição


aos estudos sobre as mulheres, a qual revelou que havia uma preocupação
dos agentes do CPP com as condições ainda mais problemáticas das mulheres
pescadoras. As trinta e seis notícias e reflexões identificadas e mapeadas sobre
essas mulheres mostram a tendência da instituição em promover suas lutas
por direitos e pela ocupação de espaços de poder e decisão. O trabalho de
assistência da pastoral, certamente, foi impulsionador de organizações políticas
e de conquistas das pescadoras, e o boletim foi um importante instrumento de
ressonância e difusão dessas movimentações.

Contudo, também é importante destacar que as demandas das


mulheres eram apenas uma das pautas do boletim e do trabalho do CPP.
As atividades da pastoral, principalmente durante as décadas de 1970 e
1980, período com maior número de exemplares dos boletins investigados,
eram voltadas para demandas muito básicas, uma vez que grande parte dos
pescadores e pescadoras não sabia ler e escrever, não possuíam documentos
e estavam sob a tutela do Estado ditatorial, sem ao menos representantes
legítimos ocupando a presidência das Colônias, Federações e Confederação.
Essa conjuntura tornava as necessidades e reivindicações ainda mais distantes
Socioantropologia de Povos e Comunidades Tradicionais Costeiras e Ribeirinhas 108

de serem alcançadas, isto é, a luta se concentrava em questões primárias, como


a superação da miséria.

A pesquisa também revelou que a retórica religiosa do boletim torna


o discurso com relação à emancipação e ao empoderamento das mulheres
reticente. Ora busca a ruptura dos padrões machistas na pesca, ora naturaliza
os padrões de comportamentos sexistas e patriarcais, criando um paradoxo de
ruptura e conservadorismo.

Um exemplo contundente dessas contradições está na edição de


setembro (O LEME, 1979), na qual há uma afirmação que reforçou o patriarcado
e a naturalização da concepção de que a mulher deve ser cuidadora, abnegada,
incompleta, que só se torna digna de respeito se estiver ao lado de um homem:
“A mulher é a beleza do homem. Ela se sente muito feliz ao lado dele, pois
ele é uma segurança para ela. Se ela tem um companheiro, todo mundo
respeita”. Nesse sentido, as conclusões do boletim acabam por reforçar o
papel coadjuvante da mulher e seu lugar eminentemente pertencente à esfera
doméstica, do cuidado.

Não obstante, o boletim também incentivou a participação política


das mulheres nas colônias e outras instâncias de decisão. Um exemplo relevante
está na edição de setembro (O LEME, 1982, p.10) Ano 10, na qual são ilustradas
quatro pirâmides hierárquicas para esboçar como a sociedade é dividida em
classes e estamentos. Em uma delas, apareceu a pirâmide da família, na qual o
homem estava no topo, seguido pela mulher e pelos filhos. Na mesma página,
a publicação teceu uma crítica a essas estruturas de opressores e oprimidos, e
afirmou: “O reino dos céus é como uma grande ciranda”. Apesar disso, notamos
que esses posicionamentos são parcos e espaçados, ou seja, o boletim não
expressava uma rejeição consistente ao machismo. A narrativa era reticente
quanto à crítica ao patriarcado, ficava sempre por dizer que o machismo deveria
ser combatido e superado, em contradição ao excelente trabalho de assessoria
às pescadoras para conquistarem seus direitos e melhores condições de vida.

Ainda assim, é inegável a contribuição do CPP e do boletim O LEME


para algumas conquistas das mulheres no cenário da pesca, principalmente se
considerarmos que a instituição esteve presente com assistência e assessoria
onde o Estado não era apenas ausente, mas repressor e lesivo. Nesse sentido,
avaliamos que ações como a da irmã Nilza Montenegro, em Itapissuma, foram
significativas à organização e à luta dessas mulheres.

Por fim, podemos inferir que a situação das mulheres pescadoras


continua sendo mais precária dentro de uma atividade marcada historicamente
por estar à margem da política econômica governamental, ainda que sem
os trabalhos delas, seja na esfera doméstica ou nas demais etapas da cadeia
produtiva, a pesca não se reproduza (GERBER, 2013). Esses estudos sobre as
mulheres pescadoras, a partir da epistemologia feminista, evidenciam que é
necessário, com urgência, que as mulheres sejam vistas e contempladas por
políticas públicas, que saiam da “invisibilidade”, imposta não apenas pelas
relações generificadas na pesca, mas pelo próprio Estado, e que elas sejam
legitimadas enquanto pescadoras, e não apenas como esposas, filhas ou
parentes de pescadores.
109 O leme: histórias e lutas das pescadoras

Possivelmente, devido à história de lutas das pescadoras em


Pernambuco, é nesse estado que se operacionaliza a primeira política pública
com transversalidade de gênero, o Chapéu de Palha da Pesca Artesanal. Mas
esse é um tema para um próximo artigo.
Socioantropologia de Povos e Comunidades Tradicionais Costeiras e Ribeirinhas 110

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O cultivo de ostra do mangue pelos potiguara no litoral norte da Paraíba 114

O CULTIVO DE OSTRA DO MANGUE PELOS POTIGUARA NO


LITORAL NORTE DA PARAÍBA: ALTERNATIVA PRODUTIVA E
SUSTENTABILIDADE

Fabiana Bezerra Marinho


Instituto Federal da Paraíba

Maristela Oliveira de Andrade


Universidade Federal da Paraíba

Maria Cristina Crispim


Universidade Federal da Paraíba

INTRODUÇÃO

A redução contínua dos recursos marinhos ocasionada pela


exploração intensiva e pela poluição ambiental nos ecossistemas costeiros
vem dificultando a manutenção da pesca como atividade econômica. Diante
desta realidade, muitas comunidades pesqueiras têm buscado outros meios
alternativos para a sua subsistência com práticas mais sustentáveis, surgindo
neste cenário a aquicultura, que é o cultivo de organismos aquáticos de forma
controlada (SIQUEIRA, 2017), em especifico, trataremos neste trabalho a
ostreicultura (cultivo de ostra), um ramo da aquicultura que tem se destacado
como uma atividade viável economicamente, ambientalmente e socialmente
(GOMES et al., 2008), caracterizada como uma inovação adotada pelos
pescadores artesanais para complementar a renda familiar.

O fato de a pesca ter diminuído, afetando a atividade econômica


das comunidades pesqueiras, fez com que outras formas de renda fossem
buscadas, sendo a ostreicultura um teste inicial. As pessoas da comunidade
estão em empregos esporádicos como o corte de cana e a construção civil, e
a aquicultura surgiu como uma oportunidade próxima à atividade de pesca,
exercida anteriormente, principalmente por ser exercida no meio aquático, mais
relacionado com o seu modo de vida tradicional.

Segundo Pereira e Rocha (2015), a ostreicultura é uma atividade


basicamente extrativista que requer mão de obra familiar e manejo no trabalho
de extração, crescimento e engorda, além de que a maioria dos sistemas de
cultivos ocorre de forma rudimentar, é de baixa impacto e o trabalho é manual
(BORGHETTI; SILVA, 2008).

O litoral Norte da Paraíba caracteriza-se por apresentar áreas


protegidas de estuários e mangues com excelentes condições ambientais para
a produção de espécies marinhas e com enorme potencial para o sustento
das populações indígenas de pescadores e marisqueiras que vivem em zona
de sobreposição de Área de Proteção Ambiental e a Terra Indígena Potiguara
(CARDOSO; GUIMARAES, 2012).
115 Socioantropologia de Povos e Comunidades Tradicionais Costeiras e Ribeirinhas

Porém, cabe ressaltar que a presença dessas áreas protegidas sugere


que o bom estado de conservação desta parte do litoral se deve à ocupação pela
população indígena da etnia Potiguara por séculos. Desta maneira, o processo
de urbanização das praias e apropriação pelo turismo não são observados com a
mesma intensidade que em outras áreas litorâneas como o litoral sul da Paraíba
ou do Rio Grande do Norte. Conforme Tureck e Oliveira (2003), os ecossistemas
costeiros sofrem grande pressão antrópica, seja pela ocupação urbana,
desmatamento, extração mineral, indústrias, atividades portuárias e turismo.
Muito embora o desmatamento também venha ocorrendo nesta porção do
litoral, devido ao plantio de cana-de-açúcar nas terras indígenas retomadas das
usinas do entorno, através da abertura de tanques de carcinicultura, além da
recorrente extração de madeira para carvão e para construções.

Neste estuário existem atividades pesqueiras praticadas em escala


familiar que são realizadas por comunidades que habitam nas margens do
Rio Mamanguape ou nas localidades próximas. A pesca artesanal entre os
índios Potiguara no litoral norte da Paraíba vem sofrendo transformações há
três décadas com a introdução da carcinicultura, piscicultura e ostreicultura.
Dentre as principais atividades presentes nos municípios da região estuarina
do presente estudo estão aquelas relacionadas com a pesca, a carcinicultura,
a captura de caranguejos e mariscos, além da extração e o cultivo artesanal
de ostras (CARDOSO; GUIMARÃES, 2012). Esta última atividade surge como
alternativa produtiva em função das dificuldades no âmbito das atividades
extrativistas da pesca artesanal com a diminuição do pescado.

O cultivo de ostra ocorre em uma APA sob jurisdição do IBAMA e


ICMBio e da legislação do Sistema Nacional de Unidades de Conservação -
SNUC (2000), em sobreposição com a Terra Indígena Potiguara, inserida
na Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental das Terras Indígenas
– PNGATI (2012). Política que resultou de discussões amplas com lideranças
indígenas e antropólogos que participaram da sua elaboração, sob a iniciativa do
Ministério do Meio Ambiente. As duas políticas revelam um consenso em torno
do princípio da sustentabilidade. Apesar de reconhecer a densa crítica social e
política em torno deste conceito associado ao desenvolvimento sustentável, a
sustentabilidade será tomada aqui a partir da noção de comunidade sustentável
(DIEGUES 1992), que se confronta com a noção de desenvolvimento atrelado ao
crescimento capitalista que não elimina, mas gera pobreza.

O presente trabalho visa analisar o sistema produtivo da ostreicultura


Potiguara, a partir do perfil dos produtores e suas unidades familiares sob
a perspectiva da sustentabilidade. Pretende contribuir com informações
relevantes para dar continuidade aos estudos anteriores (CAVALCANTI, 2013;
VIEIRA, 2014) sobre o contexto em que se dá a atividade de produção e o
quadro socioeconômico dos produtores familiares de ostras inseridos no Litoral
Norte da Paraíba.

CARACTERIZAÇÃO DA ÁREA DE ESTUDO E METODOLOGIA

Há cerca de uma década a ostreicultura foi inserida no estuário do


Rio Mamanguape em duas aldeias Potiguara, sendo escolhida a mais recente
para este estudo por preservar melhor o caráter artesanal. O primeiro cultivo
O cultivo de ostra do mangue pelos potiguara no litoral norte da Paraíba 116

de ostras pelos Potiguara surgiu em Porto de Marcação na aldeia Três Rios, e


alguns anos depois em Porto Novo na aldeia Jaraguá. Trata-se dos ostreicultores
indígenas Potiguara da aldeia Jaraguá na localidade Porto Novo, município de
Rio Tinto, pertencente à Terra Indígena de Montemor, situada dentro da Área de
Proteção Ambiental da Barra do Rio Mamanguape-PB, nas margens do Estuário
do Rio Mamanguape, Litoral Norte do Estado da Paraíba sob a administração
do IBAMA e do ICMBio, e da organização indígena Potiguara com apoio da
FUNAI (CARDOSO; GUIMARÃES, 2012).

O sistema produtivo praticado nas margens do Estuário do Rio


Mamanguape pelas comunidades de Porto Novo e Porto de Marcação consiste
em um sistema de engorda de ostras do mangue (Crassostrea sp.) em sistema
fixo praticado em mesas (Porto Novo) ou em travesseiros de forma suspensa
(Porto de Marcação). Os produtores coletam os animais já adultos na natureza
a partir do tamanho mínimo de 5 cm (ostras jovens) e realizam a engorda dos
mesmos em sistemas artificiais na região entre-marés.

Os Potiguara da Paraíba contam com uma população de


aproximadamente 14 mil indígenas entre habitantes das aldeias e das cidades
de Baía da Traição, Marcação e Rio Tinto. Seu território situa-se no Litoral Norte
da Paraíba, entre os rios Camaratuba e Mamanguape e é constituído por 32
(trinta e duas) aldeias distribuídas em três TI (terras indígenas): a TI Jacaré de
São Domingos tem 5.032 ha, demarcada e homologada em 1993; a TI Potiguara
com 21.238 ha, demarcada em 1983 e homologada em 1991; e a TI Potiguara de
Montemor, com 7.487 ha, demarcada em 2007 (Portaria 2.135 do Ministério da
Justiça) e ainda em processo de homologação (CARDOSO; GUIMARÃES, 2012).
Os produtores de ostras são índios Potiguara da aldeia Jaraguá que conta com
uma população de 1.328 indígenas (Fonte: SIASI/SESAI/MS, 2018).

O Estuário do Rio Mamanguape fica entre as latitudes 6°41’57’’ e


7°15’58’’ sul e longitudes 34°54’37’’ e 36° a oeste de Greenwich (RODRIGUES
et al., 2008). Limita-se ao norte com a bacia do Rio Curimataú, a oeste com
as bacias do Curimataú e do Paraíba, ao sul com a do Rio Paraíba e a leste
com o Oceano Atlântico. Apresenta como principal o Rio Mamanguape, de
regime intermitente, que nasce na microrregião do Agreste da Borborema e
desemboca no Oceano Atlântico no município de Rio Tinto (SANTOS, 2015).

Para o georreferenciamento da área e coleta de dados da pesquisa


utilizou-se um aparelho de posicionamento via satélite (GPS) portátil modelo
Garmine Etrex Legend, para o mapeamento dos principais locais de cultivo de
ostras na região (Figura 01). Posteriormente, os dados foram descarregados e
pré-editados no programa Trak Maker (versão 13.9). Para a edição final, cálculos
espaciais e geração dos cartogramas de representação foi utilizado o programa
QGIS (versão 2.18.1 Las Palmas), tendo como fonte de referência as Bases
Cartográficas ‘Brasil ao Milionésimo’ (1:1.000.000) - IBGE, 2000 e (1:25.000)
- IBGE, 2017, além de dados espaciais (poligonal das TIs) da FUNAI, 2017. O
mapeamento foi utilizado como ferramenta para construir o diagnóstico da
ostreicultura familiar na região estudada (Figura 1).
117 Socioantropologia de Povos e Comunidades Tradicionais Costeiras e Ribeirinhas

Figura 1 - Localização da área pesquisada evidenciando a localidade de coleta de


dados, no estuário do Rio Mamanguape, Litoral Norte da Paraíba.

Fonte: Elaborado por João Rosa, 2018.

A metodologia utilizada foi qualitativa com uma pesquisa de campo de


cunho etnográfico, com entrevistas semiestruturadas e observação participante
junto aos produtores na área dos cultivos de ostra. Além das entrevistas
foi usado um questionário elaborado com base no modelo desenvolvido
por Mafra (2007) e Santos et al. (2017), em pesquisa com ostreicultores de
Guaratuba no Paraná e no Baixo Sul na Bahia, respectivamente, por serem locais
em que a atividade é relevante e por apresentar questionamentos pertinentes
para a presente pesquisa. O questionário permitiu também levantar dados
quantitativos, já que abordava os seguintes temas: dados socioeconômicos
dos ostreicultores; dados ambientais da atividade; dados sobre a origem da
atividade; características gerais do sistema produtivo e sustentabilidade
da atividade (processo produtivo, estimativas de renda, dimensão social e
ambiental da atividade, existência de apoio técnico por parte de algum órgão
ou instituição, participação em associação).

Uma parte dos resultados obtidos nesta pesquisa foram provenientes


da tese de doutorado da primeira autora intitulada “Ostreicultores e
ostreicultura: a sustentabilidade de sistemas produtivos nas zonas costeiras da
Paraíba e de Santa Catarina”, defendida em 2019.

Para a análise qualitativa da sustentabilidade social e ambiental da


ostreicultura levou-se em consideração alguns parâmetros, como a reafirmação
dos aspectos culturais, qualidade de vida e bem estar, através de melhoria de
renda e oportunidades de trabalho na própria terra com participação social.
Assim como parâmetros de ordem ecológica, como integridade do estuário e
conservação da espécie.
O cultivo de ostra do mangue pelos potiguara no litoral norte da Paraíba 118

A pesquisa de campo ocorreu no período de fevereiro a dezembro


de 2018, após aprovação pelo Comitê de Ética (Parecer nº 2.481.280, de 02 de
fevereiro de 2018), através da aplicação de um questionário semiestruturado,
com um total de oito produtores de ostras (ostreicultores) Potiguara da
comunidade de Porto Novo (aldeia Jaraguá, município de Rio Tinto/PB).

As entrevistas foram realizadas individualmente e tiveram duração


de 30 a 60 minutos, na área produtiva e a conversa foi realizada de forma a
permitir a espontaneidade e liberdade de expressão do entrevistado. Foram
consideradas também as observações visuais feitas em campo com visitas de
barco às estruturas de cultivo e por meio de registros fotográficos, para ouvir
as explicações sobre o sistema de cultivo, além de conversas informais com os
ostreicultores, utilizadas para confirmar as informações obtidas no questionário
e para contribuir na construção do cenário da ostreicultura na região.

O CULTIVO DE OSTRAS NA TI POTIGUARA: PERFIL DOS PRODUTORES

Para caracterizar a ostreicultura local iniciou-se a apresentação dos


dados com os relatos dos produtores quanto ao início da atividade na localidade
de Porto Novo que variou entre 3 e 5 anos. A maioria dos produtores relataram
que já fazia o extrativismo de ostra há mais de 10 anos.

Segundo relato do ostreicultor (S., 38 anos), a ideia de realizar o


cultivo em Porto Novo veio através do experimento realizado pelo SEBRAE
com sementes de ostras, através do projeto Aquinordeste no ano de 2015,
promovido em parceria com a Associação Produtiva da Comunidade Indígena
do Município de Marcação com dez pescadores, realizado durante o período
de 18 meses.

Na visão do ostreicultor o projeto do SEBRAE não deu muito certo,


conforme relato:

O estudo com a semente da ostra durou um ano


e meio, porém a mortalidade delas foi muito
grande, devido ao crescimento da semente ser
lento (S, 36 anos, aldeia Três Rios, Marcação/
PB, 2018).

Foi a partir desse aprendizado que surgiram os primeiros cultivos em


Porto Novo, entretanto, se preferiu adotar o cultivo a partir do extrativismo
das ostras jovens, devido ao crescimento a partir da semente ser muito longo.
Os produtores de Porto Novo adotaram o sistema de cultivo de ostras do tipo
mesa fixa (Figura 2), obtendo bons resultados de crescimento, sendo adotado
até hoje nesta localidade.

Foram entrevistados oito ostreicultores da comunidade de Porto


Novo (aldeia Jaraguá, município de Rio Tinto), ou seja, 100% dos produtores.
Dentre os entrevistados verificou-se a predominância masculina na atividade
(83,3%), valor próximo ao encontrado por Machado et al. (2010), ao estudar o
119 Socioantropologia de Povos e Comunidades Tradicionais Costeiras e Ribeirinhas

perfil socioeconômico e produtivo dos extrativistas da ostra de mangue em


Cananéia-SP, mostrando a pequena inclusão feminina nesta atividade.

Foi observado na pesquisa de campo que existem duas mulheres


envolvidas na atividade ostreicultora que possuem uma unidade produtiva
familiar, que além de exercerem esta prática, comercializam ostras na feira livre
de Mamanguape e Rio Tinto/PB e o subproduto da concha processada “farinha
da ostra” como produto medicinal “indicado para problemas de osteoporose”
(B, 68 anos, Porto Novo/PB, 2018). As mulheres mencionadas são mãe (viúva)
e filha, esta última tem como parceiros na atividade o marido e os dois filhos.

Deste modo, pode-se inferir que a experiência acumulada ao longo


dos anos na pesca artesanal é passada de mãe para filha ou de filha para os
netos (SILVA, 2011) através de transmissão intergeracional.

Como a atividade da ostreicultura requer muito esforço físico


para a construção das estruturas de madeira e para a extração das ostras,
justifica-se o baixo número de mulheres envolvidas nesta atividade, embora
as duas demonstrassem grande habilidade na coleta de madeira do mangue
e no manejo com os barcos e as ostras. Com isso, adquiriram o respeito dos
companheiros ostreicultores da região. O trabalho que requer maior esforço
físico geralmente é realizado pelos homens, principalmente os relacionados
com a construção e manejo das estruturas de cultivo e a coleta de ostras de
mergulho de apneia no mangue.

Quanto ao tipo de ocupação anterior, 100% dos ostreicultores foram


ou ainda são pescadores artesanais com prática na coleta de caranguejo e
outros moluscos o que favoreceu a adoção desta atividade, já que requer o uso
de barcos e o mergulho para extração das ostras.

A faixa etária variou de 36 a 68 anos, sendo que a maior parte dos


ostreicultores (62,5%) tem idade compreendida entre 36 e 45 anos, seguida do
grupo com idade entre 46 a 55 anos (25%). Apenas uma ostreicultora apresenta
idade acima de 55 anos. Quanto ao estado civil, a maioria dos entrevistados
declarou ser casada (62,5%).

Outra unidade familiar merece destaque por ser formada pelo único
ostreicultor com curso superior em nutrição (UnB) e o pai, já que a metade
dos ostreicultores Potiguara possui apenas o ensino fundamental. Esta unidade
revelou potencialidade de aprimorar o sistema produtivo no sentido de
melhorar a qualidade sanitária e nutricional das ostras. E, devido à proximidade
dos outros produtores, poderá influenciar os demais a aprimorar os cultivos, e
concretizar planos do ostreicultor nutricionista, como a criação de uma festa da
ostra local para divulgar o produto.

Mesmo com problemas de roubo e a falta de melhor escoamento


da produção, todos os ostreicultores falaram que pretendem expandir o seu
cultivo, aumentando a sua produção ou as estruturas de cultivo.
O cultivo de ostra do mangue pelos potiguara no litoral norte da Paraíba 120

O SISTEMA DE CULTIVO EM PORTO NOVO: UNIDADES PRODUTIVAS

O cultivo de ostras pesquisado está inserido no Estuário do Rio


Mamanguape e é exercido pela comunidade de Porto Novo, constituído por
um sistema de engorda de ostras do mangue (Crassostrea sp.) em sistema fixo
do tipo mesa suspenso, como já mencionado (Figura 2, A e B).

Os produtores coletam as ostras jovens a partir do tamanho mínimo


de 5 cm e realizam a engorda em sistemas artificiais na região entre marés.
Essa técnica de coleta com o tamanho da semente maior diminui o tempo de
crescimento no cultivo (MONTE GRADVOHL, 2014).

As ostras retiradas do mangue são obtidas por meio de mergulhos


e retiradas do fundo, sem estar fixas em substratos. Em algumas unidades
produtivas a extração das ostras é feita por parentes indígenas em troca de
pagamento por unidade extraída. Todos os entrevistados informaram que não
usam coletores artificiais para a obtenção das sementes e só realizam a coleta
das ostras no mangue e a engorda nas estruturas de cultivo.

Na unidade de cultivo em Porto Novo, os produtores contam com


pequenas construções nas margens do manguezal, em local denominado por
eles de “porto”, para guardar todo o material e equipamentos dos cultivos, já
que suas moradias se situam distantes desta área. (Figura 2, D).

Figura 2 – Sistema suspenso fixo tipo mesa adotado em Porto Novo no Estuário do Rio Mamanguape (A);
preparação da mesa feita de varões de madeira fixados em cordas e rede náilon (B); Vista dos cultivos
submersos (C); Vista aérea (VANT-drone) de Porto Novo com as construções (D).

A B

C D

Fonte das fotos (figura 2): Fotos A, B, C (Fabiana Bezerra Marinho, 2018); D (André Luis da Silva);

Conforme dados da pesquisa (Tabela 1), no que se refere à densidade


média de ostras, há uma variação da quantidade colocada por produtor nas
estruturas de cultivo em função da estação do ano. A maioria dos produtores
121 Socioantropologia de Povos e Comunidades Tradicionais Costeiras e Ribeirinhas

respondeu que no período de alta (setembro a novembro e de março a abril)


- quando há um maior crescimento das ostras no cultivo, a produção chega
a atingir 1.500 ostras/semana/ostreicultor. No período de baixa (dezembro a
fevereiro e de maio a agosto) - período de menor crescimento das ostras, a
produção chega a atingir 1.000 ostras/semana/ostreicultor.

Segundo informações dos produtores, no período de inverno,


quando a demanda por ostras é maior, nem todos os ostreicultores de Porto
Novo conseguem produzir a quantidade solicitada pelo atravessador. Nesse
caso, o ostreicultor que tem o cultivo maior é o que oferece a maior quantidade
de ostras. Muitas vezes eles não conseguem manter a média de produção
de 1.500 ostras/semana/ostreicultor, mas conseguem obter com a ajuda dos
demais, conforme relato:

No inverno a demanda é maior, porque os


atravessadores exigem uma ostra grande para
ser vendido nos restaurantes, pois no inverno
o pessoal não vai para as praias, vai tudo para
os restaurantes; eu mesmo nessa época tenho
uma demanda pra venda de mil ostras por
semana, mas não consigo manter, e muitos
aqui também não conseguem, aí nós divide:
pega 200 de um, 300 de outro, 400 de outro
e assim por diante. E também nesse período a
ostra não chega ao padrão rápido para manter
a demanda, pois o crescimento delas fica bem
atrasado nessa época. (P.G, 42 anos, Porto
Novo/PB, 2018).

Todos os produtores de Porto Novo realizam o cultivo através


do sistema de mesa fixa, em que o tamanho de cada estrutura pode variar
de acordo com cada produtor (Tabela 1). A partir dos resultados da pesquisa
observou-se que a maioria dos produtores (n=5) possui cultivo entre 15m2 e
40m2, dois produtores possuem cultivos de 60m2 e apenas um possui cultivo
de 170 m2.

De acordo com o número total de ostreicultores, ficou constatado


que a produção média anual de ostras em Porto Novo foi de 42.650 ostras, o
equivalente a 3.554 dúzias (Tabela 1), necessitando examinar comparativamente
fatores que favorecem o crescimento nesta e noutras localidades. Essa
produção pouco significativa se comparada a outras regiões que praticam esta
atividade pode estar relacionada com o tempo médio de exercício da atividade
pelos produtores, pois de acordo com Souza (2014), quanto mais tempo de
cultivo, mais produtivos eles se tornam, ou seja, a persistência e experiência dos
produtores no ramo podem influenciar nos valores de produção.
O cultivo de ostra do mangue pelos potiguara no litoral norte da Paraíba 122

Tabela 1 - Dados referentes ao sistema de cultivo, densidade/


produção de ostras, tamanho do cultivo, fonte de renda e produção
média dos ostreicultores da comunidade de Porto Novo, estuário do
Rio Mamanguape, 2018.

Sistema de
Densid. / Tamanho do cultivo Produção
cultivo Fonte de renda
prod. (aprox. m2) (n) média

30 m (15 m cada) (2) *

1.000 a 30 m (4,5 x 1m cada) (1) * Ostreicultura (3) *


Mesa fixa 1.500 16 m (2 x 1m cada) (1) * Ostreicultura e pesca (3) * 42.650
suspensa ostras/ 40 m (3 x 1m cada) (1) * Ostreicultura e agricultura ostras/ano
submerso
mesa 60 m (3 x 1 m cada) (2) * (2) *

170 m (2 x 1 m cada) (1) *

* Número amostral de ostreicultores (n).


Fonte: Dados da pesquisa, 2018.

No que diz respeito à quantidade de horas de trabalho, a maioria dos


entrevistados respondeu que o trabalho com o cultivo de ostras fica em torno
de 3 a 5h diárias e que depende muito da maré, e ainda, tem aqueles produtores
que dedicam mais tempo na atividade (8h/dia). O tempo de dedicação com a
atividade demonstra a importância desta para aquela família, porém muitas
precisam dedicar seu tempo para realizar esta atividade em combinação com
outras, para assim complementar a renda. O produtor que possui a unidade
produtiva maior com maior número de mesas e ostras, tinha a ostreicultura
naquele momento como atividade exclusiva, daí o número de horas trabalhadas
ser maior do que os demais. Trabalho semelhante foi diagnosticado por Santi
(2006) em seu estudo, que constatou que 35,5% dos malacocultores trabalham
em média de quatro a cinco horas diárias e 25,8% trabalham de duas a três
horas.

Quando questionados sobre a fonte de renda, 37,5% (n=3)


responderam que a principal fonte de renda vem da ostreicultura, enquanto
37,5% (n=3) informaram que além da ostreicultura também praticam a pesca,
enquanto 25% (n=2) responderam que que a renda principal vem da agricultura
e que a ostreicultura é considerada como uma atividade complementar à renda
familiar (Tabela 1). A atividade de ostreicultura, como alternativa complementar
à renda familiar, também foi relatada pelos produtores do Baixo Sul da Bahia
(SANTOS et al., 2017).

Pode-se concluir que o número elevado de ostreicultores que


combinam a atividade com outras, resulta da influência da variação da estação
do ano, fatores climáticos, do crescimento das ostras e da demanda ao longo
do ano, fazendo com que muitos produtores não tenham como sobreviver
apenas da ostreicultura.

Mafra (2007) ao caracterizar a ostreicultura em Guaratuba-PR, estimou


a capacidade de produção dos cultivos em torno de 55 mil a 60 mil dúzias de
ostras por ano (ou 660 a 720 mil ostras por ano), ou seja, uma produtividade
123 Socioantropologia de Povos e Comunidades Tradicionais Costeiras e Ribeirinhas

bem maior que a da área de estudo. A capacidade de produção da infraestrutura


estudada por Monte Gradvohl (2014) no cultivo de ostra em Graciosa-BA foi de
um total de 540 mil ostras por ciclo de 12-15 meses de cultivo, correspondendo
a 16.200 ostras de tamanho grande (igual ou acima de 8 cm).

Souza (2014) em seu estudo sobre a ostreicultura na Bahia obteve


uma estimativa de produção em torno de 45 mil dúzias por ano (ou seja, 540
mil ostras por ano) em três regiões estudadas. O autor levou em consideração
a duração do ciclo produtivo em meses, a quantidade de estruturas de cultivo
(lanternas e travesseiros) de cada produtor e a densidade de estocagem nas
diferentes etapas de cultivo.

De acordo com Monte Gradvohl (2014), o cultivo de ostra nativa


(Crassostrea mangle) no Brasil teve as primeiras experiências no Estado da
Bahia, em 1972, no Canal de Itaparica - Jiribatuba, sendo introduzidos com
o intuito principal de complementação de renda familiar, através do Projeto
MARSOL - Maricultura Familiar Solidária e da Bahia Pesca, da Universidade
Federal da Bahia.

Quando questionados quanto à renda média mensal com o cultivo de


ostra houve variação nas respostas: cinco dos produtores (62,5%) responderam
que ganham R$ 1.000,00; dois (25%) responderam que ganham de R$ 1.000,00
a 1.600,00 e um produtor (12,5%) respondeu que ganha de R$ 500,00. Segundo
relato dos produtores, a variação das respostas quanto à renda mensal é
explicada devido ao período de verão ou inverno, conforme demonstra a fala
de um ostreicultor: “estes valores dependem muito do período: em época de
verão, que é quando tem mais turista e compradores, a renda gira em torno de
R$ 1.000,00 a 1.600 por mês. Na época de inverno, quando é baixa temporada,
a renda fica em torno de 500 a 1.000 reais” (L, 52 anos, Porto Novo/PB, 2018)
Além do fato que há ostreicultores com cultivos maiores e outros com cultivos
menores.

Santos et al. (2017) em trabalho com os produtores de ostras no


município de Valença e Taperoá, Bahia, registraram renda mensal da maioria
dos produtores (75%) entre 1-2 salários mínimos, corroborando com os dados
da presente pesquisa.

Estudo desenvolvido por Nishida et al. (2008) com catadores de


moluscos no Estuário do Rio Paraíba, registrou que a renda mensal da maioria
dos entrevistados foi menor que um salário mínimo e que esses rendimentos
eram inferiores aos de catadores de ostras de mergulho (prática desenvolvida
no Estuário do Rio Mamanguape) e de mariscos (do Porto São Lourenço -
Estuário do Rio Paraíba).

A partir dos relatos dos ostreicultores e contato com o secretário


de Agricultura e Pesca da Prefeitura de Rio Tinto, foi possível observar que
as participações da prefeitura do município e das secretarias municipais na
atividade de ostreicultura têm sido apenas na forma de apoios informais entre
os índios, Funai e ICMBio.
O cultivo de ostra do mangue pelos potiguara no litoral norte da Paraíba 124

Com relação à capacitação, grande parte dos entrevistados da


pesquisa afirmou que nunca fizeram cursos de capacitação e que até o momento
não receberam apoio financeiro ou técnico de nenhum órgão para a construção
dos cultivos e nem para a compra de material de trabalho com as ostras, mas
demonstraram ter interesse na iniciativa. Porém, mesmo não havendo apoio
financeiro, cursos de capacitação e apoio técnico, eles conseguiram expandir
seus negócios por conta própria.

ANÁLISE DA SUSTENTABILIDADE DA OSTREICULTURA POTIGUARA

Para a análise qualitativa da sustentabilidade e suas dimensões social


e ambiental foi adotado o conceito de comunidade sustentável de Diegues
(1992), que defende a ideia de que não se trata de buscar o desenvolvimento
sustentável por estar atrelado à lógica capitalista de crescimento gerador de
desigualdade e pobreza, mas de construir sociedades sustentáveis.

A construção de comunidades e sociedades


sustentáveis deve partir da reafirmação dos
seus elementos culturais e históricos, do
desenvolvimento de novas solidariedades do
respeito à natureza, não pela mercantilização da
biodiversidade, mas pelo fato que a criação ou
manutenção de uma relação mais harmoniosa
entre sociedade e natureza serem um dos
fundamentos das sociedades sustentáveis
(DIEGUES, 1992, p.1,2)

A proposta de sociedade sustentável apresenta-se como um


paradigma alternativo ao desenvolvimento que destaca valores como bem
estar e qualidade de vida, que desta forma converge para a noção de bem viver
(ACOSTA, 2016). O bem viver nasce igualmente como proposta de valorização
da diversidade cultural, especialmente a indígena, e rejeita os projetos de
desenvolvimento com base no crescimento.

Para a análise qualitativa da sustentabilidade social e ambiental da


ostreicultura levou-se em consideração alguns parâmetros, como a reafirmação
dos aspectos culturais, qualidade de vida e bem estar, através de melhoria de
renda e oportunidades de trabalho na própria terra com a participação social.
Também foram levados em consideração parâmetros de ordem ecológica como
integridade do estuário e conservação da espécie.

De acordo com os resultados da pesquisa, todos os ostreicultores


Potiguara da área de estudo eram pescadores artesanais, de modo que a nova
atividade revela uma continuidade e fidelidade a elementos culturais que
convergem para o modo de vida tradicional, e com os arranjos da organização
produtiva familiar que vem fortalecer a construção da comunidade sustentável.
Quando questionados sobre a profissão que exerce, a maioria dos produtores
se identificaram como pescador e ostreicultor e alguns como agricultor,
confirmando os vínculos com modos de vida tradicionais.
125 Socioantropologia de Povos e Comunidades Tradicionais Costeiras e Ribeirinhas

Souza (2014) verificou em sua pesquisa com os produtores de ostras


em três regiões da Bahia, que a grande maioria (93,41%) dos entrevistados
possui outra atividade econômica além da ostreicultura, demonstrando que
ainda não é possível sobreviver apenas com os ganhos provenientes desta
atividade, e que esta serve apenas como complemento.

A atividade de ostreicultura, como alternativa complementar à renda


familiar também foi relatada pelos produtores do Baixo Sul da Bahia (SANTOS
et al., 2017). Isso reflete a necessidade de maior apoio por parte dos órgãos
competentes (FUNAI/ Prefeitura/APA) visto que esta atividade pode ser muito
mais produtiva e garantir melhor qualidade de vida a estas comunidades, além
do aumento de ostra ser também positivo ambientalmente, visto que por serem
animais filtradores agem como biorremediadores no ambiente (EMBRAPA,
2007).

Por outro lado, os relatos quanto à melhoria de vida, a maioria dos


entrevistados de Porto Novo afirmou que, em termos financeiros, o cultivo de
ostras trouxe 100% de melhorias para o sustento da família, e que foi a partir
da atividade da ostreicultura que adquiriram vários bens, como: construção da
casa, a compra de utensílios domésticos, além de auxílio na complementação
nas despesas de casa (água, luz, roupas), conforme relato “com a atividade
comprei televisão, geladeira, moto, construí minha casa” (E., 41 anos, Porto
Novo/PB, 2018).

Estudo semelhante foi encontrado na pesquisa de Moschen (2007)


que identificou que 55% dos entrevistados da Baía da Ilha Grande têm a
maricultura como a sua principal atividade profissional, porém apresentando
um importante papel apenas na complementação da renda familiar. Além disso,
esta atividade vem proporcionando renda adicional pela geração de emprego,
além da fixação das populações tradicionais nas áreas de origem (MOSCHEN,
2007). A atividade fornece também renda para os indígenas extratores de
ostras jovens que vendem aos ostreicultores para engorda.

Apesar disso, foi verificado que a renda obtida com a atividade de


ostreicultura no Litoral Norte da Paraíba ainda é baixa, seja pelo receio de falta
de compradores, seja por falta de apoio técnico. Com isso, surge a necessidade
de incentivo e fortalecimento da manutenção de programas sociais, o que é
importante para que essas pessoas possam ter uma vida mais digna. Desta
maneira, a ostreicultura familiar tem potencial como alternativa de renda, como
já ocorre em outras regiões do país, em que a produção é maior e atividade
principal, desde que recebam o apoio técnico e financeiro para garantir a
sanidade da ostra, visto que podem contaminar-se se o estuário estiver
contaminado.

O tratamento de esgoto doméstico é muito importante, para que


este não alcance as águas do estuário, e isso pode ser feito a baixo custo, com
tratamento domiciliar com a implantação de fossas ecológicas, como Círculos
de Bananeiras, para o tratamento de águas cinzas (servidas) e de Tanques de
Evapotranspiração, para o tratamento de águas negras (do bojo sanitário)
(PAES; CRISPIM, 2014).
O cultivo de ostra do mangue pelos potiguara no litoral norte da Paraíba 126

Do ponto de vista da sustentabilidade ecológica, convém considerar


a racionalidade ambiental proposta por Leff (2009) de uso dos recursos
ecossistêmicos mantendo a sua capacidade de regeneração e reequilíbrio,
de forma a poder continuar a fornecer serviços ecossistêmicos às populações
tradicionais, assim como considerar a importância de valorizar a diversidade
cultural.

Uma vez que na localidade investigada nesta pesquisa não é praticado


o ciclo completo do processo produtivo do cultivo de ostra, os produtores
trabalham apenas com a engorda de ostras extraídas do ambiente natural
local, um problema expressivo na atividade de ostreicultura que é a retirada
excessiva de ostras jovens dos bancos naturais, que apesar de não ser limitante
no momento, poderá sê-lo num futuro próximo. Esse fato ocorre devido a
inexistência de produção de sementes em laboratório na Paraíba, o que faz com
que os produtores da região extraiam as ostras jovens do próprio ambiente,
o que se realizado sem controle pode gerar um grande impacto ambiental,
gerando conflitos entre os produtores e o ambiente. Situação que já começa a
preocupar os ostreicultores Potiguara, porque aponta para insustentabilidade
da atividade a médio prazo. Dessa forma, seria importante a larvicultura de
ostra por Instituições de pesquisa ou que a comunidade seja capacitada para
isso e possa realizar a larvicultura na região.

Cavalcanti (2013) em sua pesquisa sobre a ostreicultura Potiguara


identificou este desconhecimento e considerou de extrema importância a
realização de estudos sobre os períodos de reprodução das ostras, bem como os
pontos mais propícios para a coleta das sementes, além de experimentos sobre
os melhores materiais e formas de se fazer os coletores artificiais na captação
das sementes, na perspectiva de indicar os melhores locais de colocação desses
coletores e que tipos de coletores são mais eficientes na fixação das sementes.
No entanto, isso ainda seria explotação de ostras do ambiente, sendo o ideal a
produção de larvas em cativeiro ou em laboratório.

Callon (1986) investigou a introdução de cultivos controlados de


conchas de vieira em Brest na França nos anos 1970, devido à percepção da
ameaça de extinção dos estoques desta espécie, por diferentes problemas de
ordem natural com a presença de predadores e de exploração excessiva para
atender consumidores insaciáveis. Callon (1986) em sua pesquisa investigou a
formação de um saber científico sobre as conchas de vieira, que teve como
ponto de partida um colóquio realizado em 1972 que reuniu pesquisadores
e pescadores para debater sobre dois eixos de discussão, o desconhecimento
sobre os mecanismos do crescimento da concha de vieira e a necessidade de
formar um conhecimento sobre este molusco. Pesquisadores franceses foram
ao Japão na época e encontraram um sistema de cultivo controlado desses
moluscos que isolava as larvas dos seus predadores gerando não só uma
produção intensiva e como a conservação da espécie. Assim a associação entre
pescadores e pesquisadores foi fundamental para a introdução da aquicultura
para produção deste molusco permitindo garantir sua conservação (CALLON
1986) e o mesmo poderia ser feito aqui junto a instituições de pesquisa, como
as universidades, por exemplo.

A ostreicultura Potiguara por ser baseada em espécie nativa do


mangue, que retira seu alimento do próprio habitat não representa riscos à
127 Socioantropologia de Povos e Comunidades Tradicionais Costeiras e Ribeirinhas

integridade do ecossistema considerando-se que não realiza a inserção de


espécie exótica, como ocorre na ostreicultura no Estado de Santa Catarina
(MARINHO, 2019), contudo está sujeita a riscos de extinção por um extrativismo
intensivo.

Por outro lado, as ostras, por serem moluscos filtradores, podem


acumular substâncias químicas em seus tecidos, tais como metais pesados e
hidrocarbonetos, em quantidades proporcionais às concentrações do poluente
no ambiente, sendo, portanto, consideradas bioindicadoras de contaminação
ambiental (CAMPOS, 2011). Como as aldeias indígenas da pesquisa não
possuem sistema adequado de saneamento, os esgotos domésticos acabam
sendo um forte fator de contaminação do estuário onde se encontram os
cultivos de ostras (MARINHO, 2019).

Estudos de monitoramento das condições ambientais e sanitárias


dos locais de produção de ostras são imprescindíveis para avaliar o risco de
contaminação que os animais sofrem e consequentemente quem os consome.
Sendo a qualidade da água um fator que prejudica a sustentabilidade tanto
da saúde humana, quanto pode acarretar em prejuízos no ciclo reprodutivo
das ostras, assim há o risco de as más condições ambientais da água do rio
ser prejudicada pela falta de saneamento nas aldeias e no município. Marinho
(2019) verificou que a água onde estão os cultivos de ostras no Estuário do Rio
Mamanguape tinha densidades de coliformes fecais acima do permitido pelas
normas (CONAMA 357/2005), sendo necessário um trabalho em conjunto com
a Prefeitura para resolver o problema de falta de esgotamento sanitário, o que
poderia ser resolvido a baixo custo com a construção das fossas ecológicas
citadas acima.

Para Mikailova (2004) uma atividade é sustentável quando ela


consegue ser mantida por gerações, por outro lado não basta assegurar
a reprodução vegetativa, mas a sustentabilidade da organização social e
a melhoria das condições de vida (FLORES; TREVIZAN, 2015). Neste sentido,
Foladori (2002) critica os parâmetros da sustentabilidade social nos estudos
de avaliação das dimensões da sustentabilidade, especialmente os do Banco
Mundial, por privilegiar os aspectos técnicos e desconsiderar a participação
social como essencial para a gestão democrática e o acesso igualitário aos
recursos.

Com relação à participação em Associação, 100% dos produtores


de ostras de Porto Novo, não participam, revelando que os ostreicultores
constituem uma categoria ainda bastante desmobilizada, pois não fazem parte
de nenhuma cooperativa ou associação ligada à atividade de ostreicultura,
provavelmente sentem-se desestimulados a formar grupos de apoio. De fato,
os ostreicultores Potiguara detêm o controle sobre todo o processo produtivo,
exercendo autonomia em sua atividade, incluindo a venda das ostras realizada
com a intermediação de uma ostreicultora indígena.

No Estado de Santa Catarina, os malacocultores do município de São


Francisco do Sul contam com o apoio técnico da EPAGRI (Empresa de Pesquisa
Agropecuária e Extensão Rural de Santa Catarina) e de outras instituições para
o crescimento e aprimoramento da atividade da ostreicultura na região (SANTI,
O cultivo de ostra do mangue pelos potiguara no litoral norte da Paraíba 128

2006).

Este apoio registrado em Santa Catarina deve-se à presença da ostreicultura


neste estado há mais de quarenta anos, enquanto na Paraíba devido ao caráter
incipiente da atividade tem despertado pouco interesse por pesquisas nos
laboratórios das universidades e institutos federais. Outras agências como o
SEBRAE teve uma participação tímida, já que se aproximou dos ostreicultores
Potiguara para a realização de uma pesquisa sobre o crescimento de sementes
no estuário, através do projeto Aquinordeste, porém sem continuidade e sem
oferecer ainda capacitação aos índios (MARINHO 2019).

CONSIDERAÇÕES FINAIS  

  O cultivo de ostra pelos Potiguara em suas terras consiste num


sistema artesanal de extração de ostras jovens do mangue para engorda
em estruturas de madeira do mangue, com características familiares, e baixa
produção, considerando o tamanho limitado da área de cultivo. Devido a essas
características, a atividade apresenta alguns aspectos sustentáveis, como o
aumento da renda familiar, e outros insustentáveis, como o de não realizar o
cultivo integral das ostras desde a produção das sementes, de modo a garantir
a conservação da espécie. 

De acordo com a análise sobre as condições do cultivo no que


concerne à​  sustentabilidade em suas diferentes dimensões, a ostreicultura
Potiguara revelou sustentabilidade cultural, no tocante à proximidade
entre a ostreicultura e a pesca artesanal, que interfere pouco no modo de
vida tradicional. Quanto à qualidade de vida e bem estar, que representa a
sustentabilidade econômica para comunidades sustentáveis, esta foi avaliada
através de melhoria de renda e oportunidades de trabalho na própria terra.
Porém, considerando a sustentabilidade social no aspecto da participação, o
resultado foi desfavorável devido à ausência de associação e ações coletivas,
como festa da ostra ou outras. Contudo, os ostreicultores exercitam uma
autogestão sobre os seus cultivos de modo que asseguram uma forma de
participação social em sua organização produtiva familiar. Porém, consideram
que podem melhorar se tiverem um apoio técnico e financeiro para aumentar
a produção.  

  O aumento da extração de ostra poderá comprometer a


sustentabilidade ecológica e a conservação desta espécie que pode sofrer
impacto local. Considerando os parâmetros relativos à integridade do
ambiente, a ostreicultura Potiguara baseia-se na engorda de espécie nativa de
ostra que não necessita de utilização de rações, e ainda auxilia na remoção de
matéria orgânica particulada, por serem organismos filtradores, auxiliando na
conservação ambiental.

Contudo, é preciso que em médio prazo eles consigam implantar


o sistema integral de cultivo de ostras, desde a produção de semente até a
fase adulta, sendo necessário para tanto o apoio de pesquisas científicas, de
normas e regulações que exijam um monitoramento da qualidade sanitária das
ostras. Além disso, um monitoramento da qualidade ambiental do estuário e
129 Socioantropologia de Povos e Comunidades Tradicionais Costeiras e Ribeirinhas

dos estoques de ostra nativa é necessário para garantir a sustentabilidade e


qualidade da ostreicultura Potiguara. Essas parcerias podem ser importantes
para contribuir com o aumento da sustentabilidade ambiental, possibilitando a
reprodução e produção de larvas em cativeiro.

As perspectivas de aumento da participação dos Potiguara na gestão


de suas terras, articuladas à necessidade de tornar a sua reprodução física e
cultural mais sustentáveis, podem ser vislumbradas com a efetivação da Política
Nacional de Gestão Ambiental e Territorial Indígena – PNGATI (2012). Finalmente,
espera-se que a ostreicultura familiar possa se desenvolver pautada em valores
contemplados nas noções de comunidade sustentável e do bem viver.
O cultivo de ostra do mangue pelos potiguara no litoral norte da Paraíba 130

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TURISMO DE BASE COMUNITÁRIA E O FORTALECIMENTO


DOS MOVIMENTOS DE RESISTÊNCIA TERRITORIAL: O
CASO NA COMUNIDADE TRADICIONAL QUILOMBOLA DO
CUMBE, ARACATI, CEARÁ, BRASIL

Anderlany Aragão dos Santos


Universidade de Brasília

Francisca de Souza Miller


Universidade Federal do Rio Grande do Norte

Doris Aleida Villamizar Sayago


Universidade de Brasília

INTRODUÇÃO

O Turismo de Base Comunitária (TBC) é uma atividade que têm como


principal característica a concentração da gestão sob controle das comunidades
receptoras. O controle da gestão permite às comunidades a adaptação do
turismo à realidade local, possibilitando que a atividade seja gerida de modo a
atender as demandas e necessidades locais. O TBC surge como um contraponto
ao turismo de massa, portanto as demandas e necessidades que pautam a
construção do turismo comunitário são voltadas, via de regra, à prevenção e
coibição dos impactos negativos associados a esse modelo turístico – tais como
pressões fundiárias e ambientais (SALES; SALLES, 2010).

Entretanto, as pressões fundiárias e ambientais não são aspectos


exclusivos do turismo de massa, mas também são resultados da instalação de
grandes empreendimentos. O fim do século XX e início do século XXI no Brasil
é marcado pela instalação de empreendimentos voltados à produção agrícola,
carcinicultura, minerária, energética e também pela construção de corredores
logísticos que abriram áreas inexploradas ou pouco exploradas pelo mercado
(LITTLE, 2002; SAUER, BORRAS JR., 2018). Em algumas ocasiões, as comunidades
que enfrentaram as pressões fundiárias e ambientais resultantes da instalação
dos empreendimentos e do turismo de massa consentiram ou efetivaram um
acordo mútuo. Entretanto, a principal resposta das comunidades atingidas
foi a resistência (LITTLE, 2002). Logo, o fortalecimento dos movimentos de
resistência às pressões fundiárias dos grandes empreendimentos e do turismo
de massa se tornou uma necessidade dessas comunidades.

Visto que o TBC é construído de modo a atender às necessidades


comunitárias, a pergunta que orienta esse trabalho é: como o turismo de
base comunitária pode fortalecer movimentos de resistência territorial? Para
responder ao questionamento, a próxima seção trata dos conceitos e aspectos
teóricos relevantes para o trabalho, como turismo de massa, turismo adaptado
e turismo de base comunitária. A seção é seguida pela caracterização da
comunidade investigada, o Cumbe, uma comunidade tradicional quilombola
e pesqueira situada no nordeste brasileiro que enfrenta pressões fundiárias
com empreendimentos produtores de camarão e de energia eólica. Por fim,
135 Socioantropologia de Povos e Comunidades Tradicionais Costeiras e Ribeirinhas

a seção “procedimentos metodológicos” aponta as formas de levantamento e


tratamento dos dados que basearam os resultados do trabalho.

ASPECTOS TEÓRICOS

A chegada do turismo em massa em territórios ocupados


por povos tradicionais pode trazer uma série de impactos negativos,
como a desterritorialização da comunidade residente (CORIOLANO,
2006), especulação fundiária (SOUZA NETO E CORIOLANO,
2010), desmatamento (SILVA; OLIVEIRA, 2012;  FREIRE E MILLER,
2019 ), poluição hídrica, sonora, atmosférica (FANDÉ & PEREIRA, 2014), danos
a monumentos históricos (GRIMM E SAMPAIO, 2011), impactos à diversidade
econômica (ARAÚJO, 2001) e relações antiéticas entre a comunidade residente
e os turistas (BARRETTO, 2004).

Os processos de desterritorialização e segregação espacial ocorrem


devido à construção de “bolhas turísticas”1(COELHO, 2004). Esses locais
reúnem empreendimentos de acomodação e alimentação e os patrimônios
culturais e ambientais interessantes à prática turística e, portanto, passam a ser
pressionados pela especulação imobiliária e expulsam a comunidade residente
para locais menos valorizadas pelo turismo, ou seja, para as periferias das
“bolhas turísticas” (SOUZA NETO E CORIOLANO, 2010).

A construção dos empreendimentos de acomodação e alimentação


geram poluição atmosférica, visual, sonora e de corpos hídricos, além do
desmatamento e danos a sítios arqueológicos e monumentos históricos
resultantes da instalação e operação dos empreendimentos ligados à cadeia
turística (FANDÉ & PEREIRA, 2014). Além disso, como a socialização é restrita
àqueles que possuem condições financeiras para usufruir das comodidades
oferecidas nessas “bolhas”, parte da comunidade é excluída do uso e acesso a
essas áreas (BARRETTO, 2004). Assim, a convivência entre turistas e a comunidade
residente é marcada pela transitoriedade e desinteresse pelo conhecimento
do outro, o que pode propiciar a construção de relações marcadas pela “[...]
exploração, o engano, a hostilidade e a desonestidade” (COHEN, 1984, p. 379).

Também pode ser apontada como impacto negativo do turismo de


massa a criação de uma “monocultura turística”, ou seja, uma desestruturação
da diversidade econômica das comunidades visitadas. Isso resulta em uma
excessiva suscetibilidade da comunidade às eventuais crises e sazonalidades do
segmento turístico (ARAÚJO, 2001).

Diante disso, surgiu uma vertente turística que se propõe a coibir


e prevenir os impactos negativos do turismo de massa: o Turismo de Base
Comunitária (CORIOLANO, 2007). O TBC é organizado coletivamente dentro
de arranjos produtivos alternativos, informais e solidários construídos dentro
de pequenas comunidades que buscam se inserir em um eixo de turismo não
oligopolizado e de base local (REZENDE, 2009).

1. Regiões que reúnem os interesses ambientais, equipamentos e serviços


voltados ao atendimento turístico.
Turismo de base comunitária e o fortalecimento dos movimentos de resistência territorial 136

O ponto de partida da construção desse arranjo turístico é o princípio


das necessidades sentidas, ou seja, o TBC busca a adaptação da atividade
turística à realidade e às necessidades da localidade receptora (CORIOLANO
& VASCONCELOS, 2014). Assim, o TBC é marcado pelo uso da atividade como
forma de atender às necessidades individuais e coletivas das comunidades
que estão construindo a iniciativa. Como necessidades individuais, se destaca
a menor exploração do trabalho, melhores ganhos para os trabalhadores e
melhor distribuição dos resultados do trabalho social (GRIMM & SAMPAIO,
2011). Com relação às necessidades coletivas, experiências ressaltam a
valorização e manutenção da identidade local, a conservação ambiental e a
valorização cultural (BARTHOLO, SANSOLO & BURSZTYN, 2009). Portanto,
a necessidade a ser atendida nessas iniciativas é, principalmente, prevenir os
impactos negativos do turismo de massa.

A adaptação do turismo à localidade, ou seja, a construção de um


turismo adaptado (KRIPPENDORF, 2003), demanda atendimento a outros
princípios. KRIPPENDORF (2003). São princípios do turismo adaptado: a
integridade dos aspectos ambientais e arqueológicos presentes nas atividades
turísticas, a diversidade econômica, a construção de relações éticas entre
visitantes e visitados e a valorização do caráter local. Cada um desses princípios
contrapõe um impacto associado ao turismo de massa.

Como contraponto às relações desinteressadas e transitórias entre


visitantes e visitados, o turismo adaptado visa a construção de relações
éticas entre visitantes e visitados. Em contraponto às “bolhas turísticas” e
aos impactos ambientais negativos decorrentes da construção de grandes
empreendimentos voltados ao atendimento dos visitantes, no turismo
adaptado é valorizado o caráter local e objetivada a integridade dos aspectos
ambientais e arqueológicos da localidade. O cultivo do caráter local, incluindo
aqui as formas de acomodação e alimentação, previne a formação dessas
“bolhas” e, consequentemente da desterritorialização da comunidade. Por fim,
contrapondo a “monocultura turística”, o turismo adaptado prevê o incentivo à
diversidade econômica local (Quadro 1).

Quadro 1 – Princípios do turismo adaptado


Impactos do turismo de massa Princípio do turismo adaptado

Impactos ambientais e arqueológicos Integridade dos aspectos ambientais e


decorrentes da construção de arqueológicos da localidade visitada
empreendimentos turísticos

Monocultura turística Incentivo à diversidade econômica

Relações transitórias e desinteressadas entre Construção de relações éticas entre visitantes e


visitantes e visitados visitados

Construção de “bolhas turísticas” Valorização do caráter local

Desterritorialização Prevenção às bolhas turísticas

Os princípios do turismo adaptado objetivam coibir e prevenir impactos negativos


associados ao turismo de massa

Fonte: Elaborada pelas autoras com base em KRIPPENDORF (2003).


137 Socioantropologia de Povos e Comunidades Tradicionais Costeiras e Ribeirinhas

Portanto, as iniciativas de TBC emergem, via de regra, em regiões


visadas pelo turismo de massa e tem atuado no sentido de fortalecer
movimentos de resistência territorial em regiões que sofrem com a especulação
territorial características da construção das “bolhas turísticas” (BARTHOLO,
SANSOLO & BURSZTYN, 2009). É o caso da comunidade pesqueira Prainha
do Canto Verde, situada no litoral do estado do Ceará, nordeste brasileiro. A
comunidade, que estava em conflito com agentes imobiliários interessados no
uso turístico do lugar, organizou coletivamente o TBC e se tornou protagonista
no desenvolvimento da atividade turística.

Além disso a comunidade se comprometeu a não vender seus


imóveis para veranistas e empreendedores – o que contribuiu para evitar
a desterritorialização. As casas dos pescadores foram adaptadas para
receber turistas e, portanto, não foram necessárias construções de grandes
empreendimentos de acomodação e alimentação. Isso preveniu impactos
ambientais negativos associados às construções dessas estruturas e, portanto,
colaborou com a conservação ambiental da região. Além disso, o TBC dinamizou
a economia local e valorizou o modo de vida tradicional (COELHO, 2016).
Outros trabalhos relatam iniciativas semelhantes, nos quais as comunidades,
via de regra rurais, organizaram iniciativas de turismo alternativo como forma
de resistir e permanecer no território tradicional ameaçado pelos impactos
resultantes do turismo de massa (BARTHOLO, SANSOLO & BURSZTYN, 2009;
LIMA, 2003).

No entanto, povos tradicionais enfrentam outras pressões territoriais


além do turismo. Nos anos 1980, com o fortalecimento da ideologia neoliberal,
os territórios ocupados por essas comunidades foram incorporados à economia
mundial a partir da instalação de grandes empreendimentos que têm sua
produção voltada ao mercado externo (LITTLE, 2002). A instalação e operação
desses empreendimentos agravaram as pressões sobre seus territórios, o
que resultou na desterritorialização das comunidades residentes a partir dos
impactos negativos sobre a disponibilidade, acesso e uso dos recursos naturais
– como a terra e a água (ACSELRAD, 2010; LITTLE, 2002).

O número e intensidade de conflitos nessas comunidades foram


impulsionados a partir dos anos 2000, com a “corrida mundial por terras”
(SASSEN, 2016; SAUER & CASTRO, 2017). No Brasil, a expansão de fronteiras
decorrentes dessa “corrida” foi voltada à produção de energias alternativas e
de commodities rurais e metálicas – principalmente a soja e minério de ferro
(SAUER; BORRAS, 2018). Assim, as ameaças aos povos tradicionais foram
intensificadas pela instalação e operação de empreendimentos energéticos,
agrícolas e mineradores.

Diante desse cenário, povos tradicionais promoveram uma onda de


territorializações, isto é, um número significativo de movimentos de resistência
e defesa territorial e, junto a essa “onda”, emergiram diversas iniciativas de TBC
nesses territórios em conflito (LITTLE, 2002; MALDONADO, 2009; REZENDE,
2009; RUIZ-BALLESTEROS, 2011). Essas iniciativas turísticas, contudo, emergem
em regiões que não necessariamente enfrentam um conflito territorial
associado ao turismo de massa. Ou seja, a principal necessidade a ser atendida
pelo princípio das necessidades sentidas do TBC não está associada somente
à prevenção dos impactos negativos do turismo de massa, mas também ao
Turismo de base comunitária e o fortalecimento dos movimentos de resistência territorial 138

fortalecimento dos movimentos de resistência territorial. É o caso, por exemplo,


do Cumbe.

COMUNIDADE TRADICIONAL QUILOMBOLA E PESQUEIRA DO CUMBE

A Comunidade Tradicional Quilombola do Cumbe está localizada no


litoral do nordeste brasileiro, a 257 km de Fortaleza, a capital do estado do Ceará.
A comunidade fica situada próxima ao Rio Jaguaribe e à praia, abrangendo,
ecozonas de manguezal e de dunas (PINTO et al., 2014). Nesses ambientes
são realizadas as principais atividades produtivas e de lazer da região. Como
atividades produtivas tradicionais se destacam a pesca e a catação de mariscos
e crustáceos. Referente às atividades de lazer, nas dunas são realizadas trilhas
em sítios arqueológicos, banhos nas lagoas interdunares e é a partir das dunas
que pode ser acessada a praia do Cumbe. No manguezal, famílias se reúnem
para realizar refeições e contar estórias da comunidade à beira do rio, em uma
prática tradicional conhecida como “comer no mato” (NASCIMENTO, 2014).

A cerca de seis quilômetros do Cumbe está a Praia de Canoa


Quebrada, um dos principais polos turísticos do estado do Ceará. Canoa
Quebrada recebe cerca de 300 mil visitantes anualmente e parte desses
visitantes compram nas agências de turismo de Canoa Quebrada pacotes de
visitação ao Cumbe, o que gera determinado fluxo turístico na comunidade
(SOUZA NETO, 2011). Embora a instalação dessa prática turística intensifique
os processos desterritorializantes decorrentes no Cumbe, esse turismo não é o
principal responsável pelo conflito territorial vigente na comunidade cumbense
(SANTOS, 2018). A comunidade quilombola e pesqueira enfrenta um conflito
territorial com empresas produtoras de commodities alimentícias (camarão),
desde a década de 1990, e com usinas de energia eólica, instaladas na região
nos anos 2000 (PINTO et al., 2014).

A carcinicultura gerou conflito territorial devido à privação de acesso


a áreas de manguezal e aos impactos negativos promovidos pela atividade
carcinicultora, como a poluição hídrica, desmatamento do manguezal e redução
da biota que depende do manguezal para alimentação e reprodução, fenômeno
observado também por Miller (2012) no Rio Grande do Norte. O conflito surgiu
porque o manguezal é um ambiente necessário para a continuidade das
atividades produtivas e de lazer tradicionais do Cumbe, ou seja, a continuidade
do “comer no mato”, da pesca e da catação de mariscos e crustáceos depende
diretamente da conservação dessa ecozona. Assim, a chegada da carcinicultura
impactou negativamente o manguezal e, consequentemente, o modo de vida
tradicional do Cumbe.

Em relação ao empreendimento de produção de energia eólica, se


instalaram na região em 2008 e gerou conflito territorial devido à privação
de acesso da comunidade às áreas de dunas ocupadas pelos aerogeradores
e devido aos impactos negativos sobre espaços simbólicos da comunidade.
A privação do acesso às dunas gerou descontentamento dos moradores
porque foi impossibilitada a continuidade das práticas de lazer e da pesca
nas lagoas interdunares, devido ao risco de eletrochoque pelos condutos
elétricos dos aerogeradores (PINTO et al., 2014). Também foram levantados
relatos de pescadores referentes à dificuldade no acesso à praia, necessário
139 Socioantropologia de Povos e Comunidades Tradicionais Costeiras e Ribeirinhas

para continuidade da pesca marinha (NASCIMENTO, 2014). Essa dificuldade no


acesso é colocada pela necessidade de identificação e solicitação de permissão
de acesso às regiões de dunas pelos moradores às portarias das empresas de
energia eólica (NASCIMENTO, 2014).

E mais, essas empresas dificultaram o acesso a um importante


espaço simbólico, a Santa Cruz - um monumento erguido no século XIX em
uma das dunas mais altas da região, que se tornou um lugar de orações e
promessas. A instalação dos aerogeradores também impactou negativamente
os sítios arqueológicos da região, visto que foram destruídos alguns dos 70
sítios presentes nas dunas ao ser realizado o resgate e prospecção de peças
em prazo insuficiente (PEREIRA XAVIER, 2013). Portanto, a chegada das usinas
eólicas no Cumbe, assim como da carcinicultura, gerou um impacto negativo
sobre o modo de vida da comunidade ao dificultar a continuidade das práticas
de lazer e de subsistência.

Ainda na década de 1990, frente ao conflito territorial resultante da


chegada da carcinicultura, a comunidade se organizou politicamente em uma
associação de moradores a fim de construir um movimento de resistência e
defesa territorial. Mais tarde, com a intensificação do conflito devido à chegada
da usina eólica, a Associação dos Pescadores/as, Artesão/ãs, Agricultores/as
e Moradores/as do Cumbe/Aracati – CE reivindicou o reconhecimento formal
da identidade quilombola pela Fundação Cultural Palmares a fim de garantir
o direito à titulação e demarcação do território tradicional estabelecido pela
Constituição Federal (NASCIMENTO, 2014). Com a certificação quilombola,
em 2014, a associação passa a ser denominada Associação Quilombola do
Cumbe (AQC). Embora tenha sido oficialmente reconhecida como comunidade
quilombola, o processo de demarcação do território tradicional do Cumbe está
paralisado desde o ano de 2016.

Nesse contexto, a AQC iniciou o processo de construção de um


Turismo de Base Comunitária. O principal objetivo do TBC na comunidade,
segundo um site2 construído para dar visibilidade à iniciativa, é fortalecer o
movimento de resistência territorial. Ou seja, o princípio das necessidades
sentidas que rege essa iniciativa transcende a prevenção dos impactos do
turismo de massa. A necessidade a ser atendida pelo TBC, no Cumbe, é o
fortalecimento dos movimentos de resistência e defesa territorial.

Como colocamos anteriormente, uma prerrogativa do TBC é a


adaptação do turismo à localidade. Essa adaptação atende a alguns princípios: a
integridade dos aspectos ambientais e arqueológicos presentes nas atividades
turísticas, a diversidade econômica, a construção de relações éticas entre
visitantes e visitados e a valorização do caráter local. Assim, analisamos como
cada um desses princípios contribuem para o atendimento da necessidade da
comunidade do Cumbe, o fortalecimento do movimento de defesa territorial.

Nossa análise foi centrada em um evento construído pela AQC para


promover o TBC: a Festa do Mangue. A Festa foi a ocasião escolhida para
o presente estudo por ser o período onde são recebidos mais visitantes na
localidade e por reunir na programação todas as atividades e os atrativos
2. Disponível em www.quilombodocumbe.com.br
Turismo de base comunitária e o fortalecimento dos movimentos de resistência territorial 140

turísticos oferecidos nos pacotes de visitação avulsos que são vendidos no


decorrer do ano. A Festa ocorre anualmente, é organizada coletivamente pelos
moradores (associados ou não à AQC) e conta com a presença de centenas de
visitantes, que são atraídos pela programação que dura cerca de quatro dias.

Nesses quatro dias são promovidas atividades que se relacionam


ao modo de vida local, como oficinas de mariscagem, pesca, competição de
captura de caranguejos, visitação ao manguezal, ao Rio Jaguaribe e aos sítios
arqueológicos. Além disso, há rodas de conversa, oferta de comidas típicas
da região e apresentações de danças, rituais e de fantoches, os Calungas do
Cumbe, que contam estórias da comunidade.

LEVANTAMENTO E TRATAMENTO DOS DADOS

O levantamento de dados contou com trabalhos de campo realizado


no ano de 2016, quando a Festa do Mangue estava em sua terceira edição.
Na ocasião, levantamos aspectos relacionados aos princípios do turismo
adaptado, a fim de analisar como esses princípios estão sendo aplicados no
TBC construído no Cumbe (Apêndice 1). A partir de observação participante e
entrevistas com os organizadores e com os visitantes, analisamos a integridade
dos aspectos ambientais e arqueológicos a partir da destinação de resíduos
sólidos gerados na Festa, da sobrexploração dos recursos naturais dentro das
práticas turísticas e dos possíveis impactos negativos resultantes da visitação
aos sítios arqueológicos e à Santa Cruz.

O incentivo à diversidade econômica foi analisado a partir da inclusão


e valorização das atividades produtivas na programação da festa e a presença
e participação de pescadores, marisqueiras e catadores de crustáceos nos
espaços onde acontecem as atividades. A construção de relações éticas entre a
comunidade residente e os turistas foi analisado a partir dos espaços destinados
à interação entre a comunidade e os visitantes (como rodas de conversa) e do
conhecimento e das contribuições dos visitantes sobre a comunidade e sobre
o conflito territorial.

Também foi levantada a percepção dos visitantes sobre a importância


da continuidade do modo de vida tradicional e sobre os ambientes visitados
durante a festa. A valorização do caráter local foi analisada a partir da inclusão
das atividades tradicionais de subsistência e lazer na programação da festa e
do levantamento das estruturas de acomodação e alimentação - ponto que
contribuiu com a análise do último princípio do turismo adaptado, a prevenção
às bolhas turísticas.

As entrevistas realizadas com os organizadores foram realizadas


antes e depois da Festa do Mangue e trouxe tópicos relacionados à percepção
dos organizadores com relação aos supracitados aspectos analisados e às
contribuições da festa para o fortalecimento dos movimentos de resistência e
defesa territorial no Cumbe. Também trouxeram tópicos sobre as preocupações
com a sustentabilidade ambiental da atividade turística, a complementaridade
entre as atividades tradicionais e turísticas, além da percepção dos organizadores
em relação às contribuições dos visitantes para a comunidade.
141 Socioantropologia de Povos e Comunidades Tradicionais Costeiras e Ribeirinhas

A consulta aos visitantes foi realizada por meio de um formulário


disponibilizado na internet. Para se inscrever na Festa, os visitantes precisaram
acessar uma plataforma online, o Google Formulários, onde incluíram algumas
informações de contato. Assim, solicitamos aos organizadores o e-mail dos
participantes que acessaram a plataforma a fim de aplicar um questionário
aos inscritos nas terceira e quarta edições da Festa por meio dessa mesma
plataforma.

As questões foram baseadas nas “regras e conselhos para viajar


respeitando o próximo”, desenvolvidas por Krippendorf (2003, p. 167)3. Os
participantes foram perguntados acerca das suas respectivas contribuições com
a festa e com a comunidade e dissertaram sobre seus conhecimentos sobre os
hábitos e costumes da comunidade. As questões também demandaram que o
visitante descrevesse algumas experiências vivenciadas na festa, destacando
as suas percepções sobre a importância dos ambientes visitados e atividades
desenvolvidas, sobre as eventuais dificuldades de acesso a alguns espaços e
sobre a percepção dos visitantes acerca dos conflitos territoriais no Cumbe.

Todas os dados obtidos foram interpretados por Análise de Conteúdo


(BARDIN, 2011). Para isso, as respostas das entrevistas e questionários
foram separadas em quadros temáticos. Foram, assim, criados quatro
quadros: 1) valorização da identidade e da cultura local na prática turística;
2) sustentabilidade ambiental da atividade turística e 3) estabelecimento de
relações éticas entre visitantes e visitados; 4) diversidade econômica.

RESULTADOS

O ponto de partida na construção do TBC é a adaptação da atividade


turística às necessidades da comunidade receptora. Ou seja, o atendimento ao
princípio das necessidades sentidas. Como colocado anteriormente, no Cumbe,
o TBC surgiu a partir da necessidade de fortalecimento dos movimentos de
resistência territorial. A Festa do Mangue, portanto, busca atender essa
expectativa ao promover visibilidade ao turismo na região: “O objetivo da
festa é dar essa visibilidade e o potencial turístico que a comunidade tem [...].
As Festas do Mangue funcionam como uma forma de promover o turismo,
identificar nossa luta, nosso território e nosso modo de vida” (Organizadora da
Festa do Mangue em entrevista cedida às autoras em setembro de 2016).

A adaptação do TBC às necessidades locais, ou seja, a construção de


um turismo adaptado, conta com o atendimento aos princípios relacionados
à diversidade econômica, valorização do caráter local, à sustentabilidade
ambiental da atividade e à construção de relações éticas entre os turistas e
a comunidade visitada. Assim, analisamos como cada um desses princípios é
aplicado na Festa do Mangue e, posteriormente analisamos como colaboram

3. As “regras e conselhos para viajar respeitando o próximo” são colocadas por


Krippendorf a partir do estabelecimento de elementos contrastivos: compreender
versus apossar-se; olhar versus pegar; alcançar versus conquistar; respeitar versus
desrespeitar; ir ao encontro versus ir contra; provar versus reprovar; rir versus
repreender; escutar versus ouvir; perguntar versus responder; procurar versus
achar.
Turismo de base comunitária e o fortalecimento dos movimentos de resistência territorial 142

com o fortalecimento dos movimentos de resistência e defesa territorial do


Cumbe.

DIVERSIDADE ECONÔMICA

A monocultura turística pode resultar da substituição voluntária


das atividades produtivas tradicionais pelas atividades diretamente ligadas
ao atendimento dos visitantes ou dificuldade de continuidade das atividades
tradicionais devido aos impactos ambientais negativos associados ao turismo
de massa (CORIOLANO; VASCONCELOS, 2014; KRIPPENDORF, 2003).

A substituição voluntária pode ocorrer devido à desvalorização das


atividades produtivas tradicionais e pode ser evitada por meio de atividades
combinadas, ou seja, com a valorização e combinação das atividades tradicionais
e turística. Nesse sentido, observamos na programação da Festa a existência de
atividades que promovem a participação dos pescadores, das marisqueiras e
dos catadores de caranguejos e de suas respectivas práticas.

Com relação à catação de crustáceos, a atividade é representada


pelas competições de captura de caranguejos-uçá, seguidas pela premiação
dos mestres do mangue do Cumbe. A premiação é, segundo os organizadores,
uma forma de prestigiar os catadores e demonstrar aos visitantes a importância
dessa atividade para a comunidade. As capturas duram, em média, trinta
minutos. Enquanto os mestres do mangue catam caranguejos no manguezal,
os visitantes acompanham a competição sendo conduzidos por um guia da
comunidade que traz informações sobre essa ecozona de acordo com suas
categorias êmicas, elaboradas a partir do conhecimento tradicional. Os guias
apresentam aos visitantes o mangue-ratinho (Conocarpus erectus), o mangue-
manso (Laguncularia racemosa) e o mangue-sapateiro (Rhizophora mangle)
(PINTO, 2009), com suas respectivas características e usos.

Quanto à pesca e à mariscagem, são atividades representadas nas


oficinas ministrada por pescadores e marisqueiras. Na ocasião, os visitantes
são levados aos ambientes onde ocorrem essas práticas, a fim de observar e
vivenciar o cotidiano dos pescadores e marisqueiras da região. A partir destes
momentos de interação e trocas de saberes, percebemos que as atitudes
pedantes regularmente observadas no turismo de massa (KRIPPENDORF, 2003,
p. 170) dão lugar a uma atitude de compreensão e abertura dos visitantes aos
saberes vinculados às práticas produtivas:

Participei de uma oficina de


mariscagem, na qual percebi quão
forte é a relação daquelas mulheres
e homens com o ecossistema de
manguezal, percebi também que eles
entendem profundamente a dinâmica
do mangue, ao seu modo (Participante
da Festa do Mangue em questionário
online realizado em outubro de 2017).
143 Socioantropologia de Povos e Comunidades Tradicionais Costeiras e Ribeirinhas

Portanto, ao serem incluídas na programação da Festa, essas


práticas produtivas são valorizadas e reconhecidas, bem como o conhecimento
tradicional das marisqueiras, dos pescadores e dos catadores. Assim, ao
contrário de desestabilizar as práticas tradicionais, o turismo atua como um
instrumento de valorização e reconhecimento dessas atividades, bem como
atesta a importância da manutenção dos ambientes onde elas acontecem.

No entanto, a “monocultura do turismo” não é resultante somente


da desvalorização das práticas tradicionais, mas pode também ser resultado
da especulação imobiliária para instalação de infraestrutura turística. Ou seja,
para que sejam construídas as estruturas de alimentação e acomodação, as
áreas usadas para realização dessas práticas passam a ser ocupadas por resorts,
hotéis, casas de veraneio ou restaurantes (CORIOLANO; VASCONCELOS, 2014,
p. 14). Devido a esse problema, os organizadores da Festa colocam:

Não queremos aquele turismo que


especula, compra nosso território, faz
grandes estruturas e começa a vir o
pessoal de fora e faz um turismo que
vá degradar nosso território [...]. O
turismo comunitário não é aquele que
o turista vem para se hospedar no hotel
cinco estrelas. Ele vem conviver com
as pessoas da comunidade, vem para
acampar ou vem para um qu

arto simples das nossas casas. Isso é


muito valioso isso porque eles vêm de
acordo com o nosso modo de vida e de
acolhimento (Organizadora da Festa
do Mangue em entrevista cedida às
autoras em setembro de 2016).

O TBC construído no Cumbe busca, portanto, exaltar a simplicidade


e se contrapõe ao “caráter luxo” (KRIPPENDORF, 2003, p. 155) colocado pelo
turismo de massa. Assim, a infraestrutura de atendimento aos visitantes não
contrasta com o modo de vida da comunidade, possibilitando a valorização
do caráter local dentro das estruturas de acomodação e alimentação. Dado
que a valorização do caráter local é um outro princípio do turismo adaptado,
analisamos na seguinte seção a aplicação deste princípio na comunidade
investigada.

VALORIZAÇÃO DO CARÁTER LOCAL

A fim de evitar os impactos decorrentes da hospedagem, a


comunidade do Cumbe adotou o que é classificado como bed and breakfast.
Essa modalidade de hospedagem domiciliar, é caracterizada pela sua tradução
literal: o hóspede, mediante pagamento, acomoda-se em residências privadas
habitadas e dispõem de um lugar para dormir e de café da manhã (PIMENTEL,
2009).
Turismo de base comunitária e o fortalecimento dos movimentos de resistência territorial 144

Quanto à alimentação, são realizadas refeições coletivas preparadas


na sede da AQC. Além das refeições na sede, na Festa também acontece o
“comer no mato” - uma antiga prática na qual as famílias reúnem-se em pontos
do manguezal para realização de refeições intercaladas a banhos de rio e
contação de histórias do Cumbe. Na Festa do Mangue, o “comer no mato” ocorre
posteriormente às oficinas, utilizando os peixes e mariscos extraídos em tais
atividades, bem como frutos e outros alimentos trazidos pelos organizadores
e visitantes.

Também merece destaque a visitação às dunas, planejadas de acordo


com os acessos autorizados pela usina eólica. A inclusão de trilhas nas dunas na
programação da festa, com idas aos sítios arqueológicos evidencia a valorização
do patrimônio cultural material e a efetiva participação da comunidade local na
fruição desse tal patrimônio. Destaca-se, ainda, que a Santa Cruz não é visitada
devido à privação de acesso pelos empreendimentos, mas com o aumento
da demanda de visitação pelos visitantes, são fortalecidos os esforços para
democratização do acesso a esse lugar sagrado.

Além da questão das infraestruturas e da valorização desses


patrimônios materiais do Cumbe, a Festa contribui com a valorização do
patrimônio cultural imaterial a partir do papel do conhecimento tradicional
em algumas das atividades. É o caso das oficinas de pesca e mariscagem e
da premiação dos mestres do mangue, que expõem os conhecimentos dos
mestres na eficiência da captura de caranguejos, os conhecimentos do guia
ao apresentar as categorias êmicas da comunidade referentes ao ecossistema
manguezal, bem como os conhecimentos dos pescadores e marisqueiras
passados nas oficinas.

SUSTENTABILIDADE AMBIENTAL DA ATIVIDADE TURÍSTICA

As preocupações dos organizadores da Festa com a sustentabilidade


está em promover atividades que não impactem negativamente o manguezal
e as dunas a partir da escolha de técnicas adequadas, estratégias de prevenção
e redução da disposição de resíduos sólidos nos lugares onde ocorrem as
atividades e rodas de conversa sobre a importância de preservação dessas
ecozonas.

Sobre as técnicas, na competição dos mestres do mangue, por


exemplo, o tempo é restrito a trinta minutos de captura e tem o número de
participantes reduzido a fim de evitar a sobrexploração do caranguejo-uçá. A
técnica escolhida pelos mestres do mangue é o “braceamento” que, segundo
Legat et al. (2005), não é uma técnica predatória. Isso porque existe seletividade
na escolha dos caranguejos e é uma técnica que promove elevadas taxas de
sobrevivência, pois não causa ferimentos nos caranguejos capturados. Essa
técnica consiste na extração manual por meio imersão completa do braço
dentro da toca do caranguejo, a qual permite ao catador que segure o crustáceo
pela parte dorsal da carapaça, pressionando as quelíceras de modo a imobilizá-
las ao puxar o caranguejo para fora da toca.

Nas oficinas, parte do que é consumido nas refeições coletivas que


145 Socioantropologia de Povos e Comunidades Tradicionais Costeiras e Ribeirinhas

as procedem, é extraído do mangue e do rio pelos oficinistas e visitantes. No


entanto, a quantidade de extração de recursos é limitada pelos oficinistas e,
via de regra, não contemplam o número de visitantes, a fim de garantir que os
recursos do rio e do manguezal não sejam sobrexplorados:

Participei da oficina de ostras e búzio,


além de poder apreciar os sabores do
mangue. Perceber os métodos que
eles usam para extrair esses alimentos
são se machucar ou destruir. Só tiram
o necessário e levam em conta os
pontos que podem extrair (Participante
da Festa do Mangue em questionário
online realizado em outubro de 2017).

Assim, essas refeições são complementadas com itens comprados


pela comissão organizadora da Festa com parte da arrecadação dos valores
de inscrição da Festa. O caráter coletivo dessas refeições inclui também os
alimentos compartilhados pelos visitantes.

Uma outra preocupação com relação à sustentabilidade ambiental da


Festa está no estilo de acomodação bed and breakfast, que evita a construção de
grandes infraestruturas que poderiam vir a precarizar o ecossistema manguezal
e interferir na movimentação natural das dunas. A organização do TBC também
incentiva as caronas solidárias e o uso de materiais não-descartáveis nas
atividades no mangue e nas dunas.

Uma questão ainda não considerada pelos organizadores é o limite


máximo do número de visitantes. No entanto, a capacidade de carga turística é
um aspecto a ser incluído em um curso de TBC que acontecerá na comunidade:

Hoje a gente realiza um trabalho que a gente


vem aos poucos divulgando o trabalho de
turismo comunitário e não temos potencial
ainda de receber mais pessoas. Quando nós
tivermos preparados, equipados... Nós vamos
receber vários visitantes [...]. Hoje tão fazendo
um curso de gerenciamento do museu pra
gente colocar nossas ideias em prática. Então
estão construindo o Museu e já envolvendo
com o Turismo Comunitário (Organizadora
da Festa do Mangue em entrevista cedida às
autoras em setembro de 2016).

O curso de gerenciamento do Museu foi elaborado por uma empresa


de consultoria contratada pela empresa eólica como forma de compensação aos
danos aos sítios arqueológicos promovidos pelo empreendimento. O Museu
abrigará, portanto, as peças que foram retiradas dos sítios arqueológicos e será
gerido pela comunidade. Para garantir a boa gestão, a AQC solicitou um curso de
gerenciamento do Museu, que também abrange questões do TBC. Assim, nesse
Turismo de base comunitária e o fortalecimento dos movimentos de resistência territorial 146

curso, os organizadores do TBC expõem suas demandas quanto ao turismo a


ser promovido, dentre elas a construção do site de divulgação da iniciativa e o
cálculo da carga de suporte dos ambientes usados nas práticas turísticas. Com
relação à divulgação do TBC, uma das preocupações dos organizadores é expor
a história e os movimentos de resistência da comunidade:

Nas nossas programações a gente coloca que


a Festa do Mangue é uma festa de resistência,
que é pra identificar nossa luta, nosso território
e nosso modo de vida. [...] A gente passa
na programação e elas vêm sabendo disso.
Esse público que vem é muito satisfatório e
queremos alcançar um público maior, pois eles
vêm e deixa conhecimento, nos fortalece e com
isso temos tendência a crescer (Organizadora
da Festa do Mangue em entrevista cedida às
autoras em setembro de 2016).

Os organizadores perceberam, portanto, que ao se divulgar


previamente o cenário encontrado na comunidade (como o conflito territorial
com os empreendimentos e os movimentos de resistência dos moradores
quilombolas), o público atraído para o TBC se predispõe a fortalecer essas
causas, seja através da troca de conhecimentos e mesmo da divulgação da
existência do conflito em outros espaços: “Eles vêm pra contribuir... só em eles
vim e conhecer aqui, já leva com ele e chega lá já conta o que viveu, o outro
já vem... E isso já é uma contribuição” (Organizadora da Festa do Mangue em
entrevista cedida às autoras em setembro de 2016).

RELAÇÕES ÉTICAS ENTRE VISITANTES E VISITADOS

O objetivo dos organizadores do TBC no Cumbe é atrair um público


que contribua com os movimentos de resistência territorial, “com um olhar
de contribuição e não de tirar proveito” (Organizadora da Festa do Mangue
em entrevista cedida às autoras em setembro de 2016). Os responsáveis pela
articulação da Festa e do TBC buscam, portanto, atuar de modo a promover
relações que superem a transitoriedade colocada pelo turismo de massa, o qual
segundo COHEN (1984), viabilizam o engano e a exploração do outro.

Para isso, além da divulgação prévia do cenário vivido pela


comunidade, as atividades realizadas nos espaços relacionados ao modo de
vida tradicional (como o manguezal e as dunas) e a existência dos espaços
políticos na Festa fomentam a construção dessas relações. Com relação ao
manguezal na programação permite aos visitantes conceber a importância
dessa ecozona para a comunidade:

Participei da cata do caranguejo. Nessa


atividade, assim como durante todo o
evento, deixa clara a associação entre
aquele ambiente e a comunidade,
seja através do sustento de muitas
147 Socioantropologia de Povos e Comunidades Tradicionais Costeiras e Ribeirinhas

famílias, seja através de uma identidade


construída com o mangue (Participante
da Festa do Mangue em questionário
online realizado em outubro de 2017).

Com relação às dunas, são realizadas trilhas que contam com


a visitação de alguns sítios arqueológicos que não foram atingidos pelo
empreendimento eólico. Ao subir as dunas é possível obter uma visão
panorâmica da comunidade, visualizando o que os cumbenses chamam de
“cercamento expulsivo”. Esse cercamento se refere à ocupação das regiões ao
redor da vila pelos grandes empreendimentos:

Eles viveram e sentiram junto com


a gente as experiências no nosso
território. As pessoas veem o que a
gente relata. Quando elas sobem nas
dunas veem os viveiros nos cercando,
os parques eólicos... E a gente não
tá só contando, eles estão vendo. O
público que vem sente e vivencia com
a gente, assim dá uma ideia melhor que
a gente passa (Organizadora da Festa
do Mangue em entrevista cedida às
autoras em setembro de 2016).

As vivências são complementadas pelas rodas de conversa


programadas nas noites da Festa. As discussões nesses espaços abordam a
importância e dificuldades da continuidade do modo de vida tradicional e os
principais episódios das lutas territoriais e conquistas dos quilombolas. São
enriquecidas com vídeos e fotos dos protestos e da comunidade anteriormente
à instalação dos empreendimentos. Os visitantes participam relatando
experiências de outras comunidades e expondo suas percepções acerca da
vivência no Cumbe obtidas no decorrer da Festa. Ao observar a construção
desses espaços e analisar as formas de contribuição relatadas nos questionários
dos visitantes, percebe-se apoio às lutas dos quilombolas cumbenses:

Consegui levar mais pessoas para


conhecer a resistência da comunidade
quilombola do Cumbe e o amor que
existe nela. Trouxe sorrisos, apoio,
dancei côco, agradeci, ouvi, entendendo
que toda forma de participação
fortalece o espírito da luta em cada um
que está nessa construção (Participante
da Festa do Mangue em questionário
online realizado em outubro de 2017)

As contribuições dos visitantes atingem, portanto, as expectativas


dos organizadores. Além da valorização do modo de vida tradicional estes
trazem propostas para fortalecimento do movimento de resistência, tais como
projetos de petições, trabalhos científicos que possibilitam levar tais discussões
Turismo de base comunitária e o fortalecimento dos movimentos de resistência territorial 148

à academia e projetos audiovisuais para alcance de maior público.

COMO O TBC FORTALECE OS MOVIMENTOS DE RESISTÊNCIA TERRITORIAL


NO CUMBE?

A diversidade econômica estimula a continuidade das práticas


produtivas tradicionais porque promove atividades combinadas. Assim, além de
não ser necessário o abandono da pesca, catação de caranguejos ou mariscagem
para atuar com atividades mais voltadas ao turismo, essas atividades são
valorizadas e mantidas. A importância da manutenção e valorização delas está
na relação dessas atividades com as ecozonas do Cumbe. Isto é, para que essas
atividades continuem existindo, é necessário que o manguezal, o rio e as dunas
sejam preservados e que a comunidade tenha livre acesso a esses espaços.
A importância de manutenção das ecozonas também é colocada a partir da
sustentabilidade ambiental da prática turística e da valorização do caráter
local – seja com relação ao patrimônio material (como sítios arqueológicos
situados nas dunas) ou imaterial (como conhecimentos tradicionais associados
ao manguezal).

Além disso, a visitação a alguns espaços faz oposição ao


“vazio aparente” - uma condição que caracteriza áreas que são usadas
excepcionalmente, em datas ou estações específicas (DIEGUES, 2004). É o caso
da Santa Cruz, um lugar sagrado frequentado pela comunidade principalmente
no dia de finados. O lugar pode ser acessado pelas dunas ou pelo manguezal,
mas ambos os acessos foram dificultados ou inviabilizados pela instalação de
fazendas de carcinicultura e pela usina eólica. Como a demanda de visitação do
lugar é maior em uma data específica, os empreendimentos autorizam o acesso
nessa ocasião.

No entanto, moradores em entrevista expressaram descontentamento


devido à dificuldade de acessá-la em outras datas. Assim, com o aumento da
demanda de visitação ao lugar pelos turistas, são intensificadas as pressões
pela restituição do livre acesso à Santa Cruz. Devido à dificuldade de acesso,
a Santa Cruz ainda não faz parte da programação da Festa ou do roteiro do
TBC – o que mais uma vez, evidencia aos visitantes um problema enfrentado
pela comunidade.

Ademais, ao participar das demais atividades da Festa que destacam


o valor e a necessidade da manutenção das ecozonas para o modo de vida
tradicional da comunidade, os visitantes percebem e compreendem a
importância dos movimentos de resistência e defesa do território tradicional – o
que viabiliza a colaboração desses visitantes com os movimentos de resistência
territorial por meio de iniciativas anteriormente citadas (trabalhos científicos,
petições, projetos audiovisuais, etc.).

Percebe-se que essas iniciativas são voltadas, principalmente, para


o aumento da visibilidade do conflito territorial. A visibilidade auxilia no
conflito no sentido de atrair mais pessoas e coletivos que contribuam com essa
causa levando atividades que são realizadas junto à AQC, como protestos e
mobilizações por meio de redes sociais.
149 Socioantropologia de Povos e Comunidades Tradicionais Costeiras e Ribeirinhas

A participação e interesse dos visitantes por esse tema acontece,


sobretudo, devido à construção de relações éticas entre visitantes e visitados
– visto que a construção de relações menos superficiais contrapõe as relações
marcadas por desinteresses mútuos pelo conhecimento do outro e reforços de
estereótipos e preconceitos.

CONCLUSÕES

A construção do TBC ocorre como uma forma de se prevenir os


impactos do turismo de massa e eventuais conflitos fundiários que podem
surgir devido à especulação imobiliária e à construção de infraestruturas
voltadas ao atendimento dos visitantes. Assim, o Turismo de Base Comunitária
busca atender a princípios que possibilitam relacionar a prática turística à
integridade dos aspectos ambientais e arqueológicos, à diversidade econômica,
à construção de relações éticas entre visitantes e visitados e à valorização do
caráter local nas práticas turísticas.

No entanto, algumas comunidades enfrentam conflitos fundiários que


surgem devido a outros fatores, que não necessariamente estão relacionados
ao turismo de massa. É o caso da Comunidade Tradicional Quilombola do
Cumbe, que enfrenta conflitos territoriais resultantes da instalação e operação
de uma usina eólica e de fazendas de carcinicultura. Com a emergência do
conflito territorial, também emergiram movimentos de resistência e defesa do
território tradicional e uma proposta de TBC como forma de fortalecer esses
movimentos e de dar visibilidade ao conflito vigente na comunidade.

Analisamos a Festa do Mangue, por ser um evento promovido para


dar visibilidade à iniciativa turística e por reunir em sua programação todas as
atividades turísticas planejadas para o TBC. A análise foi voltada a compreender
como a comunidade está construindo esse turismo, prevenindo os impactos
associados ao turismo de massa e, principalmente, como o TBC está auxiliando
nos movimentos de resistência e defesa do território tradicional.

Os resultados mostraram que a inclusão e valorização das práticas


relacionadas ao modo de vida tradicional (como a pesca, mariscagem, catação
de crustáceos, visitação às ecozonas e aos lugares sagrados), auxiliam na
conscientização dos visitantes em relação à importância da continuidade das
práticas e da permanência da comunidade nas terras que tradicionalmente
ocupa. Essa conscientização é evidenciada nos espaços políticos da Festa, onde
são expostas as ameaças ao modo de vida tradicional, a necessidade de dar
visibilidade ao conflito e ao movimento de resistência e também são discutidas
as percepções dos visitantes com relação às vivências realizadas no Cumbe –
eventualmente seguidas por propostas de auxílio ao movimento.

Ao fortalecer os movimentos de resistência de comunidades que


estão em conflito territorial, o TBC transcende uma forma alternativa de
turismo, construída para se contrapor ao turismo de massa, e se transforma em
um instrumento político de comunidades que enfrentam pressões territoriais
provenientes de diversos empreendimentos que não necessariamente estão
ligados à atividade turística.
Turismo de base comunitária e o fortalecimento dos movimentos de resistência territorial 150

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APÊNDICES

Apêndice 1: Como foram analisados os princípios do turismo adaptado no Cumbe.

Princípio do turismo adaptado Aspectos observados na Festa do Mangue

Destinação de resíduos sólidos


Integridade dos aspectos
Sobrexploração dos recursos naturais dentro das práticas turísticas
ambientais e arqueológicos da
localidade visitada
Impactos negativos aos sítios arqueológicos e à Santa Cruz

Inclusão e valorização das atividades produtivas tradicionais na


programação da Festa
Incentivo à diversidade
econômica
Presença e participação de pescadores, marisqueiras e catadores de
crustáceos nos espaços onde acontecem as atividades turísticas

Contribuições e conhecimentos dos visitantes sobre o conflito e a


comunidade
Construção de relações éticas
entre a comunidade residente Percepção dos visitantes sobre a importância dos ambientes visitados
e os turistas e atividades desenvolvidas

Interações entre a comunidade e turistas

Estruturas de acomodação e alimentação de acordo com o modo de


vida tradicional
Valorização do caráter local

Inclusão de atividades tradicionais

Estruturas de acomodação e alimentação


Prevenção às bolhas turísticas
Presença da comunidade nos espaços onde acontecem as atividades
turísticas
Turismo e agência entre os ribeirinhos: a casa de chocolate da Ilha do Combú - PA 154

TURISMO E AGÊNCIA ENTRE OS RIBEIRINHOS: A CASA DE


CHOCOLATE DA ILHA DO COMBU-PA1

Thainá Guedelha Nunes


Universidade Federal do Pará

Lourdes de Fátima Gonçalves Furtado


Museu Paraense Emílio Goeldi

Na cidade de Belém, capital paraense, há a presença de dois contextos


conectados através das águas típicas da região. De um lado do Rio Guamá a
Belém continental, e do outro a Belém insular, a primeira tendo uma área de,
aproximadamente, 176 km², e a segunda compreendendo uma área de 330
km². Pode-se perceber que a maior parte da cidade, em território, corresponde
à região insular caracterizando 65% do território de Belém, enquanto que o
continente compreende apenas 35% da área total2.

A área insular de Belém é composta por 39 ilhas, sendo que ao incluir


as ilhas das proximidades de Belém e região metropolitana o número aumenta
para 52 ilhas mais o Arquipélago do Marajó. Tal fato demonstra a tamanha
expressividade das ilhas belenenses, podendo-se afirmar que “a cidade nasceu
por assim dizer sob o signo insular” (MOREIRA, 1966, p 69). A população
predominante que habita essa região é formada por ribeirinhos3, cujo modo de
vida se estabelece ligado ao meio ambiente, como é o caso da Ilha do Combu.

Em 2010 iniciei minhas pesquisas na Ilha do Combu, na qualidade de


Iniciação Científica, pelo Museu Paraense Emílio Goeldi e a escolha pela área
insular de Belém se deu, principalmente, pela peculiaridade desse contexto
ribeirinho prevalecer e garantir sua continuidade mesmo sendo próximo da
área urbana. Dois espaços que partilham do mesmo rio, porém, divergiam em
escolhas do seu modo de vida que culminou num desenvolvimento, no sentido
geral do termo, diferenciado para cada margem4.

1. VI Reunião Equatorial de Antropologia (REA). Salvador, Bahia, 09 a 12/12/2019.


GT 46 – Antropologia de povos e comunidades tradicionais costeiras e ribeirinhas.
Coordenadores: Flávio Bezerra Barros e Francisca de Souza Miller

2. Levando-se em consideração apenas Belém e não a região metropolitana.

3. Populações cujos costumes, significados, simbologias, tradições, conhecimentos


comportamentos, percepções, e etc, são pautados por um modo de vida baseado
na relação com o rio e a floresta, vivendo, e pertencendo, à beira do rio. Para
maior aprofundamento, principalmente sobre o contexto em questão, ver Nunes
(2017).

4. Mais detalhes em Nunes (2017) e Dergan (2006).


155 Socioantropologia de Povos e Comunidades Tradicionais Costeiras e Ribeirinhas

É importante ressaltar que mesmo havendo o contato cotidiano entre


esses dois contextos, rural e urbano, assim como entre o local e global, cada
vez mais intenso, esse contexto sociocultural resiste e persiste garantindo
sua continuidade. Nesse sentido, é importante refletir como cada contexto
sociocultural se (re)inventa, (re)significa e se (re)produz a partir do que lhes é
posto pela realidade em que se insere.

O que aqui é exposto se apresenta como algo fundamental diante do


rápido crescimento do turismo na Ilha do Combu, que já apresenta transformações
consequentes desse fenômeno. Apesar de melhorias advindas da participação
de muitos da população local na atividade turística, é importante estar atento
para o avanço desordenado que possa afetar de maneira prejudicial à vida local,
assim como o meio ambiente. Vale ressaltar que o local é uma Área de Proteção
Ambiental com grande parte da sua vegetação, ainda, preservada.

O objetivo é trazer a experiência da casa de chocolate, que se insere


no contexto turístico da ilha, como um exemplo de agência da população local
com relação ao turismo como valorização cultural, aumento de renda familiar e
uma experiência diferenciada5 para os visitantes. Também apresento a relação,
e cooperação, entre diferentes atores envolvidos nesse processo que vai muito
além do modelo simplista e binário de “anfitriões” e “hóspedes” (guests), muito
comum nos primórdios dos estudos da Antropologia do Turismo.

Esse estudo de caso advém da minha pesquisa de doutorado em


andamento, tendo como base a etnografia. O conteúdo do texto é resultado
da observação direta no decorrer de quase nove anos de pesquisa no local,
destacando três momentos em particular. O primeiro ocorrido em 2013, onde
visitei a casa da dona Nena como parte do trabalho de campo da pesquisa
do PIBIC, que culminou no meu Trabalho de Conclusão de Curso em Ciências
Sociais. O segundo se deu em 2017, onde retornei a mesma casa, naquele
momento como parte do trabalho de campo da pesquisa de mestrado, onde,
assim como na primeira vez, realizei entrevistas semiestruturadas. O terceiro
momento aconteceu em 2019, já em decorrência da pesquisa de doutorado, no
qual participei da visita guiada à casa do chocolate (figura 1), que se trata de um
passeio com uma proposta de experiência turística diferenciada em relação ao
lazer nos bares e restaurantes que é o mais comum na ilha.

5. No sentido de que o mais popular na ilha, quando se fala de turismo, é a


frequentação nos bares e restaurantes da mesma. Ambas as experiências
turísticas são bem distintas no que diz respeito a interação entre os visitantes, a
população local e seus elementos culturais.
Turismo e agência entre os ribeirinhos: a casa de chocolate da Ilha do Combú - PA 156

Figura 1 – Panfleto da Casa do Chocolate divulgando seus pacotes de passeio turístico

Fonte: pesquisa de campo (2019).

Este último momento me proporcionou uma rica experiência, sob


as bases da observação participante, onde conheci mais de perto o trabalho
desenvolvido pela Casa do Chocolate e a trajetória de Dona Nena através de
seu próprio relato e ainda foi possível, através de conversas informais, atualizar
várias informações sobre este empreendimento local e sobre o turismo na ilha.
A pesquisa prolongada no local possibilitou acompanhar, ao menos em parte,
o desenvolvimento do projeto de Dona Nena que se tornou um dos principais
pontos turísticos da Ilha do Combu que recebe visitantes de vários lugares do
mundo.

A ILHA DO COMBU E A CHEGADA DO TURISMO

A Ilha do Combu é formada por cinco comunidades (figura 2), são elas:
Comunidade Beira Rio Guamá, Comunidade Igarapé do Combu, Comunidade
Furo da Paciência, Comunidade Igarapé do Piriquitaquara e Comunidade
Furo do Benedito. Atualmente moram, aproximadamente, 560 famílias nessas
comunidades, o que corresponde a mais de 2.000 pessoas.
157 Socioantropologia de Povos e Comunidades Tradicionais Costeiras e Ribeirinhas

Figura 2 – Localização das Comunidades da Ilha do Combu

Fonte: CODEM, adaptação da autora (2017).

Anteriormente o cotidiano na ilha era calmo e a atividade econômica


predominante era o extrativismo, principalmente do açaí, fruta típica da cultura
belenense. Poucos eram os que conheciam o local, eu mesma ouvi falar sobre a
ilha apenas em 2009 quando comecei a graduação na Universidade Federal do
Pará (UFPA), que também se localiza as margens do Rio Guamá, bem em frente
à Ilha do Combu.

Ao iniciar minhas pesquisas em 2010, percebi que eram pouquíssimas


as pessoas que já tinham ouvido falar desta ilha, e menos ainda onde esta se
localizava, até mesmo pessoas que frequentavam a UFPA. Hoje o quadro se
inverteu, sendo, agora, difícil achar pessoas que não saibam sobre a existência
da Ilha do Combu, mesmo que ainda não a tenham visitado. Na verdade, é
comum ouvir destas que a vontade de conhecer a ilha é grande, devido a grande
repercussão do local.

De acordo com DERGAN (2006) o turismo na Ilha do Combu teve


início por volta da década de 80. No ano de 1983 era inaugurado o primeiro
estabelecimento voltado para o lazer dos visitantes, a Saldosa Maloca6, que fica
localizada na comunidade Beira do Rio Guamá e na entrada da comunidade
Igarapé do Combu. Por ser a pioneira no empreendimento turístico local, esta é
a mais famosa e, muitas vezes por falta de maior conhecimento sobre a ilha por
parte dos visitantes, acaba sendo um dos principais destinos escolhidos por estes,
apesar de ser um dos mais caros.

6. A nível de informe, ao solicitar a placa de seu restaurante, a dona não havia


percebido que a palavra saudosa estava escrita errado. Ao passar de certo tempo
o restaurante já havia adquirido certa fama, então a mesma resolveu deixar do
jeito que estava, pois os visitantes conhecia o restaurante dessa forma.
Turismo e agência entre os ribeirinhos: a casa de chocolate da Ilha do Combú - PA 158

Em 2009, no Diagnóstico da Área e das Atividades Turísticas do Pólo


Belém – PA da PARATUR, a Ilha do Combu aparece como um potencial turístico
que está em processo de exploração e desenvolvimento, sendo enquadrada nos
seguimentos: Turismo de Estudos e Intercâmbios, Turismo Cultural e o Ecoturismo,
sendo considerada como atração por ser uma Área de Proteção Ambiental, ou
seja, para contemplação, pela grande presença da natureza e pela vida ribeirinha
que ali se encontra. Porém, era considerada a existência de muitos problemas
que estariam “prejudicando” o desenvolvimento do turismo local, em grande
parte, relacionados à infraestrutura para recepção dos turistas. O que reforça a
concepção de que, na maioria das vezes, estes são tidos como prioridade por
serem eles os portadores do dinheiro a ser gasto através dessa atividade, ao invés
de também ser dada a devida importância para as comunidades receptoras que
são as que serão impactadas, seja positivamente ou não.

De uma realidade de invisibilidade a um lugar de destaque, o cenário


intensamente ligado ao meio ambiente, “exótico” para os citadinos, a Ilha do
Combu vem cada vez mais atraindo visitantes para seus bares e restaurantes.
Devido ao aumento da procura em fugir do cotidiano agitado da cidade, o
número de bares vem se multiplicando como resposta à demanda, e esta tem
se apresenta como uma grande aposta de aumento da renda familiar e melhoria
de vida. Assim:

O envolvimento e o direcionamento para os


trabalhos com o turismo exigem outras formas de
se relacionar com a natureza e com a vizinhança
em si: as mudanças nas relações de trabalho
alteram as formas de organização social familiar
e espacial. O lugar recebe ‘arranjos incipientes’
e passa a ser arrumado para o turismo; a vida
dos pescadores artesanais, coletores e pequenos
produtores rurais, gradativamente incorporam
ao seu cotidiano os serviços voltados para esta
atividade (ADRIÃO, 2013, p. 77).

O aumento expressivo, e rápido, no número de atrativos turísticos é um


forte exemplo de como a população local tem buscado se adequar a crescente
demanda turística e dela se beneficiar. Até 2010 havia apenas três bares e
restaurantes: Saldosa Maloca, a Maloca Sabor da Ilha e o Bar do Bua. Atualmente,
até dezembro de 2019, a ilha já contava com trinta bares e restaurantes, sendo
que mais um está em fase de construção, além da Casa do Chocolate da Dona
Nena. Essa grande procura pela ilha aconteceu, e acontece, porque “além da
beleza cênica do lugar, o estilo de vida tradicional passa ser produto de atração de
pessoas de fora da região – a vida cotidiana é vista pelo turista como espetáculo
[...]” (ADRIÃO, 2013, p 67).

Houve também e o surgimento de outras atividades turísticas como


passeios e trilhas ecológicas, a criação da Cooperativa de Transporte Escolar e
Alternativo das Ilhas de Belém e Adjacentes (COOPETRANS), a Associação dos
Trabalhadores do Transporte Marítimo das Ilhas de Belém e do Baixo Acará
(ASTIB), a Associação dos Barqueiros Ribeirinhos e condutores do Município
de Belém (ARBCIMB) e a Cooperativa Mista Da Ilha Do Combú (COOPMIC).
As atividades voltadas para o turismo vêm cada vez mais competindo com o
159 Socioantropologia de Povos e Comunidades Tradicionais Costeiras e Ribeirinhas

extrativismo, mesmo que até o momento este último continue sendo uma
importante atividade econômica no local, inclusive abastecendo os bares/
restaurantes.

O movimento de saída do visitante, no sentido mais geral do termo, do


seu contexto social e do seu cotidiano, é feito de diversas formas, por variados
motivos e para todo tipo de destino. O turismo é visto por alguns “como atividade
do lazer, [que] pressupõe uma ruptura espaço-temporal em relação ao mundo
do trabalho, apresentando-se como uma forma cultural alternativa, diferencial e
complementar, que contribui para a restauração psíquica” (BAZTAN, 1993).

O turismo é um fenômeno que vem ganhando força como uma


alternativa da classe trabalhadora para aproveitar seu tempo livre, seja nos finais
de semana, feriados e/ou férias, buscando lazer que traga descanso e bem-estar.
Essa alternativa tem se apresentado como fundamental para o alivio do estresse
causado pelas pressões da vida, principalmente nos centros urbanos. O turismo
é visto por muitos como7:

Um fenômeno social que consiste no


deslocamento voluntário e temporário
de indivíduos ou grupos de pessoas que,
fundamentalmente por motivo de recreação,
descanso, cultura ou saúde, saem de seu local
de residência habitual para outro, no qual não
exercem nenhuma atividade lucrativa nem
remunerada, gerando múltiplas inter-relações
de importância social, econômica e cultural
(IGNARRA,1998, p. 24).

O turista busca lugares diferentes do que ele encontra no seu dia-a-dia,


conhecer lugares e culturas diferentes é um dos atrativos ao se fazer uma viagem,
e um lugar considerado exótico muitas vezes chama atenção na hora de escolher
o destino. A imagem da Ilha do Combu vem sendo “vendida” como um paraíso
exótico e de fácil acesso, um pedaço ainda muito preservado da Amazônia bem
em frente ao conforto da área urbana de Belém (figura 3). A ilha é apresentada
como uma ótima opção para quem quer beber e comer, ressaltando-se o
cardápio com as comidas típicas de Belém, e possibilitando um reencontro com
o “passado” da relação do homem com seu meio ambiente, proporcionando
experiências sensoriais singulares.

7. Ainda não há uma única definição usada para o turismo, em grande parte
devido o fato de ser um fenômeno complexo e por este ter se tornado objeto de
estudo de várias disciplinas relativamente recente.
Turismo e agência entre os ribeirinhos: a casa de chocolate da Ilha do Combú - PA 160

Figura 3 – Propaganda da Saldosa Maloca

Fonte: Rede Social da Saldosa Maloca (2019).

Ainda se fala muito em impactos que o turismo pode trazer pelas


comunidades receptoras, e mesmo que se fale nos impactos positivos além dos
negativos a palavra ainda remete muito mais a uma noção de colisão, de choque,
ou seja, um encontro violento entre dois corpos. Obviamente é importante
continuar analisando as consequências negativas que podem ser geradas pelo
turismo, porém, é essencial perceber que o movimento do contato intercultural
como algo que se revela, “hoje, muito mais como transversalidades e re-
elaborações do que como impactos e assimilações” (SANTOS 2005, p 3). Nos
últimos anos esse enfoque tem mudado nas pesquisas sobre o tema.

Entretanto, não se pode negar que há consequências negativas advindas


da atividade turística, seja com um débil planejamento, ou com uma má
implementação desse planejamento, ou, pior ainda quando não há planejamento
algum e esta atividade cresce desordenada. PRADO (2003) traz algumas reflexões
sobre a complexidade e, em certa medida contradição, entre o que é teorizado
e o que acontece na prática com relação ao turismo. O que se vê na maioria
das vezes é um planejamento “ideal”, pensando-se de maneira mais geral,
num contexto macro, porém quando se vê num contexto micro de um local
específico se pode ver que tal modelo não é compatível, ou seja, não é levado em
consideração as particularidades de cada local.

Essa reflexão é feita a partir de um estudo de caso da sua pesquisa na Ilha


Grande no Rio de Janeiro, mais especificamente na Vila do Abraão, onde, assim
como nas minhas pesquisas ao longo dos anos na Ilha do Combu em Belém, teve
um momento em que o fenômeno do turismo chegou com tamanha força que
não pôde mais ser “ignorado”. Tais casos, assim como vários outros, se encaixam
num “modelo das implicações do turismo em determinados contextos nos quais
ele antes não existia” (PRADO, 2003, p. 207).

A Vila do Abraão estava sendo um lugar de destaque do turismo na


ilha, sendo escolhido como principal destino dos turistas fazendo com que esta,
dentre todas as outras, fosse a comunidade mais atingida pelo turismo. O texto
aponta dois tipos de casos que começaram a acontecer no local, de um lado
161 Socioantropologia de Povos e Comunidades Tradicionais Costeiras e Ribeirinhas

várias famílias foram expulsas das praias devido à especulação imobiliária, do


outro lado tem os que decidiram se adaptar e usufruir do novo contexto.

PRADO (2003) aponta que há um medo geral das consequências


negativas para o local, que possam vir a acontecer no futuro, se continuar do
jeito que está, sendo comparada com o que aconteceu em Angra dos Reis,
cidade-sede do município, que apresenta uma intensa urbanização e de maneira
desorganizada. A principal questão desse “modelo perverso da implantação do
turismo” é a grande alteração do modo de vida local imposta por pessoas que
são de fora do local, ou seja, assim como muitas outras importantes decisões que
afetam grupos sociais, são feitas “de cima para baixo”, não se considerando o que
essas pessoas tem a dizer sobre seu próprio território e desejos. A seguir tem-se
o empreendimento da Dona Nena como exemplo da agência da população local,
e de sua capacidade, para estar à frente dos processos que os envolvem, como o
turismo, e que há como prosperar de maneira organizada e valorizando a cultura
local, não excluindo a cooperação, e auxílio, de atores externos.

A FANTÁSTICA FÁBRICA DE CHOCOLATE RIBEIRINHO DA DONA NENA

As frutas da Ilha do Combu sempre foram parte fundamental da vida


ribeirinha local, seja para consumo próprio ou para venda, e Dona Nena, cujo
nome verdadeiro é Izete dos Santos Costa, afirma que sempre trabalhou com
o cacau e o açaí, sendo que antes o primeiro era tido como principal moeda de
troca, porém, mais ou menos pelos anos 80 e 90 o açaí começou a ganhar maior
destaque na alimentação belenense. Mas a família de Dona Nena fez questão de
fazer com que o cacau não deixasse de fazer parte do cotidiano da família:

Mas aqui a gente ainda permanece fazendo


esse trabalho de continuação né, a estrutura da
família. Antes o nosso trabalho era fazer colheita,
quebra, fermentação e a secagem, o nosso
produto todo ia pro atravessador. E a gente
sempre ficava na nossa família um punhado que
a gente fazia nosso próprio chocolate caseiro
que só a família tinha acesso, que se chegasse
um visitante orgulhosamente a gente oferecia
um chocolate quente (DONA NENA, 01 de maio
de 2019).

O trabalho com coleta de frutas tinha suas dificuldades, principalmente


quando se tratava do período de entressafra, o que exigiu dos moradores
buscarem alternativas para garantir a renda familiar nesses períodos. Uma dessas
soluções foi a extração do palmito do vasto número de palmeiras que existiam na
ilha, principalmente dos açaizeiros.

A estratégia estava se caracterizando como um sucesso, pois surgiu uma


grande demanda para compra dos palmitos que podiam ser comercializados o
ano todo. Essa atividade estava tendo tanto êxito que logo chamou a atenção
de empresários de Belém que, por volta da década de 80, instalaram uma
fábrica de palmito na Ilha do Combu, a Palmazon, aonde muitos ribeirinhos
Turismo e agência entre os ribeirinhos: a casa de chocolate da Ilha do Combú - PA 162

chegaram a trabalhar. O problema surgiu posteriormente quando e extração


se tornou predatória, principalmente por parte da fábrica, que extraiam
indiscriminadamente, sem muitos cuidados com o manejo e sem a preocupação
com reconstituição das palmeiras. Assim, no local onde se encontrava a fábrica os
recursos se esgotaram e a mesma veio à falência, se retirando da ilha (DERGAN,
2006, p. 143-144).

Apesar dos moradores locais terem uma maior preocupação com o


manejo das palmeiras, esta atividade começou a preocupar um pesquisador do
Museu Paraense Emílio Goeldi, Anthony Anderson, que naquela época realizava
pesquisas na área da botânica. Durante suas pesquisas constatou a possibilidade,
a longo prazo, de uma degradação devido a crescente extração do palmito,
o que ocasionava a derrubada de muitos açaizeiros. Este foi um dos motivos
que levaram a discussão da necessidade da Ilha se tornar uma unidade de
conservação, como consta na lei de criação da Área de Preservação Ambiental da
Ilha do Combu (lei nº 6.083/97).

Assim como as demais populações que se enquadram nas ditas


“populações tradicionais”, esta população ribeirinha8 tinha, e ainda tem, uma
relação muito próxima com o meio ambiente e se preocupavam com sua
conservação. Entretanto, a sua realidade insistia em apresentar dificuldades
pelas quais se fazia necessário buscar soluções para uma renda melhor que
proporcionasse o mínimo para uma vida digna.

Então a comunidade se apropriava de sementes


né, que tinha na ilha, a andiroba, fazia o corte
da seringa pra tirar o látex, o taperebá, e outras
frutas que tinham na ilha, era vendido pra gente
conseguir um preço bom e baixo com o nosso
trabalho. E quando não tinha a gente tinha que
tentar trabalho na cidade, como construção
civil, na casa de família, várias atividades eram
buscadas dependendo da necessidade (DONA
NENA, 01 de maio de 2019).

Percebe-se que diante das necessidades várias possibilidades eram


exploradas, inclusive ir trabalhar em Belém com atividades que nada tinham a ver
com seu modo de vida ribeirinho. Pelo que pude observar em minhas pesquisas
durante o mestrado, a maioria da população prefere não ter que recorrer a Belém
além do necessário, preferem tirar seu sustento na ilha, se for uma questão de
escolha.

Além do movimento Ilha do Combu à Belém, havia também o movimento


inverso com iniciativas de auxiliar a população local na busca por alternativas de
melhoria da renda familiar a partir do que a própria ilha tinha a oferecer. Como foi
o caso do projeto desenvolvido por uma escola que ensinava a produzir biojóias
para serem comercializadas pelas ribeirinhas. E é nesse momento que se inicia a
trajetória de Dona Nena até a famigerada Casa do Chocolate da Ilha do Combu.

8. Os ribeirinhos da Ilha do Combu passaram a ser reconhecidos como


comunidades tradicionais depois da publicação do Decreto 6040/2007.
163 Socioantropologia de Povos e Comunidades Tradicionais Costeiras e Ribeirinhas

Não foi repentinamente que Dona Nena e seus produtos orgânicos e


naturais ficaram famosos, nem foi por acaso, e nem sem ajuda. Vale ressaltar
que a história de sucesso da mesma tem início antes do estopim do turismo na
ilha, e aparentemente é um dos fatores que contribuiu para o mesmo. Como foi
dito anteriormente, nos primeiros passos dos estudos da Antropologia sobre o
turismo teve como foco a concepção de impactos negativos desta atividade nas
comunidades receptoras, o que foi e ainda é importante levar em consideração.
Porém, este texto tem a intenção de mostrar que há agência também na
comunidade, pois Dona Nena não simplesmente reagiu à chegada do turismo
na ilha, mas sim conscientemente buscou reconhecimento e valorização de um
trabalho artesanal tradicional e fazendo com que isso viesse a gerar uma boa
renda para sua família. Assim,

Esses primeiros estudos abriram o caminho


para um corpo substancial de pesquisa sobre
mudanças sociais e culturais provocadas
pelo desenvolvimento do turismo, ao passo
que trabalhos mais recentes abandonaram o
modelo do ‘impacto’, uma vez que este trazia
a suposição simplista de que havia apenas dois
elementos envolvidos – ‘anfitriões’ e ‘hóspedes’
– e que a presença dos turistas era o vetor de
mudança ativo enquanto a população local era o
receptor passivo, cujo modo de vida tradicional
era irreparavelmente alterado (GRABURN, 2009,
p. 19).

A intenção de Dona Nena era sim alterar a realidade de sua família,


no sentido de alterar as condições muitas vezes difíceis de uma comunidade
ribeirinha pouco assistida pelo governo. Seu desejo era de ter um retorno
econômico fazendo aquilo que gostava de fazer, valorizando suas raízes e sua
cultura. E para isso foi importante a participação de várias pessoas, categoria
esta que NAOMI & GRABURN (2009) afirma se tratar da variabilidade de atores
envolvidos nas atividades turísticas, fugindo do dualismo de “anfitriões” e
“hóspedes”, assim como os tipos de interatividade entre estes. Aqui incluirei
também as instituições que tiveram algum papel na trajetória de criação da Casa
de Chocolate.

No início houve a intervenção de agentes externos, primeiramente de


uma escola com um projeto, por volta de 2004, onde era ensinada a produção
de biojóias para serem comercializadas. De acordo com Dona Nena a escola
auxiliava com tudo, o maquinário, treinamentos e capacitação para fazer as
biojóias dos materiais retirados na própria ilha. Em seguida veio o convite da
Secretaria Municipal de Economia do Estado do Pará (SECON) para que ela, e
as demais pessoas da comunidade envolvidas na produção das biojóias, para
participar da Feira do Meio Ambiente que acontecia um sábado por mês na Praça
Batista Campos. Apesar de as vendas das biojóias não tido muito êxito, a feira foi
fundamental na trajetória da Dona Nena, pois foi neste evento que ela decidiu
começar a levar as frutas coletadas na ilha, e produtos feitos com estas, para
vender, e, por ser natural, saudável e barato por ser direto do fornecedor, os o
número de clientes começou a crescer.
Turismo e agência entre os ribeirinhos: a casa de chocolate da Ilha do Combú - PA 164

Depois da feira se tornar um sucesso, os expositores resolveram brigar


na prefeitura para que a feira ocorresse em mais finais de semana ao invés de
apenas um dia no mês. E assim não só conseguiram que a feira ocorresse em
todos os sábados do mês, como se organizaram enquanto Associação Pará
Orgânico e conseguiram que a feira também fosse para a Praça Brasil nos dias
de quarta. Nestas feiras já era vendido o chocolate artesanal, assim como as
trufas recheadas que aprenderam a fazer em um curso de bombons regionais
na Paroquia dos Capuchinhos em Belém. E foi nessa época que surgiu a primeira
versão da Casa do Chocolate, o então Combú Orgânicos.

Essa primeira versão da fábrica de chocolate funcionava na cozinha


da casa da Dona Nena (figura 4 e 5) que transformou esse espaço no espaço
de produção de seus produtos para vender nas feiras. Havia uma grande
preocupação com a higienização do lugar, pois houve um momento em que elas
foram proibidas pela vigilância sanitária de vender os chocolates orgânicos na
feira por utilizarem o pilão, um recipiente de madeira tradicional.

Figura 4 – mesa da cozinha da Dona Nena com


utensílios para fabricação de seus produtos

Figura 5 – Arte visual do Combú Orgânicos

Fontes: pesquisa de campo (2013).


165 Socioantropologia de Povos e Comunidades Tradicionais Costeiras e Ribeirinhas

Outros dois atores foram fundamentais nessa trajetória, a primeira é


interna, sendo ninguém menos do que Prazeres, dona do primeiro restaurante
da ilha, o Saldosa Maloca. De acordo com Dona Nena, esta foi a primeira a apoiar
seu projeto do chocolate orgânico e os demais produtos, pois colocava a venda
em seu restaurante, que já tinha certa fama, como também introduziu a outra
pessoa que iria ajudar a alavancar seu empreendimento.

Essa pessoa seria o chef de cozinha mais famoso do estado, Thiago


Castanho, dono do restaurante Remanso do Bosque, e atualmente do Remanso
do Peixe também. O chef é conhecido internacionalmente, aparecendo na The
New York Times e na revista britânica Restaurant, assim como em programas de
televisão, como o Mais Você da Ana Maria Braga e o reality Master Chef. Thiago
foi chamado a convite de Prazeres para ajudar Dona Nena a refinar o cacau para
a fabricação dos bombons, porém depois de levar para avaliar o produto em
seu restaurante afirmou que não deveriam mudar nada, pois o produto era de
extrema qualidade.

Após isso decidiu vender produtos da Dona Nena em seu restaurante e


começou a usar para criar receitar para o restaurante, que fizeram sucesso não
só com clientes, mas com outros chefs amigos de Thiago. Este também levava os
produtos para todo lugar que ia, e assim foi divulgando os produtos do Combú
Orgânico:

Ele ia dar em cursos, levava pra institutos,


várias escolas ele levava o nosso produto
e apresentava e chegava televisão e via as
barrinhas embrulhadas na folha e chamava
atenção, e perguntavam de onde era e ele dizia
que era daqui e indicava pra fazerem matérias. E
com isso a gente começou a se surpreender com
o público vindo nos visitar aqui, na época não
tinha esse fluxo de vai e vem de lanchas e barcos
(DONA NENA, 01 de maio de 2019)

Foi uma questão de tempo para seus produtos ficarem famosos e sua
casa começar a receber muitos visitantes curiosos, inclusive chefs de fora do país.
Diante dessa movimentação de pessoas decidiram transformar a sala de sua casa
em uma loja para demonstração e venda de seus produtos (figura 6).
Turismo e agência entre os ribeirinhos: a casa de chocolate da Ilha do Combú - PA 166

Figura 6 – parte da sala da Dona Nena transformada em loja dos seus produtos

Fonte: pesquisa de campo (2017).

E o movimento de pessoas continuava a crescer, assim como a demanda


pelos produtos, se acrescentando o fato de que havia outras atividades que a
família estava envolvida, o que fez com que só a família de dona Nena não fosse
o suficiente para conseguir dar conta. Assim a idealizadora do empreendimento
lembra: “a gente percebeu que tinha que se organizar pra receber esse povo
que tava vindo né porque a gente chegou no limite de não saber se produzia ou
atendia” (DONA NENA, 2019).

Dona Nena decidiu de fato investir e transformar seu empreendimento


num grande atrativo turístico, já que sem nem mesmo um grande planejamento
os visitantes de fora da ilha já estavam constantemente batendo em sua porta.
Apesar de não conhecer o conceito em si de atratividade turística, ou sem ter
nenhum conhecimento sobre turismo, percebeu a necessidade de aprender e
que ali havia uma grande oportunidade para si, para sua família e para a ilha
também.

Nesse ponto, outros atores externos entraram em cena, direta ou


indiretamente. Procuraram a Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural
do Estado do Pará (EMATER) para fazerem um plano de manejo pra aumentar
a produção. Com este plano em mãos deram entrada em um financiamento
pelo Banco da Amazônia (BASA) com o qual puderam estruturar o que hoje é a
Casa de Chocolate. E por último viria a Secretaria Municipal de Meio Ambiente
(SEMMA) com a liberação da licença para o por em prática seu projeto, haja vista
que o local é uma Área de Proteção Ambiental.
167 Socioantropologia de Povos e Comunidades Tradicionais Costeiras e Ribeirinhas

Figura 7 – o trapiche da Dona Nena Antes

Fonte: pesquisa de campo (2013).

Figura 8 – o trapiche da Dona Nena depois – ambiente I

Fonte: pesquisa de campo (2019).


Turismo e agência entre os ribeirinhos: a casa de chocolate da Ilha do Combú - PA 168

Figura 9 – o trapiche da Dona Nena depois – ambiente II

Fonte: pesquisa de campo (2019).

Apenas de olhar para a diferença de como era o trapiche da casa de Dona


Nena já é possível perceber o crescimento do seu empreendimento. Na figura 6
se vê como seu trapiche era pequeno, e era nele onde era estendido o Tupé (um
tipo de tapete feito por ela), onde as sementes de cacau ficam secando para a
produção de chocolate caseiro vendido nas feiras da zona urbana, sem qualquer
estrutura para receber se quer um pequeno numero de visitantes frequentes.
Nas figuras 8 e 9 tem-se a construção desse grande trapiche pensado para
receber até dois grupos que participam dos passeios oferecidos por eles ou por
agendamento através de terceiros, e ainda tem espaço para receber os visitantes
apenas da casa de chocolate Figura 10.

Figura 10 – Casa de Chocolate da Ilha do Combu

Fonte: pesquisa de campo (2019).


169 Socioantropologia de Povos e Comunidades Tradicionais Costeiras e Ribeirinhas

Como é apontado por NAOMI E GRABURN (2009), é importante pensar


sobre lugar que é pensado para o turismo, ou seja, pensar neste como uma
atratividade para os turistas que o escolhem como destino. Dentro dessa questão,
BRENNER (2007) argumenta sobre a necessidade de haver um planejamento,
se pensando no que de diferente aquela localidade pode oferecer ao turista,
para que o local se torne sempre atrativo e demonstre mais as características
específicas daquele local.

Dona Nena não buscou criar uma atratividade turística qualquer, e


sim estabeleceu o dialogo entre elementos que destacam a cultura local,
valorizando-a, com os interesses e gostos dos que visitam. Pensando em como
tornar seu espaço e seus produtos, seu empreendimento no geral, como algo
mais atrativo do que já era “naturalmente” fez com que a demanda aumentasse
ainda mais. Tanto que antes o horário de atendimento era de quarta a domingo,
das 8h as 17h, hoje o funcionamento é todos os dias.

Viviane, filha da Dona Nena, que também trabalha com a mãe, revelou
que são em média 600 visitantes em apenas um dia do final de semana. Assim,
foi preciso aumentar o quadro de funcionários, pois somente a família não daria
conta de toda a demanda, como destaca Dona Nena:

Hoje somos responsáveis por 11 famílias


diretamente (..) e pelo aumento da demanda
tivemos que nos tornar uma pequena empresa,
com 8 pessoas com CNT, inclusive a família toda
é registrada, ninguém pode nos processar (risos)
e temos mais as pessoas que colaboram com a
gente (DONA NENA, 01 de maio de 2019).

Devido ao fato do funcionamento durante toda a semana, os funcionários


se revezam para folgar duas vezes durante a semana, não podendo ser dois dias
corridos. Essas pessoas que colaboram com a casa de chocolate se trata de outro
grupo de atores que tem sido fundamental para o funcionamento do local. Trata-
se da cooperação entre a Dona Nena e a pequena empresa Ornato Embalagens
que foi a empresa escolhida por ela para confeccionar as embalagens para seus
produtos por ser uma empresa que valoriza o contexto sociocultural ribeirinho,
com suas embalagens que se enquadram com seu modo de vida e seus valores.
Turismo e agência entre os ribeirinhos: a casa de chocolate da Ilha do Combú - PA 170

Figura 11 – Sacola para o cliente levar os produtos

Fonte: pesquisa de campo (2017).

Figura 12 - Barras de chocolate orgânico

Fonte: pesquisa de campo (2019).


171 Socioantropologia de Povos e Comunidades Tradicionais Costeiras e Ribeirinhas

Assim, Mário Carvalho, Gerente de inovação e marketing da Ornato,


doutor em administração e guia turístico, é o atual administrador da empresa
criada em parceria com Dona Nena, além de organizar os passeio da Casa de
Chocolate, e ser o guia dos mesmos. Para além disso, a Ornato também fornece
funcionários para ajudarem no funcionamento da loja e no atendimento dos
visitantes.

Dona Nena buscou, mesmo que não totalmente consciente, transformar


fatores culturais em atrativos turísticos, tanto na identidade visual, como nos
produtos e nos passeios oferecidos. Assim, a casa de chocolate se encaixa no
segmento do turismo cultural que “cobre todos os aspectos da viagem mediante
o qual as pessoas aprendem sobre costumes e idiossincrasias de cada um”
(BRENNER, 2007, p. 361). Sobre a questão é importante destacar:

a contribuição do turismo cultural para o


desenvolvimento endógeno da comunidade
local. Por um lado, em razão da utilização do
patrimônio local (incluindo a vivência humana)
como bem de alto valor econômico, e, por
outro lado, pelo estímulo às comunidades
em termos de auto-estima, conforme ressalta
Azevedo (2002a). Isso explica porque o turismo
cultural vem sendo considerado como possível
componente de sustentabilidade do processo de
desenvolvimento, com duplo desdobramento:
promovendo a preservação da memória
histórica e atuando e atuando como elemento
de continuidade que permite às comunidades
se apropriarem do conhecimento de seus bens
patrimoniais e perceberem o correspondente
valor econômico (BRENNER, 2007, p. 366.)

Outra questão importante levantada por BRENNER (2007) é o


crescimento da atratividade da natureza e do ambiente rural como alvo turístico,
que proporcionou o surgimento e fortalecimento do ecoturismo e do turismo
rural. Assim, o turismo se apresenta como valorização cultural, dos patrimônios
e até mesmo do meio ambiente. E o caso da Casa do Chocolate se enquadra
justamente nesse contexto, pois os principais atrativos da Ilha do Combu como
um todo são a presença imponente do meio ambiente e os elementos da
identidade e modo de vida ribeirinha.
Turismo e agência entre os ribeirinhos: a casa de chocolate da Ilha do Combú - PA 172

Figura 13 – Trilha ecológica – Samaúma

Fonte: Pesquisa de campo (2019)


Figura 14 – Trilha ecológica

Fonte: Pesquisa de campo (2019)


173 Socioantropologia de Povos e Comunidades Tradicionais Costeiras e Ribeirinhas

Figura 15 – Trilha ecológica – local de secagem da semente do cacau

Fonte: Pesquisa de campo (2019)

Então, além do turismo cultural, a Casa do Chocolate também se


estabelece no segmento do ecoturismo, principalmente através dos passeios
que proporcionam uma experiência turística peculiar onde se é proporcionado
uma interpretação do meio ambiente e de parte da cultura local. Nos passeios o
visitante tem a possibilidade de degustar os produtos feitos no local, fazer trilha
conhecendo a área de cultivo e as demais particularidades do local, ver e tirar
foto com uma Samaúma centenária e grandiosa, assim como também conhecer
ou participar do processo de fabricação do chocolate orgânico.

ALGUMAS REFLEXÕES FINAIS

Como ressaltado por BRENNER (2007), a cada momento as localidades


passam por constantes transformações, então o turismo pode, e deve, ser uma
ferramenta que também proporcione a “enraização”, uma valorização das raízes
de cada cultura e reafirmação das identidades locais. Pelas falas da Dona Nena,
de outros membros da sua família que trabalham com ela, e até mesmo de vários
outros moradores locais, se percebe uma animação pela crescente procura pela
ilha como destino de lazer e turismo. O semblante dos que falam sobre o assunto
é de orgulho por ter seu lugar, e sua cultura, reconhecido e valorizado, pois para
muitos ver que o visitante gosta e sente prazer de estar ali, e que tem a intenção
de voltar outras vezes, é motivo de felicidade, o que parece, inclusive, elevar a
autoestima local.

Isso se mostra importante para uma população que sempre se sentiu,


de certa forma, marginalizada, excluída e inferiorizada diante de uma Belém
continental urbana e movimentada. A casa de chocolate se apresenta como a
realização de um sonho, principalmente da Dona Nena, visto que agrega um
valor econômico em seu patrimônio natural e cultural, possibilitando assim que
estas pessoas trabalhem com que gostam de fazer, com algo que faz parte do
seu modo de vida, proporcionando também o aumento na renda familiar e maior
qualidade de vida, bem como um empoderamento.
Turismo e agência entre os ribeirinhos: a casa de chocolate da Ilha do Combú - PA 174

Como foi mostrado aqui, a Casa do Chocolate é um exemplo de


cooperação entre atores externos e internos onde o foco se estabelece na
agência destes últimos, pois estes são os que devem sempre estar à frente do
processo de tomada de decisões, planejamento e execução de atividades que
são realizadas na ilha. O turismo é um fenômeno que pode ser muito expressivo,
então as comunidades receptores devem sempre estar no centro do debate e das
decisões, pois os visitantes chegam, se divertem, e voltam para suas realidades,
enquanto os anfitriões continuam ali, colhendo os frutos, ou arcando com as
consequências.

Por isso é importante que os órgãos públicos sempre os incluam


no processo de decisões e planejamento para o turismo na Ilha do Combu,
rompendo com o costume onde importantes decisões são tomadas de “fora
para dentro” ou “de cima para baixo”. É preciso estar atento para que diante da
crescente procura pela ilha venha para beneficiá-los também, que essa atividade
traga retorno para as comunidades, e que não seja colocada em evidência apenas
a preocupação com o conforto do turista ou a sua significância econômica, e
sim que seja também destacado o bem-estar da população local, bem como sua
conservação, juntamente com o meio ambiente.

Vale ressaltar o fato de que a ilha em questão é uma Área de Proteção


Ambiental, o que torna essa discussão não só importante, mas fundamental,
pois há uma série de implicações a serem consideradas para que sua razão de
ser permaneça sempre em prol dos ribeirinhos da ilha e seu meio ambiente.
Acrescenta-se a essa questão a debilidade da atuação do conselho gestor da
APA e o fato de que até hoje a mesma não possuir seu plano de manejo.

É fundamental romper com uma visão totalmente negativa do turismo,


porém sem acabar gerando uma romantização que acabe por mascarar situações
que prejudiquem a população receptora. É preciso repensar a concepção de
turismo que temos em nossa sociedade, principalmente por isto refletir nas ações
externas, públicas e privadas, no local. Repensar o foco que é dado quando se fala
em turismo, que geralmente são os turistas e o dinheiro gerado pela atividade,
muitas vezes deixando de lado os anseios e o bem estar da população e do local
que atrai o turista.
175 Socioantropologia de Povos e Comunidades Tradicionais Costeiras e Ribeirinhas

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177 Práticas ex trativistas na Ilha do Marajó, Pará

PRÁTICAS EXTRATIVISTAS NA ILHA DO MARAJÓ, PARÁ:


INFLUÊNCIAS DO PROGRAMA BOLSA FAMÍLIA E DE
FATORES ENDÓGENOS E EXÓGENOS NA DIETA ALIMENTAR
DE FAMÍLIAS RIBEIRINHAS1

Vivianne Nunes da Silva Caetano


Universidade Federal do Pará

Flávio Bezerra Barros


Universidade Federal do Pará

PROGRAMA BOLSA FAMÍLIA E O LÓCUS DA PESQUISA

Iniciou-se a partir de 2001, por parte do Governo Federal, a proposta de


desenvolver uma “Rede de Proteção Social” que seria um esforço articulador de
programas compensatórios, com ações nas áreas da educação, saúde e trabalho,
tendo como objetivo primordial atender a população pobre do país com a renda
per capita familiar de meio salário mínimo, que se encontrava dentro da chamada
“Linha da Pobreza”.

O objetivo dessa rede seria diminuir o alto índice de desemprego,


crescimento da violência, pobreza e extrema pobreza, desigualdade social, por
meio de programas nacionais de transferência de renda, destacando-se os
Programas desenvolvidos pelo Ministério de Assistência Social, como o Benefício
de Prestação Continuada – BPC, o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil
(PETI), o Programa Agente Jovem; os vinculados ao Ministério da Educação:
Programa Nacional de Renda Mínima, vinculado a Educação – “Bolsa-Escola”;
do Ministério da Saúde o Programa Bolsa-Alimentação; do Ministério de Minas
e Energia, o Auxílio-Gás, e, o Programa Cartão Alimentação, estabelecido em
2003 pelo governo Luiz Inácio Lula da Silva, parte do Ministério Extraordinário de
Segurança Alimentar e Combate à Fome (Silva et al., 2011).

No primeiro mandato do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva,


aconteceram mudanças históricas na utilização dos programas de transferência
de renda no Brasil, destacando-se a unificação dos programas sociais, citados
acima, por meio da implantação, a nível nacional, do Programa Bolsa Família
(PBF), criado pela “Medida Provisória nº 132, de 20 de outubro de 2003, sendo
sancionada pela Lei nº 10.836, de 9 de janeiro de 2004, e regulamentada pelo
Decreto nº 5.209, de 17 de setembro de 2004” (Nascimento, 2015:15).

Assim, o PBF passou a ser considerado a “principal ação governamental


brasileira que objetiva enfrentar a pobreza absoluta” (Nascimento, 2015:15),

1. Este trabalho é fruto dos resultados da tese de doutorado desenvolvida no


Programa de Pós-Graduação em Antropologia da UFPA, ano 2018, intitulada:
“Sem o Bolsa fica escasso, com o Bolsa é mais avortado!”: As influências do
Programa Bolsa Família nas estratégias alimentares de uma comunidade
ribeirinha da Amazônia Marajoara.
Socioantropologia de Povos e Comunidades Tradicionais Costeiras e Ribeirinhas 178

sendo reconhecido como “carro-chefe” do Programa Fome Zero, que tinha


como objetivo principal a inclusão social e a segurança alimentar e nutricional,
para garantia de cidadania da população mais vulnerável à fome (Freire, 2012).
Destinando-se, portanto, “a grupos familiares sem renda ou cuja renda é
insuficiente para garantir o mínimo necessário à sobrevivência, que varia segundo
o custo e as condições médias de vida de cada país” (Kaloustian, 1998:107).

Dentro dessa perspectiva, o Programa tem sido, nas últimas décadas,


foco privilegiado em várias discussões interdisciplinares, com ênfase em questões
referentes a (des)igualdade, pobreza, trabalho, saúde, educação, segurança
alimentar, economia, família, gênero etc. Em se tratando das influências do
Programa na dieta alimentar ribeirinha marajoara, são poucas as pesquisas
encontradas nesse âmbito. Fato este que nos instigou a verificar em uma
comunidade denominada Santa Luzia, situada no município de Breves, região
do Arquipélago do Marajó/Pará, onde, praticamente, todos os moradores são
beneficiários do Programa, como são utilizados os valores recebidos do benefício
para a manutenção alimentar mensal de famílias ribeirinhas.

Breves, sede do lócus desta pesquisa, está localizada nos “Marajós” das
águas e florestas, à margem esquerda do Rio Parauaú, distante 160 km em linha
reta da capital Belém, trajeto esse que pode ser feito por meio de transporte
fluvial com duração média de 12h de viagem em navios ou balsas ferry boat
e de 6h em lanchas tipo catamarã, tendo opção também por via aérea em
aeronaves monomotoras fretadas com tempo de até 45 minutos. As viagens
fluviais acontecem diariamente e quase sempre se iniciam no final da tarde, às
18h, momento em que se encontram as águas do rio e o pôr do sol. Os navios
ou balsas transportam cargas e passageiros que têm a opção de viajar em redes2,
que são atadas umas ao lado das outras montando um arco-íris de sobreposição
de variadas cores ou podem se acomodar em camarotes com duas ou quatro
camas.

Dentro desse contexto econômico e social, no Distrito Sede Rural, a


12km de distância da cidade de Breves se encontra, às margens do rio Tauaú,
a Comunidade Santa Luzia, lócus desta pesquisa. Tendo como vias de acesso
tanto por meio fluvial, com entrada por um dos braços do rio Tauaú; quanto
terrestre, pela estrada Breves – Mamajó – Corcovado, PA 159. Santa Luzia, assim
como muitas outras, não se constitui como uma comunidade fundada em uma
economia isolada e autossuficiente. Ao contrário, “as comunidades ribeirinhas
mantêm uma intensa circulação monetária e de bens com as economias externas,
em especial, a dos centros urbanos regionais” (Fraxe, 2004:8). No caso dessa
comunidade, o fluxo comercial e social se faz diretamente com a cidade de
Breves, ambas ligadas por estradas e rios.

Até o ano de 2017, residiam em Santa Luzia, em torno de 105 famílias,


que vivem em casas de arquitetura simples, feitas de madeira, algumas com
2. A rede de descanso ou rede de dormir é um utensílio doméstico de origem
indígena, que era originalmente chamada de “hamaka” e feita com cipó e lianas.
Hoje em dia, as redes são fabricadas de diversas formas e materiais, desde as
mais tradicionais de fio, tecidas em “batelão” (tear) mecânico ou elétrico, até as
feitas a partir de tecido ou de materiais sintéticos como nylon e outros materiais.
Visto em: http://redesantalucia.com.br/a-historia-da-rede-de-dormir/. Acesso
em: 26.02.2018.
179 Práticas ex trativistas na Ilha do Marajó, Pará

pinturas, outras não, cobertas por telhas de fibrocimento, de barro ou, ainda,
por palhas retiradas das matas. A maior parte das famílias que residem na
comunidade passam por dificuldades financeiras sérias e possuem como “renda”
principal os valores repassados pelo PBF.

Nas observações realizadas em campo, notamos que dentre muitas


famílias beneficiárias da comunidade as práticas tradicionais de aquisição de
alimentos já não são desenvolvidas continuamente como antes. Servindo,
atualmente, como forma de manutenção somente quando há a carência de
alimentos industrializados, comprados, na maioria das vezes, com os valores
recebidos do benefício do PBF, os quais costumam ter a duração de poucos
dias, gerando, com isso, um ciclo recorrente mensal de consumo de alimentos
regionais e a compra de mantimentos industrializados.

Dessa forma, esta pesquisa objetivou entender de que forma o


Programa Bolsa Família influencia na dieta alimentar e nas práticas de aquisição
de alimentos de famílias beneficiárias ribeirinhas marajoaras. Os estudos
aqui apresentados foram baseados a partir de uma abordagem etnográfica,
qualitativa, com pesquisa bibliográfica, tendo como instrumentos de coleta
de dados a observação participante, oficinas, entrevistas semiestruturadas,
conversas informais, que resultaram em ricas narrativas de moradores de uma
comunidade ribeirinha.

Para nossa análise, nos debruçamos especificamente sobre as culturas


do extrativismo, cultivo vegetal de frutas e outros produtos regionais como o
miriti, pupunha, macaxeira, e o açaí, que são a principal fonte de alimento nas
refeições de comunidades ribeirinhas marajoaras, e que servem tanto para
o consumo quanto para a venda na região. Os resultados demonstraram que
alterações ocorrem tanto pela utilização dos valores repassados pelo benefício
como, também, por fatores endógenos e exógenos, que modificam as formas de
manutenção, conservação e consumo, influenciando de maneira expressiva nos
tipos e nas formas de aquisição de alimentos.

INSERÇÃO DO PBF NO MODO DE VIDA RIBEIRINHO

De uma forma geral, na região de Breves, muitas famílias contam,


quase que exclusivamente, com o valor repassado por programas sociais,
principalmente com os benefícios do PBF, o qual passou a assegurar às famílias
beneficiárias uma renda mensal que antes não possuíam. Conceição (2011:7), em
sua pesquisa, demonstra que há no município uma “condição de dependência
ao benefício pago pelo Programa”, haja vista, que grande parte da população se
encontra desempregada, realidade esta de todos os moradores de Santa Luzia,
os quais contam com o benefício não como auxílio, mas sim, como renda fixa
mensal.

Sendo assim, a inserção do recebimento de valores mensais no modo


de vida de populações rurais amazônicas, como em Santa Luzia, possibilitou
modificações consideráveis no poder de compras dos ribeirinhos beneficiários, e
consequentemente, no tipo de alimentação que tempos anteriores ao Programa
pouco tinham acesso a recursos para aquisição de produtos industrializados.
Socioantropologia de Povos e Comunidades Tradicionais Costeiras e Ribeirinhas 180

Almeida (2014:14) destaca que “as famílias pertencentes às regiões Norte-


Nordeste têm maiores chances de participar do Programa e que as características
estruturais dos domicílios, composição da família e escolaridade do morador de
referência contribuem para explicar também a participação no programa”.

Dentro dessa perspectiva, na comunidade Santa Luzia, a participação


dos moradores no PBF chega a quase 97% das famílias do lugar, das quais muitos
afirmam fazerem parte do referido benefício desde antes de sua unificação,
quando ainda se tratava do Programa Bolsa Escola, fato este, que leva algumas
pessoas do lugar, por costume, ainda, o denominarem dessa forma.

Sendo assim, no decorrer dos tempos, devido à falta de emprego para


essas populações, muitas famílias beneficiárias na comunidade passaram a contar
com o valor repassado não somente como um complemento, como deveria ser,
e sim como salários mensais repassados pelo Governo, como explicou um dos
interlocutores da pesquisa, Seu João (interlocutor da pesquisa): “Salário principal
é só o Bolsa, sem ser isso aí ninguém ganha mais nada, o que nós ganhamos
mesmo é só trabalho de roça, de macaxeira, de farinha, de fruta, dessas coisas”.

Sobre essa visão, a coordenadora do Sistema Presença, em Breves,


confirma que a maior parte dos beneficiários que pertencem ao Programa
compreendem que o benefício é um salário mensal, e muitos não acreditam
que um dia poderão deixar de recebê-lo, como explicou: “É de salário que eles
chamam! E quando acontece qualquer problema no seu recebimento eles vão
procurar e perguntam: ‘O que aconteceu? Por que o meu salário diminuiu?’”.

Esse entendimento ocorre devido os valores mensais serem repassados


efetivamente, na maioria das vezes sem atrasos, proporcionando, com isso, uma
forma de segurança aos beneficiários, que passaram a contar com uma renda
doméstica mensal mais estável que, “impulsiona para o consumo no mercado
urbano e reflete mudanças no padrão de consumo dos moradores [...], que aos
poucos tendem a substituir as panelas de barro, fogão a lenha, cobertura feita
de palha, tupé e redes usadas para dormir, por produtos mais industrializados”
(Corrêa, 2010:100).

Portanto, as compras de produtos e alimentos são feitas na cidade,


normalmente logo após o pagamento que segue um calendário anual do
Programa, efetuado na agência da Caixa Econômica Federal e/ou na agência
lotérica, ambas no meio urbano de Breves, que ficam lotadas no período em
que é liberado o recurso. Logo após o recebimento mensal dos valores, muitos
já levam do meio urbano para a comunidade as compras mensais feitas em
supermercados e mercearias, pois, afirmam que no meio rural os valores nas
“baiucas3” são exorbitantes.

Assim, a necessidade de acesso ao comércio local ocorre devido,


geralmente, as comunidades ribeirinhas produzirem basicamente para
sua subsistência, no entanto, “ela não produz tudo o que necessita – daí a

3. Pequenas tabernas com venda de mantimentos básicos aos moradores do


meio rural marajoara.
181 Práticas ex trativistas na Ilha do Marajó, Pará

inevitabilidade de o camponês ter que recorrer ao mercado, seja ele no local de


moradia (perto de sua casa), na comunidade, na sede do município, na cidade”
(Witkoski, 2010:347).

Pesquisas realizadas por Almeida et al. (2014), mostram que houve


uma queda significativa no processo de insegurança alimentar entre as famílias
beneficiarias do PBF. Contudo, apesar dos pontos positivos, os “ranchos” feitos
pelos beneficiários, geralmente, não são suficientes para garantia de sustento
para o mês todo, pois, costumam durar por no máximo duas semanas, em média.
O que para eles que possuem muitas crianças torna-se insuficiente. Portanto, “no
que concerne às mudanças nas práticas alimentares, o recebimento do benefício
proporcionou o acesso a uma alimentação mais variada e em maior quantidade,
embora, às vezes, não suficiente para durar o mês inteiro” (Nascimento et al.,
2016:9).

Sendo assim, percebemos que, continuamente, ocorrem reclamações


referentes aos valores, vistos como “muito baixo” para a quantidade de pessoas
que fazem parte das famílias, apesar de que todos os beneficiários que tivemos
contato reconhecem a importância do benefício. Principalmente para a melhoria
e maior acesso “a produtos ‘nos dias de hoje’ que ‘nos tempos anteriores’”
(Nascimento et al. 2016:9), pois, possibilitou “uma expansão na renda das famílias
em situação de pobreza ou extrema pobreza, que afeta significativamente o
comportamento do consumo de alimentos” (Almeida et al., 2014:4).

É notório, portanto, evidenciar que o PBF proporcionou algumas


melhorias que antes não eram acessíveis, pois, havia mais dificuldade na
aquisição de produtos com proteína de origem animal (derivados do leite e,
principalmente, carne vermelha e frango); proteína de origem vegetal (feijão) e
um maior aporte no consumo de cereais (arroz, macarrão, farinha), fontes de
carboidratos, alimentos essenciais no fornecimento da energia necessária para
a condução das atividades desenvolvidas na localidade: agricultura, pesca e
extrativismo (Nascimento et al., 2016).

Todavia, o consumo de alimentos industrializados, processados,


em especial enlatados, instantâneos, embutidos, biscoitos, salgadinhos,
refrigerantes, ampliou-se consideravelmente na comunidade, se comparados
aos considerados saudáveis, ricos em proteínas, de origem animal. Nascimento
et al. (2016:6) detectaram que seus interlocutores, beneficiários do Programa,
costumam consumir tanto “carnes (58%), ovos (50%), leites e derivados (50%)
como alimentos de origem vegetal: feijão (72%). O consumo de cereais
aparece na segunda posição com um aumento de 66% entre os entrevistados,
principalmente, de arroz, farinha e macarrão” e outras vitaminas essenciais ao
corpo, que no caso de Santa Luzia, são pouco consumidas pelos moradores.

Nesse sentindo, os trabalhos de Murrieta (2001), Corrêa (2010),


Almeida et al. (2014), Nascimento et al. (2016), Lima (2017), ao tratarem sobre o
consumo alimentar dos povos do meio rural enfatizam que o tipo de alimentação
se modificou consideravelmente nas últimas décadas, pois, antes alimentavam-se
quase que exclusivamente de produtos naturais, retirados das florestas e dos rios
da região. Atualmente, a maioria dos alimentos que consomem é adquirido nos
comércios da cidade, até mesmo produtos originários dessas localidades, que
Socioantropologia de Povos e Comunidades Tradicionais Costeiras e Ribeirinhas 182

eram comuns nos consumos diários.

Assim, após o benefício, como evidenciam Nascimento et al. (2016:6),


“a renda proveniente do PBF possibilita o acesso a um padrão de consumo mais
elevado pelas famílias beneficiárias, permitindo a compra de bens anteriormente
não acessíveis devido à falta de uma renda fixa”. O que reflete diretamente na
“qualidade de vida das famílias, tendo em vista que após o recebimento do
benefício ‘ficou mais fácil pra conseguir as coisas’, ‘o benefício ajudou na compra
de outros alimentos’, ‘ajuda na complementação da alimentação’” (Nascimento
et al., 2016:6).

Desta feita, o recebimento dos valores do Programa permitiu a


ampliação nas opções de utilização e consumo de variados produtos, alterando
as possibilidades em formas de compra, ou não, a seus beneficiários. Assim,
ficaram evidentes as mudanças ocorridas nas relações entre os moradores do
meio rural com o comércio local, que anterior ao benefício enfatizava-se o
costume do escambo e somente a comercialização e compra de itens necessários
“para a subsistência (sal, querosene e açúcar) e a venda dos produtos de seu
trabalho” (Fraxe, 2000:168).

FATORES QUE INFLUENCIAM NA DIETA ALIMENTAR DE RIBEIRINHOS


BENEFICIÁRIOS DO PBF

Nascimento et al. (2016), Murrieta (2001), Corrêa (2010), Almeida et


al. (2014), Lima (2017) apresentam algumas modificações ocorridas nas últimas
décadas nos hábitos alimentares e na ampliação do consumo de alimentos
industrializados em comunidades rurais amazônicas, que “até recentemente, o
acesso a produtos industrializados e outros alimentos importados como carnes e
cereais enlatados, óleo de cozinha, leite em pó, manteiga e trigo, era um luxo que
poucas pessoas podiam ter” (Murrieta, 2001:60).

De acordo com Nascimento et al. (2016), o alto consumo de guloseimas,


como biscoitos, refrigerantes, iogurtes, e outros, está relacionado ao passado de
carência financeira por que passaram as famílias beneficiadas antes do PBF. Desta
feita, após o acesso aos valores do benefício “buscam proporcionar um padrão
de vida aos seus filhos que não puderam usufruir” (Nascimento et al., 2016:9).
No entanto, com os valores recebidos do PBF, apesar de se ampliar as opções
de gêneros alimentícios aos beneficiários, os mesmos passaram a priorizar
alimentos que não contam com nutrientes importantes para o desenvolvimento
de atividades tradicionais que costumam realizar na comunidade, tendo em
vista que “uma alimentação diversificada, por exemplo, melhora o nível de
concentração dos indivíduos” (Almeida et al., 2014:4).

Sendo assim, é perceptível que os hábitos alimentares, tanto os que


são apresentados pelos referidos autores, quanto outros detectados, acabam
por nortear e influenciar diretamente na vida cotidiana, na cultura e sociedade
também de moradores rurais-ribeirinhos que formam seus espaços e costumes
repassados de geração em geração. Nesse sentido, Canesqui (1988), Murrieta
(2001) e Almeida (2014), demonstram que a importância da alimentação vai
muito além de apenas saciar um desejo e uma necessidade biológica.
183 Práticas ex trativistas na Ilha do Marajó, Pará

Para Murrieta (2001), a alimentação está profundamente interligada


tanto com a sobrevivência básica, quanto com elementos sociais e simbolicamente
construídos, mais do que qualquer outro aspecto da vida humana, e isso acaba
por influenciar, também, nos processos diários e nas tomadas de decisões no
âmbito social, cultural, ecológico e financeiro. Contudo, não é visível em meio a
populações ribeirinhas, como na comunidade Santa Luzia, a preocupação com o
valor nutricional dos alimentos, questão essa geralmente deixada de lado, pois
para a maioria dos moradores do meio rural, a comida apreciada, é a que seja
“capaz de sustentar o corpo, dar força e energia para trabalhar, a que enche a
barriga, deixando a sensação de estar alimentado”. Trata-se, enfim, da ‘comida
de pobre’, cuja lógica da insuficiência e da ‘barriga cheia’ preside as práticas de
consumo alimentar” (Canesqui 1988:214).

Assim, o que importa, geralmente, para eles, é tão somente o fato de


poderem se sentir saciados a ponto de trabalhar o dia todo sem sentir fome “tão
cedo” (Canesqui 1988). Logo, o que se leva em conta, na maioria das vezes, para
a manutenção alimentar das famílias ribeirinhas é o comer “para matar a fome”,
sem a preocupação com valores nutricionais. Considerando, segundo Canesqui
(1988:213), a existência de “hierarquias de necessidades, que se expressa na
classificação de produtos considerados ‘mais necessários’ — arroz, feijão,
sal, açúcar, farinha, leite, pão, óleo e outros ‘menos necessários’ — hortaliças
e carnes”; os quais encontram-se equivalentes ao valor dos alimentos e a
disponibilidade de dinheiro que muitas vezes “obriga a restringir ao mínimo as
compras alimentares e a substituir produtos mais caros pelos mais baratos, os
mais nutritivos pelos menos nutritivos, observando-se a regra básica de controle
e economia” (Canesqui, 1988:213).

Desta feita, considera-se, também, os “critérios que avaliam o costume


alimentar, a oferta, a qualidade e atributos dos alimentos do ponto de vista
nutricional e suas adequações de consumo, os regionalismos e a preservação ou
ruptura das identidades sociais” (Canesqui, 1988:213). Dentro dessa perspectiva,
os moradores de Santa Luzia, em sua maioria, ao realizar a escolha de produtos
alimentícios, preocupam-se primeiramente se terão condições financeiras para
adquiri-los; quais produtos saem mais em conta para comprar, levando em
consideração o valor que possuem em mãos para efetuar a compra; a quantidade
que poderão adquirir para suprir as necessidades do grupo familiar; o sabor
que mais agrada a todos. Fatores esses que desconsideram que “os alimentos
processados foram apresentados como produtos perigosos para a saúde na
medida em que seu ‘processamento’ pode ter significado a perda de fibra ou de
vitaminas ou aumentado seu conteúdo de gorduras, açúcar ou sal” (Contreras e
Gracia, 2011:354).

Portanto, a prioridade acaba sendo estar saciado, de “bucho cheio”,


como dizem os interlocutores, para poder trabalhar no “pesado e sustentar a
família”. Para tanto, os alimentos mais consumidos com essa finalidade, apontados
pelos moradores de Santa Luzia, são: açaí, farinha, carne, frango congelado,
mortadela, sardinha, carnes em conserva, macarrão instantâneo, iogurte, doces,
refrigerantes e outros. Apesar de aparecerem nos relatos itens como feijão,
arroz, macarrão, carne, frutas variadas, e outros alimentos nutritivos, entretanto,
dificilmente, fora do período de recebimento do benefício, estes mantimentos
serão vistos na mesa de famílias beneficiárias na comunidade.
Socioantropologia de Povos e Comunidades Tradicionais Costeiras e Ribeirinhas 184

Sendo assim, a alimentação consumida pelos moradores de Santa Luzia


geralmente contrasta com as apresentadas em estudos como de Nascimento et
al. (2016), que apresentam como parte importante nas práticas alimentares das
famílias marajoaras, “cereais (arroz), leguminosas (feijão), grãos (milho), tubérculos
e raízes (mandioca, macaxeira)”, tidos como alimentos que dão “força” para o
trabalho, sendo tanto consumidos, como produzidos para complementação
da renda familiar, e para troca entre vizinhos (Nascimento et al., 2016:8). Deste
modo, a preocupação nutricional não foi perceptível entre os beneficiários da
comunidade, até mesmo porque, em sua maioria, os alimentos que são benéficos
à saúde, como frutas, verduras, pouco processados, atualmente, são mais caros e
ficam de fora do padrão econômico dos beneficiários na comunidade.

Sendo assim, foi comum ver, nos períodos de convivência na


comunidade, nos desenhos feitos nas oficinas, bem como ouvir, nos relatos
sobre o que costumam comprar com o valor do benefício, o maior destaque para
produtos industrializados e comprados nos comércios da cidade, como relatou
D. Joana (interlocutora da pesquisa): “Peixe, frango, mortadela, ovo, mingau, leite,
Danone que eles pedem para trazer. A fruta que eu trago mais é a maçã. Nescau,
bombons, pão que eles encomendam logo, eles gostam! Refrigerante, suco,
quando não tem o açaí, né? Que a gente toma bastante!”

Assim, apesar dos valores repassados pelo benefício não serem altos,
no entanto, as famílias procuram proporcionar aos seus familiares alimentos
diferenciados ao que costumam ter na comunidade, então: “o consumo se
concentra na alimentação (53%) que em geral compõe os produtos da cesta
básica local: açúcar, café, sabão em pedra, óleo de soja, leite em pó, sal farinha
e bolacha” (Corrêa, 2010:101). Deste modo, com o recebimento do benefício, os
moradores de Santa Luzia passaram a priorizar a aquisição de variados produtos
por meio da compra nos comércios da cidade. Fato este que ficou evidente
nas oficinas realizadas na escola com mais 150 alunos, que apresentaram os
produtos e alimentos que mais e menos consomem antes e após o recebimento
dos valores do benefício, dando destaque a cadernos, lápis, frango, mortadela,
bolacha, feijão, arroz, macarrão, café, açúcar.

Essas preferências têm conexão com as discussões tratadas por


Murrieta (2001:73) sobre o consumo de alimentos industrializados, oriundos
do meio urbano, os quais, afirma, que há outro “aspecto crítico das escolhas
alimentares que é a busca por status” (grifos do autor). Pois, para Murrieta, em
alguns casos, pode estar oculto que, o fato de se alimentarem com produtos da
cidade, muitos pensam, pode retirá-los do estigma de caboclo marajoara, termo
este visto como negativo e pouco utilizado como forma de identificação pelos
moradores de Santa Luzia.

Assim, “o contato e o acesso a outras culturas e populações têm


impacto nas mudanças alimentares de uma sociedade” (Nascimento et al.,
2016:2), que normalmente modificam o desenvolvimento social e econômico de
um grupo. É perceptível, portanto, que houve um aumento no “fluxo de entrada
de produtos industrializados, proporcionado pela oferta de novas possibilidades
de obtenção de renda, que redefine as relações com o mercado muito mais no
sentido de potencializar o consumo de bens duráveis e não-duráveis do que de
fortalecer a venda da produção local” (Corrêa, 2010:100).
185 Práticas ex trativistas na Ilha do Marajó, Pará

INFLUÊNCIAS DA NATUREZA: PERÍODOS SAZONAIS

Os moradores da comunidade Santa Luzia possuem várias


características alimentares que são influenciadas pelo ambiente e seu cotidiano
local, dentre as quais estão os períodos sazonais diversificados, conhecidos na
região pelas estações de “inverno” e “verão” amazônicos. Em que o “inverno”
ocorre no primeiro semestre anual, de janeiro a junho e o “verão” no segundo
semestre de julho a dezembro. Witkoski (2010:376-377) refere-se a essas épocas
do ano como “’tempo ecológico’ (tempo essencialmente cíclico), o qual é,
fundamentalmente diferente do tempo cronológico do homem urbano (tempo
‘acíclico’), cria parte significativa dos obstáculos ao desenvolvimento ‘completo’ e
contínuo da vida camponesa”.

Nas regiões amazônicas os ciclos da natureza modificam e impulsionam


alterações no modo de vida de seus habitantes, e determinam as rotinas rurais
devido, principalmente, aos fenômenos de enchente e vazante dos rios, alterações
de chuva e sol, que regulam em grande parte a vida dessas populações, de tal
modo que o mundo do trabalho obedece ao ciclo sazonal. Essas alterações
sazonais promovem grandes variações no cotidiano de moradores ribeirinhos
na Amazônia, consequentemente em Santa Luzia, que dependem dos
conhecimentos das enchentes e vazantes dos rios para determinar os momentos
de pesca, locomoção de transportes, e os períodos do ano de safras e entressafras
de alimentos.

Essas mudanças afetam diretamente o modo de vida dos ribeirinhos


marajoaras, em sua cultura, moradia e alimentação, pois, dependendo do período
de “inverno” ou “verão”, podem alternarem-se em tempos de produção farta de
açaí, peixe, frutas e camarão, possibilitando a doação ou venda do excedente
e períodos de estiagem e escassez de todos esses alimentos. Dessa feita, a
“seasonality influences many spheres of life for a rural resident of the Amazon, and they
require managerial knowledge and skills for surviving differences in resource availability
and landscape change; (sazonalidade influencia muitas esferas de vida para um
residente rural da Amazônia, que exigem conhecimentos e habilidades gerenciais
para ir sobrevivendo às diferenças de disponibilidade de recursos e mudanças de
paisagem)” (Lima, 2017:81).

As mudanças nas condições de uso dos recursos naturais, portanto,


dependem, e muito, do período sazonal de “inverno” e “verão” amazônicos,
que transformam consideravelmente aspectos determinantes do cotidiano de
comunidades ribeirinhas, como Santa Luzia, em que, no “Inverno”, janeiro a junho,
a situação da estrada de barro amarelo “fica ruim”, praticamente intrafegável e a
comida fica escassa; no “Verão”, julho a dezembro, há fartura de alimentos, com
safra de açaí e outras frutas, melhores condições de pesca e caça, a estrada é
“boa, seca”.

Assim, quando se trata de períodos sazonais os interlocutores afirmaram


que no “inverno” tudo é mais difícil, como relatou Seu Regi (interlocutor da
pesquisa): “No inverno é muito ruim, é um período em que a maré está muito
cheia e fica mais difícil de pegar peixes, as frutas até que tem bastante, mas o
açaí no inverno é escasso”. No “verão”, como nos disse o Seu Manoel, tudo é
“avortado”, ou seja, tudo é muito, açaí tem bastante, farinha, peixe, camarão, etc.
Socioantropologia de Povos e Comunidades Tradicionais Costeiras e Ribeirinhas 186

Portanto, dentro desses períodos “há o tempo para fazer a coivara4,


preparar a terra, semear, capinar e colher, como também há o tempo de se
esperar as espécies de peixes migratórios, como a tainha. Uma vez terminado esse
ciclo, ele recomeçará no período seguinte” (Diegues, 2000:56). Essas mudanças e
continuidades nas formas de aquisição e nos hábitos alimentares dos moradores/
beneficiários de Santa Luzia, se evidenciam com mais ênfase quando da ausência
dos valores repassados pelo PBF, momentos estes em que na falta de alimentos
industrializados voltam-se novamente os olhares para o que se pode adquirir na
própria comunidade, por meio das práticas tradicionais do pescar, caçar e extrair,
atividades de onde retiram o que se precisa para comer.

Lima (2017), bem como Corrêa (2010), evidenciam que mesmo


utilizando alimentos industrializados com mais frequência nestas últimas décadas,
tendo como um dos motivos o acesso aos valores de benefícios, entretanto, as
populações rurais amazônidas não deixaram de adquirir e consumir alimentos
naturais, produzidos nas próprias localidades. Contudo, em Santa Luzia é visível
que no decorrer dos tempos a utilização de alimentos retirados da própria
comunidade vem diminuindo consideravelmente, principalmente após a inserção
dos valores mensais do Programa, como relata D. Maria (interlocutora da
pesquisa): “Antes do Bolsa nós só comia o que a gente fazia mesmo, farinha,
carvão, e levava para vender e de lá que nós fazíamos a comprinha para trazer
para comer. Hoje nós compramos carne, frango, peixe fresco e salgado”.

Dessa forma, D. Maria demonstra em sua fala as diferenças de como


eram, ou são, as formas de alimentação antes e depois do PBF, deixando claro,
em vários outros relatos, que com os valores as coisas tornaram-se, de certa
forma, mais fáceis, principalmente no que diz respeito a aquisição dos alimentos,
que anterior ao benefício eram adquiridos de forma mais trabalhosa e incerta, e
um dos motivos para isso são as mudanças sazonais.

Logo, os períodos sazonais acabam por influenciar as formas de


alimentação e atividades dos moradores da comunidade, os quais esperam
pacientes pelas modificações que são impostas pelas determinações da natureza,
em que as atividades diárias no período chuvoso diminuem, pois, os moradores
acabam se resguardando mais, e no “verão” o ritmo de vida é mais intenso e
dinâmico.

INFLUÊNCIAS NA PESCA

O consumo de peixes e as espécies que são retiradas dos rios na região


de Santa Luzia, está relacionado “em grande parte pelas variações sazonais
ecológicas, pela habilidade do pescador e pela pura sorte” (Murrieta, 2001:65).
A atividade da pesca, na comunidade, assim como a caça, é transmitida entre
as gerações, ensinada aos mais novos para que tenham habilidade quando
precisarem de alimentos para seu sustento, vistas como garantia para que as
crianças aprendam a “se virar, caso a gente falte!” (D. Maria, interlocutora da
pesquisa).

4. Limpeza final do roçado para fazer o plantio.


187 Práticas ex trativistas na Ilha do Marajó, Pará

Muitas mães ao saírem para pescar ou caçar levam consigo seus (suas)
filhos (as) mais velhos (as), para que ajudem e aprendam, como explica D. Maria:
“Os nossos a gente começa a puxar desde pequenino, para ir nos ajudando,
ensinando e aprendendo porquê de repente eu ou o teu pai morre e aí como
vocês vão fica para aprender no mundo? Eu aprendi com meus pais”. Na figura
1 abaixo, um momento de transmissão de saberes nas águas do rio Tauaú, em
que um avô pesca com sua neta, numa inter-relação de ensino e aprendizagem.
É dessa forma que, na maioria das vezes, as crianças da comunidade aprendem a
como se manter com os produtos que a natureza disponibiliza.

Figura 1 - Momento de transmissão de saberes, avô ensinando a neta a pescar nas


águas do rio Tauaú.

Fonte: Pesquisa de Tese/2018.

Desta feita, existe a transmissão de várias práticas de aquisição de


alimentos, pois, muitas crianças e jovens da comunidade aprendem os ofícios
de seus responsáveis para ajudá-los em tarefas para manutenção das famílias.
Sendo assim, “as populações amazônicas produzem conhecimentos e culturas,
ligando-as ao passado para ratificá-las no presente, por meio de seus viveres e
de suas memórias coletivas, que são fortes marcas das populações amazônicas
nativas tradicionais” (Cals, 2015:83).

Entretanto, apesar do repasse feito por muitas famílias de práticas como


a pesca aos mais jovens, ficou evidente nos relatos de muitos interlocutores que
o peixe não é tido como prioridade na alimentação local, por acharem que “dá
muito trabalho para pegar” (D. Joana, interlocutora da pesquisa), ficando entre as
últimas opções quando na falta de outros alimentos. Situação que se intensifica
no período de “inverno”, na “cheia do rio”, tido como o pior momento para
pescar, ao contrário do “verão”, que é visto como melhor tempo, de “maré baixa”.

Nos momentos de pesca, além da questão sazonal, apontada


anteriormente, são levadas em consideração as preferências por sabores
e aparências que são determinantes para a escolha de quais espécies irão se
alimentar. Assim, como nos estudos de Murrieta (2001), na comunidade Santa
Socioantropologia de Povos e Comunidades Tradicionais Costeiras e Ribeirinhas 188

Luzia os ribeirinhos distinguem as espécies em duas categorias gerais que são o


peixe liso/peixe de pele e o peixe de escama. Muitos moradores, como D. Joana,
dizem não comer peixe liso porque lhe faz mal, por ser reimoso5.

A atividade de pesca na comunidade, segundo os moradores, encontra-


se também prejudicada, devido a existência dos sítios/balneários no lugar, os
quais causam muito barulho e afugentam os peixes da região. Considerando esse
fato e mais a entrada dos valores do benefício do PBF no cotidiano das famílias
beneficiárias, o que se percebe é que, paulatinamente, esse tipo de atividade está
sendo deixada de lado, sendo substituída por alimentos mais práticos e “fáceis”
de conseguir.

Sendo assim, destacamos a rica fauna pesqueira da região, “cujos


peixes mais conhecidos são: tucunaré, o poraquê ou peixe-elétrico, a pescada, a
dourada, o filhote, o pirarucu, as piranhas e o tamuatá. Os rios também possuem
uma grande quantidade de camarões e outros mariscos” (Cals, 2015:89).
Entretanto, o costume da pesca na comunidade já não é uma constante, pois,
muitas famílias não parecem priorizar o peixe como alimentação, por seu sabor
ou nutrição, e sim somente quando da necessidade de suprir a carência de outras
formas de alimentos para consumir.

EXTRATIVISMO

Outra forma de subsistência muito utilizada pelos moradores/


beneficiários de Santa Luzia é o extrativismo vegetal, também voltado para o
consumo das famílias, e, por vezes, quando da existência de excedentes, é realizada
a venda e/ou troca de “alguns produtos que são comercializados – açaí-do-
mato, tucumã, bacaba, castanha-do-pará, plantas medicinais em geral, andiroba,
copaíba, mel, madeira etc” (Witkoski, 2010:374). Barros (2012:292) identificou que
na “Amazônia, as principais atividades produtivas das comunidades tradicionais
são a agricultura de base familiar, a caça, a coleta de produtos da floresta
(comumente denominada de extrativismo) e a pesca”, atividades que ainda são
desenvolvidas na comunidade Santa Luzia.

As safras das frutas, como foi colocado anteriormente, estão ligadas


diretamente aos períodos sazonais, as estações de “verão” e “inverno”, em
períodos que variam por meses, sendo que, somente algumas poucas árvores
produzem frutos durante todo o ano. Os interlocutores deixaram claro que o
melhor período para extrativismo de frutas variadas na região é o período do
“inverno”. Contudo, a safra da fruta mais consumida, que é o açaí, ocorre com
mais intensidade no “verão”.

O consumo de algumas frutas, como laranja, mamão, abacate, não é


uma constante entre os moradores de Santa Luzia, sendo retiradas mais para
venda. Porém, frutas como o açaí, miriti e a pupunha, são utilizadas como

5. Alimentos que podem provocar inflamação na pele por reação alérgica.


Também chamados de “alimentos carregados”, o que os reimosos costumam ter
em comum é a alta concentração de proteína e gordura animal. In.: https://super.
abril.com.br/ciencia/o-que-sao-alimentos-reimosos/. Acesso em 21.06.2018.
189 Práticas ex trativistas na Ilha do Marajó, Pará

alimentos nas principais refeições. Algumas frutas são cultivadas nos próprios
quintais, como explicou Seu Manoel (interlocutor da pesquisa): “A gente tem uma
árvore de pupunha, é no inverno que dá. Tem aqui atrás (no quintal), também, o
açaí, tem algum cachinho, mas está verde. É só no verão que dá mais! Nós não
planta!”.

Portanto, como os quintais dos moradores, ao contrário dos terrenos


dos sítios/balneários, não são cercados, assim acabam se misturando com a
floresta atrás das casas, logo, muitas frutas extraídas para consumo não foram
plantadas pelos moradores, e são retiradas da própria floresta. Quanto as suas
preferências, destacamos a fala de D. Maria (interlocutora da pesquisa): “Agora
no verão é mais muruci, caju, pra banda do começo do inverno já vai dando
outras frutas, o açaí no verão, no inverno o que menos tem é o açaí, é mais difícil
pra gente encontrar”.

Em entrevista alguns moradores nos repassaram sobre como


consomem e a importância do açaí diariamente, destacamos o seguinte relato
de D. Joana (interlocutora da pesquisa): “Sempre tem açaí! Aqui todo mundo
toma açaí! Aqui em casa ninguém come com açúcar, só com farinha e come com
tudo o que tiver junto”. Assim, o açaí é a fonte principal de alimento para todos
os moradores da comunidade, serve tanto para o consumo quanto para a venda,
quando há necessidade financeira.

Quanto a tarefa de retirar os cachos das árvores na comunidade, cabe


tanto ao homem quanto a mulher essa atividade. Mas, quanto a produção do
vinho (polpa) a mulher toma a frente e produz para o consumo, como explica D.
Rosa (interlocutora da pesquisa): “Quem tira é os filhos e o marido, eles usam a
peconha6. A gente faz na peneira. É porque o açaí é amassado. Não tem batedeira.
Não tem aguidá7. Tem uma gamela8: numas tábuas pregadas”. Abaixo, na figura
2, a imagem da peneira e gamela que são utilizadas para amassar o açaí.

6. Peconha é um utensílio rudimentar amazônico similar a um cinto, utilizado


próximo aos pés, para a escalada de árvores, para “apanhar” açaí, bacaba, patauá
e ubuçu, normalmente é produzido a partir de fibras de Ubuçu (tururi), Ripeira
ou Matamatá.

7. Aguidá é uma vasilha, tigela, circular, feita de barro, colocada embaixo da


peneira para armazenar o suco do açaí, ou de outras frutas e demais alimentos,
etc.

8. Gamela, é uma vasilha, tigela ou bacia, usada de várias formas, como prato ou
para por comida na mesa, como recipiente para colocar comida para animais,
para usar em banhos ou lavagens, pode ser oval ou redonda, é geralmente feita
de madeira.
Socioantropologia de Povos e Comunidades Tradicionais Costeiras e Ribeirinhas 190

Figura 2 - Peneira com a Gamela embaixo.

Fonte: Pesquisa de Tese/2018.

Alguns dos utensílios utilizados para a produção do vinho do açaí,


citados no relato acima, são oriundos de povos indígenas e são utilizados e
repassados por gerações na comunidade. Esses instrumentos passaram por
poucas mudanças no decorrer dos tempos, com relação ao seu formato, tendo
sido inserido, quando possível, o uso da batedeira de açaí que é um equipamento
mais moderno, no entanto, difícil de ser adquirido devido ao seu valor e as
condições financeiras das famílias da comunidade. Abaixo, nas figuras 3 e 4, as
imagens de mãe e filho extraindo e debulhando o açaí para consumo.

Figura 3 - Menino descendo com cacho de açaí da árvore.

Fonte: Pesquisa de Tese/2018.


191 Práticas ex trativistas na Ilha do Marajó, Pará

Figura 4 - Momento para debulhar os cachos.

Fonte: Pesquisa de Tese/2018.

As imagens acima, são comuns no período de “verão” na comunidade,


em que as famílias saem em busca do fruto em meio aos quintais, florestas.
Entretanto, com o passar dos anos o açaí tem se tornado cada vez mais escasso
e difícil de ser adquirido, devido à falta de um manejo eficiente e a venda de
boa parte dos terrenos da comunidade, fato este que diminuiu o número de
árvores disponíveis para extração no lugar, “sobretudo no período da entressafra,
quando fica mais escasso” (Cals 2015:95).

Assim, cada vez mais, os moradores reclamam da dificuldade em


conseguir esse alimento, “‘na falta do açaí’, recorre-se a outros recursos
disponíveis na várzea, dentre os quais se destaca o miriti, que, igualmente fruto
de uma palmeira abundante na região estuarina, é apropriado como o ‘açaí
do inverno’, assumindo, assim, papel fundamental na dieta ribeirinha (Sousa,
Vieira-da-Silva e Barros, 2016:145). Na figura 5 abaixo, apresentamos algumas
moradoras no momento de colheita do miriti, que serviria de alimento no café da
manhã de suas famílias.

Figura 5 - Mulheres ribeirinhas “catando” miriti embaixo das árvores.

Fonte: Pesquisa de Tese/2018.


Socioantropologia de Povos e Comunidades Tradicionais Costeiras e Ribeirinhas 192

Essa atividade realizada pelos moradores, na maioria das vezes, por


mães e filhas (os) que saem em busca de frutas, é comum quando da ausência
de outros alimentos para o consumo, como explicou D. Rosa (interlocutora da
pesquisa): “Quando estamos sem dinheiro nós ajunta miriti, e arruma qualquer
fruta e vai se alimentando, pega cacho de açaí e faz”. Em vários outros momentos
acompanhamos as interlocutoras em busca de extrair frutas nas matas da
comunidade.

Existem variedades de plantas e árvores frutíferas que os moradores


fazem questão de cultivar, de acordo com as preferências, no entanto, a grande
maioria é retirada da mata, como explica D. Bena (interlocutora da pesquisa):
“Nós tiramos da mata o açaí, miriti, aqui atrás de casa. Ceru tem, é aquela
castanhazinha. A gente come o miriti normal, com café. Nós temos também o
cupuaçu, anajá”.

Sendo assim, a atividade de extrativismo na comunidade Santa Luzia,


também é realizada sempre que necessário, não havendo uma constante, pois,
a mesma ocorre quando há falta de outros tipos de alimentos, e com mais
frequência na época do verão com a extração do açaí, fruto este essencial na
mesa dos ribeirinhos, que têm sua prática de aquisição e consumo transmitidas
de geração em geração, servindo tanto como fonte de alimentação, quanto
como renda para algumas famílias (Cals, 2015). Na falta do açaí, os moradores
vão em busca de outros frutos para saciar a fome, tendo como preferência o
miriti, cupuaçu, bacaba, pupunha e etc., que são coletados de acordo com as
preferências de cada família, nos quintais e matas da comunidade.

FATORES ENDÓGENOS E EXÓGENOS: MUDANÇAS NO ACESSO À CIDADE E


A CHEGADA DA ENERGIA ELÉTRICA NA COMUNIDADE

Por fazer parte de um arquipélago a região de Breves é cercada por


variados labirintos de rios, furos e igarapés, dentre os quais o Rio Tauaú que
possui algumas comunidades no decorrer de toda sua extensão, dentre as quais
estão Santa Luzia, Nossa Senhora da Luz, Perpétuo Socorro e Vila Agrovila. Assim,
“as águas são referidas pelos rios, igarapés e fontes d’aguas. A imagem do rio
está associada à alimentação, ao transporte, ao lazer, à higiene, ao trabalho e às
condições naturais de vida” (Oliveira e Mota Neto, 2008:70).

O percurso fluvial para a comunidade Santa Luzia, consequentemente


para o rio Tauaú, inicia-se pelo rio Parauaú, na frente de Breves, e dura em
média uma hora, dependendo do tipo de transporte (canoas a remo, rabetas9,
voadeiras10, jet-ski). A comunidade está situada bem no meio de dois dos braços
distintos do rio Tauaú, ficando a mesma cercada pelo rio na maior parte de sua
extensão. As águas que banham a comunidade são geladas e limpas no “verão”,
turvas no “inverno”, e seguem o fluxo das marés com horários de enchente e
vazante, sempre tendo em seu percurso as “procissões de mururés11” (figura 6)
que passam conforme as idas e vindas das marés. Dependendo do local e horário,
pode-se ouvir em seu leito, em momentos de silêncio, vez ou outra, o barulho
dos peixes próximo as casas nas “beiras” do rio (figura 7).
9. Canoas motorizadas
10. Lanchas velozes de pequeno porte.
11. Plantas aquáticas que flutuam sobre os rios da região.
193 Práticas ex trativistas na Ilha do Marajó, Pará

Figura 6 - Rabeta e mururés em procissão nas águas do Rio Tauaú.

Figura 7 - Casa de família ribeirinha, a “beira” do rio Tauaú.

Fontes: Pesquisa de Tese/2018.

Por muitos anos o Rio Tauaú foi a única rota de entrada e saída da
comunidade, utilizada pelos primeiros moradores, que usavam pequenas canoas
a remo movidas pela força humana, que dependendo do destino poderia ter a
duração de várias horas. Atualmente, os ribeirinhos que ainda utilizam o rio como
caminho de entrada e saída da comunidade, ou para pescar, possuem, em sua
maioria, suas próprias canoas e/ou rabetas, poucos chegam a ter barcos a motor,
e somente alguns donos de sítios/balneários possuem voadeiras, para realizar
viagens que duram no mínimo 01h de Breves à comunidade ou vice-versa.

Assim, hoje é comum canoas e rabetas estacionadas em frente as casas,


como mostra a figura 8 abaixo, fato este que se intensificou com “a presença
dos benefícios sociais, contribuindo para a renda doméstica, fez aumentar o
número de transportes, motores rabeta, [...], o que pela proximidade geográfica
possibilitou um maior fluxo para a cidade” (Corrêa 2010:100).
Socioantropologia de Povos e Comunidades Tradicionais Costeiras e Ribeirinhas 194

Figura 8 - Casa de ribeirinhos no rio Tauaú, com casco a remo e rabetas para locomoção
dos moradores.

Fonte: Pesquisa de Tese/2018.

Deste modo, alguns moradores de Santa Luzia passaram a se deslocar


quase que diariamente para a cidade, “seja para a compra do rancho, para
consultas médicas ou para fazer visitas a familiares que moram na cidade”
(Corrêa, 2010:100). As idas e vindas da comunidade para cidade sempre se
fizeram necessárias, já que o “rural” supõe, por definição, a dispersão de sua
população, a ausência do poder público no seu espaço e mesmo a ausência da
grande maioria dos bens e serviços, naturalmente concentrados na área urbana”
(Wanderley, 2009:269).

Assim, as populações rurais geralmente são espaços de precariedade


social, e dependem política, econômica e socialmente do meio urbano,
precisando, constantemente, “deslocar-se para a cidade, se quer ter acesso ao
posto médico, ao banco, ao poder judiciário e até mesmo à igreja paroquial”
(Wanderley, 2009:269). Dessa forma, os moradores sempre tiveram, talvez não
de forma tão intensa, a interação campo-cidade, devido a carência de alguns
produtos e serviços que são encontrados somente nos centros urbanos, como
mencionado anteriormente.

Deste modo, o rio é um dos maiores responsáveis pela estrutura


organizacional do lugar. Entretanto, fez-se primordial para a comunidade a
passagem do tráfego do rio para a estrada, a qual liga Santa Luzia à cidade de
Breves. De um modo geral, a abertura da estrada facilitou o acesso à cidade, já
que, se antes as viagens de barco levavam em torno de quatro horas ou mais,
agora em uma motocicleta, ou carro, o percurso de Breves para a comunidade, ou
vice-versa, dura em média 45 minutos, pela estrada principal PA 159.

No entanto, mesmo com a existência de algumas dificuldades de


tráfego por terra, a abertura da estrada proporcionou vários pontos positivos aos
moradores, que afirmam a independência de famílias que antes dependiam de
carona nos barcos para poder sair da comunidade, ganho de tempo nas idas e
vindas à cidade para consultas, compras, recebimento de benefícios, diminuição
195 Práticas ex trativistas na Ilha do Marajó, Pará

do uso do rio para locomoção, que era algo que afligia muitos moradores.
Assim, com o valor do benefício e a abertura da estrada, a alimentação se
diversificou, tendo a maior entrada de produtos industrializados, como mostrado
anteriormente.

Murrieta (2001:60) afirma que “até recentemente, o acesso à produtos


industrializados e outros alimentos importados como carnes e cereais enlatados,
óleo de cozinha, leite em pó, manteiga e trigo, era um luxo que poucas pessoas
podiam ter”. Esse pouco consumo de alimentos industrializados, que acontecia
anteriormente na comunidade, ocorria por vários fatores, dentre os quais as
“dificuldades de transporte, conservação e estocagem, somadas ao controle dos
meios de troca pelo sistema de aviamento” (Murrieta, 2001:60), fatores esses que
limitavam essas populações amazônicas ao acesso a esses produtos.

Dentre as várias modificações no consumo e aquisição de alimentos


após a abertura da estrada, verificamos, ainda, alterações nas formas de
cozimentos dos alimentos. Pois, alguns moradores que usavam somente o fogão
a lenha, ou na brasa com carvão, passaram a fazer uso de fogão a gás, coisa que
antes tornava-se quase impossível, tanto pela falta de recursos para a compra
do eletrodoméstico, quanto pela dificuldade de comprar a carga de botijão na
cidade. Porém, essa melhoria é tida como privilégio de poucas famílias em Santa
Luzia, já que muitos continuam sem condições de adquirir o eletrodoméstico ou
de mantê-lo com o botijão com gás, que é visto como “muito caro”, e fora das
possibilidades das várias famílias.

Deste modo, ainda é comum em muitas casas o uso do fogão de


barro, a lenha e/ou a carvão, para o preparo de alimentos, por ser mais em conta
financeiramente e devido a “facilidade” que alguns moradores têm em conseguir
esses produtos, pois, alguns, ainda, trabalham com a produção de carvão, tanto
para consumo quanto para a venda, mesmo que para muitos seja um trabalho
visto como de grande sacrifício, como relata D. Maria (interlocutora da pesquisa):
“Parei mais de fazer o carvão, porque era eu mesmo que cortava o pau, pegava o
machado e fazia pra vender, pra comprar a alimentação pros meus filhos!”.

Sendo assim, várias famílias continuam utilizando o fogão a lenha e/


ou a carvão, seja por questões financeiras ou por muitos afirmarem que existe
diferença no sabor dos alimentos quando cozidos a lenha, defendendo a opinião
que a comida fica mais saborosa se comparada a cozida no fogão a gás. Por isso,
é comum encontrar moradores “apanhando lenha”, e nas casas, cozinhas com
áreas externas e fogareiros com carvão ou lenha.

Assim, na comunidade Santa Luzia “a obtenção de produtos


alimentícios ‘importados’ e industrializados ainda está diretamente ligada à
proximidade de centros urbanos e acesso a dinheiro” (Murrieta 2001:60). Fatores
esses intensificados após a abertura da estrada, que “é vista pelos moradores
como sinônimo de facilitação da vida local” (Silva, 2008:59), pois possibilita o
trajeto até a cidade, desta feita, o maior acesso aos valores mensais do PBF e ao
comércio local.

Deste modo, os interlocutores desta pesquisa vivem em espaços de


Socioantropologia de Povos e Comunidades Tradicionais Costeiras e Ribeirinhas 196

“interstício: às margens do rio – por onde navega uma cultura de identidades


mais passadistas, isto é, conservadora de costumes ancestrais – e à margem da
estrada – por onde correm o progresso, a tecnologia e parte do ‘alimento’ do
capitalismo mundial” (Ferreira, 2012:80). Fato este que possibilita a esses sujeitos
“discursos advindos das duas realidades, e atravessadores do mesmo espaço,
possibilitando a formação de um espaço de encontro cultural, um ‘entrelugar’”
(Ferreira, 2012:80), que os coloca em posição de constante construção identitária
e cultural.

Após a abertura da estrada, em meados de 2010, Santa Luzia foi


contemplada com a instalação de energia elétrica do programa federal “Luz para
todos”. Com isso, ocorreram mudanças importantes nos hábitos alimentares dos
moradores/beneficiários, pois, muitos conseguiram adquirir eletrodomésticos,
como geladeira, liquidificador, batedeira de açaí etc., os quais proporcionaram
melhoras significativas, principalmente, na conservação dos alimentos, que antes
eram mantidos somente em solução de água e sal, conhecida na região como
“salmora”, que possibilita a maior conservação para utilização dos alimentos,
como explica D. Alda (interlocutora da pesquisa): “Melhorou muito, graças a
Deus! Que a gente já tem nossa aguinha gelada, a comidinha da gente já não
fede (Gargalhadas). A comida era tudo salgada! Aí agora melhorou! Que agora a
gente compra, a gente tem frízer graças a Deus! Tem geladeira!”.

Dessa forma, a abertura da estrada e a chegada da energia elétrica


à comunidade, influenciou de forma significativa nos hábitos alimentares dos
moradores/beneficiários, pois possibilitou a busca por alimentos diferenciados,
a conservação mais adequada, com nível de sal menor, em comparação a como
era antes. Podendo, ainda, ser utilizados variados equipamentos para facilitar a
preparação de alimentos, como batedeiras de açaí, liquidificadores etc.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os resultados da pesquisa demonstraram que apesar de, ainda, serem


utilizadas práticas de aquisição de alimentos tradicionais na comunidade de Santa
Luzia, as mesmas estão sendo deixadas cada vez mais a margem, substituídas
pela compra de produtos industrializados, como iogurtes, refrigerantes,
enlatados, instantâneos, embutidos e outros, muitos dos quais, praticamente,
os ribeirinhos não tinham acesso antes de receberem os valores do Programa,
devido, na maioria das vezes, não terem condições financeiras para realização
de compras desses mantimentos. Sendo assim, o benefício do PBF, bem como
outros fatores, endógenos e exógenos, vêm proporcionando a aquisição de
produtos que antes não tinham acesso, e consequentemente um maior padrão
de consumo, alterando significativamente, os hábitos alimentares locais, seja de
forma positiva ou negativa.
197 Práticas ex trativistas na Ilha do Marajó, Pará

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amazônicos e as formas de uso de seus recursos naturais. 2ª Edição. – São Paulo:
Annablume. 486p.
199 Sobre organizadores e autores

SOBRE ORGANIZADORES
E AUTORES

Organizadores

Flávio Bezerra Barros

Professor Associado da Universidade Federal do Pará (UFPA). Atua nos Programas


de Pós-Graduação em Antropologia e Agriculturas Amazônicas da UFPA e
Ciências Ambientais da Unemat. É bolsista de produtividade em pesquisa do
CNPq (Nível 2).

Francisca de Souza Miller

Professora Associada da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).


Atua nos Programas de Pós-Graduação em Antropologia Social (PPGAS) e
Desenvolvimento e Meio Ambiente (PRODEMA) da UFRN. Lidera o grupo de
pesquisa do CNPq “Etnologia, Tradição, Ambiente e Pesca Artesanal” (ETAPA/
CNPq), vinculado ao Departamento de Antropologia da UFRN.

Cristiano Wellington Noberto Ramalho

Professor Associado da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Atua


no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFPE, sendo atualmente o
coordenador do referido PPG. É bolsista de produtividade em pesquisa do CNPq
(Nível 2). Lidera o Núcleo de Estudos Humanidades, Mares e Rios (Nuhumar) da
UFPE.

Autores

Amanda Gonçalves Pereira

Cientista Social e Assistente Territorial de Economia Solidária na Prefeitura de


Jaboatão dos Guararapes/PE. Mestre em Extensão Rural e Desenvolvimento Local
pela Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE).

Ana Beatriz Oliveira

Técnica em Pesca pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do


Espírito Santo (IFES), campus Piúma. Atualmente cursando Gastronomia no RJ.

Anderlany Aragão dos Santos

Doutoranda em Desenvolvimento Sustentável pela Universidade de Brasília (UnB).


Mestra em Desenvolvimento e Meio Ambiente pela Universidade Federal do Rio
Grande do Norte (UFRN) e graduada em Ciências Ambientais pela Universidade
Federal do Ceará (UFC). Tem experiência na área de Ciências Ambientais, atuando
principalmente nos seguintes temas: questão agrária, povos tradicionais, land
grabbing e fronteiras agrícolas neoextrativistas.
Socioantropologia de Povos e Comunidades Tradicionais Costeiras e Ribeirinhas 200

Christiane de Fátima Silva Mota

Doutora em Antropologia pelo Programa de Pós Graduação em Sociologia e


Antropologia da UFPA. Mestre em Ciências Sociais pela UFMA. Atualmente é
professora do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Maranhão
(IFMA). Atua como pesquisadora e coordenadora do Grupo de Estudos Afro-
brasileiros e culturais (CNPq/IFMA).

Doris Aleida Villamizar Sayago

Professora da Universidade de Brasília (UnB). Atua no Programa de Pós-Graduação


em Desenvolvimento Sustentável. Tem experiência na área de Políticas Públicas,
atuando principalmente nos seguintes temas: desenvolvimento territorial,
segurança alimentar, agricultura familiar, meio ambiente e sustentabilidade.

Edilson de Oliveira Costa

Ex-estudante do Curso Técnico em Pesca pelo Instituto Federal de Educação,


Ciência e Tecnologia do Espírito Santo (IFES), campus Piúma. Pescador no
município de Marataízes/ES. Atualmente estudante de Odontologia na Faculdade
Pitágoras.

Fabiana Bezerra Marinho

Estudante do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Paraíba


(IFPB).

Gerson Carlos Pereira Lindoso

Mestre em Ciências Sociais (Antropologia) pelo Programa de Pós-Graduação


em Ciências Sociais da Universidade Federal do Maranhão (UFMA). Especialista
em Gênero e Diversidade na Escola pela UFMA. Professor do Instituto Federal
de Educação, Ciência e Tecnologia do Maranhão (IFMA). Tem experiência com
pesquisas envolvendo comunidades tradicionais e povos de matriz africana.

Gianpaolo Knoller Adomilli

Doutor em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul


(UFRGS). Professor da Universidade Federal do Rio Grande (FURG), atuando no
Programa de Pós-Graduação em Educação Ambiental. Coordena o Núcleo de
Estudos Saberes Costeiros e Contra-Hegemônicos (NECO/FURG), vinculado ao
Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPq.

Higor Goltara Bianchine

Técnico em Aquicultura pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia


do Espírito Santo (IFES), campus Piúma. Atualmente cursando Sistemas de
Informação pela Faculdade Multivix, Cachoeiro de Itapemirim/ES.
201 Sobre organizadores e autores

João Paulo Araújo Silva

Mestre em Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia da


Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Atualmente cursando doutorado
pela mesma Universidade. Desenvolve pesquisa com comunidades de pescadores
artesanais em Cabo Verde, África.

Liza Bilhalva Martins da Silva

Mestre em Antropologia Social e Cultural pelo Programa de Pós-Graduação


em Antropologia da Universidade Federal de Pelotas (UFPel). Doutoranda em
Educação Ambiental pelo Programa de Pós-Graduação em Educação Ambiental
da FURG. Pesquisadora colaboradora do NECO - Núcleo de Estudos Saberes
Costeiros e Contra-Hegemônicos (NECO/FURG) e membro do Laboratório
Interdisciplinar de Estudos Feministas (LEF) da UFPel.

Lourdes de Fátima Gonçalves Furtado

Pesquisadora aposentada da Coordenação de Ciências Humanas e Sociais do


Museu Paraense Emílio Goeldi e professora colaboradora do Programa de Pós-
Graduação em Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Pará (UFPA).

Luciana Railza Cunha Alves

Doutoranda em Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia


da Universidade Federal do Pará (UFPA). Mestre em Cartografia Social e
Política da Amazônia pela Universidade Estadual do Maranhão (UEMA).Tem
experiência na área de Antropologia e Política das Populações Afro-brasileiras
e Povos e Comunidades Tradicionais. Pesquisadora do GESEA (Grupo de estudo
socioeconômico da Amazônia - UEMA) e do Projeto Nova Cartografia Social da
Amazônia/Maranhão.

Márcio de Paula Filgueiras

Doutor em Antropologia pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Tem


experiência na área de Antropologia, com ênfase em grupos tradicionais,
sensibilidades jurídicas e meio ambiente em perspectiva comparada. Professor do
Instituto Federal do Espírito Santo (IFES), na área de Ciências Sociais e Humanas.

Maria Cristina Crispim

Professora Titular do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento e Meio


Ambiente da Universidade Federal da Paraíba (PRODEMA/UFPB).

Maria do Rosário de Fátima Andrade Leitão

Professora Titular da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE). Atua


no Programa de Pós-Graduação em Extensão Rural e Desenvolvimento Local.
Lidera o Grupo de Pesquisa Desenvolvimento e Sociedade do CNPq/UFRPE.
Socioantropologia de Povos e Comunidades Tradicionais Costeiras e Ribeirinhas 202

Maristela Oliveira de Andrade

Professora Titular aposentada da Universidade Federal da Paraíba (UFPB).


Atualmente atua como professora voluntária nos Programas de Pós-Graduação
em Antropologia e em Desenvolvimento e Meio Ambiente da UFPB. Criou o
Grupo Interdisciplinar de Pesquisa em Cultura, Sociedade e Ambiente, do qual
é coordenadora adjunta. Atua principalmente nos seguintes temas: Território,
populações tradicionais, desenvolvimento e meio ambiente, bem como no
campo da religião e religiosidades, movimentos religiosos contemporâneos

Thainá Guedelha Nunes

Mestre em Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia


e Antropologia da UFPA. Doutoranda pelo mesmo Programa. Atualmente é
pesquisadora colaboradora do Grupo RENAS do Museu Paraense Emílio Goeldi
(MPEG).

Vivianne Nunes da Silva Caetano

Doutora em Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia da


UFPA. Professora Adjunta da UFPA - Campus de Breves.

Wagner Lieres dos Santos

Técnico em Aquicultura pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia


do Espírito Santo (IFES), campus Piúma. Atualmente cursando Matemática na
UFSC.

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