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MULHERES E O MAR:

pescadoras embarcadas no litoral de


Santa Catarina, sul do Brasil
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA
Reitor
Ubaldo Cesar Balthazar
Vice-Reitora
Catia Regina Silva de Carvalho Pinto

EDITORA DA UFSC
Diretora Executiva Interina
Flavia Vicenzi
Conselho Editorial
Agripa Faria Alexandre
Antonio de Pádua Carobrez
Carolina Fernandes da Silva
Evelyn Winter da Silva
Fábio Augusto Morales Soares
Fernando Luís Peixoto
Ione Ribeiro Valle
Jeferson de Lima Tomazelli
Josimari Telino de Lacerda
Luis Alberto Gómez
Marília de Nardin Budó
Núbia Carelli Pereira de Avelar
Priscila de Oliveira Moraes
Sandro Braga
Vanessa Aparecida Alves de Lima

COMITÊ EDITORIAL DA COLEÇÃO BRASIL PLURAL


Vânia Zikán Cardoso (Coordenadora da Coleção)
Alicia Castells
Esther Jean Langdon
Márcia Grisotti

COMITÊ GESTOR DO INSTITUTO NACIONAL DE PESQUISA BRASIL PLURAL


Deise Lucy Montardo (UFAM)
Eliana Elisabeth Diehl (UFSC)
Esther Jean Langdon (UFSC)
Sônia Weidner Maluf (UFSC)
Vânia Zikán Cardoso (UFSC)

Editora da UFSC
Campus Universitário – Trindade
88040-900 – Florianópolis-SC
Fone: (48) 3721-9408
editora@contato.ufsc.br
www.editora.ufsc.br
Rose Mary Gerber

MULHERES E O MAR:
pescadoras embarcadas no litoral de
Santa Catarina, sul do Brasil

2021
© 2021 (e-book) Editora da UFSC [Nota do Editor = mesmo conteúdo]
© 2015 (impresso)

Coordenação editorial:
Cristiano Tarouco
Capa e editoração:
Paulo Roberto da Silva
Revisão:
Júlio César Ramos

Catalogação na fonte pela Biblioteca Universitária da Universidade Federal de Santa Catarina

G362m Gerber, Rose Mary


Mulheres e o mar [recurso eletrônico] : pescadoras embarcadas no
litoral de Santa Catarina, sul do Brasil / Rose Mary Gerber. – Floria-
nópolis : Editora da UFSC, 2021.
303 p. : il. – (Coleção Brasil Plural)
E-book (PDF)
Disponível em: https://doi.org/10.5007/978-65-5805-031-5
ISBN 978-65-5805-031-5
1. Antropologia social. 2. Pescadoras – Santa Catarina. 3. Pesca ar-
tesanal. 4. Pesca – Mulheres – Santa Catarina. I. Título. II. Série.
CDU: 391/397(816.4)

Ficha catalográfica elaborada por Fabrício Silva Assumpção – CRB-14/1673

Este livro está sob a licença Creative Commons, que segue o princípio do acesso
público à informação. O livro pode ser compartilhado desde que atribuídos os
devidos créditos de autoria. Não é permitida nenhuma forma de alteração ou a
sua utilização para fins comerciais.
br.creativecommons.org
Às pescadoras, mulheres de rara
linhagem de guerreiras.

À Laura Gerber, exemplo de


tenacidade e força.
AGRADECIMENTOS

Este livro é resultado de minha pesquisa no doutoramento em


Antropologia Social pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia
Social da Universidade Federal de Santa Catarina, sob orientação da
Prof. Dra. Sônia Weidner Maluf. Esta empreitada de três anos e meio de
trabalho só foi possível pelo apoio de familiares, amigos, amigas, entidades,
instituições, orientadora, que estiveram presentes e contribuíram para que
o percurso de construção desta escrita se tornasse possível.
À Epagri, que me permitiu a experiência do Doutorado, e para a
qual reforço a importância do investimento no processo de qualificação
continuada de seus profissionais. Que mais mulheres tenham esta
oportunidade. Em especial, agradeço aos colegas da Gerp e GPI. E também
a Yara, Adilson, Leticia, Berna, Ivanete, Ivanda, Eonir, Aires, Tião, Estevão,
Tânia, Diva, Bete, Ivanir, Cilana, Eduardo, Antônio, Barros, Jana, Lena,
Jane, Beth, Jeferson, que contribuíram incentivando, facilitando contatos
e disponibilizando dados.
À Capes, que viabilizou a realização do Estágio de Doutorado em
Portugal, e ao Instituto Brasil Plural (IBP), que apoiou financeiramente
parte do trabalho de campo. Ambos me possibilitaram um exercício
intelectual, afetivo, emocional por meio de deslocamentos essenciais para
a fantástica experiência de vida que me foi oportunizada.
Ao PPGAS/UFSC, que me recebeu após tantos anos de afastamento.
Agradeço as trocas, sugestões, os aprendizados que levo comigo nesta
tarefa que me propus de levar a antropologia para além dos muros da
universidade. Entendo que é preciso caminhar lado a lado com nossos
pares, tanto dentro quanto fora do meio acadêmico.
Aos mestres que fizeram parte do percurso no doutoramento:
Alicia Castells, Miriam Furtado, Oscar Calávia Saez, Maria Regina Lisboa,
Alberto Groisman, Rafael José de Menezes Bastos e Sônia Weidner Maluf.
Alguns foram centrais em minha trajetória: Neusa Bloemer, Esther Jean
Langdon, Rafael José de Menezes Bastos, Ana Luiza Carvalho da Rocha e
Sônia Weidner Maluf.
Às colegas da turma do doutorado 2009/2: Bárbara, Cinthia,
Clarissa, Cláudia, Danielli, Fernanda, Raquel e Tatyana. À querida turma
de colegas à qual me agreguei: Mirella, Fernanda e Tati; aos colegas do
Transes, pelas leituras e trocas instigantes que compuseram os diferentes
momentos de crescimento em conjunto, em especial Ana Paula, Marco
Aurélio, Mirella e Glauco pela experiência de estágio de docência, em que
dividimos ideias e compartilhamos responsabilidade e compromisso.
Em Portugal, ao meu orientador, Dr. João Leal, que soube me
indicar de forma certeira bibliografias e pessoas inseridas no mundo da
pesca: Dr. Luís Martins e Dr. Francisco Oneto Nunes. À UMAR-Açores
que me recebeu de forma muito simpática, acolhedora e interessada em
meu trabalho e na troca de experiências. Às pescadoras que me receberam
com alegria, disposição e sinceridade, em especial as senhoras Maria José,
Paula, Virgínia e Cecília em Póvoa de Santa Iria; às senhoras Suzana, Isabel
e Madalena em Póvoa de Varzim, e Ilidia e Maria em Açores. Joaquim Piló;
Carlos Robalo; Maria Manuel, Senhora Noé, Catarina Quintela e respectivas
famílias; Catarina Mira; Joana Agra; Teresa Nóbrega; Manuel Costa e sua
equipe de trabalho, pela recepção, gentileza, material cedido e contatos
viabilizados; senhora Luísa da Costa, padre João Francisco Marques, senhor
José Azevedo, Deolinda Carneiro; Carlos e Inês, da Formar.
Às duas amigas que se fizeram especiais nesse processo, lendo os
primeiros escritos de minha tese, que se converteu neste livro. Em Portugal,
Maria Manuel Quintela. No Brasil, Micheline Ramos de Oliveira.
Aos amigos e amigas de muito tempo. São muitos e eles sabem
quem são.
À minha família: mãe, sobrinhos e sobrinha, cunhados, pelos
momentos de carinho, amor, apoio e gargalhadas. Especialmente às filhas
da mãe, Rosa, Raquel, Regina, Rose Ane e Rita, minhas irmãs; minhas
primeiras e sempre amigas.
Muito especialmente, à Sônia Weidner Maluf, mestra e amiga;
competente, séria, comprometida não só com seu ofício, mas com aqueles
que lhe cercam. Sua orientação meticulosa, atenta e pautada pelo respeito
e entusiasmo, embora às vezes contido, soube, por um lado, relevar
minhas limitações e, por outro, valorizar e tirar de mim o que tenho de
melhor. Acredito que conseguimos como resultado um trabalho denso,
ético e comprometido.
Finalmente, às mulheres pescadoras visibilizadas no decorrer deste
livro e às suas famílias, que abriram suas casas, suas vidas e que comparti-
lharam comigo angústias, alegrias, risos, questionamentos, (a)sujeitamentos,
experiências, ensinando-me a cada dia o quão caro pode custar nossas vidas
quando a distração nos tira a concentração necessária à sobrevivência no mar,
mas também em relação à própria existência humana.
O teu olho olha de outra forma. É uma forma que busca mostrar
nós mais de dentro, mostrar aquilo que os outros olhos não veem.
Tens que escrever que cada uma de nós faz de um jeito. Tens que
falar sobre os tipos de embarcações, os tipos de redes. Cada uma
de nós tem um jeito de fazer. Tudo isso tens que falar. (Safira,
pescadora, 38 anos, Barra do Sul1).
Por mais que se diga o que se vê, o que se vê não se aloja
jamais no que se diz, e por mais que se faça ver o que se está
dizendo por imagens, metáforas, comparações, o lugar onde
estas resplandecem não é aquele que os olhos descortinam, mas
aquele que as sucessões da sintaxe definem. (FOUCAULT, 2009).
A continuidade é apenas nossa emoção, nosso tumulto, nossa
melancolia, e o papel da emoção talvez seja apenas o de suavizar
a novidade excessivamente hostil. (BACHELARD, 1994).

Município de Santa Catarina cujo nome oficial é Balneário Barra do Sul.


1
LISTA DE SIGLAS

ABA Associação Brasileira de Antropologia


Acarpesc Associação de Crédito e Assistência Pesqueira de Santa Catarina
Acaresc Associação de Crédito e Assistência Rural de Santa Catarina
Associação de Mulheres Ribeirinhas e Vítimas de Escalpelamento da
AMRVEA
Amazônia
ANP Articulação Nacional das Pescadoras
AKTEA Rede Europeia de Mulheres na Pesca
CEE Comunidade Econômica Europeia
Cemar Centro de Culturas Marítimas
CNPA Confederação Nacional de Pesca e Aquicultura
CRAS Centros de Referência de Assistência Social
CREAS Centro de Referência Especializado de Assistência Social
CGTP Confederação Geral dos Trabalhadores de Portugal
CPP Carteira de Pescador Profissional
Empresa de Pesquisa Agropecuária e Extensão Rural de Santa
Epagri
Catarina
Formar Formação do Mar
Programa Gênero, Raça, Erradicação da Pobreza e Geração de
GRPE
Emprego
INSS Instituto Nacional de Seguridade Social
IQT Cotas Transferíveis
FMI Fundo Monetário Internacional
MDA Ministério do Desenvolvimento Agrário
MMA Movimento de Mulheres Agricultoras
MMP Movimento de Mulheres Pescadoras
MPA Ministério da Pesca e Aquicultura
MTE Ministério do Trabalho e Emprego
NEA Núcleo de Estudos Açorianos
Pronaf Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar
RGP Registro Geral de Pesca
SESEP Secretaria Extraordinária para Superação da Extrema Pobreza
SUS Sistema Único de Saúde
UE União Europeia
UMAR União de Mulheres Alternativa e Resposta
SUMÁRIO

PREFÁCIO.................................................................................. 13
INTRODUÇÃO.......................................................................... 16
Sobre as desventuras da perda da inocência ............................... 32
O exercício da antropóloga como sombra .................................. 37
Sobre o corpo da antropóloga ..................................................... 43
Narrar trajetórias; ouvir narrativas................................................ 46
A respeito dos capítulos do livro ................................................. 47

Capítulo 1 | BRASIL DE ÁGUAS: ANTROPOLOGIA E PESCAS..... 50


1.1 Mussolini, a precursora dos estudos de pesca no Brasil ................ 51
1.2 Estudos antropológicos sobre a pesca no Brasil.............................. 56
1.3 Homens, mulheres, mar e terra ..................................................... 66
1.4 Nem exóticos o suficiente, nem citadinos o bastante .................... 75

Capítulo 2 | MULHERES PESCADORAS: NARRATIVAS


AUTOBIOGRÁFICAS.............................................. 78
2.1 Elas, por elas........................................................................ 83
2.1.1 Josi...................................................................................... 83
2.1.2 Rosinha............................................................................... 86
2.1.3 Fátima................................................................................. 87
2.1.4 Geni.................................................................................... 89
2.1.5 Alzira.................................................................................. 91
2.1.6 Cecília................................................................................ 92
2.1.7 Neia.................................................................................... 94
2.1.8 Márcia................................................................................ 95
2.1.9 Terezinha............................................................................ 97
2.1.10 Tina................................................................................... 98
2.1.11 Cheila............................................................................. 100
2.1.12 Adriana........................................................................... 101
2.1.13 Zica................................................................................ 103
2.1.14 Paulina........................................................................... 103
2.1.15 Iliete................................................................................ 104
2.1.16 Adriana........................................................................... 105
2.1.17 Tereza ............................................................................ 107
2.2 Um mergulho mais profundo: Naca e Mãezinha ........................ 109
2.2.1 Eu sou Naca: uma pescadora de verdade.......................... 109
2.2.2 Até a minha batera tem esse nome: Mãezinha................... 112
2.3 Então, eu mergulhei um pouco mais: Safira, Patrícia, a irmã,
e Luísa, a mãe............................................................................ 115
2.3.1 A Safira.............................................................................. 115
2.3.2 Patrícia, a irmã................................................................... 119
2.3.3 Luísa, a mãe....................................................................... 121

Capítulo 3 | O MUNDO DA PESCA DAS MULHERES............. 123


3.1 O mar.......................................................................................... 124
3.1.1 A sutil complexidade dos elementos atores........................ 124
3.1.2 O mar como vício, fuga, terapia........................................ 128
3.2 Instrumentos de trabalho.............................................................. 132
3.2.1 Embarcações ..................................................................... 132
3.2.2 Agulhas, linhas, redes ....................................................... 135
3.2.3 As bandeiras...................................................................... 136
3.3 Os peixes..................................................................................... 139
3.3.1 Os mais cobiçados e os mais perigosos............................. 139
3.3.2 Os peixes e as redes........................................................... 140
3.3.3 A morte do peixe; a vida na pesca..................................... 141
3.3.4 Outros bichos: cachorros, gatos, gaivotas, urubus ............ 144
3.4 Em terra: o trabalho continua....................................................... 146
3.4.1 Entre o cru e o cozido, cozinhas e ranchos de pesca......... 156
3.4.2 Mulheres-máquina; mulheres e máquinas ........................ 151
3.4.3 As bicicletas....................................................................... 153

Capítulo 4 | O MUNDO DAS MULHERES NA PESCA:


APRENDIZADOS E CORPOS...............................155
4.1 Aprender: aprendizado, transmissão e circulação de saberes....... 156
4.2 Amizade e camaradagem ............................................................ 163
4.2.1 Entre amigas: com quem se trabalha em terra................... 163
4.2.2 Dois que são um: camaradas............................................ 167
4.3 De perto e de longe; de dentro e de fora: por que se trabalha
embarcada.................................................................................. 170
4.4 O corpo na/da/para a pesca......................................................... 174
4.4.1 Sobre o corpo na pesca.................................................... 174
4.4.2 Roupas que fabricam corpos............................................. 180
4.4.3 Corpos: os riscos; a morte................................................. 183
4.4.4 O corpo como memória da profissão............................... 190
4.4.5 Corpo-mãos: prova da profissão....................................... 194

Capítulo 5 | A RELAÇÃO COM O ESTADO: ENTRE SABERES,


RECONHECIMENTO E (IN)VISIBILIDADE,
UM SUJEITO QUE NÃO SE ENQUADRA?.............198
5.1 Saberes e fazeres: pescadoras e extensionismo.................. 200
5.2 Pesca e tecnologia.............................................................212
5.3 Sobre reconhecimento dos direitos ................................... 217
5.4 Acerca de (in)visibilidades e anonimatos .......................... 220
5.5 Uma linhagem de guerreiras: mulheres de valentia ........... 236
5.6 Enredamentos de uma rede feiticeira................................. 243
CONSIDERAÇÕES FINAIS.......................................................247
REFERÊNCIAS..........................................................................256
FOTOGRAFIAS........................................................................287
PREFÁCIO

Este trabalho inédito sobre as mulheres pescadoras do litoral de


Santa Catarina é resultado de uma longa e densa pesquisa de campo
realizada por Rose Mary Gerber, que nos oferece uma perspectiva
extremamente original e impactante sobre a realidade do cotidiano
e do trabalho, dos sofrimentos e das dificuldades, dos sonhos e dos
projetos dessas mulheres. Tornadas invisíveis e não reconhecidas
pelas políticas oficiais voltadas à regulamentação do trabalho da
pesca, pelos benefícios previdenciários, pelas políticas extensionistas
e mesmo pelos estudos sobre pesca, neste livro as pescadoras têm voz
e existência real.
Desse diálogo entre pesquisadora e pescadoras, tecido em uma
longa pesquisa de campo, emerge aos poucos um outro mundo da
pesca, diferente daquele tradicionalmente considerado e reificado como
universo masculino por excelência. Rose mostra, junto com elas, que a
presença das mulheres na pesca e a existência de mulheres pescadoras
não são uma exceção nem uma inversão das regras da divisão sexual
do trabalho. No seu ir e vir entre o mar e a terra, essas mulheres
trabalham por conta própria em pequenas embarcações, adaptam
instrumentos e vestuário de trabalho feitos para serem utilizados por
homens, são agentes ativas de todo o processo que envolve a pesca
artesanal. Estão presentes na pesca e no que faz a pesca funcionar:
preparam os instrumentos, consertam os barcos, fazem e remendam as
redes, transformam o produto de seu trabalho, limpando e preparando
peixes e frutos do mar para o consumo próprio e para o comércio.
Trabalhadoras em situação de extrema pobreza, fazem tudo isso sem
crédito nem direitos reconhecidos, já que, para o Estado, mulher na
pesca só existe como “mulher de pescador”.
Mulheres e o mar 14

Rose Gerber descreve tudo isso não apenas a partir do que


observou mas também a partir do que viveu em campo, embarcando
com elas no mar, ajudando a preparar embarcação e rede, rodando pelas
estradas do litoral de Santa Catarina para acompanhar a experiência
de pescadoras em diferentes comunidades, circulando com elas pelas
instituições como colônias e federações de pescadores, INSS, Epagri,
Marinha do Brasil e Capitania dos Portos, em busca de um registro,
de um número previdenciário, de alguma forma de reconhecimento
oficial de sua existência como pescadoras. Ela denomina essa presença
constante ao lado das pescadoras de metodologia da sombra e define
seu campo como uma escuta feita com os olhos. No entanto a leitura
nos mostra que é mais que isso, sua escuta é feita com ouvidos, olhos,
mãos e com o corpo como um todo – que aos poucos foi se moldando
para ser também um corpo que embarca, que enfrenta os enjoos e os
caprichos e movimentos do mar. Mar, maré, ventos e luas, são também
personagens desta história, dotados de agência, vontade e poder. Assim
como embarcação, rede, linha e agulha, bandeiras, cores e nomes –
e os peixes e seus modos de habitar a água, no fio da superfície, na
profundeza. Tudo faz parte dessa rede de relações e múltiplas agências
percorrida pela antropóloga.
Desta forma Rose se insere no campo dos estudos antropológicos
da pesca mostrando a singularidade de seu olhar e de sua análise. Sua
descrição sensível e detalhada e sua análise fina de toda essa realidade
nos levam muito além do reducionismo das versões oficiais sobre o
mundo da pesca no Brasil, relativizando a dicotomia entre natureza
e mundo social, e mostrando de um lado o modo singular e original
com que cada uma delas constitui a sua pesca e de outro a necessidade
premente de reconhecimento e de direitos para as mulheres pescadoras.
Os impactos deste trabalho para as políticas públicas são muitos,
tanto na dimensão de política previdenciária e trabalhista e dos direitos
à aposentadoria quanto nas políticas de crédito, que exigiriam linhas
de crédito adaptadas às dimensões e ao tipo de pesca que realizam, que
possibilitassem, por exemplo, a aquisição de embarcações menores do
que aquelas que são normalmente subsidiadas.
É uma leitura que também nos diz muito das potencialidades
da pesquisa antropológica contemporânea em relação aos efeitos e aos
impactos sociais e políticos de seus resultados. É justamente a partir
desse olhar de dentro do mundo da pesca das mulheres, e de uma
experiência etnográfica levada à sua radicalidade intensa, que emerge a
crítica às várias invisibilidades a que as pescadoras são submetidas. De
Prefácio 15

um lado, uma luta cotidiana pelo respeito e reconhecimento por parte


de familiares, vizinhos, comunidade; de outro, uma luta incansável e
nem sempre bem-sucedida por seus direitos e pelo reconhecimento por
parte dos órgaõs públicos.
Mulheres e o mar é assim uma etnografia de grande qualidade,
que traz uma contribuição original, comprometida, ética e consistente
para os estudos antropológicos da pesca e também para a antropologia
feminista e das relações de gênero, ao mostrar uma realidade complexa
de mulheres que lutam por seus direitos e inventam seu cotidiano e seu
mundo, mundo da pesca, para além das dicotomias e divisões reificadas
do trabalho e da experiência social.

Sônia Weidner Maluf


Universidade Federal de Santa Catarina
INTRODUÇÃO

Se eu posso resumir o que é a vida na pesca para vocês da


universidade entenderem, eu poderia dizer assim: seis anos,
faculdade; dez anos, mestrado; quinze anos, doutorado. Vinte
anos: tudo está só começando. De tão complexo que a pesca é.
(Safira, pescadora, 38 anos, Barra do Sul).

Este é um livro sobre pescadoras embarcadas na pesca artesanal2


em Santa Catarina, Sul do Brasil. Procurei observar como, onde, por
que e até que ponto essas mulheres se reconhecem, são reconhecidas,
e como estariam buscando o reconhecimento de seus direitos como
pescadoras. Muitas são as formas possíveis de mulheres trabalharem na
pesca. Os equipamentos e aparelhos são diversificados, mas, além de
algumas pescadoras com telefone celular, nenhuma das que acompanhei
dispunha de qualquer tipo de equipamento eletrônico, como radar ou
sonar.3 Afirmar que essas mulheres atuam como embarcadas significa
dizer que trabalham em embarcações pequenas, deslocando-se ao mar
e retornando a terra diariamente em períodos que oscilam de três a 16
horas, dependendo o tipo de pesca que realizam.
Algumas mulheres encontram nas saídas cotidianas ao mar
uma espécie de refúgio que está disponível e ao qual podem recorrer
para suprir a falta de alimentação de sua família, uma das situações
que encontrei em campo e que oscilavam entre a pobreza e a pobreza

2
O Capítulo IV da Lei no 11.959, em seu artigo 8o, classifica pesca como I. Comercial: a)
artesanal: quando praticada diretamente por pescador profissional, de forma autônoma ou
em regime de economia familiar, com meios de produção próprios ou mediante contrato
de parceria; podendo utilizar embarcações de pequeno porte; b) industrial: quando
praticada por pessoa física ou jurídica e envolver pescadores profissionais, empregados
ou em regime de parceria por cotas-partes, utilizando embarcações de pequeno, médio
ou grande porte, com finalidade comercial (BRASIL, 2009). Embora eu tenha trabalhado
com mulheres que atuam em lagoas e rios, a grande maioria atua no mar.
Sobre o uso da tecnologia no fundo mar, ver Martins (1999).
3
Introdução 17

extrema,4 em que o mar é uma fonte garantida de alimento.5 Muitas


trabalham de maneira informal e, portanto, sem formas imediatas de
serem reconhecidas como profissionais. Outras atuam comercialmente,
visando ter uma renda que mantenha suas famílias. São muitas as
possibilidades de vida ligadas ao mar. Dados da própria Organização das
Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) confirmam a
presença de mulheres em diferentes formas e espaços de pesca.
Milhões de mulheres de todo o mundo trabalham, com ou
sem remuneração, no setor pesqueiro. Embora elas participem,

4
O Banco Mundial define a pobreza extrema como viver com menos de um dólar
por dia e pobreza moderada como viver com entre um e dois dólares por dia. Estima-se
que 1 bilhão e 100 milhões de pessoas em nível mundial tenham níveis de consumo
inferiores a 1 dólar por dia e que 2 bilhões e 700 milhões tenham um nível inferior
a 2 dólares. No Brasil, de acordo com o Censo 2010 do IBGE, estão em situação de
pobreza extrema 16,2 milhões de brasileiros que vivem com menos de R$ 70 por
mês. Voltado para esta situação, foi criado um programa social, Brasil sem Miséria,
do governo federal brasileiro, na gestão da presidenta Dilma Rousseff, lançado em
junho de 2011. Consiste na ampliação do programa anterior de combate à pobreza do
governo Lula (conhecido por Bolsa Família). Tem como objetivo promover a inclusão
social e produtiva da população extremamente pobre. A Sesep, ligada ao Ministério do
Desenvolvimento Social e combate à Fome, é responsável pela coordenação das ações e
gestão do Plano Brasil Sem Miséria, que prevê ações nacionais e regionais, pautadas por
três eixos: garantia de renda, inclusão produtiva e acesso a serviços públicos. No campo,
o objetivo central será aumentar a produção dos agricultores (grifo nosso). Na cidade,
qualificar a mão de obra e identificar oportunidades de geração de trabalho de renda
para os mais pobres. Simultaneamente, garantir maior acesso da população mais pobre à
água, luz, saúde, educação e moradia. O programa visa ações em: documentação, energia
elétrica, combate ao trabalho infantil, segurança alimentar e nutricional (cozinhas
comunitárias e bancos de alimentos), apoio à população em situação de rua para que
saia dessa condição, educação infantil, saúde da família, rede cegonha, distribuição de
medicamento para hipertensos e diabéticos, tratamento dentário, exames de vista e
óculos, assistência social por meio dos CRAS e CREAS (Disponível em: <www.mds.gov.
br; www.brasilsemmiseria.gov.br>).
5
Segundo dados da FAO (2012), “en 2010 cerca un 86 por ciento del total de la
producción pesquera (128,3 millones de toneladas) se utilizó para consumo humano
directo. El 14 por ciento restante, es decir 20,2 millones de toneladas, se destinó a productos
no alimentarios, principalmente a la fabricación de harinas y aceite de pescado. Cerca de
un 47 por ciento del pescado destinado a consumo humano era en forma de pescado vivo y
fresco” (FAO, 2012, p. xxi, grifo nosso). Se levarmos em conta que a) aproximadamente
925 milhões de pessoas no mundo não comem o suficiente para serem consideradas
saudáveis e que isso significa que uma em cada sete pessoas no planeta vai para a cama
com fome todas as noites; b) o número um na lista dos dez maiores riscos para a saúde
é a fome, que mata mais pessoas anualmente do que AIDS, a malária e a tuberculose
juntas (FAO, 2013), podemos afirmar que, além de uma atividade econômica, a pesca é
central no fornecimento alimentar em forma de proteína para populações ribeirinhas e
costeiras que muitas vezes não têm acesso a programas e políticas públicas.
Mulheres e o mar 18

sobretudo, das ocupações anteriores e posteriores à pesca


propriamente dita, às vezes, participam nesta. No âmbito
artesanal, suas atividades de preparação consistem em elaborar
e reparar as redes, cestos e vasilhas e os anzóis para a isca, além
de prestar serviços aos barcos pesqueiros. Elas mesmas pescam
por razões comerciais ou de subsistência, às vezes em canoas
em zonas próximas aos lugares onde vivem. Também recolhem
larvas de lagostins e pescados para alevinos para suprir os
tanques de aquicultura. Recolhem algas marinhas e mariscos e,
às vezes, trabalham com os homens no mar. (FAO, 2012, p. 118).

Por outro lado, o trabalho atribuído às mulheres, como limpeza,


evisceração, descasque, embalagem, transformação – afora o das
embarcadas, que causam surpresa e descrença sobre sua existência –
não é devidamente considerado trabalho da pesca, mas uma obrigação
de mulher de pescador. Ainda é forte, portanto, a visão segundo a qual
quem atua na pesca e, principalmente, quem embarca, é homem. Urge
rever o conceito que preconiza que pesca é retirar o peixe do mar e que
quem a faz, por definição, nos dicionários de língua portuguesa, é um
ser masculino singular: pescador. A pesca é, envolve e implica muito
mais do que isso. Trata-se de ponderar sobre a inclusão de trabalhadoras
que, tanto quanto os homens, são profissionais da pesca.
Não há, no entanto, um jeito único de ser pescadora. Trata-se de
pescas. Trata-se de pescadoras. Neste momento da escrita, o uso no plural
– pescas – é proposital. Impossível falar sobre a pesca, uma pesca. São
muitas, e a minha experiência em campo me faz acreditar que dificilmente
daremos conta de nos referir, contemplar e compreender a diversidade que
elas implicam. Ao se referir à “heterogeneidade do universo marítimo”,
Amorim (2008, p. 54) faz menção às muitas tentativas de classificação
buscadas por registros oficiais aludindo a essa complexidade do mundo
da pesca. Essa complexidade foge às restritas possibilidades aventadas nos
registros formais, tendentes à homogeneização.
Assim, embora à primeira vista a pesca possa parecer um
espaço eminentemente masculino, já que são os homens, em grande
maioria, que vão para o mar, o exercício que proponho é o de pôr essa
aparência em questão a partir do momento em que se trata de um livro
que diz respeito às mulheres, objetivando mostrar que elas estão em
praticamente todos os espaços da pesca artesanal.6

6
Exceção encontrada em campo se refere à construção naval, na qual encontrei somente
homens trabalhando na construção de embarcações. Barra do Sul, onde esta pesquisa se
Introdução 19

No entanto, não vejo que a questão seja irmos, radicalmente,


para um apagamento dos homens da pesca e visibilizarmos apenas
as mulheres, a exemplo do trabalho de Sally Cole, 1994, Mulheres da
praia: o trabalho e a vida numa comunidade costeira portuguesa, cuja
pesquisa realizou na década de 1980. Embora ponderando que seu
trabalho está inserido no contexto de uma época em que fervilhava um
forte discurso feminista sobre a visibilidade da mulher, é interessante
considerarmos a pesca composta, em muitos contextos, de atividades
complementares, intergêneros, se posso assim definir, em que homens e
mulheres trabalham em funções distintas, semelhantes ou iguais, que se
entrecruzam. Como muitas vezes me falavam, um complementa o outro,
e os dois completam os processos da pesca. Não pretendo, dessa forma,
enaltecê-las por serem mulheres trabalhando em espaços vistos, de uma
forma geral, como masculinos, mas apontar que as atividades – também
no plural – feitas por elas, constituem etapas centrais para compor o
trabalho da/na pesca e que, pelo fato de serem mulheres, muitas vezes,
se deparam com dificuldades de serem reconhecidas como pescadoras
que fazem da pesca a sua vida.
De acordo com Tabet (1998, p. 43) “a pesca faz parte da série
de atividades definidas por Murdock e Provost (1973) como ‘quase
masculinas’”, uma vez que em alguns locais há mais de 80% de homens
a praticando, mas em outros são as mulheres a fazê-lo; ou seja, há
muitas formas de homens e mulheres viverem na pesca e dependerem
dela. Tabet ainda afirma:

Para a pesca, a situação é mais complexa do que para a caça.


As mulheres dispõem, de fato, de uma grande variedade de
ferramentas: diferentes tipos de redes, armadilhas, linhas,
venenos, etc. Além disso, a importância do papel das mulheres
e os tipos de ferramentas que elas podem utilizar variam
consideravelmente de uma população a outra. Finalmente, trata-
se, muitas vezes, de ferramentas fabricadas a partir de materiais
que são, geralmente, trabalhados pelas mulheres. Na pesca, por
conseguinte, a totalidade do processo técnico, da fabricação

aprofundou, é conhecida como a capital nacional da construção naval artesanal, o que


merece um estudo futuro, pois é uma atividade central naquela comunidade e realizada,
em grande parte, por pequenos pescadores artesanais que aliam ao trabalho de pesca o de
construtor naval. A construção naval de embarcações artesanais merece uma pesquisa mais
aprofundada, tendo em vista que, cada vez mais, esses construtores estão desaparecendo
e cujo aprendizado geralmente se dá entre familiares, passando de um para outro, de pai
para filho. Encontrei mulheres participando da pintura das embarcações.
Mulheres e o mar 20

da ferramenta até sua utilização. poderia ser controlada pelas


mulheres, pelo menos pelas técnicas que elas utilizam. Esta
autonomia é, entretanto, limitada pela necessidade frequente de
dispor de uma embarcação, cuja construção é, na maior parte do
tempo, masculina. (TABET, 1998, p. 42).

A autora se refere às dificuldades que as mulheres encontram


em termos de autonomia, o que passa, por exemplo, pela questão de
muitas não serem proprietárias de embarcações ou, quando buscam ser,
as próprias linhas de crédito, em se tratando de Brasil, não condizem
com as necessidades dessas mulheres. Como aponta Tabet (1998), elas
utilizam uma gama enorme de equipamentos e formas de exercer a pesca
que diz respeito às diferenças tecnológicas, em muitos contextos, entre
as pescas realizadas por homens ou por mulheres. Ainda segundo ela,
as mulheres realizariam uma pesca mais moderada, porém constante
e indispensável. Concordo com a autora: são muitas as formas de ser
pescadora, estando a grande maioria inserida na pequena pesca. Dessa
forma, entendo como central mostrar e falar sobre essas peculiaridades
visando contribuir com subsídios que venham a testemunhar a sua
existência, o que pode trazer informações que respaldem reformulações
futuras de políticas de financiamento que levem em conta o fato de
as mulheres precisarem de utensílios, como panelas e bacias, e de
embarcações menores do que aquelas que as linhas de crédito priorizam.
As muitas situações que encontrei em campo coadunam-se
com a assertiva segundo a qual o gênero não pode ser visto como
uma condição dada, imutável ou evidente (STRATHERN, 1988,
1999, 2006; BUTLER 1998). Não é porque, em princípio, a pesca seja
um universo eminentemente masculino, que se dê como evidente a
ausência de mulheres, ou que seja possível afirmar o que as pescadoras
são, de modo genérico, considerando-se que muitas são as formas de
ser. Butler (1998), entre outras autoras, preconizaria que a busca de
uma identidade coletiva – nesse caso a das “pescadoras” – não permite
explanar sobre as diferenças internas; porém, eu gostaria de ponderar
que, em alguns casos e em alguns momentos, uma identidade voltada
para fora, por exemplo, perante o Estado, poderia contribuir com
o processo de reconhecimento como categoria profissional: “as
pescadoras”. Por outro lado, concordo com Butler (1998) quando
pensamos que o grande desafio continua sendo o de resguardar as
diferenças alusivas à diversidade dentro dessa categoria ampla e geral.7

Por exemplo, quando pensamos no Brasil, precisamos considerar que, dentro de


7
Introdução 21

Em termos de Santa Catarina, entendo que é possível propor


não uma classificação, mas algumas denominações em que se
visibilize diferentes formas de ser pescadora, vindo a contribuir com o
reconhecimento da própria atividade. Nesse sentido, em termos do que
pude observar, tendo em vista que este livro trata de algumas pescadoras
em Santa Catarina e que há muito mais a ser visto, considero três formas
centrais de ser pescadoras, que denominei como: a) as que trabalham
embarcadas (incluo aqui as que estou chamando de stand by); b) as que
coletam à beira d’água; e c) as que trabalham em terra.
Em relação às embarcadas, estão as que atuam nas embarcações
em rios, lagoas e mar, na pesca de peixes diversos, camarão, siri, ou
peixes específicos. Sobre as que coletam à beira d’água, encontrei as
que lidam com berbigão. As que trabalham em terra estão inseridas
no processo que faz a pesca funcionar, como comercialização, limpeza,
beneficiamento, aí incluídos processos de descasque de camarão,
filetagem de peixe, desconchamento de mexilhões, extração de carne de
siri, para citar alguns exemplos.
É interessante nos questionarmos se as mulheres não atuam nas
pescas nos muitos contextos pesquisados ou se somos nós que não
as enxergamos nos momentos em que realizamos nossas pesquisas.
Isso porque há muitas delas, ou uma grande parte, que trabalham de
forma muito sutilizada, muitas vezes nos fundos de suas casas e em
situações difíceis, quase invisíveis. Trata-se de mulheres que pescam
em embarcações minúsculas, com poucos apetrechos e em condições
precárias. Outra questão que precisa ser considerada se refere ao que
vem se denominando de materialidade. Maluf (2009) pontua que
a materialidade do gênero não é o sexo biológico, mas os efeitos da
diferença (social, simbólica e política) nos corpos, na vida e na trajetória
e experiência cotidiana e histórica das mulheres. Concordo com ela ao
afirmar que “diferentes mulheres implicam diferentes materialidades
que precisam ser abordadas, compreendidas, consideradas” (MALUF,
2009, p. 14). As pescadoras apresentam várias formas em que essa
materialidade emerge sob os efeitos da diferença em seus corpos, suas
trajetórias de vida e experiências cotidianas, que deveriam também
constituir as provas necessárias, segundo exigem os postulados do

uma categoria ampla, “as pescadoras brasileiras”, teria que se salvaguardar o direito à
diferença: “pescadoras” incluiria as mariscadeiras, as caranguejeiras, as pesqueiras, as
catadoras, enfim, as diferentes denominações usadas em distintos contextos brasileiros
que dizem respeito às muitas formas de viver da pesca, portanto, de ser pescadora.
Mulheres e o mar 22

Instituto Nacional de Seguro Social (INSS), para o seu reconhecimento


profissional, o que nem sempre acontece.
Os deslocamentos que fiz ao percorrer o litoral de Santa Catarina
e passar por instituições, como Colônias8 e Federação de Pescadores,
INSS, Epagri, Marinha do Brasil, Capitania dos Portos, me levaram a
constatar que há ainda uma grande dificuldade de órgãos públicos e
das próprias localidades em que essas mulheres se inserem em aceitar
a denominação pescadora para pessoas que trabalhem na pesca que
não sejam homens. Assim, o mundo da pesca se mostra instigante. Se
a maioria dos homens, desde sempre, é reconhecida e se reconhece
como potenciais pescadores, as mulheres são em relação aos homens,
inicialmente, filhas de pescador para, a seguir, serem mulheres de
pescador. Não há, dessa forma, uma compreensão de que, nos diferentes

8
Os pescadores profissionais se organizam em torno de colônias ou sindicatos. Embora
eu não vá me deter aqui em uma discussão sobre a temática da organização, cabe uma
nota sobre as colônias, que foram as primeiras a serem organizadas no início do século
XX com o objetivo de defesa da costa brasileira, pois se entendia que os pescadores eram
os que mais a conheciam (VASCONCELLOS; DIEGUES; SALES, 2007, p. 3). Inclusive
o lema que encimava a frente das colônias e que em muitas ainda persiste é “Pátria e
dever”. Ao analisar a missão do Cruzador-auxiliar Jose Bonifácio, ocorrida entre 1919 e
1924, cujo lema era nacionalizar a pesca e organizar os seus serviços, também chamada
Campanha de Nacionalização da Pesca e Saneamento do Litoral, os autores discorrem
sobre os movimentos sociais de pescadores no Brasil, afirmando que, se por um lado,
os pescadores realizaram alguns movimentos sociais, por outro se mostram tímidos e
reticentes no processo de lutas. Eles afirmam que “seus ganhos políticos se apresentam
mínimos, o afloramento de lideranças praticamente nulo e a capacidade para a luta
extremamente difícil” (VASCONCELLOS; DIEGUES; SALES, 2007, p. 4). Os autores
também afirmam que, na verdade, os movimentos de pescadores só vieram a ocorrer a
partir de 1968, com a implantação das comunidades eclesiais de base da igreja católica,
aí inserida a pastoral da pesca. Para os autores as principais organizações junto aos
pescadores foram a Marinha de Guerra, as Ligas Camponesas e a Igreja Católica, sendo
a Marinha a criadora das Colônias de Pesca no litoral brasileiro, durante muito tempo
a única forma organizativa dos pescadores. Em Santa Catarina, as colônias contam com
cerca de 45 mil associados. Segundo informação coletada na Federação de Pescadores
de Santa Catarina – que inclui tanto o litoral quanto águas do interior (com quatro
colônias: Z-29/Chapecó; Z-34/Concórdia; Z-35; São Carlos, Z-38/Joaçaba) – o Estado
contava, em 2011, com 39 colônias, e estava em discussão a instalação da colônia Z-40/
Lages. Sobre essa temática, ver: Vasconcellos, Diegues e Sales (2007); Leitão (1997). Há
estados brasileiros em que também é forte o trabalho da Pastoral dos Pescadores, ligada
à Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). No litoral catarinense esse
trabalho ocorria em Laguna, na região Sul, mas não se trata de um trabalho estabelecido
nas demais localidades. Por exemplo, ao conversar com representantes da Diocese de
Itajaí, fui informada de que naquela região ele não é realizado. Uma das justificativas é
que a ênfase maior é na pesca industrial.
Introdução 23

contextos de pesca, homens e mulheres constituam, um em relação ao


outro e ambos, o movimento mar/terra.
As pescadoras se deparam continuamente com questões concer-
nentes às relações e aos papéis de gênero nos processos de aprendizado,
vivência e continuidade na pesca, um universo de gênero hierárquico
que não reconhece: primeiro, a existência de mulheres pescadoras;
segundo, o fato de que, se uma mulher está na pesca, já não se trata de
uma mulher, mas de um homem. Essa não é uma questão, inicialmente,
delas, mas desse mundo que as rodeia e que, portanto, se torna também
delas por nele estarem inseridas. Por exemplo, quando elas colocam o
macacão de pesca e dizem: “estou me vestindo de homem”, de certa forma,
dizem isso para a pesquisadora. Não necessariamente para elas. Estão
aludindo ao que Butler referiu como se montar, fazer uma performance
de gênero; estar em um universo onde os modelos são extremamente
hierárquicos, e que é vivenciado dentro e fora, pois não diz respeito
apenas à pesca, mas à forma como o próprio Estado concebe a pesca.
É muito interessante pensarmos que o estado brasileiro, ao
mesmo tempo que dispõe de uma Secretaria Especial dos Direitos da
Mulher, que preconiza a igualdade, a simetria dos direitos, em outras
dimensões, como o Ministério da Pesca e o INSS, por exemplo, tem
dificuldade em reconhecer esses direitos como iguais, invisibilizando
mulheres que estão em certos espaços concebidos como masculinos,
por partir do pressuposto de que ali elas não poderiam estar. O Estado
constrói, portanto, dispositivos biopolíticos de hierarquização em
que um homem é reconhecido como pescador, mas nos quais uma
mulher, que desempenha o mesmo trabalho, para ser reconhecida
como pescadora e ter, por exemplo, o direito à aposentadoria, precisa
constituir provas, entre as quais, que é filha ou mulher de pescador.
Por si só, ela não se basta.
Dessa forma, questões de gênero, de corpo e de corporalidade
respaldam o foco central de problematização deste livro: a (in)visibilidade
de mulheres pescadoras diante das políticas públicas voltadas à pesca
e as formas como vêm se construindo como sujeitos (MALUF, 2001),
por tratar-se de mulheres em uma profissão considerada e reconhecida
como de homens. Como afirma Maria Alice Samara, ao falar sobre a
história de Maria-Rapaz, uma menina que se disfarçou de homem para
poder sobreviver em empregos vedados às mulheres, “estas mulheres
são como uma espécie de falhas no sistema; são fugas à normalidade
e ao que ao gênero é imposto” (SAMARA, 2007, p. 31). Essa fuga à
normalidade preconizada e imposta a partir do gênero faz com que
Mulheres e o mar 24

essas mulheres enfrentem sérias dificuldades em serem reconhecidas


como sujeitos de direito, como profissionais da pesca.
Ao empreender minha pesquisa e encontrar mulheres
pescadoras que embarcam, isso me instigou a mostrá-las. Dessa forma,
o fulcro que percorre o material que ora apresento é o de afirmar que
as pescadoras que embarcam fazem parte do contexto pesqueiro
que compõe o litoral de Santa Catarina, Sul do Brasil, e que elas não
são uma exceção que confirma a regra. Elas próprias compõem um
universo, e é esse universo que procurei compreender. Não se trata
de denominá-las mulheres de pescadores; mulheres da pesca. Elas são
pescadoras; por isso, o meu propósito foi desvendar esse mundo que
elas vivem, que criam e que também as cria, buscando compreender
o que ele tem de específico, mas também o que tem de semelhante ao
que é considerado pesca de modo geral.
Calávia Saez (2009) preconiza que a antropologia tem como
objetivo descobrir ou inventar objetos. “Descobrir porque o objeto,
em certo sentido, já está ali, em forma de algo que atrai a atenção do
pesquisador.” Algo que faz com que nós, antropólogo, antropóloga,
tenhamos olhos, ouvidos, sentidos voltados para questões, detalhes,
bordas, margens que, de certa forma, nos afetam (FAVRET-SAADA,
2005). “Inventar porque ele só se define no diálogo entre o pesquisador e
o nativo” (CALÁVIA SAEZ, 2009, p. 14-15). O inventar ao qual se refere
Calávia Saez diz respeito a algo que, uma vez trazido à tona, de certa
forma, ganha vida própria apontando para a busca e o estranhamento
com que criamos nossos nativos, mas somos também por eles criados;
faz a antropologia, mas somos por ela feitos. Tal argumento me remete
a um diálogo com Bastos (2010), quando afirma que “seja o que seja
nossa disciplina, ela não só é – e tem sido desde que se pode falar dela –
produto dos antropólogos, mas, ao mesmo tempo, produz a todos nós
– trata-se, a antropologia, enfim, de um fazer e ser feito enquanto faz”
(BASTOS, 2010).
O fazer e ser feito pela antropologia à qual se refere Bastos (2010)
e a descoberta e invenção em Calávia Saez (2009) têm em comum o
que considero o ponto nodal que viabiliza nossas criações, invenções,
e, como via de mão dupla, o sermos criados, feitos e inventados: o
campo. A criação aponta para a necessidade de estarmos atentos às
situações do campo, considerando que é ali que emergem as afetações
que condicionam nossas experiências, positiva ou negativamente, mas
cujo saldo nos trará subsídios para refletir, escrever, rever quando
exercitarmos o distanciamento pós-campo no que, segundo Paul
Introdução 25

Ricoeur, é um “vis-à-vis não dado na situação do discurso (mas) criado,


instaurado, instituído pela própria obra” (RICOEUR, 1997, p. 57).
Vi-me instigada a descobrir e inventar meu objeto quando
mergulhei9 nesta pesquisa com pescadoras, e elas começaram a
emergir à medida que eu me deslocava pelo litoral de Santa Catarina
compondo um campo que não tinha, a priori, uma definição. Ele
não estava situado em um só local, especificamente em uma só
comunidade pesqueira. Seria, por isso, um campo dessituado?
Assituado? Multissituado? (MARCUS, 1986, 1998). Que contornos
dar a esse campo, cuja realização foi instigada pela vontade de saber
quantas e quem são; onde estão; como vivem, o que pescam, como
pescam, mulheres embarcadas na pesca artesanal?
Fui seguindo pistas e não me desloquei de uma só forma. Pedi
carona, fui de ônibus ou de carro próprio. Cruzei a BR-101 e fiz travessias
de balsa, dependendo de aonde queria chegar. Em cima do mapa de
Santa Catarina, fui criando o percurso de meus deslocamentos e, por
conseguinte, o de onde encontrei as pescadoras. Outras há com certeza.
As que encontrei são mulheres que trabalham com seus maridos, filhos,
irmãos, genros, filhas. São as suas camaradas; em alguns casos elas
próprias são as mestras das embarcações.
Acabei concluindo minha pesquisa com 22 mulheres entre 22 e
70 anos,10 a maioria iniciada na pesca muito cedo com seus pais, entre

9
Mergulhar, mergulho, mergulhando são expressões utilizadas como metáfora que
querem dizer respeito à especificidade de meu campo, que é mar, mas também a um
dos pressupostos centrais do trabalho etnográfico que preconiza viver intensamente
o estar em campo. A expressão “é preciso mergulhar” me foi instigada por minha
orientadora, Sônia Maluf, durante um de nossos muitos diálogos. Bachelard (2008),
ao falar sobre os obstáculos epistemológicos (experiência primeira, conhecimento
geral, obstáculo verbal, conhecimento unitário e pragmático, obstáculo substancialista,
obstáculo animista, obstáculo do conhecimento quantitativo) preconiza que urge ao
conhecimento epistemológico uma construção que vai do interior ao exterior, sendo
que muitas vezes prevalece a experiência externa evidente, se escapando a crítica pelo
mergulho na intimidade (BACHELARD, 2008, p. 121, grifo nosso). É neste sentido que
mergulho se refere em Maluf à necessidade de adentrar ao campo de forma profunda,
o que corrobora com Bachelard quando ponderamos que quanto mais o mergulho
adentrar a intimidade, possivelmente mais complexos serão os elementos encontrados
que nos permitirão criticar, questionar e ponderar sobre o vivenciado. Para Amit (2000,
p. 6), “the notion of immersion implies that the ‘field’ which ethnographers enter exists as
an independently bounded set of relationships and activities which is autonomous of the
fieldwork through which it is discovered. Yet in a world of infinite interconnections and
overlapping contexts, the ethnographic field cannot simply exist, awaiting discovery”.
Mantive a idade da ocasião do trabalho de campo, entre 2010 e 2012.
10
Mulheres e o mar 26

os 8, 9, 10 anos de idade. Mulheres cujas trajetórias são pautadas por


dificuldades econômicas, de pobreza. Meninas que saíram da escola,
pois tinham que trabalhar. Geralmente eram as filhas mais velhas e
foram chamadas sem que lhes perguntassem se queriam ou gostariam
de trabalhar na pesca. Precisava-se delas. E elas foram. Outras se
impuseram na pesca, mesmo os pais não querendo que saíssem para
o mar. A curiosidade em saber como era pescar lhes instigava desde
cedo. Outras tiveram os maridos como seus mestres no aprendizado.
Algumas foram, elas próprias, as mestras de seus maridos. Diziam-
me que se acostumaram com a atividade; ou que é só isso que sabem
fazer. Em comum, o riso, o bom humor e a jocosidade, aliados ao uso
de expressões como gostar, amar, ter paixão, vício pela vida no/do mar.
Em relação ao meu campo, que é mar, devo dizer que rapidamente
me dei conta de que teria que lidar com muito mais do que a relação terra/
mar/praia. Teria que ficar atenta aos diferentes tempos e ritmos. Melhora
do tempo; tempo bom; tempo ruim; mudança de tempo eram expressões
que remetiam não exatamente a questões de clima, de temperatura, mas
no sentido de tempo bom para a pesca, geralmente aliado ao calor, mas que
para alguns peixes, como a tainha, é exatamente o oposto: quanto mais
frio, melhor, ou mau tempo, definido como tempo ruim, que significava
sempre tempo de espera para que o tempo melhorasse. As épocas de agito
com a movimentação diária por causa do tempo bom, por conseguinte,
preenchiam de diferentes ritmos minha pesquisa.
Ingold e Kurttila (2000, p. 187-192), ao discutirem questões
relacionadas ao conhecimento tradicional como advindas das práticas
da localidade, citam os Sami, da região Norte da Finlândia, os quais
usam a expressão weather (tempo) em contraposição à expressão dos
cientistas, climate (clima). O clima, que é registrado pelos cientistas, diz
respeito a variáveis que são medidas, como temperatura, precipitação
e pressão atmosférica. Tempo diz respeito a calor ou frio, época de
colheita, tempestade. Em vez do clima, que é registrado pelos cientistas,
o tempo é experimentado pelo grupo como o ambiente obedecendo ao
ciclo das estações. Os autores postulam que não se trata de prescrições
culturais, mas do conhecimento que vem da prática, das experiências
de vida e do movimento naquele lugar. Concordo com os autores sobre
esse aprendizado se dar, na prática, ocorrendo nas relações intra ou
intergeracionais. Portanto, não se trata de prescrições culturais, mas da
experimentação vivenciada em contextos específicos.
Ao que Ingold e Kurttila se referem como diferentes épocas que
compõem uma experiência, Bachelard (1994) denomina de “ritmaná-
Introdução 27

lise”, segundo a qual a vida é ondulação. “O calendário das frutas é o


calendário da ritmanálise. A ritmanálise procura em toda parte ocasiões
para ritmos” (BACHELARD, 1994, p. 133). Ingold e Kurttila (2000)
falam de época de colheitas. Bachelard (1994) fala de épocas de um
calendário. Em meu campo, o que vi diz respeito a um ciclo composto
de diferentes épocas de um calendário anual de peixes, camarão, siri;
calmarias ou tempestades; fartura ou escassez. Uma “ritmanálise” que
dizia respeito à vida na qual o ciclo das estações era orientador não só
dos períodos de ir ao mar ou esperar, mas da própria experiência de
quem vivencia esses tempos.
Tempo bom ou tempo ruim dizem respeito às épocas de fartura
ou escassez de pescado, sendo o verão considerado a melhor época, pois,
com o aquecimento da água, os peixes migram e entram, facilitando
a pesca. O inverno, período mais difícil para as pescadoras que
acompanhei, é a época de miséria, porém, é mais do que isso. O tempo
se destrincha para além de tempo bom ou tempo ruim. Percebi, assim,
que a marcação cronológica dos relógios, que eu buscava definir com
elas para saber quando sair ao mar, era um tempo aproximado que me
davam como referência para me orientar, mas o que contava, na prática,
era a observação de mudanças muito sutis na luminosidade do céu. As
saídas para o mar, inicialmente combinadas para cinco da manhã, em
Florianópolis, por exemplo, se mostravam mais complexas para que eu
estivesse no horário combinado na praia. “O tempo era simplesmente
algo que não podia ser consignado” (BARLEY, 2006, p. 101).11
Guardadas as diferenças, recorro a Barley (2006), no sentido
de expor o quão difícil era conciliar a angústia por querer avançar
em minha pesquisa e o tempo necessário de espera em que a
temporalidade (BACHELARD, 1994)12 que compunha as muitas idas
e vindas me mostrava que não era eu quem definia, nem tampouco os
pescadores propriamente, mas uma conjunção de outros fatores que,
de certa forma, faziam parte do que denominavam de tempo. Tratava-
se de chegar no horário previamente combinado, mas se ficava à
espera de algo que, no princípio, não entendi: todos, ou parados, ou

11
Barley (2006, p. 100) observa em especial que “a calendarização dos acontecimentos
na Terra dos dowayos é um pesadelo para quem quer que procure planejar, além dos dez
minutos seguintes”. O autor observa que os dowayos organizam as coisas a seu próprio
jeito, em um tempo ao qual ele levou muito tempo a habituar-se.
12
Bachelard (1994), ao falar do que define como temporalidade, diz que em tudo há
uma ritmanálise que modula momentos de agito e de descanso em uma composição
temporal que faz parte da duração. Aqui, do fazer-se pescadora e do viver na/da pesca.
Mulheres e o mar 28

conversando, esperando até que o movimento se desse de forma muito


rápida, quando corriam em direção às suas embarcações. Era um matiz
de luminosidade no céu em que já não era noite, mas também de dia
não se tratava. Era naquela mudança sutil que saíamos para o mar na
Armação do Pântano do Sul, em Florianópolis.
Em Barra do Sul, nas saídas para ver as redes que tinham sido
colocadas no dia anterior próximo ao costão, o horário orientador era
em torno de seis horas da manhã, mas a saída dependia de fatores
como o clarear do dia, aliados à situação de mais ou menos agito na
saída da barra,13 considerado o local mais perigoso, pois se trata de
passar a fronteira da tranquilidade do abrigo que está antes, próximo
da terra, e o mar aberto. Já para sair para a pesca do baiacu em São
Francisco do Sul, dona Paulina poderia sair às sete, às nove; voltar às
dezessete, às vinte ou às vinte e duas horas, dependendo do nível da
maré. Tempos que não seguem o determinado crono do relógio, mas
que se definem pelo ritmo cronos (LEACH, 1972)14 que o começo do
nascer do dia, a agitação na saída da barra ou o movimento das marés
indica ou que o agito do mar impede.
As pescadoras, ao mesmo tempo em que estão diariamente
sintonizadas com o que os meteorologistas dizem, comentando a
previsão do tempo, trabalham e observam ciclos e mudanças constantes

13
A barra é o local limite para saída das embarcações em Barra do Sul. Quando o
tempo estava ruim, era comum os pescadores voltarem do local chamado boca da barra.
A boca da barra é o perigo e, ao mesmo tempo, a permissão, pois é ali que o mar mostra
se deixa sair para mais um dia de trabalho ou se não permite essa saída. É o ponto crítico
de perigo, de possibilidade de acidente. Da barra para dentro é a calmaria. Sair da barra
implica ir para o mar aberto e, portanto, para as surpresas que ele reserva. Quando em
campo, eu ficava em vários momentos diferentes na saída da barra apenas observando as
embarcações saírem e voltarem, momentos em que percebi que todas saíam e voltavam
pelo lado direito da barra, de quem olhava de dentro para fora, demonstrando que
há uma forma, uma técnica, um ponto-chave, para sair e entrar na barra, dando mais
abrigo e segurança às manobras das embarcações.
14
Leach (1974), em uma discussão sobre a valoração e formas de ver o tempo, rememora
três histórias sobre o deus Cronos, pai de Zeus, citando como ritual mais importante o
festival conhecido como Cronia, que “ocorria no tempo da colheita, no primeiro mês
do ano, e parece ter sido uma espécie de celebração do Ano Novo” (LEACH, 1974, p.
198). O autor esclarece que o tempo de cronos não é aquele como o consideramos,
pautados “em relógios, rádios, observatórios astronômicos [...] O tempo de Cronos é
uma oscilação, um tempo que vai e vem, que nasce e é engolido e é vomitado, uma
oscilação do pai para a mãe, da mãe para o pai, repetidamente” (LEACH, 1974, p. 192,
199). Cronos, portanto, é oscilação.
Introdução 29

em que a composição é sempre plural.15 Não há vento. Há qualificações


de ventos: sul,16 nordeste, este, leste, rebojo, lestada, terral, conforme
explica dona Merabe.

Lestada é o vento que mais deixa o mar agitado; traz tempestades


que costumam durar muitos dias seguidos, às vezes 15 dias, mas
é o que traz fartura, traz tudo. Com o vento terral não dá para
pescar. Ele só leva a pessoa para fora, para o golfo do mar. É um
vento que vem da terra e dura cerca de três dias. O rebojo é um
vento que não dá para ir para fora. Ele não engrossa o mar, mas é
muito forte. Também não traz nada; só leva, e dura cerca de dois
dias. Entre o sul e o leste, seria o rebojo. Rebojo por quê? Porque
reboja, como uma máquina lava. Na época da tainha é bom para
trazer ela. (Merabe, 60 anos, Barra do Sul).

Segundo Safira, que viveu por vinte anos em uma ilha e que
observava diariamente as frequentes mudanças do tempo, ao explicar
sobre as diversas formas de manifestação do vento, contou-me que há,
inclusive, briga de ventos.

Passava vinte minutos, meia hora, de vento sul. Daqui a pouco,


o nordeste vencia o sul. E pelo nordeste que está forte, já se sabe
como o sul vai entrar. Outro dia a gente vê: hoje a briga já está
diferente! A briga é este/sueste. Entre o leste e o oeste tem o norte
que os antigos aqui chamam de nortão duro. Não é de pegador
como o leste. O nortão é temporário. Tem o noroeste, que é um
vento quente, que fica entre o terral e o norte. É um vento doentio,
quente, de novembro, dezembro; traz a mutuca.17 Para nós o
melhor é o nordeste porque é seguro, o tempo firme, água quieta,
limpa, calmaria. É mais no verão. É um vento que limpa o tempo.
(Safira, 38 anos, Barra do Sul).

O vento influencia as mudanças para o sucesso ou insucesso


da pesca, pois, dependendo de como estiver, é impossível se arriscar e

A minha cabeça fervilhava quando ouvia comentários que, a princípio, me


15

eram ininteligíveis: ou vai entrar uma lestada ou um terral. Ontem já deu rebojo.
16
Dependendo da localização geográfica, o impacto dos ventos se dá de forma
diferenciada. O vento sul traz, geralmente, marés agitadas, mas também, na época da
tainha, de maio a julho, traz esse peixe, que é muito esperado, e que migra de sul para
norte do estado, e do país.
17
Mutuca é um pequeno inseto que, ao picar, provoca muita coceira, podendo produzir
sérias reações alérgicas.
Mulheres e o mar 30

sair para fora, como costumam dizer. Há ventos mais temidos, de um


modo geral, como o leste, chamado também de lestada, e o terral, que
vem da terra. Chegam com força e permanecem dias, impossibilitando
qualquer atrevimento no sentido de tentar a pesca. Os pequenos barcos
são puxados para os ranchos ou amarrados e ficam em descanso até que
o tempo melhore. Para tanto, é preciso que o vento mude, pois contra
vento só outro vento.
Os diferentes tempos, de maré alta ou baixa, de vento nordeste,
sul, terral, lestada, interferem nas saídas para o mar. Mas não se trata
de um tempo de espera ociosa, porém repleto da agilidade dessas
mulheres em remendar ou fazer redes, lavar roupa, fazer comida,
comprar mantimentos, olhar a embarcação averiguando se tudo está
bem. Não há um tempo de descanso definido no que diz respeito a
fim de semana. É o tempo bom de pesca que guia os dias de trabalho,
inclusive sábados, domingos e feriados, assim como o tempo ruim dá
uma trégua nas idas ao mar.
Essas diferentes temporalidades interferiam diretamente no
tempo que eu levava para realizar o que era, previamente, combinado
com as mulheres, pois quando me diziam que o tempo não estava bom,
queria dizer que teríamos que dar, de fato, tempo ao tempo, e esperar
a melhora do vento, da maré, do mar agitado. Oliveira (1995, p. 2)
propõe, entre outros objetivos, mostrar “os limites do método, ou [...]
o que poderia estar em seu lugar”. As contradições, a diversidade, as
inquietações que emergem quando estamos no exercício do campo
contribuem com o aprendizado de nosso ofício. Fazer um campo
que é mar exigiu-me muita paciência e um exercício contínuo de
espera e observação antes de ser acionada pelas mulheres para o que,
inicialmente, a meu ver, constituía participar de seu cotidiano, o que, às
vezes, me deixava angustiada pela sensação de não estar fazendo nada a
não ser observar e esperar.
Me via inquieta, pois, de meu ponto de vista, eu me sentia
perdendo tempo. Uma espécie de agito interior me irritava. “Odiava
desperdiçar tempo, detestava perdê-lo” (BARLEY, 2006, p. 101). Muito
distante da sensação de aventura nas saídas para o mar, ficar esperando
me fazia sentir que faltava algo, que havia uma incompletude nos
momentos, mais de observação do que de participação; até que
busquei me aquietar e buscar viver apenas o que estava me sendo
disponibilizado. Foi aí que os tempos de espera se converteram em
tempos de muita conversa, nas quais buscava compreender os meandros
de suas vidas, observando e experimentando o que faziam enquanto
Introdução 31

se esperava o tempo melhorar, instigando-as a me contar como veem


suas vidas, por que optaram por embarcar em vez de atuar em terra.
Enfim, tempos de escuta de narrativas sobre aventuras vividas, dores,
alegrias, dificuldades, aprendizados. Por vezes elas choravam; outras
era eu quem não conseguia me conter com as suas narrativas, o que
fazia, por vezes, meu humor oscilar entre a solidariedade ou uma
profunda angústia, solidão e decepção comigo mesma por não ter me
contido.
Perguntava-me constantemente: estava fazendo bem feito o que
fazia? Estava utilizando corretamente o método etnográfico? Seria
aquela a melhor forma de fazer o campo ao qual me propunha? Agitava-
me uma angústia por desejar ter uma resposta certa que desse conta de
esclarecer as muitas questões mesmo quando ainda estava tão incipiente
meu trabalho de campo. Sobre esse constante questionar-se, Bachelard
(2008), ao discutir o que definiu como obstáculos epistemológicos,
afirma que precisamos estar atentos ao processo de construção do
conhecimento científico em que emergem contradições, erros e
insuficiências. É preciso honestidade e paciência, fazendo-se central
buscar formular bem os problemas e conviver com uma constante
reformulação de perguntas, pois tudo é construído e reconstruído
continuamente. “Todo conhecimento é resposta a uma pergunta. Se não
há pergunta, não pode haver conhecimento científico. Nada é evidente.
Nada é gratuito. Tudo é construído” (BACHELARD, 2006, p. 18).
Certeau (2008), ao tratar sobre a operação historiográfica, levanta
questões como “o que fabrica o historiador quando faz história? Para quem
trabalha? Que produz? [...] O que é esta profissão?” (CERTEAU, 2008,
p. 65). Por outro lado, Deleuze e Guattari (2009), na obra O que é a
Filosofia?, afirmam que simplesmente chegou a hora de perguntar o que
é a filosofia, embora tenham uma resposta que não variou; “mas não seria
necessário somente que a resposta acolhesse a questão, seria necessário
também que determinasse uma hora, uma ocasião, circunstâncias,
paisagens e personagens, condições e incógnitas da questão” (DELEUZE;
GUATTARI, 2009, p. 10). Tanto nas questões de Certeau (2008) quanto
na alusão à hora final de Deleuze e Guattari (2009), se inserem as
possíveis paisagens, personagens, condições e incertezas que, muitas
vezes, nos remetem ao que afirma Bastos (2010) sobre ser irrespondível
de maneira cabal esta questão: o que é a antropologia?
Quando Deleuze e Guattari (2009, p. 9) afirmam que “talvez só
possamos colocar a questão [...] tardiamente, quando chega a velhice,
e a hora de falar concretamente”, apontam para o fato de que não
Mulheres e o mar 32

é que não vínhamos nos questionando sobre o que é a antropologia,


mas parece que agora nos propomos a “não ficar só na rama, mas em
deixar-nos engolir por ela” (DELEUZE; GUATTARI, 2009, p. 9). Ao
usarem a figura da rama, os autores nos remetem a pensar sobre uma
busca contínua de aprofundamento, de ir da rama à raiz de nossas
próprias questões, angústias e dúvidas e, ao nos deixar engolir por ela,
passar, de certa forma, a fazer parte dela, e ela de nós. Nos momentos
mais solitários em campo, a angústia se aprofundava em forma de
dúvidas e questionamentos persistentes sobre se não estaria eu sendo
irresponsável e ingênua confundindo o exercício da experiência do
mergulho etnográfico com uma aventura.

Sobre as desventuras da perda da inocência


Ao discutir questões relativas à necessidade de uma contínua
discussão teórica sobre os caminhos da observação participante, em
que postula que é necessário valorizar tanto a observação quanto a
participação,18 e que deseja saber por que a observação participante
se transformou em participação observante, Cardoso (1988, p. 101),
refere-se ao texto de Roberto da Matta (1978), comentando que o autor
mostra que nossa formação postula o planejamento do trabalho, mas
não nos prepara para ver com olhos críticos nossos humores, cansaços,
infortúnios e, eu diria, desventuras.
Segundo a autora, às vezes, os relatos se limitam às aventuras dos
antropólogos sem colocá-las, de fato, como etapas do conhecimento,

18
Durham (1988, p. 33) considera dois tipos de participação: a objetiva (que estaria mais
afeita aos trabalhos com povos indígenas) e a subjetiva (pesquisa realizada nas cidades),
sobre a qual diz que é preciso ter cuidado para não cairmos em análises a partir de
categorias nativas. Pondera ainda sobre os meandros de quando uma pesquisa passa de
observação participante para uma participação observante, resvalando para a militância
(DURHAM, 1988, p. 27). Para a autora, ter-se-ia que ponderar uma discussão apurada
sobre questões teórico-metodológicas e epistemológicas aí envolvidas. Segundo ela, a
observação participante é um trabalho importante, mas é preciso avançar na procura
de novos caminhos (DURHAM, 1988, p. 34). Considero que a observação participante
é o que nos propícia a aproximação com o campo. É o princípio do que o decorrer do
tempo em campo permitirá vivermos e que eu estou qualificando como uma experiência
densa. Entendo que cabe um salto em termos de avançarmos no que Malinowski (1976)
postulou. A observação participante do autor estava contextualizada em uma antropologia
feita a partir da varanda, se podemos assim pensar. Atualmente, considero que precisamos
qualificar nossa estada em campo como participação que contempla observação, inserção
no cotidiano, afetação e uma disponibilidade de vivenciar uma experiência densa.
Introdução 33

etapas estas que irão compor o processo de conhecimento que se constrói


em um questionar-se contínuo. Bachelard (2006) se propõe a mostrar
o que chama de dificuldades das abstrações corretas “ao assinalar a
insuficiência dos primeiros esboços, o peso dos primeiros esquemas, ao
sublinhar também o caráter discursivo da coerência abstrata e essencial,
que nunca alcança seu objetivo num só golpe” (BACHELARD, 2006,
p. 8). Barley (2006), por sua vez, diz que se trata de erro e revisão
constante. Eu acrescentaria que é o próprio campo que se encarrega de
nos colocar constantemente em estado de atenção e autorrevisão.
O dia em que o mar me mostrou sua força me permitiu avançar
em questionamentos sobre os limites da minha observação, o que se
queria também participação, entendendo ambas como centrais no
investimento antropológico. Nesse sentido, no início de meu trabalho de
campo, quando eu contava a colegas da antropologia ou demais pessoas
que estava iniciando uma pesquisa com mulheres pescadoras, a grande
maioria demonstrava curiosidade e admiração, tentando esclarecer o
que eu dizia: com mulher de pescador? Com pescadoras mesmo? Que
vão para o mar? A seguir, não raro, resumiam que consideravam que eu
estava vivendo uma verdadeira aventura.
Assim, logo após o início dos embarques, a vaidade me seduziu
e tudo parecia, de fato, uma grande aventura, até o dia em que o mar
mudou de repente, e o tempo passou de bom a ruim. Primeiro, olhei o mar
de baixo para cima, de dentro da pequena embarcação, pois ele cresceu
tão rapidamente que fiquei estática, embora extasiada com o que via.
Só conseguia pensar que parecia estar diante de uma grande catedral,
inspiradora de respeito. A seguir, o mar agitado jogou a embarcação
para cima, e com ela fui junto no breve desequilíbrio de meu corpo.
Ao olhá-lo de cima para baixo e observar o que me parecia ser uma
grande boca que recebia violentamente água de quatro direções, e
que vindo de quatro direções se encontrava no centro, eu só consegui
pensar, antes de projetar meu corpo para cair dentro da embarcação:
não adianta saber nadar! Naquele momento, assimilei que estava
em um campo tão perigoso quanto instigante. Acabou a aventura-
fantasia19 e começou o que considero uma aventura antropológica.

19
Leiris (2007), ao falar sobre “A África fantasma” disserta sobre suas decepções em
que o campo lhe permitiu desmitificar ilusões anteriores. Na apresentação da obra,
Fernanda Peixoto afirma que “é de decepção que nos fala Leiris ao longo do relato: a
partida, rodeada por imagens românticas e fantasias de evasão; o cotidiano em terra
estranha; o regresso, definido antes por frustrações que por conquistas [...] a narrativa
aponta assim para a desmistificação da viagem, das realidades encontradas e do próprio
Mulheres e o mar 34

Segundo Cardoso (1988),

A nossa Aventura Antropológica pode lembrar a visão romântica


que cerca os antropólogos, quase sempre confundidos com
excêntricos aventureiros que se lançam em estranhas viagens
por regiões desconhecidas ou espaços urbanos inabituais.
Mas, mesmo rejeitando estas pinceladas românticas, não seria
enganoso dizer que a pesquisa é sempre uma aventura nova
sobre a qual precisamos refletir. (CARDOSO, 1988, p. 13, grifo
da autora).

A autora não aprofunda uma discussão sobre a composição que


ela própria apresenta. No entanto, entendo ser interessante ter claro
que, ao adjetivarmos aventura – uma aventura antropológica – estamos
qualificando uma experiência que nada tem de romântica ou excêntrica.
Pelo contrário, trata-se de um exercício que implica superar a inocência
que permeia a aventura-fantasia, se considerarmos que a aventura
antropológica seria o exercício da própria etnografia, aquela que, no
dizer de John Vann Maanen, implicaria perder a inocência. Diz Maanen
(2004, p. 427): “a etnografia não é mais pintada como um procedimento
relativamente simples de olhar, escutar e aprender, mas antes como
algo próximo a uma intensa prova de fogo epistemológica”. O autor se
refere ao que denomina de fim da inocência, a qual pressuporia que a
etnografia emerge mais ou menos naturalmente a partir de uma simples
estada em campo. O autor enfatiza que a etnografia não estará dada em
um primeiro momento, mas precisará ser construída no aguçamento do
olhar em campo.
Nesse direcionamento, pondero que a imersão em campo deve
ter os sentidos voltados para a observação de sutilezas, como vimos
discutindo há muito tempo na antropologia, mas que aqui cito como
exemplo o antropólogo inocente de Barley (1983, p. 63), em que
é preciso tempo para apreendê-las. O autor ainda preconiza que é
central estar atento ao que daí será extraído, selecionado, como um

trabalho etnográfico como possibilidade de acesso ao ‘outro’” (PEIXOTO, 2007,


p. 31). Considero que a ida a campo propicia e coloca à prova qualquer romantismo,
ingenuidade ou ilusões iniciais que, por sua vez, nos alertam, como no meu caso. Ou
nos decepcionam, a exemplo do que afirma Leiris (2007). Mas, eu argumentaria que
também nos surpreendem e nos fornecem subsídios para pensarmos sobre o próprio
exercício etnográfico. Se não tivesse se decepcionado, se frustrado, Leiris (2007) não
teria como escrever A África fantasma. Ou seja, não teria deixado uma contribuição tão
rica sobre tópicos vivenciados em campo.
Introdução 35

verdadeiro processo de garimpagem em que “o trabalho de campo


tem muito em comum com a mineração” (BARLEY, 2006, p. 136). “É
preciso muito esforço para extrair algumas onças de ouro”, enfatiza.
Eu diria que é preciso aguçar os sentidos, pois muitas vezes estamos
tão determinados a garimpar em um lado e não nos damos conta que
as onças de ouro podem estar de outro. É preciso olhar, cheirar, tocar,
observar, participar, viver a experiência com o máximo que o campo
nos possibilitar e nos permitir.
Enquanto Cardoso (1988) empreendia uma discussão visando
compreender os meandros entre observação participante e participação
observante, Geertz (1989), ao defender a centralidade de uma descrição
densa afirmava que em “todo empreendimento nós já estamos explicando
e, o que é pior, explicando explicações. Piscadelas de piscadelas de
piscadelas” (GEERTZ, 1989, p. 19). Concordo com Cardoso sobre ser
a participação tão importante quanto a observação, e concordo que
a busca de uma descrição densa, preconizada por Geertz, é central.
Por outro lado, há campos e campos e formas distintas de compor o
fazer antropológico: uma pluralidade. Nas palavras de Bastos (2010),
tomaríamos “essa pluralidade [...] como uma primeira grande marca da
antropologia, uma pluralidade que tem sido – e é – tensa” (BASTOS,
2010, p. 3).
Em alguns trabalhos de campo, a possibilidade viável é a
observação; em outros, é possível exercitar a participação, aliando
uma e outra. Porém, quero ponderar que em alguns campos, como
aquele em que eu me propus a realizar com as mulheres pescadoras
com o que eu denominei como sombra (sobre o que falarei a seguir),
só me foi possível a partir da busca por apreender meandros, sutilezas,
temporalidade, corporalidade, em seus cotidianos, com o que eu
proponho chamar de uma experiência de observação/participação
densa. A descrição densa sobre o vivido será mais densa quanto
densa tiver sido a experiência do exercício de um profundo mergulho
em campo, no meu caso, o mar. O que tem a ver com um exercício
extenuante vivido em uma tensa suspensão e expectativa sobre o que
vem no momento seguinte. Ao mergulhar em campo, nós imaginamos
o que podemos encontrar, mas é só o fazendo que se torna possível
ver/sentir/experienciar repetidamente o exercício etnográfico.
Considero, portanto, que a etnografia se dá pela repetição.
É repetir a observação, repetir a convivência, repetir momentos como
Mulheres e o mar 36

se nada fosse acontecer e,20 de repente, tudo acontece. Fazer etnografia é


estar presente de forma intensiva, visceral (LAGROU, 1992) e repetitiva;
extenuante. É a repetição que permite viver a experiência densa que
inclui o inesperado. Fazer etnografia, às vezes, era ficar sentada na
praia observando aquilo que me parecia não ter sentido. Mas esse é o
sentido. E esse aprendizado o campo me trouxe. Esse é o próprio sentido
da pesca: essa espera contínua. A etnografia é, portanto, a repetição da
experiência que se densifica à medida que temos condição de observar
se um fato é extraordinário ou ordinário.
E é no ordinário, segundo Certeau (1994), que é possível observar
a criatividade e as formas como as pessoas e os grupos conseguem se
reinventar, se recriar no seu cotidiano. É essa observação contínua,
cansativa e exaustiva que, eu acredito, nos permite construir a
etnografia, como método, como epistemologia, como um conjunto de
saberes-fazeres que dizem respeito à antropologia. Embora, cada vez
mais outras disciplinas estejam fazendo uso do exercício etnográfico, o
saber-fazer etnografia dentro da antropologia tem a especificidade desse
convívio, dessa imersão, desse mergulho de longa duração. Os ancestrais
da antropologia tinham razão: mergulhar em campo é necessário, pois
é a partir dele que reconstruímos nossos pressupostos iniciais e parimos
nossos trabalhos; criamos e somos criados pela antropologia.
As embarcações entravam e saíam todos os dias. Assim foi o
meu fazer etnografia. Um mergulho no cotidiano da repetição da
pesca buscando compreender como as mulheres são e vivem como
pescadoras. “Um ato solitário” (MALUF, 2010), que se realiza com o
aporte de nossos pares. Acredito que só assim é possível fazer e ser
feito, como resumiu Bastos (2010). Wagner (2010, p. 29) diz que “um
antropólogo experiencia, de um modo ou de outro, seu objeto de
estudo”. Tão difícil quanto viver essa experiência é, a partir de nossos
próprios significados, encontrar formas de comunicar a experiência
vivida, inventando a cultura do outro e, assim fazendo, inventando
formas de fazer antropologia.

20
Leiris fala sobre o que considera uma rotina monótona permeada pela mesmice que
tem o efeito permanente de paralisar o tempo em que, segundo ele, nada acontece: “as
cidades e os lugares se sucedem no correr das horas, das jornadas, das estações, dos
meses do ano. Mas como a viagem etnográfica não narra aventuras – ao contrário,
está enraizada na rotina –, seu registro frisa monotonia e tédio” (LEIRIS, 2007, p. 32).
Considero que é aí, no que parece a mesmice, que está a possibilidade e de onde emerge
a experiência da etnografia.
Introdução 37

O exercício da antropóloga como sombra


Hoje me preparei em Barra do Sul para seguir até Itapoá e
parei em frente à casa de dona Ci para avisar quando voltaria.
Quando saí de sua casa, o inesperado aconteceu: a bateria do
carro havia parado de funcionar. Enquanto aguardava a vinda
do mecânico, dois de seus filhos, Simão e Marques, ficaram
conversando comigo. Um senhor que passava em outro carro
parou e veio sorrindo em nossa direção, curioso para saber o
que houve. Marques, muito rápido, disse: ah padre, a bateria
do carro da Rose pifou. E quem é ela, perguntou o padre.
Simão, que além de pescador é diácono, foi respondendo: é
uma antropóloga que está aqui pesquisando a gente, com as
nossas mulheres. Antropóloga? Mas o que é uma antropóloga?
Nessas alturas, embora eu já estivesse cansada com um padre
tão curioso, fiquei, eu, curiosa para ver o que Marques iria
responder, o que ele, prontamente fez: olha padre, é tudo ólogo,
óloga. O senhor é teólogo. Ela é antropóloga. E se bem estamos
entendendo, com o trabalho da Rose, uma antropóloga é aquela
pessoa que vê a gente do fio do cabelo ao dedão do pé. Tudo o
que o senhor imagina ela está vendo com a gente. Tudo. Aonde
a gente vai, ela vai junto, em tudo. [...] Como ela diz, é uma
sombra. (Trecho do meu diário de campo).

Embora eu me propusesse a estar em tudo com o intuito de


ver o máximo possível, estava muito claro que seria sempre alguém
exterior àqueles espaços, lição que já tinha vivido intensamente em meu
trabalho de campo no mestrado quando fui alertada que mesmo que eu
vivesse cem anos lá, eu jamais seria um deles. Convicção esta que vai
ao encontro da arguição feita por James Clifford, quando afirma que,
embora o etnógrafo tente se inserir dentro da sociedade que estuda, é e
sempre será um outsider.

O etnógrafo, antes de tentar misturar-se na sociedade em estudo,


“desempenha o papel do seu estrangeiro”. Um intruso amistoso, mas
determinado, pressionando constantemente contra interdições
usuais, o etnógrafo vem para ver como alguém que, precisamente
por causa da sua exterioridade com respeito a instituições nativas,
improvavelmente os falsificará. (CLIFFORD, 1983, p. 144).
Mulheres e o mar 38

Sendo eu uma outsider,21 queria encontrar uma maneira de me


aprofundar naquele cotidiano das mulheres pescadoras. Foi assim que,
ao me preparar para as primeiras conversas com elas visando expor
a proposta de minha pesquisa, que era ficar com elas diariamente,
acompanhando-as, trabalhando, fazendo as mesmas coisas, eu só
consegui denominar para elas o que e como gostaria de realizar a
pesquisa recorrendo à expressão sombra. Expliquei-lhes na ocasião que
significava que o que fizessem e aonde fossem ali eu estaria como uma
espécie de duplo delas. Por outro lado, se era eu a sombra, o propósito
era o de serem elas a luz, o que nos traz a questão da visibilidade/
invisibilidade. Outra ponderação poderia ser pensada nos meandros do
proposto por Nietzsche (2007),22 em que a sombra seria um eu do meu
eu, antropóloga, uma viajante que saiu em busca das pescadoras. Luz e
sombra como um mesmo e como a relação entre mulheres em diálogo:
antropóloga e pescadoras.
Após ouvirem e concordarem com a proposta de ser eu uma
sombra, embora inicialmente me poupassem um pouco do esforço,
no decorrer do andamento da pesquisa rapidamente me colocaram a
trabalhar com elas, fazendo exigências, mandando, orientando, às vezes
se irritando comigo devido ao meu ritmo mais lento e a minha fraqueza
física. Uma das pescadoras, no primeiro dia de campo em seu rancho de
pesca, me alertou rindo muito quando eu me mostrei um pouco lenta
para os seus parâmetros: Não és sombra? Se és sombra, é pra fazer igual.
Então me ajuda com essas estivas.23

21
Outsider: intruso. Uso o termo no sentido de Elias (1994), ou seja, pensando que
eu não era nem seria membro daquele grupo social. Embora não fosse rejeitada ou
excluída, estava claro para mim ser eu “de fora”; portanto, de certa forma, uma intrusa.
Por outro lado, Becker (2008, p. 15) utiliza o termo no sentido de “alguém de quem
não se espera viver de acordo com as regras estipuladas pelo grupo”. Embora eu me
propusesse a viver em campo as regras estipuladas pelo grupo, eu não fazia nem faria
parte daquele grupo. Eu e elas sabíamos disso.
22
No diálogo entre a sombra e o viajante, o viajante afirma: “[...] Para que haja beleza
do rosto, clareza da palavra, bondade e firmeza de caráter, a sombra é tão necessária
quanto a luz. Não são adversárias: antes, elas tomam amigavelmente a mão uma da outra
e quando a luz desaparece, a sombra foge atrás dela” (NIETZSCHE, 2007, p. 14).
23
Estivas são troncos de madeira que servem de apoio para tirar as embarcações dos
ranchos e colocá-las na praia; e vice-versa. Elas são dispostas em sequência sobre a areia
e a embarcação deve deslizar por cima delas à medida que são empurradas, no caso pela
pescadora e por sua sombra. As estivas que essa pescadora usava pesavam entre 15 e 25
quilos cada uma, o que ela levantava com facilidade. Eu comecei pelas mais leves.
Introdução 39

A receptividade das pescadoras e de suas famílias foi muito boa


e todas levaram a sério quando lhes dizia que propunha que o método
da pesquisa se pautava por eu ser uma sombra delas: criticavam ou
sugeriam o que eu deveria fazer enquanto elas faziam. Muitas vezes
brincavam: Vamos lá, minha sombra; anda sombra; se é pra ser sombra,
empurra daí eram comentários ditos em tom jocoso e acompanhados de
risos, assim como ordens do tipo puxa, empurra, lixa, separa, carrega.
Como eu não demonstrava cansaço nem reclamava das dores físicas,
em dado momento uma das pescadoras comentou: mas parece que já
trabalhasse24 nisso. Levas jeito para a pesca. Ao ouvir tal comentário,
lhe disse: talvez seja porque eu já trabalhei na roça quando adolescente.
Ah, tinha que ter um motivo. Está explicado então. O comentário da
pescadora, de certa forma aludia a diferenças de corpos criados em
contextos distintos, como os da pesca ou da roça e os citadinos.
Em relação ao exercício de ser uma sombra, uma das pescadoras
foi mais incisiva. Ao explicar-lhe a proposta da pesquisa e de meu
método de trabalho, implicando como seriam os dias junto a ela,
acompanhando-a, fazendo o que fizesse, saindo para pescar, organizando
materiais, entre outros, a jovem afirmou rindo: mas isso não é sombra. É
um encosto. Ao perguntar-lhe o que seria um encosto, ela me falou sobre
estar “encostado, grudado, junto, como se fosse um espírito”. Perguntei-
lhe: que tipo de espírito eu te pareço? “Um espírito bom, né, senão eu
corria contigo daqui”, respondeu-me rindo.
Com o passar do tempo, as pescadoras se mostraram muito à
vontade, demonstrando inclusive o que me pareceu ser um aproveitamento
da mão de obra que a pesquisadora lhes oferecia quando ocorria o que
poderíamos denominar de um desdobramento da sombra. Sombra e seu
duplo trabalhavam juntas, mas cada qual em atividades diferentes, visando
agilizar a realização das muitas atividades, o que me era verbalizado na
expressão enquanto: Enquanto eu faço isso, fazes aquilo. “Enquanto eu
puxo daqui, tu puxas dali”; “enquanto eu empurro a embarcação, tu pegas
a estiva”; “enquanto eu limpo o peixe, tu colocas no saco”.
No transcorrer do trabalho, antes de concordar em fazer parte da
pesquisa, uma das pescadoras foi conversar com outra com a qual eu
já estava há alguns dias. Depois, esta segunda pescadora me contou do
ocorrido rindo e me dizendo o que havia dito à outra:

24
O português correto seria “trabalhaste”; porém, como se trata de um jeito muito
próprio de elas falarem, mantive a expressão, assim como manterei em outras ocorrências
similares neste livro.
Mulheres e o mar 40

Eu disse pra ela: participa da pesquisa sim. Tu não podes ficar de


fora, pois se eu sou pescadora, hoje tu és mais do que eu porque
estás indo pra fora todo dia, saindo de madrugada e voltando só
final da tarde. Participa sim. A forma da Rose pesquisar é muito
boa, a gente fica muito à vontade. É uma pessoa séria. A gente
fala muito, ela acompanha a gente em tudo. É como uma terapia.
Ela escuta, escuta, escuta. É como se ela fosse um médico, mas um
médico da alma porque ela escuta a gente. A gente fala tudo o que
quer [...]. (Safira, 38 anos, Barra do Sul).

Assim, de sombra a encosto, de encosto a médico da alma,


os desmembramentos foram muitos e permaneci os dias com elas,
repetindo gestos e atividades, tentando interferir o mínimo possível
em seu cotidiano com minha presença/sombra e, de certa forma, sendo
um encosto, posto que não largava um minuto sequer a pescadora com
a qual estivesse: ir para o mar, voltar, puxar as redes, as embarcações,
estender roupas, amassar pão, ir a cultos religiosos, limpar a casa, atender
clientes que vinham comprar peixe, pesar e empacotar os produtos, ir ao
mercado, lixar embarcações, empurrá-las para o mar. Onde a pescadora
fosse ou o que fizesse, ali eu estaria. Da manhã à noite. Noites dormindo
em suas casas; madrugadas acordando em suas portas.
Mesmo que buscasse evitar ou que não quisesse, eu já tinha feito
o que Barley (2006, p. 209) afirma: “todos os antropólogos alteram de
alguma maneira o povo que estudam”. No entanto, ao dito de Barley, eu
acrescentaria que, muitas vezes, se não quase sempre, o campo também
nos altera. Às vezes, irremediavelmente. As pescadoras já tinham
alterado minha vida de forma inexorável, afetando-me nas formas de
observar, conviver e tentar compreendê-las. Eram vidas e formas de
viver que me colocavam em cheque quanto aos ritmos impregnados de
temporalidades outras que não as que eu até então tinha me dado conta.
Entretanto, no agito contínuo do extenuante exercício da sombra,
preservei momentos de afastamento, de isolamento, pois entendo
e concordo que se faz necessário resguardar o que Velho (2004),
denominou de tempo psicológico. Aquela necessidade de tanto eu
quanto elas terem um tempo, uma sem a outra. Se em alguns momentos
eu me sentia cansada, irritada, com vontade de ficar sozinha, porque
elas não sentiriam o mesmo? Assim, propositadamente reservei alguns
momentos para ficar afastada delas. E também preservar-lhes de minha
presença insistente e constante.
O exercício da sombra colocou-nos frente a frente, elas em
relação a elas, eu em relação a mim mesma, e ambas uma em relação
Introdução 41

à outra, pois a sombra, sendo um duplo do eu, nunca é o eu. Ela


aponta, de forma próxima e aproximada, os contornos do eu que,
estando na luz, lhe projeta. Ao convivermos durante o período em que
transcorreu a pesquisa, não só a sombra acompanhou as pescadoras.
Elas demonstravam uma atenção desperta e aguçada na observação do
que a sombra lhes dizia ou indicava sobre elas. Verbalizações como:
“estás fazendo a gente pensar sobre quem a gente é”; “fizesse eu pensar
sobre minha vida”; “que a gente é exceção a gente sabia. Tu viesses
lembrar que a gente é pescadora” são exemplos de como a sombra fez-
se boa para que elas olhassem para si próprias a partir do olhar que a
sombra sinalizava que estava vendo.
A sombra se fez boa para pensar e se fez boa como exercício de
uma etnografia que se propôs extenuante e no limite da proximidade
que só uma sombra nos indica. No entanto, à medida que o trabalho
avançava, eu me perguntava constantemente: o que é uma sombra? O
que pretendo com isso? Por um lado, eu queria viver de forma intensa
o cotidiano das pescadoras. Por outro, percebi que estava provocando
nelas uma espécie de auto-observação, na medida em que se viam
ao ver as reações da sombra projetada, grudada de forma contínua e
persistente.
O exercício da antropóloga como sombra visando a uma
observação/participação/experiência densa em seus cotidianos se aliou
ao que eu definiria como uma escuta feita com os olhos. Explico-me
melhor: como percebi que, no início do trabalho de campo, algumas
não me olhavam diretamente nos olhos; ou olhavam para baixo ou para
o lado enquanto eu anotava alguns dados iniciais, eu optei por largar
a caderneta. E assim fiz. Largar papel e caneta me permitiu olhá-las
totalmente nos olhos de forma que tive delas o mesmo retorno. Olhá-
las nos olhos propiciou uma despreocupação minha em anotar o que
me era dito. Por outro lado, me permitiu estar com o corpo todo em
estado de atenção em que, não só os ouvidos, mas os olhos passaram a
fazer parte de uma escuta que se propôs atenta. Escutar com os olhos
permitiu-me exercitar uma proximidade plena com elas, pois a minha
escuta não era menos atenta, interessada, curiosa do que a atenção delas.
Entretanto, havia muito mais do que escutar as pescadoras. Era
preciso exercitar a sombra. “Será que não vás marear?” foi a primeira
pergunta que ouvi de algumas das pescadoras quando conversamos sobre
a possibilidade de ir nas embarcações visando melhor compreender seu
cotidiano. Tal pergunta demonstrava uma preocupação central para as
profissionais da pesca, pois, uma vez no mar, só resta seguir e cumprir
Mulheres e o mar 42

o que estiver por ser feito. Eu garantia categoricamente que não iria
marear, ou seja, enjoar em alto-mar.25 Porém, para garantir que não
teria qualquer inconveniente e que não interferiria no ritmo de trabalho
delas, municiei-me com um pequeno estoque de medicação própria
para evitar enjoos. Internamente ponderava que nunca se sabe quando
nossos corpos podem nos trair, colocando em risco o estabelecimento
de uma relação de confiança em campo. Nunca fiz uso da medicação,
mas, por precaução, sabia que estava comigo. Para garantir que não
enjoaria, também estabeleci por norma não comer antes de sair ou
comer parcimoniosamente. Impus-me o jejum como forma de prevenir
qualquer possibilidade de enjoo.
Se eu mareasse, como dizem, colocaria em risco a continuidade
da pesquisa, tendo em vista que alguém vomitando é sempre uma
desagradável interferência dentro da embarcação. Afora algumas
experiências iniciais em que me colocaram à prova, como pedir que eu
me sentasse próximo à saída da fumaça do motor, ou propositadamente
acelerar a embarcação fazendo círculos de idas e vindas no mar, ambas
para testar minha capacidade de não marear, tornou-se comum ouvir de
pescadoras e seus camaradas: tudo bem?
Em um dos dias em campo, fui colocada à prova pelos camaradas
de uma das pescadoras, seu filho e um de seus irmãos. Era a primeira
vez que saía com eles. Depois de colocarmos as redes em três diferentes
pontos, as quais só seriam retiradas no dia seguinte, seu irmão gritou
para seu filho: “agora vamos procurar aquela rede que perdemos ontem”.
A pescadora, surpresa, perguntou: “perderam uma rede ontem? Como
não me falaram nada?” Inicialmente desconfiei que houvesse algo
errado, mas, imediatamente pensei: eles não fariam isso comigo! E
passei a ajudar a procurar a rede, perscrutando atentamente o mar. Eles
davam voltas e voltas, aceleravam a embarcação que fazia a água fria do
mar entrar pela gola da capa e escorrer em um filete até minhas nádegas.
Depois, diminuíam e faziam outra volta; mais uma, até que resolveram
voltar. Ao chegarmos a terra, minha suspeita se confirmou quando o
marido da pescadora, que havia ficado remendando redes, perguntou:

Gianpaollo Adomilli também se deparou com esta preocupação dos pescadores


25

quando embarcou no litoral do Rio Grande do Sul para realizar sua tese de doutorado.
Ele relata o seguinte sobre se deparar com a possibilidade de enjoo e o que fez para
preveni-lo: “notei que faziam sempre a mesma pergunta: se eu já havia navegado. Ao
responder, percebia aqueles sorrisos que faziam alusão ao enjoo. Com a ajuda dos
remédios, consegui superar em parte o mal-estar, evitando vomitar, o que demonstraria
uma fraqueza perante o grupo” (ADOMILLI, 2007, p. 76).
Introdução 43

E daí? Seu filho respondeu rindo: “Passou no teste. Nada de enjoar! Dá


para ir quando quiser”. E se virando para mim complementou: “Olha,
amanhã vou sair às cinco da manhã. Se quiseres, pode vir”.
Outro aspecto referia-se ao horário em que começava o dia a dia
dessas mulheres e em que, portanto, deveria começar o meu durante o
trabalho de campo. Sobre esse aspecto, cada um de nós que se propõe
a realizar uma pesquisa passa por adequações conforme se mostra
necessário, visando não decepcionar nossos interlocutores por um
lado, e objetivando conquistar sua confiança por outro. No caso das
pescadoras com as quais convivi, descobri que seus dias começavam
muito antes do que eu estava habituada: duas, três, quatro, cinco horas
da manhã. Acordavam muito cedo e começavam a realizar atividades
como preparar o lanche que seria levado na embarcação, ou deixado em
casa, lavar louças, arrumar o espaço da cozinha, onde o dia começava.
Assim, mesmo considerando que, para os meus parâmetros, costumava
acordar cedo, entre seis e sete horas da manhã, me vi tendo que exercitar
meu corpo para acordar um pouco antes do habitual.
Assim, no início dos trabalhos, ainda nos primeiros contatos,
quando me perguntavam se eu estaria com elas no horário que me
indicavam imediatamente, eu demonstrava estar completamente
familiarizada com este e me obrigava à afirmação: Mas é claro! E assim
passei a ter meus dias iniciados muito cedo e se estendendo até tarde,
pois essas mulheres têm atividades que preenchem o dia e parece
faltar hora. Em alguns momentos o cansaço era extremo e adormecia
à tarde. Em outros, mesmo exausta, não queria perder detalhes que só
acompanhando-as de perto seria possível perceber. Entre um e outro
dia, oscilei entre momentos em que eu mergulhava freneticamente nas
atividades sem me questionar e entre outros em que me via irritada pelo
cansaço. Nessas ocasiões, uma espécie de duplo de mim mesma me
atormentava de forma aflitiva com questionamentos constantes: para
que tudo isso? Para que este desgaste? Em que vai levar este esforço?
Achas mesmo que esta pesquisa vai trazer alguma contribuição para a
vida dessas mulheres? Para que exigir do teu corpo aquilo para o qual só
o corpo delas está preparado?

Sobre o corpo da antropóloga


Reportando-me à pergunta de Lima (2005): o que é um corpo?
Pondero que, mais do que uma pergunta, é um desafio no sentido de
Mulheres e o mar 44

que, para além de pensar sobre o corpo do outro, é no nosso próprio


que o exercício da antropologia deixa suas marcas, seja no adestramento
da imobilidade para as muitas horas de escrita solitária e, portanto, o
estar sentado, seja, no meu caso, para a mobilidade e abertura para o
imprevisto em campo. Por muitas vezes, nos deparamos com provações
corporais que dizem respeito a comer o que não se quer ou jamais se
comeria, a ocupar espaços incomuns ou a acompanhar rituais, festas,
formas de trabalhos e momentos que não seriam acompanhados se ali
não se estivesse com o estatuto de pesquisador ou pesquisadora.
Ouvi de diferentes pescadoras: “é melhor sair na embarcação
com chinelo de dedo, pois dá mais firmeza”. Para outras, “o melhor é usar
botas de borracha”. “Roupa nova, nem pensar. Tem que ser roupa velha,
usada.” “E o cabelo deve ser preso” visando à segurança do cabelo e da
própria cabeça.26 Fiz uso de botas por questões de segurança, sendo
a bota dois números maior do que o pé, seguindo orientação das
pescadoras, pois em qualquer imprevisto se tornaria mais fácil tirá-
las. “Tens macacão?” Tal pergunta referia-se ao que eu deveria usar
quando em campo junto com as pescadoras que embarcam: macacão
de oleado,27 gorro, casaco, itens que constituem exemplos visíveis das
exigências e da indumentária necessária a uma profissão tão específica
como a da pesca, moldadora de corpos que ficam escondidos atrás
de camadas de tecido ou do plástico grosso dos macacões. Essa
indumentária é considerada pelas pescadoras com as quais convivi
como masculina; como roupa de homem.
Se, como diz Csordas (1999), o corpo é um campo fértil para a
antropologia, também o é para pensar o ofício e o fazer-se antropólogo,
antropóloga. Não são só os corpos dos outros que se constroem. Nossos
corpos também passam por processos e rituais de passagem com o
intuito de nos fazermos e sermos feitos pela antropologia. Vi meu

26
Ocorrem muitos acidentes em embarcações cujo eixo fica exposto; por isso o cabelo
recebe atenção especial para evitar qualquer imprevisto, devendo estar totalmente preso.
Muitas usam boné ou gorro. Uma das pescadoras me contou sobre um episódio que
viveu há alguns anos, quando o cabelo foi puxado pelo eixo quando ela se abaixou na
embarcação. Ficou totalmente careca, e esse fato desencadeou um quadro de depressão.
Segundo ela, por causa da vaidade: “não é porque é pescadora que não quer se sentir
bonita. Quando me vi careca, não aguentei, tive depressão”.
Macacão feito de uma espécie de plástico grosso, cujo nome advém de épocas
27

passadas em que os pescadores literalmente passavam óleo na roupa para que tivesse
uma maior durabilidade, segundo depoimento oral. As pescadoras que trabalham nas
embarcações menores não costumam usá-lo.
Introdução 45

corpo sendo moldado ao campo. Deixei de fazer as unhas para que


ficassem mais grossas e, portanto, mais protegidas do vento, do salitre,
do sol ou de possíveis cortes; passei a usar o cabelo sempre bem preso
para evitar acidentes que pudessem ocorrer com os cabelos soltos.
O traje se compunha de calça comprida justa, porém não colada ao
corpo para não atrapalhar os movimentos, sobreposta pelo macacão
de oleado quando nos embarques mais longínquos, camisetas, umas
sobres às outras, casaco quente e impermeável e gorro para as manhãs
frias. A obediência à indumentária exigida foi cumprida, portanto,
e imitava as pescadoras. Essa composição dava, de certa maneira,
uma forma disforme ao meu próprio corpo. Ou seja, também eu fui
me construindo e deixando meu corpo ser construído pela pesca no
decorrer da pesquisa. Poderíamos dizer que também o meu se tornou
um corpo, de certa forma, masculino.
A indumentária necessária a um campo como o mar e, portanto,
o da pesca, é só um exemplo de sua especificidade. Porém, as exigências
são mais profundas, passando pelo adestramento do próprio corpo para
as horas no mar, resistindo ao frio, ao sol e à possibilidade de enjoo. Não
enjoar é fundamental na pesca, pois é impossível fazer qualquer coisa
quando um acesso de enjoo toma conta do corpo, conforme já expus.
No entanto, o mais difícil para mim foi o controle da própria
bexiga. Imaginar que eu seria capaz de urinar sentada na borda das
embarcações era um exercício por demais fantasioso. Eu nunca teria
destreza suficiente para me concentrar no ato de urinar aliado ao medo
de uma iminente queda na água. Jamais. Então, só me sobrou, caso se
fizesse necessário, a alternativa usada pelas mulheres quando há muitas
embarcações próximas: urinar na latinha.28 Diminuí drasticamente a
ingestão de água objetivando evitar sentir vontade de urinar quando
estivesse nas embarcações.
Quem inventou o macacão de embarque nunca imaginou que
haveria mulheres na pesca. Primeiro, porque é uma dificuldade tirar só
um lado do macacão; segundo, porque é necessário, além de se livrar
de um lado do macacão, abaixar as calças e puxar a calcinha; terceiro,
a embarcação não para para a pessoa urinar. É urinar e acompanhar o
balanço do mar. O joelho treme, a canela dói. E o pior: a urina não sai.

28
Já no final do trabalho de campo, aprendi com uma das pescadoras uma de suas
invenções: uma garrafa PET transformada em um seguro urinol que se encaixa
perfeitamente entre as pernas, evitando que se molhe muito a calcinha ao urinar em
alto-mar.
Mulheres e o mar 46

Para se treinar um corpo é preciso muito mais tempo do que o tempo de


um campo. “São anos assim”, me disse rindo uma das pescadoras.
Assim sendo, estabeleci o consumo de água muito espartano
quando no mar, e abundante quando em terra; muito biscoito salgado,
pão e pirão de água escaldada com peixe de diversas formas. As
mudanças no corpo foram se mostrando: aumento de peso devido ao
consumo de carboidrato em excesso. Muita farinha de mandioca, além
do que usam muita fritura, praticamente todos os dias. A cor da pele se
alterou por causa da exposição contínua ao sol à medida que o campo
seguia, mas não tinha me dado conta disso até que uma das pescadoras
comentou rindo: “Chegasse aqui branquinha e já estás mais escura. Olha
o que a pesca faz com o corpo da gente!”.

Narrar trajetórias; ouvir narrativas


Em relação ao uso de gravador, optei por não fazê-lo, com
exceção do contato inicial com as primeiras pescadoras. Essa opção se
deu, não só porque os locais em que as mulheres trabalhavam ou se
encontravam, geralmente eram ruidosos, movimentados e cheios de
sons de embarcações, conversas, motores, mas principalmente porque
optei, por um lado, em escutar atentamente o que as pescadoras me
narravam e, por outro, em viver a experiência que me estava sendo
permitida. Eu entendia que ao me preocupar em gravar, meus sentidos
se dispersariam da experiência vivida. Portanto, reservei as noites para
os registros em meu diário de campo. Quis experimentar o que minha
memória registrava do que me era dito e repeti um exercício que tinha
realizado no mestrado (e que, naquela ocasião, chamei “eu entendi o
que você disse?”), quando encontrei um campo altamente tenso.
“Eu entendi o que você disse?” consta de, após escrever ou digitar
tudo o que minha memória acionava como lembrança do dito pelas
mulheres, voltar a elas em outra ocasião e ler lentamente o que havia
registrado, solicitando que observassem se estava de acordo com o que
tinham me dito e se gostariam de acrescentar ou suprimir algo. Foi um
exercício extremamente interessante porque elas ficavam muito atentas e
todas, sem exceção, se emocionavam ao ouvir a própria narrativa. Ouvir
a narrativa que tinha me contado sobre sua própria trajetória de vida se
mostrou um exercício de escuta atento por parte das pescadoras e ao
mesmo tempo de uma espécie de estranhamento do que ouviam sobre o
que tinham me dito dias atrás. Elas próprias demonstravam admiração,
Introdução 47

interesse e uma atenção concentrada na narrativa que ouviam e que lhes


confirmava a própria história de vida.29

A respeito dos capítulos do livro


Este livro está dividido em cinco capítulos. No primeiro, “Brasil
de águas: antropologia e pescas”, longe de esgotar uma discussão que
abranja o resultado das pesquisas na área da pesca, o propósito foi o
de apresentar uma reflexão a partir de alguns estudos antropológicos
sobre pesca no Brasil, aí incluída, em Santa Catarina, em especial.
Apesar da riquíssima gama de temas abordados, dei-me conta de que
a grande maioria dos trabalhos tem em comum a ênfase dada à pesca
como um espaço estritamente masculino de onde emergem, como foco
de discussões, observações e interlocução dos homens, o que me trouxe
subsídios para pensar sobre a invisibilidade das mulheres nos estudos
sobre a pesca brasileira.
O segundo capítulo, “Mulheres pescadoras: narrativas autobio-
gráficas”, traz narrativas das 22 pescadoras com as quais convivi no
decorrer do trabalho de campo. São elas próprias que se apresentam com
o que decidiram contar sobre si mesmas em relação a suas experiências
como mulheres que embarcaram ou embarcam na pesca artesanal
catarinense. Os trechos de narrativas apresentados naquele capítulo,
bem como outros que surgem no decorrer do texto, constituem os fios,
a linha e a agulha a partir dos quais defini os nós que compõem este
livro. As narrativas dizem respeito às suas trajetórias de vida, que são
pautadas por dificuldades, alegrias, aprendizados e são relativas a como
se construíram na pesca e como constroem a pesca; como se inventam,
reinventam, são inventadas e reinventadas na/pela pesca.
O terceiro capítulo, “O mundo da pesca das mulheres”, aborda
questões ligadas à composição do mundo da pesca no que concerne às
muitas agências de elementos que estão implicados e que se implicam
diretamente neste universo: ventos, marés, mar, luas, colocando
constantemente humanos e não humanos um no lugar do outro. Aborda
também o significado do mar para as mulheres pescadoras para além
de ser um lugar de onde tiram alimento e renda em que linha de fuga e

29
Todas também me pediram cópia impressa do que eu havia lido, e seis delas sugeriram
que eu fizesse um livro com as narrativas e entregasse uma cópia para cada pescadora.
Enquanto não escrevia o livro, fiz uma compilação na íntegra das narrativas, encadernei
e lhes entreguei.
Mulheres e o mar 48

terapia acontecem. Aparecem ainda como locais centrais em suas vidas


os ranchos de pesca e as cozinhas onde o elemento fogo é presença certa
para que os processos de transformação de cru em cozido sejam possíveis.
O quarto capítulo, “O mundo das mulheres na pesca: apren-
dizados e corpos”, é dedicado a discorrer, em primeiro lugar, sobre os
processos de aprendizados das mulheres na pesca em que emergem
questões ligadas ao parentesco, que mostra com quem elas aprenderam
a ser pescadoras. Na sequência, emergem os corpos, que falam sobre
como a pesca vai deixando suas marcas à medida que é vivenciada pelas
pescadoras. Nessa junção, podemos dizer que, ao serem experienciados
na prática cotidiana, os meandros da aprendizagem passam por outro
processo que diz respeito à construção dos corpos dessas mulheres. Ou
seja, o aprendizado da/na/para a pesca – com quem se aprende – está
intimamente ligado com as relações de parentesco e de gênero. Mas o
lócus – onde o aprendizado se mostra – está no corpo e na corporalidade
que vão sendo construídos à medida que a pescadora se constrói.
O quinto capítulo, “A relação com o Estado: entre saberes,
reconhecimento e (in) visibilidade, um sujeito que não se enquadra?”
destina-se, inicialmente, a discutir questões que dizem respeito à
relação entre diferentes saberes, que trazem como mote da discussão
o extensionismo de Santa Catarina, exercido pela Empresa de pesquisa
Agropecuária e Extensão Rural de Santa Catarina (Epagri), com o
propósito de problematizar a relação entre saber técnico e saber local,
perscrutando como a circularidade desses diferentes saberes-fazeres
se atrita e se acomoda no cotidiano das pescadoras. Por outro lado,
detenho-me sobre questões que dizem respeito às (in)visibilidades de
mulheres na pesca. Para tanto, interessou-me discutir como elas vêm
se construindo como sujeitos – pescadoras – abordando alguns dados
sobre o processo e as dificuldades de aposentadoria, o critério definido
pelo Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS), no qual se inserem
pescadores, além da questão central do anonimato e da invisibilidade da
mulher na pesca. Ou seja, como, pelos constantes (a)sujeitamentos, elas
vêm se construindo como sujeitos.
Desejo que a leitura não seja enfadonha me referindo ao termo
pescador(a). Assim, embora a gramática culta da língua portuguesa
preconize o contrário, utilizo, de forma geral, a(s) pescadora(s),
pois se trata de uma etnografia sobre mulheres. Porém, outras vezes
faço referência a pescadores, incluído-as com eles. Ou seja, incluo
pescadores e pescadoras quando abordo questões que dizem respeito à
categoria profissional de forma ampla, fazendo, de certa forma, alusão
Introdução 49

à pesca, na qual tudo é muito fluido e o trabalho é feito tanto por


homens quanto por mulheres.
Sônia Maluf, em exposição oral nas Jornadas Antropológicas do
ano de 2010, ao falar sobre escrita e campo, se referiu à emergência de
ponderarmos sobre a relação teoria/campo em que uma afeta e é afetada
pelo outro, e ambos nos afetam no decorrer do percurso investido em
construir campo e escrita e, por conseguinte, a nós próprios. Diz a autora:

[...] É do campo, e não de fora dele, que vêm os fios que vão
compor a escrita. É preciso considerar como puxar esses fios, de
um material às vezes enorme, abundante, desordenado, regis-
trado das mais diferentes formas (diário de campo, entrevistas
anotadas, entrevistas gravadas, registros visuais, sonoros,
mentais). É preciso trabalhar esse material, e a melhor maneira é
ler, ouvir, passar e repassar e aos poucos começar a fazer alguma
coisa que a gente faz quando lê um texto mais difícil: anotar,
fichar, mapear os conceitos, as expressões, cartografar esse
material, reuni-lo em mapas, constelações. Lévi-Strauss dizia
sobre a análise dos mitos que o etnógrafo deveria se impregnar
deles, lê-los tantas vezes quanto necessário para tê-los na cabeça,
conhecê-los por dentro. A gente pode transpor essa lição para
o conjunto do material etnográfico de uma pesquisa, em todos
os seus registros – passar e repassar, ler e reler, e a partir daí
construir confluências, dissonâncias e consonâncias, encontrar
sentidos nas convergências, mas também nas divergências. Esse
é o momento também de organização e classificação de todo
esse material. E num segundo momento tentar perceber como
essas confluências e dissonâncias podem nos ajudar a estabelecer
perguntas e a colocar problemas em relação [...] Escrever é
percorrer um caminho. (MALUF, 2010, exposição oral).

Fui a campo com algumas questões e retornei com o propósito


de compartilhar algumas reflexões que busquem dar conta de parte
da complexidade que consegui ver. Do mergulho nos cotidianos e das
narrativas que escutei em campo, este livro se compõe. As pescadoras
são carne e sangue (MALINOWSKI, 1976) desta escrita. São os nós e
as malhas que compõem os enredamentos que aqui apresento. Espero
ter puxado bem os fios.
Capítulo 1

BRASIL DE ÁGUAS:
ANTROPOLOGIA E PESCAS

É importante também que restem mais dados do


que os tratados por meu interesse específico, de
maneira a preservar uma sensação de trabalho
parcial. (STRATHERN, 2006, p. 23).

Neste capítulo, o propósito é apresentar uma reflexão a partir de


estudos antropológicos sobre pesca, pescadores e pescadoras no Brasil,
aí incluída Santa Catarina em especial, em que, se por um lado foi
possível constatar uma amplitude e riqueza nas temáticas abordadas,
por outro lado, a grande maioria dos trabalhos tem em comum a ênfase
dada à pesca como um espaço estritamente masculino.
Após situar o leitor em relação aos trabalhos pioneiros na área,
busco traduzir na escrita o exercício de aproximação que fui tecendo entre
alguns trabalhos, mesmo que estes estivessem distanciados no tempo e no
espaço. Temáticas abordadas nos anos 1980, por exemplo, aparecem em
pesquisas mais recentes apontando-nos que ainda rendem, tanto como
objeto de discussão acadêmica quanto como material que possa servir de
subsídio para contribuir com a formulação de políticas públicas.
A crítica que Simone Carneiro Maldonado faz em Pescadores do
mar, publicado em 1986, às tentativas burocráticas ou acadêmicas de
definir e classificar os pescadores volta a emergir com vigor no trabalho
de Wilma Leitão (1997) quando, ao procurar entender a questão das
classificações que os órgãos públicos fazem sobre os pescadores, estes
lhes respondem, resumindo o como veem quem são: é pescador mesmo.
Capítulo 1 | Brasil de águas 51

Busquei também observar aproximações e distanciamentos a


partir do que os trabalhos focam com os dados de minha pesquisa,
tentando elucidar o que há de novo e quais suas contribuições em
relação à trajetória dos estudos antropológicos sobre pesca no Brasil.

1.1 Mussolini, a precursora dos estudos de pesca


no Brasil
Nos meados de nosso século, a antropologia brasileira deixou
de ser uma ciência dedicada exclusivamente ao estudo das
sociedades consideradas “exóticas”, como as indígenas, e voltou a
sua atenção para diversos segmentos de nossa própria sociedade.
Desenvolveu-se, por exemplo, uma forte linha de pesquisa sobre
o campesinato. Um segmento, contudo, não mereceu a mesma
atenção, trata-se daquele dedicado à atividade econômica da
pesca. (LARAIA, 1994, p. 9).

O excerto acima foi retirado da apresentação que Roque de


Barros Laraia fez à obra de Simone Carneiro Maldonado, Mestres e
mares, resultado de sua tese de doutorado, quando esse autor se refere
à existência de poucos trabalhos dedicados à pesca, citando as esparsas
produções entre as décadas de 1950 e 1990. Andrea Ciacchi, em 2007, ao
se debruçar em uma pesquisa sobre a trajetória da professora Gioconda
Mussolini, da USP,30 a quem aponta como precursora dos estudos sobre
pesca no Brasil, tece uma crítica semelhante à enunciada pelo professor
Laraia, quando afirma:

O território praiano, líquido e incerto, parecia periférico demais


e nunca esteve nem estaria no centro do campo brasileiro das
ciências sociais nem no topo de sua hierarquia temática. De
fato, aliás, algumas relevantes trajetórias acadêmicas surgidas
na década de 1970 e no começo da sucessiva frequentaram, de
início, esse território, para, mais cedo ou mais tarde, voltarem-se
para âmbitos mais “fortes” ou em vias de fortalecimento. Penso

Segundo Ciacchi, Gioconda Mussolini ocupou a Cadeira de Antropologia da


30

USP, “onde lecionou de 1944 a 1969”. Embora tenha trabalhado durante todos esses
anos, a professora nunca concluiu sua tese de doutoramento, a qual Ciacchi se refere
como “inconclusa e desaparecida tese de doutorado”, afirmando que seria uma peça
importante para dar sentido à importante produção teórica de Gioconda Mussolini
(CIACCHI, 2007, p.182).
Mulheres e o mar 52

em nomes como os de Alcida Rita Ramos, Luiz Fernando Dias


Duarte, Roberto Kant de Lima e Marco Antônio Mello, no Rio
de Janeiro, Mariza Peirano, em Brasília, e Fernando Mourão, na
própria USP. (CIACCHI, 2007, p. 215).

Vinte anos se passaram desde a apresentação feita pelo professor


Laraia; e mais de sete desde a pesquisa de Andrea Ciacchi, mas considero
que as críticas de ambos ainda são extremamente pertinentes. Embora
seja possível constatar um aumento na produção de estudos desde o
Sul ao Norte do Brasil, vislumbro que há ainda um grande percurso
a ser empreendido pela antropologia brasileira no sentido de avançar
em contribuições sobre a atividade da pesca e as populações pesqueiras,
quando temos uma costa com mais de sete mil quilômetros de extensão.
Ciacchi (2007), ao apontar Gioconda Mussolini como autora das
primeiras pesquisas na referida área no Brasil, remete-se a dois trabalhos
sobre a pesca de cerco na região de Santos, litoral de São Paulo, que
foram publicados postumamente.

O foco principal do trabalho é constituído pela descrição


pormenorizada da técnica do “cerco”, que ocupa as últimas cinco
páginas do texto. Trata-se, em absoluto, da primeira descrição
dessa técnica, no Brasil, além de permitir efetivamente que o
leitor visualize com precisão os movimentos das canoas, os
lanços das redes de tresmalho, as batidas dos remos para assustar
os peixes, o recolher das redes e até a partilha do pescado.
(CIACCHI, 2007, p. 191).

Ciacchi (2007) afirma, portanto, que se trata da fundadora do que


considera que poderia ser definido como o subcampo dos estudos de
socioantropologia marítima e da pesca brasileira, dada a inexistência
de outros estudos até aquele momento. Gioconda Mussolini de fato
produziu os primeiros trabalhos na área, começando a construção
de um objeto de pesquisa pautada pelo pioneirismo e originalidade,
conforme constatou Ciacchi (2007).
A originalidade e o pioneirismo desses dois estudos revelam-se,
entre outros aspectos, pela modestíssima presença de remissões
bibliográficas: no primeiro artigo, apenas a tese inédita de Maria
Conceição Vicente de Carvalho, Santos e a geografia humana
do litoral paulista, (aliás, a primeira tese em geografia no Brasil,
orientada pelo também professor de Gioconda na FFCL, Pierre
Monbeig), e, no segundo, apenas o Anuário da pesca marítima
no estado de São Paulo (1945). Em outras palavras, trata-se de
Capítulo 1 | Brasil de águas 53

pesquisas inéditas, sobre temas novos, e cujas fontes foram quase


exclusivamente etnográficas. (CIACCHI, 2007, p. 193).

Mussolini não dispunha, naquela ocasião, de referências na área,


sendo que ao iniciar os primeiros escritos se pautou por sua experiência
etnográfica a partir da descrição de forma pioneira do cerco da pesca
da tainha, trazendo subsídios sobre este, com minúcias sobre a relação
entre os pescadores, as especificidades de apetrechos, a embarcação,
entre outros fatores, apontando questões de cunho hermenêutico,
teórico e metodológico, que viriam a contribuir com pesquisas futuras.
Os estudos selecionados por Ciacchi (2007) elucidam isso:

Muitas vezes uma canoa penetra dentro do círculo, a fazer


barulho sobre os bordos com os remos para “assustar o peixe”.
A vibração dos remos na canoa produz um barulho surdo,
característico, que fica nos ouvidos da gente, mesmo depois que
acaba a estação. (MUSSOLINI apud CIACCHI, 2007, p. 191).
Numa análise sincrônica da pesca, poderíamos aproveitar a
sugestão oferecida pelos próprios barcos em seu deslocamento
e, estrategicamente, nos situar ora num ora noutro extremo das
suas rotas. Abrangeríamos, assim, toda a trama que envolve
os grandes mercados de pesca e as pequenas comunidades
pesqueiras numa relação complementar necessária, ainda que
mutável. (MUSSOLINI apud CIACCHI, 2007, p. 211, grifo da
autora).

Ao se aprofundar no estudo da trajetória de Gioconda Mussolini,


Ciacchi (2007) tece uma crítica contundente sobre a invisibilidade
da autora na história da antropologia no Brasil. Ao mesmo tempo
identifica muitos trabalhos subsequentes que, por sua vez, tiveram
grande aceitação tanto na academia quanto fora, o que considera uma
continuidade dos trabalhos dessa pesquisadora brasileira.

Não será inócuo localizar, em muitos trabalhos e trajetórias


sucessivos à morte de Gioconda, um rastro importante da
perspectiva a que estava chegando a nossa autora. Penso, para
um programa mínimo e inicial de pesquisa, na dissertação de
mestrado em sociologia defendida por Antonio Carlos Diegues
na USP, em 1973, com a orientação de Fernando Mourão,
aluno, por sua vez, de Gioconda Mussolini. O trabalho, Pesca
e marginalização no litoral paulista, é certamente devedor dessa
renovada perspectiva epistemológica inaugurada por Gioconda.
Mulheres e o mar 54

Perspectiva que encontrará talvez a sua realização mais completa


na tese de doutorado em sociologia (1980), ainda orientada por
Mourão, do mesmo Diegues. Intitulada Pescadores, camponeses e
trabalhadores do mar, e publicada numa coleção muito difundida
em âmbito acadêmico, ela marca a retomada de uma tradição
interrompida pela morte da professora paulistana e que daria
frutos que ainda estão em plena fase de desenvolvimento nos
dias de hoje. (CIACCHI, 2007, p. 215-216).

Ciacchi (2007) não só localiza a professora Gioconda Mussolini


como a grande precursora dos estudos sobre pesca no Brasil, como
aponta no resultado dos trabalhos de Diegues (que foi orientando de
um ex-aluno de Gioconda), de certa forma, um devedor e continuador
da proposta que a então professora da USP vinha construindo e que teve
interrompida por sua morte súbita.
A pesquisa que realizei me leva a concordar com Ciacchi (2007)
no que diz respeito ao fato de que nos trabalhos de Diegues (1979, 1983,
1995, 1998, 1999) não se localize com veemência qualquer diálogo ou
alusão a Mussolini. No entanto, em um artigo de 1999, ele reconhece
sua importância fundadora quando a cita em uma publicação em que
apresenta alguns dados sobre a trajetória dos estudos sobre pesca no
Brasil dentro das Ciências Sociais.

Até a década de 1960, o número de estudos e publicações sobre


comunidades de pescadores brasileiros foi relativamente reduzido.
No entanto é preciso destacar os trabalhos dos antropólogos
Pierson e Teixeira (1947), Survey de Icapara, uma vila de pescadores
do Litoral Sul de São Paulo, e de Gioconda Mussolini, O cerco da
tainha na ilha de São Sebastião como centro de difusão no Brasil
(1946). A contribuição etnográfica de Mussolini foi importante
para o entendimento das relações entre as comunidades caiçaras
(oriundas da miscigenação entre o colonizador português, o índio
e o negro), o mar, os estuários e a Mata Atlântica. Ela analisou
também o processo de disseminação, entre os caiçaras, do
cerco flutuante, aparelho de pesca introduzido pelos migrantes
japoneses. (DIEGUES, 1999, p. 363).

O que nos fica claro na leitura do texto de Ciacchi (2007), bem


como nas referências às quais pesquisadores que se voltaram, em algum
momento, para pensar o percurso dos estudos sobre pesca no Brasil
(LARAIA, 1994; DIEGUES, 1999; MOTTA-MAUÉS, 1999), é que situam
com unanimidade o nome da professora Gioconda Mussolini como a
Capítulo 1 | Brasil de águas 55

grande pioneira de estudos que, conforme afirma Ciacchi (2007), estão


ainda em pleno desenvolvimento.
Ao mergulhar em uma pesquisa sobre a trajetória de Gioconda
Mussolini, Ciachhi (2007) fala de um subcampo da antropologia, enquanto
Diegues (1999) disserta sobre o debate concernente a ser a antropologia
marítima uma subdisciplina no interior da antropologia ou um campo
de investigação antropológica (DIEGUES, 1999, p. 369). Diegues ainda
explana sobre as muitas formas de denominações possíveis em que
encontramos variações como antropologia marítima, antropologia das
sociedades de pescadores ou haliêuticas, sociologia e antropologia das
comunidades marítimas, antropologia marítima e da pesca.
Leitão (1997) relembra que a primeira definição de camponês,
apresentada por Raymond Firth (2002), partiu de sua análise
antropológica de uma sociedade de pescadores. Assim, em termos de
discussão dentro da antropologia, a pesca poderia ser relacionada aos
estudos sobre campesinato, em especial no que diz respeito ao “pouco
controle que os camponeses têm sobre as condições que governam
suas vidas […]. As relações não são apenas relações econômicas, mas
sociais” (LEITÃO, 1997, p. 32). Firth (2002) se diferencia, portanto, de
outros autores que trabalharam com campesinato, pois ele acrescenta
aqueles que lidam com a terra, os que participam do mesmo tipo de
organização econômica simples. Leitão ainda se refere a Breton (1981),
que parte da proposta de Firth (2002), mas argumenta que é preciso
considerar que há dimensões distintas que envolvem agricultores, ou
outro grupo, pescadores.
Embora possamos considerar os estudos de campesinato como
uma referência para uma discussão inicial sobre populações pesqueiras,
até porque alguns estudos iniciais no Brasil foram realizados em
contextos que aliavam pesca e agricultura (MOTTA-MAUÉS, 1977;
BECK, 1979; DIEGUES, 1983), seria interessante ponderarmos que
talvez porque na ocasião do estudo pioneiro de Firth (2002), não tivesse
ainda uma área ou subárea voltada aos estudos sobre a pesca, ter-se-ia,
dessa maneira, pensado na aproximação ao campesinato como forma
de pensar sobre o que se denominava sociedades simples.
Entre os estudos pioneiros de Gioconda Mussolini e os dias
atuais, entendo que precisamos avançar, pois há peculiaridades que
diferenciam agriculta e pesca, sendo o primeiro grande diferencial onde
e como se trabalha. Mesmo ponderando que é extremamente válido
considerar ambas como partes das denominadas populações rurais,
especialmente no que diz respeito a fortalecer suas formas específicas
Mulheres e o mar 56

de vida e de trabalho ou a busca de direitos, é preciso considerar as


especificidades de cada qual exatamente para fortalecer a diversidade
interna ao que se define atualmente como população rural.
Maldonado (1994, p. 29) vai nesse sentido quando inicia suas
ponderações dizendo que “essa coexistência da agricultura com a pesca
foi um dos fios condutores para a conclusão pelo uso do conceito de
camponês para pensar os pescadores”. Porém, ao distinguir pesca
industrial e artesanal, a autora aponta algumas características que entendo
serem específicas e que constituem o grande diferenciador do mar em
contraponto a terra: “os imperativos do mar, a mobilidade, a indivisão,
a sazonalidade, se impõem a ambas as pescas” (MALDONADO, 1994,
p. 171). Entendo que caberia, assim, pensar em uma antropologia das
populações pesqueiras levando-se em conta as muitas possibilidades
de compor os espaços pesqueiros e as formas de pescar no território
brasileiro.

1.2 Estudos antropológicos sobre a pesca no Brasil


É interessante notar que desde as primeiras pesquisas
antropológicas sobre pesca e pescadores no Brasil,31 diferentes foram os
territórios e focos aos quais autores e autoras se dedicaram. Por exemplo,
Roberto Kant de Lima, em sua dissertação de mestrado, analisou os
princípios que organizavam a vida social de um grupo de pescadores que
se autodefinia como de Itaipu, município de Niterói, Rio de Janeiro. Em

31
O território brasileiro é banhado pelo Oceano Atlântico, desde o cabo Orange até o
arroio Chuí, numa extensão de 7.408 km, que aumenta para 9.198 km se considerarmos
as saliências e as reentrâncias do litoral, ao longo do qual se alternam praias, falésias,
dunas, mangues, recifes, baías, restingas e outras formações menores. Ao todo, 17 dos
27 estados do Brasil são banhados pelo mar. A maior parte está localizada na Bahia,
com 932 quilômetros (12,5% do total); seguida de Maranhão, 640 km; Rio de Janeiro,
636 km; Rio Grande do Sul, 622 km; São Paulo, 622 km; Amapá, 263 km; Ceará, 573 km;
Pará, 562 km; Santa Catarina, 531 km; Rio Grande do Norte, 399 km; Espírito Santo,
392 km; Alagoas, 229 km; Pernambuco, 187 km; Sergipe, 163 km; Paraíba, 117 km;
Paraná, 98 km e Piauí, a menor área, com 66 quilômetros (LITORAL..., 2013). Faço
alusão a essa dimensão para referir-me ao fato do quanto agucei minha cautela para
falar sobre a pesca no Brasil, até porque ela não existe como uma única pesca. Como já
referido na introdução deste trabalho, são muitas formas, seja quando nos referimos aos
locais onde são realizadas, como em mar, rio, mangue, lagoa; seja aludindo a territórios
como Rio Amazonas, Nordeste Brasileiro, Litoral Catarinense; seja no que diz respeito
a apetrechos, técnicas e armadilhas diversas, como rede, anzol, puçá, espinhel, cultivo
com as mãos, com flechas, com linha, entre outras possibilidades.
Capítulo 1 | Brasil de águas 57

seu trabalho, o autor observou e se deteve em investigar a importância


do “segredo relativo aos pontos de pesca” (LIMA, 1978, p. 68) como
forma de manutenção da própria sobrevivência dos pescadores.
A instigante temática do segredo foi também estudada na tese
de doutorado de Simone Maldonado, em 1991, quando ela buscou
compreender a percepção e a organização do espaço marítimo e
social entre pescadores do litoral paraibano. A partir da condição de
patrimônio comum da humanidade que caracteriza o mar, a autora
analisou os mecanismos de divisão e de apropriação que pressupunha
não só viáveis como necessários à produção pesqueira. Constatou que os
pescadores delimitavam, classificavam e dividiam o mar com finalidades
de usufruto e produção em que a unidade terra-mar que eles realizavam
nesse movimento estava expressa em três instâncias do social: o bote, a
marcação e a mestrança, práticas sociais universais à pesca marítima,
nelas se expressando noções de espaço, hierarquia e familiaridade.
Ao escolher o bote, a marcação e a mestrança como foco central
de seu estudo, Maldonado (1991) conseguiu reunir em seu trabalho
questões extremamente pertinentes, dado que o bote imprime um dos
equipamentos indispensáveis à realização da pesca e o que caracteriza
cada tipo de pescaria; a marcação, que se imbui do segredo, define
os pontos que cada pescador reconhece e tem reconhecido como
seu. Parece-me que temos aí elementos que desmitificam a visão
predominante do senso comum de que o mar não teria regras nem
delimitação territorial. A mestrança aponta para o saber de quem detém
o conhecimento adquirido e vivido no mar e por ele.
Um dos elementos abordados por Maldonado (1991), a marcação,
emergiu como central em meu campo, não só no que diz respeito ao fato
de que percebi sua importância na demarcação, no reconhecimento e na
localização dos pontos de pesca de cada pescadora, como também como
indicativo sinalizador do ponto de outros pescadores, cuja indicação
visual se dava pelas bandeiras. Ou seja, como mostra irrefutável de
organização espacial e controle territorial de cada indivíduo e do grupo
que ocupa determinada área de pesca.
Muito próximo à temática do segredo, está a da sorte e a da
imprevisibilidade. Glaucia Oliveira da Silva, em 1988, trabalhou com
pequenos pescadores, observando que eles não viviam só da pesca a não
ser em determinados períodos; ou seja, já se observava a multiatividade
(SILVA, 1988, p. 2). Seu objetivo era observar o que denominou de
especificidade da inserção social dos pescadores como “produtores” e da
sua relação com a “natureza”. Ou seja, “certa natureza por eles elaborada,
Mulheres e o mar 58

onde se articulam o mar, nuvens, ventos, fases da lua, chuvas, tempo


(condições meteorológicas), mato, plantas, bichos, animais, pedras e
também a própria noção de Deus” (SILVA, 1988, p. 16).
Segundo a autora, os pescadores compreendiam a natureza em
dois grandes mundos: o do mar e o da terra, em que a diferenciação
entre esses universos constituía uma importante base de classificação,
em que animais e plantas eram pensados e ordenados por pertencerem
a um ou outro domínio. Saber pescar era visto pelos pescadores como
imprescindível para sobreviver, mas não o suficiente, porque, além
disso, a natureza precisava ser dadivosa (SILVA, 1988, p. 14). Quanto
melhor fosse o pescador, mais independente seria das dádivas naturais.
Porém, eles não acreditavam na independência total. Era a partir dessa
lógica que explicavam por que a pescaria de um pescador estava dando
e a de outro, experiente, não. Considerava-se, assim, essa dimensão
insondável da natureza como uma face da imprevisibilidade da pesca
(SILVA, 1988, p. 14).
Embora seu objeto de estudo fosse centrado nos pescadores e na
sua relação com a natureza, a autora observou e registrou a presença
e o trabalho das mulheres na pesca: “As atividades de casa podem ser
preteridas pelas mulheres caso tenham urgência em consertar alguma
rede” (SILVA, 1988, p. 14). Isso também pode ser observado no trecho
a seguir:

O conserto dos apetrechos de pesca é feito pelo pescador ou sua


esposa – remendo das malhas e vedação de embarcações – em
conjunto. Separadamente, só o manuseio das redes pode ser
feito porque isoladamente as mulheres não mexem nas canoas,
só como ajudantes para um reparo ou no auxílio à pesca na lagoa
[...]. As mulheres não pescam no mar. A justificativa é porque
não têm coragem. (SILVA, 1988, p. 7).

É interessante notar que, embora as mulheres não se


responsabilizassem pelo manuseio da canoa e não tivessem o que
denominavam como coragem de pescar no mar, elas faziam parte das
lides da pesca. Embora denominassem o que faziam como auxílio na
atividade que era realizada na lagoa, considero que há indícios de que
a pesca tinha uma centralidade em seus cotidianos. Ao auxiliar na
pesca na lagoa, elas ou entravam ou interagiam com outros pescadores,
provavelmente seus maridos, nas embarcações. E, se fosse necessário
consertar alguma rede, por exemplo, a casa ficava em segundo plano,
tópico este que, como veremos, apareceu em meu trabalho como
Capítulo 1 | Brasil de águas 59

central: ser uma boa pescadora é inversamente proporcional a ser uma


péssima dona de casa.
Luiz Fernando Dias Duarte, em sua dissertação de mestrado, se
deteve na análise da reprodução social de trabalhadores da pesca na
localidade de Jurujuba, buscando compreender suas formas identitárias
e organizativas. O autor optou por acompanhar as traineiras, observando
que, diferentemente do modelo de companha,32 próprio da pequena
pesca, havia uma lógica de responsabilidade individual, junto com a
qual caminhavam outras opções de trabalho, “seja o continuar na pesca,
seja o sair da pesca e nortear-se para os três caminhos previsíveis do
trabalho operário, do serviço público e do trabalho por conta própria”
(DUARTE, 1978, p. 264). Para o autor, a permanência na atividade
pesqueira não significava apenas continuidade, mas também diferença,
pois se, por um lado, o pescador continuava na pesca, por outro, saía do
modelo da pequena pesca, vivida na companha, indo para as grandes
traineiras. O autor ainda afirma que trabalhar na pesca era o índice
de qualificação dos “homens”33 enquanto “eixos e representantes das
identidades familiares: os pescadores” (DUARTE, 1978, p. 1).
Também tratando de transformação, em sua tese de doutorado, de
1996, Márcia Maria Gramkow, aborda-a a partir de quatro comunidades
pesqueiras: Barreiras, Rio do Fogo, Barra e Pontal, situadas no litoral
nordestino e no Sudeste brasileiro, tanto no que se refere à ação prática
da pescaria como também ao fenômeno da mudança cultural. Focaliza
o processo de mudança/continuidade no decorrer de quarenta anos, a
partir da pesca da lagosta, partindo do pressuposto de que essa prática
pesqueira, mudança externamente induzida na década de 1950, é
nativamente orquestrada pelo habitus – transformação e reprodução –
orientador da pesca tradicional, fazendo uma reflexão sobre mudança
na continuidade e a leitura do processo de incorporação da pesca da
lagosta no universo da prática da pesca do peixe (GRAMKOW, 1996).
Ainda enfocando processos de transformação em comunidades
pesqueiras na Ilha de Santa Catarina, destaco os trabalhos de Mara
Lago, 1983, e Raquel Córdova, 1986. Córdova (1986) postulou como seu
objetivo estudar o processo migratório de pescadores da comunidade de
Ingleses, localizada na região Norte da Ilha de Santa Catarina, orientada
pelo que definiu “como um dos momentos terminais do processo de

Companha diz respeito aos camaradas que compõem os tripulantes de uma pequena
32

embarcação. Atualmente, esta expressão não é muito usada no Brasil.


Aspas no original.
33
Mulheres e o mar 60

expansão do capital até o litoral” (CÓRDOVA, 1986, p. 11). A autora


buscou compreender as motivações para a migração rumo ao centro de
Florianópolis, observando o destino de grupos que se deslocavam, bem
como as possibilidades de alcançar seus objetivos ao efetivar a saída de
seu local de origem como pescadores e passarem a atuar, principalmente,
na limpeza pública e na vigilância bancária.
Lago (1983) analisou as transformações decorrentes do forte
impacto da urbanização na comunidade de Canasvieiras, região
Norte da Ilha de Santa Catarina, que vivia da agricultura e da pesca
e que, rapidamente, se transformou em balneário. A autora se deteve
em analisar os processos de trabalho resguardando um espaço de
descrição específica sobre o trabalho feminino. Segundo a autora, sua
conclusão foi a de que os habitantes daquela comunidade deixaram de
ser camponeses devido à pressão sofrida por duas frentes de expansão
capitalista: a pesca industrial e a urbanização, sendo que a especulação
imobiliária foi um forte motivador do abandono da agricultura e da
perda do acesso ao mar pelos pescadores, resultando aos habitantes
locais o assalariamento.
Lago inicia seu texto com o pressuposto de que aquela população
seria, em primeiro lugar, camponesa e, em segundo, pescadora, para
quem “a pesca se constituía claramente no que podemos chamar de
trabalho acessório” (LAGO, 1983, p. 54), além de ser um importante
fornecedor de alimento. No entanto, no decorrer de seu trabalho, a
autora vai mostrando que a maioria dos adultos já tinha a pesca como
atividade central, e isso lhe interessava, pois queria entender como ali
se relacionavam trabalho acessório e trabalho principal. “A pesca já se
tornara o trabalho principal dos habitantes de Canasvieiras a partir das
décadas de 30 e 40” (LAGO, 1983, p. 63).
É interessante notar que Lago observou que “com base na
bibliografia utilizada, caracterizamos os habitantes de Canasvieiras, tal
como nos foram descritos nos relatos do passado, como camponeses”
(LAGO, 1983, p. 63). Porém, na linguagem nativa, seus entrevistados,
homens idosos, se referiam a seus pais como lavradores, mas se
autodenominavam como pescadores, o que nos traz um dado
interessante para pensarmos que na década de 1980 já havia mostras de
que a pesca era o trabalho central dessas populações inicialmente ditas
lavradoras (DIEGUES, 1979; LAGO, 1983).
Diegues (1979, p. 293), ao referir-se aos pescadores como “esses
poucos e últimos homens livres”, definiu como propósito de sua tese de
doutoramento em Ciências Sociais estudar as transformações ocorridas
Capítulo 1 | Brasil de águas 61

no setor pesqueiro, o qual apontava como esquecido da divisão social


da produção. Para ele, era possível confirmar na pesca “as características
da trajetória da expansão da produção capitalista em outros setores da
produção social: ela se desenvolve esgotando as duas fontes de onde
jorra a riqueza: o mar e os trabalhadores”.
Diegues (1983, p. 3), considerado um clássico da área dos estudos
sobre pesca, cita de forma muito esparsa as mulheres, sem se aprofundar
em nenhum momento sobre o trabalho delas. O seu propósito foi o
de apresentar um trabalho voltado ao estudo das “transformações
ocorridas num setor esquecido da divisão social da produção: a pesca
enquanto captura de recursos marinhos”. A sua análise abrange dados de
observações feitas em vários países, como Holanda, Inglaterra; algumas
regiões da África, China, Bali e Indonésia, porém com ênfase no litoral
paulista, Brasil, onde analisa a transformação do pequeno pescador no
que denomina de “proletário do mar” (DIEGUES, 1983, p. 3).
Em outra obra, Diegues (1998, p. 58), ao se deter em uma discussão
sobre maritimidade, insularidade e ilheidade, cujos contextos centrais
são o litoral de São Paulo e o do Rio de Janeiro, se refere à ausência das
mulheres nos barcos, sobre o que eu gostaria de ponderar que há muitos
contextos de pescas. Há locais em que elas não entram e estão ausentes
dos trabalhos, como ranchos e embarcações. No entanto, há situações
em que elas atuam de forma pontual, e outras ainda em que sua atuação
é intensa e sua presença constante, como nos exemplos que observei ao
percorrer o litoral de Santa Catarina.
Em relação ao trabalho da mulher, Lago (1983) afirma que eram
as lides da casa, do quintal, bem como a feitura da renda de bilro. No
entanto, a autora nos dá pistas de que as atividades da mulher não se
restringiam à casa, quando constatamos afirmações como: “o camponês
de Canasvieiras não podia prescindir do auxílio da mulher no trabalho
da roça” (LAGO, 1983, p. 69), ou quando se refere a mulheres que
perderam seus maridos, ou que viviam sozinhas: “além de realizarem
as tarefas domésticas, trabalhavam na roça como qualquer homem”
(LAGO, 1983, p. 77), fato este que a autora observou não ser raro quando
as mulheres assumiam as atividades enquanto os homens rumavam para
embarcar no Rio Grande do Sul. Ao concluir sobre o trabalho feminino,
Lago é enfática ao afirmar a importância e indispensabilidade deste para
a sobrevivência e a reprodução familiar (LAGO, 1983, p. 81).
Maluf (1989, 1993) também observou na comunidade por ela
estudada a vivência do que denominou de um acelerado processo de
mudança em que foi possível constatar um deslocamento da atividade
Mulheres e o mar 62

econômica central da pesca e agricultura de subsistência para o


trabalho assalariado, aliado ao contato intensivo com uma “cultura
urbana” a partir da pavimentação das estradas e da difusão dos meios
de comunicação. No entanto, Maluf chama atenção para um detalhe
central que diz respeito às formas como as pequenas comunidades se
reinventam continuamente: “no lugar de simplesmente desaparecerem
nesse processo de urbanização, o que se pode observar até agora é que
características importantes da cultura local são reelaboradas e têm seus
significados redefinidos” (MALUF, 1993, p. 15).
Essa autora também constatou que, no grupo familiar, a
autoridade pública exercida era a masculina, na figura reconhecida por
todos como o “pai”, sendo ele o que respondia pela família e tomava
as decisões vistas como mais importantes (MALUF, 1993, p. 32). No
entanto, ao contrapor o que era enunciado como modelo formal com o
que era vivido no cotidiano, as práticas e as narrativas sobre mulheres
bruxas, Maluf percebeu que as mulheres exerciam poder no que se
referia à continuidade da família.

Os discursos de ambos, homem e mulher, reconhecem que


a autoridade e a chefia legítima no interior da família são a
masculina. Mas esse é um modelo público, uma das faces de
uma situação que é bastante mais complexa no que se refere ao
exercício da autoridade e do poder [...] existe um desnível entre
de um lado aquilo que, no discurso de homens e mulheres,
se constitui um “modelo ideal” sobre os papéis masculino e
feminino no interior da família, e de outro as suas práticas e
representações. (MALUF, 1993, p. 33-34).

É interessante, a partir do que afirma Maluf (1993) sobre esse


jogo autoridade/poder que perpassa o grupo familiar, trazermos suas
ponderações para o próprio cotidiano da pesca. Quando afirma que a
pesca é uma atividade essencialmente masculina, a autora nos dá pistas
de que o jogo dialético entre autoridade masculina e poder feminino
no grupo familiar seria um indicativo de que também em espaços, em
princípio, pensados como essencialmente, mas não exclusivamente dos
homens, as mulheres teriam contribuição.
Nesse aspecto, embora ela se refira à proibição e participação
da mulher, “não só nas tarefas que a envolvem como nos espaços a ela
relacionados: os ranchos de barcos, as embarcações, o mar” (MALUF,
1993, p. 34), a seguir a própria autora nos traz dados que contribuem para
pensarmos sobre a presença das mulheres em atividades da pesca, mesmo
Capítulo 1 | Brasil de águas 63

que não seja como embarcada: “as únicas atividades pesqueiras realizadas
também por mulheres são a pesca do camarão e do siri feitas na beira da
lagoa” (MALUF, 1993, p. 36). E embora ela tenha observado que o produto
da pesca das mulheres era utilizado na alimentação familiar, suponho que
em alguns momentos de dificuldade econômica era também vendido
visando à aquisição de outros para o consumo familiar.
Também, em 1975, Maria das Graças Tavares realizou sua
dissertação de mestrado sobre a composição e organização de grupos
que exploravam o mar de Icaraí, no litoral cearense, em que pressupunha,
inicialmente, que os grupos de trabalho seriam influenciados
especialmente pelo parentesco, pela vizinhança, pelo compadrio, em
vez de outros fatores como produtividade, lucro e eficiência. No entanto,
o trabalho de campo lhe mostrou que, muito mais do que os fatores
inicialmente pensados, era a maximização da produção o motivador
central, sendo os demais fatores subordinados a este. Segundo a autora,
o resultado de sua pesquisa contribuiu com uma reavaliação do papel
do parentesco na composição de tripulações e grupos de trabalho em
torno da pesca. A afirmação da autora se faz interessante no sentido
de ponderarmos que são muitos os contextos pesqueiros e, portanto,
muitas as formas como a atividade da pesca se organiza. Nesse sentido,
encontrei como motivador central de agrupamentos em torno da pesca
a junção de uma tríade composta por parentesco, amizade e disposição
para o trabalho, o que será abordado adiante.
Juliana Pereira Lima Caruso, em 2011, ao realizar sua pesquisa
na Costa da Lagoa, Ilha de Santa Catarina, sobre a fuga matrimonial,
constatou uma preferência pela união entre pessoas do mesmo lugar,
e observou um destaque para cônjuges ligados por algum laço de
parentesco, como os primos. Ao fazer um paralelo com a renda de
bilro, “onde as flores da renda são ligadas umas às outras por inúmeros
fios”, a autora conclui que a fuga é como uma pétala da renda, “que
depende de inúmeros fios para existir” (CARUSO, 2011, p. 120).
A fuga, dessa forma,

depende dos arranjos de parentesco que vão além do parentesco


dado por consanguinidade e pela aliança. Ser parente na Costa
da Lagoa é bastante relativo. O parentesco é construído e
desconstruído a cada geração através de princípios que perpassam
as escolhas de residência, comensalidade e convivialidade.
(CARUSO, 2011, p. 120).
Mulheres e o mar 64

Embora todos, de alguma forma, sejam parentes, “existem


sensíveis camadas de parentesco que se encontram articuladas
diretamente ao cotidiano dos seus moradores” (CARUSO, 2011, p. 120).
Por sua vez, Peirano (1975), em sua dissertação de mestrado,
realizou um estudo voltado para a alimentação, em especial sobre os
comportamentos simbólicos relativos à pesca, centrando-se no que
se refere à ideologia alimentar, ao sistema de classificação sobre as
proibições concernentes aos cuidados no consumo de algumas espécies
de peixes, seus efeitos no comportamento das pessoas, formas de
prevenção ou questões relativas ao agravamento de males e doenças
no caso, por exemplo, de peixes que eram considerados perigosos e
inadequados para o consumo em algumas situações. A autora observou
que os produtos assim considerados eram classificados como uma
alimentação reimosa.
Na mesma linha de estudos sobre alimentação, porém com
outro enfoque, Maldonado (1979) analisou os hábitos alimentares da
comunidade de Ponta do Meio, no litoral paraibano, onde percebeu
que para os pescadores considerados autônomos (assim denominados
em contraposição aos assalariados que trabalhavam em empresa
de pescado), ter disponibilidade de peixe para o consumo era uma
forma de confirmação da própria autonomia. Segundo a autora, os
pescadores classificavam o alimento em três categorias: salgado;
mistura e verdura. O salgado se subdividia em salgado de água e
salgado de terra. O salgado de água compreendia o peixe e a lagosta,
os primeiros na ordem de preferência alimentar em que o peixe se
sobressaía. Salgado de terra dizia respeito à carne de boi e de frango.
A mistura, expressão que também ouvi muito em campo, referia-se
ao que acompanha o peixe, aí incluindo, por exemplo, feijão, pirão de
farinha de mandioca, macarrão e arroz.
Encontrei em campo, em relação à alimentação, a centralidade do
peixe e da farinha de mandioca para fazer o pirão,34 acompanhamento
considerado essencial, sendo os melhores peixes guardados para a família
em épocas consideradas boas, ou vendidos em épocas consideras mais
difíceis, e o fato de poder guardar o melhor peixe para a família e para
oferecer às visitas era motivo de orgulho. Porém, também era visto como
demonstração de que a família estava bem financeiramente o fato de

34
Encontrei duas variedades do pirão de farinha de mandioca: escaldado, feito com
água fervendo. Ou feito com água fria que, em algumas localidades era denominado de
jacuva, como em Florianópolis; e em outras, de xiputa, como em São Francisco do Sul.
Capítulo 1 | Brasil de águas 65

poder oferecer outros tipos de alimentos, como a carne de gado ou de


frango. Alimentar-se somente de peixe dias seguidos era indicativo de
que a família estava passando por uma fase difícil e não poderia escolher
o que comer, recorrendo ao que pescava diariamente. Um terceiro item
considerado central em algumas das localidades percorridas é a cachaça,
que recebe uma dupla classificação: bebida e remédio para tirar a friagem.
Outra vertente na abordagem sobre as questões de alimentação,
saúde e doença foi realizada por Raymundo Heraldo Maués e Maria
Angelica Motta-Maués, cujo trabalho de campo ocorreu em Itapuá, no
Pará, os quais concluíram o mestrado no ano de 1977, vindo o trabalho de
Raymundo a ser publicado posteriormente como livro: A ilha encantada:
medicina e xamanismo numa comunidade de pescadores. O objetivo do
trabalho de Raymundo foi o de fazer uma análise dos conceitos e das
práticas sociais ligados às doenças reconhecidas pela população de Itapuá
que, segundo o autor, classificavam-nas em naturais e não naturais. Para
tanto, ele procurou estudar uma sequência completa, especificamente
ligada ao caso das doenças não naturais, contemplando suas causas
e agentes causais, passando às questões ligadas à sua prevenção e
classificação, bem como ao processo que compõe o diagnóstico e
respectivo tratamento. O autor apresenta a análise da classificação de
cinco domínios inter-relacionados, em que três deles, espíritos, seres
humanos e astros, contêm as categorias de agentes causais de doenças não
naturais. Os outros dois domínios analisados são as próprias doenças não
naturais e os especialistas no seu tratamento.
O trabalho de Maluf (1993) discorre sobre a questão saúde/
doença, quando a autora se debruçou para analisar as narrativas sobre
bruxas e bruxarias na Lagoa da Conceição, como um texto que lhe
viabilizou “compreender mais sobre a constituição, na comunidade,
de uma cultura de gênero, o campo simbólico em que as diferenças
entre o ‘feminino’ e o ‘masculino’ são construídas e representadas entre
os lagoenses” (MALUF, 1993, p. 13). Ao discorrer sobre narrativas
de bruxas, Maluf trabalhou questões ligadas à posição da mulher no
contexto por ela estudado em que, na tensão saúde/doença, mau-olhado,
quebranto, adoecimento e cura, o poder feminino, ora como bruxa, ora
como benzedeira, se mostrava central.
Outra temática emerge na tese intitulada O arpão e o anzol:
técnica e pessoa no estuário do Amazonas (Vila Sucuriju, Amapá), do
ano de 2007, de Carlos Emanuel Sautchuk. O autor discorre sobre a
pesca como modo de construção da pessoa, estabelecendo uma reflexão
sobre a relação entre o técnico e o humano. Sua interessante etnografia
Mulheres e o mar 66

enfoca dois grupos de pescadores que habitavam a Vila Sucuriju: os


laguistas e os pescadores de fora. Os laguistas dedicavam-se à pesca do
pirarucu em lagos onde o acoplamento do arpão e da canoa ao pescador
e a relação intersubjetiva com os animais se mostraram primordiais.
Segundo o autor, eles se constituíam através de um longo processo de
protetização do corpo, considerada condição para a interação pessoa a
pessoa com o peixe.
Já os pescadores de fora atuavam na região costeira, onde
tripulavam barcos a motor e agiam em coordenação com a maré e o
espinhel (linha com centenas de anzóis) para capturar a gurijuba. Seu
prestígio estava ligado à demonstração de coragem para enfrentar os
perigosos movimentos do anzol e à vontade para suportar a árdua
integração na dinâmica a bordo. Estabelecendo relações distintas entre
pescadores, artefatos e ambiente, as pescas lacustre e costeira emergem
como associadas a modalidades próprias de subjetivação, incluindo
corpos, habilidades e modos de socialidade específicos (formas de
reciprocidade, socialização das crianças, participação nas festividades,
organização do espaço doméstico etc.). O referido estudo examinou em
detalhe o fato de que, para além da eficiência produtiva e do domínio
de um saber-fazer, o engajamento em atividades técnicas implica
configurações particulares da pessoa.

1.3 Homens, mulheres, mar e terra


Em boa parte dos trabalhos sobre pesca, as mulheres, quando
citadas, o são de forma muito sutil, e na maioria elas não aparecem.
Dois exemplos próximos e recentes são os de Alejandro Labale e Renata
Britto, que trabalharam a questão da maricultura, atividade de cultivo
marinho na qual estão envolvidos muitos pescadores oriundos da pesca
artesanal. Embora fazendo uma pesquisa sobre a maricultura em Penha,
litoral norte de Santa Catarina, um dos lugares mais expressivos na
produção de moluscos no estado e no Brasil, Labale (2005) se fixa em
uma discussão de fundo marxista, por um lado e, por outro, em uma
escrita de inspiração latouriana, colocando como elemento central de
suas ponderações o mexilhão Perna perna, conhecido popularmente
em Santa Catarina como marisco. Embora tendo como fulcro central
de sua tese o contexto da maricultura, o autor não traz ao seu texto as
mulheres, sujeitos centrais nos processos de limpeza, desconchamento
e beneficiamento do mexilhão.
Capítulo 1 | Brasil de águas 67

Britto (2012), embora traga como central a figura de dona


Eva como articuladora da Associação de Maricultores e Pescadores
Profissionais do Sul da Ilha, no Ribeirão da Ilha, por ela analisada, não
se detém em discorrer sobre o trabalho das mulheres nos processos
que compõem o cultivo marinho. Por outro lado, em Gerber (1997),
embora eu tenha pesquisado em uma comunidade onde as mulheres
trabalhassem diretamente nos processos de descasque de camarão ou
filetagem de peixe, em que tinham e têm um lugar central, eu não me
detive na ocasião em discutir com mais profundidade os meandros de
seus cotidianos na pesca. Ou seja, trabalhei com elas como mulheres
de pescadores, em que, embora apareçam como detentoras de certo ou
muito poder em suas comunidades, são ainda os homens publicamente
reconhecidos, no que Maluf (1993) tão bem distinguiu como poder
feminino, autoridade masculina.
Outras pesquisas, mesmo se detendo no trabalho do homem,
referenciaram-se em algum momento às mulheres, como Lago (1983);
Maluf (1989, 1993); Silva (1988). Há, porém, em alguns escritos a
proposição aberta em discutir questões de gênero. Edna Ferreira
Alencar apresentou uma dissertação, em 1991, sobre um estudo acerca
da construção de gênero na tradição pesqueira, na qual propôs como
objetivo a análise da construção de gênero e as formas de organização
do trabalho na pesca tradicional na comunidade de Lençóis, Maranhão.
Ao realizar seu trabalho de pesquisa, observou as práticas produtivas e
os espaços de ação dos gêneros, assim como as representações nativas
levando em consideração as especificidades históricas, culturais e as
formas de envolvimento nas quais o grupo interagia com o meio natural.
Ana Maria Beck, em seu estudo pioneiro em Santa Catarina
intitulado Lavradores e pescadores: um estudo sobre trabalho familiar e
trabalho acessório (BECK, 1979), já apontava questões que mais tarde
continuaria investigando sobre a não visibilidade do trabalho da mulher,
denominado comumente como à toa, ou um servicinho. Já em Trabalho
limpo: a renda-de-bilro e a reprodução familiar, de 1983, ela se refere
aos artesãos que, assim como as mulheres, recorriam a fontes de renda
alternativas, e afirma que “os mais jovens acabam por se integrar, de
forma definitiva, ao mercado de trabalho urbano” (BECK, 1983, p. 8), o
que trazia subsídios para estudos futuros sobre processos migratórios e
de mudança e transformação das pequenas localidades de Florianópolis.
Já naquela ocasião, a autora observou o incentivo das mães para que as
filhas buscassem outras formas de vida diferentes das que elas tinham, a
exemplo do que vi sobre as pescadoras.
Mulheres e o mar 68

No caso observado por Beck (1983) em relação à renda de bilro,


entendido pelos nativos como um trabalho menor, o incentivo era
que as filhas procurassem outros que lhes dessem um salário fixo e, ao
mesmo tempo, preservassem mais o corpo, tão exigido na confecção da
renda de bilro. Diz a autora que

[...] as possibilidades de se conseguir um trabalho fora, com


remuneração imediata, têm sido um grande atrativo para as
mulheres jovens e mesmo para as meninas. Também a escola
tem sido incentivada e as mães preferem que as filhas estudem e
se preparem para um trabalho futuro em lugar de ficar perdendo
tempo na renda. (BECK, 1983, p. 20).

Embora o trabalho que as mulheres faziam na renda fosse definido


como “um trabalhinho à toa”, Beck observou um grande desgaste físico
produzido ao longo do tempo, “resultante da postura e da iluminação
inadequada em que trabalham” (BECK, 1983, p. 30).
Maria Angelica Motta-Maués que, em 1993, publicou seu
trabalho em forma de livro, fez uma pesquisa sobre o status das mulheres
e, segundo ela, implicitamente, dos homens, em que examinou as
atribuições próprias de cada sexo com base nas diferenças entre eles
manipuladas pelo grupo do qual faziam parte. A autora deu ênfase ao
estudo do ciclo biológico da mulher tendo como pressuposto o que
denominou de estados peculiares, como menstruação, gravidez e parto,
apontados como uma das diferenças básicas entre homens e mulheres
em Itapuá, no Pará. A sua proposta visava estabelecer as conexões
existentes entre os dois sistemas presentes na atualização de concepções
e comportamentos das pessoas: o simbólico e o social. Para tanto, foram
estudadas as atividades econômicas consideradas centrais, como a pesca
e a agricultura. Segundo a autora, a pesca se ligava a um desempenho
exclusivamente masculino e a agricultura, predominante, mas não
exclusivamente feminino, o que apontaria para um status inferior das
mulheres em relação aos homens; uma espécie de marco divisório entre
o que era considerado como trabalho próprio do homem e da mulher
(MOTTA-MAUÉS, 1993, p. 19). No decorrer de seu texto emerge o
que poderíamos considerar como uma minimização da complexidade
social de Itapuá. Com seu foco voltado para a hierarquia, o status e o
poder assimétrico, a autora não traz para sua discussão a possibilidade
de uma fluidez nas interações sociais.
Dentro da classificação social de sua análise, caberia à mulher
uma atuação e circulação extremamente rígidas enquanto que ao
Capítulo 1 | Brasil de águas 69

homem estaria a liberdade e o poder total. Embora indicando que


haveria tentativas, espaços e possibilidades de inversões simbólico-
sociais dos papéis sexuais na vida daquela comunidade pesqueira,
a autora não aprofunda os indícios de resistência das mulheres nas
esferas da vida social, como alguns exemplos que ela própria cita,
como o xamanismo, o comércio e a religião. Outra questão é que,
embora afirme que as mulheres jamais participavam da atividade
pesqueira, dá exemplos de coleta de produtos no mangal e nos rios.
Ou seja, a visão que preponderava em seu trabalho àquela ocasião era
a que considerava pesca como uma atividade exclusiva dos homens
que vão ao mar, o que, reafirmo, precisamos revisar com urgência no
sentido de contribuir com a reversão desse pressuposto tão arraigado
em várias localidades e instituições públicas.
Uma terceira questão que merece cuidado emerge quando a autora
afirma que o dia do homem começava muito cedo, as duas, três horas da
manhã, quando saía para a pesca. “Para o pescador [...] é por volta das
duas, três horas da madrugada que ele sai de casa [...]” (MOTTA-MAUÉS,
1993, p. 14), o que contrapõe com o que seria o início do dia da mulher:
“Para a mulher, o trabalho diário começa um pouco mais tarde. Lá pelas
cinco horas da madrugada, quando o dia começa a clarear, ela levanta
para dar início às suas tarefas diárias” (MOTTA-MAUÉS, 1993, p. 14).
Em relação às minhas próprias observações, elas apontam para
outra direção. As mulheres com as quais convivi, e minha hipótese é
que não seja algo exclusivo de Santa Catarina, levantavam-se bem
antes dos homens para preparar a refeição que seria levada no barco e
o café matinal para os que ficavam em casa. Depois de tudo feito, é que
chamavam seu marido. Ou seja, seu dia começava muito antes, quando
preparava o início do dia dele. Maria do Rosário Leitão, no resultado
de um trabalho feito em 2012 com mulheres que atuam na pesca em
cinco estados brasileiros (Pernambuco, Santa Catarina, Pará, Ceará e
Paraíba), mostra que as pesquisadoras observaram algo semelhante ao
que eu vi: “as tarefas domésticas são realizadas, na maioria das vezes,
pelas mulheres. Algumas comentaram que o marido ajuda, mas sempre
necessita ser solicitado, incentivado. Na maioria das vezes, elas acordam
antes de todos e os chamam para o café” (LEITÃO, 2012, p. 24). No
contexto analisado por Motta-Maués, poderíamos ponderar que o fato
de as mulheres irem para a roça às cinco da manhã não necessariamente
apontava o horário em que seus dias iniciavam.
Outro aspecto pelo qual podemos pensar sobre a pesca e que quero
aqui trazer diz respeito ao que se denomina de complementaridade.
Mulheres e o mar 70

Em um estudo feito em uma comunidade pesqueira da região Norte


do Brasil, Woortmann (2007) a discute. Porém, se a relação inicial era
de complementaridade entre o trabalho dos homens no mar com o
das mulheres em terra, que se dedicavam mais à agricultura, a autora
observou a passagem a uma relação de dependência destas em relação
a eles à medida que o espaço antes utilizado pelas mulheres para os
cultivos agrícolas foi sendo invadido por turistas e veranistas. Ao
mesmo tempo, chama a atenção de que é preciso relativizar a noção de
complementaridade, tendo em vista que em um contexto pode-se assim
a ela se referir, o que não quer dizer que servirá para outros.
Há que se problematizar a noção de complementaridade que,
parece-me, se dá em termos de relações de trabalho e de vida sim, mas
onde ainda a mulher é alguém em relação ao homem. Reforço o que
Maneschy (2000, p. 86) afirma:

[...] as atividades femininas tendem a ser multidirecionadas, ao


contrário das masculinas [...]. Esse fato reforça a invisibilidade
de seu trabalho e dificulta sua identificação como trabalhadoras.
Nessa condição, ficam excluídas dos correspondentes direitos
sociais e previdenciários.

Enquanto o homem é considerado como o pescador, ela é mulher


de pescador.35
Tudo o que fazem não constituiria trabalho, mas uma
obrigação, o que traz sérias implicações sobre questões como acesso a
reconhecimento e direitos, como a aposentadoria. Ou seja, a mulher

35
Quist (2005), ao dizer que está satisfeita com o conteúdo da Declaração do ICSF
na Conferência Internacional do Trabalho, que defende a ampliação da definição
de “pescador”, pondera que seria necessário incluir aí o que se denomina de “esposa
colaboradora” (collaborating spouse). Trata-se de mulheres que trabalham no
empreendimento de pesca da família, mas não possuem outro estatuto que não seja
o de esposa de pescador, a exemplo do que vimos no Brasil. Seu trabalho é visto como
uma continuação das tarefas domésticas em que ela não tem direito de representar o
empreendimento familiar, ser eleita nos conselhos das organizações de pescadores ou
se beneficiar como profissional na previdência social. Quist esclarece que em relação
à “esposa colaboradora”, a legislação na França já considera essa condição, o que foi
instituído como fruto das demandas das esposas de pescadores na Bretanha após a
crise do setor pesqueiro naquele país. As mulheres reivindicaram o estatuto de esposa
de pescador a fim de terem direito a se aposentarem, direitos profissionais e acesso
a treinamento profissional, o que alcançaram em 18 de novembro de 1997, com a
aprovação da Lei de Orientação da Pesca. As esposas de pescadores ganharam assim o
estatuto correspondente, podendo se aposentar, representar os maridos nos conselhos
econômicos e nos programas de treinamento.
Capítulo 1 | Brasil de águas 71

não é ainda reconhecida por si só, mas tomada como uma espécie de
apêndice de um homem.36 Pensar a mulher como um sujeito – mulher/
pescadora – que trabalha em terra ou que embarca, remenda ou faz
redes, limpa, eviscera, tanto quanto ou, em alguns casos, mais do que ele,
ainda parece estar longe de ser uma conquista efetiva para as mulheres
que atuam na pesca, assim como parece estar longe reconhecer como
pesca as muitas atividades que estão além do ato de trazer seres vivos de
ambientes aquáticos (MANESCHY, 2000, p. 88).
Como já dito, minha pesquisa foi realizada no litoral de Santa
Catarina. É central, porém, frisar que não basta dizer de forma genérica
“o litoral”. É preciso relembrar aqui que, ao percorrer esse litoral, me
detive em algumas localidades, tais como Governador Celso Ramos,
São Francisco do Sul e Barra do Sul, região Norte do estado, o que
quer dizer que se tivesse realizado meu campo em outras localidades,
o resultado seria diferente, embora eu ainda estivesse falando do litoral
catarinense, além do que, outros pesquisadores poderiam fazer suas
pesquisas exatamente onde fiz e outros olhares seriam trazidos à tona
após a realização do campo.
Ao compor minha pesquisa, guiei-me por questões que diziam
respeito à existência de pescadoras embarcadas (Existiam? Quantas?
Onde? Com quem tinham aprendido a atividade?), a partir das quais
me desloquei em idas e vindas e novas idas. Como resultado, o trabalho
me trouxe como diferencial, em relação aos estudos sobre pesca aos
quais tive acesso, a existência de mulheres trabalhando embarcadas
na denominada pesca artesanal catarinense. Ou seja, na pesca simples
(DIEGUES, 1983; MALDONADO, 1994), compondo dados do que
considero ser uma contribuição interessante não só para a trajetória dos
estudos sobre pesca na antropologia brasileira, mas centralmente como
subsídios que poderão contribuir para respaldar a formulação futura de
políticas públicas voltadas às pescadoras.
A partir do momento em que meus dados de campo desconstroem
a pesca como espaço exclusivamente masculino, eles me apontam que há

36
Segundo Beauvoir (1991, p. 10), “a humanidade é masculina e o homem define
a mulher não em si, mas relativamente a ele [...] o homem é pensável sem a mulher.
Ela não, sem o homem”. Para a autora, é a mulher que se diferencia, determina-se em
relação ao homem; nunca ele em relação a ela. Ele é o absoluto; ela é o Outro. A autora
ainda afirma que “o casal é uma unidade fundamental cujas metades se acham presas
indissoluvelmente uma à outra: nenhum corte é possível na sociedade por sexos. Isso
é que caracteriza fundamentalmente a mulher: ela é o Outro dentro de uma totalidade
cujos dois termos são necessários um ao outro” (BEAUVOIR, 1991, p. 14).
Mulheres e o mar 72

aí uma diversidade que se implica e é implicada em uma “dinamicidade


e inventividade que os conceitos disponíveis” (MALUF, 2011a, p. 49)
não dão conta. Algo alusivo ao que afirma essa autora ao discorrer sobre
uma antropologia reversa em que o campo desconstrói continuamente
nossos pressupostos iniciais.

É o campo e o trabalho etnográfico que legitimam as novas


questões trazidas pela antropologia, que calibram as possíveis
transformações no interior da disciplina e que autorizam os
diálogos possíveis com conceitos e teorias advindos de outras
áreas. Assim, teoria e conhecimento antropológicos estão no
crivo de sua interminável desconstrução pelo campo, ou seja,
pelo mundo dos outros. (MALUF, 2011a, p. 43).

A partir do momento em que muitos de meus colegas


antropólogos realizaram seus trabalhos de campo em localidades
de pesca e não nos trazem qualquer alusão às mulheres, há que se
ponderar: a) não existem mulheres circulando naquele contexto; b)
existem mulheres, mas não foram vistas pelo pesquisador. Mesmo que
o objeto de estudo não seja a “mulher no mundo da pesca”, considero
salutar apresentar algumas notas que façam referência a elas. Isso não
só traria ao leitor uma visão mais ampla sobre a complexidade dos
espaços de pesca, mas também uma condição para que a antropologia
construa dados que venham a contribuir com um processo mais amplo
e, quiçá, mais rápido, de visibilização das mulheres nos diferentes
contextos em que a pesca ocorre.
Compactuando com Maluf (2011), reafirmo a prerrogativa que
diz respeito a ser o campo e o trabalho etnográfico legitimadores de
novas questões trazidas pela antropologia. Os dados que o campo me
trouxe me levam a ponderar que precisamos ampliar os olhares com os
quais olhamos para localidades ditas pesqueiras em que é central situar
o lugar da mulher que aí se insere, seja ela trabalhadora de atividades
realizadas em terra ou que atue como embarcada.
Revisitar etnografias clássicas e mais recentes sobre a pesca
a partir de um olhar permeado de um distanciamento espaço-
temporal me instigou ponderar que haveria muito a ser dito se os
espaços em que as mulheres atuavam tivessem sido um pouco mais
focados. No entanto, boa parte das etnografias não se deteve nas
mulheres. Ou, quando se deteve, colocou-as em espaços separados
como, por exemplo, pesca/homens versus agricultura/mulheres
(WOORTMANN, 2007; MOTTA-MAUÉS, 1977, 1993), trazendo-me
Capítulo 1 | Brasil de águas 73

como questão que também no espaço da antropologia ainda se vê e


se parte do pressuposto de que a pesca é predominantemente – e não
exclusivamente – um espaço masculino.
Woortmann (2007) cita os espaços da agricultura como da mulher,
e o mar como do homem. A autora de refere a não privilegiar apenas o
ponto de vista dos homens, esquecendo-se o ponto de vista das mulheres:
“privilegiar o ponto de vista masculino seria esquecer as atividades
agrícolas que constituem o domínio das mulheres” (WOORTMANN,
2007, p. 2). Se, por um lado, corroboro com a autora no sentido de não
privilegiar o ponto de vista dos homens para compreender como as
relações acontecem e as atividades são divididas, por outro, acrescentaria
que, em alguns contextos, mesmo no espaço da pesca, é preciso prestar
atenção ao ponto de vista das mulheres. Ou seja, em relação ao que
pesquisei não se trata de olhar pesca e agricultura, mas pesca e pesca.
Woortmann (2007) nos traz ainda elementos para pensarmos
que classificações ou divisões ideais de espaços propostos teoricamente,
na prática se mostram bem mais complexos quando afirma em relação
ao contexto por ela estudado que “em um plano mais geral, o mar é
percebido como domínio do homem em oposição a terra, domínio
da mulher. Não obstante, essa classificação bipolar se relativiza e se
decompõe em outras oposições de menor escala” (WOORTMANN,
2007, p. 2). Nos resultados de meu trabalho, encontrei dados que
indicam serem os espaços da pesca mais complexos e diversificados do
que apontar para uma divisão mar/homem; mulher/terra.
Ao apresentar uma análise sobre a produção acadêmica na
área da pesca, Motta-Maués (1999, p. 381) afirma que, em relação
às comunidades pesqueiras, “a questão da mulher e das relações de
gênero, com raríssimas exceções, não tem sido contemplada como
tema de estudo na produção acadêmica brasileira [...]”. Há aí, a meu
ver, pistas sobre o que a autora denominou de um estrabismo daqueles
que estudaram comunidades pesqueiras e não “viram” as mulheres
(MOTTA-MAUÉS, 1999, p. 389).37 Ou, poderíamos pensar também nos
moldes preconizados por Strathern (2006, p. 23) quando afirma que faz
“parte do exercício antropológico reconhecer quanto que a criatividade

37
A autora também chama a atenção para as dificuldades, muitas vezes, de localizar
trabalhos cujo título não deixa claro que trata sobre a temática em questão, mulheres
e pesca. A autora se refere ao catálogo da ABA, no qual sua própria dissertação de
mestrado, que aborda a relação homens e mulheres em uma comunidade pesqueira,
aparece sob a rubrica “trabalho”.
Mulheres e o mar 74

desses povos é maior do que aquilo que pode ser compreendido por
qualquer análise singular”.
Motta-Maués (1999, p. 382) fala em um jogo de invisibilidades
ao qual se refere como “dos homens pescadores, das mulheres em
comunidades de pesca”. Segundo ela, em relação aos pescadores, haveria
uma invisibilidade que se dá de fora para dentro, no nível mais formal
e público do estado, por exemplo. Quanto às mulheres, haveria uma
dupla invisibilidade,

[...] desde dentro, no nível interno da hierarquia entre os gêneros,


mas se dá também de fora para dentro, atingindo as mulheres
em consonância, ou em relação de homologia com a distinção
hierárquica interna que sobrepõe os homens às mulheres.
(MOTTA-MAUÉS, 1999, p. 382).

A autora sinaliza que, diferentemente do discurso oficial que


invisibiliza o pescador, de forma geral, quando se trata de reconhecimento
e políticas públicas, por exemplo, o discurso acadêmico seguiria um
percurso diferente no qual a visibilidade do homem pescador é a regra
(MOTTA-MAUÉS, 1999, p. 383). Nesse sentido, os pesquisadores
fixariam seu olhar e privilegiariam os homens como seus interlocutores
quando realizam pesquisas em contextos em que a pesca é a atividade
central. Ou seja, enquanto o discurso oficial não enxerga o pescador, no
meio acadêmico a visibilidade seria apenas dele.
Há, de todo modo, formas de invisibilidade quando falamos de
populações pesqueiras, e o ponto em comum é que ambos, discurso
oficial e discurso acadêmico, raramente supõem a presença de mulheres
em espaços de pesca. Mesmo as pesquisadoras que se dedicaram a
estudar, ou que em algum momento de seus trabalhos se referenciaram
às relações de gênero em comunidades pesqueiras (WOORTMANN,
2007; MOTTA-MAUÉS, 1977, 1993; GERBER, 1997, 2007; MALUF,
1989, 1993), não se detiveram em trazer em seus estudos subsídios sobre
o espaço privilegiado das mulheres, não como mulheres das comunidades
pesqueiras, ou mulheres de pescadores, mas efetivamente como pescadoras.
Michelle Rosaldo é enfática quando afirma que “a descoberta
feminista das mulheres começou a nos sensibilizar para as formas
nas quais o gênero penetra a vida e a experiência social” (ROSALDO,
1995, p. 13). Os estudos sobre mulheres em comunidades pesqueiras
aumentaram desde as primeiras pesquisas realizadas no Brasil, onde
contamos com etnografias interessantes sobre o cotidiano feminino,
como os exemplos aqui referidos em que os dados sobre os trabalhos
Capítulo 1 | Brasil de águas 75

realizados por mulheres em terra nos trazem algumas pistas sobre os


espaços delas na pesca. Porém, considero que há uma lacuna no que se
refere aos estudos que apresentam de forma mais específica, explícita e
central peculiaridades alusivas a como as mulheres vêm se constituindo
como pescadoras, entre as quais as embarcadas.
É nisso, acredito, que os resultados da pesquisa que empreendi
podem trazer sua contribuição e inovação no que diz respeito a compor
a trajetória dos estudos antropológicos sobre pesca no Brasil. Uma
contribuição para uma antropologia que, parafraseando Maluf (2001),
“não é nem a dos ameríndios, nem a dos melanésios, nem a desses
‘outros’ sujeitos clássicos dos estudos antropológicos” (MALUF, 2001,
p. 43), duplamente falando a partir do momento que não se trata de
mulheres (de pescadores) nem mulheres (das comunidades pesqueiras),
mas delas próprias, mulheres pescadoras.
Quando Maluf (1996, 2010) recorreu ao conceito ameríndio de
cosmologia e trabalhou com o que definiu como sínteses cosmológicas
singulares, tentando dar conta do que encontrou em campo, a autora
estava falando sobre o quão complexo pode ser o campo e o quanto ele
nos traz de instigador e desafiador no sentido de que nem sempre damos
conta do que vimos – ou, em relação à pesca – não vimos em campo.
Maluf (2011) nos esclarece sobre o quanto o campo nos traz de desafios
quando nos voltamos para pensar teoricamente sobre este, quando nos
conta: “o que chamei de culturas espirituais e terapêuticas alternativas
são um exemplo de plasticidade, dinamicidade e inventividade que os
conceitos disponíveis [...] não ajudavam a explicar” (MALUF, 2011, p. 49).
O campo/mar me trouxe mulheres que exercem a atividade
da pesca, tratando-se, portanto, exatamente do que estou dizendo:
pescadoras. Reside aí uma proposta de re-invenção nos estudos
sobre pesca no Brasil que diz respeito a contribuir para quebrar uma
espécie de ruído auditivo quando nos deparamos, como antropólogos,
antropólogas, com uma espécie de estranheza quanto a escutar o
que precisa ser considerado quando pensamos em pesca: pescadora.
Substantivo feminino.

1.4 Nem exóticos o suficiente, nem citadinos o


bastante
Tentei olhar os trabalhos aos quais tive acesso percorrendo-os
segundo os postulados do que Maluf (2012) denominou de uma “leitura
Mulheres e o mar 76

a contrapelo”, como explicitei no início deste capítulo, exercício este em


que foi possível encontrar indícios, pistas, evidências sobre a presença de
mulheres no que os autores se referiam como comunidades pesqueiras.
Duas questões centrais me instigavam: primeira, diferentemente do que
vi em campo, nos contextos apresentados pelos autores e autoras, as
mulheres não teriam qualquer acesso aos espaços da pesca; segunda:
de alguma forma elas teriam mas, como não compunham o objeto de
estudo, não foram vistas. Portanto, embora a presença delas não fosse
explícita em seus escritos, poderia estar de forma sutilizada, trazendo
elementos bons para pensar.
Não procurei, nessa leitura a contrapelo, encontrar uma unidade
que dissesse respeito ao trabalho das mulheres na pesca. Eu própria
não encontrei, e pressuponho que não há uma unidade (BACHELARD,
2006)38 que possa ser resumida, por exemplo, como “A pesca de Santa
Catarina”; “A pescadora de Santa Catarina”; porém, como muitos
trabalhos partem e fixam suas análises sobre os pescadores, o intuito
foi ponderar que elas – as pescadoras – podem estar em muito mais
contextos do que às vezes seria possível inicialmente supor.
É central, porém, aludir que algumas iniciativas em termos de
Brasil se reúnem em torno da temática “pesca” de forma ampla, sendo
exemplos o Museu Goeldi, em Belém do Pará, e a Universidade Federal
da Paraíba, por meio de seus departamentos de Antropologia, e o Centro
de Culturas Marítimas (Cemar), ligado à USP (DIEGUES, 1999, p. 373),
os quais vêm realizando pesquisas e produzindo material sobre questões
alusivas à pesca em diferentes contextos brasileiros, o que, com certeza,
contribuirá para que tais espaços acadêmicos se tornem referência,
participando diretamente na construção de linhas de pesquisa, área
ou subárea voltadas ao que eu definiria como uma antropologia das
populações pesqueiras.
Leitão (2012), na obra intitulada Gênero e pesca artesanal, apresenta
o resultado de um trabalho de pesquisa realizado com mulheres em
cinco estados brasileiros, conforme já referenciado, o qual traz dados
sobre as demandas de mulheres que atuam na pesca. O trabalho foi
realizado por meio de oficinas sobre quatro temáticas: trabalho, saúde,
hábitos alimentares e a relação entre instituições públicas e as pescadoras

38
Bachelard (2006) disserta sobre o fato de o espírito pré-científico desejar a unidade
como um princípio, o que considera que sempre é realizado sem esforço, pois, para tal,
basta definir uma maiúscula em que não cabem contradições e se negam as dualidades.
“O que é verdadeiro para o grande, deve ser verdadeiro para o pequeno, e vice-versa.
À mínima dualidade, desconfia-se de erro” (BACHELARD, 2006, p. 107).
Capítulo 1 | Brasil de águas 77

(LEITÃO, 2012, p. 4), em que as mulheres que participaram dos eventos


falaram sobre seus cotidianos como pescadoras, sendo possível constatar
a diversidade de pesca e de atividades que elas realizam, como a das
que trabalham na coleta de mexilhões, no cultivo marinho, na pesca
noturna de camarão, entre muitos outras.
Por sua vez, as mulheres que compuseram minha pesquisa
trabalham como pescadoras embarcadas e nos trazem como dado
central a constatação de que realizam um trabalho que é eminente, mas
não exclusivamente, feito por homens. As que conheci trabalham em
três tipos de pesca: 1) pesca de peixes diversos no mar, deslocando-
se durante o dia e ficando no mar por cerca de duas a quatro horas;
2) pesca de camarão marinho, camarão-de-sete barbas, deslocando-
se no período noturno, geralmente saindo duas, três, quatro horas da
madrugada. O retorno para terra varia muito, dependendo como tenha
sido a pescaria. Algumas me relataram que há dias em que ficam 16 horas
no mar; 3) pesca exclusiva de baiacu, que encontrei especificamente em
São Francisco de Sul, na Baía da Babitonga.
Retomando o que dizia o próprio professor Laraia (1994), a
pesca continua um segmento que “não mereceu a mesma atenção”. Se
nomes hoje reconhecidos na antropologia brasileira iniciaram seus
trabalhos sobre a pesca e os pescadores, o processo de continuidade
não ocorreu, pois migraram para outras áreas de interesse. Segundo
Motta-Maués (1999), uma hipótese seria que “essa ‘modernização’ que
atingiu as (‘suas’) ‘aldeias’ de pescadores poderia ter algo a ver com seu
‘desencantamento’ com a temática” (MOTTA-MAUÉS, 1999, p. 385).
Ou seja, os antropólogos viram seu “nativo”, de certa forma e da forma
como o viam, desaparecer.
Não tenho certeza se seria um desencantamento com o nativo
apenas, pois muitos são os imponderáveis que permeiam uma trajetória
profissional. Uma hipótese talvez seja que os pescadores não são
indígenas, temática fundadora e central na disciplina, mas também não
são totalmente urbanos para serem inseridos em um ou outro. Apesar de
o Brasil ser um país com um litoral privilegiado em termos ambiental/
social/humano, tem muito que avançar em estudos antropológicos sobre
as áreas que o compõem, aí incluídos pesca, pescadores e pescadoras.
Podemos afirmar que a antropologia, e não apenas a sociedade de forma
ampla ou os órgãos públicos, ainda não reconhece a contento a pesca, os
pescadores e as pescadoras como uma temática que se faz interessante.
Assim, os pescadores e as pescadoras, de forma mais profunda, me
parece, estão em um caminho do meio. Ou seria ainda às margens?
Capítulo 2

MULHERES PESCADORAS:
NARRATIVAS AUTOBIOGRÁFICAS

O narrador – eis um indivíduo capaz de permitir que o pavio


de sua vida se consuma inteiramente na suave chama de sua
narrativa. (BENJAMIN, 1975, p. 81).
Eu acho também que estás mostrando outra forma de olhar,
porque, lembrando aquilo que já falamos muitas vezes: o olho que
olha. E o teu olho olha de outra forma. É uma forma que busca
mostrar nós mais de dentro, mostrar aquilo que os outros olhos
não veem. Tu chegasses Rose, com essa pesquisa, algo grandioso,
com as mulheres pescadoras de Santa Catarina: quantas histórias?
Quanto sofrimento? Quanta luta? Mas também quanta coragem?
Chegasse para ouvir a minha história; para me fazer falar e, ao
mesmo tempo, me ouvir. E depois viesse para ler a história que eu
contei, e eu ouvir. E eu, te contando, ouvindo o que eu contei, eu
me emociono [lágrimas] porque não parece ser a minha história.
Parece que não sou e não fui eu. Mas é. Essa é a minha história.
(Safira, 38 anos, Barra do Sul).

O capítulo anterior teve como propósito situar o leitor sobre a


produção antropológica no Brasil a respeito da pesca, e em específico da
mulher pescadora. Diante de seu conteúdo, que faz alusão à dificuldade
em encontrar o que poderíamos chamar de uma antropologia das
mulheres na pesca, ou das mulheres pescadoras, optei por trazer a seguir
“o como” e “o que” as próprias pescadoras me falaram de si mesmas.
Embora alguns autores questionem o conceito de autobiografia porque
este traria em si a pressuposição de que, ao usá-lo, se estaria falando
efetivamente o que foi vivido, optei por empregá-lo não porque o aqui
Capítulo 2 | Mulheres pescadoras 79

narrado seja a verdade, ou que foi efetivamente o vivido, mas porque,


a partir do que foi vivido, elas selecionaram trechos de suas vidas para
apresentar como narrativas que lhes dão sentido à própria vida.
Bakhtin (2010) considera que não existe um limite acentuado e
de princípio entre a autobiografia e a biografia e entende “por biografia
ou autobiografia (descrição de uma vida) a forma transgrediente
imediata em que posso objetivar artisticamente a mim mesmo e
minha vida” (BAKHTIN, 2010, p. 139). Estou considerando narrativa
autobiográfica aquela em que a pessoa que narra, ao falar de si própria,
expõe lembranças, ponderações, motivos, questionamentos, dúvidas
que compõem um testemunho de sua trajetória, algo que vai em direção
a um “desvendamento ou revelação da pessoa, dando um sentido à
sua experiência” (MALUF, 1999, p. 76). Ao narrar sobre si, o narrador
revela-se, portanto, ao outro, permite ao ouvinte saber um pouco de
si e, à medida que narra, sua narrativa mostra-se como reveladora da
“marca do narrador” (BENJAMIN, 1975). Em relação às pescadoras que
compuseram esta pesquisa, elas teceram suas narrativas tendo como fio
condutor suas próprias vidas, o que Benjamin (1975, p. 69) denominou
como uma inclinação dos narradores que “apresentam todo o relato
como produto de experiências próprias”.
Ao me responder a uma pergunta inicial ou a uma proposição
genérica como: eu gostaria que me contasses sobre sua vida de pescadora,
imediatamente as mulheres acionavam uma memória que dizia respeito
a fragmentos que compõem o percurso que me foi contado sempre na
primeira pessoa: eu sou; meu nome é; eu comecei. Ao me narrar sobre si
próprias, as falas, os silêncios, as pausas, as introspecções, quase sempre
em meio a risos, por vezes, em meio à afluência de lágrimas, diziam
respeito a uma organização mental, afetiva, emocional, corporal, da
existência dessas mulheres.
As reminiscências de sua vida me eram narradas em dois tempos:
um, como lembrança do vivenciado; outro, como imagens do cotidiano
ainda vivido de forma intensa em que tempo passado e tempo presente
oscilavam nas idas e vindas com que construíam suas narrativas na
junção do agora e da memória. Durand (2002, p. 403) afirma que “a
memória é poder de organização de um todo a partir de um fragmento
vivido [...] a memória – como imagem – é essa magia vicariante pela
qual um fragmento existencial pode resumir e simbolizar a totalidade
do tempo reencontrado”. Tempo que diz respeito ao vivenciado desde
muito cedo nos contextos da vida na pesca em que moldaram a si
próprias e à própria pesca, compondo uma existência pautada por
Mulheres e o mar 80

trabalho e aprendizados iniciados quando a vida recém começava, aos


sete, oito, nove anos de idade.
Ao instigarem suas memórias para me falar sobre suas
trajetórias de vida na pesca, essas mulheres acionavam lembranças,
muitas vezes, dolorosas, angustiantes; algumas rememorando o
sentimento de revolta quando tiveram que se iniciar tão cedo na
vida da pesca pela imposição dos pais diante da necessidade de
sustento da família. Lembranças estas intransferíveis. “Diremos que
não pertencem aos outros, mas a nós porque somente nós podemos
reconhecê-las [...] as lembranças que nos são mais difíceis de evocar
são as que dizem respeito somente a nós” (HALBWACHS, 2006, p.
50). Algumas pescadoras falavam desse começo em que não tinham
vontade própria e foram obrigadas a começar a pescar: “Eu tinha raiva.
Não gostava, queria brincar, ficar em casa. Não sei. Não queria pescar,
mas fui obrigada porque eu era a filha mais velha e não tinha irmão
para ir junto com o pai. Foi assim que comecei na pesca. Hoje é a minha
paixão” (Iliete, 42 anos, Itapoá).
Segundo Durand (2002, p. 403), “a memória permite um
desdobramento dos instantes e um desdobramento do presente [...] é
poder de organização de um todo a partir de um fragmento vivido”. Ao
narrar uma trajetória pela qual pautou sua vida desde menina na pesca,
algumas lembranças diziam respeito à raiva aliada a entrelaçamentos
com o presente, quando a pesca se converteu em paixão, narrativas
estas que se juntavam a de outras pescadoras sobre a curiosidade inicial
e ao gosto desde o começo na profissão, a partir de quando nunca mais
pararam. Estas me narravam que preferiam, desde cedo, a vida na rua,
nos ranchos de pesca, nos barcos, em vez do trabalho presa em casa ou
indo à escola: “Eu gostava de ser solta; viver na pesca, sair no barco, estar
no mar. Não gostava dessa coisa de ficar presa em casa ou ter que ir à
escola. Eu fugia porque queria pescar. Eu amo a pesca. Desde o começo foi
assim” (Neia, 32 anos, Barra do Sul).
Mulheres entre os 22 e os 70 anos, todas me narraram que gostam,
amam, não conseguem viver sem a pesca e sem a vida de liberdade, que
tanto prezam, conforme é possível constatar nos trechos que pincei de
suas narrativas:

A pesca, o mar, é uma coisa que não tem explicação. A gente é


livre. Eu não consigo mais viver sem ser nesta vida. Eu tenho três
amores: o meu marido, os meus filhos e pescar. Não me peça para
dizer qual eu amo mais. (Alzira, 49 anos, Barra do Sul).
Capítulo 2 | Mulheres pescadoras 81

Eu amo pescar. Eu amo o mar. Amo a liberdade. Não adianta me


mandar parar. Só vou parar quando morrer. Eu me acostumei
assim desde cedo quando usava as roupas do meu pai amarradas
com uma corda na cintura. (Naca, 62 anos, Governador Celso
Ramos).
O mar é minha paixão. Um amor, minha vida. No começo, eu
odiava. Era algo obrigado. Com o tempo aprendi a amar e hoje
não sei viver sem estar no mar. É uma vida de liberdade. (Iliete,
42 anos, Itapoá).
Aprender a pescar exige amor porque não é uma vida fácil, mas
é uma vida que a gente se apaixona; de liberdade. (Mãezinha, 49
anos, São Francisco do Sul).
Quando eu não vou para o mar, sinto falta. O mar vicia. É uma
paixão. A gente se sente solta, livre. (Josiane, 26 anos, Armação
do Pântano do Sul).

As conversas sucessivas compuseram momentos nos quais me


propus ao que denominei de uma escuta disponível, algo que remete ao
que Bourdieu (2003, p. 695) definiu como “uma escuta ativa e metódica
[...]. Efetivamente, ela associa a disponibilidade total em relação à pessoa
interrogada, a submissão à singularidade de sua história particular
[...]”. Ou seja, uma escuta focada totalmente na atenção à narrativa
do outro, buscando, “além de olhar, ver; além de ouvir, escutar; além
dos fatos, sentido” (MALUF, 1999, p. 70), o que me permitiu coletar
narrativas densas em que, a cada repetição do ato de narrar, um aspecto,
às vezes novo, emergia da memória dessas pescadoras. Outras vezes,
a repetição do que parecia o mesmo, o já dito, se mostrava em um
autoestranhamento por parte da pescadora sobre a própria trajetória de
vida remetendo a momentos que denominavam de miséria, dificuldade
ou superação, mas também de coragem e determinação.
Propus e fizemos, ao final do trabalho de campo, a leitura do
que cada uma havia me narrado, em que o exercício de ouvir a própria
narrativa fazia-lhes reverberar em emoção e inesperada constatação:
ouvindo assim, não parece que é, mas esta é a minha história! Diante
do meu ato de ler as suas próprias narrativas, a postura corporal das
pescadoras era de total atenção. Sentada, olhos voltados para baixo
ou para o nada, em uma introspecção de quem não queria ver, sentir,
ouvir outra coisa que não o que estava sendo verbalizado sobre o que ela
própria tinha me narrado no decorrer do tempo. A emoção ao ouvir sua
própria narrativa selava o ato de narrar da pescadora/narradora, posto
Mulheres e o mar 82

que não é preciso só querer; é preciso saber narrar uma vida. E para
saber narrar uma vida é preciso tê-la vivido. Aí reside a proposta que
denominei como narrativa autobiográfica de pescadoras.
As narrativas não têm nem me foram apresentadas em um sentido
linear. Ao narrar, as narradoras iam e vinham em suas trajetórias,
oscilando entre o vivido enquanto meninas e o que vivenciavam como
pescadoras. Apresentar essas narrativas na íntegra tornaria este livro por
demais volumoso. Coube-me fazer uma compilação visando propiciar
ao leitor o acesso ao que elas escolheram narrar a partir da proposta
de uma apresentação inicial de si mesmas, com um cuidado atento
para não transformar “ambiguidades e diversidades de significado da
situação da pesquisa em um retrato integrado” (CLIFFORD, 2008,
p. 40), até porque no decorrer do livro outros trechos de suas narrativas
e de outras pescadoras emergirão.39
No entanto, trechos do que me foi narrado não serão
publicizados, considerando aspectos que dizem respeito a episódios de
constrangimento e sofrimento que, se aqui fossem expostos, poderiam
ter sérias implicações éticas no sentido do preconizado pelo código
da ABA (1986), quando diz que “constitui direito das populações que
são objeto de pesquisa o direito de ser informadas sobre a natureza
da pesquisa e o direito de preservação de sua intimidade, de acordo
com padrões culturais”. As pescadoras compartilharam comigo esses
episódios a partir da relação de confiança que foi sendo construída no
decorrer do trabalho de campo, o que, no entanto, não me dá o aval
de tornar públicas questões extremamente privadas. Pelo contrário, por
ser uma antropóloga-interlocutora que se propôs a uma escuta atenta,
tenho este comprometimento com a antropologia e tenho com elas o
compromisso de não tornar público tudo o que me foi narrado a partir
da confiança que com elas construí.

39
Nos demais capítulos, nos depoimentos alusivos a críticas, sugestões, ponderações,
aparecerão como “uma pescadora”, visando preservar-lhes a identidade, como já
esclarecido. Em relação à redação de suas falas, em alguns trechos, excluem-se vícios
de linguagem que tornavam a leitura extremamente cansativa, como os sucessivos
né, então, daí. Fiz esta opção tendo em vista uma experiência vivenciada por ocasião
de minha especialização em Gerontologia, em 1992, quando apresentei o trabalho
final reproduzindo as falas como me foram ditas, ao que fui questionada por meus
interlocutores sobre o porquê de a minha fala se apresentar corretamente e as deles
com erros gramaticais e vícios de linguagem. Tal episódio me fez refletir sobre a questão
de nossa autoridade/humildade/honestidade no processo de escrita e de apresentação
do outro. Este exercício também foi realizado por Maluf (1993) no seu trabalho sobre
narrativas de bruxas na Ilha de Santa Catarina.
Capítulo 2 | Mulheres pescadoras 83

Inquietei-me inicialmente sobre como fazer as edições


necessárias sem comprometer o que elas escolheram narrar, sem expor
alguns episódios dramáticos, por um lado, e sem intervir de forma
irresponsável em suas narrativas, por outro. Nesse sentido, compactuo
com o que afirmou Bourdieu (2003):

Como de fato não experimentar um sentimento de inquietação


no momento de tornar públicas conversas privadas, confidências
recolhidas numa relação de confiança [...]. Sem dúvida, todos
os nossos interlocutores aceitaram confiar-nos o uso que seria
feito de seus depoimentos. Mas jamais houve um contrato tão
carregado de exigências tácitas como um contrato de confiança.
(BOURDIEU, 2003, p. 9).

O capítulo está dividido em três subseções: inicialmente, “Elas por


elas”, na qual as pescadoras se apresentam a partir do que escolheram
narrar. Três das pescadoras ficaram fora dessa subseção e estão nas duas
seguintes, considerando que com elas o mergulho foi mais denso. Com
elas convivi de forma mais próxima, o que propus ser uma observação-
participação/experiência densa. Vamos às pescadoras:

2.1 Elas, por elas40

2.1.1 Josi

Meu nome completo é Josilene. É Josiane, Josilene, Josimara.


Então é Josilene Maria, Maria da mãe, e da Silva, do meu pai. A minha
mãe também era Silva. Meu pai é Manoel Joaquim da Silva e minha mãe
Maria de Lourdes. De irmãos que pescam tem o Márcio, Marquinhos,
Luis, Adriano, Luciano, Cristiano, Fernando. Somos 11 irmãos, dois
faleceram. Eu sou a décima a ter nascido. Estou com 27 anos. Comecei
na pesca com 18 anos; faz oito anos. Quando comecei, eu não sabia. Na
real, no começo o pessoal ficava meio cabreiro. Até os meus irmãos.
Tinha feito umas três semanas que eu tinha me formado e antes de me
formar eu trabalhava de ajudante de pedreiro com o meu tio, lá no morro,
na casa do meu irmão. Aí trabalhava. Chegava 11 horas, saía, deixava ele
levantando tijolinho maciço. Ia fazer o almoço. Chegava uma e meia, ia

40
As narrativas foram coletadas no decorrer de 2011, data na qual mantenho a idade
das pescadoras.
Mulheres e o mar 84

de novo até às cinco. Às vezes atrasava um pouquinho porque tinha que


lavar o material. Só dava tempo de tomar banho e ir para o colégio,
que começava às seis e quinze. Eu ia comer alguma coisa só no recreio.
Figura 1 – Localização dos municípios pesquisados41

Localização do estado de Santa Catarina


no Brasil

ITAPOÁ
Itapema do Norte

SÃO FRANCISCO DO SUL


Iperoba

ARAQUARI BALNEÁRIO BARRA DO SUL


Centro Centro e Costeira

BALNEÁRIO CAMBORIU
Barra

GOVERNADOR CELSO RAMOS


Canto dos Ganchos
Localização dos municípios pesquisados no estado de
Santa Catarina
FLORIANÓPOLIS
Armação do Pântano do Sul
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SU
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LAGUNA
Canto da Lagoa
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Atlâ
no
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Oc

Visitei também Garuva, Navegantes, Biguaçu, São José e Palhoça, onde conversei
41

com pescadoras que trabalhavam em terra, secretárias e presidentes das colônias de


pescadores e técnicos da Epagri.
Capítulo 2 | Mulheres pescadoras 85

Correria! Aí, a família toda pescava, mas eu não me interessava. Não


era assim de, ó, pesca, tal. Aí chegou a minha cunhada e disse: “O Nego,
não queres que a Josi trabalhe contigo?”. Porque eu estava assim: com que
vou trabalhar? Não sei o que vou fazer da vida; 18 anos! A minha mãe
tinha falecido, fazia uns cinco, mas eu estava meio desnorteada, meio
perdida ainda. Aí, o Márcio assim: se ela quiser ir pra ver como é que é.
Aí, fui. Comecei a ir, a ir, e hoje estou aí. Não tem nada que eu não faça
no cerco e eu não sabia nem o que era cerco. Eu nem imaginava como
é que era. Daí fui indo, indo, o meu irmão foi me ensinando na base do
esporro. Oh, coisa medonha! Hoje eu sou o braço direito dele. Trabalhei
com o Guê, com o Márcio, com o pai, com o César. Estou trabalhando
com ele agora porque ele está aguentando no inverno, senão eu teria que
arrumar uma vaga para trabalhar com outra pessoa, entendesse? Agora
é o cerco. A espada dá o ano todo. Às vezes dá mais no verão, às vezes
no inverno. É na rede de espera. O peixe que passar ali, fica: espada,
tainha, um peixe diferente. Em novembro foi peixe-galo. Passou. De
dezembro a abril eu trabalho na temporada em passeio de barco. Janeiro
e fevereiro são os meses melhores. Janeiro é mais bombado. Tem vinte
embarcações. É pela listagem. Todo mundo já sabe a sua vez. O dinheiro
é pago no final do dia. Normalmente, no verão, fecha todo dia. Quando
tem movimento, é só encostando embarcação e saindo. De abril em
diante, é na rede de espera. O cerco e a rede de espera é a mesma coisa.
Ela pega todo tipo de peixe: cação, abrótea, entrou dentro daquele saco
onde a batera42 fechou a boca, que tu visses, fica. Mas é mais espada.
E a divisão de quem pesca é por parte. Metade do dinheiro fica para
o cerco, que é o dono da rede, da manutenção, tudo. A outra metade
é para dividir pelos tripulantes, inclusive ele que é tripulante também.
Tem meses que dá melhor, outros menos. Eu ganho uma parte e meia
por trabalhar no bote porque quando eu comecei a trabalhar com o meu
irmão eu falei: por uma parte e meia eu trabalho.43 Menos do que isso, eu
não trabalho porque eu tenho mais responsabilidade do que os outros.
O Márcio ganha uma parte e meia. Não é a questão de ser o dono, ele é
o responsável, ele cuida. Aí é dividido. No final, tira a metade e divide a

Bateira, tipo de embarcação utilizada na pesca artesanal.


42

43
Na embarcação que Josi trabalhava, o pagamento era dividido por partes, e cada
tripulante ganhava uma parte. Como Josi realizava uma atividade considerada de maior
responsabilidade, que consiste em guiar o bote, ela recebia uma parte e meia. No final
do mês se somava o que deu e se dividia: metade para a embarcação visando pagar
custeios, combustível, consertos, e metade entre os tripulantes. Quem realiza atividades
diferenciadas, como Josi, recebe mais do que os que atuam apenas como tripulantes.
Mulheres e o mar 86

outra. Muda de mês para mês. Depende a época. E também faço filé. O
meu marido é professor, também faz, mas é mais demorado. Eu, em duas
passadas, tiro o filé inteiro. Já estou mais acostumada. A pesca é uma
área que tem desafio e, para mim, quanto mais desafio melhor. Quanto
mais diz que não dá, mais eu vou lá e faço. Tudo tem que ser uma coisa
bem mais planejada. Além de trabalhar, tens que saber administrar o
dinheiro, porque não vem todo mês certinho, tem que fazer economia.
Tem que saber o que entra, o que não entra. Tem que saber que este
mês deu fraco na pesca, mas eu fiz um filé, já entra mais um dinheiro.
Entendesse? É um jogo de cintura. Tem que ter muita força de vontade
também: não tem domingo, feriado, Natal. É direto.

2.1.2 Rosinha

Eu sou a Rosinha, que é assim que me chamam. Sou casada com


Aparício Ramos da Silva, que está hoje com 64 anos. A gente chama ele
de Parício. A gente se acostumou nesse ritmo. Eu acho que se for para
botar alguém da cidade para fazer o que eu faço, não faz porque eu estou
acostumada neste ritmo desde os oito anos de idade. Nós estudávamos
de manhã e à tarde nós descascávamos camarão. Eu estudei até a terceira
série. O meu marido também. Passamos para a quarta, mas os pais não
deixaram continuar porque nós tínhamos que cuidar dos nossos irmãos
porque eles trabalhavam na pesca e na roça. Das filhas, eu sou a mais velha.
Comprei o meu enxoval, tudo com o dinheiro do camarão. Eu casei com
18 anos. Aí, com 19 eu tive o primeiro filho, que hoje é mestre de barco em
Santos. Depois, quando o menino estava com um ano, um mês e 18 dias,
ganhei a menina. Quando a menina fez três anos e seis meses, eu ganhei o
Oziel, que é esse que está pescando com o pai. Quando esse estava com dois
anos e dois meses, eu ganhei o outro, o Oscar; esse trabalha sozinho numa
embarcação. O meu marido trabalhava no camarão. Depois começou na
rede de malha. Daí, ele botou rede junto com o meu cunhado. Depois,
o meu cunhado não veio um dia. Ele ficou apavorado e eu falei: “então
vamos que eu vou contigo”. Ele disse: “mas tu vais enjoar”. Eu disse: “não,
eu não vou enjoar”. Aí, fomos lá colhemos a rede, arriamos. Voltamos.
Cheguei. Fui arrumar todo o peixe. Limpamos, congelamos o peixinho.
Eu não sei direito que idade tinha. Eu acho que ia fazer 40 anos quando
comecei com ele. Eu pesquei 22 anos com ele. Dos 40 aos 62. Até agora.
O meu cunhado não apareceu mais, e eu fiquei pescando direto com ele.
Mas a vida do mar, quando o mar está manso é tudo muito bom. Quando
vira o tempo! Agora, com o meu rapaz, nós saíamos duas horas. Meu
Capítulo 2 | Mulheres pescadoras 87

marido estava no hospital. Enquanto ele estava no hospital eu ia com o


meu filho pra fora. Daí nós saíamos de casa, eram duas da manhã. Aí, sete
horas, oito horas, nós já estávamos em casa. Colhia tudo no escuro, com
luz porque ele botou luz. No camarão é na hora que as pessoas querem ir.
Hoje eu me levantei era três horas. Levantei, cozinhei o arroz, fiz o café,
fritei carne pra eles levar, arrumei o baldinho da comida, tudo. Daí eram
quatro horas, eu fui ali chamei ele: nego, não vais pra fora já. E quando
eu vou junto é a mesma coisa, eu que levanto primeiro para deixar tudo
pronto. Hoje, os dois estão lá fora pegando peixe. Eu estou em casa: estou
limpando, empanando, embalando, pesando. Se nós chegarmos oito
horas, já chego aqui, tomamos mais um cafezinho, eu vou limpar o peixe,
de tarde eu já vou congelar, tudo individual. E se é para empanar, no outro
dia eu não limpo. Eu vou empanar aqueles que eu limpei um dia antes.
Depois eu vou congelar individual. Quando ele está em casa, ele me ajuda.
Agora ele quase não me ajuda assim porque nós temos uma máquina de
limpar, de consertar. Aquela lá. O pai era pescador. Nós descascávamos
o camarão, ficávamos até tarde da noite descascando camarão porque
naquela época não tinha gelo, era tudo cozido. Aí, nós descascávamos
camarão na salga. A mãe era mais de roça. Ela gostava muito era de roçar,
capinar, colher. Era mais com o meu pai. Para embarcar, foi com o meu
marido. Eu disse, vou, e fui, e pronto. Não enjoei nada. Sábado e domingo
eles também vão para o mar. Não tem sábado ou domingo. É a semana
inteira. Desde que tenha produção, eles não param. Eles não parando,
eu também não paro. Hoje de manhã estou parada; à tarde eu tenho que
pegar o carrinho (de mão) que está lá no porto, vou lá pegar gelo, trago,
boto aqui, levo o carrinho para o porto. E assim vai, a luta de cada dia.
Isso porque eu dormi e perdi a hora. Dormi até as oito e eu não gosto de
acordar tarde porque me atrasa. [Então a senhora dorme quantas horas
por noite? Vai dormir que horas à noite]. Ah, depende. Se eu sair da salga
ali umas seis horas, sete horas por ai. Aí já faço a janta, já estou lavando a
louça, quando termino, tomo um banho. Jantamos. Aí, já limpo a louça de
volta. Vou me deitar, é umas dez e meia, onze horas. Durmo umas quatro,
cinco horas. Me sinto bem. Eu não tenho canseira, nega. Graças a Deus
que eu não tenho canseira. Eu gosto dessa vida da pesca.

2.1.3 Fátima

Sou natural de Joinville. Meu nome completo é Fátima Regina


Soares Persike, mas me chamam de Fá. Tenho 49 anos e sou casada com
Simião Persike. Conheci Simião trabalhando de garçom. Eu trabalhava
Mulheres e o mar 88

na Cipla. Casei com 23 anos, ele tinha 25. O futuro dele já era pra cá
mesmo. Mais ou menos em 1994 vim para Barra do Sul. Montamos um
mercado. Quando fechou o mercado, abrimos um bar. Também gosto
de trabalhar na igreja. Sou ministra da eucaristia. Comecei a pescar com
o meu marido que me ensinou. Aprendi com ele. Pesquei siri, aprendi
a remar. No começo, fazia errado porque para remar tem um jeito, com
o remo para frente e para trás. Eu pesco há 15 anos, mas tive problema
com a documentação. Descascava siri, sozinha, pescava, levava. É um
dinheirinho que entra pra gente. O dinheiro é um monte só. Daí a gente
decide para que quer. Decide junto: é para construir a casa? Então é
para a casa. O barco pequeno está no nome dele. O grande vai para o
meu nome. Mas sempre sou eu que corro. Sempre a mulher né. Eu que
tenho que olhar. Pescamos mais com rede de cerco. Nossa rede é em
torno de 12, 13 metros, malha seis, sete e oito grudada num pano. A
gente paga para remendar. Pegamos peixe, o parati. O nosso horário,
ou vamos às 10 e voltamos duas, três horas. Ou vamos à uma e meia e
voltamos às cinco horas. Às vezes vamos à noite, mas preferimos ir de
dia. Depende quando está dando o peixe e também depende do peixe.
A pesca do parati é assim: ele espana. Então tu vais bem quietinha. Daí,
o companheiro de trás é quem vê porque eles vão atrás. Nós na frente
porque eles são mais fortes. Daí ficamos quietos, escutamos. Daí faz tac
tac, tac. Daí sabe que é o parati. Então cerca e faz o caracol. Um vai no
remo, eu, e ele bate porque ele tem mais força. Assim, o parati corre
para dentro. Vendemos ali na minha sogra. Já é uma referência. Todos
pescam, os quatro casais, e botamos pra vender ali na minha sogra. A
maioria já acostumou ali porque é tudo fresquinho. Hoje, vendemos o
parati pequeno a três reais e o grande a quatro reais. No inverno é o mais
difícil. Ultimamente, sinto problema de coluna. Quando dói muito,
paro de ir um pouco. Acho que sinto muito o corpo porque é mais para
homem, mas tem que ajudar porque se vai outro camarada, divide em
três. Se eu vou junto, eu sou a camarada, fica pra gente. As mãos é o que
mais usa para puxar as redes. Daí responde no ombro. Dá dor. Ataca
a coluna porque tudo depende dela. Acho que a maioria das mulheres
que conheço não conseguiria fazer este trabalho porque é muito difícil.
Na verdade, eu não gosto, mas precisa. Outra coisa é que pescando é
também uma meditação pra gente. Mesmo que pegue pouquinho,
a gente agradece a Deus. Claro que se pegar mais, fica mais contente.
Daí a gente fica naquele silêncio. Agradece a Deus, tudo o que ele fez
pra gente. Eu sinto a presença de Deus junto comigo. É paz, alegria,
tranquilidade. Tá no meio do mar. A gente tem que se cuidar também
Capítulo 2 | Mulheres pescadoras 89

porque é perigoso. Como a gente luta, Deus vai ajudando. Sou ministra
da eucaristia. Sou coordenadora dos ministros. O meu marido também
é ministro. A gente visita os doentes. Isso faz um bem! Eu estudei até a
sétima série. O meu marido até o quarto ano. Eu tenho a Juliana, de 26
anos, que fez o segundo grau, e o Otávio, de 19 anos, é seminarista. Deus
me preparou: se fosse para dar o teu filho, você daria? Deus prepara bem
a gente. Quando a gente diz sim, as coisas acontecem. Na pesca, o vento
mais perigoso é o rebojo porque além do vento, ele faz onda. Ele roda
e a água cai dentro da batera. Um dia, deu. Me grudei na batera com as
mãos e os pés. Me deu um apavoramento. Por isso tem gente que morre:
de apavoramento. Por isso, não é toda mulher que vai.

2.1.4 Geni

Eu sou casada. É bom ter um companheiro. Sou casada com


Miguel Luiz dos Santos, o Gel, que tem 34 anos. Tenho o Lucas, de 11
anos, o Lídio de 20, e a Jaqueline, de 16 anos. [Desde quando pescas?].
Eu pesco desde que estava na barriga da mamãe (risos). A família toda
pescava siri. Meu pai, Atanásio Persiki, tarrafeava e a minha mãe, Iraci
Shroeder Persiki, trabalhou a vida toda no siri, mas nunca conseguiu
se aposentar. Inclusive, quando fui ver o auxílio-maternidade do meu
último filho, lá, não sei por que, botaram que eu era empresária e que a
mãe estava trabalhando para mim. Meu nome é Geni.44 Eu comecei com
12 anos. Estudei até a sétima série de manhã. À tarde ia pegar o siri de
“pega”.45 Era uma vida difícil porque naquele tempo não tinha mercado
para vender. Tinha a carne do siri e vendia por uma mixaria. A mãe toda
vida no siri e vendendo peixe ali na frente da casa dela. O pai dava umas
tarrafeadas. Aquele dinheiro não dava para nada, além de comer. Nós
só vivíamos da pesca para poder sustentar a casa. Casei com 21 anos
com meu primeiro marido, que era pescador. Daí, fui pescar de rede

44
Durante o meu trabalho de campo, em junho de 2012, Geni recebeu o diagnóstico
de câncer de pele em estágio que demandava o início imediato do tratamento com
radioterapia, exigindo cuidado com a exposição solar e, portanto, o seu afastamento das
atividades da pesca. Por outro lado, como seu filho havia casado com uma moça que já
tinha uma filhinha, Geni estava como cuidadora da menina enquanto a nora trabalhava
fora. As duas questões serão abordadas em capítulos posteriores.
45
Segundo explicação de Geni, o “pega” é uma armadilha feita com ferro redondo.
Deixa duas pontinhas e amarra com um pau que se pega no mato. O que a mãe usa hoje
é o covo (que é retangular), mas ela chama de “pega” também. E é certo porque também
pega siri.
Mulheres e o mar 90

de parati, rede de cerco. Lá para fora é rede de caceio, solta a rede com
a maré. De caracol. Faz o caracol com o barco. A rede de caceio é para
a anchova, guaivira. A de caracol é mais para pescadinha. Fiquei cinco
anos com o primeiro marido. Ele morreu de tétano. Quando a Jaque
tinha 12 dias, ele morreu. O Lídio já tinha cinco, porque eu casei ele já
estava na barriga. Continuei na mesma rotina. Eu ia pescar com os meus
irmãos. Ia na pesca do parati. Eu fiquei, vamos supor, um ano. Depois de
um ano fiquei com o Gel e depois de um ano fiquei com ele. Daí, fomos
morar juntos. Continuei na pesca com ele, que já era pescador. Daí, o
Lucas eu tive quando já estava há dois anos com ele. Gosto da pesca.
Pra pescar lá fora, sai as três da madrugada e fica até às 11 horas. Eu
pesco há 30 anos, mas só faz 15 anos que tenho a carteira de pescadora.
Eu fiz a inscrição em dois de junho de 1997. A gente nem pensava em
fazer isso porque naquele tempo não fazia das mulheres ainda. Então a
gente já pescava, mas não tinha a documentação. Sou a coordenadora
do dinheiro. Mas hoje em dia a gente vê que diminuiu a pesca. Até o
camarão diminuiu. Agora nem vou tanto no inverno porque é mais
difícil. Tem muita escassez. É mais para o verão. Daí eu vou com ele,
tanto no peixe quanto no siri. O siri é mais que o peixe no verão. Com
essa água viva que está aí não dá. É uma praga. Nadar? Só sei nadar
cachorrinho. Na pesca, o corpo judeia46 muito. O mais difícil é puxar
a rede lá fora. Ainda mais eu que puxo a parte do chumbo que é mais
pesado. Eu tenho que fazer força no bote para ficar na posição certa. Ele
já puxa mais o lado da cortiça porque daí ele puxa mais pano de rede
e eu não consigo. Na verdade, o trabalho mais pesado fica comigo, no
bote. A parte do corpo que mais se usa é as mãos, os braços. Fica tudo
dolorido. Acho que de tanto fazer força. Com o tempo vai aumentando
a dor. Acho que de tanto fazer força. Tem dias que nem vou, do cansaço.
Não dá. No verão é mais fácil porque dá mais peixe. Tem dias que é
terrível. Tu assistisses aquele filme Mar e fúria? Tem dias que parece
aquele filme. Um dia deu uma tempestade. Uma ventania de repente.
Desamarrou as bateras. Uma afundou. Depois, foi passando. Nunca vi
um mar tão grande na minha vida. Sabe que é bom contar a história da
gente. Quando a gente morrer, vai ficar de lembrança para os filhos e
os netos. Pelo menos uma coisa que a gente fez. Uma história. Quantas
pessoas não têm uma história para contar? Morre e não tem uma história
para contar para seus netos: uma história de luta, de guerreira!

Sinônimo de algo que provoca sofrimento; que sofre.


46
Capítulo 2 | Mulheres pescadoras 91

2.1.5 Alzira

Todo mundo me conhece por Alzira. Eu e a Cecília somos duas


irmãs casadas com dois irmãos, que são pescadores. A minha sogra tem
três filhos pescadores, meu marido Dé, o Marquinho, o Simão; e uma
irmã deles, a Geni, minha cunhada, é pescadora, casada com o Gel,
também pescador. A minha sogra, a vida toda trabalhou com a pesca,
principalmente de siri, mas não conseguiu se aposentar como pescadora
porque nunca pagou. O nome de meu marido é José Persiki, mas a gente
chama de Dé. Ele está com 47 anos. Tenho uma filha, a Lilian, de 20 anos e
um filho, o Tiago, de 18 anos. Ela é estudante de História e ele é pescador,
mas está cursando o Curso Técnico em Mecânica Industrial. Eu pesco
há vinte anos. Aprendi com o Dé. Estudei até a oitava série, ele também.
Quando eu cheguei aqui na Barra do Sul, eu sempre tive vontade de
aprender as coisas. Depois de já estar vivendo com ele, eu vi, pela primeira
vez, ele remendando uma rede de pesca. Eu já me interessei em aprender.
Pedi pra ele dar pra mim a agulha e me ensinar a remendar rede. Comecei
com meia malha, que é só uma perninha de cada malha da rede. Depois
é buraco de malha; e assim por diante. Hoje sei remendar todo tipo de
estrago na rede. Eu comecei a ir com ele, sem noção do que era pescar
com rede, mas a vontade de aprender foi tanta que em poucos dias eu já
estava apta para exercer a profissão. E foi o que eu fiz. Me tornei camarada
de pesca do meu marido. Nós fizemos mais o cerco, mas fizemos o caracol,
o arrasto de camarão, o caceio da espada, rede de caceio mesmo, espada,
gaivira, sororoca, parati e tainha é feito de cerco mesmo. Até de anzol
nós pescamos. Enquanto a rede fica caceando,47 pesca-se de linha porque
pescador que é pescador pesca de tudo. Ostra, siri, aproveita tudo o que
o mar oferece. Pescador não tem só uma função. Geralmente ele pesca
vários tipos de pesca. Nossa família mesmo é preparada para vários tipos,
mas é assim, cada um pesca pra si. Cada casal, cada marido com a sua
esposa pescam juntos, e cada um vende pra si próprio. Cada um tem a
sua pescaria, cada um vende o seu produto. Uns vendem na salga, outros
entregam no porto. E quando faz o filé daí ganha um pouco mais. O filé de
espada é muito procurado. É trabalhoso claro, doem as costas pra puxar
aquela rede. A mão faz calo de puxar a rede. O próprio remo, em si, faz
calo na mão. Vai endurecendo aquela mão, vai ficando áspera, mas de
machucar é pouco. Lá uma vez ou outra que vai de acertar a espora do
peixe, o osso, daí machuca. Eu sou fascinada pela pesca mesmo. É uma

A rede fica à deriva esperando os peixes que nela entram.


47
Mulheres e o mar 92

emoção muito grande pescar. Aquela rede que vem com bastante peixe
é uma emoção parecida, não é a mesma claro. Não existe comparação
entre ser mãe e ser pescadora. É diferente, mas é uma emoção tão forte
quanto. De forma diferente, mas é tão forte quanto tu vê o rostinho do
teu filho pela primeira vez. Cada peixe que tu tiras da rede, uma alegria
toma conta de ti. É emocionante, é incrível. Só quem é pescador e ama
o que faz para entender. É uma coisa inexplicável. Mas eu quero que os
meus filhos tenham uma vida melhor porque a vida da pesca não é ruim,
mas é incerta. Tem época que ganha bastante dinheiro, mas tem época
que fica muito sem poder pescar. Eu amo a pescaria, mas para trabalhar
na pesca tem que estar unido como o dedo e a aliança. O casal tem que
atuar junto, na venda, no beneficiamento para poder dar certo. Um não
é mais importante do que o outro. Eu sempre ensinei para os meus filhos
que homem e mulher no casamento têm o mesmo sexo. Isso porque tem
que trabalhar igual e sempre junto. Eu adoro o meu marido, de verdade
mesmo. Ele é o meu tudo. Claro que eu amo demais os meus filhos, lógico.
Na verdade, não sei dizer qual que eu amo mais: o marido, os filhos, a
pescaria, ou o acampamento.48 São formas diferentes de amar, mas são
parte da minha vida. Agora estou encostada, parada, mas sinto falta.
Entrei em uma depressão danada pela falta da pescaria mesmo. E ainda
tem quem diz que mulher não é pescadora. E como é. Aqui em Barra
do Sul tem umas quantas delas. […] Hoje, infelizmente, por motivo de
doença me encontro afastada da pesca porque rompi o tendão do braço
esquerdo devido a uma queda da bicicleta e estou aguardando cirurgia.

2.1.6 Cecília

Sou casada com Marques Persike, o Marquinho, que está com 55


anos. Sou mais conhecida como Cila. Cila de Cecília. Cecília Conradi
Persike. A família do meu marido é uma família onde os filhos são
registrados com “e”, Persike, e “i”, Persiki. O meu é com e. Marques era
para ser Max. Só em 2007 o pai descobriu o erro e ficou muito bravo.

48
Quando Alzira se refere ao acampamento, está falando do que considera que já
virou uma tradição da família que ela e o marido criaram, pois há cerca de dez anos
começaram a fazer uma vez por ano, no mês de julho, um período de acampamento
em região próxima, porém para a qual se deslocam de embarcação. Dizem que é o seu
período anual de férias. No entanto, da mesma forma que se deslocam de embarcação,
levam todos os apetrechos de pesca e continuam pescando no período, em teoria, de
descanso. Na ocasião do trabalho de campo, participei do acampamento com eles,
conforme já dito na introdução.
Capítulo 2 | Mulheres pescadoras 93

Eu pesco há 26 anos; aprendi com ele. Eu morava em Joinville. Ele


foi trabalhar lá. Nos conhecemos, casamos. Ficamos uns seis anos lá.
Depois, viemos para cá. Já tínhamos dois filhos, que são quatro. Viemos
morar onde moramos até hoje. Hoje, se tivesse que voltar pra cidade, eu
não voltava porque eu não me acostumo mais com o barulho da cidade.
Aqui é mais tranquilo, o meio de vida é mais prático, mais simples.
Na pesca, a rede que mais trabalhamos é a de cerco redondo. Outros
chamam “pra bater” porque faz o cerco e bate com o remo na água para
o peixe emalhar. Tem tempo que pescamos de dia, tem dia que pescamos
de noite. É lá fora; saímos de madrugada. Mas lá fora é rede de caceio.
Põe com a bandeira e deixa a rede à deriva. Lá fora não tem ferro. Só
deixa a bandeira. Para vender, vendemos no mesmo local que os outros
filhos, na casa da minha sogra. Pegamos parati, espada, camarão, tainha,
depende a época. O parati da malha sete está quatro reais o quilo. É uma
média de três a quatro por quilo. A espada vende mais no filé, dez reais
o quilo; suja, sai por cinco. O camarão é o sete-barbas, dez reais o quilo.
Tem época que fica em torno de quatro reais o quilo. A tainha a sete ou
a oito com ova. Eu tenho carteira de pescadora profissional. Pra sair na
boca da barra dá aquele friozinho na barriga porque dá a impressão que
o mar vai engolir a embarcação porque o barco sobe e desce nas ondas.
Dá um aperto no estômago. Depois que está lá fora, daí não. Daí, pronto.
Daí acalma. Lá fora é tranquilo; quando o mar está ruim a gente não vai.
No começo, eu morria de medo de enjoar, mas nunca enjoei. Quando
eu comecei, foi assim: ele precisava de um camarada e comentou: “se
tu soubesses pescar, ia comigo”. Daí eu disse: “mas não tem nada que
a gente não aprenda”. Daí, fui. Não foi difícil porque é uma coisa que
não tem muito segredo. É preciso força pra trabalhar no mar, é preciso
prática de puxar a rede, de enrolar certinho. O que eu mais custei é
para fazer o monte redondinho do chumbo da rede para sair mais fácil
da embarcação. Senão amontoa tudo, não sai certinho. Depois peguei
prática ligeiro. Eu gosto da vida na pesca, mas é uma vida difícil porque,
além de pescar, chega em casa, manuseia o pescado, faz o serviço, faz as
compras, tudo. Não só para a mulher, para o homem também porque é
muito frio. No verão é muito quente; no inverno já é o frio. Hoje estou
com problema de saúde, na coluna, no ombro. Tudo em função da
pescaria porque a gente usa muito o corpo. O que mais se usa na pesca,
depois da mão, o que mais judeia é o ombro e a coluna porque a gente diz:
puxar a rede. Mas a gente não puxa a rede, puxa a embarcação. A gente
recolhe a rede, mas nisso vem o peso da embarcação. Quanto peso tem
ali? Eu fui ao médico. Quando eu fui, ele perguntou: “A senhora pesca
Mulheres e o mar 94

como?”. “Pescando”, eu respondi. “Mas pescando como?” “De pescador


mesmo.” Vida de pescadora. Ele queria que eu dissesse que trabalho com
pescado. E não que eu pescava. É assim, muitos não entendem porque
são poucas as mulheres que pescam, que embarcam. O correto seria
ter um documento diferente. Manipuladora de pescado, um. Pescadora,
outro. Mas todas trabalham na pesca.

2.1.7 Neia

Meu nome completo é Dulcinéia Conceição Borges, Neia. Fiz


32 anos. Sou casada com Cristiano Mendes, o Kriki. Ele está com 36
anos. Trabalho na pesca e também invento outras coisas: salgadinho,
docinho, tortas decoradas, crochê. Crochê eu levo até pro mar para fazer
enquanto aguardamos puxar as redes. Desde pequena eu gosto da pesca.
Eu aprendi a pescar com o meu pai. Eu tinha uns 12 anos, eu acho. O pai
ia sair de manhã, quando via, eu já estava esperando pronta pra ir com
ele. Eu tinha aquela curiosidade de ver e saber como era a pesca, como
se fazia, como se pescava, como vinham os peixes. Eu dizia: “me leva
pai, me leva!”. Ele dizia: “não filha. Está muito frio. Outro dia tu vais com
o pai”. Aí, no outro dia eu insistia, insistia. Quando eu levantava, ele já
tinha saído. Aí, eu percebi que ele me enganava. Ele dizia um horário
e saía mais cedo. Entendesse? Por exemplo, quando ele falava que ia
as cinco, ele ia bem antes. Às quatro horas, vamos dizer. Daí, quando
eu percebi isso, eu enganei ele. Um dia ele acordou. Quando viu, eu já
estava na cozinha com tudo pronto para ir. Tinha feito o café, arrumado
as coisas, já tinha deixado tudo pronto. Aí, não teve jeito: ele me levou
junto. E dali pra frente, não teve jeito, me levava com ele. Ele dizia: “eu
vou te levar, mas se tu enjoar pode enjoar como for que eu não vou te
trazer para casa!”. Mas eu não enjoava. Os meus irmãos enjoavam e eu
não. Eu sou a mais velha. É um ano de diferença entre cada um. Éramos
cinco filhos. Um morreu no mar, como eu te contei outro dia. O pai
sempre foi pescador. A família toda. A gente é natural de Joinville, mas
só nascemos lá. Só na maternidade, depois viemos pra cá. Depois casei
com o Kriki com 16 anos, que também já era pescador. Ele pescava aí no
rio e eu ia junto. Nós não tínhamos embarcação. Só uma batera a remo, e
fiquei de camarada dele. Nós íamos pra ilha a remo, tirávamos marisco,
colocávamos rede no costão. Aquela pesca que a Safira faz. Fazíamos
tudo isso a remo. Hoje, vou menos porque peguei um problema de
pulmão pela friagem muito grande da madrugada que a gente pega lá
Capítulo 2 | Mulheres pescadoras 95

fora.49 Eu tenho uma bronquite que, quando ataca, me acaba e, com os


filhos pequenos, a gente achou melhor eu ir menos. Quando esquenta
mais é que vou. Senão fico muito doente. Trabalhamos com várias
redes, arrasto de camarão, o caracol, a rede de tainha. A gente faz uma
divisória na embarcação e mantém em cada lado para, se vir um peixe,
cercar. Tem a rede que lanceia na praia, tem a rede de costão. E, como eu
já te disse outras vezes, eu gosto de pescar. O mais difícil é aquela época
que não dá nada. Miséria. Isso depende, não tem época. Tem verão que
dá. Têm outros que não dá. Além de pescar, eu limpo. Um dia, ele com
outro rapaz pegaram, no caceio, naquele dia não fui junto, pegaram
600 quilos de cação: sujo. Eu, com outra guria, viramos a noite, e mais
um dia, o dia todo, limpando tudo. Limpava, colocava as caixas com
gelo e organizava tudo. Já, por exemplo, com o camarão, dependendo
a quantidade, a gente demora dez horas por dia para descascar. Tudo
depende da quantidade; se o camarão é grado; se é miúdo. Não tem
uma hora certa para parar. A mão parece uma máquina porque a gente
tem que ser rápida. A parte que mais usa é a mão, na pesca, mas eu acho
que a que mais prejudica é a coluna pelo esforço, pelo balanço do mar,
daqui pra lá, de lá pra cá, a gente puxar a rede. Quando está época ruim,
de miséria, como eu tenho te falado, é que eu invento as outras coisas
pra fazer. Dali, aviso às pessoas: “olha estou fazendo salgadinho; estou
fazendo docinho”. Às vezes, pego uns aniversários inteiros para fazer,
dos docinhos ao bolo. Eu faço tudo. Antes, por falta de tempo ou até por
ser mulher, a gente achava que não era tão necessário fazer a carteira.
Mesmo porque as mulheres só tiveram o direito à carteira de pescadora
há bem pouco tempo. E é assim, quando dá pesca, a gente pesca; quando
é miséria a gente inventa outras coisas. A pesca é um vício. Só quando
não dá pesca e a situação está difícil mesmo, a gente inventa. Então nós
dois gostamos da pesca. A nossa vida é só isso: pesca. Tem que ser uma
vida de companheirismo. De amor e companheirismo. Acho que é isso.

2.1.8 Márcia

Sou casada com Lourenço da Silva. Fiz 50 anos dia dois de maio.
Ele está com 52 anos. Sou casada há trinta anos. Meu nome completo é

Quando estava em campo, em junho de 2012, comecei a sentir um frio instalado


49

nas costas, no que equivale à parte dos pulmões e diminuí as saídas para o mar,
principalmente quando aumentaram os acessos de tosse à noite. Ao comentar com as
pescadoras, elas me falaram: isso é o que a gente chama de friagem da madrugada.
Mulheres e o mar 96

Tânia Márcia da Silva, mas todo mundo me chama de Márcia. Tenho 50


anos. Eu estudei até a quinta série; ele também. Temos três filhos, uma
faleceu com três mesinhos. Os outros são uma menina e um menino.
Eles gostam de comer peixe, mas não trabalham na pesca. O meu filho
não deu certo, passa mal e a minha filha diz que não dá para ela porque
tem dia que dá, tem dia que não dá, porque a pesca não tem estabilidade.
Ela preferiu trabalhar em uma firma, com carteira assinada, assistência
médica para ela e para o filho, que é aquele menino que eu cuido. Eu
pesco há 11 anos e vai fazer seis anos que tenho a carteira de pescadora.
Nós temos dois botes, um para o peixe e um para o camarão. Um bote
está no meu nome e outro no nome dele. Eu aprendi a pescar com o meu
marido quando casei. Eu tinha 19 anos. Eu já pescava quando morava lá
em Joinville. Lá é pesca de baía; é diferente daqui que pescamos no mar
aberto. Com o passar do tempo, passamos a trabalhar juntos. Daí eu fui
indo, fui gostando. No começo, era difícil porque, para soltar a rede, não
podia enlear. E para puxar, não pode puxar muito rápido nem muito
devagar porque descontrola o barco. E eu me empolgo, quero puxar
bem rápido para ver o peixe, para ver o que vem na rede, e para poder
largar de novo. A do camarão, a gente puxa, a gente vê se tem muito ou
tem pouco. Ele já sabe. E às vezes tem muita água-viva. Daí deixa umas
duas horas, mais ou menos. Tem que saber a direção. Por exemplo, aqui
tem uma ilha. Marca aquela ilha como ponto de guia, ou uma luz que se
está vendo. Ele diz: “fixa essa ilha”. Tem que ter um ponto de referência.
Tem que soltar a rede retinha, senão uma prancha engata na outra.
E se ele está no leme, eu tenho que ir soltando bem ligeiro, bem ligeiro.
E tem que esticar a rede para ficar bem reto. Eu vou no chumbo, ele vai
na boia. Mesmo sendo mais pesado, eu já me acostumei. Eu gosto de ir
no chumbo. Ele, indo na boia, ele tira o peixe mais rápido. Ele tira peixe
até no escuro. Para que ir atrás de camarada que não dá certo? Então,
eu sou a camarada dele. Ele é melhor no tirar o peixe; eu sou no botar
e puxar a rede, sou muito prática. Para escolher o camarão, também
já peguei mais prática do que ele. Outra coisa é que às vezes a gente se
machuca muito. Pra catar o camarão, a farpa do camarão entra embaixo
da unha, a mão fica gosmenta, lisa. A minha mão engrossou muito no
passar do tempo. É a fumaça do motor, aquela sujeira, aquela lama. Por
isso, tem mulher que diz que nunca entraria num barco. E mesmo com
tudo isso, eu gosto, gosto de ver o peixe na rede; o camarão é a mesma
coisa. Quando a rede vem cheia, o meu marido fica contente, diz: tem
coisa mais linda do que isso! É uma sensação gostosa porque a gente se
anima. Agora, quando puxa e não vem nada, é um desânimo. Aí, xinga
Capítulo 2 | Mulheres pescadoras 97

tudo. Quando a gente se molha e fica todo molhado na chuva, aí que é


um sofrimento. Por isso tem que gostar. E tem que ser as duas coisas
juntas: o gostar e o saber fazer porque a gente está quentinha na cama,
duas, três, quatro da manhã, tem que levantar, seja chuva, sol, frio. Tem
que ver a maré, que para nós tem que estar cheia, mas não cheia demais,
porque não conseguimos passar embaixo da ponte que tem ali, que
conheces. Eu acho que o gostar é porque, todo dia que a gente sai, a
gente não sabe o que vai encontrar. É uma ansiedade. Essa coisa que a
gente sente que é bom. Uma curiosidade pra ver o que vai ser: hoje pode
estar bom; outro dia pode ter que fazer a volta e vir. A pesca é assim: tem
que gostar muito e saber por que é uma vida difícil. No inverno, eu boto
três meias, uma por cima da outra, três calças, cinco blusas, três toucas,
e o macacão e mais as botas. E mesmo assim, às vezes, não sinto a mão.
E tu imaginas, com tudo isso, se acontecer de se molhar às três horas da
madrugada? Tem dias que já desanimei de pegar a rede porque é muito
pesada. Eles dizem que é serviço para homem. Mas a mulher também
pode fazer. O meu marido diz: “tu fazes melhor que qualquer homem”.
Isso porque tem que ser tudo certo para não dar errado. Tem a hora de
soltar a rede, a hora de puxar a rede. Se for noite, tem que saber botar
o pisca.50 Eu mesma rezo muito, peço a Deus muita proteção porque é
o mar que manda. Se a gente sai ou se volta pra casa, é o mar que diz.
Pra mim, o mar é que manda. Sempre. Se a gente não obedecer, sofre.
Essa madrugada, se o mar deixar, a gente vai. E eu uso sempre bastante
agasalho, casaco, gorro. Eu uso aqueles gorros que a gente chama de
gorro de traficante. Queres ver?

2.1.9 Terezinha

Sou natural de Faxinal, Paraná. Viemos para Escalvado,


Navegantes. Com 11 anos comecei a cortar cana com o pai. Isso aí foi
até os meus 24 anos. Depois, viemos para Joinville. Já vim casada. Casei
com 15 anos com um cortador de cana. Fui trabalhar de empregada
doméstica por vinte anos nessa residência do meu patrão que te falei
ontem. O patrão fechou o escritório e botou uns vinte funcionários que
tinha para a rua. Eu também. Ainda em Joinville me divorciei. Casei
de novo faz dez anos. Eu pensei: ou vou trabalhar de doméstica ou na
roça, que é o que eu sei fazer. Mas aqui não tem roça! Aí, tive a ideia e
mandei fazer um barco para mim. Enquanto fazia o barco, providenciei

Sinalizador luminoso.
50
Mulheres e o mar 98

a mudança para cá. Daí comecei a pescar com o meu irmão. Quando o
meu irmão voltou para Joinville pegamos outro pescador, que ficou com
a gente por dois anos. Era eu e esse pescador de camarada. Ele já era
um senhor de idade. Resolveu parar por causa da saúde. O barco está
no meu nome. Fiz minha documentação, carteira de pescadora. Estou
trabalhando até hoje. Quando comecei, queria vender camarão. Mas o
camarão estava com o preço muito baixo. A gente resolveu então limpar
o produto. Indicaram a Marisete, descascadeira. Trabalhamos juntas há
quatro anos. Além de a gente trabalhar juntas, a gente se tornou amiga.
Do mar, eu acredito que quem tem medo não entra no mar, porque o
mar tem vida. Tem dias que está uma mãe calma. Têm outros que está
uma mãe, mas uma mãe brava. É ele quem diz se a gente sai ou se volta
da boca da barra. Não tem jeito. Ele manda. Vou te dizer uma coisa
bem séria: se não gostar, não fica porque isso aqui não é fácil. Tem que
gostar. Eu nunca pensei que ia gostar. Eu podia imaginar qualquer coisa
na vida, mas não que ia fazer isso aqui. Na verdade, a gente simplifica a
história porque se for contar tudo da vida da gente, dá um livro.

2.1.10 Tina

Meu nome é Cristine Lançoni, a Tina. Tenho 44 anos. Nasci


em Paranaguá e fui morar em Curitiba devido a problemas de saúde
porque ainda bebê eu tive um melanoma. Com 5 anos, começou a
crescer uma bola no rosto. Depois fui para Guaratuba. Quando fiz 13
anos, me apaixonei por aquele mar. Eu era um moleque naquela praia.
Aprendi a pescar com o seu Janjão, um senhor bem velhinho que tinha
lá. Aprendi a fazer tarrafa, a fazer a saia da tarrafa. Eu ficava com ele
aprendendo. Ninguém da minha família era da pesca. Trabalhei lá na
pesca de 1986 a 1990. Daí, vim trabalhar em Santa Catarina. Vim morar
em Joinville, mas quem é do mar não consegue ficar longe. Aí, decidi
vir para Barra do Sul, mas, por problemas de saúde, tive que voltar pra
casa da minha mãe. Casei e fui morar em Araquari. Desse primeiro
casamento, eu tive um rapaz, que está com 26 anos. O meu marido
morreu de acidente. O meu menino tinha 2 anos. Casei de novo aos 31
anos e tive a menina, que está com 11 anos. Ele era grosso. Prendia nós
duas em casa. Eu tentei aguentar porque eu pensava que já tinha criado
o filho sozinha; e é difícil. Quando ia fazer os BOs, por ele ser médico,
porque ele me conheceu na saúde, eles diziam: “ah, mas o Dr. fulano de
tal, tenta aguentar, vai passar”. Até que consegui: separei aos 39 anos. Ele
não queria que eu trabalhasse, que eu pescasse. Aí, quando me separei,
Capítulo 2 | Mulheres pescadoras 99

voltei a ser a Tininha. A Tininha do mar! Aí conheci a Márcia. Passamos


a trabalhar juntas, faz três anos, e estamos vivendo juntas há dois anos
e seis meses. Nós temos três redes. Uma de 120, e duas de 60 metros
porque são malhas diferentes. Eu gosto de tarrafear. Agora, no inverno,
fico mais por aqui pelos rios: rio Parati, rio Linguado e subo para a ilha
de barco, para a Ilha do Encantado, para a Ilha do Mel, que é mais longe
porque hoje estamos precisando ir cada vez mais longe porque diminuiu
muito, muito mesmo o peixe. Nós também estudamos. Fazemos curso
de hidráulica na Tigre, gratuito. Onde tem curso gratuito, a gente está.
Hoje mesmo, fazemos as construções porque só da pesca nós passamos
fome. Eu agora terminei a faculdade de pedagogia pela UDESC,
gratuito. Faço música para manter o cérebro ativo porque, com o câncer,
eu tive que botar uma platina aqui na lateral do rosto. A Márcia está
fazendo o segundo grau, eu incentivo. Digo: tem que estudar, tem que
continuar! Nós temos um barco de alumínio de três metros e oitenta.
Um barco muito grande vai forçar o motor. Nós saímos de casa às cinco,
cinco e meia. Retornamos lá por umas 11 horas, meio dia. Eu pegava 25
quilos de camarão. Hoje, pego dois quilos. Então diminuiu muito! Nós
costumamos pegar robalo, carapeva, guaivira, parati, tainha nas redes e
usamos berimbau51 para o camarão. Eu tenho a carteira de pescadora,
a carteira de Arrais52 e agora vou fazer a de mestre amador, mas estão
esperando porque mudou a legislação. Para mim, o mar é tudo. Eu amo
esse mar. Ele me acalma, eu me sinto bem. É como se fosse uma parte
minha, e eu dela: essa mãe natureza. Eu fico triste quando venho da
pesca que, de um lado da embarcação é o peixe e do outro é o lixo, que
nós vamos recolhendo no caminho. Tem dias que a Márcia chora no
mar: como podem fazer isso! É garrafa PET, é lixo. Vemos pegadas de
homens na lama onde tem os ovinhos de tartaruga, sabe. Acreditas que
eles pegam os ovinhos, fazem fogo e ali mesmo comem assado. Eu digo
para a Márcia que não tem que chorar. Tem é que denunciar! Se quiserem
comer ovo, que vão comer ovo de galinha! Tem muitos empresários que
vêm aos finais de semana, que pegam os barcos de pescadores, e vão
pescar. Muitos empresários e pescadores não têm ainda a consciência de
que isso aqui é para as gerações que ainda vêm. Tem pescador que deixa
a rede à noite toda. Colocam a feiticeira. A feiticeira é proibida, mas a
gente sabe que a polícia ambiental não dá conta. Na lua de quarto, todo

Tipo de armadilha usada para pesca de camarão.


51

Equivale à habilitação de motorista.


52
Mulheres e o mar 100

lugar tem rede feiticeira.53 Muitos já estão cuidando. Nós vemos muitos
pescadores que trazem, com o peixe, o lixo. Nós fazemos isso muitas
vezes. O efeito nós não vamos ver agora, apesar de que já estamos vendo
muito, mas os nossos filhos, netos? Os filhos deles?

2.1.11 Cheila

Meu nome completo é grande: Cheila Cristina Sebastião da Silva


Verbienen. Cheila com C. mesmo. Tenho 33 anos; três filhos. Sou natural
de São Francisco do Sul, conhecido aqui como São Chico. Meu marido
é de Itapocu, em Araquari. Casei com 22 anos com Valdelir Verbienen,
que hoje está com 45 anos. Eu estudei o segundo grau completo. Aprendi
a pescar com meu marido quando eu tinha 23 anos. Pesco há dez anos.
Tenho a carteira de pescadora profissional. Pescamos no camarão e no
peixe. Temos um bote, tipo baleeiro, com sete metros e meio, que está
no nome dele. O outro, de nove metros de comprimento e três de boca,
está no meu nome. No começo, foi no camarão. Eu não queria ir não,
mas daí ele dizia: “Vamos neguinha! Vamos!”. Eu achava que ia enjoar, e
enjoava. Depois eu fui vendo como era. Aprendi tudo com ele: separar o
peixe, o siri, o camarão. Ele precisava de um camarada. Olhava pra mim.
Eu, no começo dizia que não. Foi indo, indo, até que um dia, fui. A única
coisa que não sei fazer é remendar rede. É muito complicado. Da minha
família? Eu sou de uma família grande. Somos 12 filhos. Eu sou a do
meio. Quando eu tinha 7 anos, a minha mãe morreu, de tanto apanhar
do meu pai. Foi indo, indo, se acabando, e morreu. A minha irmã, que
hoje está com 44 anos, é minha mãe. Ela que me criou. Ela é minha
mãe. É assim mesmo que eu chamo ela: mãe. Ela ficou comigo. Quando
a minha mãe morreu, o meu pai botou nós tudo embaixo de um pé de
pitangueira para quem quisesse pegar e levar. Daí veio um juiz, eu acho
que era um juiz e o meu cunhado disse: essa aí não. Essa aí, a minha
mulher quer ficar, que a minha irmã já era casada. Que é essa, que é
minha mãe. O meu pai era um bruto. Batia na mãe, batia em todos nós.
Na verdade, eu nem queria casar. Queria ser livre, mas o meu marido foi
indo, foi indo, devagar me conquistou. Eu pedia a Deus, na nossa Igreja,
que é a mesma da irmã Safira, para me dar uma luz. E foi assim. Um dia
eu estava na porta de casa e batia o sol muito forte no meu rosto. Eu vi
que vinha alguém chegando e botei a mão assim, para proteger o olho

Tipo de rede usada geralmente na pesca esportiva, considerada pelas pescadoras


53

como extremamente nociva, pois captura tudo que encontra. É considerada uma rede
que traz muitos danos à preservação das espécies e está proibida por lei.
Capítulo 2 | Mulheres pescadoras 101

e ver: era ele chegando. Aí, eu pensei: está aí a luz que pedi. Vou tentar.
Hoje sou casada com ele, embora no começo não quisesse nada com ele,
que ele é um alemão, como visse. Sei lá. Eu achava que não ia dar certo.
Hoje eu tenho uma família. Agora, estou sem sair para pescar com ele
porque as crianças estão muito pequenas. Eu tenho uma menina de oito,
uma de seis e o meu filho menor de quatro anos. Se eu for com ele, tenho
que pagar alguém para ficar com eles e a pesca está dando muito pouco
para poder pagar alguém. Assim que eles estiverem maiorzinhos, volto a
ir com ele. Daí, eu participo nos cursos na Epagri. Faço parte do Projeto
Cambira, que é uma cooperativa que a gente formou. Eu gosto dessas
coisas. De ir, participar. É assim a minha vida.

2.1.12 Adriana

Meu nome é Adriana Gonzales Ludovino Zepelin. Me chamam


de Adriana mesmo. Tenho 22 anos. Meus pais moravam aqui. Como
aqui não tinha nada, não tinha um hospital, eu nasci no hospital de São
Francisco do Sul. Fiz o segundo grau completo. É assim: desde pequena
o pai ia pescar e eu queria ir junto. Eu tinha uns 7 anos, Por aí. Aí, a
mãe não deixava eu ir junto porque era muito frio, porque o pai só ia à
noite. Daí eu chorava. De vez em quando ela deixava eu ir. De vez em
quando só. Tinha o meu irmão também. Eu tinha sete, ele tinha seis.
Aí, eu comecei a ir junto com o pai, a mãe deixando, não deixando, e
assim foi indo. Fui crescendo, aprendendo cada vez mais e continuei
pescando. Eu estudava de manhã ou à tarde, depende o ano que estava,
e no outro horário, ia com o pai de noite, pescava quase todo dia.
Pescava na lagoa. Assim, com uns 10, 11 anos, eu ganhei uma rede do
meu pai, uma rede pequena. Aí o meu irmão54 começou a ir comigo.
O pai ia para um lado, e nós pro outro. Às vezes não dava certo. Eu
estava começando. A primeira vez que deu certo eu peguei um quilo
de camarão. Quando chegamos ali, o meu tio estava com vinte quilos
e nós, contentes com um quilo. Dai em diante foi dando certo, pela
idade da gente, a gente ficava feliz com o que tinha pegado. A gente
tinha uma baterinha55 também. Sempre eu e ele. Daí, a gente aprendeu

O irmão de Adriana continua pescando com o pai e também tem a própria rede e
54

embarcação. A mãe também pesca camarão com o marido, de aviãozinho, que é uma
armadilha para pesca noturna de camarão.
55
Adriana usou o diminutivo de batera, uma embarcação usada na pesca que tem o
formato de seu fundo achatado. Quando é de dimensão pequena, costumam chamar de
baterinha.
Mulheres e o mar 102

com o pai outro tipo de pescaria, que é o arrasto de camarão, mas na


água, andando na água, de noite, duas pessoas, eu e o meu irmão. Um
de cada lado. É a pesca de cambau. A gente só fazia isso quando o pai
tinha bastante encomenda de camarão. Quando a maré vaza, é hora
de colocar rede. Quando a maré está naquela maré de quarto, não dá
de colocar a rede porque a rede não fica certinha. A maré de quarto,
ela não enche nem vaza. Ela fica pra lá e pra cá e pra essa pesca não
dá porque o camarão entra na rede e sai. Os bambus ficam fincados
e com esta maré não fica certo. Isso é o que se chama de pesca de
camarão vivo. Quando eu tinha, tipo uns 16 anos, eu ia para a escola;
depois que eu vinha da aula é que eu ia, mas isso não era sempre. Só
quando a maré estava de quarto é que eu ia arrastar na água; e quando
a maré estava boa eu botava rede no barco, de estaqueio. Hoje a gente
faz qualquer tipo de pescaria, tarrafeia, coloca rede, peixe, tudo. Casei
com 20 anos. Foi assim: ele é de Pomerode. Veio para cá e ele tinha um
barco de turismo e eu sempre estava ali no rio, contando camarão e
lavando rede. Ele passava. O meu primo era ajudante dele porque no
barco de turismo tem que ter dois: o comandante e o ajudante. Daí,
foi indo. Começou a ir lá em casa, conversando com meu pai. Mas
era para me ver! Um dia ele pediu para namorar comigo. Fiquei com
vergonha. Ele passou a ir pescar comigo e com o meu irmão para ficar
perto de mim. Eu tinha muita vergonha porque eu nunca fui de ir para
a noite, sair. O meu negócio era pescar. Eu falei pra ele: Só se tu falar
com o meu pai. E ele falou. Quando eu estava noiva, comecei a ir de
ajudante no turismo com ele. Isso no verão. Depois, como eu sabia
pescar, a gente mandou fazer um barco de sete metros para o arrasto
do camarão. O nome do meu barco é Adriana. Nós dois escolhemos o
nome porque eu sempre quis ter um barco com o meu nome. Nós dois
temos carteira de pescador. A gente começou a pescar nós dois juntos,
no mar. Começamos a gostar, vendemos o camarão, o peixe. Até lá
para Pomerode vendemos. Ficamos só na pesca, na rede de camarão,
no caracol e no peixe. Mais ou menos a gente sai às cinco e meia da
manhã e a volta depende da produção. Entre uma hora, uma hora e
meia, por aí volta pra casa. Ele também gosta. Nós dois arrumamos
o barco: ele arruma o motor, eu pinto. Faço nome. Cada um faz uma
coisa. O trabalho da pesca tem que ser a dois. Cada pescador tem um
ponto, um território da pessoa, cada um tem o seu. É um ponto de
família. Passa de um para outro. Ninguém coloca ali na frente. Nessa
pesca de estaca. Também se chama de aviãozinho, daquela pesca que
tem lá em Laguna. São poucos que pescam assim no rio aqui, uns sete,
Capítulo 2 | Mulheres pescadoras 103

oito só. A vida na pesca, pra mim, é a liberdade. É ar livre, natureza,


coisa que muita gente não tem. Nem conhece o mar talvez. O pessoal
de firma fica o dia inteiro trancado.

2.1.13 Zica

Sou Elzi Maria da Silva Krieger, a Zica, tenho 51 anos. Vivo


aqui na praia do Paulas, que faz parte de São Francisco do Sul. Faço
tratamento médico direto porque tenho talassemia. Não é leucemia,
porque se fosse leucemia eu poderia fazer um transplante de medula. É
talassemia, uma doença herdada da genética, como se diz, que os negros
têm muito. Tenho que tomar remédio todo dia e, a cada seis meses, fazer
o controle com o médico. Na pesca, desde os 7, 8 anos, eu comecei a
pescar com o pai. Eu saía para pescar com ele. A mãe também pescava.
Eu estudei até o quarto ano. Hoje tenho um filho e uma filha. Os dois
não quiseram seguir a pesca. Eu já pesquei no espinhel, já pesquei com
rede, com tarrafa, com fisga, que é para pegar o peixe. É só à noite. É um
garfo grande que a gente fisga o peixe. Depois fui para o berbigão. Faz
32 anos que pesco berbigão. É a minha vida. Da casca faço um monte
de coisa: bonequinhos, cortinas, vasinhos. Aproveito tudo. Boto no
terreiro de casa. Eu pago a colônia e tenho a carteira de pesca. Fiquei
um tempo sem pescar. Fui trabalhar em outra coisa, mas voltei para a
pesca. Quando dá época boa, eu tiro uns trinta quilos de berbigão por
dia. Na época ruim, é uns oito quilos. [E a senhora gosta desta vida?].
Eu não conheço outra vida. Eu conheço mesmo, mesmo, só a pesca. Me
sinto útil trabalhando, mas eu te digo: para fazer aquilo, tem que gostar,
porque as vezes dói tudo: é mão, é braço. O que mais sofre é a coluna
pelo peso que a gente pega. A mão também sofre muito porque é um
movimento repetitivo. Não tem até aquela doença hoje? A LER. Então,
é disso: movimento repetitivo.

2.1.14 Paulina

Eu já pescava com 8 anos. Eu pescava junto com o meu pai.


E aí depois eu aprendi mais coisas. Aprendi tudo com ele. Desde nova.
Ele me ensinou a passar a rede em cerco para fazer o cerco para pegar o
peixe, tirar marisco. Tirava ostra. Lá onde a gente viveu não tem berbigão,
mas tem bacucu.56 Nós vendíamos saco de bacucu. Nós tirávamos,

Espécie de bivalve parecido com o berbigão, porém mais alongado.


56
Mulheres e o mar 104

descarnávamos e vendíamos. Sempre foi assim minha vida. Hoje eu pesco


baiacu. Baiacu, tudo. Eu pesco ostra. De tudo. Mas o mais que eu pesco
e do que eu vivo é o baiacu. Eu estou com 70 anos. Eu pesco faz 63 anos
porque comecei com oito anos de idade. Oito anos de idade! É bastante
tempo não é? Eu pesco baiacu hoje. Vou com meu filho. Ou com a minha
filha, quando ela está em casa. São os meus camaradas. A gente pesca
todo santo dia. Eu limpo porque tem que saber limpar o baiacu porque
ele tem um fel que é veneno. Se não souber tirar, mata. Mata até pessoa.
Pessoa, bicho, tudo. Ele mata. O fel é uma bolsinha que tem ali que tem
que saber tirar bem certinho. Então, eu limpo. Já deixo tudo limpinho,
pronto e todo sábado o pessoal vem pegar. Vem o pessoal lá de Curitiba
pegar para servir nos restaurantes, para fazer aquelas comidas de japonês.
[E a senhora gosta da vida da pesca?] Eu gosto de pescar. [É verdade que
a senhora fica doente se não vai pescar?] Chego a ficar doente quando
não vou. Pego a cama. É saúde o mar né? [Por quê?] Em casa tem muitas
coisas. Diversas coisas. Trabalho sim, mas também os problemas. A gente
faz os deveres de casa também, mas só que no mar é mais divertido.
A gente vê a natureza. A gente se alegra até com a natureza. Mas tem que
levar repelente por causa do mosquito. Óleo não adianta. Ele não registra.
Tem que ser repelente. Eu mesmo tenho que ir todo dia. Não adianta dizer
que não. Eu tenho que ir. [Quantas horas por dia a senhora fica no mar?]
Às vezes nós saímos às sete horas. Conforme a maré, nós saímos: sete
horas; oito horas; dez horas. Depende de como está a maré. Viemos às
cinco horas. Tem vezes que viemos nove horas da noite, quando a maré
seca que não dá de acostar. O perigo da maré seca é bater nas coroas.
[O que é a coroa?] São os bancos de areia e pedra, que a gente não vê. E
aqui nessa região tem muito. Às vezes, quando vê, já está em cima. E só
vamos com pão e café. Só, porque não dá de levar salgado para o mar
porque azeda. É só pão e café. Levo ali um pote de margarina com pão e
é isso. [Não cansa a senhora?] Não, a gente se acostumou naquele ritmo.
O corpo já está acostumado. É desde muito nova que começou. Não cansa.
A gente já está acostumada. Já se acostumou no ritmo. Daí não cansa. O
corpo já se acostumou naquilo. [Tem mais alguma coisa que a senhora
quer me contar?]. Não. Não sou de falar muito. E já falei bastante até.
[E qual o seu nome completo?]. Paulina de Oliveira. Tenho 70 anos. Deu?

2.1.15 Iliete

Eu sou casada com Raul da Silveira. Ele está com 54 anos. Nós
temos cinco filhos. Marta, de 30 anos; Marcos, de 29; Marceli, de 28;
Capítulo 2 | Mulheres pescadoras 105

Maicom, de 27; Eduarda, de 12. Temos um neto, com dois anos. Eu


tenho carteira de pescadora. Tenho duas embarcações no meu nome e
uma no nome do meu marido. O grande passo na nossa vida foi que eu
tive coragem. Quem teve coragem de fazer empréstimo primeiro fui eu
porque ele tinha medo de não conseguir pagar. Aí eu resolvi tentar e deu
certo. Tem esse do Pronaf, que é bom; é 3% ao ano. É o juro e o valor
do capital. Em uma embarcação de 20 mil reais, estamos pagando 3.200
ao ano, para seis anos. A primeira vez que fui foi difícil porque eles não
queriam fazer para mulher. Eles alegavam que mulher não pesca. Como
ela vai pagar? Isso faz oito anos. Naquela época se fazia só em grupos de
cinco. Tinha três homens e duas mulheres. Daí os homens falaram que
se responsabilizavam pelas mulheres. Depois de algum tempo vieram na
Colônia de Pesca e perguntaram se as mulheres estavam ali, pois era o
único grupo que estava em dia. Esse empréstimo foi o ponto de partida
porque a gente trabalhava para os outros. Hoje trabalha pra nós. Estudei
até a quarta série. O Raul não teve estudo. Quando fomos para a Barra,
fomos para embarcação a motor. Conheci ele com 13 anos; com 15 fui
morar com ele; com 16 tive a mais velha. Quando casei, passei a pescar
com ele. Nós criamos os filhos tudo pescando junto. Eu deixava uma
menina cuidando deles e ia. Com o remo, era rede de fundeio. Deixava
à tarde e ia ver de manhã. Ou de manhã e ia ver à tarde. A motor é rede
de caceio. A gente solta com as águas e deixa. Fica mais ou menos uma
hora, uma hora e meia. Daí, começa a recolher a rede. A nossa pesca
é mais ou menos assim: janeiro e fevereiro, malha sete, pescadinha e
bembeca; agora (julho) é época da cavala, já é outra rede, de malha dez.
No final do ano dá mais a salteira, a corvina. De acordo com a pesca, é
o tipo de rede. Os nossos filhos, os dois meninos seguiram a pesca. As
nossas duas filhas mais velhas caçaram as carteira, a Colônia. Teríamos
que ter mais apoio da Colônia. Por que tem algumas no estado que
funcionam e outras não?

2.1.16 Adriana

A minha história é assim: o meu nome é Adriana Meneghetti


Martins. Tenho 37 anos. Trabalho na pesca há 17 anos. Eu tirava férias
em Itapoá como turista. Aí conheci o meu esposo, Luis Martins, filho
de pescador, que está com 35 anos. Filho de pescador, neto de pescador,
pescador é! Sou natural de Anchieta, divisa com Argentina, perto de
Barracão. Eu era oficial jurídica. Aí, larguei toda a minha vida. Nós
casamos um mês depois que vim para cá. Comecei a pescar. Tenho a
Mulheres e o mar 106

carteira de pescadora. Nós temos duas embarcações. Uma para o camarão


sete-barbas, se chama Vilma 1. É o nome da minha mãe; e Esperança, que
é para o peixe, robalo, cavala, prejarica, sargo. Eu te digo que pescador
é do mesmo barro que é feito. Não se cria o pescador. Se é pescador! Se
ficar um dia sem ver o mar, é uma tragédia. Então não tinha escolha: fui
pescar com ele, e hoje eu também sou assim. A gente tem que acordar e
ir para o mar. Se não vai, a sensação é de que está faltando alguma coisa.
Quando volta, a sensação é do dever cumprido. A gente não sabe onde
começa o mar e onde começa o pescador. É uma coisa só. Não tem lógica.
Hoje, eu consigo sentir onde está o cardume do peixe ou do camarão. Tem
coisa que não é para ser explicada: essa é uma delas. Nós trabalhamos
com arrasto de camarão e com peixe. Tem dias que a gente fica 16 horas.
É o arrasto de sete-barbas. Isso porque tem duas enchentes de maré. Você
tem que acertar. Às vezes está dando. Às vezes dá duas vezes; às vezes não
dá. Então, você persiste. Pescaria não é só uma questão de sorte. É uma
questão de persistência também. Quando a gente não está pescando, a
gente chega a ir ver o mar umas dez vezes ao dia: tem que ver como está
a maré, como está a coloração da água, se passa algum cardume; se a cor
do morro diz se vem tempo ruim. É Assim mesmo. Agora estamos na
manutenção da caixa do barco. Em termos de administração, são os dois
que combinam. Pescaria é sintonia. É um no chumbo, um na rede; ou um
em cada rede. Assim é na vida. Dentro do mar, e fora do mar, pois nós
dois temos uma profissão única. Os dois trabalham na mesma coisa. A
atividade é sempre estar colado. Na pesca, o corpo sente. Para mim é as
mãos, mas não é só as mãos porque a caixa de gelo pesa 25 quilos; a de
camarão também. Então é braços, é pernas, é equilíbrio, é saber ranger os
dentes na hora que ergue as caixas porque se eu estiver falando, minhas
costas já era. Então tem que abaixar os joelhos, ranger os dentes, fechando
a mandíbula. Aí, você ergue a caixa de produtos. Eu lembro que, quando
comecei a pescar, eu me sentia atropelada por um trem, ou melhor, por
um bitrem. E mais: tudo isso em movimento, que o mar não para pra
gente levantar isso; pegar aquilo. É pegando peso, em movimento. No
mar, se o vento for nordeste, que é o nosso caso aqui, o que mais pega de
frente, vai nos jogar para todos os lados. E tem mais, quando a gente volta
do mar, o corpo todo balança. Se vai tomar um banho, o corpo balança, a
cabeça balança, o chuveiro fica pra lá e pra cá. Você fica assim por algum
tempo. E a gente não tem escolha. Tem que aguentar. No ritmo do ano,
tem dias que pegamos camarão, tem dias que pegamos peixe. Vai no que
está dando. Não tem um ritmo único. Às vezes isso é quase como boato.
Se espalhar, um vai e pega, conta. Os outros vão para ver se pegam. Não
Capítulo 2 | Mulheres pescadoras 107

tem os pescadores que pescam por esporte? Eles não tiram foto com
aquele peixe grande como se fosse um troféu? Assim somos nós. Quando
pegamos um cardume grande, fazemos um bom cerco, aquele é o nosso
troféu. E tem outra coisa: pescador pode falar mal de pescador; quem é
de fora não pode. Não é assim nas nossas famílias? Experimenta falar mal
de um, para ver se todos não vão defender. Sobre a vaidade, eu acho que
é fácil como outra profissão, desde a hora que a pescadora não diminua a
sua profissão. Eu me pinto, passo batom, uso brinco porque eu gosto. Eu
sou assim. Não é porque estou escolhendo um camarão, que tenho que
ter cabelo sujo; não é porque sou pescadora, que vou ganhar menos. Você
pode ganhar tanto quanto outra profissão. A gente pensa em investir cada
vez mais na pesca, nós dois. Não importa mais para nós o mundo lá fora,
buscar outro tipo de profissão; não nos interessa mais. Por isso, o nosso
interesse em preservar o ambiente para termos esta profissão por mais
tempo. A pesca para nós não é uma obrigação. É um prazer. Mas está
diminuindo. Não se pode negar. Está diminuindo cada vez mais, e não
é culpa nossa porque quem faz uma toalhinha de crochê não vai acabar
com a linha do mundo. É a indústria que está acabando com a pesca. A
traineira. E o governo incentiva mais a pesca industrial do que a artesanal.

2.1.17 Tereza

Meu nome é Terezinha Aparecida Cardoso, mas me chamam de


Tereza. Moro aqui em Laguna. Tenho 45 anos. Eu não nasci aqui. Nasci
em Tubarão. Vim para cá, devia ter na faixa dos cinco, seis anos de idade.
A gente veio antes da enchente. Depois, na época da enchente, fugimos
para Tubarão porque aqui, com a enchente, juntou mar e lagoa. Encheu
tudo. Lá em Tubarão a casa era no alto. Depois voltamos para cá e comecei
na pesca. Na pesca é assim: eu aprendi com meu pai. Começou o meu pai
com minha mãe. Depois, fui eu. Depois a minha irmã. Não tinha opção.
Era: fulano, vamos; sicrano, vamos! Era com qualquer tempo: sol, vento,
chuva, frio. Às vezes, eu ia com raiva porque eu não queria ir. Era de
madrugada. Queria ficar dormindo na cama quentinha. Apanhava para
ir. Na verdade, nós criamos os nossos irmãos porque não dava tempo de
estudar. Então, como se diz, tinha que sacrificar alguém. Uns estudaram,
só os mais novos. E nós não. Estudei só até a quarta série; depois não deu
mais porque era o dia todo na pesca, porque não era só ir pescar. Ia pescar
e, quando voltava, tinha que arrumar a isca, o espinhel, tudo. O meu pai
era agressivo, duro. A gente queria brincar, mas quando chegava do mar
tinha que arrumar as coisas. Com 10 anos se quer brincar, não é mesmo?
Mulheres e o mar 108

A minha irmã não. Ela pescava porque gostava mesmo. Ela era diferente
de mim: ela gostava! Desde o começo foi assim. Até hoje ela pesca,57 mas
está na casa da filha que vai ter um filho. É o primeiro neto dela. Voltando
à minha história: então fiquei adulta. Sou mãe solteira. Sou mãe solteira
dos meus três filhos. Os filhos dependiam de mim. Daí, eu trabalhava
de dia e de noite para criar eles. Tenho uma filha, com 23 anos, um filho
com 19 anos e um filho com 15 anos. A de 23 e o de 19 já se formaram;
eles terminaram o segundo grau. O mais novo está estudando. A de 23
é secretária de um consultório de dentista. O filho trabalha naquela loja
de chuveiro. A minha filha pescava, botava a rede, pescava siri enquanto
estudava. O meu filho também sabe tudo, mas teve osteomielite. Hoje
ele tem uma diferença nas pernas. Então é perigoso para ele devido à
friagem, à umidade. E porque a pesca está muito difícil. Cada um hoje
tem o seu trabalho, e o de 15 só estuda. Da pesca eu tirei tudo: o estudo, o
alimento deles. Esta casa eu não tinha. Na verdade, um tênis, eu não podia
comprar. Andei anos só de chinelo; com a mesma roupa anos seguidos
porque se quisesse comprar um tênis ou uma peça de roupa não tinha
para o pão, para o leite, para o estudo deles, para a passagem de ônibus
que sempre foi muito cara. E isso era o principal porque era para os meus
filhos. Eu era e sou responsável por eles. Como hoje. Eu vivo na e da pesca
até hoje. Quando eles nasceram eu morava em um ranchinho que era
duas peças. Numa peça fiz uma cozinha, no outro um quarto. A luz era
de liquinho. Água: era de balde. O rancho era todo furado. Botava uns
panos. Era assim. Não posso ter vergonha de contar porque foi isso o que
passei. Construí essa casinha há três anos e continuo pescando, pescando.
Tem gente que acha a pesca fácil, mas não. A gente envelhece muito, pega
muito tempo ruim. Mas era por necessidade que a gente começou. Não
tinha opção. Tinha que ir e pronto. Agora, menstruada eu não vou não.
Me poupo. Grávida eu ia até o último minuto. Só parava na quarentena.
Nunca fiz um pré-natal de um filho. O preço do ônibus sempre foi muito
caro. Se tirasse 15 reais na lagoa, tinha que pagar dez de ônibus. Então,
nunca fiz. Ainda bem que nasceram todos saudáveis. É assim na pesca: o
corpo sofre muito. Uma porque a gente se relaxa com a gente mesmo. É
como se o tempo passasse mais rápido para a gente do mar: tem muito sol,
a água salgada, o vento, o salitre. Já começa, olha pelo cabelo: o sol e o sal

Na localidade que vive Tereza, Canto da Lagoa – que é chamada de Ilha pela
57

população local porque a chegada via Laguna é por balsa – existem mais mulheres que
pescam com seus maridos, mas que, segundo Tereza, não é por necessidade: Tereza;
Cida (irmã de Tereza); Ivonete; Ivonete M.; Nilda; Glória; Fátima.
Capítulo 2 | Mulheres pescadoras 109

já toma conta. Parece que não adianta passar um creme. A pele já é mais
dura, ressecada, grossa. Diferente de uma mulher da cidade. A mulher
pescadora adoece mais rápido do que as outras. É artrose. É dor na coluna.
Ataca mais a parte dos ossos porque a gente pega muita friagem, muita
umidade. A minha mãe está com 72 anos. De tanto que pescou, perdeu os
rins. Hoje ela vive de hemodiálise. De tanta friagem deu uma infecção e
demorou muito para conseguir médico. Pelo SUS leva muito tempo, um
ano, mais. Hoje ela tem as pernas atrofiadas e vive de hemodiálise. Põe aí
no teu trabalho para ver se chega ao governo e para eles saberem que nós
precisamos disso: mais assistência na saúde. Um plano de saúde para a
mulher pescadora. Mais assistência e linha de crédito adequada para as
nossas condições e porque a gente precisa muito. Menos burocracia para
a aposentadoria, para conseguir se encostar quando estiver doente. Mais
fiscalização. E fiscalização honesta. Põe no teu trabalho. E eles não vão
poder dizer que é mentira porque tu filmasse, tirasse foto, falasse com a
gente. Não é só um trabalho escrito. A filmagem prova que é de verdade
que estivesse aqui e que falamos contigo. Quanto mais falar de nós, mais
vão ver que nós existimos, que trabalhamos na pesca. Tu perguntas se
eu hoje gosto da pesca? Eu gosto. Hoje eu não vivo sem a pesca. Hoje é a
minha vida. Antes eu tinha aquela obrigação. Hoje eu gosto. Se alguém
me oferecesse outro serviço, eu não aceitaria. De jeito nenhum! Eu me
sinto viva. A vida da pesca me dá uma sensação boa. Estar na lagoa. Ver
a natureza que Deus fez. Eu me sinto viva! Viva! É isso. Não sei se falei
dentro, como é que se diz, da tua expectativa, mas é isso que eu tinha para
te falar.

2.2 Um mergulho mais profundo: Naca e Mãezinha

2.2.1 Eu sou Naca: uma pescadora de verdade

Eu me chamo Naca porque quando nós éramos crianças tinha a


minha prima que era a Moca. Daí, eles deram o apelido de Naca. Daí era
a Naca, a Moca e a Nica, que é uma irmã minha. Quem naquela época
não tinha apelido? A minha outra irmã, Maria, é a única que não tem
apelido. A gente chama ela de Mana.58 Todo mundo chama de Mana.
O meu nome mesmo é Nair, eu estou hoje com 62 anos de idade.

58
Embora dona Naca não considere, a forma de chamar a irmã, Mana, não deixa de ser
um apelido.
Mulheres e o mar 110

Naquela época nós só saía com o pai e a mãe. Quando tinha festa de São
Pedro, a mãe comprava roupa pra mim, mas tinha que ser tudo igual, eu
e a Nica, as duas iguaizinhas, como gêmeas: de saia plissada ou vestido
de florzinha. A minha mãe era costureira. Naquela época era assim: se
comprasse para a Nair, tinha que comprar para a Geni. As duas eram
quase do mesmo tamanho, tinham que ir pra baixo com roupinha igual.
Eu nunca fui presepeira. Olha, aquilo ali foi me dando uma coisa ruim
porque eu me acostumei na pesca. [E com quem a senhora aprendeu
a pescar?] Com meu pai. [E como foi?] Desde 8 anos eu já tarrafeava.
Eu já fazia rede e tarrafeava com 8 anos, eu. Oito; 9 anos. A minha mãe
botava as roupas do pai em mim porque naquela época não tinha roupa
para eu pescar. Eu era muito magrinha. Eu era a filha mais velha e,
naquela miséria, tinha que ir, tinha que fazer. Eu fui criada lá naquele
mato vestindo as calças do meu pai para poder ir pro mar. Já pensasse?
Com uma corda amarrada na cintura! Eu só vesti vestido para casar e
depois eu dei de presente. [Uma das filhas, que está junto no rancho de
pesca, pede: “mas a senhora não contou que, depois desses anos todos,
usou saia; ou vestido? Conta! Foi em São Paulo, na formatura da Isabel,
que eles fizeram a mãe colocar e eu não vi”.] Ah, foi. Me botaram uma
saia por aqui (altura dos joelhos) com um blazer e ficou por lá mesmo.
Eu não saí de dentro do salão. Um sapatinho meio alto. Fiquei ali dura
que nem uma estátua, eles convidavam para ir, eu tinha que ir pela mão
porque eu não sei andar de saia. [A filha: “quando eles falaram pra mim
que eles foram nessa festa lá na faculdade, eu não acreditei. Era o meu
sonho ver a mãe de saia ou de vestido; 41 anos eu tenho. Nunca vi a mãe,
nem de saia, nem de vestido”.] Não! Levei o meu filho no casamento
na igreja, fui de terninho, mandei fazer. Fui à formatura da Lucinha,
Pedagogia. Fui assim. Estou com dois sapatos novos. Um do casamento e
um da formatura. O do casamento do filhinho, encarunchou, botei fora.
Eu não uso; eu não uso salto. Pra mim, é tênis ou rasteira. Eu não sei
andar de salto, nem dançar, nada. Não dá. Eu já me acostumei. A minha
vida é isso. [Há quantos anos?] É só 49 anos! Eu tarrafeava tanto, tanto!
Chegou vez de eu ter oito tarrafas. O meu marido vendeu tudo, de tanto
que eu andava dentro da água. Era anoitecer, eu já corria pra praia. E de
manhãzinha, estava o dia clareando, eu pegava a tarrafa e ia pra praia
porque a gente morava ali, onde eu me criei, casei. Depois é que fui morar
lá onde moro. Ele vendeu as tarrafas todas. Levou para Florianópolis e
vendeu. [A filha: “e quantas vezes nós chorava porque queria ir junto com
a mãe pescar e a mãe não deixava. Aí ficava correndo pelas pedras, indo
atrás dela pelo mar. Nós chorava um monte. Desesperados. Parece que a
Capítulo 2 | Mulheres pescadoras 111

mãe ia para o mar e não ia voltar mais”.] Eu saía correndo e deixava eles.
Pequenininhos. Esse aqui foi criado lá naquela casa de cima. Ele foi pra
lá com 6 anos. E dali, eu tinha a minha batera a remo, porque toda vida
pesquei a remo. Eu puxava lá na praia da cruz. E eu me escondia quando
ia ver rede de manhã. Daí, eu saía escondida, ele dava falta. “Onde é que
tá a mãe? Onde é que tá a mãe?” Aquele não era a verdadeira sombra não,
ele era um carrapato. Aquilo era uma tristeza. Ele já começava a chorar:
“eu quero ir com a mãe; eu quero ir com a mãe”. Aí ele já sentava no meio
da estrada, que era de barro, e ficava chorando. Às vezes, eu chegava na
praia, botava a estiva, levava a batera rápido pra água. Quando eu tava
embarcando na batera ele chegava de corrida: “oh mãe, eu quero ir com
a mãe. Deixa eu ir”. Eu dizia: “Vai pra casa. Vai pra casa senão quando
eu chegar tu vás apanhar”. Dava até pena, sabe, porque eu ia na batera. A
gente rema com a frente pra praia. Eu dizia: “vai pra casa, vai”. Ele ficava
lá chorando. Porque demorou ir os cinco para o colégio. A Naizinha, a
Lucinha e o Beto, eles andaram na escola porque a diferença é de um ano
e meio cada um. Então os três estavam na aula e os outros dois em casa.
Quando eles estavam em casa, a Lucinha cuidava do Neco; mas quando
eles não estavam, era a minha preocupação. Por exemplo, eu saía de
manhã, o meu marido vinha pra baixo, esquecia, ia para o bar e ficava
no bar. Bebendo pinga. E eu preocupada. Mas, às vezes, eu chegava, ele
estava lá no terreiro brincando. Brincava. Era aquela pobreza. A minha
casa nem janela tinha. Era um buraco, não tinha nem como fechar. Era
com um saco. Um saco de estopa que eu botava. Eu, nós, somos tudo
rico hoje. Cruze! Bota riqueza nisso! Aquilo era trabalho. Tristeza! Mas
era bom. Eu tinha saúde. Eu tinha uma disposição que eu subia e descia
aquele morro correndo, aquele morro ali da praia da Cruz. Precisava ir
à praia, eu já descia correndo. E já subia correndo lá em casa. Até hoje,
se eu quiser fazer, eu faço. Não muito, mas eu ainda tento fazer alguma
coisa hoje. Mas era bom, bom demais, porque quando a gente é nova é
bom demais. Graças a Deus ainda continuo. No meio disso, eu fui pra
São Paulo, vim pr’aqui. Depois fui pra Navegantes. Depois que o meu
marido morreu, eu fui pra Navegantes, em 85. Depois voltei pra cá e
aqui vou ficar até morrer. Gosto de pescar. Só que no inverno é meio
difícil. É duro no inverno. É fogo! Muito frio! A idade que a gente tá já
não anima mais. Vontade de sete horas tá debaixo do cobertor. No sol,
eu estou com uma disposição que já saio. Agora, no tempo ruim. Ih,
fico encolhida, com dor no joelho, dor nas costas, dor nos rins, dor na
coluna. Já estou com frio porque eu sou muito frienta demais. Eu sou
frienta demais! Com 20 anos eu tinha três filhos. Eu era tão gelada, tão
Mulheres e o mar 112

gelada. Bem, eu vivia o dia inteiro no mar. Então é assim: eu sou Naca.
Sou uma pescadora de verdade!

2.2.2 Até a minha batera tem esse nome: Mãezinha59

Sou conhecida como Mãezinha. Meu nome é Maria da Graça


Araújo Castilho; tenho 49 anos e pesco desde os 14 anos. Idade de 8
anos eu já andava pegando marisco, caranguejo. Adoro a vida no mar.
Quero morrer nela. Primeiro nós tínhamos o engenho. Vou começar lá
do engenho de farinha do meu pai. Com 12 anos eu comecei a raspar
mandioca, passar na máquina para moer a mandioca. Nós enchíamos
os balaios de massa dentro e botava na prensa. Tudo na mão. Depois
enxugava bem a massa. Botava dentro, num fogo. Acendia o forno para
nós fazer a farinha. Daí, quando não tinha mandioca para fazer nós
íamos pescar. Eu aprendi com o meu pai lá na praia do Forte. Ia eu, o
meu pai, o meu irmão. Em três irmãos nós íamos. Tinha dia que fazia
alguma coisa; tinha dia que não fazia. E a minha mãe fazia muita coisa
de beiju. Eu pegava a bicicleta. Naquele tempo dois beijus eram cinquenta
centavos, vamos supor. Então eu enchia. Botava vinte, trinta, quarenta
em uma caixinha e saía a vender. Quando chegava o final da tarde, nós
éramos obrigadas a estar com aquele dinheiro na mão para comprar o
arroz, o açúcar, o café. E meu pai gostava muito de fumar. Quando não
tinha dinheiro para comprar o cigarro pra ele, ele ficava variado. Ele
chegava a bater até em nós por causa da vontade do cigarro. Aquele
dinheiro tinha que ser sagrado pra comprar o cigarro pra ele. E a nossa
vida foi assim. Depois, nós vendemos o engenho. Fomos para o baiacu.
Matar baiacu. Eu limpava duzentos, trezentos quilos de baiacu por dia.
Depois do baiacu, nós viramos para o peixe. E assim foi a nossa vida.
Depois o pai arrumou uma peixaria lá na praia, pesca de tainha: no
Forte. Aí, no Forte. Todo dia, meio-dia, com 15, 14 anos, eu era obrigada
a levar a comida pra ele lá no Forte. Tinha dia que a maré estava seca.
Dava de passar no rio. E tinha dia que não dava de passar. A água era
pelo peito, pelo pescoço. Nós éramos obrigadas a atravessar o rio para

59
Na praia do Capri, em São Francisco do Sul, quatro irmãs de Mãezinha e uma de
suas filhas participavam anualmente da pesca da tainha em um grupo que reunia cinco
mulheres e cinco homens. São elas Crescência (Quecha), Gilmara, Zenite (Zique), Gilmara
e Jaque, segundo me relatou Zenite Araújo da Silva, 48 anos, que começou a pescar com
12 anos, segundo suas palavras: comecei a jogar rede com o pai. Nessa pesca da tainha faz
muitos anos que estamos que nem lembro quanto. Saímos às cinco, cinco e meia da manhã
e voltamos às seis, seis e pouco da tarde. Ficamos mais ou menos umas sete horas.
Capítulo 2 | Mulheres pescadoras 113

levar a comida pra ele, mas tudo era gostoso porque a gente fazia com
amor e com carinho pra levar as coisas para o meu pai e o meu pai era
tudo na vida que eu tinha. Depois que ele morreu, eu sinto muita
saudade dele (emoção; lágrimas; pausa). É isso aí. [Ele era o seu
companheiro de pesca.] Ele era o meu companheiro. Tudo aprendi com
ele, com a minha mãe e com os meus irmãos. E agradeço a educação que
ele deu para nós. Nós éramos 13 irmãos. Todos os 13 irmãos eram
educados. E Deus o livre se saísse fora do sério, porque ele brigava com
nós. Eu aprendi muitas coisas com ele. [E a vida da pesca foi tudo direto
com ele?] A vida da pesca foi tudo com ele, desde o engenho à pescaria
foi com ele, e é essa vida que eu estou levando agora. Graças a Deus, a
vida que ele deu pra mim e para os meus irmãos foi uma vida boa
demais. Até hoje, agradeço a educação que ele deu pra nós: foi o meu
pai. E a nossa família está tudo desunida. Não sei por quê. Algum motivo
tem. Está tudo desunida. É isso que eu tenho que falar. Hoje eu moro
aqui no Iperoba. Eu era muito chegada ao meu pai, era a camarada dele
na pesca. Eu mesmo me emociono muito quando falo do meu pai. Eu
tive depressão quando ele morreu. Na época a gente pescava camarão de
tarrafa, camarão de picaré. Um pega lá, outro cá e vai puxando pela
lama. A gente também tinha um engenho de farinha. Eu já pesquei
parati, tainha. Eu defumava e vendia. No verão eu também trabalho na
peixaria descascando camarão e limpando peixe. Hoje o que eu pesco
mais é o parati. No inverno, maio e junho é tempo de tainha. Depois, a
tainha se acaba. É o tempo do parati. Novembro e dezembro é tempo de
camarão aqui no nosso mar. Aqui é o camarão ferrinho. Caranguejo
também é novembro e dezembro. A melhor época é no verão. Se vender
em casa, se ganha o dobro. Está escasso para nós. Então a gente vai para
o berbigão ou defumo o peixe. Nós éramos 13 irmãos, um falecido. Não
tinha que querer. Todos os filhos tinham que trabalhar. Depois, as mais
novas é que foi ficando mais leve. Tinha que cortar lenha, fazer comida.
E assim, pela pesca, sempre me interessei. E vou me interessar até o fim
da minha vida. Eu sou casada há 32 anos com o Eleomar. É Eleomar
Dias Castilho. Ele está com 58 anos. Eu casei com 18, ele com 24. Ele
trabalha na Prefeitura. Eu quero mostrar o exemplo que minha mãe deu
para meu pai para mostrar para meus filhos e meus netos. Tudo o que
acontecer ficar junto até o fim dos dias. Não é casar e separar. A pesca é
obrigatória para a nossa sobrevivência e eu comecei cedo. Minha
especialidade, como se diz, é fazer a cambira, que é uma técnica de fazer
o peixe. A gente lava bem o peixe. É cortada a cabeça, abre o peixe pelas
costas até a barriga. Põe a faca por baixo da espinha para separar a
Mulheres e o mar 114

espinha da carne. Lanha tudo. Tira o preto. Coloca em uma caixa


plástica e salga. Deixa ali por uns 15 minutos. Dali, pego e levo no
fumeiro; estendo tudo e boto o fogo embaixo. Com o calor do fogo, o
peixe vai secando, vai enxugando e ficando amarelinho. Isso leva umas
cinco, seis horas. Quando é época de bastante, é de uns duzentos a
quatrocentos quilos. Hoje eu tenho cinco filhas casadas. Elas pescam
comigo no intervalo do trabalho delas, mas não querem seguir essa
profissão. “É muito trabalho e pouco retorno financeiro”, intervém uma
de suas filhas que está ouvindo, ao que Mãezinha continua: Dá trabalho,
mas eu faço porque amo. Eu amo tudo que é da pesca, camarão, peixe,
defumar, tudo. As pescarias aqui têm quatro tipos de pescaria: o calado.
É redondo, fecha a rede. Depois entra dentro e bate com o remo. O
puxado: quando a maré está seca, nós jogamos cinquenta braças de
cabo. Saímos pra fora. Um fica em terra com o cabo na mão. Nós saímos
para fora. Quando termina o cabo, jogamos o calão até na outra ponta
da praia. Chegamos com a outra ponta do cabo. Fica um puxando para
a terra e o outro arrumando a canoa. O trolhado: nós damos o lanço,
fechamos a rede. Depois, amarramos um calão no banco da canoa e
depois pegamos a outra ponta. O peixe fica num saco. O cerco: espiamos
o peixe à noite com a maré cheia. Saltou dentro no mangue, entramos lá
dentro, jogamos o calão. Saímos por fora rodeando o mato. Vai umas
250 braças de rede. Depois, entramos no mangue com a outra ponta do
calão. Depois, caímos na água; pegamos a vara. De dois em dois metros
fincamos as varas. Levantamos a cortiça. Quando a maré seca, os peixes
vão saindo do mangue e ficam presos. Juntamos tudo. Quando a maré
enche, pegamos as redes. O cerco é muito sofrido, principalmente
ocasião de lua; o mosquito é demais. Mata a gente. Hoje é muito difícil
fazer esse cerco porque é muito sofrido, muito trabalhoso. Mas eu tenho
orgulho de ser pescadora e levar a vida que eu levo e mais tarde, os meus
netos vão dizer: a minha avó foi pescadora. Todos perguntam pra minha
neta: quem é a tua mãe? Quem é a tua avó? Minha avó é a Mãezinha, ela
é pescadora. Eu tenho orgulho dela dizer que eu sou pescadora. Os
homens aqui tudo gostam de pescar comigo porque eu sei puxar uma
rede, sei dar um lanço, sei botar uma rede. Sei tudo na vida. E eu queria
que um neto, uma neta minha fosse igual a eu, mas até a ora não teve pra
isso. Tem dia que leva coisa pra casa; tem dia que não leva nada. A vida
da gente é muito difícil no mar. Tanto faz dia de inverno que é dia de
chuva, e tanto o dia de sol. Sol é uma coisa que queima a gente e dá
muita sede; e dia de chuva, a gente se molha um bocadinho, já começa a
tremer de frio. Até a capa que a gente traz, às vezes, molha. Então é
Capítulo 2 | Mulheres pescadoras 115

assim a vida de um pescador. E quem bater no peito que é pescador


mesmo. Eu digo: sim! Porque a vida que é melhor é a vida da pesca. E eu
estou muito orgulhosa de estar aqui contigo. Estou mesmo: muito
orgulhosa de estar aqui contigo fazendo esta passagem contigo aqui
porque hoje eu possa estar viva. Ano que vem, não sei. Quando tu
terminar este CD, essa gravação,60 eu quero que tu traga pra mim que eu
quero mais tarde, botar e mostrar para os meus netos para eles ver como
que a avó deles era. E estou muito feliz! [E por que Mãezinha?] A minha
história de Mãezinha é assim: além de pescar com o meu pai, eu cuidava
dos meus irmãos para a mãe ir para a roça. Os meus irmãos começaram
a me chamar de Mãezinha e ficou até hoje. Até a minha batera tem esse
nome: Mãezinha. Quando comprei ela, todos diziam que ela era muito
louca. Ninguém gostava de andar na batera. Aí eu botei o nome da
batera de Mãezinha. Não vendo por dinheiro nenhum. Aquela batera
pra mim, é tudo na vida que eu tenho. Eu botava 12 sacos de berbigão
nela. Minha filha deitada em cima. Mais que umas duas, três remadas.
Ela é igual um motor de popa de tão boa que ela é. O nome dela é
Mãezinha, o meu apelido! E eu adoro essa batera.

2.3 Então, eu mergulhei um pouco mais: Safira,


Patrícia, a irmã, e Luísa, a mãe

2.3.1 A Safira

Eu sou casada com Enézio de Souza, que também é pescador.


Quando eu tinha 18 anos, fomos viver juntos. Daí, eu comecei a
ensinar ele a ser pescador. Eu não tinha noção de que estava ensinando.
Parecia que eu estava aprendendo na questão emocional. Parece que
foi aprendido junto porque eu estava vivendo uma experiência a dois.
Voltando àquele assunto de que te falei outro dia de aprender a
paciência. Queira ou não, ele aprendeu comigo, mas lá atrás eu não
tinha noção nenhuma de que isso estava acontecendo. É muito forte
em mim a noção de que eu não tenho a ensinar. A gente só tem a
aprender. Mas quando a gente vê já ficou lá atrás o que a gente deixou
de fundamento. A gente saía junto. Ele trocou uma moto por um

Mãezinha se refere à cópia das fotos e filmagens que eu ia fazendo à medida que
60

o trabalho de campo seguia. Ao terminar o trabalho, entreguei para cada uma das
pescadoras cópia em DVD e impressa.
Mulheres e o mar 116

motor, comprou um casco de lancha e uma rede, e a mãe deu outra


rede pra nós começar. Nós passávamos o dia no mar. Botava as redes e
ia fazer pesca submarina caçando lagosta, garoupa e tirando marisco
no mergulho. Isso foi por uns cinco anos. Daí nasceu nossa filha,
Aline. Falando de mim, eu fui com 4 anos para a Ilha dos Remédios.
Faz seis anos que estou aqui nessa casa direto. Vivi na ilha 24 anos.
Essa casa que tem lá na ilha é um fruto do passado. O pai com a mãe
era 18 anos de diferença. O pai era alcoólatra. Tinha problema com o
álcool. O pai era daqui, a mãe do Paraná. Ele ia pescar lá e se
conheceram. O pai roubou a mãe e foi preso. Dormiu umas duas noites
na cadeia. Ele adoeceu, sempre teve problema de fígado. Essa tia que
me adotou era irmã dele. Soube que nós estávamos passando
dificuldade e foi lá. Arrumou pra nós vir morar de favor no galpão da
igreja católica aqui em Barra do Sul. Nenhum de nós tinha registro.
Éramos quatro filhos nessa época. A Patrícia era bebê, os dois outros
eram meninos. Quem sabe a tia adotou eu por eu ser menina, ela ficou
comigo. Precisava colocar na escola. Como colocar na escola sem
registro? Tinha que registrar. Então me registrou lá mesmo em
Curitiba. Então, eu sou filha de Luiza Castanho Correia e de Jetel
Mendes, mas no registro de nascimento está o nome de minha tia,
Eulália Mendes, como minha mãe, porque ela me registrou. Ela vinha
uma vez por mês para pagar algumas contas. Eu vinha junto. E a
vontade de ficar? Até que um dia, fiquei. Lá era uma rotina muito
diferente: se tinha que tomar café, era bolacha doce, café amargo. Purê
de batata, coisas assim que marcam a infância. Pequenas coisas.
Colocar meia, colocar sapato, tomar banho todo dia para dormir.
Muito rígido, tinha muita regra. Tudo isso na cabeça de uma criança
de 4anos que até aí era livre. Eu me lembro de passar vontade de comer
as coisas com a mãe, mas eu nunca me lembro de ter sido obrigada a
tomar café amargo. E com ela foi. Quando tinha que ir embora, eu ia
chorando porque eu queria ficar. Ela comprava tudo pra mim. Isso não
durou mais de seis meses. Colocar pijaminha, camisola. Coisas que eu
nunca tinha feito. Com a mãe tomava banho tudo um depois do outro.
Tinha medo do pai, mas eu lembro que ali eu era feliz. Um dia, ela
queria ir primeiro na casa de outra tia. Daí eu disse: “deixa eu ir
primeiro na casa da mãe. Deixa, deixa”. Cheguei contente de ver os
irmãos, brinquei, me sujei toda. Eu nem liguei. Ela mandou alguém
me chamar. Quando me viu: “Safira, para que você se sujou?”. Ela ia
sair, mas parou a Kombi para falar alguma coisa para minha mãe. Eu
Capítulo 2 | Mulheres pescadoras 117

disse: “eu não vou mais, tia”. Vi a mãe chorando, meio disfarçado, sabe,
e perguntei: “a mãe gosta de mim mãe, não é? Gosta né, mãe? Diz, mãe,
que gosta!”. Eu fiquei com aquela jardineirinha. Sei lá como dormi.
Mas eu lembro que foi o dia mais feliz da minha vida. Daí eu me
lembro do pai chegando depois de dias, porque ele não estava, com
uma camisa meio rosinha, com um cabeçote do barco. Quando me
viu: “Pois sim, Luiza!”. Porque ele me viu, sabe. Eu com vontade de
chorar, de emoção. Daqui a pouco passou dois anos: vamos voltar a
morar na ilha. A Safira fica para estudar. Daí eu não sei se eu completei
dois anos de estudo, porque eu tive duas professoras. O pai e a mãe
mandaram me buscar para ajudar porque deu uma enfermidade na
mão da mãe. Daí eu fui para ficar na ilha e não voltei mais para estudar.
Eu tinha entre 8 e 9 anos quando comecei a pescar. Eu lembro que a
mãe me disse: Sabe, tu vai puxar a rede com o pai na canoa. A mãe não
vai poder ir. Filha, tu abre bem a perna para poder ficar firme e não
cair. Fui, puxamos toda a rede. Depois, a mão da mãe veio a melhorar.
Teve um determinado tempo que era eu e a mãe que pescamos muito
sozinhas porque os meninos eram mais de não ir. O pai não ia por
estar doente. Eu e a mãe cansamos de ir seguido. Só nós duas. Era
motorzinho a gasolina na época. Se dava problema lá fora, ela montava
e desmontava. Arrumava e vínhamos nós duas. Então, ela aprendeu
com o meu pai. Eu, na verdade, aprendi com os dois. Mas aprendi
muito mais com a mãe: remendar rede, entralhar, fazer, tudo. Eu pesco
desde os 8 anos de idade, mas só faz três que tenho a carteira de
pescadora. Como a gente vivia na ilha, não pensava nessas coisas de
documentação. Eu só fiz a carteira em 2008. O Nezinho já tem a
carteira há mais tempo. Quando essa minha tia morreu, me deixou
terrenos, pois ela não tinha filhos. Resumindo, eu vendi os terrenos
mais barato e fizemos o sobradinho lá na ilha. Tudo é o tempo, porque
tu não vai fazer a mesma coisa a vida inteira. O que tu lembras da vida
na ilha? Essa pergunta foi constante durante vinte e poucos anos. Era
assim essa pergunta porque lá é um lugar muito visitado. Então
perguntavam: É bom morar aqui? É bom morar aqui? É uma resposta
que precisa ter conteúdo. Não pode ser sim ou não, porque a pessoa
quer saber por que sim, por que não. Tem que ter um porquê, né?
Durante muito tempo respondi assim: deve ser bom, porque ainda
estou esse tempo aqui. Deve ser porque eu não tinha tempo de analisar
por que estava lá e se era bom ou não, porque era contínuo. O dia que
mais me marcou, que eu resolvi experimentar viver nesta casa aqui, foi
Mulheres e o mar 118

quando eu estava sozinha na lancha com minha filha. Ela tinha entre
8 e 10 anos. A lancha encalhou num banco de areia. Ela me ajudou.
Era tão estranho. Vinha a água e escoava pela embarcação. Chuva fina.
Frio, frio! Ela se molhava. Depois, a gente conseguiu sair daquela parte
de sufoco. Ela disse: “Sofrimento né mãe?”. Aí, aquilo me doeu na alma.
Eu disse assim: “Meu Deus, está na hora. Chega!”. Então, não foi
naquele dia, mas aquilo assim. Que judiação! Pra que? Tinha uma
amiga que me dizia: “tu nunca vais sair daqui” e eu não tinha o controle
se ia ou não. Mas como aquilo doeu na alma, aí foi tudo sendo
favorável. E as condições da própria saúde. Lá é tudo mais difícil.
Botijão de gás, tu levas, tem que carregar; subir pelas pedras, caixa de
gelo. Tudo é mais judiado. Então foi uma questão de entendimento
mesmo porque chega uma hora, tu tens que parar porque não tem
condições. E depois que deu para sair. E é interessante o teu trabalho,
Rose, porque com o teu sentimento, com o teu trabalho tu consegues
entender que as pessoas, na verdade, são duas. No nosso caso, nós
procuramos a parte espiritual. Nós procuramos servir a Deus. E em
todo lugar, cada religião, cada pessoa. Tem duas pessoas. Tu estás
procurando conhecer melhor o que há além daquilo que se vê só com
os olhos. Eu pedia a Deus nos últimos dias: Senhor me dá um sinal.
Por que disso tudo? E na Igreja ele falou que viria algo, alguém de
algum lugar que eu nem esperava, que era algo mais grandioso que eu
nem poderia imaginar. E tu chegasses, Rose, com essa pesquisa, algo
grandioso, com as mulheres pescadoras de Santa Catarina: Quantas
histórias? Quanto sofrimento? Quanta luta? Mas também quanta
coragem? Chegasse para ouvir a minha história; para me fazer falar e
ao mesmo tempo ouvir. E eu, te contando, eu me emociono (lágrimas),
porque não parece ser a minha história. Parece que não sou e não fui
eu. Mas é. Essa é a minha história. Mas eu quero te dizer que eu fiquei
pensando essa noite na tua pesquisa e lembrei que tem mais pescadora:
a filha da Ana e do Dé, a Cheila, a Patrícia, minha irmã, que trabalha
também na banca de peixe. E a Patrícia é muito interessante.
Conversando contigo sobre a tua pesquisa e com as conversas que a
gente tem todo dia, eu passei a observar mais. A Patrícia inverte os
papéis. Eu não tinha me dado conta disso. Vê se tu concordas comigo:
nós todas somos as camaradas dos nossos maridos, dos nossos irmãos,
como tu já escrevesse. Eles são os mestres. Acho que, de certa forma, a
gente reproduz o ser esposa e o ser camarada. Eles é que são as
referências. No caso da Patrícia, não. Ela inverte. Quando ela sai com
Capítulo 2 | Mulheres pescadoras 119

o marido, ela que é a mestre. Ela que vira aquele motor e lá vai. Ele é
que senta na popa, como nós, as camaradas. Então tens que acompanhar
ela também. A minha mãe não pode de ficar fora porque foi com ela
que eu aprendi. Hoje, ela está mais na banca de peixe, mas se precisar
ir, ela vai. Ela sabe tudo. E tem mais: eu sei que eu já falei e que vais
fazer isso, mas eu quero reforçar: tens que escrever que cada uma de
nós faz de um jeito. Tens que falar sobre os tipos de embarcações, os
tipos de redes. Cada uma de nós tem um jeito de fazer. Pode ver:
quando a gente viu o que tu mostrasses da Josi, lá de Florianópolis. É
rede de espera, mas é outra forma de fazer. Tudo isso tens que falar. É
muita coisa, Rose. Até para mim, às vezes, faz um nó na cabeça, mas é
assim mesmo!

2.3.2 Patrícia, a irmã

Começo pelo meu nome: Patrícia Castanho Conradt. Hoje eu


estou com 34 anos. Tirei o primeiro ano do primário. Sou casada com
Edenilson Conradt, que tem 36 anos. Ele não era pescador. Agora é.
Ficou sendo depois que casamos, pela dificuldade de ganho, por causa
dos cinco filhos. Ele era eletricista e tinha época que não tinha como
sustentar os cinco filhos com o que ele ganhava. Na época que as crianças
eram pequenas, eu ficava em casa cuidando delas. Que nós começamos
a pescar mesmo junto, nós dois, foi depois que eu tive o meu barco,
o Dandico, em 2008. Dandico porque é o apelido do meu filho mais
velho. O Dandico mede sete metros. Daí é tudo na mão. É motor de 11
HP. Eu tenho a carteira de pescadora. Ele também tem a dele. O barco,
a gente conseguiu adquirir com o seguro-desemprego. Eu já tinha a
carteirinha de pesca e economizei para isso. Quando recebi o primeiro
salário-desemprego já guardei com esse fim. Nossa pescaria é camarão.
Essa ele faz sozinho. A pescaria do caracol ou do caceio é a que nós dois
fazemos juntos. Isso da pescaria, lá na ilha, quando a gente era criança, a
Safira ia com gosto. É assim: não é todo mundo que é para aquela coisa,
para o mesmo. Ela gostava daquilo que fazia. Não era só porque gostava.
Como ela te falou, ia também pela nossa necessidade. Não tinha que
gostar. Tinha que ir e pronto. Eu, quando tinha que ir, ia chorando. Eu
não gostava. Eu era a menor e não tinha o entendimento deles, que eram
maiores do que eu: de que tinha que ir pela necessidade. Todos tinham
que ir. Então era um berreiro só. Eu fui crescendo e acho que pela nossa
necessidade, pela aquela vida de dificuldade, eu sempre dizia que não
Mulheres e o mar 120

queria aquela vida para mim, que nunca ia casar com um pescador. Daí,
eu não casei com um pescador. Eu transformei depois (risos). [A filha
que, nesse dia, estava junto ouvindo, falou, rindo junto conosco: “Não
adiantou muita coisa. Pelo menos, a promessa que ela fez, ela cumpriu:
não casou com um pescador”.] Hoje, a vida pesqueira, para mim, é
muito abençoada porque a minha vida, eu construí na pesca porque
quando vivia só com o serviço dele, não passava necessidade, mas só
dava mesmo para viver. Aí, depois que nós passamos a pescar juntos,
Deus abençoou bastante. A pescaria nossa, nós mesmos pescamos e eu
mesma vendo. Daí valoriza mais porque o trabalho que nós fazemos
entra todo para nós. Não passa por intermediário. Às vezes, quando por
algum motivo não estou pescando, compro do Nego e da Safira porque
eu vendo na banca do peixe, ali onde sempre vais olhar e conversar com
a gente. Para vender na banca de peixe, eu acho que a mulher tem mais
paciência porque a gente escuta cada coisa ali, cada besteira ou asneira
dos clientes. O homem já vive mais estressado. Chega do mar com o
peixe fresco e não tem paciência para ficar ouvindo o que às vezes a
gente ouve. Por exemplo: o cliente olha e diz: “ah, esse peixe não é de
hoje”, e o peixe acabou de chegar! Eles chegam com as caixas e jogam
tudo e a gente que vai organizar, congelar, vender. Ali na banca mesmo
só tem um rapaz que vende, mas ele vende porque ele não pesca e os
homens que pescam estão ali só para ajudar na limpeza do peixe. Não
estão no balcão. Outra coisa é que os clientes querem mostrar que
entendem de peixe: chegam cheirando o ar e querem dizer que, pelo
cheiro, sabem como está o peixe. Se um peixe estiver estragado, como
alguns deles querem dizer, o urubu já teria carregado até o vendedor
(risos). Na semana passada, uma senhora falou para a amiga: “Olha,
se deve olhar o olho do peixe e esse não está bom”. Ela pensou que eu
não tinha escutado. E eu não aguentei porque o peixe tinha acabo de
ser descarregado: “A senhora não conhece nada de peixe, porque o olho
deste peixe está vivo!”. O peixe era fresquinho, tinha acabado de chegar!
Aí, ela assim: “Ah, eu quis dizer que o que a gente tem que olhar é o
olho do peixe”. É isso que a gente escuta; fora o cansaço, a dor que sente
de movimentos repetidos. Na profissão da pesca, no tipo de pescaria, o
que mais sofre são as mãos e as costas da gente. As mãos, os braços e
as costas é o que mais força porque nós puxamos tudo nas mãos. Tem
os barcos maiores que trabalham com rede, que puxam no guincho,
no rolo. Eles não põem a mão em nada. Nós não. Nós é tudo na mão
mesmo. Eu já fiquei doente pelo esforço repetido. Pegou os dois braços
Capítulo 2 | Mulheres pescadoras 121

de tanto limpar peixe. Estou descansando estes dias porque o braço está
doendo demais. Então, eu parei hoje e amanhã. Acho que era isso que
eu queria te contar.

2.3.3 Luísa, a mãe

Meu nome é Luísa Castanho Correa. Tenho 62 anos. Eu sou


nascida no Paraná, em Guaraqueçaba. Sou filha de pescador. Me criei
desde pequena na ilha de Superagui. A gente vivia na pesca. Quem
me ensinou foi o meu pai e a minha mãe, os meus irmãos. Desde os
10 anos de idade eu pescava de rede, de linha com meu pai. Sei fazer
rede, entralhar, sei tarrafear. Estudei só o primeiro ano incompleto.
Eu sou a terceira filha. A minha família sobrevivia da pesca. A mãe
da minha mãe também já vinha da pesca. Era misturado: pesca e
plantação. Daí, lá eu conheci o meu marido. Ele já era separado da
primeira mulher. Nos conhecemos e viemos para cá. Isso eu estava
com 18 anos. Ficamos na casa de parentes por algum tempo, depois
arrumaram pra nós ficar ali no salão da igreja católica. Quando tinha
festa, nós tínhamos que sair tudo. Depois voltava. Depois é que fomos
para a Ilha, a dos Remédios. O meu marido tinha 36 anos. Com 20
eu tive o meu primeiro filho. Em nove anos eu tive cinco filhos: é esse
mais velho, o Ananias; depois vem a Safira; depois o Salomão; depois
vem a Patrícia; depois o Simião. Quem vive hoje da pesca é eu, a Safira,
a Patrícia, o Nego. O Nia também vivia, mas ele está doente, tem o
HIV. Ele pegou pelas drogas. Essa é a realidade. Faz uns oito anos, mas
é viciado desde os 14. Começou com maconha, depois foi indo e está
doente. A família dele toda já vem assim. É uma tristeza. Essa é uma
tristeza na minha vida. Eu ensinei a minha filha porque a gente levava
ela junto. Depois, quando o pai ficou doente, era só eu e ela que ia. Eu
e a Safira. Ela, desde os 10 anos já tinha uma cabeça de gente grande.
O mais velho não. Então, ela assumiu o papel de mais velha. Quando
o pai faleceu, ela que continuou a ir comigo. Ele batia muito em mim.
Em mim e nas crianças. Ou era em mim ou nas crianças. Ele tinha que
bater em alguém. Era assim. Tinha que ter a bebida também. Quando
começava, eu gritava para as crianças correr. Antes em mim do que
nelas! Corriam tudo, iam pro mato e ficavam até eu dar sinal. Às vezes
eu passava alguma comida pela janela para elas comer. Deus o livre
se ele visse! Era mais desespero. Foi assim. Eu acho que o mais velho
ficou viciado porque ele ficava na casa de um lá, de outro pescador
Mulheres e o mar 122

mesmo, até eu chamar de volta; e eu nem podia imaginar que isso


acontecia. Se fosse sozinha eu tinha fugido, tinha me virado porque
eu ia conseguir sobreviver. Mas tinha as crianças e eu me sujeitava
àquilo para elas não morrerem de fome. Quando ele ficou doente,
fomos a uma miséria extrema. Miséria. Miséria! Nessas horas, de
miséria, de fome, a gente fica muito frágil sabe. Daí, foi quando essa
minha cunhada me convenceu, me fez a cabeça e adotou a Safira. Em
troca, ela nos mantinha. Dava comida para eu dar para os outros. Foi
uma situação extrema, no limite da miséria. Quando a menina foi,
eu chorava dia e noite. Não tinha dia que eu não fosse botar comida
para os outros filhos, que eu não lembrasse ela e não chorasse. Eu não
aguentava. Depois, chegou um dia, ela veio com a tia, que a tia sempre
vinha e trazia ela. Ela veio e pediu para ficar brincando com os irmãos.
Quando a tia voltou para ir embora, ela disse: “Eu não vou mais!”.
A tia disse: “Como assim?”. “Eu não volto mais, tia. Quero ficar com a
minha mãe, que a mãe gosta de mim, não é mãe?” Aí, a tia disse: “Mas
tu não tens nem mais roupa aqui. Com o que é que vais dormir?”. “Eu
durmo de calcinha. Não tem problema nenhum. Eu não volto mais!”
Acho que, na época, ela devia ter uns 6 anos. Era de seis pra baixo.
Depois que ela ficou é que nós fomos então para a Ilha dos Remédios.
Nós vivíamos de doação também. Ganhava sacos de roupa, eu cortava
mesmo à mão, sabe, e fazia as roupinhas deles: shortinho, blusa, calça.
Tudo. Fazia assim. Eles ainda se lembram disso. Vai fazer 18 anos que
vim da Ilha para a Barra do Sul. Fiquei quase quatro anos sozinha;
depois é que casei com ele. É União Estável. Ele tem 47 anos; às vezes
é meio crianção, mas é um companheiro. Alegria na minha vida era
bem pouco, era mais sofrimento, mas era assim. A gente resume
porque se fosse contar tudo ia ficar aqui dias e dias e dias contando.
Contar me faz pensar, me faz lembrar a minha vida, me vem muita
coisa na memória. Me faz ficar alegre, mas também fico triste com as
lembranças da tristeza, da miséria, com o meu filho que é doente, com
tudo o que a gente passou. Mas também me faz ficar contente porque
quatro filhos estão bem. Lutaram, venceram, têm suas famílias. Eu
posso dizer que consegui criar os meus filhos; que eles são gente do
bem. E, mesmo naquela miséria, tinha horas de alegria. E a minha
filha preferiu ficar comigo, mesmo naquilo que a gente vivia.
Capítulo 3

O MUNDO DA PESCA DAS


MULHERES

Começo este capítulo discorrendo sobre a relação das pescadoras


com alguns elementos que interferem diretamente na pesca, como luas,
ventos, marés, tentando apresentar detalhes que compõem sutilezas de
seus cotidianos. A ação de tais elementos remete à complexidade que
norteia não apenas as saídas e chegadas das embarcações, mas o próprio
ritmo dos ciclos de fartura ou de escassez da pesca. Se, por um lado,
há uma proximidade das pescadoras com elementos ditos naturais para
realizar a pesca, por outro, elas se referiam à relação que têm com o
mar como de terapia, o qual, além de ser um fornecedor de alimentos,
converte-se em um amenizador de problemas, estresses, dores. Ir ao mar
tornava-se uma forma diária de encontrar renovação física, emocional
e mental para conseguir dar conta de tudo o que lhes espera em terra:
marido e filhos, tristezas, problemas, aflições, mais trabalho. O que elas
denominavam de vício pelo mar dizia respeito à forma como encontram
forças para cumprir suas obrigações cotidianas.
Na sequência do capítulo, detenho-me nos instrumentos de
trabalho, como as embarcações, agulhas, linhas, bandeiras para, logo
a seguir, falar sobre os peixes, os mais cobiçados e os mais perigosos;
a morte do peixe versus a vida na pesca; a relação com outros bichos.
Sigo na escrita abordando algumas considerações sobre o trabalho em
terra, onde observei a centralidade da cozinha, dos ranchos de pesca e
do fogo. Após, me detenho na relação das mulheres com as máquinas.
E, por fim, as bicicletas.
Mulheres e o mar 124

3.1 O mar

3.1.1 A sutil complexidade dos elementos atores

Eu estava no rancho de pesca de uma das pescadoras enquanto


ela terminava uma rede que um cliente viria buscar mais tarde, quando
chegou outro pescador e, com uma voz baixa, iniciou o seguinte diálogo,
em um tom de quase segredo, não sem antes dar uma olhada para trás
em direção ao mar, como se alguém pudesse ouvir:

– Visse como ela chegou de surpresa?


– Então. E visse como ela veio exibida, mostrando força?
– Ela, quando quer, chega e vem. Não manda recado.
– Mas eu avisei que ela vinha. E quando ela vem, sai de baixo.

Eu, perto, apenas ouvindo, me perguntava: de quem estão


falando? Quem é essa a qual se referem desta forma, falando baixinho?
Será que é alguém que fez algo e pode voltar? Quem é essa tão poderosa
da qual falam neste tom, como se ela, onde estivesse, fosse capaz de
ouvir? Foi então, na sequência do diálogo, que consegui entender o que
se passava, quando dona Naca continuou.

– Olha aqui. Eu tinha limpado tudo, varrido. Ela chegou e foi


trazendo água por tudo. Só deixou a marca.
– Pois é. Essa triste, sem-vergonha!
– Hoje ela não vem mais. Pode ficar tranquilo. Já veio de manhã,
mas vai voltar nessa madrugada. Tem que botar os botes61 para
a água. Olha lá do outro lado, como está forte. Está assim pra lá
porque o vento é norte. Só naquele canto ali que ela não foi. Mas
eu já disse que ali a maré não consegue chegar. No mais, é assim:
ela vem e vai arrastando tudo. É poderosa!

No decorrer de meu trabalho de campo percebi um conjunto que


mesclava complexidade e sutileza em que há elementos/atores outros,
como marés, ventos, luas, cuja agência62 repercute diretamente no

Um tipo pequeno de embarcação.


61

62
Para Latour (2008), ator é tudo o que age. “Usar la palabra ‘actor’ significa que nunca
está claro quién y qué está actuando cuando actuamos, dado que un actor en el escenario
nunca está solo en su actuación” (LATOUR, 2008, p. 73). Daí se tratar de ator-rede em
conjunto, cujas agências ocorrem em simultâneo. Nesse aspecto, visando deixar claras
Capítulo 3 | O mundo da pesca das mulheres 125

cotidiano pesqueiro. São elementos/atores que mandam, desmandam,


influenciam, são observados, ouvidos, obedecidos, nas saídas para o
mar ou nas permanências em terra. Para tentar entender o mundo
da pesca, é preciso levar em conta que elementos, considerados
comumente como naturais e, muitas vezes, sob os efeitos da ação do
ser humano, têm uma agência que interfere diretamente na relação
humano/não humano exigindo que o elemento humano esteja
continuamente atento aos sinais, às mudanças e direções que fogem
à sua vontade diante do inesperado do vento que muda; da maré que
cresce e do mar que não deixa sair.63
Não há uma maré. Há maré cheia,64 maré vazante. Segundo
os comentários que presenciei e a atenção dada pelas pescadoras, há
uma agência na maré que a torna conhecida como poderosa, exibida,
aquela que chega e vai invadindo tudo, destruindo e bagunçando o que
encontra pela frente. Ou vaza, diminui vigorosa e rapidamente levando
as pescadoras a questionamentos como: “se ela enche aqui, vaza em
algum lugar. E quando vaza, para onde ela vai? Para algum lugar tem
que ir!” (Safira). É ela, dizem, que manda e determina se o mar se agita
ou se acalma. Os movimentos de encher e vazar da maré são ritmados,
da direita para esquerda, ou da esquerda para a direita, depende de

as muitas agências na actor-network theory (ANT), emerge o termo “actante”: o que


atua, que move, que produz ação. Latour vê todos e tudo como actantes. Porém, entendo
que o sentido que se dá aos actantes advém do elemento humano que está em relação
e, no caso das pescadoras e da pesca, tendo reações à ação dos demais elementos que as
cercam e que influenciam suas atividades. Embora possamos considerar o vento, a lua, a
maré, o mar como actantes, que agem sobre as possibilidades de pesca/não pesca, são as
pescadoras quem lhes dão este sentido. Em última instância, portanto, são elas as atoras
centrais da relação humano/não humano, tendo em vista que são elas e os pescadores
que interpretam, traduzem, compreendem o que os demais atores lhes dizem quando o
tempo muda, a maré vira, o mar cresce ou a lua engorda.
Viveiros de Castro (2002) trabalha com a noção de perspectivismo em que o mundo,
63

para os indígenas é habitado por seres humanos e não humanos, e que um ponto de vista
não é uma interpretação subjetiva. Não existe um ponto de vista sobre algo; este algo
é o ponto de vista, tratando-se, portanto, de uma “ontologia integralmente relacional”
(VIVEIROS DE CASTRO, 2002, p. 385). A personitude e a perspectividade dizem
respeito à experiência pessoal, que é mais válida do que qualquer dogma cosmológico
substantivo na determinação dos seres que podem ser considerados agentes. Seguindo
um raciocínio pautado pelo perspectivismo, poderíamos dizer que nas pescas outros
seres ganham uma humanização a partir da qual mandam, desmandam, influenciam,
permitem ou impedem saídas e chegadas.
64
As marés são influenciadas pelos ciclos da lua, existindo o que os técnicos chamam
de “tábua de maré”, que registra e indica os horários do dia em que ela enche e vaza.
Mulheres e o mar 126

onde se está. Olhar a maré encher ou vazar eram momentos que me


permitiam observar a força que ela tem quando uma pequena folha
seca caída na água era levada pelo fluxo rápido em direção ao mar ou
a terra, dependendo se o momento era de encher ou esvaziar. Atentar
repetidamente para esses movimentos permitiu-me constatar, de forma
muito frontal, que se trata de um grande organismo vivo em que tudo
respira junto no movimento: enche, vaza; inspira; expira.
Muito próximo da maré está o mar, posto que este seja totalmente
influenciado por ela. Suas oscilações são decorrência dos movimentos
que dela advêm. Assim, se a maré enche, o mar cresce; se a maré vaza,
o mar fica magro. Definições, verbos ou adjetivos costumeiramente
atribuídos a humanos, como traiçoeiro, crescer, magro, inchado eram
corriqueiramente definidores desses elementos/atores dos quais a pesca
recebe influência. Se a maré enche, vaza e é poderosa, o mar não deixa
por menos. Ele se mostra calmo ou se agita quando menos se espera.
Mais do que isso, segundo minhas interlocutoras, ele tem o poder de
perceber sentimentos, como ouvi várias vezes: “o mar sabe quem tem
medo dele; não pode demonstrar; tem que ter respeito; quando ele sente,
ele pega quem tem medo. Escuta o que eu estou te dizendo: tu nunca podes
demonstrar medo!” (Neia).
Definiram-me as pescadoras que “o mar tem vida. Ele é vivo. Ele
surpreende. Ele mostra para a gente quem manda. Mostra poder quando
menos se espera. Às vezes, a gente sai com ele calminho, calminho. De
repente, tudo muda. Ele cresce, encrespa, fica bravo. Assim, de uma hora
para outra” (Naca). Essas falas resumem as muitas que ouvi a esse
respeito e as próprias experiências vivenciadas ao embarcar. O mesmo
mar que um dia estava calmo, tranquilo, dias depois, ou no mesmo
dia, se mostrava agitado. Alguns dias, as embarcações me pareciam
pequenas cascas de ovo flutuando em meio a uma imensidão de água
que vinha de todos os lados.
Quando perguntei se o que manda na mudança de marés e do mar
é, em especial, o vento, Safira me respondeu: “Não. É mais do que isso. É
um conjunto de coisas”. No entanto, a lua foi apontada como agente central
influenciadora dos processos ligados à pesca e que dizem respeito às
diferentes e repentinas mudanças, o encher e vazar das marés, o engrossar
do mar, a entrada de peixes. As pescadoras diziam-me que ela influi em
tudo. Pois não influi até na gravidez de uma mulher? A lua se alterna em
nova, crescente, cheia, minguante, cada qual sinalizando como poderá ser
a pescaria. Trata-se de uma relação antiga e de um aprendizado de longo
tempo, que vem desde os mais velhos, segundo as palavras de Safira.
Capítulo 3 | O mundo da pesca das mulheres 127

Ainda se for analisar, a lua é a chefe. É ela que comanda tudo: o


mar, a maré, o peixe. Lua minguante e lua cheia são ótimas para
peixe predador, que é o robalo, a anchova. Tem pontos na ilha
que a gente espera o quarto minguante para botar a rede. A lua
nova já é ótima para peixe grande. O quarto crescente é bom, mas
para tempo ruim. Ela rege. Rege sobre o mar, o clima. Ela influi
nas gestações. Conta três dias. Três dias antes e três dias depois.
Assim somos nós com os peixes. Ela tem força sobre o organismo,
as plantações, tudo que cresce. Por que a maré cresce? Vaza?
Influência da lua! Os antigos de nossas mães e pais para trás só
se guiavam pela lua. Por ela, eles sabiam se ia dar um ou outro
tempo; se a maré ia encher ou vazar. Mas não é só isso. É um
conjunto de coisas, como te falei, tem vezes que está uma lua cheia
e a maré realmente enche. Mas, lá, outro dia, está uma lua cheia e a
maré dá uma vazada. Então, não dá para dizer que tem uma regra
única e clara. Pode ser aquilo que se espera e que normalmente
acontece. Mas também pode não ser.

É interessante notar nas palavras de Safira que o exercício de uma


escuta e observação contínua dos elementos da natureza lhe propiciou
concluir que há um conjunto de fatores que, embora às vezes sejam
previsíveis, podem também surpreender, fazendo com que não seja
possível uma resposta fechada ou um consenso, conforme ela própria
me advertiu certo dia: “Não tenta achar uma resposta para tudo o que
estás vendo, ouvindo, acompanhando com a gente, com o mar, com o
vento, com a lua, porque é mais complexo do que dizer: é isso!” (Safira).
Poderíamos dizer, tendo como inspiração Ingold (2012) que, por um
exercício de convívio, observação e diálogo cotidiano com a natureza,
Safira pondera sobre possibilidades e põe em questão as (in)certezas que
a natureza traz a cada momento. Ela não vê, prevê ou afirma. Apenas
especula e pondera que pode ser uma coisa, mas também pode não ser o
que se espera. Nesse sentido, “à medida que a evidência é orientada por
um diálogo com a natureza, a previsão extrapola os fatos observáveis.
Com base nesses fatos, trata-se de especular sobre o futuro e não de ver
o futuro” (INGOLD, 2012, p. 24).
A especulação sobre o futuro, na prática, significa que as
pescadoras se postulam por uma observação contínua e apurada dos
movimentos do mar para a realização de seu trabalho a partir de uma
relação que, longe de ser resumida a uma contemplação superficial de
seus movimentos, passa por uma busca constante de interpretar o que
o mar estaria querendo dizer. Aliada a isso, elas mantinham uma troca
Mulheres e o mar 128

contínua com demais pescadoras e pescadores no que diz respeito a


confirmar o que sua observação indicava como, por exemplo, quando
havia suspeita de uma mudança brusca de maré. Elas buscavam se
inteirar também sobre o que os meteorologistas estavam anunciando
via meios de comunicação e o que os pescadores que possuiam
equipamentos mais avançados estavam sabendo pelo rádio.
Juntamente com isso, poderíamos considerar duas qualidades
extremamente apuradas nelas: a sensatez e a paciência. Elas só saíam
para o mar de acordo com os comandos desses elementos agentes ou
esperavam o tempo que entendessem ser necessário para voltar à pesca,
mesmo que essa atitude, em princípio, significasse perdas financeiras
pelo fato de ficarem em terra. O tempo de espera era utilizado, na
maioria das vezes, para revisar e remendar redes, arrumar fios, retocar
a pintura da embarcação, arrumar um motor, fazer novas bandeiras. Ou
seja, cuidar e manter os instrumentos de trabalho utilizados na pesca.
Em alto-mar, o que aparentemente poderia ser visto como
contemplação, era um exercício de interpretação em que as pescadoras
mantinham uma atitude de atenção contínua, pois, segundo elas, no mar
não se pode ter qualquer momento de distração. Além da observação, a
concentração é, portanto, uma atitude obrigatória para quem lida com o
mar, tanto para preservar a vida quanto para realizar o que as pescadoras
denominavam de terapia, sobre o que veremos a seguir.

3.1.2 O mar como vício, fuga, terapia

As pescadoras definiam como vício a vida no mar, em que, aliado


ao que consideravam que é o que melhor sabem e mais gostam de fazer,
diz respeito a uma necessidade interior de fazer, de precisar sair todo
dia, de ir. Segundo elas, não se teria como definir esse sentimento, pois
somente quem é pescador é que teria condições de entender o que elas
queriam dizer quando me diziam o que sentem pelo mar. “Não tem
como explicar. Só quem é pescador para saber o que é; para sentir” (Josi).
“É um vício. A gente precisa ir, mesmo que não pegue nada, mas tem que
ir” (Alzira). “É um vício: a vida na pesca é um vício. Só quem é pescador
para entender o que se sente” (Naca).
Outra questão refere-se a encontrar nas saídas para o mar uma
espécie de linha de fuga65 da mesmice do cotidiano na casa e em terra.

65
Na proposta de Deleuze e Guattari, o rizoma, que é multiplicidade, é formado de
linhas. “As multiplicidades se definem pelo fora: pela linha abstrata, linha de fuga ou
Capítulo 3 | O mundo da pesca das mulheres 129

Ao fazer a constatação – que denominavam de gosto, paixão, vício – de


que é essa vida que amam, elas colocavam em questão os papéis que se
espera que desempenhem de ser pescadora e ser dona de casa em que,
segundo elas, este último apenas disfarçam, conforme me narraram.

Eu prefiro a vida na pesca a trabalhar em casa porque em casa a


gente trabalha, trabalha, trabalha a vida toda e não aparece; e na
pesca, a gente vê a produção. Vê resultado. (Cheila).
A vida que eu mais adoro na minha vida é andar nessa vida aqui
do mar. Em casa é todo dia tudo igual. A gente mesmo disfarça,
né? (Mãzinha).
Não é que a gente não faz os deveres de casa. Faz sim, mas prefere
a vida no mar. (Paulina).
Usamos este disfarce de dona de casa, mas vivemos para o mar.
Estamos em casa, fazendo uma coisa, outra, mas o pensamento é
no mar: se choveu, se vai dar vento; se o tempo mudou, se vai dar
peixe, se não vai dar. E as donas de casa vizinhas não conseguem
enxergar esta diferença. Um pano de louça é um pano de louça,
mas não é aquela coisa branquinha. Nós somos de improviso.
Diz isso no teu trabalho. Não há o capricho da dona de casa. E
algumas chegam aqui, dando sugestão, dizendo como fazer. Não
entendem que nós somos só um disfarce. (Safira).

Disfarçar diz respeito a algo que faz de conta que é. As pescadoras


usavam expressões que faziam alusão ao que se esperaria de uma
boa dona de casa em que o exemplo usado foi o pano de louça, que
continuava sendo pano, mas não aquele da dona de casa exemplar:
branco, sem manchas, engomado, passado. Safira citou exemplos de
vizinhas que chegavam a sua casa e não se davam conta de que ela era
uma pescadora disfarçada de dona de casa e teciam sugestões sobre
mudanças e atitudes caseiras que, para ela, não faziam sentido. As
vizinhas estariam aludindo a uma atuação pautada por papéis de gênero
que exigem da mulher o trabalho exclusivo no espaço privado da casa,

de desterritorialização segundo a qual elas mudam de natureza ao se conectarem às


outras. O plano de consistência (grade) é o fora de todas as multiplicidades. A linha
de fuga marca, ao mesmo tempo: a realidade de um número de dimensões finitas
que a multiplicidade preenche efetivamente; a impossibilidade de toda dimensão
suplementar, sem que a multiplicidade se transforme segundo esta linha; a possibilidade
e a necessidade de achatar todas estas multiplicidades sobre um mesmo plano de
consistência ou de exterioridade, sejam quais forem suas dimensões” (DELEUZE;
GUATTARI, 2009, p. 17).
Mulheres e o mar 130

enquanto que Safira e as demais pescadoras, ao preferirem embarcar,


subvertiam essa expectativa.
Ao me narrar as motivações sobre a preferência pela vida no
mar, elas me apontavam como centralidade o que poderíamos chamar
de fuga de tudo o que lhes é exigido em terra, como as obrigações de
dona de casa que compõem um cotidiano repetitivo no qual não se vê
os resultados do trabalho da mulher, conforme resumiu a fala de Cheila,
e onde reverberam os problemas familiares, afetivos e as dificuldades
financeiras.
Uma terceira forma de significar o mar, que não é descosida das
duas anteriores, concerne às saídas para o mar como, além de ser o que
lhes fornece renda, ser aqueles momentos que elas denominavam como
terapia. O mar, mais do que fornecedor de alimentos e de uma forma
de sobrevivência financeira, se convertia em sobrevivência afetivo-
emocional, linha de fuga cujo território permitia um abrandamento
das angústias que perpassam seus cotidianos. Ir ao mar e voltar do mar
era garantir a sensação de missão cumprida, mas também de alívio, de
observação e contato com a natureza, de recarregamento de energia.
O mar, ao contrário da monotonia que viam na casa, era cada dia uma
surpresa.
Todo dia o mar muda e, em que pese que fiquem tristes quando o
mar não dá nada, ainda assim o preferem, pois ele dá um sossego, uma
espécie de distração na necessária concentração que ele exige, embora
sendo um espaço, muitas vezes, desassossegado. Vida instável e incerta,
mas que lhes proporciona terapia em forma de uma trégua em meio aos
desafios com os quais se deparam desde quando eram apenas meninas.

A gente vai, sai, esquece os problemas, volta mais animada,


aliviada. (Mãezinha).
O mar é uma terapia. Um alívio. Uma forma de aguentar a vida.
(Alzira).
A gente vai e volta com a sensação de missão cumprida. Faz uma
terapia. (Josi).
É terapia. É isso que o mar é. (Neia).
A gente vai e foge um pouco das coisas que incomodam. Das
preocupações, da dor, de alguma coisa ruim que esteja passando.
(Naca).
Capítulo 3 | O mundo da pesca das mulheres 131

Na tentativa de fixar o dito (GEERTZ, 1989, p. 29),66 eu perguntaria


o que as pescadoras nos dizem quando estão dizendo o que dizem?
Talvez estivessem sinalizando que a vida na pesca, que amam, é acionada
não só como uma profissão que se faz por gosto, mas como viabilizador
de alívio de preocupações e esquecimento de problemas. Porém, mais
do que isso, talvez esteja na vida da/na pesca o alívio necessário para
cumprir o disfarce cotidiano como dona de casa. O gosto pela vida no
mar, portanto, na rua, entra continuamente em conflito com a obrigação
de realizar os deveres de casa no âmbito doméstico. No jogo de inversão
que elas próprias se constituem – pescadoras, cujo gosto é a vida de
liberdade no mar – família, marido, casa, tudo consegue ser atendido
graças à fuga momentânea que o mar propicia. Para viver o que delas
é esperado em terra, como esposas e mães de família, por exemplo, só
com as sessões diárias que o mar, como linha fuga, permite.
Muitas narrativas apontavam o mar como terapia, alívio das
dores, esquecimento dos problemas. Porém, algumas falavam de um
nível mais profundo em que, além de ser um alivia-dor, o mar fez-se um
verdadeiro mediador – que além de mediar as suas dores – forneceu-
lhes um espaço para recuperação da sanidade, do equilibro e da vontade
de viver diante dos problemas enfrentados, como situações de violência,
perdas, dificuldades em que uma delas, Maria, disse que pensou que ia
enlouquecer.
A narrativa de dor que mais situou o mar como um grande
propiciador de amparo e retorno à vida foi a da própria Maria, a
brasileira que, pelos motivos que ela própria nos narra a seguir, foi parar
em uma das muitas ilhas de Portugal:

O mar me salvou. Se quiseres, posso falar sobre isso.67 Queres


saber tudo? [...] Eu posso te dizer: o mar me salvou! O mar me
devolveu a vida! Às vezes eu ainda tenho crises. Lembro de tudo;
ou esqueço. Tenho dores de cabeça. Mas o mar está ali. Foi e é a

66
Ao discorrer sobre as características da descrição etnográfica, Geertz (1989) afirma
que o etnógrafo inscreve o discurso social. Ao se remeter a Ricouer sobre a ideia da
inscrição da ação, aponta para a pergunta: o que a escrita fixa? (GEERTZ, 1989, p. 29),
levando a outra questão central. Diz Geertz: “o que faz o etnógrafo? Ele escreve. Ao
escrever, fixa o dito” (GEERTZ, 1989, p. 30).
67
Maria viveu uma tragédia envolvendo a perda de dois de seus três filhos com
implicações que, se fossem aqui publicizadas, poderiam colocar sua segurança e a de
seu filho sobrevivente em risco. Portanto, optei por omitir o que me foi narrado sobre
esta passagem de sua vida, pautando-me por pressupostos éticos que dizem respeito à
preservação da intimidade e da identidade de nossos interlocutores.
Mulheres e o mar 132

minha salvação. Meu filho também já aprendeu a pescar, já sabe


fazer de tudo. Sorte que me sobrou esse, senão eu não sei o que
seria se mim, sem meu filho e sem o mar. O mar é uma terapia
que me tirou da tristeza. E te digo mais: o mar é mãe. E mais: de
madrugada o mar é rosa. É lindo. O mar é rosa Rose, não é azul
sempre não.68 É lindo! O mar foi a minha salvação. Eu não tenho
dúvida nenhuma. Sem o mar eu não teria aguentado. Foi a melhor
coisa que eu aprendi na vida. A melhor terapia que pode existir: o
mar. É isso que eu posso te dizer. (Maria, 38 anos).

Ponderando a partir de Deleuze e Guattari (2009), reafirmo


minha consideração de que podemos considerar que o mar seria uma
linha de fuga: em princípio fornece alimento e possibilidade de renda
– vida olhada pelo prisma econômico-financeiro. Porém, mais do que
isso, ao servir como fuga do cotidiano em terra, torna-se linha de fuga
da própria fuga, terapia que mantém a pescadora viva – vida afetivo-
emocional que lhe permite continuar vivendo. Entendo que é possível
pensarmos uma forma circular que envolve mulheres e mar na qual não
há um elemento a mais e outro a menos; há múltiplos – há trabalho, há
vício, há terapia, há fuga – platôs que compõem o rizoma, que “conecta
um ponto qualquer com outro ponto qualquer e cada um de seus traços
não remete, necessariamente, a traços da mesma natureza [...] o rizoma
é feito somente de linhas” (DELEUZE; GUATTARI, 2009, p. 32). E uma
delas, a linha de fuga, faz parte do rizoma

3.2 Instrumentos de trabalho

3.2.1 Embarcações

As embarcações, geralmente chamadas pelos leigos de forma geral


de barcos, recebem diferentes denominações no meio pesqueiro, onde
batera (bateira), baleeira, bote, caíco, chata, são nomes que apontam cada
qual para um tipo de utilização. A bateira é uma embarcação feita de
vários paus. Geralmente, tem até seis, sete metros. O batelão também é
uma espécie de bateira, mas com a borda, a popa e a proa mais levantadas,
dando-lhe o aspecto de um bote. Tem cerca de seis a sete metros. A canoa

Maria faz alusão aos diferentes matizes que são visualizados no mar, em especial no final
68

da madrugada e início da manhã, quando ganha tonalidades que vão do azul profundo ao
azul claro, violeta, amarelo, rosa. Um fascinante e inacreditável espetáculo de cores.
Capítulo 3 | O mundo da pesca das mulheres 133

é feita de um pau só, sendo que, geralmente, vai de sete a nove metros. A
baleeira tem este nome pela sua forma abaloada, mais arredondada. Varia
entre dez a 12 metros. O bote é mais esguio. Varia de nove a 12 metros.
O caíco é pequeno e mais utilizado para o transporte até as embarcações
maiores. Geralmente, tem em torno de dois a três metros. A chata é uma
embarcação mais reta, com o fundo chato, que pode ter entre seis a oito
metros. A chalupa tem a sua popa quadrada, reta, diferente do bote, que é
mais afunilado, podendo ser de sete a 12 metros.
Acompanhei pescadoras que trabalhavam em bateiras ou botes de
madeira ou de alumínio. Algumas preferiam trabalhar a remo, porque,
segundo elas, o barulho do motor as irrita; outras já aparelharam suas
embarcações com motor, visto como um facilitador, pois permite
deslocamentos maiores, exigindo menor esforço físico.
Não encontrei, no decorrer de meu trabalho de campo, mulheres
que trabalhassem diretamente na construção de embarcações. Segundo
me relataram pescadores com os quais conversei, também diminuiu
muito o número de homens que continuam atuando nesse setor da
pesca artesanal. Em Barra do Sul, considerada pelos pescadores locais, a
capital da construção artesanal, ainda existiam pescadores que aliavam a
fabricação manual de embarcações à pesca. Eles recebiam as encomendas
de outros pescadores quando se tratava de uma embarcação nova, ou
para fazer reparos nas usadas.
Para adquirir uma embarcação, geralmente se acorre às
linhas de crédito do governo federal, como o Programa Nacional de
Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf).69 De forma geral, a

69
Segundo me esclareceu um extensionista técnico da Epagri, o Pronaf exige uma série
de documentos bem como a garantia de pagamento do financiamento contraído, em
que muitas vezes a embarcação com a qual já trabalham é utilizada para tal. Uma das
dificuldades que os pescadores encontram, se comparados aos agricultores, é que, por se
entender que vivem no meio urbano, quando procuram linhas de financiamento, muitas
vezes não conseguem se enquadrar nas regras do Pronaf, que exige comprovação de
que em torno de 70% da renda seja oriunda da atividade considerada rural, ou no caso,
pesqueira (o que também precisa ser repensado). Vejamos o exemplo: um pescador
que na safra, mesmo tendo atividades urbanas, consegue vender sua produção por 80
mil reais/ano (sendo sua esposa funcionária pública que ganha 20 mil reais anuais),
terá acesso ao crédito rural e direito à Declaração de Aptidão do Pronaf (DAP). Por
outro lado, um pescador que tenha renda anual de 20 mil reais e a esposa também
tenha a mesma renda de 20 mil reais/ano, alcançando 50% de renda com a pesca,
não se enquadra para ter acesso ao crédito rural. Outra questão é que, ao contrário
do agricultor, que tem atividades como pernoites, lazer, refeições, pousadas rurais
entendidas como atividades rurais, aquelas que os pescadores realizam, como frete de
embarcações, viagens para os turistas, venda de refeições, artesanatos, aluguel de casas
Mulheres e o mar 134

primeira embarcação é pequena, e a maioria dos pescadores trabalha


visando, mais tarde, adquirir uma maior, ou trocar por uma do mesmo
tamanho, porém mais nova. Quando compram usadas, as embarcações
já vêm com o nome, que continua o mesmo, pois já foi registrado na
Capitania dos Portos. No entanto, se resolvem fazer uma embarcação
nova, geralmente optam por nomes de mulheres da família, visando
fazer uma homenagem. Outra opção muito comum são os nomes dos
filhos, nomes bíblicos ou de santos e trechos do evangelho.
Por exemplo, a embarcação que Safira usava no início de minha
pesquisa, que adquiriu usada, tinha o nome de Elias Davi, que, além de
ser o nome de seu filho menor, é um nome bíblico.70 A embarcação de
Mãezinha reproduzia o seu apelido, Mãezinha, que ela própria escolheu,
enquanto que a de dona Naca tinha seu próprio nome, que foi escolhido
pelo filho pescador, para lhe homenagear, fazendo-lhe uma surpresa.
Iliete e o marido optaram pelo nome da filha mais nova, adotiva, com
o intuito de lhe demonstrar o quanto é amada. Eles já possuíam as
embarcações Eduarda I e Eduarda II. Também foi comum ver nomes
ou expressões jocosas, como a canoa Tansinha, cujo significado diz
respeito à mulher que não é muito esperta.
A manutenção era feita continuamente, sendo uma vez ao ano,
geralmente, refeita a pintura das embarcações, momento em que
encontrei mulheres trabalhando com seus maridos. Ao perguntar-
lhes como escolhiam as cores, a maioria dos homens respondeu
antes que a mulher pudesse falar:71 “é ela quem decide, pois entende
melhor da combinação das cores”. Para serem pintadas, as embarcações

aos veranistas, etc. são enquadradas como demais. Em assim ocorrendo, não conseguem
a DAP, exigência central para acessar aos financiamentos com juros mais acessíveis.
Sobre formas de financiamento via Pronaf, ver: www. pronaf.gov.br.
O que para sua família era extremamente significativo pela religião, vivida de forma
70

muito dedicada e fervorosa. Safira e sua família pertenciam à Congregação Cristã no


Brasil, cujos cultos que ela frequentava ocorriam às noites de quinta-feira e domingo.
O aspecto da religião, da religiosidade e da fé, embora eu não tenha me aprofundado
sobre isso, era recorrente em algumas pescadoras. Encontrei mulheres participando das
seguintes igrejas: Católica, Assembleia de Deus, Congregação Cristã no Brasil, Espírita.
Uma dizia não acreditar em nada.
No início do trabalho de campo, os pescadores me questionavam muito sobre por
71

que eu não fazia também uma pesquisa com e sobre eles; “afinal quase ninguém vem
saber de nós”. Ou: “nós também queremos falar. Por que só com elas?”. Ao que lhes
explicava meu propósito. No entanto, mesmo eles sabendo que meu interesse era pelas
pescadoras, quando podiam, sempre entravam nas conversas, opinando, comentando,
contando algum episódio. Percebi uma espécie de necessidade de falar e ser escutado.
Capítulo 3 | O mundo da pesca das mulheres 135

eram retiradas dos ranchos e levadas para a praia, onde o processo


de lixar e pintar ocorria em etapas sucessivas. Depois de concluído
o trabalho, eram devolvidas aos ranchos, locais de abrigo daqueles
que as possuem, ou mantidas ancoradas em local próximo, alguns dos
quais denominados portos.

3.2.2 Agulhas, linhas, redes

Pescas. Pesca de peixe, de camarão, de siri, de berbigão, foram as


que acompanhei. Entre os peixes, corvina, linguado, tainha, anchova,
robalo; camarão-de-sete-barbas, camarão branco. Os peixes têm suas
épocas e diferentes valores perante o mercado. Assim, tem-se um
calendário anual composto de diferentes espécies e distintas formas de
pescar. Maio a julho era a vez da tainha, peixe cobiçado pelos clientes
que acorriam aos mercados e barracas, e festejado pelos pescadores e
pescadoras. Os anos de 2011 e 2012 foram considerados fracos, pois a
tainha passou longe, lá fora.
Essa circularidade que preenche o calendário da pesca no
decorrer do ano é acompanhada por uma embarcação que serve de base
para a captura, mas as redes72 mudam de acordo com o tipo de pescado
e a época do ano.73 Há aí uma diversidade que faz parte do que se chama
de “panos da rede”. Dependendo do seu tipo, uma rede pode ter um, ter

72
Faço um agradecimento especial ao colega da Epagri, Jefferson Oliveira, de Laguna,
especialista na área da pesca, com o qual tive conversas que contribuíram para me
esclarecer acerca das diferenças sobre apetrechos, redes, embarcações, o que aliei ao que
as pescadoras me narraram.
73
Existem também, além das redes, outros tipos de apetrechos para realizar as pescas:
pesca de peixe com anzol – apetrecho de metal para captura individual de espécie; pesca
de fisga – espécie de tridente, para a pesca realizada no complexo lagunar. O pescador
fica na proa da embarcação para ter visão de onde está o linguado. Rema lentamente
até avistar o linguado, momento em que vira o lado do anzol, que é o próprio tridente,
fisgando-o; pesca de gerival, ou berimbal – no complexo lagunar, é proibida. Em São
Francisco do Sul é legalizada. Em uma bateira ou canoa, um pau atravessado do lado
dela, coloca-se um par de gerival de um lado e um par do outro e captura-se só o camarão.
É predatória também, pois pega todo o fundo. Pesca de siri – existe a feita com covo, que
é uma armadilha fixa de fundo. Põe-se no final da tarde e se retira no dia seguinte. Existe
ainda a feita com espinhel, que é um fio de nylon no qual vai se dando nó e colocando
carne de gado. Em média, de cinquenta em cinquenta centímetros vai se soltando no
fundo; tem cerca de oitocentos a mil metros de comprimento. Espera-se cerca de meia
hora, depois se passa com a embarcação e vai-se recolhendo tudo com um puçá, que é
uma espécie de coador. O pescador fica praticamente deitado na embarcação; a linha vai
correndo pela mão direita e, com a esquerda, munida de um puçá, retira os siris.
Mulheres e o mar 136

três panos, ter muitas braças.74 A rede para camarão é uma; as redes para
peixes mudam de acordo com o tipo, o que vai repercutir no tamanho
da malha. Assim, uma rede para corvina tem malha oito, uma rede para
tainha tem malha dez, uma rede para peixes menores tem malha seis.
Para a pesca de siri que acompanhei, eram usadas armadilhas chamadas
de gaiolas, feitas de madeira e fechadas com linha de algodão depois de,
no interior delas, colocadas as iscas.
A expressão utilizada para refazer e recuperar a rede que se rompia
durante a pesca era consertar, remendar. Pescadores e pescadoras faziam
esse trabalho, geralmente juntos, dependia do tamanho da rede e do
estrago que tivesse sofrido. Para tanto, eram utilizadas agulhas e linhas
e, a exemplo do processo usado por costureiras e alfaiates, os panos iam
sendo costurados e refeitos à medida que a agulha avançava em meio
às malhas, refazendo os nós que davam formato aquele tipo de rede. Se
antes as linhas eram de algodão, cada vez mais são substituídas pelas de
nylon, made in China,75 o que exige firmeza e ao mesmo tempo provoca
fissuras nas mãos que consertam.

3.2.3 As bandeiras

As bandeiras me fascinaram desde o primeiro momento, o que


provocava risos em pescadores e pescadoras, levando-os a me questionar
constantemente: “Mas o que tu vês nessas bandeiras? São só bandeiras”. O
que viam como só bandeiras apontava-me que haveria muito mais a ser
considerado quando pensamos sobre a intenção da bandeira: sinalizar
os pontos de pesca no mar. Em um cotidiano que, visto de fora, pode
ser interpretado como sem regras, sem normas, sem leis e que segue um
fluxo ditado pelo mar, pelo tempo, pelos ventos, ao contrário, se mostrou
intensamente pautado por regras muito claras, a primeira das quais diz

74
Braça é uma medida usada pelos pescadores e pescadoras, que utilizam o braço
esticado como referência. Daí se dizer que a rede tem tantas braças.
75
O que trabalhei em Gerber (1997). Sobre Globalização, ver Bernan (1986); Appadurai
(1990); Featherstone (1990); Fonseca (1993); Harvey (1994); Ortiz (1994); Rial (1995).
Os denominados “panos de rede” atualmente são feitos industrialmente com linhas
de nylon e chegam às mãos de quem vai confeccionar a rede propriamente dita via
comércio local. Se antes a confecção era feita em casa a partir de linhas de algodão, a
produção industrial avançou no cotidiano da pesca num rápido processo, que Harvey
chamou de encolhimento do mundo, uma compressão espaço-tempo que teve um forte
impacto sobre práticas político-econômicas e sobre a vida social e cultural das pessoas
(HARVEY, 1994, p. 257).
Capítulo 3 | O mundo da pesca das mulheres 137

respeito a ter que gostar da pesca para nela continuar. Uma segunda
regra remete a considerar que, se o mar aparentemente não tem dono,
não tem cercas. É possível afirmar que há uma complexidade alusiva aos
muitos territórios que são sinalizados e que, portanto, mostram para
os que ali circulam quem é o dono daquele ponto. A delimitação e a
sinalização desses territórios, embora sejam migrantes e se desloquem
de acordo com a época do ano, são marcadas pelas bandeiras.
As bandeiras são, portanto, os sinalizadores que mostram
visualmente onde estão colocadas as redes de pesca, uma forma clara
de delimitar e dividir o espaço do mar e, embora aos olhos leigos
possam parecer todas iguais, cada pescador sabe qual é a sua. Ao lhes
perguntar como a identificam e como fazem para diferenciá-la em
meio a tantas, as respostas: “Cada um faz de um jeito; cada um costura
de um jeito; cada um inventa uma forma de saber que aquela é a sua”.
São jeitos de amarrar, dobrar, fazer, costurar em que cada um tem e
identifica a sua forma.
Ao perguntar-lhes como e com que material faziam, uma resposta
em comum: “inventamos”. Na ocasião de minha pesquisa, observei e eles
me contaram que estavam usando muito os restos de guarda-chuvas.
Ao indagar-lhes como chegaram aos guarda-chuvas, me esclareceram:
“Testamos e vimos que dura muito, não resseca tanto no sol e mantém a
cor por mais tempo”. Na verdade, percebi que tudo se aproveita em uma
permanente bricolagem: restos de panos, de saias, de camisetas de clube
de futebol e de tecido de guarda-chuvas ou sombrinhas.
É interessante aqui remeter a Martins (2007), que, no contexto
de Portugal, se referia à criatividade, às invenções e reinvenções dos
pescadores que constroem, consertam e laboram com as artes de pesca,
para os quais a atividade pesqueira dependia de uma sucessão de
invenções e novidades cotidianas. Diz esse autor que não se trata só de
imaginar como se deve construir um aparelho que opera escondido da
vista, mas que todas as possíveis circunstâncias são levadas em conta,
quando cada profissional constrói o aparelho e reinventa-o diariamente.
Eu diria que a capacidade criadora de pescadores e pescadoras é
de tal forma inventiva que, concordando com Martins (2007), qualquer
tentativa de descrição é insuficiente para revelá-la na totalidade.
Ao inventar e reinventar formas de viver a pesca, eles se inventam
e reinventam dando a esse já diverso universo mais diversidade,
possibilidades e peculiaridades que fogem a qualquer material
inicialmente adquirido de produções industriais. Ao fazer isso, estão
reinventando formas diferenciadas de viver a dita cultura pesqueira.
Mulheres e o mar 138

“Os procedimentos de reinvenção são discretos, quase invisíveis,


porque correspondem a pequenos acréscimos, que aproximam
o aparelho de um grau de perfeição por ele intuído” (MARTINS,
2007, p. 60). Eles cultivam uma atitude e um “espírito metódicos, e
são intelectualmente rigorosos ao aproveitarem as experiências do
passado” (MARTINS, 2007, p. 60).
Na sucessão de testes e experiências, vão alternando os materiais,
acrescentando outros, inventando e reinventando seus utensílios,
equipamentos e complementos. Nas palavras de Safira, um improviso
em que juntam algumas peças, criam outras, testam e voltam a criar
em um exercício contínuo de aproveitamento, colagem, emendas,
remendos. Lévi-Strauss (2002, p. 32), ao usar a expressão bricoleur,
esclarece: “o bricoleur é aquele que trabalha com as mãos [...] como no
bricolage, no plano técnico, a reflexão mítica pode alcançar, no plano
intelectual, resultados brilhantes e imprevistos [...]”.

O bricoleur está apto a executar um grande número de tarefas


diversificadas, porém, ao contrário do engenheiro, não subordi-
na nenhuma delas à obtenção de matérias-primas e de utensílios
concebidos e procurados na medida de seu projeto: seu universo
instrumental é fechado, e a regra de seu jogo é sempre arranjar-se
com os “meios-limites”, isto é, um conjunto sempre finito de uten-
sílios e de materiais bastante heteróclitos, porque a composição
do conjunto não está em relação com o projeto do momento nem
com nenhum projeto particular, mas é resultado contingente de
todas as oportunidades que se apresentam para renovar e enrique-
cer o estoque ou para mantê-lo com os resíduos de construções e
destruições anteriores. (LÉVI-STRAUSS, 2002, p. 33).

Resumindo o princípio norteador central do exercício cotidiano


pelo qual se pauta o bricoleur, acorrendo aqui ao que elas próprias me
afirmavam, “é que a gente sempre guarda as coisas que ganha ou que
acha. Nunca se sabe ao certo, mas sempre pode servir para alguma coisa”.
Dessa forma, o material de destruições anteriores existe e fica à espera
da oportunidade de ser transformado de acordo com a necessidade do
momento.
Em relação ao processo de bricolagem com que confeccionavam
as bandeiras, a exemplo das redes de pesca, também percebi uma
repetição do ato de costurar. E observei e registrei um pescador a fazê-lo:
primeiro, de forma muito cuidadosa, cortou o tecido que revestia cada
varão de dois guarda-chuvas. A seguir, recortou-o em pedaços para,
Capítulo 3 | O mundo da pesca das mulheres 139

na sequência, costurar cuidadosamente cada recorte, um ao lado de


outro, em uma vara de bambu que, finalmente, se tornou o sinalizador,
a bandeira, que foi imediatamente levada à embarcação.
Ao observar atentamente o que o pescador fazia, pareceu-me
que sua mão grossa e ressecada pela pesca se tornava extremamente
delicada, à medida que a sequência cuidadosa que compunha cada
etapa da costura ia sendo cumprida. Com agulha, tesoura e linha, assim
o pescador costurava e criava aquela que saberia, entre tantas, ser a sua
bandeira, algo que me remete a Durand (1995, p. 17), quando se debruça
a descrever sobre a arte do sapateiro que consta, segundo o autor, em
unir com agulha e linha os fios que aliam costura e imaginação.

3.3 Os peixes

3.3.1 Os mais cobiçados e os mais perigosos

Segundo Haimovici e Klippel (1999), de modo geral, os peixes


são estudados de acordo com o ambiente onde vivem. No mar, são duas
as principais categorias: demersais, que na linguagem nativa são os
que vivem no fundo marinho ou ali se alimentam; e pelágicos, que diz
respeito aos que vivem ao longo da coluna d’água. Ou seja, na superfície,
e não se alimentam sobre o fundo.
Entre os demersais, os mais cobiçados, em se tratando de litoral
catarinense, são os linguados (família Achiridae e Paralichthyidae),
os bagres (família Ariidae), a corvina, o papa-terra, a pescadinha e
as pescadas branca e amarela (família Sciaenidae), os peixes-galo,
pampos e a guaivira (família Carangidae). Também se incluem todos
os camarões pescados, com destaque para o camarão-de-sete-barbas
que, na ocasião, era a espécie de maior importância para a frota
artesanal de arrasto em Santa Catarina. Encontrei também pescadoras
que lidavam com berbigão.
Entre os peixes pelágicos de maior importância, estão a tainha
e as tainhotas ou paratis (família Mugilidae), os robalos (família
Centropomidae), a anchova (Pomatomidae), a espada e os peixes
cartilaginosos, como as arraias e os tubarões.
Em termos de perigo, podemos nos referir aos peixes
considerados mais temidos pelos pescadores, entre os quais se incluem
os tubarões, principalmente o tubarão-tigre que, segundo relatos, se
finge de morto no barco para atacar. Por outro lado, estão as arraias, que
Mulheres e o mar 140

possuem um ferrão ou dão choques, como a treme-treme, e os bagres,


que têm esporões ou espinhos junto às nadadeiras, os quais facilmente
infeccionam por causa do muco presente no corpo do peixe, que carrega
uma carga elevada de bactérias, além de ser extremamente doloroso.
A arraia ainda é considerada a que tem a carne muito forte, o que faz
com que em algumas localidades seja evitada pelas mulheres durante os
períodos de gravidez e pós-parto, denominado resguardo.76

3.3.2 Os peixes e as redes

Em relação às redes utilizadas conforme o peixe a ser capturado


e as formas de pescar, de acordo com os tipos de pescarias, encontrei
as seguintes: rede de espera fixa, que em alguns lugares é chamada de
manjuada, e que se divide em: a) de superfície, que é usada para a tainha
e para diversos peixes, os demersais; b) de meia-água, para anchova
e, em alguns casos, para sardinha; e c) de fundo, usada para abrótea,
cação, corvina, os chamados peixes de fundo. Algumas redes são lisas,
de um só pano, mais usadas dentro de lagoas. Outras são de três panos,
para capturar peixes maiores. É a chamada rede de malhão, pois são três
malhas, sendo mais usada para o mar aberto. Outra rede muito usada é
a de cerco: uma rede lisa, de um só pano, usada para tainha e anchova.
Geralmente é mais utilizada em lagoas, ou águas mais tranquilas. Dentro
do cerco existe, em algumas regiões do estado de Santa Catarina, o que
chamam de bate-bate,77 que, na prática, significa bater com o remo na
embarcação, ou na água, provocando um eco que confunde o peixe e faz
com que entre na rede.
A rede feiticeira, também chamada rede de currico, é pouco
usada no estado pela pesca artesanal. Verifica-se um uso mais frequente
por turistas, na pesca de praia. É uma rede feita de três panos; chamada
também de rede de malhão. Tudo o que entra na rede feiticeira, não sai.
Em alto-mar, ela é amarrada na embarcação e vai seguindo conforme a
maré. Outra modalidade utilizada, considerada predadora, pois arrasta

76
Maria Fernanda S. Pereira realizou sua pesquisa de mestrado na Costa da Lagoa,
Florianópolis, em que analisou as concepções e práticas relacionadas à formação da
criança, e observou que esta era, simultaneamente, um ser individual, mas também
membro representante da família formadora de uma rede relacional. No decorrer de
sua pesquisa, realizada com mulheres grávidas ou em período de resguardo, emergiram
questões que diziam respeito a prescrições e permissões alimentares no período de
gestação e no pós-parto (PEREIRA, 2012).
Aspecto citado por Mussolini (1980), quando de forma pioneira descreveu o cerco.
77
Capítulo 3 | O mundo da pesca das mulheres 141

o fundo do oceano, é a rede de arrasto de camarão. Trata-se de uma


rede, cuja panagem é feita de linha mais grossa e cuja pesca é realizada
com pranchas de madeira e com ferro para dar o peso necessário para
arrastar. A época do defeso, no caso do camarão rosa e do camarão-de-
sete-barbas, era de 1o de março a 31 de maio, desde 2009.
A tarrafa é uma rede usada comumente pelos pescadores,
podendo ser de três tipos, conforme a finalidade: a) lisa, de malha três
para camarão, que não tem o tenso (que serve para ensacar o camarão);
b) de rufo (para pegar peixe); c) de argola (quando puxada, forma o rufo
em toda a sua extensão).
A prática com rede de arrasto de praia é realizada esporadicamente.
Essa rede também arrasta o fundo, capturando diversas espécies de
peixes, tanto grandes quanto pequenos. A diferença em relação ao
arrasto no mar é que se faz o cerco da praia para a água, saindo da areia
e fazendo o cerco; a seguir, se volta para a areia. É realizada com canoa
a remo e puxada por homens. Uma peculiaridade da região Sul de Santa
Catarina, no município de Araranguá, é o fato de ser feita com motor e
puxada por trator.
A rede denominada de aviãozinho é considerada uma armadilha
fixa, pois o que entra não sai, e funciona com uma atração luminosa.
Em alguns lugares se chama de ponte estrela. O período de defeso era de
15 de julho a 15 de novembro. Na ocasião, existiam 28 áreas que foram
balizadas desde 1986, 22 áreas oficiais e seis de acordo de pesca (que
não é autorizado, mas feito por meio de um acordo com o Ibama). Cada
pescador tem direito a três pontos com seis redes cada um, totalizando
18 redes. Pela legislação, a rede pode ter até 14 metros, mas os pescadores
artesanais, segundo informações de técnicos da Epagri, costumam usar
redes menores. A legislação permitia, na época, malha três, mas como
as fábricas não conseguiam fazer com essa malha, ficava em malha dois,
malha oito, o que acabava sendo aceito. Era usada no complexo lagunar
e na lagoa do Sombrio, Sul do estado de Santa Catarina.

3.3.3 A morte do peixe; a vida na pesca

É preciso que o peixe morra para que o pescador viva. A ativi-


dade da pesca está imersa em uma relação de vida e morte em que,
para pescadoras e pescadores conseguirem continuar na atividade,
peixes, siris, lulas, camarões e demais pescados que fazem parte de seu
cotidiano precisam ser capturados e mortos diariamente. Não há culpa,
nem piedade, nem se pensa sobre isso, pois é necessário que o peixe
Mulheres e o mar 142

seja fresco, embora se trate de um peixe morto. Se o peixe, por exemplo,


chegar às bancas de comercialização ainda com sinais de vida manifestos
nas leves aberturas de boca e guelras, procurando um pouco de ar, ou
em movimentos inesperados de seus corpos, melhor: os clientes vibram
e têm a certeza da qualidade do frescor do produto.
Acompanhar os momentos de captura dos peixes me colocou
frequentemente em conflito, em confronto direto ao presenciar, com
uma experiência audiovisual, ou seja, testemunhar a morte deles.
Comprar um desejado e desejável peixe fresco no mercado público é uma
coisa que eu, como cliente, estava acostumada a fazer corriqueiramente.
Sempre queria o peixe fresco, mas o peixe já estava morto. Não saltava
na minha frente nem me olhava como se pedisse socorro. Acompanhar
o processo de morte dos peixes e de outros bichos, como pesquisadora,
fez-me refletir sobre a subjetividade em campo,78 ponderando sobre até
aonde vamos, mesmo nos contrariando, angustiando, sofrendo, para
levar a cabo nosso propósito de realizar uma pesquisa.
Inesperada, mas rapidamente, aprendi que a morte deles – os
peixes – tem som. Ouvi-los me deixava angustiada, inquieta, me
sentindo sufocar e, instintivamente, puxando meu próprio ar. Após a
primeira vez que vi e ouvi esse processo, espontaneamente perguntei à
pescadora e seu esposo: vocês não têm pena de ver o peixe morrer? Não
se sentem agoniados? Ambos, rindo muito, me responderam de forma
jocosa: “Rose, vou falar uma coisa, não me faz esta pergunta ridícula para
mais ninguém. Se perguntares isso aos outros pescadores, eles vão te jogar
do barco com roupa e tudo. Onde já se viu ter pena do peixe? (Dé); “Para
nós vivermos, o peixe tem que morrer. Entendesse? É a regra: a morte do
peixe é a vida na pesca (Alzira).
O golpe final na cabeça ou entre os olhos, caso fosse necessário,
se tornava extremamente angustiante para a antropóloga em meio à
familiaridade dos profissionais que matavam de forma certeira. Para eles,
e segundo eles, para o pescador viver, o peixe tem que morrer. “É assim;
é o processo natural”, me diziam. Se ali, na frente deles, eu me vi tendo
que achar natural, e me esforcei para demonstrar uma naturalização do
que via, foi no Diário de campo que consegui registrar minha aflição
diante desses momentos:

Todos nós nos deparamos com questões em campo que dizem respeito à subjetividade.
78

Nesse sentido, sugiro ver, entre outros, Rabinow (1977); Barley (1983, 2006); Clifford
(1983); Geertz (2008); Oliveira (2009); Maluf (2010, 2011).
Capítulo 3 | O mundo da pesca das mulheres 143

Que angústia! Como mexe comigo ver os peixes morrendo.


Comprar peixe fresquinho em uma peixaria ou no mercado é uma
coisa. Agora, presenciar eles morrendo é outra completamente
angustiante. E tem som! O peixe tem som. Essa sequência de
sons que vai do mais forte e, gradativamente, diminuindo até
acabar, me angustia. E o golpe final, quando precisa, entre os
olhos? Nunca tinha pensado nisso: um peixe fresco é um peixe
recém-morto, ou ainda quase vivo. (Barra do Sul, 13.9.2011).
Ainda não me acostumei com os respiros finais dos peixes, siris,
arraias. Presenciar de perto o processo de morte deles tem me
incomodado. Juro: eles me olham. Ontem, uma arraia olhou
para mim.79 Fiquei angustiada ao observar sua falta de ar e
movimento de ida e vinda do que me parecia seu peito. Estava
ali, acompanhando aquele ir e vir, quando, de repente, a arraia
abriu os olhos e olhou para mim ao mesmo tempo em que abria,
em agonia, a pequena boca. Por um momento fiquei com o
olhar fixo no dela para, a seguir, rapidamente, desviá-lo e seguir
olhando outros detalhes daquela manhã [...] qualquer coisa para
não ficar ali encarando aquela arraia que, fragilizada, me olhava.
Abria e fechava os olhos enquanto dava os últimos suspiros.
Não aguentei, desviei os olhos da arraia e fui observar os urubus
que faziam festa com os restos de peixes ao que, daqui a pouco,
seriam agregados os restos da arraia. (Palhoça, 29.6.2011).

Poderíamos pensar que as pescadoras se pautam por uma forma


rizomática pela qual, em alguns momentos, defendem alguns bichos e
se indignam perante atitudes tomadas em relação a outros. Porém, para
o sucesso na repetição cotidiana de busca pelo sustento familiar, a morte
de um dos bichos é central, desejada e, caso não ocorra pela rede que
lhe captura, o golpe final é desferido sem qualquer cerimônia ou culpa,
tendo em vista que, para o pescador viver, é preciso que o peixe morra.
O mesmo peixe que emociona a pescadora “como um filho que se vê pela

79
A expressão que uso não tem qualquer relação com a obra de Tânia Stolze Lima,
Um peixe olhou para mim, 2005. A autora trabalha sobre o povo Yudjá e a perspectiva,
centrando sua pesquisa sobre o cauim, bebida fermentada que seria gente, pois, de certa
forma, mata. “O cauim é tido por seus iwa como ‘gente’ porque a embriaguez é um
grau de morte. Penso que tem um sentido implícito: não nos mataria se fosse gente. Em
outras palavras: se a gente morre-um-pouco, só pode ser gente. Se os iwa são retratados,
como parece, em uma tentativa de restituir o raciocínio dos que batizaram a bebida no
passado, é, talvez, como se tivessem dito a si mesmos: o cauim nos mata-um-pouco;
até parece que é ‘gente’!” (LIMA, 2005, p. 380). A expressão que utilizei naquele dia em
campo foi apenas como evocação imediata do que senti quando o olhar da arraia se
deparou com o meu.
Mulheres e o mar 144

primeira vez”, a seguir é firmemente abatido, pois só assim se reverterá em


vida para quem lhe capturou. Não há aí nada de errado. O peixe, talvez,
não seja um bicho, mas um quase ente que lhes mantém vivos. Portanto,
“não se pode contar com um dualismo ou uma dicotomia, nem mesmo
sob a forma rudimentar do bom e do mau” (DELEUZE; GUATTARI,
2009, p. 18). É assim que funciona a pesca. Como um rizoma, que se
expande feito tentáculos muito sutis, pescadores e pescadoras defendem
a vida de bichos e a relação com eles. Mas também dependem da morte
de outros para que a própria vida continue.

3.3.4 Outros bichos: cachorros, gatos, gaivotas, urubus

Há pequenos animais, como cachorros, gatos, garças, que


fazem parte do cotidiano da pesca. Aonde seus donos ou donas
vão, eles estão juntos, cruzando caminho, metendo-se na frente, no
meio, bisbilhotando, cheirando, rosnando, espreitando para ver se
ganham algum naco de comida. Era assim com Marjorié, a cadelinha
de Mãezinha; Tico, o gato de sua filha; Tuco, o cachorrinho de dona
Iliete; Sara, a garça amiga de Safira, que aparecia sempre que os peixes
estavam sendo limpos, e que, quando não ia, era lembrada: o que será
que aconteceu com Sara, que hoje não veio?
Por outro lado, havia bichos que nunca eram convidados, mas
que sempre apareciam nos momentos em que a fartura das vísceras era
denunciada quando pescadores ou pescadoras iam jogar no mar os restos
que não seriam aproveitados após a limpeza do pescado. O que ocorria
poderia ser definido como uma junção de festa com briga e competição
entre gaivotas, urubus, garças, mas, principalmente, entre as primeiras em
que a algazarra ganhava decibéis que faziam, por vezes, doer os ouvidos.
Como numa espécie de dança, as gaivotas que tinham acabado de
engalfinhar um naco de peixe imediatamente se viam seguidas por outras
que cismavam em pegar justamente aquele pedaço. Em movimentos para
frente ou para trás, para o lado direito ou esquerdo, cada qual tentava
se livrar da concorrente até conseguir, em um movimento certeiro, sair
correndo com o petisco enquanto a que perdeu aguçava mais ainda seus
grunhidos estridentes.
Os urubus não faziam tanta algazarra. Concentravam-se no
pedaço de comida, objeto de disputa, com as asas abertas em “v”,
enquanto os movimentos das pernas acompanhavam a concentração
dos olhos fixos nas vísceras e nos restos de peixe ou de crustáceo
que foram jogados fora. A bicharada percebia que algo estava para
Capítulo 3 | O mundo da pesca das mulheres 145

acontecer quando o movimento, geralmente feito com um carrinho de


mão conduzido até a beira do mar, começava. Como que disfarçando
para que o outro não percebesse, cada um começava lentamente a se
aproximar do local-espaço do banquete e, de repente, quase ao mesmo
instante em que o pescador ou a pescadora virava o carrinho, o alarde se
fazia num uníssono: “uéquéquéquéqué!!!!”.
Foi possível observar uma relação muito próxima entre pescadores
e pescadoras e os animais que circulavam em suas casas ou na própria
praia, em que mesmo aqueles que não seriam, em princípio, animais de
estimação, eram vistos como parte da família ou merecedores de atenção.
Em alguns momentos, eram tratados de uma forma tão próxima e
carinhosa que beirava a uma relação humano/humano.80 Segundo um dos
pescadores com os quais convivi, “todas as criaturas têm direito a comer”.
De acordo com ele, isso está ficando cada vez mais difícil com o que definiu
como a neurose do plástico. Ou seja, a Vigilância Sanitária prescreve a
limpeza total do ambiente81 da praia com tudo sendo embalado em sacos
de plástico, imediatamente após a seleção e limpeza dos pescados. Para o
referido pescador, isso era visto como um absurdo, pois ele percebia que
até as gaivotas estavam ficando raquíticas, sem força para levantar voo
devido à falta de comida. E isso, dizia ele, “é culpa dos turistas, que querem
tudo limpinho”. Em suas palavras:

Até as gaivotas estão fracas. Podes ver, olha lá: coitadas! Não têm
força nem para levantar voo; estão ficando raquíticas. Agora a
prefeitura vem obrigando a gente a limpar tudo, ensacar tudo em
saco plástico, onde já se viu? Coitadinhas das gaivotas! E a culpa
é dos turistas que querem a praia toda limpinha; os neuróticos
com limpeza. É a neurose do plástico. Coitadinhas! Eu dou comida
mesmo. Todos têm o direito de comer. Por que elas não teriam?
(João, Pântano do Sul, Florianópolis).

Havia o questionamento e, ao mesmo tempo, uma ponderação


que dizia respeito à diferentes concepções de limpeza. Por um lado,
aquela que o pescador entendia que poderia ser mantida tendo em vista
postular-se por uma ética da relação com os bichos, diante daquela com
a qual se depara quando os órgãos públicos exigem o cumprimento do
que diz respeito a seguir os preceitos da legislação sanitária. Enquanto

Sobre a relação humanos/animais/animais/humanos, ver Segata (2012); Ingold


80

(1991, 2012); Descola (1997, 1998, 2005).


Para uma discussão sobre meio ambiente e antropologia, ver Devos (2007, 2008).
81
Mulheres e o mar 146

os moldes técnico-sanitários preconizam a limpeza e higienização


total da praia, o pescador se guia por preceitos que querem dar conta
do pressuposto de que todos os seres vivos têm direito à alimentação,
inclusive elas, as gaivotas, coitadinhas!

3.4 Em terra: o trabalho continua

3.4.1 Entre o cru e o cozido, cozinhas e ranchos de


pesca

Se formos usar a casa82 para pensar a pesca, precisamos considerar


que a construção dos espaços de sociabilidade aproxima casa e rua,
incluindo dois espaços centrais: a cozinha, que é circunscrita às casas, e o
rancho de pesca que, além de ser o local de abrigo das embarcações e de
realização de atividades ligadas à pesca, é um lugar central para encontros,
reuniões, lanches, chegadas e saídas. Uma espécie de segunda casa.
Dentro das casas das pescadoras com as quais convivi, o
espaço central onde tudo acontecia, como receber visitas, mães, avós,
compadres e comadres, amigas, preparar e fazer as refeições, e onde as
atividades do dia cedo se iniciavam, era a cozinha. Era ali que a família
se reunia e conversava em torno de temáticas alusivas à pesca, como
os seus períodos de fartura ou escassez, as dificuldades enfrentadas ou
as pescarias consideradas boas, os encaminhamentos necessários para
legalizar a situação perante os órgãos ligados à profissão, entre outros.
Era na cozinha que a pescadora preparava a refeição a ser levada para o
mar, como café, pães ou, se fosse ficar mais tempo, pratos salgados.
A cozinha é o espaço inicial de circulação de aprendizados sobre
os processos de beneficiamento dos produtos da pesca, aí incluindo

82
Janet Carsten e Stephen Hugh-Jones, ao organizar About the house, 1995, inspirados
nos escritos de Lévi-Strauss sobre “house societies”, propuseram como objetivo reunir
ensaios que falassem sobre casas, não no sentido de estrutura física, mas como espaço
que tem uma dinâmica processual e que diz muito sobre corpos, pessoas, relações;
como se vive, com quem se come, como se pensa. Segundo eles, “as casas ganham
significado para grupos sociais e representam o mundo em volta deles. [...] casas têm
dinâmica, características processuais encapsuladas na palavra ‘residência’” (CARSTEN;
HUGH-JONES, 1995, p. 1-2). Maluf (1993, p. 49), em seu trabalho de campo em uma
comunidade pesqueira de Florianópolis observou que a casa é “o espaço inteiramente
produzido e transformado pelo ser humano e impregnado de seus signos”. Ambos os
trabalhos dizem respeito às especificidades que cada sociedade imprime nesse espaço
onde transformações acontecem e as relações se dão.
Capítulo 3 | O mundo da pesca das mulheres 147

consumo e transformações alimentares que implicam normas, valores,


relações83 referentes à comida e à culinária. Nas localidades que percorri
são as mulheres que trocam e fazem circular esses conhecimentos, que
são passados de mulher para mulher em relações inter e intrageracionais
em que aprendem a limpar, eviscerar, descascar, preparar, mesclando
“matéria e memória, presente e passado, invenção e necessidade na forma
de gostos, cheiros, cores, sabores, formas, consistências, especiarias e
condimentos” (CERTEAU; GIARD; MAYOL, 1997, p. 296). Quem, o
que e como se come, formas de preparo, temperos usados, ingredientes
que não podem faltar, por que se come ou se deixa de comer, são questões
que dizem respeito à comida e à culinária,84 aspectos da vida centrais

83
Woortmann (1986) afirma que a comida fala da família, aí incluídos homens e
mulheres, e que é por meio da percepção da comida que o gênero é construído no plano
das representações. Diz ele que quando se constrói a refeição, se constrói o gênero.
Embora se possa ponderar que há muito mais a ser considerado quando pensamos
sobre os processos de construção de gênero, essa correlação entre comida e gênero faz-
se interessante para pensarmos como a refeição mostra alguns processos relacionais.
Por exemplo, para observarmos quem recebe o que é considerado o “melhor pedaço”,
quem come junto com quem; quem serve a comida, entre muitos outros fatores. Há
também outro aspecto, levantado por Maciel (2004). A autora afirma que a comida
envolve emoção, trabalha com memória e sentimentos. A expressão, por exemplo,
comida caseira ilustra bem esse pressuposto, evocando aconchego, segurança, ausência
de sofisticação ou de exotismo. Remete ao familiar, ao próximo, ao frugal, diz a autora.
Quando dona Alícia, 61 anos, dona de um restaurante, me narrou que tentava fazer
tudo natural, como na minha casa, remetia, a meu ver, ao exposto por Maciel, pois
implicava trazer para seu estabelecimento um jeito de fazer: feito em casa. Esse jeito
de fazer em casa remete ainda às relações entre mulheres em que os aprendizados se
dão de mãe para filha, de avó para neta, de vizinha para vizinha em que um constante
“aprendi com” remete à memória dos saberes-fazeres de mulheres na cozinha. A esse
respeito Luce Giard traz uma rica discussão sobre lembranças, cheiros, especificidades
que nos fazem pensar como “dignas de interesse, de análise e de registro aquelas práticas
ordinárias consideradas insignificantes” (CERTEAU; GIARD; MAYOL, 1996, p. 217). A
cozinha é, portanto, um espaço em que o domínio que emerge é o feminino, segundo
Woortmann (1986), com o que concordo quando me refiro aos espaços da pesca que
percorri. Aspectos que dizem respeito à criatividade, às invenções e às habilidades da
culinária pesqueira do litoral de Santa Catarina, dos quais são as mulheres centralmente
detentoras.
84
Sobre a alimentação e a culinária, ver: Certeau, Giard e Mayol (1997); Maciel (2001,
2004); Zaluar (1982); Woortmann (1986); Canesqui e Garcia (2005); Rial (2003);
Cascudo (2003); Carneiro (2006); Barbosa (2007); Silveira (2011); Lévi-Strauss (2004,
2006); Kraieski (2007, 2012); Pagu (2012). Trata-se de temáticas centrais de troca entre
as mulheres pescadoras, cujos saberes-fazeres (CERTEAU, 1996) produzidos nesses
espaços repercutem no mar, quando os cozinheiros que atuam na pesca industrial, ao
virem a terra, pedem às suas esposas “alguma receita nova” para inovar (WAGNER,
1981) nas cozinhas dos barcos em que atuam. Assim, embora, a maioria das mulheres
Mulheres e o mar 148

em todas as localidades,85 pois revelam muito sobre elas, segundo Lévi-


Strauss (2006, p. 448).
A culinária pesqueira tem como figura central os frutos do
mar, tendo destaque o peixe, por questão de preferência, mas também
porque o camarão, financeiramente, rende mais, ficando para consumo
esporádico. Junto ao peixe, não pode faltar a farinha de mandioca para o
pirão, que pode ser feito só com água fria ou fervendo, ou ainda com um
caldo de peixe. Pirão com peixe é um prato não só de consumo caseiro
preferencial, mas prato-emblema de restaurantes. Nesse sentido, Maciel
(2001) afirma que “cada região possui hábitos alimentares próprios,
mas também pratos emblemáticos que servem como marcadores
identitários regionais”, em que o tempero e as formas de fazer emergem
como um diferencial nesses processos. Assado no forno ou na brasa,
cozido, ensopado, frito, defumado, escalado, muitas foram as formas
de preparo e consumo de peixes que observei, sendo uma preocupação
central não deixar o peixe cheirar. Ou seja, dar sinais de apodrecimento,
porque isso não só significava perdas, mas a ojeriza de possíveis clientes
que, segundo as pescadoras, muitas vezes confundem o cheiro marcante
de alguns peixes com cheiro de podre.
Quando Lévi-Strauss (2004, 2006) se debruçou na escrita que
compôs Mitológicas, nos deixou questões instigantes para pensarmos
a relação natureza/cultura, cru/cozido/podre, a partir do que ele
denominou de triangle culinaire. Se em O cru e o cozido, o autor inicia
a definição do referido triângulo postulando que em qualquer cultura
ele pode servir para pensar oposições que dizem respeito à natureza/
cultura, em Do mel às cinzas faz emergir “o mais-que-cru” e o mais que
cozido, mel e tabaco. Porém, foi em A origem dos modos à mesa que o
autor mais me inspirou ao falar sobre modos de fazer.

fique em terra, a troca de seus conhecimentos chega ao mar, nos espaços considerados
exclusivamente masculinos, como as embarcações, propiciando uma troca contínua
entre mulheres e homens sobre invenções e reinvenções também no que diz respeito à
alimentação e à culinária advinda da pesca.
85
DaMatta (1997) preconiza que a sociedade manifesta-se por muitos espelhos e
idiomas, e que um dos centrais no Brasil seria a comida, viés pelo qual a reprodução
social também se dá. Concordo com DaMatta no sentido de que a comida nos fala
muito. Olhar a comida me disse muito sobre o lugar da mulher no mundo da pesca,
em especial sobre os processos de manipulação, preparo, transformação e consumo
alimentar em que a cozinha (CERTEAU; GIARD; MAYOL, 1997) e os ranchos de
pesca, em uma relação casa/rua (DAMATTA, 1991), se mostraram centrais, sendo
onde ocorrem processos de manipulação e transformação de alimentos. Portanto, de
cruzamentos e circulação de saberes-fazeres femininos.
Capítulo 3 | O mundo da pesca das mulheres 149

O tetraedro de receitas proposto por Lévi-Strauss (2006, p. 446),


grelhado, assado, defumado e frito, que remete aos eixos água/ar/óleo,86
instigou-me a problematizar diferentes fazeres que diziam respeito
à comida, à culinária, aos modos de manuseio e transformação que
tinham como espaço privilegiado cozinhas e ranchos de pesca e, como
elemento central, o fogo. Do frito, preferência de consumo diário para
as pescadoras, aos processos de pré-cozimento, algo que não mais está
cru, mas também não é de todo cozido, talvez o que Lévi-Strauss (2006,
p. 446) denominaria de “meio-caminho”, no caso entre o cru e o cozido;
e a defumação, visando a atender um público ávido por produtos feitos
diretamente por elas, o tetraedro na prática pesqueira dá centralidade
à fritura, por um lado, e à fumaça defumadora, por outro, em que o
mais que cozido aproxima as mulheres dos processos contínuos de
transformação de natureza em cultura.
Para além do espaço propriamente dito das cozinhas de suas
casas, deparei-me, conforme venho afirmando, com outro espaço
que era central para que a pesca acontecesse: os ranchos de pesca ou
ranchos de descasque, situados nos fundos ou próximos às casas. O ran-
cho poderia estar fora do terreno onde vivia a família ou nos fundos
de suas residências. Trata-se de um local privilegiado de sociabilidade
entre pescadores e pescadoras. Era no rancho que se pedia material
emprestado, esquentava-se água, fazia-se café ou se preparava uma
refeição entre os muitos afazeres do dia. Alguns se entreajudavam na
pintura de embarcações ou nos momentos de empurrá-las para o mar
ou para dentro do rancho. Também era ali que se entregava a rede pronta
para o cliente que chegava, entre outras possibilidades.
O rancho é, portanto, um espaço de agitação, movimento,
conversas, discussões, negociações. É para lá que se encaminham os
que chegam do mar e é de lá que ocorrem as saídas para o mar, feitas
diretamente da areia para a água, a exemplo de Itapoá, São Francisco,
Governador Celso Ramos, Laguna; ou essa movimentação também
ocorre em pequenos trapiches de madeira, como em Barra, Barra do
Sul, Florianópolis, aos quais muitos se referiam como meu porto, o porto
de fulano. Todos sabiam de onde saíam para pescar a Safira, a Iliete, a

86
Lévi-Strauss propõe uma série de variações entre cada um desses componentes do
tetraedro em que oscilam cozimento no vapor ou cozimento na água, por exemplo. “Se o
sistema culinário considerado fizer uma distinção entre cozimento em água e cozimento
no vapor: este último, que afasta a água do alimento, se situará a meio caminho entre o
ensopado e o defumado” (LÉVI-STRAUSS, 2006, p. 446).
Mulheres e o mar 150

Naca, a Mãzinha, a Márcia, por exemplo, pois cada qual tinha o rancho
ou o seu porto, que era, na verdade, o local onde ficava a embarcação
enquanto não se estava pescando.
Tanto nas cozinhas quanto nos ranchos de pesca, havia um
elemento central: o fogo. O fogo, vindo do próprio fogão, era usado
para os preparativos de refeições frugais e para refeições coletivas,
como peixe assado na brasa, ou em forma de caldo, reunindo vários
pescadores/as amigos/as ou visitantes. Por outro lado, o fogo, que
podia ser de um fogão a gás ou feito com lenha diretamente no chão,
era imprescindível para processar produtos in natura, a partir de onde
camarão e siri, por exemplo, eram transformados, passando de cru ao
que é denominado de pré-cozido; de peixe sujo ao filé; de camarão ao
empanado; de siri à casquinha.
Nesse contexto que se compunha de cozinha, rancho, praia, casa,
rua, dentro, fora, o rancho é, por um lado, um espaço de transformações
alimentares em que o elemento fogo é central em todos os processos,
mesmo deslocado da cozinha da casa, mas é também um espaço de
sociabilidades que possibilita a emergência de conflitos, trocas, criações,
negociações entre profissionais da pesca, clientes, amigos e vizinhos que
circulavam por aquele espaço.
É interessante lembrar a distinção que DaMatta (1991) fez entre a
casa e a rua. Ele observou que a casa é o espaço dedicado ao sossego, à
segurança, opondo-se à rua, que seria o local de fora, onde estaria, entre
outros aspectos, o relacionado ao trabalho. A partir dos pressupostos
do autor, parece-me possível dizer que o rancho de pesca constitui-se
em um espaço de junção em que casa e rua, por vezes, se mesclam. Mas
é também um espaço entre a casa e a rua, ou ainda um espaço que se
transforma em uma segunda casa. Há ali a reunião de amigos e amigas,
a realização de trabalhos em grupo, bem como trocas de receitas,
confidências, problemas, mas também momentos em que o pescador ou
a pescadora acorrem quando querem ficar sozinhos, pois cada rancho
tem seu dono ou sua dona e, embora se entre sem bater, só se entra com
a permissão que a amizade propicia.
Fisicamente, o rancho de pesca não é totalmente rua, posto que
coberto e protegido das intempéries; nem totalmente casa, pois está
aberto como local aonde se chega para sair ao mar, e para onde se volta
após a jornada diária. Simbolicamente, ele é casa e é rua. É sossego,
mas também movimento.
Capítulo 3 | O mundo da pesca das mulheres 151

3.4.2 Mulheres-máquina; mulheres e máquinas


A máquina, as máquinas, a máquina e a mão, as mulheres-
máquina, o artesanal e suas técnicas são questões que emergiram
no decorrer de meu trabalho observando as mulheres em ação nos
diferentes momentos de processamento de peixes e camarão em especial.
Observei que há maneiras distintas de processar os produtos, pelas quais
vão sendo criadas e adaptadas diferentes formas não só de pescar, mas
de descascar, eviscerar, limpar, transformar os pescados. A discussão
sobre formas de processamento constitui tópico central de interesse no
cotidiano da pesca, em que, por um lado, objetiva encontrar maneiras
de minimizar o sofrimento e desgaste das mulheres e,87 por outro, de
preparar o futuro diante da constatação de que a mão de obra feminina
na pesca vem diminuindo a cada ano. Aborda-se aqui a inclusão de
máquinas nos processos de beneficiamento, as consequências daí
advindas e a visão das mulheres que aí se inserem.
A comparação entre mulher e máquina é uma constante: elas
descascam rápido como uma máquina; elas são mulheres-máquina. Tais
comentários me levavam a pensar sobre as implicações da capacidade
dita artesanal – visualizada no ato frenético do uso das mãos no
trabalho – das pescadoras nos processos de limpeza e processamento
de pescados, em que a velocidade, a agilidade e a destreza com que
descascam camarão ou evisceram peixes, por exemplo, é uma constante
referência à qualidade exigida para o trabalho na pesca.

87
Nos contextos em que as mulheres com as quais convivi trabalham, o impacto das
novas tecnologias diz respeito às máquinas que passam a ser instaladas nos mesmos
espaços na busca, segundo as coordenadoras dos grupos, de preencher a falta de mão
de obra feminina. Por outro lado, encontrei invenções a partir de máquinas que foram
readequadas às necessidades da pesca como, por exemplo, a do jovem Ni, em Barra/
Balneário Camboriú, que, após alguns experimentos, transformou uma máquina
de descascar batata em outra de filetar peixes quando percebeu que a mãe e as duas
irmãs, para dar conta da produção, submetiam-se a muitas horas de trabalho. Com a
sua invenção, a produção que seria limpa em muitas horas teve seu tempo reduzido,
facilitando a vida das trabalhadoras. Algumas pessoas, de sua própria localidade e de
outras, tomaram conhecimento de seu invento e lhe encomendaram a máquina. Ou
melhor, a peça que reinventa a máquina, para o que ele não cobrou adicional além do
custo da peça, pois, segundo ele, quer facilitar a vida das mulheres. Ao lhe perguntar
se gostaria de patentear sua invenção, respondeu-me que não tinha condições, pois o
custo estava, na ocasião, em torno de dez mil reais. Podemos pensar nos pressupostos da
dialética da convenção/invenção preconizada por Wagner (2010, p. 96), se ponderarmos
que ao desconvencionar a máquina – de cortar batatas – e inventar a máquina – de
filetar peixes – o pescador criou e reinventou outra forma de filetar, que implica e está
implicada em uma reinvenção de sua própria cultura, de sua forma de estar na pesca.
Mulheres e o mar 152

A mão, a partir da agilidade com que descasca ou eviscera,


é a parte do corpo que as pescadoras consideram comparável a uma
máquina pelo fato de executar o trabalho com rapidez e perfeição, não
perdendo nenhuma parte do peixe ou do camarão, além daquela que
precisa ser retirada. No caso do camarão, casca, rabo e cabeça; em relação
ao peixe, cabeça, pele e espinha. Tudo é aproveitado com maestria. Ao
se compararem entre si, algumas consideram que há umas mais rápidas
do que outras. Chegam a essa conclusão não só por se observarem, mas
pela evidência perceptível na produção diária em que resultam mais ou
menos quilos de produto limpo, dependendo da velocidade da mão que
descasca ou eviscera. Ao referirem-se a si próprias sobre o trabalho de
beneficiamento, ou serem referidas por outras pessoas, são adjetivadas
com um substantivo em comparação ao que entendem como sinônimo
de rapidez e eficiência: máquinas!
No entanto, começam a adentrar os espaços de beneficiamento
outras máquinas – as elétricas – que, segundo avaliação de pescadores
e pescadoras, não conseguem dar conta da qualidade do trabalho
das mulheres. A máquina, não tendo mão para realizar o descasque,
não tem sensibilidade para fazê-lo de forma correta. A máquina não
consegue substituir a mulher-máquina: “A mulher, que tem mão, sente
melhor”. “A máquina descasca sem sentir e então não faz um serviço
perfeito como a mão da mulher.” “Deixa casca junto, esmaga um pouco.
Não é a mesma coisa.”
Segundo elas, o movimento repetitivo mecânico das máquinas
elétricas não consegue se assemelhar ao movimento repetitivo, porém
humano, de suas mãos. No entanto, diziam-me que o futuro reserva
mais espaço às máquinas, devido à diminuição, passando pela raridade
até chegar à extinção, das mulheres-máquina.
Da velocidade das mãos que as qualificam como mulheres-
máquina à entrada ainda tímida de máquinas, observa-se o que parece
ser uma substituição inevitável da mão de obra das mulheres que, cada
vez mais, é menor. Se as mais novas não querem continuar na atividade
por considerá-la cansativa e, de certa forma, estigmatizada pelo cheiro,
as mais velhas as incentivam a procurar outras formas de trabalho
que sejam menos estafantes, mais reconhecidas e que contribuam
para que as filhas, diferentemente delas, venham a ser alguém na vida,
ampliando o campo de possibilidades (VELHO, 1994) em sua trajetória,
principalmente por meio do avanço nos estudos.
Capítulo 3 | O mundo da pesca das mulheres 153

3.4.3 As bicicletas
O mundo da pesca é imbuído de personagens e situações, se
podemos assim definir, que compõem os muitos cenários em que as
muitas pescas ocorrem. Assim, é certo que temos mulheres, homens,
mar, terra, crianças, águas, areias, céu, ventos, sol, lua, estrelas, gaivotas,
urubus, embarcações, redes; risos, choros, angústias, alegrias; períodos
de agito, períodos de calmaria, partidas, chegadas, partidas sem retorno.
Ciclos que se alternam na composição do calendário de capturas e
proibições que fazem parte desse mundo.
Nos lugares que percorri no litoral de Santa Catarina, pareceu-
me impossível fazer uma etnografia do mundo da pesca sem falar das
bicicletas. Elas são o meio de transporte mais usado por pescadores
e pescadoras, seja para se deslocar até os ranchos de pesca, para
comprar gelo, para entregar alguma mercadoria, ir a casa almoçar,
voltar. São usadas para quase tudo. A bicicleta é como que um
acessório indispensável. É praticamente impensável a vida de idas e
vindas de casa ao rancho, do rancho à venda, do rancho ao mercado,
sem a bicicleta.
Enquanto a lida na pesca segue seu ritmo, no mar, nos ranchos,
na banca de peixe, as bicicletas ficam jogadas na areia, ou encostadas em
alguma embarcação, em um poste, em um canto da praia ou do rancho,
enquanto as muitas atividades são feitas.
As bicicletas que circulam pelos muitos espaços que compõem
o mundo da pesca não são novas ou de última geração. São bicicletas
usadas. Geralmente, muito usadas, até mesmo velhas, desgastadas,
como se fizessem alusão ao processo de desgaste provocado pela
exposição contínua às muitas intempéries que constituem a vida na
pesca. Homem, mulher, bicicleta, tudo se desgasta mais rápido.
Não se trata de uma bicicleta qualquer. São específicas. Feitas
para deslocar, mas também para carregar. Longe de ser um opcional
e dando a impressão de já ser parte delas ao sair das lojas, a maioria
traz amarrada na garupa, ou à frente, uma caixa feita de plástico que
serve para o transporte de tudo o que se possa imaginar: redes, agulhas,
linhas, peixe, siri, camarão, gelo, gorros, roupas, compras diversas.
Enfim, para tudo o que for necessário transportar, ali está ela: a
bicicleta. E agregada a ela, a caixa de plástico, combinando um par que
mescla ecologia e plástico. As bicicletas compõem os muitos cenários
da pesca e se mostram parte constante do cotidiano de homens e
Mulheres e o mar 154

mulheres. Não são bicicletas para passeio, ou que recém saíram de


fábrica, pois suas estruturas se mostram mais grossas e afeitas ao
trabalho. Nada exalam de recreio ou passeio. Assim se apresentam as
bicicletas que fazem parte das lidas do mar.
Capítulo 4

O MUNDO DAS MULHERES NA


PESCA: APRENDIZADOS E CORPOS

A criança, como o adulto, imita atos bem-sucedidos que ela viu


ser efetuados por pessoas nas quais confia e que têm autoridade
sobre ela. O ato se impõe de fora, do alto, mesmo um ato
exclusivamente biológico, relativamente ao corpo. O indivíduo
assimila a série dos movimentos de que é composto o ato
executado diante dele ou com ele pelos outros. É precisamente
nessa noção de prestígio da pessoa que faz o ato ordenado,
autorizado, provado, em relação ao indivíduo imitador, que se
verifica todo o elemento social. No ato imitador que se segue,
verificam-se o elemento psicológico e o elemento biológico.
Mas o todo, o conjunto é condicionado pelos três elementos
indissoluvelmente misturados. (MAUSS, 2003, p. 405).

No capítulo anterior dediquei-me a falar sobre como as


pescadoras veem a pesca. Neste capítulo, o foco é pensar a partir de
como elas se veem na pesca, o que envolve questões sobre corpo
e o que significa ter um corpo para a pesca; como e com quem elas
aprenderam a pescar, bem como as atividades realizadas em terra; o que
elas precisam aprender e como as relações de parentesco orientam com
quem elas aprendem; como elas se veem nesse conjunto de atividades,
aprendizados, sociabilidades, que poderíamos dizer que compõem
redes de transmissão de saberes e que estão imbuídos de questões que
dizem respeito a relações, prescrições e papéis de gênero.
Concentro-me, portanto, inicialmente nos processos de apren-
dizados vivenciados a partir da repetição e da imitação de atos bem-
sucedidos (MAUSS, 2003, p. 405) que, ao serem experienciados, passam
por outro processo, que diz respeito à construção de corpos de mulheres
Mulheres e o mar 156

pescadoras. Ou seja, o aprendizado da pesca – com quem se aprende –


está intimamente imbricado com as relações de parentesco, e o lócus
onde o aprendizado se mostra está no corpo e na corporalidade que vão
sendo construídos à medida que a pescadora se constrói enquanto tal.
Em relação aos corpos, as pescadoras afirmavam que foram
acostumados. Ou seja, moldados e produzidos, simultaneamente, para
a agilidade, a força, a destreza, o que, no entanto, não seria possível
sem outra qualidade central: a coragem. Para os homens com os
quais trabalhavam, seja marido, irmão, pai, elas eram consideradas
excelentes camaradas; ótimas profissionais. Melhor não poderia haver.
Ao questionar-lhes como eles as definiriam, eles, procurando palavras
para dizer-me o quanto são boas, só conseguiam fazê-lo de uma forma:
“(é tão boa quanto; ou como) um homem!”. Se considerarmos o gênero
como uma construção social sobre o masculino e o feminino, que tem
como aspecto primeiro o relacional, que produz sujeitos, poderíamos
entender que as afirmativas anteriores remetem a um sexo – o masculino,
e um corpo –, o de homem, a determinada profissão, no caso, a pesca.

4.1 Aprender: aprendizado, transmissão e


circulação de saberes
Em princípio, há aprendizados na pesca que são considerados de
homem ou de mulher; permeados, portanto, por questões de gênero.
No entanto, percebi que na vida cotidiana há também uma fluidez que
percorre o que e quem faz, em que homens e mulheres, às vezes, se
dividem em diferentes tarefas, às vezes se juntam, em outras se misturam.
Assim, embora a maioria dos homens trabalhe no mar e das mulheres
em terra, encontrei mulheres e homens que cruzam constantemente
essas fronteiras, nas quais foi possível observar mulheres que fazem
rede, tarrafas, embarcam, e homens que evisceram, limpam, vendem.
As mulheres que embarcam são as que cruzam de forma mais
marcada essas fronteiras, definidas por preceitos de gênero e que
compõem seus muitos afazeres com a junção de um e outro, mar e
terra, embarcação e casa.

Eu faço os dois serviços: eu faço o serviço de tirar o peixe. Eu faço


o serviço do macho e chego aqui e o que vou fazer? Vou tirar o
barco, lavar o barco, limpar o peixe, empacotar. Eles vão almoçar
e descansam. Vou arrumar a chumbada, vou ver se tem furo,
Capítulo 4 | O mundo das mulheres na pesca 157

vou dar uma mão de tinta aqui e ali. Eu tenho que fazer os dois
serviços. Isso, muitas que são casadas e ajudam eles lá e cá. Tem
que ser revisto esse negócio de mulher pescadora. Ela tem duas
jornadas de serviço, além da de casa. (Tina).

Ao discorrer sobre as muitas atividades que faz, Tina denomina


algumas delas como serviço de macho, numa alusão direta aos preceitos
que distinguem o que deveria ser feito por homens e o que caberia às
mulheres. Isso chama a atenção para o fato de que as mulheres que
trabalham na pesca, e aí se incluem as embarcadas e as que atuam em
terra, têm uma jornada dupla, além daquela de dona de casa, o que
pude constatar diariamente nas diferentes casas onde as mulheres
embarcadas, por exemplo, trabalhavam cerca de três a quatro horas a
mais do que os homens.
Como já dito no início deste livro, encontrei três formas de as
mulheres estarem nas pescas: a) trabalham embarcadas; b) coletam à
beira d’água; e c) trabalham em terra. Trabalhar em terra ou trabalhar
no mar implica processos diferenciados de aprendizado seja em relação
ao que, como e com quem se aprende, sendo, de modo geral, centrais as
figuras do pai e da mãe. Ao conversar com as mulheres pescadoras que
na ocasião embarcavam e perguntar-lhes como se deu seu aprendizado,
elas me respondiam: “com meu pai”; “com meu marido”, “com um
senhor”, o que me levou a perceber três formas mais frequentes de como
as mulheres embarcadas aprenderam essa profissão:
1) As que foram iniciadas muito cedo, por volta dos 10, 9, 8 anos,
na própria família, geralmente com o pai.
2) As que, ao casar com pescadores, começaram na pesca por
amar seus maridos, porém nela continuaram porque a pesca
se tornou um de seus amores. Elas costumavam me definir o
que sentem pelo mar e pela pesca como amor; paixão; gosto.
3) Aquelas que, não tendo relação com a pesca, se interessaram
pela vida no mar e encontraram em um pescador mais velho,
considerado da família,88 o referencial do aprendizado.

Fonseca (2004 [2000], p. 80) refere-se à pseudoconsanguíneidade no sentido de


88

denominar alguém como sendo aquilo que, de fato, não é haja vista que, em princípio, só
poderia ser pelos laços de sangue: “ele chamava dona Marlene de mãe”. Nos processos de
aprendizagem da pesca com senhores mais velhos que não seus pais, as duas pescadoras
que passaram por este processo utilizaram-se de expressões como, ser como um pai; ser
um pai. Em outros momentos, ao interpretar que alguém era parente de outro tendo por
base as denominações que usavam como avó, mãe, me deparei com esta situação. Por
Mulheres e o mar 158

É interessante notar que as embarcadas ou continuam trabalhando


com seus parentes, pais, irmãos, maridos, ou trabalham sozinhas em
embarcações muito pequenas. Embora pescadores e pescadoras tenham
verbalizado que “se nasce pescador” no sentido de que “é preciso ter jeito
para a pesca”, a observação e a escuta das narrativas me permitiram
ponderar que há um processo de construção desses sujeitos no decorrer
da vida que faz com que se tornem pescadores, pescadoras. Esse processo
é percorrido pelo aprendizado que se inicia e continua na repetição e
na imitação cotidiana que, enquanto molda corpos e constrói sujeitos,
fortalece a afetividade entre um adulto e uma criança ligados por laços
de parentesco ou afinidade; ou entre marido e mulher.89
No caso do aprendizado ainda criança, entre a menina e o pai,
me relataram que se sentem mais afeiçoadas aos seus pais do que às suas
mães pela proximidade e convivência produzida na pesca embarcada,
cujo aprendizado se deu com aqueles e não com estas: “Eu sinto mais
falta do pai. Eu era mais apegada a ele. A mãe vivia mais na roça. Não
gostava de ficar perto. Então eu me criei mais com o pai. Quando ele
morreu, como senti. Como sinto a falta dele!” (Mãezinha).
As que aprenderam com seus maridos me diziam que a culpa
era do amor. Conheceram seus esposos, se apaixonaram e, como eles
eram pescadores, foram inseridas nessa profissão, seja por iniciativa
própria, quando diziam que “tudo pode se aprender”, seja pelo convite e
convencimento do marido. Se algumas inicialmente não queriam saber
de pescar, com o passar do tempo e o aprendizado da pesca se tornaram,
elas, mulheres, além de apaixonadas por seus maridos, apaixonadas
também pela pesca.
Em relação ao aprendizado com um senhor mais velho, uma das
pescadoras, em determinado momento de sua vida, se “apaixonou por

exemplo, quando uma moça chegou chamando dona Rosinha de avó, e eu entendi que
esta seria sua avó consanguínea. Ao perceber meu equívoco, ela, rindo abraçada a dona
Rosinha, me esclareceu: ela é minha avó, mas porque eu escolhi de tanto que amo ela. Não
é vó? Em outro momento, Cheila se referiu a sua mãe como se estivesse viva, embora
eu soubesse que tinha falecido quando Cheila ainda era criança, o que me confundiu.
Rindo muito, me esclareceu: mas ela é minha mãe. Eu chamo de mãe. É minha irmã, mas
ela que me criou quando o pai deu a gente.
89
Segundo pescadoras e pescadores, além de estar diminuindo gradativamente o
número de profissionais que atuam na pesca artesanal devido ao fator econômico, esta
rápida diminuição também estaria ocorrendo em decorrência do ECA (Estatuto da
Criança e do Adolescente). Segundo os mesmos, ao considerar as atividades ligadas
à pesca como trabalho e não como forma de aprendizado da profissão, o ECA estaria
inviabilizando a continuidade desta forma de vida.
Capítulo 4 | O mundo das mulheres na pesca 159

aquele mundo, aquele marzão” e teve em um senhor pescador e sua


esposa o referencial para aprender. A forma como ela resume o que sente
por ele diz respeito a considerá-lo uma das pessoas mais importantes de
sua vida, “aquele que ensinou tudo o que sei. Um pai” (Tina).
A única exceção que encontrei sobre o aprendizado da pesca
para o embarque ser entre um adulto homem e uma menina se deu
com Safira, que considera que aprendeu muito mais com a mãe, quando
seu pai adoeceu, e elas passaram a trabalhar juntas. Mesmo antes dessa
parceria com a mãe, no início de tudo, Safira começou a embarcar
quando sua mãe adoeceu e a acionou para ir com o pai, pois o filho mais
velho “não tinha jeito para a pesca”. Safira localizou em suas lembranças
o momento em que a mãe lhe deu o primeiro conselho para aprender a
ser uma pescadora.

Ela me disse: “Safira, tens que ir pescar com o pai porque a mãe
está muito doente. A mãe machucou muito a mão. Vai, filha.
Escuta bem o que a mãe vai te ensinar: abre bem as pernas para
ter firmeza no barco. Daí não tem perigo de tu caíres”. (Safira).

“Abre bem as pernas” tem a ver com uma das exigências do


aprendizado da técnica corporal para/na profissão, entendendo aqui
que “o primeiro e o mais natural objeto técnico, e ao mesmo tempo meio
técnico, do homem, é seu corpo” (MAUSS, 2003, p. 407). Abre bem as
pernas significa aprender uma técnica que diz respeito ao equilíbrio.
Encontrei, ainda em campo, o aprendizado que contradiz o
postulado inicial da transmissão homem/mulher, quando a pescadora
Safira me narrou que foi ela quem ensinou ao seu marido os segredos e
as técnicas ligadas à pesca que ela já exercia ao conhecê-lo. Nesse caso,
ao se apaixonar por Safira, seu esposo, que não era pescador, passou
pelo processo de iniciação com ela, que lhe transmitiu as formas de
reconhecer os pontos de pesca e os peixes, as técnicas de remendo e
confecção de redes, a condução de embarcações e os processos de
limpeza e conservação de pescados.
Em relação ao aprendizado do trabalho da pesca em atividades
realizadas em terra, como eviscerar o peixe, descascar o camarão,
descarnar o siri, preparar a comida a partir de produtos advindos do
mar, continua ocorrendo, eminentemente, pelas mulheres e entre elas,
em que o laço inicial da transmissão do saber-fazer é entre a menina e
a mãe, ou demais mulheres da família, como avós e tias e, em alguns
casos, entre vizinhas. No entanto, observei que as mais jovens vêm se
afastando das atividades realizadas na pesca. Estão estudando mais, com
Mulheres e o mar 160

a intenção de encontrar outras formas de trabalhar, o que é incentivado


por pais e mães, conforme já mencionei.
De modo geral, quem se encarregava de cuidar do rancho de pesca
era o pescador, ou ambos. Também os dois se encarregam de remendar
as redes quando estas sofrem alguma avaria no mar. Quando a mulher
também embarca, os dois dividem essas atividades com mais frequência
do que quando a mulher trabalha em terra. No caso de dona Naca, que
já é viúva, ela própria se encarrega de cuidar do rancho e da embarcação,
bem como de fazer e consertar suas redes, além de confeccionar outras
para venda, considerando que possuía, na ocasião, uma clientela fiel que
não trocava seus trabalhos pelo de qualquer outro pescador.
Os saberes da pesca ocorrem pelo que eu chamaria de uma
circulação que se renova continuamente por meio da troca de apren-
dizados, na qual as mulheres ensinam o que aprendem e aprendem o
que outras pescadoras ou outros pescadores aprenderam com outras
pessoas. O aprendizado dos saberes se dá pela observação e prática
diária junto a quem ensina e também pela troca que ocorre boca a boca
pela divulgação de descobertas ou invenções. Quando alguém descobre
ou inventa alguma forma de melhorar o trabalho, ensina para aqueles
que fazem parte do seu grupo de afeição, composto de parentes, amigos
ou amigas e vizinhos com os quais mantém relações próximas.90
Se ponderarmos sobre a construção dos sujeitos a partir de com
quem se aprende, será possível chegar a um ponto em comum entre as
pescadoras que embarcam, que diz respeito a uma quebra na relação
mulher-mulher posto que o aprendizado passe a ser homem-mulher.
Enquanto as mulheres que trabalham na pesca em terra aprenderam
entre mulheres, de mãe para filha, de avó para neta, de vizinha para
vizinha, de amiga para amiga, as embarcadas com as quais convivi
aprenderam com os homens, pais, maridos ou com “um estranho que se
tornou da família”.

Em relação ao exemplo de Ni, filho e irmão de pescadoras, do qual já falei, o


90

qual inventou uma máquina para facilitar o filetamento de peixes. Outra pescadora,
dona Rosinha, ao saber da máquina, comentou que gostou da ideia e comprou a que
o próprio Ni adaptou de acordo com sua invenção. Tina, ao adaptar calças jeans e
macacões de oleado para mulheres a partir do uso de um zíper mais macio, divulgou
entre as conhecidas o segredo de conseguir urinar no mar sem precisar tirar a calça ou o
macacão, o que aprendeu com uma velha pescadora. Em relação àquelas que participam
de cursos viabilizados pela Epagri, observei que elas (re)elaboram o que foi ensinado,
por exemplo, em cursos de culinária, adequando ao que possuem em casa; quando vão
ensinar para suas vizinhas ou parentas, ensinam também as suas invenções.
Capítulo 4 | O mundo das mulheres na pesca 161

“Quando ainda éramos crianças” é o período ao qual se referem


para me narrar a faixa etária em que esse aprendizado começou,
tratando-se, na grande maioria, da filha mais velha de famílias que não
tinham meninos em idade de aprender a profissão ou cujos filhos “não
tinham jeito para a pesca”.

No começo na pesca, eu aprendi com meu pai, lá no Pontal, com 8


anos comecei, mas eu não gostava, não. Tinha dois filhos homens.
Um estava com uma família em Guaratuba, outro vivia com a vó.
Daí sobrou eu. Ele me levava junto. Fui a contragosto. Eu queria
brincar como as outras meninas. Eu chorava muito. Era pesca
a remo e pescávamos linguado, paru. Daí, fomos para Barra do
Saí. Eu estudava de manhã e pescava à tarde. Sábado e domingo
pescava de manhã. Daí ficava o dia inteiro. (Iliete).
Eu aprendi com o pai. Ele não queria me levar. Daí eu prestei
atenção e vi que ele saía em um horário e comecei a levantar antes
dele. Então ele começou a me levar. Um dia levava, outro não. Eu
tinha uma curiosidade em saber como era e ele me ensinou tudo.
(Neia).
Eu aprendi com o meu pai. Desde 8 anos eu já tarrafeava. Eu já
fazia rede e tarrafeava com 8 anos! Eu! Com 8, 9 anos. Eu era a
mais velha. E eu sempre gostei da pesca. Eu mesmo sou apaixonada
pela pesca. Mas era pela necessidade que a gente pescava. (Naca).

Se, por um lado, o aprendizado se deu em decorrência da


necessidade de suas famílias, em que vieram a se transformar em
camaradas de seus pais, irmãos, maridos, filhas, e umas gostavam, a
exemplo de dona Naca, outras tinham raiva dessa imposição tão precoce
em suas trajetórias, conforme ilustrado com a fala de dona Iliete. Outras
ainda tinham curiosidade, como dito por Neia. Por outro lado, com
o tempo, elas passaram e o tempo passou com elas nessa profissão,
constituindo-se em gosto pela vida ao ar livre, em que a alusão ao fato de
amarem a liberdade era uma constante.
As expressões das quais se utilizavam para descrever o que sentem
diziam respeito a se sentir muito bem com o que se faz, sobre o que a
maioria me dizia não ter dúvidas: “amo; gosto; tenho verdadeira paixão;
eu sou viciada pelo mar”.

Eu gosto. Eu amo a minha pesca, o meu trabalho. Faço rede, pesco,


boto, lavo a embarcação, cuido. Faço tudo, tudo, tudo. (Naca).
Mulheres e o mar 162

Para ser pescadora, tem que gostar. Eu me sinto muito bem


trabalhando na pesca. Como é que se diz: eu me sinto realizada!
Tudo o que eu preciso tem ali. (Josi).
O mar? Não tem o que dizer. É a minha vida. (Geni).
Eu, sem a pesca, não sou nada. Eu sou viciada pela pesca. Eu amo
mesmo. (Alzira).
É um trabalho que eu gosto de fazer. Não tem como explicar. É
uma coisa que a gente gosta. Pra mim é melhor do que qualquer
serviço. É o melhor trabalho. (Neia).
É uma alegria. A gente não se perturba. Fica ligado naquilo que a
gente vai fazer. Eu gosto mesmo da pesca. Eu tenho que ir todo dia.
É um vício. (Paulina).

Trata-se de diferentes aprendizados compostos de distintas


formas, espaços, sociabilidades e sujeitos, e que se dão e são passados,
ora entre mães e filhas, ora entre pais e filhas, outras vezes entre
maridos e esposas ou entre esposas e maridos, em que as mulheres se
constituem como as camaradas dos homens com os quais trabalham;
ou quando atuam sozinhas e são elas as mestras de suas próprias e
pequenas embarcações.
Um complexificador que precisamos levar em conta quando
procuramos compreender os processos de aprendizado para as
pescadoras que trabalham embarcadas diz respeito a uma mescla de
aprendizados inter e intragênero, em que elas, como filhas, e prováveis
futuras esposas de pescador, aprenderam com as mães, além dos
afazeres da casa, os saberes-fazeres utilizados em terra, considerados
mais de mulher, como evisceração, descasque, limpeza, beneficiamento,
transformação de peixe, camarão, siri, marisco, dependendo da região.
No entanto, como foram acionadas por suas famílias para trabalhar
como embarcadas, aprenderam com os pais os saberes-fazeres que se
dão no mar e nas embarcações, considerados mais dos homens, como
remar, fazer, remendar e soltar redes, guiar as embarcações, ir ao mar
e voltar.
Há ainda as mulheres que não embarcam, mas que são
consideradas as melhores que qualquer homem em atividades que,
em princípio, seriam realizadas por homens, como fazer e remendar
redes. São mulheres que se tornaram referência na confecção desses
apetrechos, cujos clientes se compõem de pescadores amadores e de
colegas pescadores que lhes pagam para ter o que consideram o melhor
produto. Não há, portanto, uma forma de aprender e, muito menos
Capítulo 4 | O mundo das mulheres na pesca 163

de ser pescadora. São muitas as possibilidades como os diferentes


aprendizados circulam e são transmitidos por meio dos enredamentos
afetivos que compõem as muitas pescas.
No entanto, se o laço afetivo inicial é consanguíneo, os laços
posteriores se constroem por meio de redes que se pautam pela
afetividade no trabalho. Veremos a seguir que, em relação às que
atuam em terra, há outras questões envolvidas nos processos de
fabricação dos sujeitos além do ser e estar em uma família, haja vista
que, após se tornarem adultas, as mulheres se inserem em pequenos
agrupamentos, aos quais se referem como o meu grupo, motivadas
pelo que denominam de amizade.
Em relação às embarcadas, a camaradagem é o que orienta as
formas de trabalhar junto com marido, filho, filha em que, em grande
maioria, elas são as camaradas de seus maridos. Algumas são elas
próprias as mestras de suas embarcações, como se observará logo
adiante.

4.2 Amizade e camaradagem

4.2.1 Entre amigas: com quem se trabalha em terra

Tönnies (apud FERNANDES, 1973, p. 104), ao tratar sobre as


formas de convivialidade humana, distinguiu três possibilidades: a)
os laços de sangue, que se pautam pelo parentesco; b) a aproximação
espacial, ou seja, as relações vicinais; e c) a aproximação espiritual, que
contempla interesses, sentimentos, afetos. Diz o autor que é “nesta
classificação que devemos procurar as raízes de todas as relações
(associações)”. Maluf percebeu a formação de uma “rede de relações
entre as comunidades, uma vez que, mesmo com o forte sentimento
de localidade que demarca cada uma delas, as relações com as outras
são bastante intensas” (MALUF, 1993, p. 15). Este aspecto apontado
por Maluf pôde ser percebido em meu percurso, em que foi possível
observar que é por meio de redes91 que as relações, conflituosas ou de

Enne (2004, p. 264), ao mapear algumas das principais abordagens referentes ao


91

conceito de rede, afirma que os autores que trabalham com esse conceito convergem
no que diz respeito a considerar como central em uma rede a “sua capacidade de
articulação e rearticulação permanente”. Para uma discussão sobre redes e aspectos
socioeconômicos de pequenas agroindústrias, ver Mior (2005). Segundo o autor, é
Murdoch (2000) quem propõe um nível intermediário de redes que seria mais adequado
Mulheres e o mar 164

afinidade, às quais se refere Aguiar (2005), emergem, mas é também


onde os princípios de apoio mútuo e afetividades se manifestam, seja
em momentos de perda, dor, alegria, conquista, aprendizado, trabalho.
Marcelo Oliveira, em seu estudo com grupos populares urbanos
em um município da Grande Florianópolis, observou os códigos que
regulavam as relações entre homens, levando-os a criar grupos coesos, as
denominadas “turmas de encontros cotidianos em que alianças e conflitos
foram dois dispositivos sociológicos típicos observados na formação
destes pequenos grupos de sociabilidade, cujos vínculos relacionais eram
em caráter de amizade” (OLIVEIRA, 2008, p. 34, grifo do autor). Raquel
Paiva, ao comentar o que chamou de uma reinterpretação conceitual
de Tönnies, diz que ao se falar sobre vinculação social e preocupação
territorial, estariam implicados outros “aspectos próprios da sociabilidade
que parecem ter perdido o sentido […] como cooperação, solidariedade,
tolerância, fraternidade, docilidade, amizade” (PAIVA, 2007, p. 147). É
este último aspecto destacado por Paiva (2007) e enunciado por Oliveira
(2008), a amizade, que observei ser um termo êmico utilizado para
expressar uma motivação central na formação de redes de mulheres em
torno dos processos de limpeza e beneficiamento de pescados.
Rezende (2002) diz que “a palavra amizade em português refere-
se tanto a um sentimento quanto a uma relação específica” que fala sobre
redes de vizinhança e de amizade, por exemplo. Strathern (2005), ao
discutir questões sobre o dado e o construído em relação ao parentesco,
chama a atenção para a importância de serem considerados outros
elementos que constroem e que estão além de aspectos biológicos ou
consanguíneos a partir do que poderíamos pensar, no contexto que aqui
apresento, o parentesco imbricado em redes outras, como vizinhança
e amizade, por exemplo. Carsten (2004) preconiza que é central ver

tanto para se pensar a construção de estratégias alternativas de desenvolvimento


rural como para sua interpretação, em que haveria dois principais conjuntos de redes
interagindo nas regiões rurais: as verticais e as horizontais. A vertical diz respeito a
como a agricultura é inserida em processos mais amplos de produção, transformação,
distribuição e consumo de alimentos e matéria-prima do ponto de vista de uma
abordagem setorial do desenvolvimento. Por outro lado, redes horizontais referem-se
“à incorporação da agricultura e dos territórios rurais em atividades que os atravessam
e estão imersas nas economias locais e regionais, inclusive urbanas” (MIOR, 2005, p.
57). O autor ainda complementa: “as redes verticais e horizontais estão associadas à
ideia de desenvolvimento setorial e territorial, respectivamente” (MIOR, 2005, p. 57).
Eu acrescentaria, a essas duas redes que dizem respeito ao aspecto econômico, uma
terceira rede, que eu chamaria de transversal e que diz respeito às relações afetivas que
perpassam as formas de aprendizados, mas também as formações em torno do trabalho.
Capítulo 4 | O mundo das mulheres na pesca 165

as noções como não acabadas e que a dicotomia está muito mais na


disciplina do que no que está circulando e faz parte das diferentes
realidades. Concordo com as autoras e me inspiro em suas falas no
sentido de pensarmos que há muito mais fatores compondo as formas
organizativas do que relações pautadas exclusivamente pelo parentesco
consanguíneo. Relações afetivas, como as de amizade, emergiam e se
mostravam constituidoras de redes, fossem elas formais ou informais,
envolvendo parentes e não parentes.
Uma das atividades mais fortes das mulheres pescadoras em terra
são os processos de limpeza de pescados em termos de pesca artesanal,
pois não adentrarei na maricultura, na qual também atuam. Muitas
mulheres, ao falarem sobre o grupo de que participam, se referiam ao
parentesco como destino e à amizade como escolha, em que não se
pode mudar o fato de ter nascido naquela família. No entanto, pode-se
escolher com quem se quer trabalhar.
Assim, os grupos informais que observei existiam a partir: a) do
convite da esposa de um pescador artesanal que tinha uma embarcação;
ou b) em pequenos espaços denominados de salga. Percorri 12 grupos
e,92 após algum tempo circulando entre eles, perguntei às mulheres
coordenadoras como ocorriam os agrupamentos: se eram todas
parentas; se moravam perto; como elas convidavam as mulheres e por
quê. O que, afinal, definia a formação dos grupos de descascadeiras de
camarão ou filetadeiras de peixe?
A resposta invariavelmente foi: em primeiro lugar, pela amizade.
Essa motivação que se dava pela amizade pode envolver parentes que
são consideradas amigas. Ou as que, não sendo parentes, têm o mesmo
pré-requisito: são amigas.

Eu convido as amigas e quem quer e pode vir, vem. É com quem me


dou bem pela amizade. A gente trabalha entre amigas. (Lorena,
coordenadora).
Não adianta só ser parente. Precisa se dar bem; e, pela amizade, a
gente se dá muito melhor, às vezes, com um estranho do que com
quem é parente. Parente nasce; amigo a gente escolhe. Eu descasco
com a Maria lá em cima. Não tem distância; é pela amizade. (Laís,
descascadeira).

Nosso grupo era uma denominação que elas utilizavam corriqueiramente ao verbalizar
92

quem fazia parte dele e, portanto, com quem trabalhavam. O número de mulheres por
grupo variou de três a dez, sendo quatro grupos compostos de cinco mulheres; três de
quatro mulheres; dois de três; outro de sete; outro de nove; um de dez mulheres.
Mulheres e o mar 166

Aqui tem parente, tem quem não é parente. O principal é se dar


bem. Amizade e querer trabalhar; entendes? (Joir, dono de uma
pequena salga).

Em relação aos grupos observados, não havia um número fixo ou


determinado de mulheres, mas uma organização informal em que me
parece que a noção de rede consegue dar conta da diversidade com que
esses pequenos grupos se formam, se considerarmos que a formação
de rede propicia que as pessoas circulem e se articulem, nesse caso,
entre os diferentes grupos. Se por um lado pode-se fazer parte de uma
salga, em que o dono recebe camarão de vários pescadores e um grupo
de mulheres trabalha em conjunto, por outro lado, muitas pessoas
descascam em casa, reunindo o pai, a mãe e, em alguns casos, filhos e
filhas, mas a formação central se dá com as amigas, convidadas para este
fim. Laís explicou o porquê da importância da amizade:

Geralmente passamos juntas oito horas por dia quando tem


camarão, por isso tem que ter amizade. Começa às sete horas até
às onze. Depois, começa a uma e vai até as cinco no grupo que
eu trabalho. Cada grupo tem sua forma de combinar. Se sobrar
camarão, congela e fica para o outro dia. Quando tem pouco é
só à tarde. Quando chega camarão, a Maria avisa. Conversamos
sobre o dia a dia; o que aconteceu na televisão, daqui mesmo. Tem
aquelas que são mais íntimas, são amizades que vêm de fora da
salga. Depende da pessoa. Eu não sou de contar problema, mas
tem aquela que já chega, já fala. Aí depende. Eu já estou uns dez
anos de descascadeira. (Laís).

Se tomarmos a fala de Laís, segundo a qual se trata de amizades que


vêm de fora da salga, poderíamos supor que as redes que levam à forma-
ção de pequenos grupos se respaldam pela amizade. Porém, e não menos
importante, outro pré-requisito exige que haja uma postura de trabalho.
Há, assim, a expectativa de uma conduta de amizade aliada à disposição
para o trabalho e para trabalhar em conjunto. Tem-se, assim, a relação
afetiva que orienta o convite da coordenadora do grupo, mas também se
trata de um convite direcionado àquelas parentas amigas, ou amigas que
ela, de antemão sabe, são trabalhadoras, naquela função desejada.93

Lembrando a discussão de Elias (2000, p. 39), ao abordar a relação estabelecidos/


93

outsiders, quando afirma que “a opinião interna de qualquer grupo com alto grau de
coesão tem uma profunda influência em seus membros, como força reguladora de seus
sentimentos e sua conduta”.
Capítulo 4 | O mundo das mulheres na pesca 167

Outra questão é que esses grupos não são fechados, e o número


de participantes oscila, se amplia, se reduz na medida em que algumas
amigas ou parentas circulam entre eles. Nesse aspecto, encontrei
mulheres que em uma semana estavam em um grupo e na seguinte já
estavam em outro; dias depois voltavam ao primeiro, e assim circulavam
entre os grupos, motivadas pelo que definiam como ficar um pouco em
cada um. Ou seja, as redes de amizade nas quais elas se inseriam lhes
permitiam participar ora em um grupo, ora em outro.
A amizade, aliada à disposição para trabalhar juntas, constitui-
se em conduta reguladora e orientadora na formação de redes nas
quais as mulheres se articulam e circulam. Na finalização deste tópico
é interessante dizer que a tríade – parentesco, amizade, trabalho –
qualifica o “com quem” se trabalha, mas funciona também de maneira
muito fluida nos muitos arranjos possíveis.

4.2.2 Dois que são um: camaradas


– Mas eu também quero falar. Disse o marido de Alzira enquanto
eu escutava o que ela me narrava.
– O senhor quer falar o quê? Perguntei-lhe.
– Quero falar dela.
– Então fale.
– Eu quero dizer que não pode existir camarada melhor do que
ela. Não tem! Ela faz tudo como um homem! (Dé, Barra do Sul).

As pescadoras embarcadas trabalhavam com maridos, irmãos,


filhos. Esporadicamente, algumas filhas acompanhavam a pesca.
Trabalhar junto em uma embarcação significa mais do que ser um
tripulante. Nas pescas que acompanhei, implica pautar-se pela
camaradagem, em que há a figura do mestre, que coordena a embarcação,
e o camarada, que trabalha com o mestre. Mestre e camaradas se referem
um ao outro como camarada: “ela é minha camarada; eu trabalho como
camarada dele”. No entanto, encontrei também mulheres que atuavam
como mestras, como Mãezinha, Paulina, Naca, Tina.
Ao perguntar aos homens com os quais as pescadoras
trabalhavam como elas são como camaradas, eles me diziam: parceiras,
companheiras, fantásticas, fora de série, nos termos que utilizavam,
e que não encontrariam pessoa melhor para trabalhar. Quando
buscavam qualificá-las como pescadoras, não usavam adjetivos. Para
defini-las, só conseguiam dizer o que queriam me dizer recorrendo à
Mulheres e o mar 168

comparação delas com eles, os homens, no sentido de demonstrar a


sua capacidade para o trabalho na pesca.

É melhor do que qualquer homem. Ela é meu braço direito. Faz


tudo. Não tem medo de nada. Tem coragem. Trabalha igual a
qualquer um de nós. Tem uma força que só vendo. (Cristiano,
Florianópolis).
É um homem que tenho comigo. Faz tudo o que eu faço, vai aonde
vou, sabe tudo. É mesmo a minha camarada, não tem medo de
nada, gosta da pesca. (Kriki, Barra do Sul).
É um animal. Trabalha e tem força como qualquer homem. Ela
gosta mesmo do que faz. E faz parte da nossa equipe de trabalho. É
uma irmã fora de série mesmo. (Márcio, Florianópolis).

O que está por trás dessas falas? Um homem! Um animal! Força,


coragem, destreza? A forma como os camaradas conseguiam qualificá-
las tem como foco comparativo um substantivo masculino indefinido:
um homem; um animal. “A minha irmã? Igual a ela não tem. É um
animal. É um homem pra trabalhar. Não. Ela é melhor do que um
homem” (Florianópolis). “Ela? Dá para dar nota mil. Trabalha melhor
que qualquer homem” (Barra do Sul). Referem-se a elas como seres
que têm a capacidade laborativa de homens ou animais em corpos de
mulheres, o que poderia ser visto como um depoimento-prova, segundo
exigem os preceitos do INSS (que veremos adiante), tendo em vista que,
ao qualificá-las como homens, os pescadores estão, na verdade, dizendo
e provando que elas têm um corpo para a pesca.
Todos os camaradas-maridos que na verdade eram, em maioria,
os mestres das embarcações, compartilhavam a opinião de que não existe
camarada melhor do que elas e que, com elas formam um par, um só, um
casal. Elas, por sua vez, diziam que o trabalho a dois dá certo porque
formam um par, um casal, e que para o trabalho dar certo no mar tem
que se dar bem em terra; e para dar certo em terra, tem que saber lidar
um com o outro no mar. Homem e mulher camaradas seriam, segundo
me disseram, “dois que é um”: “é um casal, um par, um só. É como carne e
unha. Tem que dar certo no mar e aqui em terra” (Alzira). “É uma dupla.
Mas na verdade é um só: um casal” (Marques).
É interessante remeter aqui que é corriqueiro ouvir por parte de
técnicos do extensionismo94 que atuam junto aos territórios da pesca

94
O extensionsimo será abordado na relação entre saber científico e saber tradicional;
porém, é interessante pensarmos aqui que os extensionistas estão se pautando por uma
visão do senso comum.
Capítulo 4 | O mundo das mulheres na pesca 169

que os pescadores são individualistas. O que o campo me mostrou me


leva a ponderar que as formas – portanto uma conjugação plural –
como pescadores e pescadoras se organizam não podem ser definidas
como individualistas. Eu arriscaria dizer que são dualistas no sentido
de que percebi que há uma preferência por trabalhos em duplas, algo
que talvez se aproxime do conceito de díade, proposto por Carl Landé,
segundo o qual “uma relação díade, no seu sentido de ciência social,
é uma relação direta que implica alguma forma da interação entre
dois indivíduos” (LANDÉ apud ENNE, 2004, p. 270). O máximo que
encontrei na composição de suas formas organizativas foi que trabalham
ou se reúnem em grupos muito pequenos, entre três e dez pessoas. Algo
muito longe das exigências burocráticas que pautam as instituições
públicas para a liberação de recursos financeiros.95
Em relação a dois que é um (conforme a concordância usada por
elas), as pescadoras falavam sobre uma espécie de diretriz necessária
segundo a qual é preciso que o casal se dê bem e que o homem saiba
tratar a mulher. Do contrário, ele é quem perderia sua camarada, de
forma definitiva ou temporária, vindo a ter um gasto a mais. Durante
o trabalho de campo, um dos casais teve um atrito no mar. Segundo
a pescadora, “ele foi muito grosso, não soube ter paciência”. Ao lhe
perguntar sobre como ficaria, ela me explicou:

Vou fazer greve até ele pedir desculpa, pois ele é que foi o errado.
Já combinei com minha filha, nenhuma de nós duas fala com ele
até ele pedir desculpas, pois ele foi grosso com ela também, por algo
que deu errado lá fora.
[E se ele não pedir desculpas?]
Problema dele. Eu não trabalho mais como camarada. Hoje ele já
teve que chamar o Joaquim, que foi. Vamos esperar. Ele vai ver que
estava errado.

A fala da pescadora diz respeito ao fato de que, sendo camaradas,


marido e mulher, segundo ela, significa também que “é um dinheiro
que não sai da família para pagar alguém de fora”. Ou seja, alia-se à sua
capacidade de trabalho a questão da economia familiar, ele tê-la como
camarada. Passados dois dias, a greve tinha funcionado: o marido pediu

Por exemplo, em recursos viabilizados pelo Ministério da Pesca e Aquicultura,


95

ou Ministério da Agricultura, no caso agrícola, para a realização de cursos nas áreas


pesqueiras, muitas vezes há a exigência de um número mínimo de 16 participantes, o
que às vezes inviabiliza a sua realização.
Mulheres e o mar 170

desculpas e ela voltou ao mar, ao exercício a dois. Carne e unha, mas


que às vezes se estranham. Ao observar pequenos movimentos das
mulheres nesse sentido de fazer greve quando os atritos ocorriam, elas
me sinalizavam que, embora sendo elas as camaradas deles, são elas
que detêm uma espécie de poder de convencimento para que o mestre
continue tendo-as como camarada. Primeiro, porque, mais do que
precisar pescar, ela ama, e muito, ele e a pesca; segundo, ela não falta ao
trabalho; terceiro, por que ele iria preferir outro camarada quando tem
em casa uma camarada que sabe o que faz e faz tão bem, ou melhor, que
um homem?; quarto, ela tem um corpo para a pesca.
Encontrei ainda pescadoras que trabalhavam em embarcações
menores e que, às vezes, saíam sozinhas, quando os deslocamentos eram
mais próximos, ou com os filhos como seus camaradas. Nesses casos,
são elas as mestras e eles os camaradas. Portanto, são elas as responsáveis
pela coordenação do trabalho, que inclui definir o lugar aonde se vai
pescar, o horário de saída e de retorno, o que ocorre de acordo com o
resultado da pescaria, as mudanças de local visando às tentativas em
encontrar um que seja considerado bom para a pesca; guiar o barco.
Nesses casos, as mulheres eram viúvas ou casadas com pessoas
que não trabalham na pesca, cabendo a elas um papel de liderança na
embarcação que, em relação às casadas com pescadores, era do marido.
É possível dizer que tanto as viúvas quanto aquelas cujos maridos atuam
em outras áreas estejam liberadas da figura da autoridade masculina,
pelo menos no contexto profissional. Isso lhes propiciava mais liberdade
para gerenciar o próprio trabalho a partir da mestrança que exerciam
na relação de autoridade sobre os filhos, que lhes obedeciam e seguiam
suas orientações e decisões.
É interessante notar que, ao questionar os filhos e as filhas sobre
como lidavam com o fato de suas mães serem pescadoras, todos,
sem exceção, falaram sobre elas discorrendo de forma emocionada e
orgulhosa, apesar de pontuar as dificuldades que elas encontram no
exercício da profissão. Para tanto, recorriam a expressões como orgulho,
emoção, mulher de garra, uma guerreira.

4.3 De perto e de longe; de dentro e de fora: por


que se trabalha embarcada
Fiquei me questionando continuamente sobre o quanto as pesca-
doras me diziam que amam a vida na pesca e se não haveria, no decorrer
Capítulo 4 | O mundo das mulheres na pesca 171

de suas trajetórias, ocorrido a construção de um autoconvencimento


sobre esse amor, por ser essa a realidade ou, nos moldes de Velho (2004),
o campo de possibilidades com o qual se deparavam e passavam a viver
com o ingresso na pesca, já que apenas dona Iliete narrou abertamente
sua revolta inicial. As demais, tanto as que iniciaram meninas quanto
as que se tornaram pescadoras após se casar com pescadores, foram
unânimes em afirmar o gosto pela pesca. Com o decorrer do trabalho
de campo, observei que muitas delas tinham outras habilidades96 com
as quais poderiam ter uma renda trabalhando em terra. No entanto,
elas nutriam uma espécie de necessidade de ir, estar, viver no/do mar,
no/do rio, na/da lagoa.
No decorrer da pesquisa o verbo transitivo gostar foi sendo (re)
significado a partir de outras questões que não apenas amar, sentir
prazer, apreciar. Foi Safira quem, em uma de nossas muitas conversas,
me esclareceu as motivações que perpassam a vida e a continuidade
na pesca. Segundo ela, embora a maioria das mulheres embarcadas
diga que trabalha na pesca porque gosta – “e gosta” – este gostar se
alia à necessidade de continuar trabalhando. Se elas gostam da pesca,
foi necessário percorrer uma trajetória na qual o aprender a pescar
se revestiu do aprendizado concomitante do gosto por essa vida,
de liberdade, ao ar livre, mas cujo ingresso se deu pela necessidade
financeira. Segundo Safira, só um olhar atento, de perto, poderia se
dar conta dessa sutileza.

96
Elas utilizavam estas habilidades em especial nos momentos em que a pesca passava
por situações de miséria. Costumavam dizer: “a gente inventa”. Eu diria que há dois
tipos de invenções: a) diversão, que diz respeito à formação de grupos de bingo, de jantar
semanal, de passeios, de idas às igrejas (embora houvesse o forte motivador da fé e da
religião, percebi que também as idas às igrejas e cultos eram acionadas como parte dos
momentos de encontro com as amigas). Também incluo aqui os cursos e encontros
anuais de mulheres da área da pesca promovidos pela Epagri e pelas prefeituras
municipais, para os quais muitas reservam esses dias para o lazer, as brincadeiras, o
descanso do trabalho na pesca. Os encontros ocorrem uma vez ao ano e circulam entre
os diferentes municípios pesqueiros de determinada região; b) sobrevivência, pela qual
elas inventam pães, bolos, docinhos, toalhinhas bordadas, bolinhos fritos de banana,
tortas recheadas, frangos assados com farofa aos domingos, tudo para ser vendido na
própria vizinhança que, sabendo de suas habilidades, vai às suas casas para comprar.
São maneiras que elas encontram para melhorar a renda em épocas difíceis: “a pesca
tem época que dá boa, mas tem época que não dá nada. Esse ano o mar está castigando
a gente. Não tá fácil. Quando aperta, eu invento umas coisas, faço salgadinho, coxinha,
risoles. Também faço bolo de aniversário. Me viro” (Neia); “Eu invento; vendo pão, vendo
frango para ajudar na renda, mas 80% vêm lá de trás, da pesca” (Safira).
Mulheres e o mar 172

Tem aquela pessoa que a pessoa olha com os olhos e vê, e a outra
que precisa procurar para ver mais fundo. E é isso que estás fazendo
com o teu trabalho de entender tanto esforço físico, mas é o nosso
ganha-pão. Quem olha de longe e de fora, olha e diz: “olha como
eles gostam de pescar! Lá vão eles, mesmo com esse frio! Como
gostam!”. Mas tu, que estás vendo de perto e de dentro, sabes que
nem sempre é assim. Também é pela necessidade. Não é só porque
gosta. Mas também é porque se gosta. (Safira).

Segundo Safira, há um engano quando alguém olha de fora e de


longe e conclui que as saídas ao mar, ao rio, à lagoa são apenas e sempre
pelo gosto por essa vida, e que é necessário exercitar uma observação
atenta, mais profunda, algo que talvez se aproxime do que denominamos
de etnografia, e que me fez questionar o quanto Safira postula a favor do
exercício etnográfico em que é preciso olhar de dentro e de perto,97 já que
de fora e de longe não seria possível um olhar mais a fundo.
Safira afirmava que “tem horas que a vida na pesca é muito
difícil”, com o que concordavam as demais pescadoras. Porém, todas
corroboravam também que para poder continuar, tem que gostar muito.

Tem que gostar sim e tem horas que a gente desanima. Ontem a
gente foi tirar a rede e tinha estragado um monte […]. Daí eu vim
para casa e desabafei com uma vizinha que veio aqui. Ela nunca
tinha me visto assim e perguntou: “Safira, tu gostas de pescar?”. Eu
pensei: mas isso quem tinha que perguntar é a Rose! E ela não me
perguntou assim: “tu gostas de pescar”. Não é Rose? Tu dissesses
que querias ouvir a minha história e eu contaria como quisesse.
Pesca é algo que começou obrigado. Tinha que pescar, mas ao
mesmo tempo eu gostava porque era uma novidade. Quando ela
me perguntou: “tu gostas de pescar?” Eu demorei a responder. Eu
precisei pensar; e respondi que gosto. Mas tu estás vendo como é
a nossa vida por dentro e vendo de perto. Não estás olhando de
longe. De longe é porque gosta de pescar. Mas, de perto, como estás

97
Magnani (2002, p. 17), ao discutir o método etnográfico sobre a cidade e sua
dinâmica, propõe “um olhar de perto e de dentro capaz de identificar, descrever e refletir
sobre aspectos excluídos da perspectiva daqueles enfoques que, para efeito de contraste,
qualifiquei de fora e de longe”. O autor afirma ainda (p. 16) que nessa discussão sobre
a especificidade da etnografia, é interessante lembrar os anthropological blues de Da
Matta (1978); experience-near versus experience-distant, de Geertz (1983); resíduos, de
Peirano (1995), estes últimos dizendo respeito a “certos fatos que resistem às explicações
habituais e só vêm à luz em virtude do confronto entre a teoria do pesquisador e as
ideias nativas”.
Capítulo 4 | O mundo das mulheres na pesca 173

com a gente, tu sabes que tem horas que não é porque gosta. É
pela necessidade. De fora e de longe é uma coisa; de perto, pode
ser outra. A gente gosta? Sim, gosta. Mas tem mais. Tem que ter
coragem para enfrentar o mar, mas também para enfrentar a vida.
(Safira).

A fala de Safira, além de problematizar a necessidade e o gosto


pela pesca, acaba por remeter a uma constatação que diz respeito a
serem as pescadoras que embarcam respeitadas e admiradas em suas
comunidades como mulheres de coragem, tendo em vista o enfrentamento
cotidiano e a relação direta com o mar. A junção de ter necessidade, mas
acima de tudo gosto pela pesca, se alia à coragem necessária para poder
continuar sendo, existindo, durando como pescadora. É nesse sentido
que entendo que elas são imbuídas de uma duração bachelardiana
segundo a qual “é preciso dar tempo ao tempo para que ele realize sua
obra” (BACHELARD, 1994, p. 12), o que faz com que elas se façam
na pesca e a pesca as faça. Não poderia haver dúvida quanto ao fato
de trabalharem por necessidade, mas não posso deixar de considerar
também que suas verbalizações sobre o amor, o fascínio, a paixão pela
pesca remetem a um ethos de amor à profissão.
Ao mesmo tempo em que duram (BACHELARD, 1994) como
pescadoras a partir do exercício na pesca, também a pesca dura a partir
da duração delas. A pesca, que entrou em suas vidas por necessidade
e continuou pelo amor, mostra-se uma motivação central para
continuarem durando, o que vai lhes deixando registros significativos da
materialização dessa maneira muito peculiar de ser e estar no mundo,
cujo depositário visível é o corpo.
É, pois, sobre corpos e corporalidade que passo a discorrer a
seguir.
Mulheres e o mar 174

4.4 O corpo na/da/para a pesca

4.4.1 Sobre o corpo na pesca

É preciso ter um corpo98 para a pesca, tanto que algumas das


pescadoras foram acionadas por seus pais porque o irmão mais velho

98
Para uma discussão sobre corpo, corporeidade, corporalidade ver, entre outros, Beauvoir
(1991); Mauss (2003); Maluf (2001, 2009); Csordas (2008); Foucault (2009); Matos e Soihet
(2003; Sterling (2001); Latour (2004); Venn (2010); Paulilo (1987); Lima (2012); Perez
Fonseca (2008). O corpo e, neste caso, o corpo das pescadoras, é objeto e/ou sujeito? Em sendo
sujeito, é então sujeito dos sujeitos? Como e por onde considerar o corpo? Beauvoir (1991,
p. 59), ao falar sobre a contribuição da psicanálise na psicofisiologia no sentido
de considerar que não há fator que intervenha na vida psíquica dissociado de um
sentido humano, afirma que “não é o corpo-objeto descrito pelos cientistas que existe
concretamente e sim o corpo vivido pelo sujeito”. Por sua vez, Foucault (2009) centra sua
discussão sobre a relevância do corpo em que a corporeidade é central como realidade
biopolítica histórica, e que sob o crivo da disciplina estariam técnicas que perpassam
processos de modelagem, de construção de corpos dóceis. Segundo o autor, “é dócil
um corpo que pode ser submetido, que pode ser utilizado, que pode ser transformado
e aperfeiçoado” (FOUCAULT, 2009, p. 132). Csordas (2008, p. 102) fala de corporeidade
em uma discussão que postula o corpo como sujeito da cultura a partir de uma análise
da prática, o habitus, trabalhado por Bourdieu, aliado à noção de percepção, o pré-
objetivo, de Merleau-Ponty, em que não haveria uma distinção mente-corpo. A cultura
estaria corporificada desde o início, sendo o corpo “reconhecido pelo que ele é em termos
vivenciais, não como um objeto, mas como sujeito” (CSORDAS, 2008, p. 142). Por outro
lado, Almeida (1996) questiona se o corpo é um sujeito ou é, na verdade, o lócus das
performatividades que constituem o sujeito. Csordas (2008) preconiza que o corpo que
está em crise diz respeito à ideia de que existe um substrato biológico e natural que seria
transformado no corpo socialmente circunscrito a partir da intervenção da cultura.
Nesse sentido, Csordas vem contribuir com a discussão sobre essa temática que está em
cena, como resume Maluf (2001) quando diz que o corpo é visto numa perspectiva de
agência. Para Csordas (2008), o corpo é agente e experienciador, o que advém de uma
noção de embodiment que se pauta na fenomenologia pós-estruturalista ou pós-moderna.
A partir daí, Csordas busca problematizar dicotomizações, tais como natureza/cultura,
ao mesmo tempo em que procura escapar da ideia de corpo como um objeto em que
a realidade social seria inscrita. É com esse pano de fundo que o autor formula a ideia
de corpos sujeitos – em vez de objetos – de cultura em que o foco não se volta para as
representações simbólicas que tomam o mundo como realidade exterior aos corpos, mas
para as práticas e o estar no mundo. Csordas (2008, p. 101) argumenta que o paradigma do
embodiment pode ser elaborado para o estudo da cultura e do sujeito, e que sua perspectiva
advém da antropologia psicológica na direção da fenomenologia que “parte da premissa
metodológica de que o corpo não é um objeto a ser estudado em relação à cultura, mas
é sujeito da cultura; em outras palavras, a base existencial da cultura” (CSORDAS, 2008,
p. 102). O corpo seria o lócus em que emergem afetações, sendo este não objeto receptor,
mas um sujeito agenciador das inúmeras possibilidades em que essas afetações se dão
(CSORDAS, 2008, p. 102, grifo nosso).
Capítulo 4 | O mundo das mulheres na pesca 175

não tinha jeito. Essa expressão, não tinha jeito, diz respeito a não ter esse
corpo, o qual é construído na e pela pesca pelo adestramento corporal
que se faz na repetição e imitação cotidiana em que a disciplina do
corpo em relação às necessidades fisiológicas é apenas um aspecto.
Conforme já dito, há a disciplina do controle do enjoo, do uso da força
e do corpo (FOUCAULT, 2009). O corpo é fabricado num contínuo, na
experiência da/na pesca: a força, a mão, a coluna vertebral, as pernas, os
ombros, os olhos. As pescadoras fazem a pesca e a pesca as faz. Em suas
narrativas emergem ponderações sobre a construção de seus corpos,
moldados99 desde muito cedo para práticas que exigem simultaneamente
flexibilidade, firmeza, força e tolerância aos movimentos da embarcação:

99
O habitus se mostra uma noção interessante para pensarmos a construção de corpos
na pesca se pensarmos que ele é “o modo como a sociedade se torna depositada nas
pessoas sob a forma de disposições duráveis, ou capacidades treinadas e propensões
estruturadas para pensar, sentir e agir de modos determinados [...]” (WACQUANT,
2012, p. 36). É, ao mesmo tempo, sedimentação no corpo e corpo que sedimenta em
uma relação dialética do fazer e ser feito em que o individual e o grupal se mostram
no corpo. O tempo da vida das pescadoras foi e é perpassado por essa fabricação e
moldagem, tratando-se de um processo de longo prazo, iniciado quando eram crianças,
ou jovens mulheres, e que segue repetido, dia após dia, registrando uma corporalidade
em que elas reconhecem seus corpos como “um corpo mais para homem”. A fabricação
corporal é central no processo de fazer-se pescador/pescadora, em que a experiência
vivenciada se corporifica, deixa marcas, registra um habitus que remete a uma hexis
corporal diferenciada. Wacquant (2012), no texto “Esclarecer o Habitus”, propõe-se a
fazer uma reconstituição da gênese da noção de habitus, cujas raízes encontram-se na
noção aristotélica de hexis, estado adquirido. Sendo habitus o particípio passado do
verbo habere (ter ou possuir), no século XIII foi traduzido por Tomás de Aquino como
capacidade para crescer através da atividade. Wacquant afirma que a noção foi usada
por sociólogos como Durkheim, no curso “L’Évolution Pèdagogique en France” (1904-
1905); Mauss (em especial no ensaio “As técnicas do corpo”, de 1934); Max Weber (em
“Wistscheft und Gesellschaft”, de 1918); Veblen (que discorre sobre o que denomina de
habitus mental predatório dos industriais, em “The theory of the leisure class”, de 1899);
Elias (que fala sobre um habitus psíquico das pessoas civilizadas, 1937). Segundo
Wacquant, a noção ressurgiu na fenomenologia, nos escritos de Husserl, nos quais “o
habitus concernia à conduta mental entre experiências passadas e futuras, sendo que
Husserl usava como cognato conceptual o termo habitualität, mais tarde traduzido para
inglês pelo seu aluno Alfred Schutz como conhecimento habitual (e daí sua adoção
pela etnometodologia), uma noção que se assemelha com a de hábito, generalizada
por Maurice Merleau-Ponty (1945) na sua análise do corpo vivido como o impulsor
silencioso do comportamento social”. Porém, diz Wacquant, é no trabalho de “uma vida
inteira” de Bourdieu que se encontra “a mais completa renovação sociológica do conceito
delineado para transcender a oposição entre objectivismo e subjectivismo: o habitus
é uma noção mediadora que ajuda a romper com a dualidade de senso comum entre
indivíduo e sociedade ao captar ‘a interiorização da exterioridade e a exteriorização da
interioridade’” (WACQUANT, 2012).
Mulheres e o mar 176

O corpo se molda. Podes ver, eu não tenho barriga. O pessoal, as


mulheres da cidade, malham, como eles dizem. Eu não preciso.
Corro daqui até lá, volto, porque já acostumei o corpo a pegar peso,
fazer força. O corpo é diferente. (Naca).
Tem muita massa muscular, é mais forte. O meu corpo é
totalmente diferente do corpo das mulheres da cidade. Um dia, fui
a uma loja. Uma das moças disse pra outra: olha aquela ali; acho
que é nadadora. Eu acho que ela faz remo, alguma coisa. Olha o
tamanho da guria. Eu noto que o pessoal olha. Às vezes chego para
comprar uma roupa, elas dizem: essa não vai dar para ti porque
és forte. No comecinho na pesca, eu senti. Como a gente diz, já é
de estrutura. As minhas irmãs, nós éramos tudo igual, mas se elas
forem fazer o que eu faço, já vão criar corpo. Nossos hormônios,
não sei explicar, já são mais fortes. Não sei se é pela alimentação,
ou pela genética. A minha mãe era baixinha. Eu já puxei ao meu
pai. Quando eu vou nas lojas e perguntam a profissão, e eu digo:
pescadora. Elas: o que? Eu digo: pescadora! Eu já tenho as mãos
assim. É diferente. (Josi).
Podes ver o que eu vou dizer. Todas são assim mais, mais, como é
que vou dizer: mais rudes. Acho que é isso. Com um corpo mais
forte; costas mais largas. Senta de um jeito. Eu não consigo sentar de
perna cruzada. Somos, como o pessoal diz aqui, “as metralhas”. Mais
fortes, mais embrutecidas. Um corpo mais para homem. (Safira).

As pescadoras me falavam de um corpo que se molda e que,


portanto fica diferente. A forma como elas conseguiam me definir
sobre essa diferença era dizendo que seus corpos parecem um corpo
de homem. No entanto, essa definição poderia ser uma fala delas
que me direcionava como uma justificativa, tendo em vista que, em
uma sociedade hierárquica segundo pressupostos de gênero, elas
emergem como mulheres que têm um corpo para a pesca. Por outro
lado, elas me falavam sobre a percepção de uma diferença entre elas
e as mulheres que vivem em outros contextos que não os da pesca: a
forma de sentar diferente, a maneira de andar, de vestir, de ser. Embora
algumas dissessem que a pesca alia força e jeito, diziam também que
são mais fortes, embrutecidas, rudes, mais para homem, numa alusão
direta aos postulados de gênero que diferenciam a fraqueza, a meiguice,
a fragilidade para as mulheres em contraponto ao que as pescadoras
definiam como sendo mais para homem.
Segundo as mulheres, faz parte e está nas exigências da profissão
de pescadora ter força e coragem em alguns momentos, jeito e agili-
dade em outros. A meu ver, esse adestramento corporal faz com que
Capítulo 4 | O mundo das mulheres na pesca 177

ocorra uma composição com a embarcação de um só corpo, um


corpo-embarcação, em que a embarcação mostra-se, aos meus olhos,
continuidade do corpo de quem pesca; e o corpo de quem pesca, por
outro lado, faz-se continuidade da própria embarcação.
Nas idas ao mar, eu percebia que os corpos delas e deles aderiam à
embarcação como uma continuidade dela, enquanto eu sentia que o meu
ficava solto, mas em uma soltura insegura que dizia respeito exatamente
à rigidez de um corpo que não se moldou na/para/pela pesca. À medida
que a embarcação avançava no mar, seus corpos seguiam o ritmo sem
qualquer alteração, o que eu definiria como uma mobilidade imóvel
embarcação/corpo, enquanto que o meu seguia em uma imobilidade
móvel, embarcação versus corpo, quando eu tinha vontade de me agarrar
à embarcação para não cair quando ela, ao balançar de um lado para
outro, me jogava junto. A pescadora seguia tranquila, sentada ou em pé.
Seu corpo, ao contrário do meu, não era jogado, mas acompanhava o
movimento da embarcação, continuidade de seu próprio corpo.
Havia, por outro lado, o corpo fora da pesca, em que emergem
vaidades, cuidados. Uso de cremes hidratantes, momentos de fazer a
“chapinha” alisando o cabelo ondulado. Esmaltes nas unhas, batom
nos lábios e uso de brincos. Cada uma tinha o seu jeito de ser vaidosa,
mesmo as que diziam que não o eram. Um cabelo amarrado de
modo diferente e brincos colocados no dia combinado para sairmos
juntas ao mar e, portanto,quando eu registraria imagens, contrariava
a verbalização das que afirmavam categoricamente que não tinham
vaidade. Outras assumiam que eram vaidosas, sim, e que não é por ser
pescadora que não seriam:

Afinal é parte da mulher ser vaidosa. Eu me pinto, passo batom, uso


brinco porque gosto. Eu sou assim. Não é porque estou escolhendo
um camarão, que tenho que ter cabelo sujo. (Adriana).
Claro que sou vaidosa. Toda mulher é. É da mulher ser vaidosa e
não é porque é pescadora que não é. (Alzira).
Eu gosto de me arrumar, de me pintar, passar um creme no cabelo.
Ficar cheirosa. (Neia).

Como desde o início do trabalho solicitei autorização, tornou-


se frequente registrar em imagens o cotidiano das pescadoras com
fotos e filmagens, principalmente no início do trabalho de campo.100

100
Com a convicção de que à medida que o tempo passasse eu me familiarizaria com
aqueles espaços da pesca e com o cotidiano das mulheres, busquei registrar o maior
Mulheres e o mar 178

Porém, foi com grande surpresa que, ao voltar após ficar seis meses no
Estágio de Doutorado em Portugal, deparei-me com algumas mudanças
visíveis em quatro pescadoras. Uma delas tinha passado a arrumar as
unhas, fazer depilação com cera e massagem modeladora; outra passou a
arrumar as unhas e a pintar o cabelo. Mas foram outras duas as que mais
me surpreenderam: uma tinha emagrecido oito quilos. Ao manifestar
minha surpresa e comentar o quanto estava mudada, ela me alertou:
“não visse nada. A Neia emagreceu 20 quilos. Quando tu viajasses, nós
falamos: somos obrigadas a emagrecer antes da Rose voltar. Temos seis
meses. A Neia já disse que quer que tu tires as fotos tudo de novo para
mostrar como ela está agora. Tu não vais reconhecer”.
Enquanto mentalmente me questionava se a pesquisa teria
contribuído para motivar tal mudança, a pescadora concluiu sua fala:
“a gente falou: pois estamos dando entrevista, saindo em foto, filmagem.
O que vão dizer? Pescadoras gordas? Descuidadas? Nada disso! Vamos
emagrecer!” Tal afirmação me levou a refletir sobre os processos de
afetações que o campo possibilita, em que não apenas somos afetados,
mas onde também afetamos a vida das pessoas. Vi-me refletindo ainda
se teria sido o exercício de sombra proposto pela antropóloga que
teria instigado as pescadoras, ao olharem, responderem, conviverem
com a sombra, se olharem, perguntarem e voltarem para si mesmas se
propondo então a se recriar e se reinventar como mulheres pescadoras.
Em Maluf (2001, p. 88) encontramos a proposta de que o corpo
seja olhado, “não apenas como objeto da cultura, mas como também
dotado de agência própria; não apenas como receptáculo de símbolos
culturais, mas como produtor de sentido”. Nesse aspecto, o corpo das
pescadoras é produtor de sentido construído pela, para e na pesca, em
que a pesca as constrói e elas constroem a pesca. “São anos assim!”,
diziam-me.
É interessante trazer aqui as reflexões de Seeger, DaMatta e Castro
(1979), que se referem às populações ameríndias em que uma ideia
central diz respeito à fabricação do corpo na trajetória dos indivíduos.
Ao citar como exemplo a perfuração labial e auricular, definindo-a
como uma penetração gráfica, física, da sociedade no corpo, os autores

número possível de condições, lugares, pessoas já no início do campo, corroborando


que “é importante também que esse trabalho de coleta e registro de impressões seja feito
desde o início, ou seja, desde os nossos primeiros contatos [...] porque certos fatos que
impressionam enquanto constituem novidade, deixam de ser notados à medida que se
tornam familiares (MALINOWSKI, 1976, p. 31).
Capítulo 4 | O mundo das mulheres na pesca 179

afirmam que é ela que cria as condições para engendrar o espaço da


corporalidade, que é a um só tempo individual e coletiva, social e
natural (SEEGER; DAMATTA; CASTRO, 1979, p. 15). Conforme
ainda corrobora Maluf (2001), “alguns exemplos dessa corporificação
da experiência, ou centralidade do corpo na experiência coletiva e
individual, são a forma pela qual se dão, em muitos desses grupos, o
aprendizado e a socialização das crianças [...]” (MALUF, 2001, p. 93).
A partir dessas ponderações sobre as sociedades ameríndias,
parece-me possível e interessante propor uma aproximação com os
territórios da pesca, tendo em vista que se, por um lado, as populações
pesqueiras estariam inseridas em sociedades ditas ocidentais, por outro
lado, afastar-se-iam no sentido de denunciar o que, em princípio, seria
um olhar dicotômico do ocidente sobre o corpo. Os dados de campo de
minha pesquisa me levam a pressupor uma complexa heterogeneidade
quando pensamos em sociedades ocidentais no sentido postulado por
Maluf em relação às sociedades ameríndias.

Se certas experiências sociais contemporâneas, como nas


sociedades ameríndias, estão voltadas para a “fabricação de
corpos” que – investidos de agência e subjetividade – “fabricam
cultura”, é também da fabricação de pessoas (e de sujeitos) que
se trata. Elas também, não sendo uma “coisa dada”, são produto
e produtoras de sentidos e de novas experiências. (MALUF,
2001, p. 99).

Conforme questiona Maluf (2001), caberia perguntar se


estamos tratando do mesmo corpo, diante dos inúmeros fenômenos
com os quais nos confrontamos em que questões sobre sujeitos,
agenciamentos, fabricação, entre outras, que precisam ser investigadas e
problematizadas. Por outro lado, embora tenhamos que nos questionar
sobre que corpo e a partir de qual prisma se está falando, as discussões
reverberam cada vez mais profundamente nos espaços de discussão da
antropologia. Um exemplo profícuo a que aqui faço alusão diz respeito
ao de Maluf (2001), que traz um rico material em que, após percorrer
autores como Mauss, Hertz, Leenhardt, Foucault, embrenha-se em uma
discussão sobre contemporaneidade e pessoa, aludindo ao fato de que
é central conectar a uma discussão sobre corpo e corporalidade uma
reflexão sobre pessoas e suas formas culturais específicas, considerando
que somos produtos e produtores de corpos, culturas e sujeitos.
É interessante pensar que as populações pesqueiras teriam muito
mais em comum com as sociedades ameríndias do que inicialmente
Mulheres e o mar 180

poderíamos supor, no que diz respeito às experiências coletivas e


individuais que perpassam a construção de corpos nos processos de
aprendizado da pesca, em que são investidos anos seguidos para que o
corpo se molde. O processo de aprendizado na pesca é doloroso quando
exige do corpo suportar mais peso do que inicialmente suportaria; ou
quando testa os limites corporais, como o controle do vômito. Alguns
desistem, não conseguem continuar ou não são aceitos porque não
aprendem a lidar com o enjoo, por exemplo. A grande maioria acaba
por conviver com o mar após anos de treinamento. No entanto, foram-
me relatados casos de pessoas que voltaram a ter enjoo, ou o tiveram
pela primeira vez, após algum tempo ou depois de anos trabalhando
na pesca. Questiono se seria o corpo apontando sinais de seu nível de
exaustão em uma profissão extenuante, cujo cansaço se manifestaria na
aversão corporificada em forma de vômito.
Embora algumas pessoas verbalizassem que “pescador já é
quando tem que ser”, considero que não se nasce, mas se aprende a ser na
construção do próprio corpo e, em consequência, de uma corporalidade
para a pesca. Algo que diz respeito ao que Latour (2004, p. 207) define
como aprender a ser afetado quando discorre sobre os perfumistas:

Começando com um nariz mudo incapaz de diferenciar muito


mais do que odores “doces” e “fétidos”, cada um termina um
tanto rapidamente com a formação “de um nariz” (un nez), isto
é, alguém capaz de discriminar diferenças cada vez mais sutis e
capaz de dizer-lhes um a parte de outro, mesmo quando eles são
mascarados por, ou misturados com outros.

O nariz, portanto, inventa o cheiro, mas também o cheiro


especializa o nariz, na medida em que o corpo-nariz se constrói no
aprendizado que se repete e na repetição que especializa o aprendizado. É
nesse processo de repetição que corpos são construídos e especializados,
como os corpos de mulheres pescadoras.

4.4.2 Roupas que fabricam corpos

O tempo vivenciado na pesca imprime aos corpos e à


corporalidade das mulheres pescadoras formas específicas de como
a materialidade dessa forma de vida se mostra, seja no vestir, sentar,
caminhar, em que elas próprias reconhecem como diferentes seus
próprios corpos se comparados aos de outras mulheres que não atuam
Capítulo 4 | O mundo das mulheres na pesca 181

na pesca. Macacão de oleado,101 botas maiores do que o pé para facilitar


retirá-las em caso de naufrágio, gorros, casacos e cabelos curtos ou
sempre bem presos para evitar acidentes são exemplos das exigências
e da indumentária da pesca. Escondidos atrás de camadas de tecido
ou do plástico grosso dos macacões, seus corpos passam por uma
fabricação e, ao mesmo tempo, por uma dissimulação corporal que as
igualaria aos homens, tendo em vista que, segundo as pescadoras com
as quais convivi, seriam roupas masculinas; de homem.
Resumindo o que me diziam, é um corpo de mulher em roupa
de homem em que a indumentária é composta de calças que permitem
uma mobilidade corporal, sobrepostas por macacão de oleado feito
para homens, cujo desenho frontal, na maioria das vezes, representa
uma abertura para dar vazão ao pênis, o que não deixa dúvida. Gorro,
macacão, capa, luvas e botas transformam os corpos e todos ficam
mais ou menos iguais. Homens e mulheres. As pescadoras consideram
que essa indumentária contribui para a construção do corpo para/na/
da pesca e é um dos fatores que fazem com que se tenha uma noção
preconcebida de que não existem mulheres que embarcam, tendo em
vista que os corpos femininos desapareceriam por trás de roupas feitas
para corpos de homens.

Quem vai dizer que nós estamos no mar se quem olha de longe
parece tudo homem? Parece ser tudo o mesmo corpo com a mesma
roupa. (Márcia).
Por isso dizem que não tem mulher na pesca. A roupa que usamos
é roupa de homem. Nosso corpo vira um corpo de homem: é calça
larga, macacão, bota grande, luva. Tudo é roupa de homem. Não
existe roupa de mulher na pesca. (Iliete).

Ao questionar-lhes o porquê de suas afirmações, o tempo emergia


como central. Diziam-me que são anos vividos na/da e para a pesca,
em que muitas começaram aos 8, 9 anos de idade e viram seus corpos
sendo, de tal forma, modelados pela pesca, e a pesca sendo modelada
por eles, que muitas já não conseguem se vestir ou andar com roupas que
não sejam as que a pesca exige, como calças compridas, confortáveis e
largas, conforme se referia dona Naca, 63 anos, que desde os 8 anos vive
na pesca. Trata-se de corpos que são reconhecidos e que se reconhecem

Macacão feito de uma espécie de plástico grosso, cujo nome advém de épocas
101

passadas em que os pescadores literalmente passavam óleo na roupa para que tivesse
uma maior durabilidade, segundo depoimento oral.
Mulheres e o mar 182

como diferentes do que se esperaria ser um corpo de mulher em terra.


Trata-se de roupas fabricadas para homens que, ao serem usadas por
mulheres, constroem corpos que, vistos de longe e sem uma atenção
mais aproximada, teriam a mesma forma. Homens e mulheres usando a
mesma roupa teriam um só corpo: de homem.
Assim sendo, se a pesca tem uma diversidade de ser feita e de
existir, há nela um ponto em comum que diz respeito ao que é um
corpo para a pesca, que implica uma forma de se vestir em que saias,
vestidos, roupas coladas se tornam impossíveis de serem usados.
Os gorros geralmente dissimulam os cabelos, as luvas disfarçam as
mãos; macacão e botas transformam os corpos e escondem qualquer
curvatura corporal que possa denotar um corpo mais longilíneo.
Todos os corpos ficam mais ou menos compostos de macacão e capa.
Ou seja, muito iguais, homens e mulheres.
Se as roupas, em princípio, para homens, fabricam também
corpos de mulheres, moldando formas de ser e estar, os corpos dessas
mulheres também fabricam e inventam roupas. A partir do que o
mercado (não) oferece – por exemplo, só existe macacão de oleado
com corte masculino – as mulheres criam formas de conviver melhor
com o que dispõem e reinventam a indumentária para a pesca e para
seus corpos. Tina, por exemplo, após testar o uso de velcro, que não
foi aprovado nos muitos experimentos feitos, chegou à conclusão que
não bastaria apenas colocar um zíper. Teria que ser um zíper de textura
maleável, o que facilitaria às mulheres urinar em alto-mar.

A gente tem que inventar a partir do que tem. A gente faz assim:
tira essa costura dura da calça ou do macacão que só machuca.
Corta, tira fora e faz uma abertura. Depois é só colocar o zíper.
Mas tem que ser macio. Aí toda mulher pode fazer xixi no mar. A
única coisa é que sempre molha um pouquinho, mas que dá, dá.
Não fica esse macacão de homem. (Tina).

Por outro lado, algumas das pescadoras usavam expressões como


estar nua; se sentir nua para falar sobre a dificuldade que tinham em
usar saias ou vestidos depois de anos e anos construindo um corpo que
aprendeu a andar de calças.

Fui pescar, vesti as calças do pai. Paletó! O paletó do pai eu tinha


que vestir. Depois fui parando mais moça e fui comprando agasalho
porque naquela época era só agasalho. E eu me acostumei com
roupa de homem. Se eu estou de saia, se preciso me abaixar, entrar
Capítulo 4 | O mundo das mulheres na pesca 183

no bote, de saia, como fica? De vestido: como? O meu trabalho já


é pra isso. Desde pequena trabalhando assim [...] Eu mesmo já me
acostumei. Não sei andar de saia ou de vestido. Eu, de saia ou de
vestido me sinto nua. É assim. Acostumei desde muito nova nesta
profissão. (Naca).
Eu não uso vestido e saia. Eu não sei, eu não me sinto bem. Eu
me sinto pelada. Uma vez fui botar para ir a uma festa, tive que
vir embora. Eu não aguentei. Eu me senti mal. Eu não tinha jeito
pra sentar. Também não sou uma bruta pra sentar, mas não sei
explicar, nada dá. Me deixa agoniada, me deixa mal. Eu não me
sinto bem. Eu me sinto nua mesmo. (Josi).

Segundo elas, já não é possível usar outro tipo de roupa que não
calças compridas, pois isso geraria um desconforto provocado pela
nudez. Foi interessante notar que, mesmo pescadoras que seguiam
preceitos religiosos cujas mulheres não devem usar calças compridas,
usavam por debaixo de saias ou vestidos, legs ou meia-calças, que não
deixam de ser tipos diferentes de calças. O imaginar-se sem calças
compridas faz com que as pescadoras denominem essa situação
aludindo à nudez, em que falam de desconforto e impossibilidade de se
imaginar de outra forma que não usando uma roupa que, embora e em
princípio, seria moldadora de corpos de homens, é aquela com a qual
elas se sentem familiarizadas e bem.

4.4.3 Corpos: os riscos; a morte

Por um lado, foi possível observar que há um desgaste marcado,


registrado, no corpo, e na corporalidade, em que coluna vertebral,
pernas, olhos e, talvez de maneira mais evidente, as mãos, são
ostensivamente usados de forma intensiva e permanente. Por outro
lado, e simultaneamente, esse corpo, testemunha de saberes-fazeres
próprios dessa profissão, é um corpo passível do risco de, a qualquer
momento, desaparecer em alto-mar. A possibilidade constante de
naufrágios com a qual convivem diariamente está estritamente ligada à
imprevisibilidade da perda de vidas que, ao ocorrer, se dá sem qualquer
forma de antecipação do acidente, ou do resgate posterior.

A vida é assim. Ela não vai aos poucos. Vai de uma vez. A não
ser em caso de uma doença. Mas com o pescador é assim: quando
vai, vai de uma vez. Teve um pescador que ficou cinco horas. Deu
uma bobeira. Quase foi. Quando o helicóptero estava voltando,
Mulheres e o mar 184

viu ele. Foi a sorte. Senão, já era. Assim, uma coisa, um descuido.
E a vida foi. (Alzira).

Intempéries repentinas, ventos imprevisíveis, mudanças de maré,


alterações no trajeto da pescaria, peças da embarcação que quebram de
forma inesperada podem provocar naufrágios ou momentos de tensão
enquanto se fica à deriva ou à espera de socorro por alguma embarcação
que esteja próximo. Visando ilustrar essas possibilidades com as quais se
deparam cotidianamente, selecionei um dos diálogos que tive com dona
Rosinha, em que suas narrativas aludem a exemplos de momentos difíceis
que ela vivenciou no mar ou em relação à expectativa de reencontrar seu
filho que passou pela experiência de ficar horas desaparecido antes de
ser resgatado com vida por vizinhos.

Eu fiquei uma hora, uma hora e pouco. O vento! O vento! A chuva!


Eram quatro horas da manhã. Era escuro, escuro, escuro. O cara
viu a hora que a batera parou de repente.
[O que a senhora sentiu quando ficou ali esse tempo na
tempestade, sozinha, no escuro?]
Não, eu não fiquei com medo. De vez em quando, se eu escutava o
ronco de um motor, alguma coisa, eu ligava a lanterna pra eles ver
que eu estava ali porque se fechou tudo em chuva. Não me passava
nada pela cabeça. Nada. Só fiquei mais assustada quando passei
um susto muito grande com um navio lá fora no mar.
[Como é que foi?]
Era uma batera que nós tínhamos. Aí, acabamos de colher a rede.
Ele disse assim: “Olha, nós vamos mais um pouco para o sul,
para depois arriar para o norte”. Daí, eu disse: “Está bem. Então
vamos”. E fomos. Quando nós fizemos a volta, quebrou o eixo.
Ele disse: “Como é que foi acontecer isso?”. Ele pegou e botou um
ferro n’água e tinha o meu primo que estava colhendo aqui mais
ao norte. Aí nós pegamos uma blusa, botamos em uma ponta de
vara e começamos a fazer sinal. Ele viu. Ele disse, entre eles: “Olha,
lá tem uma embarcação e é o tio Aparício”. Nisso, nós olhamos,
saiu um navio ali da ilha do Araça. Eu disse: “Nego, saiu um navio
de lá e vai pra lá. Ele disse: “Vai passar perto de nós”. Eu disse:
“Nada, homem. Deixa de ser bobo. Vai passar”. Aquele meu primo,
quando viu, porque ele estava longe, ele saiu. E lá vinha o navio; e
lá vinha o meu primo, o Afonso. Ele disse assim: “Meu Deus, esse
navio vai passar bem em cima da batera. Eu disse: Nada, homem.
Deus é grande. Deus está vendo nós aqui. Aí, pegou e disse assim:
Capítulo 4 | O mundo das mulheres na pesca 185

Não, vai bater. E ele ficou apavorado. Eu disse: “Calma, meu velho.
Calma! Não é assim”. E lá vem o Fonso, e lá vem o Fonso. Mas era
muito vento. O bote batia na água que respingava. Ele disse: “Meu
Deus do céu, nega. Nós vamos morrer debaixo do navio”. Eu disse:
“Calma, nego”. Foi a conta de nós pegar o cabo e jogar pro Fonso.
O Fonso só puxou a batera e o navio passou. Bem no rumo onde
nós estávamos. Ninguém disse uma palavra! Foi uma luta!
[E o navio nem via vocês porque são muito pequenininhos?]
Não, não. Ele nem vê porque é assim ó: quando o navio vem, até
uns quinhentos metros, uns seiscentos metros ele vê. Mas depois
não vê mais. Não vê! Olha, nega, foi por Deus. Aí outro dia foi
aqui, no mar da Taquara. Era escuro. Eu disse assim: “Nego, ali
vem um barco”. “Mas o barco vai passar por fora”, disse ele. Eu
digo: “Não pega na rede, não pega a bandeira”. Era escuro sabe.
“Nada, mulher! O barco vai passar por fora.” Eu disse: “Não,
não, faz uma volta pra nós não parar o motor, mas tu não pega
a bandeira. Vai mais um pouquinho pra terra”. “Essa mulher!
Uia mulher medrosa!” Eu disse: “Não, não, não é medrosa”. Foi
a sorte nós não pegar. A bandeira passou assim ó: arrastando
no barco. Outra vez nós estávamos colhendo rede aqui, veio
aquele barco, e veio, e veio, e veio. Nós fomos obrigados a saltar.
Quando vê que ele vem no rumo, a gente já tem que sair porque
eles não estão nem aí!
[E a senhora conhece alguém que pesca como vocês que chegou
a ir a fundo?]
Tem um primo nosso. Ele foi arrastar camarão, o Ananias, saiu de
madrugada. Disseram que ele cochilou, que não viu o barco. O barco
partiu a batera e ele morreu na hora. Só acharam ele depois de três
ou quatro dias. Outra vez nós estávamos com rede ali no mar do
Pinho. Deu um vento muito forte, que o vento, o mar, é uma coisa
que é complicada. Voltamos! O mar é vivo! Outra vez nós estávamos
lá perto do Gravatá, deu um vento terral que a água batia nas
minhas costas pra não cair no motor pra não parar. O vento sul, na
verdade, é o que mais prejudica nós, porque se dá vento sul e a maré
é pro sul, já cria muita onda. Fica banzerado que é uma coisa!
[Banzerado, o que é?]
Aquela marola que não é onda alta, mas também não é onda
baixa. Brisado já é o vento que vem do mar. Daí e difícil ir, vai
molhando tudo. Quando o meu filho estava com 19 anos, ele
pescava numa batera do pai, era caceio de corvina. Então viajava
três horas para fora. Ele e o meu sobrinho. Ele saiu uma quinta-
feira, uma hora da manhã. Eu levantei, fiz o café, arrumei a
Mulheres e o mar 186

comida e ele saiu. Depois, o pessoal veio tudo de fora, e nada dele
vir. E o vento da terra. Trovoada. E nada! Passou a noite toda no
mar. Aí eu fiquei apavorada. Não dormimos aquela noite. Foram
os barcos do Zezinho, do Anísio e de um rapaz, que hoje é morto,
procurar ele. Aí, o Zezinho perguntou como é que foi a noite,
se tinham visto uma batera de boca aberta. Eles disseram: “Se
eles estiverem vivos é um milagre, porque o que deu essa noite!”.
Aí, passou quinta-feira a noite toda. Sexta-feira à noite é que
acharam ele. Chegou em casa sábado à uma da manhã. Botaram
fora dez panos de rede, uns quinhentos quilos de corvina, o forro
da batera, pra aliviar a batera por causa da onda que era muito
alta e botava água pra dentro. Eles tiraram água à noite toda.
Disseram que tinha água até o joelho. O meu filho e o camarada.
No outro dia, eram três horas da tarde, ele estava com o pai lá
no porto trabalhando, arrumando a batera, tudo. Aí, dei café pra
ele. Ele começou a chorar. Daí eu beijei ele. Começou a chorar, a
chorar. Aí, eu disse: “O que é filho? Por que estás chorando?”. Ele
disse assim: “Nada mãe”. “Por que então? Estás pensando o que
passasses lá fora?” “Ah, mãe. Eu pensei de não ver mais a mãe.”
Vê que eles fecharam a casaria da embarcação e foram dormir os
dois para morrer ali dentro pra não ver as ondas do mar. Olha, a
gente vê todo mundo vivo, e eles não vinham, ai! [Nós duas não
aguentamos: choramos.]. Ser mãe de um pescador não é fácil.
Ainda bem que agora tem celular. O meu mais novo, quando
vai e demora, eu ligo: “Onde é que estás?”. “Estou aqui dentro
do bote, mãe!” Eu digo: “Ah, eu sei que estás aí dentro do bote,
mas onde filho?”. [Muito riso] Os meus três filhos homens estão
na pesca, um na industrial e dois na artesanal. A gente está
preparada pra tudo! E não está! É assim. (Rosinha).

Quando os episódios de naufrágio levam à morte, o corpo


é considerado central para que a confirmação do óbito se efetive.
Como o corpo tem essa centralidade, há alguns cuidados que passam
a ser observados no registro de detalhes no Atestado de Saúde de
profissionais da pesca, como altura e cor dos olhos. Ao perguntar a
uma das técnicas da Marinha do Brasil o porquê da importância da
cor dos olhos, ela esclareceu:

Em caso de naufrágio, e se o corpo for encontrado já em estado


inchado, estas informações de altura e cor dos olhos ajudam.
Se nenhum bicho tiver comido os olhos, a cor se mantém.
Então é um dado a mais para ajudar na identificação e no
reconhecimento do corpo.
Capítulo 4 | O mundo das mulheres na pesca 187

Para efetivação do processo de reconhecimento, o corpo teria que


aparecer para comprovar a morte, vindo a possibilitar o fornecimento
do Atestado de Óbito. Não aparecendo o corpo, não há provas. Não
havendo provas, só resta à esposa do pescador, por exemplo, esperar até
que passe o tempo definido como necessário para comprovar a ausência.
A esse respeito, a Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002, do Código Civil,
no Capítulo III, da Ausência, define os trâmites necessários quando esta
é decretada (BRASIL, 2002).102
Segundo a experiência de pescadoras que perderam seus
maridos ou pais, foram cerca de cinco anos de espera para receber
alguma assistência do governo, tendo em vista que faltava a prova
central para o fato da morte: o corpo. Ilustro tal situação a seguir com
a fala de uma das mulheres cuja família conseguiu agilizar o processo
em um tempo menor porque acionou outros meios, mostrando que é
possível, quando há sensibilidade e vontade, antecipar o benefício às
viúvas, conforme seu relato.

102
Parte Geral, Livro I, Das pessoas – Título I – Das Pessoas Naturais, Capítulo I – Da
Personalidade e da Capacidade: Art. 6o A existência da pessoa natural termina com a
morte; presume-se esta, quanto aos ausentes, nos casos em que a lei autoriza a abertura
de sucessão definitiva; Art. 7o Pode ser declarada a morte presumida, sem decretação de
ausência: I – se for extremamente provável a morte de quem estava em perigo de vida;
II – se alguém, desaparecido em campanha ou feito prisioneiro, não for encontrado
até dois anos após o término da guerra. Parágrafo único. A declaração da morte
presumida, nesses casos, somente poderá ser requerida depois de esgotadas as buscas e
averiguações, devendo a sentença fixar a data provável do falecimento. Capítulo III – Da
Ausência – Seção I Da Curadoria dos Bens do Ausente. Art. 22. Desaparecendo uma
pessoa do seu domicílio sem dela haver notícia, se não houver deixado representante ou
procurador a quem caiba administrar-lhe os bens, o juiz, a requerimento de qualquer
interessado ou do Ministério Público, declarará a ausência, e nomear-lhe-á curador. Art.
23. Também se declarará a ausência, e se nomeará curador, quando o ausente deixar
mandatário que não queira ou não possa exercer ou continuar o mandato, ou se os seus
poderes forem insuficientes. Seção II Da Sucessão Provisória. Art. 26. Decorrido um
ano da arrecadação dos bens do ausente, ou, se ele deixou representante ou procurador,
em se passando três anos, poderão os interessados requerer que se declare a ausência
e se abra provisoriamente a sucessão. Art. 27. Para o efeito previsto no artigo anterior,
somente se consideram interessados: I – o cônjuge não separado judicialmente; II –
os herdeiros presumidos, legítimos ou testamentários. Art. 30. Os herdeiros, para se
imitirem na posse dos bens do ausente, darão garantias da restituição deles, mediante
penhores ou hipotecas equivalentes aos quinhões respectivos. § 1o Aquele que tiver
direito à posse provisória, mas não puder prestar a garantia exigida neste artigo, será
excluído, mantendo-se os bens que lhe deviam caber sob a administração do curador,
ou de outro herdeiro designado pelo juiz, e que preste essa garantia § 2o Os ascendentes,
os descendentes e o cônjuge, uma vez provada a sua qualidade de herdeiros, poderão,
independentemente de garantia, entrar na posse dos bens do ausente.
Mulheres e o mar 188

São necessários cinco anos para se conseguir o Atestado de Óbito.


A mãe conseguiu antes porque nós escrevemos uma carta para
a Previdência Nacional;  de lá eles entraram em contato com a
Previdência de Biguaçu, que chamaram a mãe dizendo que ela
teria direito a um salário mínimo até ficar comprovado o óbito.
Junto a um advogado, que solicitou os documentos necessários para
dar andamento ao processo, documentos esses que conseguimos
com a ajuda da Capitania dos Portos de Florianópolis, que entrou
em contato com a Capitania do Rio de Janeiro  e depois com
a  Colônia  de Pescadores daqui. Além desses documentos havia
os registros em jornais do acidente e testemunhas, como casais
amigos que numa audiência com o juiz declararam o que chamam
de veracidade dos fatos. A partir daí o juiz expediu um Atestado
de Óbito onde a mãe passou a receber os três salários que tinha
direito. Foram mais ou menos uns três anos de espera. Todas nós
nos sentíamos impotentes frente aos acontecimentos. Parecia um
pesadelo, e uma espera interminável, pois, como não vimos o corpo,
tínhamos a esperança que ele iria voltar a qualquer momento. Para
a mãe foi ainda mais difícil, pois ela ficou com os filhos para criar.
Tarefa complicada. Ela foi uma guerreira. Ainda hoje é difícil falar
nisso. Com a avó eu nem toquei mais no assunto, pois ela sempre
fala nele e não se conforma até hoje. Toda vez que fala nele, chora.
Eu tenho 42 anos, a mãe tem 63, e a avó 86 anos. Meu pai já
desapareceu há mais de 20 anos. (Ana, Governador Celso Ramos).

Como é possível constatar na fala de Ana, trata-se de anos de


espera para que se considere que o tempo do desaparecimento tenha
sido suficiente e venha a se efetivar o direito de receber o benefício
de pensionista como viúva de pescador, tendo em vista que a lei que
regulamenta essa questão de desaparecidos é federal e trata de forma
indiferenciada brasileiros, não levando em conta peculiaridades como
esta dos pescadores que desaparecem não por questões outras, mas tão
somente por um acidente de trabalho. O conteúdo da própria lei foca
mais resguardar o destino de possíveis heranças ou bens, sem aventar
formas de garantir que essas populações possam ter imediatamente
reconhecido o fato do desaparecimento para constituir o direito do
amparo legal.
Mais uma vez emerge a questão da centralidade do corpo, tanto
na atenção a detalhes deste no processo de reconhecimento em caso de
acidente, aludindo à estatura física e cor dos olhos, quanto nos episódios
de desaparecimento em que, não havendo um corpo, não há como
efetivar a comprovação da morte. Não havendo essa comprovação, a
Capítulo 4 | O mundo das mulheres na pesca 189

família do pescador fica em uma situação mais vulnerável do que em


qualquer outra já vivida, considerando que são anos de espera e de falta
de assistência, aliados ao processo de luto que não tem fim.
Butler (2006, p. 46) se refere ao luto questionando-se se há como
saber “quando se elabora um luto, ou quando alguém termina de fazer o
luto por outro ser humano”. Ele acrescenta que

talvez um luto se elabore quando se aceita que vamos mudar a


causa da perda sofrida, provavelmente para sempre. Quiçá o luto
tenha a ver com aceitar sofrer uma mudança (talvez se deveria
dizer submeter-se a uma mudança) cujo resultado não se pode
conhecer de antemão. (BUTLER, 2006, p. 47).

Em relação às viúvas de pescadores há, a meu ver, um


submetimento duplo. Primeiro, pelo que se aplica aos humanos e
que Butler definiu como um nosotros. Ou seja, o fato de que estamos
implicados na iminência de perdas, a qualquer momento. Por outro
lado, ao se submeter a uma situação que poderíamos denominar de um
devir viúva, em que ela não deixa de viver o processo de luto, embora
resguarde a esperança de que o outro volte, também vive uma situação
de vulnerabilidade extrema enquanto não lhe reconhecem como tal. Já
não é mulher de pescador, mas também do seu reconhecimento como
viúva não se trata. De alguma forma, ela desaparece com o laço pelo
qual se reconhecia. Como resume Butler (2006, p. 48): “Que ‘sou’ sem ti?
Quando perdemos alguns dos laços que nos constituem, não sabemos
quem somos nem o que fazer. Em um nível, descubro que te perdi a ‘ti’
só para descobrir que ‘eu’ também desapareço”.
Continuando em diálogo com Butler, corroboro sua afirmação
quanto a dizer que “deveríamos então avaliar e opor as condições sob as
quais certas vidas humanas são mais vulneráveis do que outras, e certas
mortes mais dolorosas do que outras” (BUTLER, 2006, p. 57). Eu afir-
maria que urge ponderar que, embora toda vida humana seja vulnerável,
algumas são mais do que outras. É preciso considerar diferenças centrais
que extrapolam a vulnerabilidade humana em comum, levando-se em
consideração que há vidas, mortes e lutos mais dolorosos. Não seria
o caso de rever a legislação brasileira sobre desaparecidos e criar uma
especificidade que contemple a questão do desaparecimento/morte de
pescadores e, portanto, da vida das pescadoras?
Mulheres e o mar 190

4.4.4 O corpo como memória da profissão

Além da possibilidade constante de naufrágios, os acidentes


são comuns na profissão da pesca, que é considerada extremamente
perigosa, tendo em vista, além do fato de se trabalhar no mar, os próprios
apetrechos com os quais se lida, como anzóis, ferros, motor, linhas de
nylon, entre outros, aliados aos acidentes com os próprios pescados,
como mordida de peixes, perfuração com ossos e espinhas e os cortes
ou perda de partes do corpo em peças da embarcação.
As narrativas das pescadoras rememoravam experiências sobre
acidentes, sustos, imprevistos, os quais, ao me serem narrados, além
de acionarem suas memórias sobre os episódios vividos, acionavam
também o corpo como prova materializada em forma de cicatrizes,
falhas ou mutilação de dedos, pernas ou braços. Se, por um lado, a
memória era ativada com riqueza de detalhes sobre o que estava sendo
narrado, não havia como pôr em dúvida a veracidade da narrativa: o
corpo era mostrado como prova.

Já tive alguns acidentes. Uma vez, eu passei a mão aqui, na polia,


saiu do lado de lá, não sei como. Ai meu Deus do céu! Aí essa coisa
revirou e ficou só no osso. Passou aqui e amassou tudo. Agora que
está melhorando. Esse dedo aqui ficou com defeito. Amassou com
graxa, areia e sangue, tudo misturado, levou quatro pontos. Só que
eu botei babosa; quase nem aparece. Eu quase desmaiei porque vi
o osso. Mas, credo, é dor! Dor não mata ninguém. Não Mata! Era
umas dez horas; até às duas e meia da tarde fiquei sem pontear.
Fiquei mais de mês sem trabalhar, sem mexer em nada. Ficou só
as marcas, só. E não quebrou nada, osso nenhum. Devo ter os ossos
fortes porque em mim nunca quebrou nada. Olha que eu tenho
levado lambada, mas nunca quebrou. [Só aquela vez que caiu no
mar? Conta pra mim como foi.] Mas não quebrei nada: nunca
se deve dar as costas para o mar. Eu estava de costas pra proa. Eu
estava viajando. Daí bateu o nordeste forte, eu desequilibrei e caí.
Quando eu fui me sentar, eu já sentei fora do bordo. Desequilibrei,
caí assim, tummmm, de costas. Nisso a bota engatou na rede. Eu
caí, fui pro fundo e a rede engatada aqui. Eu de calça de oleado,
de bota. Daí, eu peguei na rede porque o bote estava em marcha
de viagem. As portas correram pra’qui e eu fui puxando de palmo
em palmo. Fiquei surfando ali atrás. Fiquei ali porque dentro não
tinha como entrar. Fiquei agarrada no leme ali atrás e surfando.
Fiz assim com o pé; as botas saíram. Perdi o celular, perdi setenta
reais. Fiquei agarrada e fui governando, governando até ir ao
Capítulo 4 | O mundo das mulheres na pesca 191

encontro do seu João. Daí, ele me viu. Eu abanei, ele chegou perto
de mim. Aí eu soltei o bote e fui pro bote dele pra depois pegar
esse aqui. E o trabalho pra pegar esse bote? Atrás, correndo. Peguei
na curva porque a embarcação, quando fica sem leme, o lado do
cabeçote do motor é o lado mais pesado. Aí, ele pende pra esse lado.
Ele fica dando aquela volta longe, longe, descansada. Parecia ser
um cabrito doido. Numa volta daquela foi que eu peguei. Pulei
pra dentro. Eu fiquei toda dolorida, uma meia hora surfando. O
meu braço aqui ficou tudo doído, machucado, vermelho. Passei
trabalho. Nunca tinha me acontecido isso aí. Nesses anos todos!
Mas sempre tem a primeira vez. Isso é pra eu me cuidar. (Naca).
Esse meu dedo aqui, que não estica mais, que ficou aleijado, foi
uma arraia. A gente estava pescando e fincou o esporão da arraia.
Foi um acidente de trabalho, como se diz. Fiquei com o dedo sem
prestar mais, defeituoso. Até hoje não prestou mais. (Luísa).

Após os acidentes sofridos, as pescadoras relataram que


precisaram fazer pequenas pausas, mas que, a seguir, continuaram na
pesca, por causa da necessidade financeira. Com o tempo, os episódios
de acidentes foram parcialmente esquecidos, pois é no próprio corpo
mutilado, deformado que a materialização dessas lembranças ficou
registrada e que, portanto, não as deixas de todo esquecer.

A gente nunca esquece porque a marca fica no corpo, no defeito


do corpo da gente. Esquece a dor, mas não o que passou. (Luísa).
Eu já sofri alguns acidentes na pescaria, mas o pior deles foi
com os meus cabelos que foram arrancados pelo motor do barco.
Eu fui olhar o esticador de polia103 porque ele estava fazendo
barulho. Como eu estava com os cabelos soltos, o vento soprou e
meus cabelos foram lançados no eixo do barco e, com isso, fiquei
totalmente careca. Sorte que não arrancou o couro, mas tirou o
cabelo todo. Foi horrível. Devido ao fato de a gente ser mulher e
ser vaidosa, eu sofri muito e entrei em depressão porque me achava
feia careca. Só o carinho do marido e dos filhos fez com que eu
superasse a depressão. (Alzira).

Segundo Alzira, foi a experiência mais difícil que ela teve na


sua trajetória de pescadora, pois se viu privada de seus cabelos, o que,
para ela, era algo muito importante para uma mulher, pois considera
um complemento para o rosto. À medida que Alzira me narrava sua

103
É uma peça metálica que existe para esticar a polia, que é um pedaço redondo de
borracha.
Mulheres e o mar 192

experiência, eu ficava impressionada com os detalhes do acidente que


ela rememorava e ia contando: a percepção do barulho estranho em
uma peça da embarcação, o breve vacilo e a perda total de seus cabelos
e o indício de um sangramento. “Sorte que não arrancou o couro.” Ao
ouvir essa frase, imagens de deformidades faciais me vinham à mente,
mas foi apenas em Portugal que me dei conta da dimensão do que
Alzira tinha narrado, quando um brasileiro que assistia a uma palestra
que ministrei sobre minha pesquisa me sugeriu buscar informações a
respeito de uma associação de escalpeladas na região Norte do Brasil.
Lá mesmo iniciei uma investigação pela internet, deparando-me com
imagens de mulheres e meninas vítimas de escalpelamento.
De acordo com o site da Associação Sarapó,104 escalpo é o nome
científico do couro cabeludo, e escalpelamento em embarcações ocorre
quando o escalpo humano é arrancado de forma brusca com grande
quantidade de cabelo, que é puxado de forma inesperadamente rápida
quando se enrola em motores em grande rotação. Na grande maioria
dos casos, além do escalpo são arrancadas orelhas, sobrancelhas e
parte da pele do rosto e pescoço, levando a deformações graves, ou até
a morte. Esse tipo de acidente costuma ocorrer em embarcações, com
pessoas de cabelos compridos, ao se aproximarem de partes móveis do
barco, como o motor ou o eixo, e acontece muito frequentemente na
região Norte,105 onde o transporte por barcos é mais comum, sendo os

104
Disponível em: <http//www. sarapo.com.br>.
O escalpelamento é considerado um caso de saúde pública na região amazônica. Além
105

da prevenção, o combate a esse tipo de acidente passa por medidas socioeconômicas e


psicológicas de atendimento às vítimas, que têm suas vidas totalmente modificadas,
pois além da deformação física e do isolamento pelo qual passam, elas têm suas chances
no mercado de trabalho diminuídas, tanto pelo preconceito diante da sua aparência
quanto pelas dificuldades como não poder mais tomar sol, se expor a cheiros fortes ou
passar roupa, por exemplo. Segundo a Associação das Mulheres Ribeirinhas e Vítimas
de Escalpelamento da Amazônia (AMRVEA), esses acidentes vitimam principalmente
mulheres, das quais 65% são crianças. Em alguns trajetos, os longos cabelos de meninas e
mulheres transportadas nas embarcações enroscam nos motores. O que acontece a partir
daí é rápido e traumatizante, pois, às vezes, elas perdem parte do cabelo; outras vezes,
todo o couro cabeludo e partes do corpo, como as orelhas, são decapitadas. Sobre a dor do
impacto, as vítimas não sabem dizer, pois o choque é tão grande que algumas desmaiam.
Quando voltam a si, estão com o rosto desfigurado. Por isso, muitas delas não saem mais
de casa, e há casos de meninas que foram abandonadas por suas famílias. É comum
que passem anos sem ter coragem de se apresentar aos outros; além disso, desenvolvem
problemas físicos como dor de cabeça intensa cada vez que molham a cabeça. O estado
do Pará, segundo maior em extensão da região Norte do Brasil, onde a maioria das
comunidades usa embarcações como meio de transporte, é considerado o que concentra
Capítulo 4 | O mundo das mulheres na pesca 193

estados da foz do rio Amazonas e o estado de Santa Catarina os que


registram o maior número desse tipo de acidentes. Ainda segundo o
mesmo site, visando erradicar o escalpelamento, foi aprovada, em 6 de
julho de 2009, a Lei no 11.970.106
Em alguns depoimentos, as mulheres escalpeladas de estados
como Pará e Amapá dizem não ver problema maior na perda de cabelo,
pois o uso de peruca supre essa falta, mas o que mais lhes aflige é a
deformidade facial com a perda de orelhas e partes do rosto.107 Alzira,
por sua vez, embora com o escalpo preservado, ao se dar conta de ter
o cabelo arrancado, tendo ficado totalmente careca, se viu de tal forma
fragilizada que esse fato desencadeou um processo de depressão. Tanto
as mulheres da região Norte do Brasil quanto o exemplo de Alzira, em
Santa Catarina, apontam para a necessidade de ações mais contundentes

o maior número de vítimas de escalpelamento, cerca de 90% dos casos. Por perderem o
couro cabeludo, muitas mulheres usam um lenço na cabeça para esconder as marcas e, por
isso, elas são chamadas “As meninas de turbante”. O Pará vem realizando várias ações para
inibir o escalpelamento. O Amapá segue a mesma linha. O estado vem atuando de forma
preventiva na redução de acidentes com vítimas de escalpelamento por embarcação. Para
a execução de um trabalho mais efetivo, o governo do estado do Amapá conta com o apoio
da Associação de Mulheres Ribeirinhas e Vítimas de Escalpelamento da Amazônia, que
possui aproximadamente 150 mulheres associadas (SEM MÁSCARAS, 2009; Disponível
em: <www.direitos.org.br/index.php?option=com_content&task...>. Acesso em: 21 nov.
2011). Algumas iniciativas foram tomadas no sentido de minimizar essa situação, sendo
uma delas capitaneada pela defensora pública Luciene Strada de Oliveira, que, ao dela
tomar conhecimento em 2005, coordenou um diagnóstico sobre o assunto na região Norte,
a partir de onde a Defensoria Pública da União determinou e aprovou um programa de
erradicação do escalpelamento em uma ação conjunta com vários órgãos públicos, como
SUS, Marinha do Brasil, IML, além de instituições privadas, como fabricantes de motores
e ONGs (OLIVEIRA, 2010).
106
De autoria de Janete Capiberibe (PSB-AP), que tornou obrigatório o uso de proteção
no motor, eixo e partes móveis das embarcações, e que determinou que a embarcação
flagrada sem o uso desses equipamentos poderá ser apreendida e multada, além de o
condutor ter suspensa a habilitação para navegar. Em caso de acidentes pela falta das
proteções, quem dirige o barco pode ser processado.
A Associação de Mulheres Ribeirinhas e Vítimas de Escalpelamento da Amazônia
107

(AMRVEA), localizada em Macapá, possuía, em 2012, 117 integrantes, sendo 110


mulheres. De acordo com o Ministério da Saúde, no ano de 2011, 618 pessoas fizeram
a cirurgia de reparação pelo Sistema Único de Saúde (SUS), sendo a grande maioria
na região Norte. Um conhecido cirurgião plástico de Florianópolis, Dr. Rodrigo D’Eça
Neves, participou de um dos mutirões em Macapá. Segundo ele, as mulheres sentem
os maiores danos na pele e no rosto, mais do que nos cabelos, principalmente “com
as sobrancelhas e a pele dos olhos que acabam sendo arrancadas junto com o couro
cabeludo”. Ainda segundo o médico, devido à violência de alguns acidentes com
motores, torna-se necessário implantar orelhas de silicone (OLIVEIRA, 2010).
Mulheres e o mar 194

em termos de prevenção de acidentes nas embarcações. Guardadas


as proporções das deformidades corporais entre carecas, cuja perda
do cabelo é reversível, e escalpeladas, em que a reposição de partes da
face se faz de forma parcial e após sucessivas cirurgias reparadoras,
as repercussões em suas vidas são irreversíveis, sejam as emocionais,
afetivas, psicológicas ou econômicas.

4.4.5 Corpo-mãos: prova da profissão

É possível afirmar que o corpo aponta ainda os corpos sentidos:


ver, ouvir, tocar, sentir, e serve como prova da trajetória de vida, seja
no corpo em agilidade e rapidez ao fazer o que fazem, e especialmente,
segundo elas, no corpo-mãos, sobre o qual me detenho a seguir.
O corpo é central como sujeito, onde as afetações com as quais
nos deparamos deixam marcas no processo de nos fazermos. Latour
(2004) entende que corpo é o oposto de estar morto e que construir um
corpo é ser afetado, é estar apto e aprender sobre afetações no sentido
de que é por ele, o corpo, relacional, que aprendemos a aprender. Há
assim, segundo Latour, gradativamente, a construção de corpos que
reagem de diferentes formas a odores, imagens, sons, por exemplo, em
que o corpo/sujeito está onde o aprender a ser afetado se mostra. Enfim,
nossos corpos se fazem no aprender a ser afetado.
Afetar-se pela/na pesca é construir corpos nos quais o que
poderíamos denominar de corpo-mãos é central. O uso e desgaste da
pesca, segundo as pescadoras, estão no corpo-mãos, usado de forma
frenética pelas embarcadas para puxar, jogar, remendar redes e tarrafas;
e pela grande maioria de mulheres em terra, para eviscerar peixes, limpar
siri, descascar camarão, fazer ou remendar redes, em uma especialização
da rapidez que não permitia à antropóloga qualquer registro fotográfico
que não o solicitado em forma de pause.
O corpo-mãos, por um lado, era evocado pelas pescadoras como
devendo ser prova suficiente de suas trajetórias na pesca e, portanto,
para a conquista de direitos, como a aposentadoria, o que também era
corroborado pelos pescadores, exemplo do que disse um deles em uma
das reuniões que acompanhei quando um técnico do INSS falou da
necessidade de provas: “Olha as mãos!”. Por outro lado, diz respeito à
materialização de uma memória da profissão cravada no desgaste físico,
em que o corpo se apresenta com sulcos e marcas, vincos formados pelo
sol e pelo sal com os quais se convive diariamente, o que resulta em uma
Capítulo 4 | O mundo das mulheres na pesca 195

espécie de metamorfose mais acelerada no processo de envelhecimento


a partir do qual os corpos-mãos dos mais velhos me afligiam mais, pois
havia momentos que me pareciam como uma espécie de garra preparada
para o esforço que a pesca exige.
Nesse aspecto, Vasseur (2004) se refere à percepção do processo
de metamorfose pelo qual o corpo passa no decorrer do tempo, em que
as fotografias seriam um meio com o qual nos depararíamos com a visão
da própria metamorfose corporal que o envelhecimento e o desgaste do
tempo vão imprimindo sem que nos demos, de imediato, conta.

Se o homem não parou de consagrar seu corpo às mais diversas


transformações, tanto reais quanto imaginárias, há finalmente
uma metamorfose da qual ele não pode escapar: essa do
tempo que deforma e altera a carne […] nosso corpo está, em
vida, em perpétua metamorfose. Mas é, na maioria das vezes,
uma metamorfose imperceptível cujos efeitos só são visíveis à
distância; através do olhar daquele que, durante muito tempo,
não mais nos viu. Nas fotografias onde se conseguiu captar, para
sempre, um instante que já passou. (VASSEUR, 2004, p. 185).

Não só ao se depararem com as suas fotografias, mas o meu próprio


corpo se mostrou foco de estranhamento sobre a metamorfose em forma
do envelhecimento visualizado no desgaste acelerado de seus corpos.
Ao perguntarem minha idade, elas verbalizavam a percepção do que
denominavam de se acabar mais rápido: “És mais velha do que eu na idade,
mas no rosto, nas mãos, olha pra mim! Estou muito mais acabada. Isso é
da vida na pesca”. Percepção que fala de um rápido desgaste físico em que
a pesca deixa marcas irreversíveis em seus corpos, seja no rosto vincado
pela exposição diária ao salitre, ao vento, ao sol, que, de forma geral, lhes
fixam na face mais idade do que a registrada em seus documentos; seja
nas dores nas costas e nas pernas inchadas pelos longos períodos em que
ficam em pé. Porém, a forma mais visível se mostrava nas mãos.
O corpo-mãos que envelheceu na pesca já não tem a mesma
elasticidade que mãos juvenis ou mãos de outros contextos e afazeres.
Corpo-mãos que já não estica totalmente, ficando mais voltado para
dentro, ressecado, calejado e grosso. Ou muito fino e fragilizado. Corpo-
mãos que se moldou no cotidiano do mar. Um corpo que testemunha
o percurso de trajetórias de vida diferenciadas de contextos citadinos e
que emerge na materialidade que aquele corpo-mãos, de forma muito
peculiar, registra. Ao contrário do perfumista de Latour (2004, p. 207),
cujo aprendizado se dá por meio e a partir de um kit, “the malette à
Mulheres e o mar 196

odeurs”, é o corpo da própria pescadora que serve e que suporta o


aprendizado de ser afetado. Por outro lado, se formos pensar no mar
como aquele que tem a habilidade de ensinar, seria então ele próprio
uma espécie de kit que permite ao corpo da pescadora se especializar.
Tornou-se comum eu ouvir uma alusão ao corpo como prova
da profissão, em que o corpo-mãos seria a principal evidência da
materialidade do ser pescadora: mãos de pele muito grossa ou muito
fina, inchadas, secas por um lado por causa dos ferimentos causados
por espinhas, ossos de peixe ou cascas de camarão e, por outro, com
unhas extremamente frágeis por causa do constante contato com a
água. A materialidade dos efeitos da diferença (social, simbólica e
política) nos corpos, na vida e na trajetória e experiência cotidiana das
mulheres (MALUF, 2009, p. 14) precisa ser abordada, compreendida e
considerada.
E é nesse sentido, entre outros, que pode ser percebida a
dificuldade que alguns técnicos – que representam órgãos públicos, que
deveriam amparar, orientar e reconhecer essas profissionais – têm ao se
deparar com os contextos em que as muitas pescas ocorrem e onde essas
mulheres trabalham de forma intensiva. Vejamos, a seguir, o trecho de
uma das falas que ouvi em campo:

Quando a mulher do INSS chegou lá em casa, ela olhou para nós


e comentou: “Ah, mas vocês são mais bronzeadas do que eu”. Eu
falei: “Claro, dona. A gente trabalha na praia, no sol. Todo dia”. Já
visse isso? A gente se sente mal. Elas, com as unhas feitas, bonitas.
A gente com as unhas feias, grossas, sujas. Eu me senti humilhada.
Como não ver que a gente é pescadora? Basta olhar as mãos. Basta
olhar o corpo. (Jussara).

Como não ver que o corpo denuncia outro sentido, não aquele
que a técnica inicialmente consegue entender? Como não ver o que está
materializado de forma, em princípio, tão evidente para a pescadora,
de que, se fosse observado com um pouco mais de atenção, tornar-se-
ia possível dar-se conta? Na fala de Jussara, nota-se a experiência que
as pescadoras continuamente têm no que diz respeito a se depararem
com o despreparo de alguns técnicos, e no caso pincei o do INSS, para
atender um público que poderia ser denominado de diferenciado, como
as profissionais da pesca. Veja-se que a fala da referida técnica aponta
para uma noção de praia e mar como lugares de descanso, de férias, de
onde se sai mais bronzeada do que técnicos pálidos por trabalharem em
lugares fechados, segundo a observação irônica de Jussara.
Capítulo 4 | O mundo das mulheres na pesca 197

Por outro lado, Jussara remete a uma fala que se mostrou corriqueira
em campo e que alude à materialização que a pesca vai registrando no
próprio corpo no decorrer do tempo, um corpo que, por ter sido afetado
(LATOUR, 2010), à medida que se especializava, se constituía prova
irrefutável de uma profissão que diz quem são e por que são.
Capítulo 5

A RELAÇÃO COM O ESTADO:


ENTRE SABERES, RECONHECIMENTO
E (IN)VISIBILIDADE, UM SUJEITO QUE
NÃO SE ENQUADRA?

M 32 – marcou o visor colorido indicando a mesa, seguido do


som de um blim blom. Entrei com Safira e o técnico do INSS se
mostrou solícito, embora sério, e perguntou o que queríamos.
Como Safira havia me pedido para fazer as perguntas, eu iniciei
a conversa e se seguiu o seguinte:
– Eu sou pesquisadora e estou acompanhando esta senhora, que
é pescadora e me pediu para vir acompanhá-la, pois quer tirar
algumas dúvidas sobre o processo de aposentadoria.
Demonstrando não ter me ouvido, o técnico se dirigiu
diretamente à Safira: – A senhora é mulher de pescador?
Interfiro: – Não, ela é pescadora.
Continuando como se eu não tivesse falado, o técnico continuou:
– A senhora trouxe os documentos do seu marido?
Não me contendo, mais uma vez interferi ao mesmo tempo em
que me dei conta do coração mais acelerado e o sangue me corar
o rosto com a raiva que senti. Porém, num esforço de controle
comentei: – Ela também tem os documentos de pescadora.
Mais uma vez, foi como se eu não tivesse dito nada. O técnico
continuou olhando apenas para Safira, e ela rapidamente lhe
respondeu:
– Ah, eu trouxe sim. Estão aqui.
– Ela também tem documentos, insisti. Porém, o único som
que eu parecia ouvir era meu próprio coração acelerado:
Capítulo 5 | A relação com o estado 199

tuctuctuctuc. Era eu também agora, não só invisível, mas


inaudível para o referido técnico, que continuou sem considerar
o que eu argumentava.
– Tem a carteirinha dele aí? Deixa eu ver. Como está aqui, está
tudo certo. Ele tem a carteirinha há 12 anos e a senhora é mulher
dele. É casada legalmente?
– Sim, sou.
– Então. Tem que contribuir 25 anos e ter 55 anos de idade para
se aposentar. Era só isso?
– Era, sim. Obrigada. Respondeu Safira de forma tímida, muito
diferente de seu jeito alegre e expansivo. Ele não me olhou. É
como se eu não estivesse ali. (Trecho do meu diário de campo).

Este capítulo diz respeito a pensar a relação com o estado.


Para tanto, inicio esse tema com algumas reflexões sobre a relação, os
conflitos e a circularidade entre diferentes saberes: por um lado, os das
pescadoras; por outro, os viabilizados pelo extensionismo rural em Santa
Catarina, exercício este extremamente complexo, se considerarmos
que sou empregada na Epagri, conforme já esclarecido no início desta
escrita. Assim sendo, trabalhando em uma empresa do estado, vejo-me
diante de um forte exercício de distanciamento, posto que me desloco
da figura de extensionista e exercito-me como antropóloga.108 Ambas as
condições compõem o que sou, o que gera momentos de liminaridade109
em que me sinto, na Epagri, uma antropóloga, em um exercício
continuado de estranhamento do familiar, sem o que eu considero
que não poderia contribuir de forma responsável no exercício de uma
antropologia consequente (SAEZ, 2009), pautada pelo que preconiza o
código de conduta da Associação Brasileira de Antropologia (ABA).

Ver Silva (2000). O autor aborda questões referentes ao fato de ser o pesquisador
108

também um pesquisado, situação em que emergem conflitos, questões, dúvidas.


Duarte também trabalhou esta questão em sua dissertação de mestrado no PPGAS/
UFSC, quando usou a expressão insider com o intuito de problematizar sua pesquisa
sobre o mandato policial da Polícia Militar de Santa Catarina. Para ele, insider “pode
significar alguém com dificuldades de relativizar os conceitos, ou transformar o familiar
em exótico. O argumento é que determinadas questões, conceitos, dinâmicas estariam
tão naturalizados em mim como nativo de forma a me parecerem trivialidades sem
importância que talvez isso pudesse obliterar minha visão e consequentemente minha
análise, prejudicando os resultados do trabalho” (DUARTE, 2012, p. 49).
Liminaridade no sentido de alguém que se sentia como se não estivesse em nenhum
109

dos dois lugares. Amparando-me nas palavras de Turner, seria um estar “no meio e entre
as posições atribuídas […] como se nada possuísse” (TURNER, 1974, p. 117).
Mulheres e o mar 200

Na universidade, por vezes, parecia não haver uma percepção


de que há sutilezas entre um trabalho do ou no estado. Por sua vez,
no estado, o conhecimento advindo da universidade, por vezes, é
prejulgado e considerado como algo inexequível. Faço, assim, uma
reflexão sobre a relação pescadoras/extensionistas, mas também
sobre meu lugar quando me penso uma antropóloga-extensionista/
extensionista-antropóloga, o que implica conflitos, enfrentamentos e
questionamentos. Considerando a realização de uma pesquisa pautada
em uma postura crítico-antropológica e orientada por pressupostos
éticos, tive um cuidado especial ao exercitar esse deslocamento devido à
relação próxima com os nativos, objeto deste livro, e a ser eu própria, até
certo ponto e de toda forma, nativa.
Avançando no capítulo, detenho-me no que considero a
centralidade de meu trabalho no sentido de trazer contribuições
para pensarmos sobre questões que dizem respeito às dificuldades de
reconhecimento que as pescadoras enfrentam quando se deparam com
um estado que também reflete a forma cultural como essa profissão
está pautada, por uma visão hierárquica de gênero. Essas mulheres,
reconhecidas em suas comunidades e que se reconhecem como
guerreiras, inventando a pesca e se reinventando cotidianamente na
pesca, vivem à parte de um estado incapaz de contemplar sujeitas e
sujeitos de direito, pela simples definição de seu sexo.
Aparecem, neste capítulo, a racionalização e a burocracia, com
destaque para o papel do sistema que define se elas têm ou não direito,
em que o formulário preenchido, por ser transparente, revela que não são
reconhecidas pelo estado como elas próprias se reconhecem. Ao colocar
o x em feminino, essas mulheres não se enquadram ao sistema, que não
fala, não escuta, mas tudo sabe, não deixando, portanto, dúvidas de que
elas não são o que reconhecem que são: pescadoras.

5.1 Saberes e fazeres: pescadoras e extensionismo


As pescadoras com as quais convivi têm acesso ao extensionismo
de Santa Catarina por intermédio da Epagri,110 sendo duas as principais

110
A Epagri foi criada em 1991 a partir da fusão do Instituto de Pesquisa do Estado
(IASC) e das então associações de extensão rural (ACARESC) e pesqueira (ACARPESC),
tendo Acaresc na época a maior estrutura física e de pessoal, dedicada ao atendimento
à agricultura, cujo quadro de profissionais majoritariamente era de engenheiros
agrônomos. Passados mais de vinte anos, a Epagri ainda demonstra dificuldade em
Capítulo 5 | A relação com o estado 201

formas pelas quais essa relação pode ocorrer: a) procuram a assistência


técnica para fazer algum financiamento visando acessar linhas de
crédito disponíveis para a compra de embarcações, por exemplo; b)
participam de grupos, encontros, reuniões de mulheres nos quais são
discutidas temáticas de interesse nas áreas de saúde, agregação de
valor, educação ambiental, culinária e, mais recentemente, direitos das
mulheres da pesca. Em uma ou outra via de acesso ao extensionismo,
é possível falar sobre relações que envolvem diferentes saberes, que
poderíamos chamar de saberes tradicionais, por um lado, e os técnico-
científicos por outro.
Tanto elas vão aos escritórios locais de extensão como os técnicos
vão às suas casas, especialmente as extensionistas sociais.111 Para realizar
os processos relativos a financiamentos, o local é o escritório, tendo em
vista a necessidade de preenchimento de formulários disponibilizados
nos computadores dos técnicos. Para participar dos grupos ou cursos
voltados às mulheres, dependendo da região e das condições, os encontros
podem se realizar nos centros de treinamento da Epagri,112 nas cozinhas
das casas das pescadoras ou em espaços cedidos na comunidade, como
salão paroquial, cozinhas e escolas. Assim, na chamada extensão técnica,
boa parte dos trâmites se desencadeia no escritório. Na extensão social, a
cozinha e outros espaços de sociabilidades se fazem centrais.
Problematizar os saberes-fazeres de pescadoras no contexto
do extensionismo rural implica pensar como a circularidade desses

lidar com a área pesqueira. Sendo uma empresa resultado da referida fusão, ela não
conseguiu dar conta da diversidade implicada na junção de um trabalho que era feito
com agricultores e outro que se realizava com famílias de áreas pesqueiras. Como
continuamente tem que demonstrar que é uma empresa eficiente para o governo do
estado, e como a maricultura e a agricultura dão mais retorno financeiro e visibilidade
para Santa Catarina, os investimentos, tanto em corpo técnico quanto em recursos
financeiros, são destinados em maior volume para essas duas áreas do que para a pesca
artesanal, considerada por muitos técnicos como uma forma primitiva ainda de realizar
a atividade no mar, a qual consegue demonstrar pouco retorno financeiro. Há, portanto,
muito ainda a avançar.
111
A Epagri contempla pesquisa e extensão. O trabalho de extensão se divide em técnico
(realizado por engenheiros agrônomos e técnicos agrícolas que atendem a questões
ligadas à produtividade agrícola) e social (realizado por pedagogas, assistentes sociais,
enfermeiras, sociólogas, entre outras profissões, que trabalham com questões sócio-
humanas e ambientais).
A Epagri dispunha, na época da realização de minha pesquisa, de 12 centros de
112

treinamento, localizados nos seguintes municípios: Agronômica, Araranguá, Campos


Novos, Canoinhas, Chapecó, Concórdia, Florianópolis, Itajaí, São Joaquim, São Miguel
do Oeste, Tubarão e Videira (EPAGRI, 2011).
Mulheres e o mar 202

diferentes saberes-fazeres se atrita e se acomoda no cotidiano feminino


da pesca, na medida em que o saber técnico, via extensão, traz de seus
objetivos primordiais o que diz respeito a fazer com que produzam
melhor e tenham mais higiene, sendo, de certa forma, uma prática
civilizatória.
Ao discutir o conceito de civilização, Elias (1994) esclarece que
se trata de uma grande variedade de fatos e questões que envolvem a
tecnologia, os conhecimentos científicos, as formas de comportamentos
e os costumes. Assim sendo, muitas das políticas públicas viabilizadas
pelo extensionismo, a partir do momento em que se pautam pela
disseminação de processos de limpeza, higienização, formas de
manipulação, controle, uniformidade e racionalização da produção, aí
se inserem.113
O conceito bakhtiniano de circularidade (BAKHTIN,
2008) se mostra interessante e atual para pensarmos que, mesmo
quando se parte de um pressuposto que considera o conhecimento
técnico-científico como central (por exemplo, o extensionismo, que
teria o objetivo de “levar o conhecimento” às populações rurais),
há, concomitantemente, outras formas de conhecimento que se

Tanto em Foucault (2008), que trata sobre a história da loucura, discorrendo


113

sobre os processos de confinamento e internações, em especial na França, quanto


em Foucault (2009),que fala sobre prisões, vigilância e punição, o autor se refere a
formas de adestramento, confinamento, normatizações, padronizações, o que, por
um lado, define quem é louco e como deve ser tratado; por outro, como deve ser
vigiado o condenado. As discussões que o autor traz contribuem para pensarmos
sobre outras formas de confinamento e normatizações que não apenas aquelas
materializadas em instituições de reclusão ou punição. Explico-me a partir do diálogo
que tive com colegas técnicos objetivando melhor compreender os trâmites exigidos
quando alguém quer se tornar um microempresário (ME) da pesca: as exigências que
pescadores e pescadoras têm que cumprir se desejarem ampliar sua produção passam
por medidas que vão desde a obrigação do uso de uniforme – que não é para proteger
quem manipula; é para proteger o animal de quem o manipula (guarda-pó, gorro, luvas,
botas) – a reformas em suas instalações, nas quais o rancho de madeira cede lugar a
salas, cujas dimensões das medidas são especificadas pela legislação sanitária, que
define desde a altura do pé-direito da obra às paredes branco-azulejadas, superfície lisa,
lavável e impermeável; piso abrasivo, antiderrapante e lavável. Nada podendo ser de
madeira porque a madeira é absorvente. A cadeia do frio tem que estar bem instalada.
Disse-me um dos técnicos: “Quem trabalha com alimentação tem por obrigação vender
saúde. Se eu vender doença é um crime contra a saúde do consumidor, passível, inclusive
de prisão. Para isso, tem a lei do consumidor. O pescador é fornecedor de alimento”. Ou
seja, o não atendimento às exigências pode, sim, desencadear punições e até a prisão
do infrator, cujo órgão central de monitoramento e controle traz, inclusive no nome,
seu objetivo – Vigilância Sanitária.
Capítulo 5 | A relação com o estado 203

pautam e se expressam distinta e independentemente. Na interação


entre o conhecimento técnico-científico, exemplificado aqui pelo
extensionismo, com os conhecimentos de populações pesqueiras,
ou agrícolas, ou indígenas, há um processo de articulação em que
ambos se influenciam, trocam, constroem e reconstroem. Embora o
postulado fundador do extensionismo preconize que é ele que leve o
conhecimento, na verdade, trata-se de uma via de mão dupla, em que
nem sempre o saber tradicional é devidamente visibilizado.
Isso talvez porque, como afirma Bakhtin, “o poder dominante e
a verdade dominante não se veem no espelho do tempo, assim como
também não veem o seu ponto de partida, seus limites e fins, sua
face velha e ridícula, a estupidez e suas pretensões à eternidade e à
imutabilidade” (BAKHTIN, 2008, p. 185). Seguindo os pressupostos
de Bakhtin, poderíamos dizer que a prevalência de formas sisudas de
interagir, “com o rosto sério e em tons graves”, consideradas posturas de
seriedade que técnicos costumam imprimir ao seu trabalho, confrontar-
se-iam com as formas mais soltas, risonhas, espontâneas e bem-
humoradas das populações rurais.
Ginzburg (1987), ao retomar as ideias de Bakhtin para tratar do
oleiro que tinha ideias próprias, refere-se à circularidade quando diz
que “entre a cultura das classes dominantes e a das classes subalternas
existiu, na Europa pré-industrial, um relacionamento circular feito de
influências recíprocas, que se movia de baixo para cima, bem como
de cima para baixo [...]” (GINZBURG, 1987, p. 13). O conceito de
circularidade implica, dessa forma, uma relação dinâmica em que
saberes, conhecimentos, formas de ver o mundo circulam, são
trocados, influenciam e sofrem influência, o que diz respeito às
pescadoras selecionarem dos cursos e eventos que participam aquilo
que entendem que lhes serve para algo, como as informações sobre
seus direitos, ou alguma receita de doce na qual acrescentam ou da
qual retiram ingredientes e passam para frente, ensinando as vizinhas
e parentas; às extensionistas quando aprendem com as pescadoras
fazendo, por exemplo, anotações de receitas que, por sua vez, as
pescadoras sabem de cabeça.
Em relação à racionalização, Max Weber define como “funda-
mentada em regras racionalmente criadas, isto é, em virtude da
disposição de obediência ao cumprimento de deveres fixados nos
estatutos” (WEBER, 1979, p. 526). No que tange ao serviço de extensão
rural, essa racionalização emerge nas políticas públicas elaboradas,
Mulheres e o mar 204

geralmente, nos gabinetes de Brasília, longe do movimento, do cheiro,


dos ruídos de ambientes da pesca, em que técnicos elaboram normativas,
leis ou projetos pautados por regras gerais que abrangem territórios
amplos, sem levar em conta as muitas especificidades das distintas
formas de viver na pesca. Em vez desse processo duro, cujo fluxo sai de
Brasília em direção às pequenas comunidades, a formulação de políticas
públicas teria que privilegiar uma discussão atenta e continuada com as
populações pesqueiras, considerando as múltiplas formas de exercício
da pesca artesanal no Brasil.
Aludindo às dificuldades de diálogo entre técnicos e a
populações, eu recorreria à imagem do par mármore/murta, discutido
por Castro (2002), tendo em vista que as políticas públicas não
conseguem contemplar a complexidade que circula e compõe o mundo
da pesca. Esse autor, inspirando-se no “Sermão do Espírito Santo”, de
Padre Antônio Vieira, constrói uma reflexão sobre as dificuldades
de comunicação e os consequentes mal-entendidos entre jesuítas e
grupos tupinambás no século XVI nas muitas tentativas de efetivar
um processo de conversão das populações indígenas. “Os Tupinambá
faziam tudo quanto lhes diziam profetas e padres – exceto o que não
queriam” (CASTRO, 2002, p. 219), o que levava os jesuítas a defini-los
como inconstantes.
Tomo emprestada essa reflexão para o contexto da pesca quando
percebo que técnicos de instituições do governo, como MDA e Epagri,
demonstram continuamente dificuldades semelhantes na atuação junto
às chamadas populações do meio rural catarinense quando dizem, por
exemplo: “às vezes, o que a gente diz entra por um ouvido e sai por outro”;
“na reunião eles dizem que vão fazer, depois, fazem tudo diferente” –
algo que fala sobre certa inconstância daquele que tanto ouve quanto
esquece. Talvez porque o que ouve não lhe faz eco com os seus modos
de ser, viver e estar no mundo.
Muito colada à racionalização, a burocracia se impõe de forma
crescente via exigências que tornam os processos mais morosos. O que
Foucault (2009) definiu como normalização, abrange diferentes setores
da sociedade, como a medicina e as escolas. Nessa linha de raciocínio,
quando os participantes de reuniões, homens e mulheres questionavam
os técnicos de diferentes instituições sobre o porquê de terem que
fazer relatórios, juntar dados, quantificar a produção, enumerar a
fauna acompanhante, os técnicos respondiam apontando para uma
normalização: “a burocracia é assim”.
Capítulo 5 | A relação com o estado 205

Não só a pesca artesanal, mas a maricultura,114 passa a contemplar


o que Weber (1999, p. 86-87) denomina de mecanismos de regulação
homogêneos, pautados por vigilância115 e controle do governo e
submetidos a uma burocracia que, longe de ser a admirada por Weber,116
teria como vantagens “precisão, velocidade, clareza, conhecimento dos
arquivos, continuidade, discrição [...]” (WEBER, 1979, p. 249). Ou seja,

114
Em seu trabalho de campo com uma associação de maricultores no Sul da Ilha
de Santa Catarina, Renata Britto também observou as dificuldades enfrentadas por
essa associação no processo de legalização das atividades. A pesquisadora observou
“o esforço de instituições ligadas à maricultura, capitaneada pela Epagri, para promover a
profissionalização, uniformização e padronização dos processos produtivos, para que os/
as produtores/as pudessem ser inseridos/as no mercado interno e, quiçá, internacional”
(BRITTO, 2012, p. 26). Um dos pescadores citados pela autora se refere às exigências
burocráticas, como licença ambiental, termo de ajuste de conduta, cujos documentos,
segundo ele, são difíceis de preencher “pelo próprio engenheiro da Epagri, quanto mais
um pescador” (Senhor Max apud BRITTO, 2012, p. 50). Segundo a autora, o discurso
oficial, “orientado pela lógica utilitarista/instrumental, defende a possibilidade de
conciliar desenvolvimento econômico e inclusão econômica, social e cultural por meio
da transformação do artesanal e da criação de um artesanal profissional competitivo
[...]” (BRITTO, 2012, p. 137).
115
Ao falar sobre as exigências dos órgãos reguladores, como Fatma, Ibama e Vigilância
Sanitária, um dos técnicos com os quais conversei culpou a bactéria, que seria
contaminante, para justificar a dureza da burocracia: “A burocracia é tão grande que
ele, o pequeno, não dá conta. E não é porque a lei quer, é por causa da bactéria que faria
mal a todos. Estamos em um país tropical. É diferente dos países da Europa que são mais
frios e onde a legislação é bem mais tranquila. Tem a questão aqui das barreiras sanitárias
que Santa Catarina tanto preza. A qualidade é negociável, a segurança não. Tem muitas
dúvidas, muitas questões que dependendo do técnico que pega o processo, será de uma ou
outra forma. Tem Fatma que fala que a área construída é o prédio; tem Fatma que diz
que é da cerca para dentro. Daí, quase todos ficam de fora. Isso que a Fatma é uma só”.
A fala do técnico ainda remete à complexidade que envolve a questão de quem exerce
os trâmites burocráticos e as muitas e diferentes formas de agir e exercitar o poder
em nome da burocracia e do próprio estado, o que veremos adiante neste capítulo em
relação aos processos de aposentadoria.
116
Tragtenberg (2006), faz uma discussão sobre burocracia e ideologia a partir de
um diálogo direto com Weber. Cita Frankel ao se referir à admiração de Weber pela
burocracia, pois ela “favorece uma administração racional realista” (TRAGTENBERG,
2006, p. 171). Tragtenberg (2006) defende que a burocracia é essencialmente um
conceito da esfera pública, operando a mediação entre o interesse particular e o interesse
geral; diz respeito não apenas a razões de eficácia na empresa, mas, sobretudo a razões
de poder no estado. O autor relembra ainda que, para Weber, é central contextualizar
“a burocracia, pois ela pode se colocar a serviço de diversos interesses de dominação”
(TRAGTENBERG, 2006, p. 187), tendo em vista que o exercício do poder se dá pela
administração. Sobre racionalização e burocracia, ver também Weber (1979, p. 229-282;
1993, p. 41-70; 1980, p. 16-38).
Mulheres e o mar 206

que faz funcionar, privilegia o engessamento, a lentidão e a dependência


das muitas instâncias reguladoras.
Sobre essa tríade que alia vigilância, controle e governo,
podemos recorrer à discussão de Foucault (2009) sobre uma vigilância
hierarquizada, contínua e funcional exercida sobre os indivíduos. Para o
autor, “o poder na vigilância hierarquizada das disciplinas não se detém
como uma coisa, não se transfere como uma propriedade; funciona
como uma máquina” (FOUCAULT, 1997, p. 170). Aqui, nos referimos à
máquina estatal, que sendo composta por diferentes níveis hierárquicos,
que vão do nacional ao municipal, busca implantar formas que considera
cada vez mais eficientes de controle sobre os indivíduos aperfeiçoando
programas de computador em que o sistema117 não deixa dúvidas ao
chefe maior.

E se é verdade que sua organização piramidal lhe dá um “chefe”,


é o aparelho inteiro que produz “poder” e distribui os indivíduos
nesse campo permanente e contínuo. O que permite ao poder
disciplinar ser absolutamente indiscreto, pois está em toda
parte e sempre alerta, pois em princípio não deixa nenhuma
parte às escuras e controla continuamente os mesmos que estão
encarregados de controlar; e absolutamente “discreto”, pois
funciona permanentemente e em grande parte em silêncio [...]
(FOUCAULT, 1997, p. 170).

A hierarquia estatal segue trâmites que envolvem diferentes


níveis que vão do nacional ao municipal, passando pelo estadual. Os
mesmos técnicos municipais que precisam cobrar das pessoas com as
quais interagem dados, números, produção, relatórios, o fazem e, por
sua vez, prestam contas para as instâncias superiores. As instituições
precisam prestar também contas à sociedade, aos ministérios, ao
governo federal. O profissional busca, assim, justificativas para explicar-

117
Sobre o poder do sistema, também veremos um pouco mais adiante quando nos
detivermos sobre os processos de aposentadoria. Em relação aos cursos ministrados
pelas extensionistas sociais da Epagri, por exemplo, para a compra de materiais simples
como gêneros alimentícios ou itens para compor artesanato, cujo valor liberado gira
em torno de trezentos reais, há a exigência de três orçamentos, o que demanda um
tempo que poderia ser mais bem utilizado na prática em campo, na relação com as
mulheres. Há ainda uma exigência do âmbito nacional de um número mínimo definido
de participantes por curso, registrados cada qual com o número de CPF, além dos
inúmeros relatórios finais comprovando o que foi executado. Uma demanda que toma
uma parcela considerável de tempo de extensionistas visando cumprir o que os níveis
hierárquicos exigem.
Capítulo 5 | A relação com o estado 207

se diante do público com o qual trabalha, ponderando que se trata do


que poderíamos dizer que é de um ente superior, o governo, que exige
vigilância por meio de dados e controle.
Entretanto, mesmo cumprindo as determinações burocráticas,
há espaços de interação com as populações que escapam à vigilância,
o que poderíamos considerar como linhas de fuga (DELEUZE;
GUATTARI, 2009, p. 18), que dizem respeito às rupturas nas linhas de
segmentaridade. É nessas linhas de fuga que se torna possível construir
novas relações e possibilidades tanto para as pescadoras quanto para
extensionistas sociais e técnicos. Trata-se de um exercício contínuo
de criatividade que contorna ou tenta adequar da melhor maneira
possível exigências burocráticas às realidades pesqueiras para facilitar
a realização de cursos e eventos que atendam às demandas locais.
Não é suficiente, portanto, definir a burocracia se considerarmos
que “há [...] uma perversão de burocracia, uma inventividade ou
criatividade permanentes que se exercem inclusive contra regulamentos
administrativos” (DELEUZE; GUATTARI, 2008, p. 91). A perversão
de burocracia diz respeito a encontrar saídas que deem conta da
diversidade de situações que as comunidades pesqueiras apresentam
e que as determinações burocráticas não conseguem contemplar; um
esforço que tenta continuamente transformar o molar em molecular.
No entanto, além de as propostas de políticas públicas serem
pensadas longe de onde acontecem, há outro fator que perpassa as
empresas e instituições governamentais que diz respeito à interferência
político-partidária por meio da qual os níveis mais elevados da hierarquia
são preenchidos. Nesse sentido, o potencial técnico, denominado
técnico de carreira, tem uma relação e compromisso diferenciados com
as populações rurais em níveis distintos daqueles que pautam os ligados
partidariamente, embora muitos técnicos, em dado momento, migrem e
passem a compor os quadros de forma distinta da que vinham exercendo.
O problema não é o gerenciamento de instituições por pessoas ligadas a
partidos políticos, mas o fato de que cada equipe que assume, no desejo
de deixar a sua marca, não dá continuidade às propostas iniciadas em
governos anteriores. É mais comum que defendam suas ideias do que
exercitem o “manter-se suprapartidário, portanto, conseguir superar
suas próprias tendências e opiniões” (WEBER, 1993, p. 72).
As implicações sobre sermos todos nativos (CASTRO, 2002)
e, por outro lado, todos antropólogos, repercutem nas discussões,
angústias e questões que se cruzam quando nos deparamos com outros
poderes e somos chamados a dar respostas e a dialogar com atores que
Mulheres e o mar 208

ocupam lugares estratégicos em diferentes (com)posições e poderes.


O estado-teatro Negara (GEERTZ, 2000) se faz elucidativo: a política
do espetáculo competitivo era agitada, mas tal como sua intriga e seu
cenário, o elenco do Estado-teatro não podia ser mudado com facilidade.
O Negara não era só uma estrutura de ação, mas também de pensamento
em que o real era tão imaginado quanto o imaginário. Um está no outro;
o que, segundo Geertz, precisa ser fortemente considerado. Não há rei
ou poder; o rei é o poder. Não há um ou outro, há os dois. O elenco que
compõe o estado com o qual me deparei, e me deparo, está fortemente
inserido em cenários em que há reis que detêm/são o poder, em que
política e conflito seriam vieses pelos quais podemos traçar nosso
olhar acerca do poder como “um ingrediente essencial do espetáculo
contemporâneo” (ABÉLÈS, 1997, p. 22).
Há, assim, a partir do nível mais alto da hierarquia, a cobrança
dos níveis abaixo de produção e respostas via relatórios que deem conta
do que foi executado, traduzidos em forma de números (reuniões,
atividades, público atendido, instalações feitas) que preenchem os
formulários eminentemente quantitativos. O modo como foram
realizadas as atividades não recebe centralidade, pois a cobrança feita
objetiva prestar contas ao poder maior para demonstrar que a empresa
pública em questão é eficiente o bastante para não ser classificada pelo
governo estadual ou federal como deficitária. A parte qualitativa do
processo não é desconsiderada em sua importância, mas vista como
mais complexa, cara e difícil de ser demonstrada. Assim sendo, o que se
visibiliza são os números.
Outro foco de problematização diz respeito a como se consideram
ou desconsideram diferentes conhecimentos, sobre o que entendo que
cabe um diálogo com Latour e Woolgar (1997, p. 207). O autor, ao
abordar a vida de laboratório, diz que o que motiva os pesquisadores é a
credibilidade científica respaldada por um grupo de pares. Ele diz ainda
que o que se chama de conhecimento não pode ser definido sem que se
entenda o que significa a aquisição do conhecimento. “Conhecimento
não é algo que possa ser descrito por si mesmo ou por oposição a
‘ignorância’ ou ‘crença’, mas apenas por meio do exame de todo um ciclo
de acumulação” (LATOUR, 2000, p. 357).
É nesse sentido que entendo que há saberes-fazeres locais de
homens e mulheres, pescadores e pescadoras, cujas especificidades
não vêm sendo devidamente consideradas quando na elaboração de
políticas públicas voltadas ao setor da pesca. Não se trata de pensar a
ciência de um lado e a cultura de outro; trata-se de cultura versus cultura,
Capítulo 5 | A relação com o estado 209

considerando-se que o conhecimento científico é tão culturalmente


construído quanto os vivenciados, no caso para o qual me volto, pelas
pescadoras.
Hartung observou questões semelhantes sobre a relação entre
saberes do estado e os de comunidades,118 constatando que o primeiro
tem uma lógica que não considera as diferentes lógicas que emergem
das pequenas comunidades. Ao levantar um questionamento nodal, a
autora resume a complexidade em questão:

qual a diversidade que, enfim, as políticas do Estado reconhecem,


protegem, promovem? A dos grupos, comunidades, coletivos
humanos alvos dessas políticas ou aquela definida pelo Estado
a partir das categorias de seus operadores? (HARTUNG, 2009,
p. 10).

Ao criar categorias classificatórias que objetivam encaixar o que


não tem como ser encaixado, tendo em vista os processos que estão além
dessas classificações, o estado não consegue dar conta da diversidade
com a qual se depara.
Firth (2002), em seu estudo pioneiro, já chamava atenção para
o fato de que a área pesqueira, pela comparação com a agricultura,
sofreu com a negligência tanto por parte de cientistas quanto pelo
governo. Para ele, objetivando dar conta da complexidade das
diferentes populações pesqueiras, os estudos teriam que ser realizados
em colaboração entre duas ou mais esferas de interesse, tratando-se,
portanto, de um trabalho interdisciplinar. Por outro lado, ele enfatiza
que os pesquisadores, geralmente, não têm autonomia para colocar
em prática suas observações sobre o que veem em campo (FIRTH,
1968, p. xi-xii). Tal aspecto levantado por Firth é central, pois o poder
de decisão, longe de estar nas mãos de técnicos ou de pesquisadores,
depende das priorizações que permeiam as políticas viabilizadas
pelo estado, em que a autonomia decisória cabe aos cargos político-
partidários ligados ao governo em questão. Geralmente, as demandas,
questões, observações que tanto as populações pesqueiras, indígenas ou
agrícolas, quanto técnicos que trabalham em campo tenham feito em

118
No caso trabalhado pela autora, trata-se da comunidade negra Invernada Paiol de
Telha, em que as tensões, os questionamentos, as dificuldades relacionadas a processos
de regulamentação de terras e relações sobre quem está fora, quem está dentro do ponto
de vista do estado e dos pontos de vista das pessoas remete a “categorias que se referem
às diferentes formas de pertencer” (HARTUNG, 2009, p. 6).
Mulheres e o mar 210

reuniões ou consultas encontram dificuldade em serem transformadas


em política pública exequível diante dos embates burocráticos com os
quais se deparam.
No decorrer de meu trabalho de campo, foi possível observar
a diversidade e complexidade dos diferentes saberes que compõem
os locais pelos quais circulei.119 Só o olhar atento das pescadoras e de
seus camaradas sobre fotos e filmagens que eu lhes mostrava de outros
locais de pesca que havia percorrido me fez compreender que, embora
existam terminologias iguais, como rede de cerco ou rede de espera, as
formas de fazer são diferentes. Ou seja, ao observar nas imagens o que
as demais pescadoras faziam, elas estavam me ensinando duas vezes:
sobre ser pescadora e sobre o próprio extensionismo, apontando-
me que este não consegue dar conta de tal diversidade. Essa pode ser
uma grande dificuldade na formulação de políticas públicas voltadas
ao meio pesqueiro.120 Em vez de considerar a diversidade, que é
complexa e, portanto, mais trabalhosa de lidar, geralmente se opta pela
homogeneização, pois isso torna tudo mais fácil de ser controlado. As
políticas públicas formuladas em Brasília e executadas pelos técnicos
seguem normas rígidas, burocraticamente definidas, que se pautam por
padrões e parâmetros de enquadramento incapazes de contemplar o
diverso. Trata-se de uma tensão contínua entre esses diferentes saberes.
Recorrer a Bakhtin (2008) para pensar a circularidade de
conhecimentos, de saberes-fazeres em relação à extensão rural em que
o riso emerge como princípio dessa circularidade me leva a pensar que
a extensão social consegue se diferenciar da chamada extensão técnica
por estabelecer relações que têm no lúdico e, portanto, em formas que
promovem o riso e a soltura corporal, um princípio de comunicação. Por
não agir como técnico, as extensionistas sociais conseguem demonstrar
maior facilidade em estabelecer uma relação de proximidade com essas

No trabalho que realizou na Ilha do Capim, no estado do Pará, Leitão (1997) também
119

se refere à diversidade e complexidade do universo da pesca, quando afirma que “é


preciso revelar a complexidade e diversificação na organização social das populações
pesqueiras, de acordo com cada situação concreta, e que não pode ser reduzida a um
modelo simplista como apresentado nos planos governamentais”.
Por exemplo, as normas do Pronaf para a pesca que preveem a compra de embarcações
120

cujo dimensionamento ofertado extrapola a necessidade de muitas pescadoras, que


precisam de panelas e utensílios simples, de embarcações pequenas e de dimensões
reduzidas, diante do que as linhas de crédito disponibilizam. São mulheres que, não
tendo condições de dar garantias aos bancos, ficam fora dos processos de aquisição que
viriam facilitar suas formas de pescar e de transformar o pescado, agregando, portanto,
uma renda maior ao seu trabalho e contribuindo para que tenham mais autonomia.
Capítulo 5 | A relação com o estado 211

populações. Ao contrário dos engenheiros agrônomos, por exemplo,


que prescrevem receituários agronômicos e precisam orientar sobre
ataques de pragas,121 ou de técnicos de pesca cuja orientação central
versa sobre aspectos de produção ou financiamentos, as extensionistas
sociais, geralmente, trocam receitas, informações sobre questões ligadas
à saúde, ao ambiente, aos direitos profissionais. Ou seja, ensinam, mas
também aprendem – e muito – com as mulheres com as quais interagem.
Ao promover reuniões, encontros, cursos, em que um dos
princípios metodológicos pelo qual se pautam é o lúdico,122 as exten-
sionistas sociais conseguem exercitar, no contexto da extensão rural
catarinense, uma relação mais dialógica e, portanto, mais próxima de
uma comunicação que tanto quanto fala, escuta. Portanto, circula. O
lúdico como propiciador da soltura corporal e viabilizador do riso, das
brincadeiras, da jocosidade123 e da possibilidade de outros métodos

121
Aqui é preciso referir uma das grandes dificuldades da Epagri que, tendo um
quadro técnico formado preponderantemente por engenheiros agrônomos, encontra
sérias limitações para atender as populações pesqueiras (sem falar das indígenas), o
que precisa ser revisto. Os engenheiros agrônomos, preparados para lidar com a terra,
não se sentem à vontade em relação aos pescadores. Muitos querem a transferência
para regiões litorâneas, vendo-as como possibilidades de lazer pessoal, de melhor
qualidade de vida, mas não têm preparo, perfil e, destes, há os que não demonstram
vontade e disposição para aprender a lidar com o mar e com a pesca. Nas contínuas
comparações que fazem entre agricultores e pescadores, concluem que os primeiros
são mais organizados, planejam melhor e aceitam propostas de mudança, enquanto que
os segundos são vistos como desorganizados, agem sem planejar e são desconfiados em
relação a propostas de inovação que lhes pareçam inicialmente estranhas.
122
Huizinga (1990, p. 218), ao analisar o jogo como elemento da cultura, questiona se
a cultura continuaria se manifestando através de formas lúdicas. O autor enfatiza que
a expressão jogo traz em seu sentido “atividades que podem ser extremamente sérias”.
Ele também afirma que o elemento lúdico estaria em plena decadência desde o século
XVIII, e que “a civilização tem suas raízes no jogo, e para atingir toda a plenitude de sua
dignidade e estilo não pode deixar de levar em conta o elemento lúdico” (HUIZINGA,
1980, p. 229, 233).
123
Oliveira, ao fazer um estudo sobre uma família de santo de Almas e Angola, escolheu
como um dos tópicos de análise a jocosidade como forma de expressão das moralidades
dos membros do terreiro. A autora procurou pensar “a jocosidade como prática que não
se encerra em si mesma, mas uma prática que – além de ser um meio de expressão da
tensão entre a regra e quebra de regra – deve ser pensada como uma forma específica
de se relacionar (OLIVEIRA, 2012, p. 136). A ambiguidade nas expressões jocosas faz
com que escape a todo momento um pretenso sentido nas brincadeira (OLIVEIRA,
2012, p. 140). Mitchell (2010) observou que a brincadeira, o riso, o deboche e a
zombaria permitidos na dança Kalela era o que permitia a continuidade da vida tribal.
Ao realizarem a dança no contexto da cidade, os membros da tribo fortaleciam suas
relações por meio da jocosidade que a dança permitia.
Mulheres e o mar 212

de trabalho além da escrita, consegue incluir diferentes públicos,


alfabetizados e analfabetos. Consegue, portanto, nos pressupostos de
Bakhtin (2008) fazer circular as diferentes culturas. Portanto, diferentes
saberes. O lúdico, que inclui o riso, é um aspecto central para que a
extensão possa se constituir em um espaço de troca e aprendizados.

5.2 Pesca e tecnologia


Emergem, no universo da pesca, questões que dizem respeito à
tecnologia, ao artesanal, ao manual, ao industrial, ao mais e ao menos
em que, quanto menor e mais fechado o grupo, mais específicos serão os
conhecimentos, nos moldes observados por Latour e Woolgar (1997).
Não só os cientistas formam grupos fechados, mas também pescadores
e pescadoras os constituem no sentido de que se consideram, eles
próprios, também pesquisadores quanto a testarem, perscrutarem,
discutirem e buscarem formas distintas e inovadoras de produzir, fazer
e refazer o que fazem.
A título de ilustração, transcrevo a seguir um trecho de meu
diário de campo.

Eu estava indo encontrar dona Iliete e me deparei com uma


embarcação na praia, e recostados nela dois pescadores. Perguntei
se podia tirar uma foto, ao que eles consentiram. Quando
terminei de fotografar, um dos pescadores me perguntou:
– Por que a senhora tirou foto da embarcação?
– Porque estou fazendo uma pesquisa com mulheres pescadoras
e as embarcações fazem parte da pesca.
– Mas nós também somos pesquisadores!
– E o que os senhores pesquisam?
– Nós mesmos!
– E o que estão pesquisando agora?
– Como melhorar a saída da barra com tudo o que está mudando.
Vem aqui ver o que nós pesquisamos até agora.
Dei a volta na embarcação e vi um desenho na areia, que ele
passou a me explicar. (Trecho de meu diário de campo).

Se por um lado, postula Martins (2007, p. 308-309), o “cientista


cria eventos a partir de hipóteses e teorias, recorrendo a amostragens
para alcançar a verdade, o pescador guia-se pelos resultados das fainas
Capítulo 5 | A relação com o estado 213

anteriores, dando relevo à intuição, que chama de palpite”. Nesse


aspecto, os pescadores não separam, como fazem os cientistas, os fatos
da vida cotidiana do domínio das tecnologias. O fato de os pescadores
“apreenderem os aspectos básicos da sua profissão com familiares e
colegas de embarcação seria uma das razões por que as inovações técnicas
e as teorias científicas não eram, ou ainda não são facilmente aceites nas
comunidades” (MARTINS, 2007, p. 309). Ou seja, em seu cotidiano de
testes, erros e acertos, arriscar alguma inovação advém do que se discute
e se aprende com suas relações de confiança e proximidade, buscando
uma aplicabilidade útil.
Forman (1970), que realizou sua pesquisa em Coqueiral, região de
Maceió, Nordeste brasileiro, também teceu observações que coadunam
com as de Martins (2007) e com o que observei em campo no que diz
respeito às motivações para arriscar novidades em que a aceitação
ou rejeição de inovações ocorre quando faz sentido para aqueles que
vivenciam o cotidiano da pesca. Diz o autor:

A aceitação ou rejeição de inovações só podem ser compreendidas


como uma função da estrutura social, que influencia as vidas
da classe camponesa local. Em alguns exemplos, como no caso
de redes de fios de náilon, os pescadores de forma entusiasta,
abraçaram a modificação, embora os mandachuvas locais os
desencorajassem. Em outros casos, como a introdução de
embarcações de casco, a inovação tecnológica foi rejeitada por
jangadeiros embora ele pudesse ter ocasionado um aumento
geral da produção. Em ambos os exemplos, os jangadeiros foram
capazes de exercer a sua própria vontade. Infelizmente, eles nem
sempre podem fazer assim. (FORMAN, 1970, p. 119).

Tem que fazer sentido, para que aceitem a novidade. Para Martins
(2007) há um processo de reinvenção contínuo, o qual atinge um estágio
ideal quando o pescador se abstrai, torna-se contemplativo, pois é aí que
ocorre uma espécie de explosão em que ele explica suas estratégias a
partir da intimidade que tem com aquela arte de pesca. Martins (2007)
percebeu que não se trata de algo grandioso ou espalhafatoso, mas que
há uma discrição nos procedimentos de reinvenção que são, na verdade,
quase invisíveis por dois motivos. Um, porque correspondem a pequenos
acréscimos que aproximam o aparelho de um grau de perfeição intuído
pelo pescador. Por outro lado, porque há também nos processos de
inovações que, por sua vez, vão alterar os resultados das pescarias,
a manutenção do sigilo. É nessa direção que Martins afirma que “as
Mulheres e o mar 214

pequenas invenções afloram do entusiasmo de pessoas que procuram,


com uma espécie – aparente, eu diria – de desinteresse, concretizar o que
Bachelard chama fantasias, anseios e desejos” (MARTINS, 2007, p. 308).
Aqui talvez seja pertinente fazer uma ponte do que preconiza
Martins (2007) com Brandão (1986), pois ambos remetem a processos
extremamente sutis do uso de técnicas pelos pescadores, que muitas vezes
não são percebidos por técnicos ou pesquisadores da área. Diz Brandão:
“Grande escola de pesca é o mar [...] afinal estou convencido de que os
pescadores sabem mais com os olhos fechados do que os técnicos com
eles abertos (BRANDÃO, 1986, p. 146). Não se trata aqui de uma citação
demagógica, mas que busca referir o sentido do que os autores afirmam e
evocar que, no contexto amplo da sociedade atual que preza o científico
racionalizado, existem outros saberes que se manifestam de maneiras
muito diferentes, com outras formas de racionalização, constituindo
grupos que detêm saberes-fazeres específicos que coexistem à margem
ou em paralelo independentemente de serem percebidos.
É nesse sentido que, sobre a junção dos conhecimentos de
pescadores aos de cientistas, Martins (2007, p. 29) pontua que emerge
uma forte relação entre a empiria, a técnica e as teorias científicas,
distintas das práticas do passado. O autor defende que o conhecimento
local deve ser levado em conta, pois os conhecimentos dos pescadores
são de tal forma profundos, “que deram rotas e lugares ao mar”, com
o que corroboro plenamente. Ou seja, em relação ao meu trabalho de
campo, percebi que inventam formas de reconhecer pedras, morros,
aspectos geográficos e paisagísticos relacionando-os com os seus pontos
de pesca, com as variações na produção pesqueira ou com as oscilações
de correntes marítimas a partir do apurado conhecimento que detêm,
conforme resumiu Zonabend (1994, p. 170), ao dizer que os pescadores

[...] conhecem cada metro quadrado, cada banco de areia, cada


“mancha de pedras”, à força de explorar-lhes em busca de novos
lugares de pesca. Eles nomearam, cadastraram este território
de que, inclusive, se apropriam usando de uma linguagem que
apenas eles compreendem […].

A fala de Zonabend (1994) vem ao encontro do que observei


em campo quando constatei que pescadores e pescadoras criaram uma
organização extremamente apurada e sutil, definindo e nomeando
fundos, regiões, rotas, o que não se deu de forma aleatória, mas que se
constitui como resultado da observação atenta, constante e construída
no decorrer de uma vida inteira dedicada e moldada na pesca.
Capítulo 5 | A relação com o estado 215

Há aspectos que fazem parte desse mundo que extrapolam o que


inicialmente é visível ao olhar de técnicos. Por exemplo, a rede de pesca
que, em princípio, seria um apetrecho usado para captura de pescados,
na prática, se mostrou muito mais. Ao disponibilizar a rede no espaço
aquático, ela se torna um elemento central na organização espacial em
um território que, a piori, não teria como ser organizado, como o mar.
Ao soltar as redes, que são sinalizadas com as bandeiras, aciona-se uma
comunicação que traduz, aos que conhecem aquela linguagem, para
quem está disponibilizado aquele espaço demarcado.
É interessante notar, por outro lado, que pesquisadores
veem esses espaços da pesca como uma espécie de laboratório para
seus experimentos, aonde chegam, pesquisam e voltam para suas
universidades ou seus escritórios sem dar um retorno às populações
pesquisadas. Ouvi, em campo, comentários como: “teve um biólogo
aqui, pesquisou com a gente, já veio muito pesquisador aqui, mas depois
esquecem que a gente tem curiosidade em saber o que deu mas nunca veio
dizer o que deu a pesquisa”. Ou: “já veio muito pesquisador aqui, mas
depois esquecem que a gente tem curiosidade em saber o que deu”. Isso
nos instiga a supor que, a partir do momento em que esse conhecimento
é (re)apropriado por pesquisadores, que apresentam propostas de
explicações sobre os fundos marinhos, por exemplo, como se suas
fossem, há um apagamento com o qual desaparecem as trajetórias
de acumulação do conhecimento (LATOUR, 1997) de pescadores e
pescadoras.
Ao não citarem nos resultados de suas pesquisas, ou não fazerem
referência à autoria daqueles que constroem seus conhecimentos
longe dos bancos acadêmicos, porém pautados pela observação e
experiência cotidiana,124 alguns pesquisadores que reconhecem apenas
o conhecimento cientificamente comprovado a partir de suas hipóteses
teóricas desconsideram aquele que se dá na prática e na experiência de
vida em territórios que estão contextualizados e nomeados (MARIÉ,
1982, p. 40)125 pelos que neles vivem. Essa experiência alia o exercício

124
Entre o oficio, que implica qualquer atividade de trabalho que requer técnica
e habilidade específica, e a profissão, como atividade para a qual um indivíduo se
preparou; e que exerce para obter os recursos necessários à sua subsistência (segundo
os dicionários da língua portuguesa), um e outro conceito nos fazem ponderar que as
mulheres pescadoras têm, por um lado, uma profissão, pois se trata do que exige muito
preparo, mas também exercem um oficio perpassado de técnica e habilidade.
Marié (1982, p. 22) observou que engenheiros que estariam encarregados de inserir
125

ações de turismo em espaços de pesca estabeleciam relações locais muito complexas,


Mulheres e o mar 216

contínuo de uma observação apurada a processos de invenção e


reinvenção, entendendo que “a invenção é sempre uma espécie de
‘aprendizado’, e o aprendizado é invariavelmente um ato de invenção, ou
reinvenção” (WAGNER, 2010, p. 100).
É nesse contexto, em que os diferentes conhecimentos se
confrontam, se aproximam, circulam, remetendo, entre outras
questões e vozes, à “responsabilidade específica da voz do antropólogo”
(OLIVEIRA, 2006, p. 30), que entendo estar uma das contribuições da
antropologia, portanto minha, como antropóloga: primeiro, propondo
um processo de discussão continuada com os técnicos/extensionistas
sobre temáticas como diferenças culturais, etnocentrismo, cosmovisões,
saberes-fazeres, entre outras; segundo, entendendo que a etnografia,
como método, epistemologia, teoria, possa ser um dos caminhos pelos
quais a compreensão sobre essas populações e a possibilidade de um
diálogo mais próximo sejam possíveis, não só por mim realizadas,
mas propondo-as como possibilidade de inclusão nos pressupostos
metodológicos atuais da extensão rural e pesqueira catarinense; terceiro,
tendo a convicção e deixando claro que o exercício da antropologia não
é um meio de tradução entre técnicos e populações, mas uma terceira
forma de ver que pode contribuir com uma comunicação pautada por
uma relação dialógica, intersaberes.126
Porém, é o próprio Oliveira (2006) que nos chama a atenção para o
desafio desse exercício. A esse respeito, ele diz que se trata de um desafio
epistemológico “e é tanto mais difícil enfrentá-lo quanto mais o antropólogo
estiver envolvido em programas ou políticas de ação social” (OLIVEIRA,
2006, p. 172). Entendo que uma das possíveis formas de enfrentamento
desse desafio seja o estabelecimento de redes de discussão continuada
sobre dúvidas, questões, ansiedades, conflitos internos, embates, algo

pois se pautavam por uma visão sobre esses territórios e pessoas como desqualificados
(territoire sans qualités; homme sans propriétés; homme sans situation), que ele resumiu
como ‘territoire sans nom’, territórios estes que, ao contrário de outros marcados por
insígnias altamente distintivas, como “Côte d’Azur, la Camargue ou Luberon, par exemple”
(MARIÉ, 1982, p. 40), fariam com que esses engenheiros considerassem os espaços
de pesca insignificantes, sem um significado especial, contrapondo-os aos altamente
distintos. Essas dificuldades dizem respeito ainda ao contexto da extensão rural, quando
técnicos demonstram dificuldade em trabalhar com o que denominam de pequeno
produtor, verbalizando que preferem lidar com produtores que já estejam estabelecidos,
aliado aos incentivos governamentais em transformar os pequenos em empresários.
Comunicação no sentido postulado por Freire (1977), segundo o qual a extensão
126

precisa ser compreendida como um espaço em que diferentes saberes podem e devem
conviver e ser respeitados.
Capítulo 5 | A relação com o estado 217

que diz respeito ao que foi resumido por Fleischer e Schuch (2010, p. 11)
como “envolver-se numa rede de conexão argumentativa”. Ao dissertarem
acerca da importância da discussão sobre ética e regulamentação, elas se
referem à necessidade de criarmos espaços de reflexão, “coletivizando
dúvidas que talvez estejam permanecendo nas ansiedades individuais de
cada pesquisador” (FLEISCHER; SCHUCH, 2010, p. 15). Ou seja, longe
de permanecer em elucubrações isoladas, contribuir para a composição
de redes de pares é central para que possamos nos construir e ampliar
nossos diálogos em conjunto.

5.3 Sobre reconhecimento dos direitos


A referência de que o mundo da pesca é eminentemente masculino
se pauta por um olhar hierárquico que não reconhece a existência das
pescadoras, cuja trajetória de busca por direitos e reconhecimento é ainda
incipiente, e que, portanto, as invisibiliza. Enquanto as agricultoras127
já podem computar resultados advindos de uma longa caminhada de
luta, as pescadoras iniciam-se nesse percurso. O Ministério da Pesca e

O Movimento de Mulheres Agricultoras (MMA) já pode computar muitas conquistas


127

no decorrer de sua trajetória em relação ao reconhecimento de seus direitos, como a


aposentadoria. A deputada federal Luci Choinacki é uma das lideranças catarinenses que
têm como objetivo a melhoria de vida de agricultoras e agricultores, tendo sido ela própria
agricultora. Em relação às pescadoras, em 2004, o governo federal, através da Secretaria
Especial de Aquicultura e Pesca (SEAQ), realizou um encontro das trabalhadoras da pesca,
dentro da I Conferência de Pesca, que era oficial, do governo. As mulheres organizadas
nos estados se encontraram e reivindicaram que o evento fosse composto só por mulheres
pescadoras e que os debates e propostas fossem postos dentro do documento oficial
da Conferência, não só como memória, mas como resultado dos debates e demandas
do Movimento de Mulheres Pescadoras (MMP). Em 2006 foi realizado um encontro
de mulheres pescadoras, no qual foi fundada a Articulação Nacional das Pescadoras
(ANP). Na avaliação de pescadoras, conseguiu-se avançar em termos de discussões sobre
direitos e a questão da saúde. Em 2009, durante o governo do presidente Lula, foram
organizadas reuniões pelo país, sendo a de Santa Catarina realizada em Itajaí. Naquela
ocasião foi incentivado o ingresso de mulheres nas colônias de pesca e teve início um
processo mais continuado de discussões sobre direitos com essas populações. Começaram
a ser viabilizadas reuniões pelas extensionistas sociais da Epagri sobre as diretrizes do
Ministério da Pesca, a partir do que muitas mulheres fizeram a Carteira de Pescadora
Profissional. Ao questioná-las sobre o porquê de resolverem fazê-la, respondiam-me:
“pelo menos assim a gente tem direito ao seguro-desemprego para ajudar a família”. Ou
seja, embora começassem a pensar em sua legalização como profissional, faziam isso
motivadas mais pela família do que pelo reconhecimento delas como profissionais.
Mulheres e o mar 218

Aquicultura128 pode ser visto como um alavancador da corrida às colônias


e aos sindicatos de pesca para a legalização de pescadoras que já exerciam
a atividade, mas não viam necessidade de ter a Carteira de Pescadora
Profissional (CPP), documento indispensável para seu reconhecimento.
Para efeito de direito129 aos benefícios previdenciários e à
aposentadoria, a pesca artesanal130 está classificada como atividade
que, junto com a agricultura, define seus membros como Segurados
Especiais, aí incluindo pescadores, agricultores e indígenas que vivem
do que é denominada atividade rural.

Por meio da Lei no 11.958, de 26 de junho de 2009: Altera as Leis nos 7.853, de 24
128

de outubro de 1989, e 10.683, de 28 de maio de 2003; dispõe sobre a transformação da


Secretaria Especial de Aquicultura e Pesca da Presidência da República em Ministério
da Pesca e Aquicultura; cria cargos em comissão do Grupo-Direção e Assessoramento
Superiores – DAS e Gratificações de Representação da Presidência da República; e dá
outras providências (BRASIL, 2009).
O art. 1o do Código Civil Brasileiro determina que “toda pessoa é capaz de direito
129

e deveres na ordem civil”. Isso significa dizer que a “personalidade jurídica, portanto,
para a Teoria Geral do Direito Civil, é a aptidão genérica para titularizar direitos e
contrair obrigações, ou, em outras palavras, é o atributo necessário para ser sujeito de
direito” (GAGLIANO, 2004, p. 88). Desse modo, “quando uma lei é elaborada e toda
vez que a lei é interpretada – por juízes, advogados, funcionários públicos e cidadãos
em geral – encontra-se subjacente uma noção de sujeito de direito. O sujeito de direito
é aquele a quem a lei – em sentido amplo – atribui direitos e obrigações, aquele cujo
comportamento se pretende regular. A pergunta sobre como esse sujeito toma decisões
– em última instância, quem ele é – interessa aos juristas sob diversos pontos de vista.
Imputabilidade e inimputabilidade, capacidade e incapacidade, deliberação e intuição
são conceitos juridicamente relevantes e que se referem a estados mentais, intenções,
processos cognitivos, em suma, o que se passa em nossas cabeças quando tomamos uma
decisão” (CANTISANO, 2010, p. 132-151). O termo “sujeito de direito”, de um lado,
refere-se a quem é apto a ser submetido ao poder de outro, ou a uma ordem; de outro,
refere-se a quem é capaz de raciocinar, agir livremente e dominar os objetos do mundo.
A Marinha do Brasil define duas formas de ser pescador: amador e profissional. A
130

forma profissional abrange duas categorias: a do Pescador Profissional (POP), que se


refere a quem faz o curso básico de pesca; e a do Pescador Especializado (PEP), título
recebido a partir de cursos realizados na Capitania dos Portos e na Marinha do Brasil,
considerados especializados, como de motorista e de mestre. Segundo a Lei no 11.959,
pesca é toda operação, ação ou ato tendente a extrair, colher, apanhar, apreender ou
capturar recursos pesqueiros. A seção II da referida Lei, Da Atividade Pesqueira, diz
que esta compreende todos os processos de pesca, explotação e exploração, cultivo,
conservação, processamento, transporte, comercialização e pesquisa dos recursos
pesqueiros. O parágrafo único da referida seção considera como atividade pesqueira
artesanal os trabalhos de confecção e de reparos de artes e apetrechos de pesca, os
reparos realizados em embarcações de pequeno porte e o processamento do produto da
pesca artesanal (BRASIL, 2009, grifo nosso).
Capítulo 5 | A relação com o estado 219

A condição de Segurado Especial (SE), que deveria abrigar as


pescadoras em decorrência das especificidades de atividades exercidas
em situações distintas de trabalhadores urbanos, como horário
diferenciado e exposição constante às intempéries, à periculosidade e
ao desgaste físico precoce, na fala de técnicos do próprio INSS, emergia
revelando uma visão segundo a qual essa classificação – especial – dar-
se-ia pelo fato de se tratar de trabalhadores/seres menores – seriam
menos sujeitos? – qualificados como coitadinhos, pequenininhos, como
será possível ver adiante.
Entendo que para compor a trajetória de busca por seus direitos
como sujeitos, como profissionais da pesca, é central desconstruir a
homogeneização e construir o aporte de uma diferença que difere de
outras categorias profissionais que possam compor o chamado espaço
do campo, ou espaço rural. Trata-se de pescadoras cujos contextos de
trabalho onde as muitas atividades ocorrem implicam diferenças cruciais
quando comparadas a outras profissões, como a agricultura. Para Abu-
Lughod (1991), um dos problemas centrais com a generalização são
seus efeitos em não considerar as diferenças existentes. A generalização
preza pelo uso do homogêneo que, por sua vez, simula coerência e
atemporalidade, ambas produzidas visando melhor criar uma situação
sobre a qual se pretenda dar conta e manter sob controle.
Enquanto as agricultoras lidam com a terra, as pescadoras
trabalham com e no mar. Essa é a primeira grande diferença. A segunda
diz respeito ao fato de que as agricultoras têm como espaço de trabalho
a terra, local fixo que lhes dá uma segurança maior do que a das
pescadoras, para as quais “há ausência de posse do recurso explorado”
(MALDONADO, 1994, p. 29). Embora em ambas as atividades se
conviva com os efeitos de intempéries e imprevistos, o mar é investido
de mobilidade. Mesmo que se tenha o reconhecimento do que chamam
pontos de pesca, em princípio, o mar é de todos e a circulação, livre.
Terceira diferença: na agricultura, planta-se, cuida-se, limpa-se; cultiva-
se e se espera o tempo da colheita. Na pesca artesanal não há cultivo, há
extração, em que todo dia é dia de observar como foi a pescaria.
Em comum, um calendário anual que diz respeito aos ciclos
de plantio e colheita, por um lado; de épocas de diferentes peixes,
por outro. Pescadoras e agricultoras vivem em ciclos que significam
épocas de mais ou menos produção. Ambas têm jornadas de trabalho
extenuantes, cuidam da casa e dos filhos; porém, uma tem na terra; outra
tem no mar seu referencial. Esses são exemplos breves de diferenças e
aproximações que precisam ser consideradas para que as pescadoras
Mulheres e o mar 220

sejam plenamente reconhecidas como trabalhadoras, tendo acesso aos


direitos previdenciários e às linhas de crédito, vindo a adquirir aparelhos,
embarcações e equipamentos, um reconhecimento das especificidades e
formas de vida e trabalho.
Há ainda, portanto, um longo percurso quando pensamos em
reconhecimento profissional. O Movimento das Mulheres Agricultoras
pode ser tomado como exemplo de uma longa trajetória com o qual
muitas conquistas foram alcançadas. Porém, é preciso ponderar
especificidades incluídas sob a denominação de atividades rurais. Nesse
sentido, é preciso mostrar as diferenças, visando conquistar direitos
iguais se considerarmos que “o trabalho da pesca é pouco considerado
pelo poder público e pela própria academia, o que por certo acarreta o
esquecimento desse setor em relação a outras atividades desenvolvidas
por essa população tradicional” (MACHADO, 2007, p. 457).

5.4 Acerca de (in)visibilidades e anonimatos


Anônimo é, em princípio, o que ou aquele que não tem nome.
Anonimato diz respeito a todos e a tudo quanto existe mas não se vê,
posto que não aparece quando diluído em alguma categoria genérica.
O exemplo que eu gostaria de discutir aqui é o da expressão autônoma,
sugerida por uma instituição como o INSS, responsável pelos trâmites
exigidos e relacionados à aposentadoria de trabalhadores brasileiros,
para as pescadoras se registrarem e terem direito à aposentadoria. A
simplificação sugerida por meio da categoria autônoma faz desaparecer
a diversidade com que mulheres se exercem como pescadora. Seria
preciso observar, acompanhar, dialogar sobre diferentes formas como
elas atuam e se inserem na pesca. Suas falas, quando muito, se manifestam
por parte de algumas representantes nos encontros de mulheres ou em
eventos regionais ou nacionais. Porém, o falar não quer dizer que, de
fato, serão ouvidas e levadas em consideração quando na elaboração de
políticas públicas ou normativas.
Gayatri Spivak (2010), na sua obra intitulada Pode o subalterno
falar?, aborda centralmente a condição da mulher, pobre, trabalhadora,
habitante do terceiro mundo e migrante, em que a condição global de
subalternidade encontra seu emblema, apontando que o lugar da teoria
é masculino. Porém, mais que a teoria, eu diria que há um âmbito bem
mais amplo que a tudo abrange e que a tudo vê e classifica dentro e
a partir da ótica do masculino. Em uma sociedade pautada por essa
Capítulo 5 | A relação com o estado 221

lógica, torna-se impensável considerar que há mulheres pescadoras.


Tal pressuposto vai repercutir em uma das exigências do INSS segundo
a qual, para se aposentar, a mulher deve provar que é esposa ou filha
de pescador. Ou seja, sozinha, como um sujeito, trabalhadora ela
não é. Autônoma engloba e homogeneíza o que não se enquadra, o
que diz respeito ao que Abu-Lughod (1991) se refere como efeito da
generalização. Uma homogeneização que faz desaparecer qualquer
indício de diversidade.
Em relação à invisibilidade da pescadora, observei durante
minha pesquisa que o trabalho feito por mulheres não é imediatamente
reconhecido por instituições como o INSS, responsável pelos trâmites
exigidos e relacionados às aposentadorias de trabalhadores brasileiros.
Embora previsto em nossa Constituição Federal de 1988, em seu
artigo 5o, Inciso I, que “homens e mulheres são iguais em direitos e
obrigações” (BRASIL, 1988), na prática, obrigações e direitos não
encontram a igualdade tão propalada. Nos espaços em que circulei e
nas reuniões viabilizadas pela Epagri de que participei, envolvendo
pescadores e pescadoras com técnicos do INSS, cujo objetivo era que os
primeiros conhecessem seus direitos e obrigações ligados aos processos
de aposentadoria, pude perceber que a mulher pescadora não tem sua
autonomia profissional reconhecida pelo referido Instituto.
Sobre o que vem se definindo como invisibilidade feminina
no campo, parece-me possível afirmar que as pescadoras são as mais
invisíveis e só recentemente estão buscando seus direitos de serem
profissionais da pesca e, portanto, de terem acesso à carteira profissional,
à licença-maternidade, ao seguro-defeso, ao auxílio-doença e à
aposentadoria, entre outros direitos.
Cabe aqui um breve parêntese para recorrer rapidamente ao
que se define por pesca e pescador. No Dicionário Houaiss da Língua
Portuguesa), podemos encontrar que pescador é “adjetivo singular
masculino; que ou aquele que pesca”. Pesca “é o ato de pescar; pescaria;
arte ou técnica dos pescadores; aquilo que se pescou; ato de retirar
algo da água; ação de procurar, de pesquisar”. Por outro lado, artesanal
é definido como “relativo ou próprio de artesão ou artesanato; diz-se
das coisas feitas sem muita sofisticação; rústico” (HOUAISS; VILLAR;
FRANCO, 2001, grifo nosso). No Novo Dicionário Aurélio da Língua
Portuguesa, lê-se que “pescador (latim piscatore); que pesca; aquele que
pesca” (FERREIRA, 1986).
No New International Webster’s Student Dictionary of the English
Language (1997), encontramos: “fish is to catch or try to catch fish in (a
Mulheres e o mar 222

body of water); fisherman, one who fishes for sport or as an occupation”.


Não encontrei em dicionários a denominação clara de pescadora,
porém nesse dicionário de língua inglesa ainda se pode ler: “fishwife: a
woman who sells fish” (WEBSTER’S, 1997). Ou seja, é difícil encontrar
a definição reconhecida de pescadora, ou fishwoman, para a mulher que
vive em atividades que compõem os processos de pesca. Porém, consta
nesse decionário que, sendo uma mulher de pescador, uma fishwife,
cabe a ela, em decorrência, a venda de peixes.
É interessante atentarmos que nos dicionários pesquisados há
uma definição clara que não nos deixa dúvida: masculino singular:
aquele que pesca. Não se cogita em nenhum dos dicionários, que são
obras referenciais sobre a escrita, mas também reflexo de como uma
sociedade pensa e se vê, uma conceituação mais ampla. Ainda hoje é
considerado pescador – substantivo masculino – o homem que embarca
e vai para o mar, rio ou lagoa, ou seja, retira da água e traz o produto de
sua respectiva pescaria, seja ela industrial ou de pequeno porte, quando
falamos de pesca profissional.
Usando a linguagem que as populações com as quais interagi
usavam para me fazer entender sobre o não reconhecimento das
mulheres como pescadoras, é considerado pescador artesanal aquele
que vai para o mar, pesca e retorna com o produto in natura. Este detalhe
é central: in natura. A partir do momento que o produto da pesca passa
por qualquer processo de transformação, em vez de a mulher que o
manipulou ser reconhecida pelo seu trabalho como pescadora, não o
é. Sendo um produto manipulado, passa a ser visto por instituições,
como as que lidam com sanidade animal, como resultado de um
beneficiamento. Como tal, deve estar inserido em atividade realizada em
nível de pequenas ou miniagroindústrias. Em assim se considerando,
essa trabalhadora passa a ser vista como uma empregada que pode e
deve, segundo orientação dos próprios técnicos do INSS nas reuniões
que presenciei, ter sua carteira assinada sob a denominação genérica
de autônoma. Em assim o fazendo, essas trabalhadoras da pesca
desaparecem, deixam de existir como pescadoras e, portanto, como
seguradas especiais, cujo direito de aposentadoria dar-se-ia com menos
tempo de contribuição do que o do trabalhador urbano. Tornam-se
invisíveis perante os quadros formais, seja do INSS, seja das instituições
trabalhistas.
As pescadoras são vistas – e aqui me detenho em destacar o
INSS por estar falando da temática aposentadoria, mas quero deixar
claro que não se trata de uma postura exclusiva desse órgão – a partir
Capítulo 5 | A relação com o estado 223

de um homem. Necessariamente, para conseguir se aposentar com


a denominação pescadora, a mulher deve estar inserida dentro do
chamado grupo familiar; mas não é o fato de estar no grupo familiar que
a faz prontamente visibilizada como uma pescadora daquela família; ela
só é aposentada como pescadora quando consegue provar que é filha ou
esposa de um pescador.
Ao questionar um dos técnicos do INSS sobre a possibilidade
de a mulher, por exemplo, não ser casada, como ficaria, ele respondeu:
“Mas tem que ser, tem que ter alguma ligação, ou ela é filha, ou é mulher.
Sozinha, ela não é. Ela é em função dele. Então tem que provar que é
mulher, filha, etc.”. Aqui me parece plausível dialogar com Rosaldo
(1995, p. 22), quando afirma que “gênero, em todos os grupos humanos,
deve ser entendido em termos políticos e sociais com referência não a
limitações biológicas, mas sim às formas locais e específicas de relações
sociais e particularmente de desigualdade social”.
Questionei, naquela ocasião, se o fato de um casal viver junto
valeria; se o depoimento de vizinhos contaria, ao que o mesmo técnico
continuou: “Não. Precisa, pelo menos, da escritura de união estável, de
um contrato”. Nesse momento, um dos pescadores presentes, em tom
jocoso e provocando risos nos demais, comentou alto: “Não sabia que
agora tirava escritura de mulher”. Ao que o outro técnico replicou em
tom de impaciência:

Tem que formalizar, gente! Como comprovo? Com contrato.


Infeliz ou felizmente, o papel é o que vale. Se para um homem
sozinho é difícil, imagine para uma mulher. De que adianta ter os
documentos e os fatos provarem o contrário? Tem que ficar claro
uma coisa: a previdência é um código de lei. E muita gente tinha
esquecido isso, mas agora se está resgatando.

O outro técnico complementou: “Se a mulher quer se aposentar


como pescadora tem que ter provas. Vocês estão gerando provas há alguns
anos: é o defeso;131 é o seguro da embarcação. Se todas as informações forem
iguais, vão criando a certeza do fato”. Foi pedido que ele esclarecesse um
pouco mais o que significava ter provas e se a carteirinha da Colônia de
Pescadores seria suficiente, ao que respondeu que “é um dos documentos,

Durante a vigência do defeso como período em que é vetada a pesca de um


131

determinado pescado, os pescadores recebem o seguro-defeso. A partir de sua inscrição


nas colônias de pesca, as pescadoras passam a ter o direito a receber o valor referente ao
defeso da espécie que capturam.
Mulheres e o mar 224

mas precisa provar. Um técnico do INSS vai à casa da pessoa para ver se
o que foi dito é verdade”.
Jussara, sobre a qual já me referi em capítulo anterior, e que era
uma das pescadoras que estavam presentes nessa reunião, durante o
intervalo, me confirmou que ocorrem essas visitas e me relatou como
foi a que uma técnica do INSS fez à sua casa, objetivando coletar provas
sobre se, de fato, seria considerada pescadora. Afora o relato de Jussara,
já citado e que fala de humilhação, outras pescadoras nos narram suas
experiências com o INSS:

Eu tenho 62 anos. Comecei na pesca com 10 anos, no tempo da


escola. Pela manhã, escola; à tarde, era na salga, descascando
camarão. Ia até nove, dez horas da noite quando tinha camarão.
Quando fui para me aposentar no INSS, na primeira vez não
consegui. Falaram que eu não era pescadora. Pensei em desistir,
mas resolvi tentar de novo. Eu me senti humilhada. Não me
fizeram pergunta. Fizeram um interrogatório. Daí; não aguentei.
Comecei a chorar. A moça falou: “calma. O que a senhora tem?”.
Eu disse: “o que eu tenho? Tu achas que se eu não precisasse; se
eu não fosse pescadora, eu ia estar aqui, passando por isso. Vocês
estão fazendo como se eu fosse uma criminosa”. Aí ela viu como
fiquei abalada e disse: “calma, senhora, vai dar tudo certo”. Fique
calma. Daí foi nessa segunda vez que consegui me aposentar como
pescadora. (Judith, 62 anos, Balneário Camboriú).
Eu desisti. Fui lá um dia, num desses órgãos para tirar a carteira
de pescadora. Eu e mais três. Chegando lá, o homem falou:
“mulher pescadora? Isso não existe. Lugar de mulher é pilotando
o fogão, não é dentro de embarcação”. Tu acreditas nisso? As
outras começaram a falar, falar. Até que uma mulher entregou uns
papéis. Eu peguei e rasguei tudo. Fiquei com raiva. Onde já se viu
ser humilhada daquele jeito! Hoje, podia já estar contando tempo
para me aposentar. Quem sabe? Mas desisti. Estou aqui: continuo
trabalhando, como sempre, e vai ser sempre assim. É isso que sei
fazer, que gosto de fazer e que vou fazer até morrer. Agora, me
aposentar como pescadora? Pelo jeito, nunca! (Gertrudes, 52 anos,
Barra do Sul).

Nas experiências de Jussara, Judith e Gertrudes, há exemplos


coletados em campo alusivos ao despreparo de alguns técnicos do
INSS para atender as pescadoras. Mais do que isso: a possibilidade
de observar técnicos/sujeitos que, imbuídos do poder de representar
o estado, exercitando vigilância e punição (FOUCAULT, 2009), não
Capítulo 5 | A relação com o estado 225

reconhecem outros sujeitos. É o caso de uma mulher que não reconhece


outra mulher como trabalhadora da pesca, inculcando em sua fala e em
seus atos postulados e ações que dizem respeito à hierarquia de gênero,
a uma visão estigmatizada (GOFFMAN, 1993)132 sobre a outra.
As falas nos dizem muito sobre os impasses, as dificuldades e o
que elas denominavam de situações de humilhação pelas quais passaram
quando alguns técnicos entendiam ser impossível uma mulher traba-
lhar na pesca e, portanto, ter o direito à aposentadoria como pescadora.
A técnica em questão, a partir de seus pressupostos sobre o que é ou não
é, o que pode ou não pode ser, não reconhecia na mulher à sua frente
uma pescadora. Em nome do Instituto que representava e do poder
que lhe era conferido, elaborava o parecer que serviria para alimentar o
também poderoso sistema.
Wolf (2003)133 considera o poder como um aspecto das relações
entre as pessoas e afirma que, “ao tratar das relações de grupos de uma
sociedade complexa, não podemos esquecer de enfatizar o fato de que
o exercício do poder por algumas pessoas sobre outras entra em todas
elas, em todos os níveis de integração” (WOLF, 2003, p. 75). Tanto aquele
que se imbui do poder quanto o que sofre a ação está impregnado do
poder: a técnica que, em nome de uma instituição age, e a pescadora que,
diante dessa ação, reage desistindo de ser pescadora. Ou seja, reconhece
no poder que, em nome do estado, é exercido, a própria constituição
do poder estatal. Uma das reações ao poder é o medo. Foi assim que a
pescadora decidiu deixar de o ser.
Continuando com a fala dos técnicos do INSS, um deles afirmou
categoricamente que “para o Direito o que vale é o fato. Para o fato, vale a
prova”. Também falou que há o que denominam de Cadastro Específico
de Segurado Especial, cuja elaboração se encontra em andamento.

Para Goffman (1993, p. 13), os atributos indesejados são considerados estigmas:


132

“Aquellos que son incongruentes con nuestro estereotipo acerca de cómo debe ser
determinada especie de individuos. El término estigma será utilizado, pues, para hacer
referencia a un atributo profundamente desacreditador […]”.
133
Pensando o poder como relacional, Wolf (2003) diferencia quatro modalidades: 1)
individual: potência ou capacidade que cada um tem; bom para entender por que as
pessoas se envolvem no jogo de poder; 2) transacional: emerge nas transações e relações
entre as pessoas; 3) tático ou organizacional: diz respeito à exibição das capacidades de
algumas pessoas em relação a outras, enfatizando os instrumentos que permitem que
uns controlem as ações dos outros; 4) estrutural: manifesto nas relações; repercute nos
meandros das relações, mas também controla os contextos. Este último ele relaciona
com o poder de distribuir e alocar o trabalho social, em Marx, e a governança a qual
Foucault se detinha; ação sobre a ação.
Mulheres e o mar 226

Trata-se de um cadastro para que o governo do Brasil tenha controle


sobre os trabalhadores brasileiros, aí incluindo pescadores, que estavam
fora desse controle. O referido técnico comentou categoricamente:
“o Segurado Especial é o último estágio que a Previdência chegou para
automatizar o controle. Alguns casos já estão automatizados. Está cada
vez mais automático. Não é mais possível fazer com o jeitinho”. “É o fim
do jeitinho”, corroborou um pescador.
A fala diz respeito não apenas a um jeitinho identificado como da
malandragem (DAMATTA, 1990), mas, mais do que isso, aponta para
o fim do tête-à-tête, das possibilidades de conversa e de diálogo, pois
é o sistema informatizado que passa a deter o poder de dizer um sim,
dizer um não. Com o atendimento do segurado de forma direta com os
técnicos do INSS, poderia haver tentativas e a consequente compreensão
sobre as trajetórias dessas pescadoras, cujos meandros estão para além e
fora dos enquadramentos (FOUCAULT, 2009, p. 143)134 formalizados e
previstos nos questionários.
Se, por um lado, esses formulários foram criados em gabinetes
por técnicos que desconhecem os muitos ambientes da pesca, por outro
o que passa a deter o poder de definir nossos destinos de trabalhadores
brasileiros, pois todos estamos enquadrados, é o sistema informatizado
que, diante dos sim ou não assinalados, determina: deferido, indeferido.
Se “agente é tudo o que age” (LATOUR, 2008), com a agência quase
humana que detém, por um lado, o sistema conversa com outros sistemas
e é exigente, pois precisa ser alimentado para continuar funcionando. No
entanto, quando algo não ocorria como esperado, os técnicos sabiam a
quem culpar: foi erro do sistema.
Continuemos a ouvir as explicações que, para o técnico, pareciam
ser suficientemente convincente sobre a sabedoria do sistema:

134
Segundo Foucault, a constituição de “quadros” foi um dos grandes problemas da
tecnologia científica, política e econômica do século XVIII, em que o autor inclui
“inspecionar os homens, constatar sua presença e sua ausência, e constitui um registro
geral e permanente [...]” (FOUCAULT, 2009, p. 143). No caso aqui abordado, diz
respeito a um registro geral e permanente de (todos) trabalhadores brasileiros. Segundo
Foucault, trata-se de uma tática disciplinar que “se situa sobre o eixo que liga o singular e
o múltiplo. Ela permite ao mesmo tempo a caracterização do indivíduo como indivíduo,
e a colocação em ordem de uma multiplicidade dada. Ela é a condição primeira para o
controle e o uso de um conjunto de elementos distintos: a base para uma microfísica de
um poder que poderíamos chamar de ‘celular’” (FOUCAULT, 2009, p. 143-144). Em
relação ao sistema informatizado sobre aposentadoria do INSS, chegou-se ao último
estágio possível. Todos estão enquadrados.
Capítulo 5 | A relação com o estado 227

Cada vez mais sai da mão do servidor e vai para o sistema. Agora é o
sistema que define. Chega à frente do computador e vai respondendo,
e o sistema vai negar ou aceitar. O sistema não é uma pessoa, mas
é ele que define. Depois, chega lá, no presidente do INSS, que assina
aquilo que o sistema definiu. O Segurado Especial é o último estágio
da sociedade. Todos estão enquadrados no sistema.

Podemos analisar a fala do técnico num diálogo contundente


com Foucault (2009), já que o autor preconiza que o poder disciplinar
é um poder que tem como função maior adestrar, de forma que todos,
em algum momento, estejam enquadrados dentro da normatização
prescrita. Ou se está fora. Punição, vigilância e disciplina são poderes
destinados a fazer com que as pessoas cumpram normas, leis e
exigências de acordo com o preconizado. A vigilância é uma maneira
de observar o cumprimento dos deveres. Portanto, um poder que
regulamenta gestos, atividades, aprendizagens e constitui-se mais em,
fazendo alusão à pesca, um enredamento do qual não se consegue sair.
Uma espécie de prisão sem paredes.
Fazendo alusão às muitas redes, no universo da pesca seria uma
rede feiticeira, nos moldes que me definiu uma das pescadoras: “Pega
tudo. Nada escapa. Nada fica fora”. Nas palavras anteriormente ditas
pelo técnico: “todos estão enquadrados”; parafraseando a linguagem da
pesca, todos estão enredados. E trata-se de uma rede poderosa: quem
entra, não consegue sair. O mar talvez seja, dessa forma, um dos últimos
territórios a ser domesticado, enquadrado. Daí, talvez, a inserção
de atividades como as que compõem a aquacultura,135 que exigem a
organização afilada das long lines onde se cultiva os mariscos, das gaiolas
de ostras, enfim, uma organização esquadrinhada, dividida em lotes
de produção, diferente dos modos soltos, sem definições fixas, porém
organizadas e regradas de pescadoras que atuam na pesca artesanal. O
mar e os que pescam talvez sejam, de fato, os últimos redutos livres.
Seguindo adiante, a partir da fala de um dos técnicos do
INSS, a solução para as mulheres seria o uso do registro profissional
como autônomas: “No caso das descascadeiras, por exemplo, não há

Aquacultura ou aquicultura, de forma geral, diz respeito ao cultivo aquático de


135

peixes, crustáceos e mariscos. No exemplo citado, nos sistemas de cultivo na maricultura


(cultivo de marisco), um dos métodos utiliza o que denominam de long line, que,
como o nome aponta, trata-se da disposição no mar de linhas compridas, nas quais
são penduradas as cordas com sementes de mariscos para que permaneçam durante o
período de crescimento.
Mulheres e o mar 228

problema, elas podem pagar o INSS como autônomas. Escolhem se


querem descontar 20% ou 11% do salário mínimo; ou 10 salários de
contribuição”. Porém, foi na sequência, que sua ênfase denotou uma
espécie de aversão e total despreparo para lidar com os ditos Segurados
Especiais, além de demonstrar claramente sua visão a respeito dos
pequenos produtores rurais, entre os quais se incluem os ligados à
pesca. Afirmava o referido técnico: “Tem que parar com essa coisa do
pequenininho, coitadinho, ‘inho’. Tem que buscar ser um EI [Empresário
Individual]. Sair desse negócio de especial”.
Essa fala do técnico aponta para outro aspecto do despreparo
de muitos profissionais de instituições públicas para atuarem com
pescadoras. Um despreparo que tem a ver com a desconsideração e/
ou desconhecimento de diferentes formas de vidas; outras formas de
ser e estar no mundo. Esses técnicos do INSS aludem à assimilação de
um discurso que poderíamos reconhecer como “sebraeniano”,136 de que
todos devem se tornar um Empresário Individual (EI) e deixar de se
considerar e agir no diminutivo, como se o fato de querer ser, ou ser um
pequeno pescador, o tornasse um ser a menos. Algo assim “inho”.
Parece-me que o raciocínio deveria ser outro. O amparo da lei
segundo a qual se pauta o Segurado Especial (SE) não é pelo “‘inho’,
de coitadinho, pequenininho”, mas pelo tipo de trabalho diferenciado,
pautado por um contínuo desgaste físico e realizado em situações
de insalubridade, entre outros aspectos, que fazem com que esses
profissionais tenham conquistada a prerrogativa de terem o direito
garantido de se aposentar com um tempo menor de trabalho do que um
assalariado urbano que tem outras condições e horários para trabalhar.
Quinze dias após essa reunião com o INSS, fui a uma das
comunidades da grande Florianópolis e, ao conversar com uma das
pescadoras que lá havia estado, ela comentou comigo que no período da
tarde iria ao referido órgão. Para quê?

Vou dar baixa de minha situação como Segurada Especial, pois


estou com medo. Se vier alguma fiscalização, como fico? O moço

Sebrae é uma empresa cujo objetivo central é transformar pequenos produtores em


136

microempresários. Percebi nas falas dos técnicos uma forte alusão a um discurso que
podemos denominar de “sebraeniano”, que diz respeito claramente a um discurso do
empreendedorismo que aponta que é mais interessante se constituir em empresariado.
Resta saber para quem isso é mais interessante, haja vista que há, por trás desse discurso,
uma série de exigências que se referem à legalização de empreendimentos bem como à
padronização dos produtos e de formas de vida.
Capítulo 5 | A relação com o estado 229

lá falou aquilo tudo. Todo mundo saiu desconfiado, com medo.


Falei com o pai e ele concordou em dar baixa. Eu não sou mais
considerada como grupo familiar, pois sou casada. Quer dizer,
vivo junto. Então vou pagar como autônoma. (Jussara).

Mesmo ponderando com ela para que pensasse melhor, esperasse


um pouco, ela não demoveu a ideia de deixar de ser Segurada Especial.
Parece que o poder exercido pela grande torre panóptica chamada INSS,
vigilante e presente no cuidado de si do qual alude Foucault (2009),
está resumida na decisão e na fala dessa pescadora, que o deixava de
ser: “E se a fiscalização vem?” A sua reação e decisão foi decorrência
de uma mensagem passada sobre uma pretensa ilegalidade em que a
maioria das mulheres da pesca se encontraria, pois não comporiam
mais o quadro de economia familiar, não sendo, portanto, reconhecidas
e consideradas pescadoras. O trabalho informal que fazem ganha, na
fala de técnicos que, em princípio, lhes orientariam sobre seus direitos,
um tom de ilegalidade, cuja saída sugerida é invisibilizar a si por meio
da assimilação de uma categoria ampla: autônoma.
A categoria autônoma, assim como do lar, que muitas
vezes usam para responder formulários em lojas ou nos próprios
formulários de órgãos governamentais, ou nas certidões de casamento
às quais tive acesso, depõe contra a visibilidade dessas mulheres como
pescadoras, pois, ao se autodenominarem assim, desaparecem como
pescadoras que, de fato, são. Pescadoras que, além de agregar valor
aos produtos e de fazer parte da linha de produção necessária para
que o setor pesqueiro funcione e seja visível, muitas embarcam. Ou
seja, atuam diretamente na captura de peixe, camarão e siri. É preciso,
pois, repensar a definição de pesca como uma atividade genérica e de
pescador para além de um substantivo masculino.
A denominação autônoma esconde a visibilidade de mulheres
que atuam/vivem/são na/da pesca, mas não se enquadram nos preceitos
do INSS como pescadoras, não havendo, portanto, como constituir
provas centrais para o INSS. Encontrei em campo mulheres que não
vivem mais com suas famílias de origem, não sendo algumas legalmente
casadas. Outras são casadas com homens que não são pescadores. São
elas as que pescam. Outras vivem com suas parceiras.
O exemplo mais forte de anonimato com que me deparei diz
respeito à pescadora que escolhi para acompanhar mais de perto.
Em uma das tardes em que ficamos sozinhas depois de organizar os
materiais usados durante a manhã na pescaria e limpar as louças
Mulheres e o mar 230

utilizadas no almoço, sentamo-nos cada qual em um canto da cozinha.


Após conversarmos e eu escutá-la contar novamente sobre sua vida na
ilha em que viveu por mais de vinte anos, ela, por sua iniciativa, trouxe
alguns documentos pessoais para me mostrar, aí incluindo carteira de
pescadora, certidão de nascimento e de casamento.
Ao olhar sua certidão de nascimento, descobri a inscrição: pai
desconhecido. Surpreendida, perguntei-lhe o que significava aquilo, pois
sabia que ela tinha vivido com sua família, aí incluindo pai e mãe, sendo
o seguinte o seu relato na ocasião, do qual destaco um trecho:

Eu fui com 4 anos para a Ilha dos Remédios. Faz seis anos que
estou aqui nessa casa direto. Vivi na Ilha 24 anos [...] A Patrícia
era bebê, os dois outros eram meninos. Quem sabe a tia adotou
eu por eu ser menina! Ela ficou comigo. Precisava colocar na
escola. Como colocar sem registro? Tinha que registrar. Então me
registrou lá mesmo em Curitiba. Eu sou filha de Luiza Castanho
Correia e de Jetel Mendes, mas no registro de nascimento está o
nome de minha tia, Eulália Mendes, como minha mãe, porque ela
me registrou. Não botou nem o nome do marido dela. Só o nome
dela mesmo. Daí ficou assim: o nome dela como mãe e sem pai.
(Safira).

Ao registrá-la somente como sua filha, a tia apagou qualquer traço


do passado da sobrinha em relação à maternidade e à paternidade de seus
pais pescadores. Entendo que esse exemplo é esclarecedor e, ao mesmo
tempo, estarrecedor sobre o que o INSS define como constituir provas
e o quanto uma trajetória pode ser invisibilizada pelos imponderáveis
que vão se sucedendo no seu percurso. Ainda chocada com o que via.
Ou melhor, com o que não via, pois se tratava de um documento que
constituiria uma prova em um futuro processo de aposentadoria, recorri
à sua certidão de casamento e, mais uma vez, não acreditei naquilo com
o que meus olhos se depararam. No espaço, após o tópico profissão,
incrédula, li: Do lar. Como? Perguntei-lhe. Ao que me respondeu: “Falta
de esclarecimento, Rose. Se eu soubesse naquela época o que estás me
chamando atenção hoje com a tua pesquisa, eu teria colocado: pescadora”.
Dito isso, a seguir, me pediu: “Será que amanhã vais comigo no INSS? Eu
queria pedir esclarecimento sobre a aposentadoria”.
Assim, no dia seguinte, fomos juntas à agência do referido
Instituto, localizada em município próximo, pois ela queria solicitar
algumas orientações e tirar dúvidas porque, com base nos registros de
seus documentos, percebeu que era a mais anônima entre as anônimas.
Capítulo 5 | A relação com o estado 231

Ao chegar ao prédio em que se localizava o INSS, fomos informadas que


tínhamos que subir em um elevador para o andar do referido Instituto.
Ela, rindo, comentou enquanto esperávamos o elevador chegar: “Ih Rose,
agora sou eu. A dificuldade que tens no barco, eu tenho aqui”. “Como
assim?”, perguntei, sendo que sua resposta nos fez rir:

No barco eu fico em pé brincando, mas subir em elevador, minha


nossa! Dá uma aflição. Lembras que eu te contei que, quando fomos
morar em Barra do Sul, quando saímos da ilha, nós, eu, a minha
irmã, demoramos muito para anWdar em linha reta. Lembras? Tu
achas graça é? Te conto mais: sabes que nós, eu, a Patrícia, os meus
irmãos, quando a gente saiu da Ilha e foi morar em Barra do Sul, a
gente tinha dificuldade para andar em linha reta? É verdade. Pois lá
na Ilha a gente nunca andava em linha reta. Já visse uma ilha ter
linha reta? Era só correndo na areia, pulando pedra, andando em
caminhos de subidas e descidas. Quando chegamos em Barra do Sul
foi um trabalho, a gente andava e sentia que ia mais para um lado.
Tinha que treinar mesmo as pernas. Firmar. Isso para ir aprendendo
e conseguir andar em linha reta como as pessoas dali. (Safira).

Safira apontava questões interessantes sobre diferenças alusivas


a hexis corporal em que eu tinha dificuldade nas embarcações. Ela,
por sua vez, tinha essa dificuldade em espaços como elevadores. Nesse
ínterim, o elevador chegou ao andar que o segurança havia indicado.
O prédio tinha cerca de quatro andares. Feito de concreto, pintado de
branco com janelas de alumínio. Asséptico, sem nenhum sinal de sujeira
ou lixo em local fora do lugar. Em vez de nos sentirmos aconchegadas, a
frieza imposta pela perfeição quadrada da arquitetura do prédio branco
nos colocava em atenção e expectativa. Safira pediu-me que solicitasse à
recepcionista como poderia tirar suas dúvidas, o que fiz.
Ao explicar à recepcionista que se tratava de uma pescadora que
gostaria de ter alguns esclarecimentos sobre o processo de aposentadoria,
ela, não sabendo onde encaixá-la, me disse: “Ah, vou te dar um m (de
mesa) e quando o técnico chamar, vocês perguntam o que querem”. A
espera se mostrou angustiante. Éramos cerca de 15 pessoas aguardando
em uma sala de espera que estava separada da sala de atendimento por
uma porta de vidro. Sentei em uma cadeira entre outras que estavam
disponibilizadas em fila, uma atrás da outra, à esquerda de quem chegava;
a recepcionista estava à direita em uma mesa/balcão específica/o sobre
a/o qual ficava o compartimento de onde tirava as senhas. Mostrava-se
séria, com expressão fechada.
Mulheres e o mar 232

Algumas pessoas que chegavam pediam informações e demons-


travam dificuldade de entendimento em um primeiro momento, ao que
a recepcionista explicava. Recebiam novamente a informação, porém
em um tom de voz mais alterado, seguido da pergunta: “eu já não lhe
expliquei?”, para, a seguir, continuar: “Bem, como eu já lhe disse mais
de uma vez”. A expressão das pessoas, simples e encolhidas diante da
recepção nada calorosa, denotava que ainda não tinham entendido
o que a recepcionista explicava, mas ficava por isso. Não se atreviam
a fazer qualquer outra pergunta. Apenas quando chegou à sala outra
técnica do INSS, ela sorriu e brincou com esta sobre algum assunto em
comum.
Safira não quis sentar. Ficou apoiada, em pé, em uma parede,
e constantemente me olhava com uma aflição nos olhos que também
foi me afligindo enquanto esperávamos. Esperamos; esperamos.
Mentalmente, eu pedia: que sejamos bem atendidas. Eu também estava
em expectativa sobre como seria o atendimento. A própria espera e a
observação sobre como as pessoas eram tratadas me impressionavam.
Tratava-se de pessoas, aparentemente, simples, que demonstravam
dificuldades e não conseguiam entender os trâmites burocráticos que
para os técnicos eram muito claros.
Após sermos chamadas e atendidas, conforme já relatado na
epígrafe deste capítulo, saímos, eu, possessa de raiva e Safira, muito mais
tranquila por saber que, sendo mulher de pescador, teria assegurada
sua aposentadoria. O detalhe é que foi ela, sendo pescadora, filha
de pescador e de mãe, também pescadora, quem o ensinou a pescar
quando se conheceram. A trajetória dessa pescadora é conhecida e
reconhecida por toda a comunidade em que vive: “Safira, a pescadora?
Safira, a que viveu na ilha? Conheço sim!”. Como Safira não conseguiu
ficar muito tempo em Curitiba com sua mãe adotiva, retornando à
convivência de sua família de origem pouco tempo depois de ter sido
registrada pela tia, ela passou a pescar aos 8 anos de idade, conforme ela
própria já nos narrou. Ou seja, uma vida inteira vivida na/da pesca e que
não consegue ser visibilizada. Por um lado, devido aos imponderáveis
em sua trajetória pessoal, como já demonstrado; por outro, pelo não
enquadramento em sistemas que lhe dizem que, embora tente provar,
não é quem tenta dizer ser.
A seguir, outros exemplos dessa invisibilidade das pescadoras,
cujas falas remetem ao despreparo para atendê-las e ao desconhecimento
sobre suas existências.
Capítulo 5 | A relação com o estado 233

Hoje já melhorou um pouco. A gente paga certinho a Colônia. Todo


ano. Um dia fui na Colônia e briguei com o pessoal de Florianópolis
que veio aqui. Quando eu disse que queria fazer os documentos,
o homem falou: “isso não é trabalho, é um artesanato”. Daí eu
disse: “é trabalho sim. Vem aqui que eu vou pegar duas caixas de
camarão. Só duas. Pra tu descascar. Depois tu me dizes se é ou não
é trabalho”. A mulher não queria me dar a folha para preencher.
Puxei de um lado, ela do outro. Cada uma ficou com um pedaço
na mão. Eles me diziam que não iam me dar a folha. Eu teimei e
disse: “vão sim! Senão eu não saio daqui. Eu trabalho na pesca.
Tenho o direito. Não saio daqui sem essa folha”. Aí eles me deram.
Coisa para rir depois, mas vê se não mudou a regra do Defeso?
Eles viram que tinha algo errado. Mudou. Não é trabalho? Hoje
chegamos às seis e meia da manhã. Vai até umas três da tarde.
Tem dias que vai até às nove da noite. Na verdade isso não tem
hora. É dependendo do camarão: se tem ou não. (Marisete, 48
anos, Barra do Sul).
O homem que trabalhava lá na colônia na época que fui procurar
os meus direitos me disse, para mim e para as outras que estavam
junto: “lugar de mulher é pilotando fogão, não é dentro de
barco”. Ele falou bem isso. Vais ouvir de outras por aí. Algumas
insistiram em buscar os direitos. Eu desisti porque sei mesmo que
vou trabalhar até não poder mais. Dói? Dói! Mas é assim a vida:
sou analfabeta, não entendo nada, mas sou feliz. Não sou triste
não. Eles olham a gente e não nos veem como gente. Eu desisti. Eu
existo e trabalho mesmo eles não querendo ver os meus direitos.
(Fernanda, 60 anos, Barra do Sul).
Na primeira vez fui. Daí, eu, com a necessidade de trabalhar fora,
tinha uma carteira profissional assinada lá três ou quatro meses
em um ano, entende? Fui no INSS e elas me disseram […] que
não faziam a minha aposentadoria, que eu não provava que era
mulher de pescador. Eu falei: “eu sou esposa de pescador, tenho
sete filhos com meu marido, vivemos da pesca. Eu vou procurar
os meus direitos”. Depois de uns meses voltei lá. Fiquei duas horas
sentada em uma cadeira para fazer uma entrevista: Qual era o
meu barco?; Qual era a minha rede?; Que tipo de peixe? Sei que
foram duas horas. No fim, eu fiquei esgotada e comecei a chorar.
Duas horas fazendo pergunta. De vez em quando baixava lá no
computador e perguntava isso, perguntava aquilo. Passar por toda
essa dificuldade para fazer uma aposentadoria de 450 reais, porque
antes era menos ainda. Isso é uma vergonha. “Vocês e o governo
deviam ter vergonha – eu disse – porque eu estou me humilhando.
Mulheres e o mar 234

Tudo ia digitando. Ela disse: “fique tranquila que a senhora está


aposentada”. Eu me senti a mulher mais feliz do mundo naquele
momento. (Judith, Balneário Camboriú).

Para melhor entender os trâmites necessários para a


aposentadoria, conversei com algumas secretárias de colônias de
pescadores, pois percebi que são elas que detêm o conhecimento a
esse respeito, tendo em vista que se encarregam dos processos. Suas
falas confirmam as narrativas das pescadoras sobre as dificuldades
que algumas enfrentam quando recorrem ao INSS. Segundo uma das
secretárias, “tudo depende de quem a gente pega para atender,137 porque
a burocracia define, mas quem faz é o técnico do INSS. Alguns atendem
melhor, escutam, mas a maioria não sabe, não foi preparado para lidar
com a pesca” (secretária).
Ao se reportarem aos processos burocráticos, as pescadoras
demonstravam saber e ter noção de que o poder pelas decisões que lhes
afeta vem de níveis mais altos na hierarquia burocrática e, portanto,
de locais mais longes. Ao me responderem sobre suas trajetórias de
vida, dificuldades, dores, momentos que denominavam de tristeza ou
humilhação, aproveitavam para solicitar o envio do que denominaram
recado para as autoridades, para a Dilma,138 conforme pode ser
visualizado a seguir:

Hoje, eu digo pra ti: “eu sou feliz!”. Eu olho pra mim, para eles e
digo: “Nós somos vencedores! O mundo não nos destruiu”. Há 39
anos começamos eu e ele, hoje somos 28. Entende? Hoje eu olho e
digo: “vencemos!”. O que eu posso fazer por eles eu vou fazendo,
abracei a causa da mulher casada, da mulher trabalhadora, da
mulher guerreira. Eu digo que o governo, na verdade, a Dilma
devia, eu digo pra ti Dilma: “devias olhar para as mulheres
pescadoras porque aqueles 540 reais são muito pouco. Podias fazer
um pouco mais pela classe pescadora”. Porque a gente escuta na
televisão que ela vai ajudar a mulher da pesca. Que Deus abençoe!
Que ela possa ter muita luz no coração dela, mas que faça logo

137
Como acompanhei reuniões do INSS em diferentes regiões do estado, foi possível
observar diferentes posturas. Por exemplo, no litoral norte, a equipe de técnicas
esclareceu sobre os quatro meses aos quais as pescadoras têm direito de trabalhar no
ano fora da pesca, sem perder o direito de segurada especial. Ou seja, como diziam as
secretárias de colônias e as pescadoras, o destino destas depende do técnico e de seu
preparo.
Dilma Rousseff, atual presidenta do Brasil.
138
Capítulo 5 | A relação com o estado 235

porque muita mulher vai morrer, como já estão morrendo, sem ter
o reconhecimento. (Judith, Balneário Camboriú).
Que faça uma lei digna da mulher porque sabe que a mulher é
mais fraca do que o homem, sabe que é mais difícil ela chegar
para dar um tapa no homem. Ela não quer fazer isso. Tem muitas
que nem trabalham mais porque não têm nem mais condições
de trabalhar. Se ela pudesse ainda receber o seguro-desemprego,
ainda seria feliz, mesmo que fosse no final da vida dela. (Rosinha,
Balneário Camboriú).
O Ministério da Pesca tem que dar uma ajeitada, apoiar quem é
pescador mesmo e dar a licença para o pescador pescar legalizado
e não como um bandido. (Marizete, Barra do Sul).
O pessoal da pesca, seja do Ministério, da Epagri, do governo, tem
que fazer isso que estás fazendo. O que estás fazendo? Ouvindo
nós. É isso que precisa antes de criar leis, normas, sem conhecer o
pescador e a pesca. É isso: “diz lá pra eles. Se eles querem ouvir a
gente, é claro!”. (Adriana, Itapoá).

Como foi possível depreender neste tópico, a burocracia apareceu


durante a pesquisa como uma grande agente que define como as pessoas
devem a ela se submeter, limitando possibilidades e determinando
enquadramentos. Como uma forma leviana e ardilosa, ela respalda a
ação de alguns burocratas que exercem posições de poder que, se por um
lado, não levam em conta as consequências de suas decisões, decretos,
atitudes nas vidas a serem afetadas, por outro não medem esforços para
mostrar o quanto podem interferir, desestabilizar, alterar rumos de
vidas em meio aos possíveis meandros dos poderes que, em nome da
burocracia, detêm.
Em sendo o sistema, conforme informou um dos técnicos do
INSS, o detentor do poder de decidir quem se enquadra ou não se
enquadra dentro das prerrogativas ali definidas, ele não deixa dúvidas,
haja vista ter sido criado para definir o destino de aposentadoria de uma
pessoa. Ele é transparente. Não há espaço para dúvidas, alegavam os
representantes do referido Instituto. No entanto, e ironicamente, sendo
transparente, ele não permite visibilidade para quem não se enquadra:
as pescadoras. Como constituir provas se o reconhecimento desse
sujeito, mulher pescadora, por si só não existe? Se os órgãos públicos – e
aqui pincei o INSS pelo papel central que tem em relação ao processo de
aposentadoria dos trabalhadores brasileiros, porém é central também o
Ministério da Pesca – entendem o trabalho dessas mulheres como ilegal,
Mulheres e o mar 236

ou como não existente, até quando elas continuarão invisíveis, diluídas


na categoria autônoma, ou do lar? Não haveria para essas mulheres mais
que um devir pescadora?

5.5 Uma linhagem de guerreiras: mulheres de


valentia
Encontrei mulheres que embarcam no litoral de Santa Catarina,
no trecho que compreende entre Laguna, região Sul, e Itapoá,
extremo Norte, localização esta que pode ser conferida na imagem
disponibilizada no início deste livro. Algumas embarcam de forma
contínua e outras são as que eu estou denominando de pescadoras
stand by, ou seja, não embarcam seguidamente, ou porque ficaram
doentes ou porque o casal decidiu que ela seria poupada devido ao
esforço físico e ao frio; ou porque ficam, temporariamente, como
cuidadoras de pessoas doentes da família ou da vizinhança; ou porque
têm filhos pequenos; mas estão sempre prontas para embarcar. Por
algum motivo, naquele momento, elas não estão na pesca, mas são
pescadoras, acionadas quando isso se torna necessário para que
a atividade pesqueira continue sendo exercida. Trata-se de um
acionamento automático que se dá sem que seja necessária uma
negociação ou um aviso prévio, pois, na maioria das vezes, esse
acionamento ocorre de um dia para outro; ou no próprio dia. Algumas
me contaram a este respeito:

Eu diminuí um pouco de embarcar porque peguei uma doença no


pulmão por causa de muita friagem lá fora. E agora esse inverno
está muito frio. Tem também os filhos que estão pequenos. Eu fico
mais com eles com esse frio. Mas sempre que falha o camarada de
meu marido, ele me chama e então eu embarco. Ele chega e me diz:
“nega, o camarada falhou. Vamos?”. Aí eu digo: “vamos!”. (Neia,
Barra do Sul).
A gente decidiu que ela ia ficar mais em terra, no camarão, porque é
muito esforço a pesca do camarão. Mas sempre que precisa, ela está
pronta, não tem tempo ruim. Os camaradas falham. Ela, nunca.
Está sempre pronta se eu precisar. Amanhã mesmo ela vai comigo.
O camarada falhou. (João, marido de Terezinha, Barra do Sul).
É sempre assim. Nem precisa avisar antes. É de um dia para o
outro. Às vezes de uma noite para o dia seguinte. Ele chega e diz:
Capítulo 5 | A relação com o estado 237

“o camarada falhou. Vamos comigo amanhã?”. Que esse amanhã


não é amanhã; é de madrugada. Claro que vou! (Terezinha,
Barra do Sul).

As pescadoras stand by são mulheres que, após trabalharem


seguidamente nos processos de embarque, se afastam por motivos
distintos e, embora algumas dissessem que se dedicam ao trabalho em
terra, sempre que requisitadas, estão prontas para o embarque imediato.
Inclusive dona Rosinha, com 62 anos na ocasião, que cedeu sua vaga para
o filho que recém tinha retornado à casa dos pais. Ao ser questionada
sobre esse aspecto, respondeu-me que embarcaria imediatamente se o
marido ficasse sem o filho como camarada.

Se ele precisar de novo, estou pronta. Embarquei vinte anos com


ele e começou assim. Um dia ele estava desanimado e falou: “como
é que vou fazer sem camarada? Como é que vou pescar? Se tu
soubesse pescar tu ia comigo de camarada”. Daí eu falei: “mas não
tem nada nessa vida que a gente não aprenda”. Então ele disse:
“mas será que não vais marear?”. Eu respondi: “se marear a gente
vê o que faz”. Mas nunca enjoei. Fui e não parei mais. Vinte anos
fiquei com ele direto, todo santo dia, até que o filho voltou e vim
para o trabalho em terra. Mas se precisar, eu vou. (Rosinha, 62
anos, Balneário Camboriú).

As pescadoras que embarcam são respeitadas e admiradas em


suas comunidades como mulheres de coragem, tendo em vista a relação
direta com o mar. As próprias mulheres que trabalham na pesca, mas
em terra, demonstram abertamente sua admiração.

Isso sim é coragem. Sair, ir para o mar, pescar, enfrentar qualquer


tempo. Eu também sou pescadora, trabalho na pesca descascando
camarão desde pequena, mas aqui ó, pé firme, no chão. Deus me
livre sair como ela que sai para o mar. É preciso muita coragem. E
isso ela tem. Essa pode dizer que tem. Eu admiro demais a força
dela, a coragem. Vai, não tem medo de nada. (Vilma, Canto dos
Ganchos, sobre Naca, Governador Celso Ramos).
É preciso ter coragem para sair e não saber o que vai encontrar.
O tempo muda a qualquer momento. Às vezes sai daqui com o
tempo, uma maravilha; chega lá fora, muda tudo. E naqueles
barquinhos pequenos. Eu não teria essa coragem mesmo. São
mulheres especiais, com outra força. A dona Rosinha passava
Mulheres e o mar 238

aqui direto, todo dia. Não tem medo de nada. (Viviane, Barra,
sobre Rosinha, Balneário Camboriú).

Elas próprias se autodenominam com o que consideram essa


qualidade necessária para trabalhar no mar, mas isso não quer dizer
que não tenham medo lá fora. Há, no entanto, e por outro lado, a
necessidade de continuar pescando. Aqui o antônimo de coragem não
é necessariamente medo, mas uma postura que denominam de respeito
pelo mar. Segundo elas não se pode demonstrar “medo porque o mar
sabe quem tem medo. Pelo mar a gente tem respeito”. Tal aspecto é
considerado de forma extremamente séria, quando buscam explicar a
causa de morte no mar: “o meu irmão morreu na água. Tinha medo. E o
mar sabia. Ele morreu dia 3; no dia 8 ia fazer 16 anos” (Neia).
As pescadoras atribuem às suas próprias trajetórias de vida o
motivo de serem como são e quem são. Mulheres que trabalham de
forma contínua e que, mesmo quando grávidas permaneciam pescando
até o último minuto, conforme suas palavras: “só parei quando a barriga
não dava mais” (Safira); “pesquei até o barrigão não deixar mais” (Neia);
“Ih! Ia até quase ganhar os filhos no bote” (Naca).139
Safira, uma de minhas interlocutoras centrais, resumiu o que
implica ser pescadora, definindo-as como tendo uma valentia, o que,
de certa forma, embora por outro ângulo, Fonseca (2004)140 trabalhou
quando discorreu sobre a vida de mulheres de classes populares de Porto
Alegre, Rio Grande do Sul, as quais denominou de “mulheres valentes”.
Vejamos as palavras de Safira:

Perguntei também sobre o aspecto da menstruação, pois me contaram que não


139

param durante esse período, mas que sentem muitas dores na região abdominal e
lombar, o que faz com que, ao chegar do mar, como presenciei, tomem um banho
quente e se deitem, aquietando-se por algumas horas, diferentemente dos demais dias,
quando chegam, organizam tudo e continuam em outros afazeres.
140
Fonseca (2004), ao discorrer sobre a vida e a família de mulheres de classes
populares de Porto Alegre, Rio Grande do Sul, deu a um dos capítulos o título
“Mulheres Valentes”. De certa forma, o sentido é distinto do abordado pelas
mulheres com as quais trabalhei. Em Fonseca, essa denominação diz respeito às
histórias relatadas por mulheres sobre suas reações à infidelidade conjugal do
marido. A autora traz a história de três mulheres que trabalham para sustentar
suas famílias, referindo-se à valentia feminina no enfrentamento da infidelidade
masculina (FONSECA, 2004, p. 113-114, 129). O ponto em comum seria a agência
delas em relação à vida.
Capítulo 5 | A relação com o estado 239

O que estou te falando. Não sei se é certo dizer isso, estou falando
do íntimo, do meu ser. Não é algo que eu falaria para um jornalista
em uma entrevista rápida. O que vou te falar agora não é para tu
gravar, para tu escrever. É para tu lembrar. E, na hora certa, tu
vais lembrar. Pode ver: em cada uma das mulheres pescadoras, se
tu fores olhar lá atrás, na mocidade, na infância, tem uma história
de luta, de sofrimento. Tem, em nós, uma valentia. Não é? Uma
forma de enfrentar a vida, de ser guerreira, que a gente aprendeu
com o mar. E ele não amedrontou. Ele ensinou. Pode ver cada uma
de nós. (Safira, Barra do Sul).

Todo o tempo Safira me chamava a ser uma interlocutora de


seus próprios questionamentos e das reflexões que ia fazendo à
medida que conversávamos e que a pesquisa avançava. Em vez de me
preocupar em gravar ou anotar,141 chamava a atenção sobre o que diz
respeito a me deixar afetar, fazendo-me lembrar Favret-Saada (2005):
no momento certo eu saberia acionar a memória sobre o que me fora
dito e vivido.
Safira, ao mesmo tempo em que se autodefinia e definia as
demais pescadoras como pertencentes a uma linhagem de mulheres
em que haveria uma valentia, atribuía essa valentia ao aprendizado que
foi sendo construído com/no mar. Segundo ela, o mar, ao contrário
de amedrontá-las, foi um mestre com o qual aprenderam a coragem
com que lidam, não somente com ele, mas especialmente com a vida,
com suas adversidades e dificuldades; com seus momentos de tristeza,
miséria ou perdas; com alegrias e superações que fazem parte de
suas trajetórias. Trajetórias estas pelas quais se pautam e que duram
no tempo, conforme preconiza Bachelard (1994), como mulheres de
valentia, que, de acordo com dona Naca, poderiam ser definidas como
“pescadoras de verdade, que não só falam ou têm carteirinha de pesca,
mas que são mesmo pescadoras”.
Safira fala sobre as pescadoras e, portanto, sobre si própria. O
mote de sua fala se deu quando, ao chegarmos à casa de Mãezinha, esta
estava voltando da residência de uma vizinha, onde estava estacionada
uma ambulância. Essa vizinha tinha fincado um osso de bagre na mão
quando o limpava, o que se diz ser extremamente doloroso, mas que
tem que ser imediatamente retirado devido a uma espécie de muco

O que remete a Malinowski (1976, p. 35), quando afirma: “recomenda-se ao etnó-


141

grafo que de vez em quando deixe de lado máquina fotográfica, lápis e caderno, e
participe pessoalmente do que está acontecendo”.
Mulheres e o mar 240

que pode desencadear sérias complicações. Mãezinha nos contou o


ocorrido quando se aproximou com sua forma ágil de andar e falar
em voz alta:

Meu Deus do céu! A Maria enfiou um osso de bagre na mão.


Vieram correndo me chamar. Cheguei lá e disse para a filha dela:
chama a ambulância! Enquanto isso eu olhei para ela e disse: tu
vais me odiar, mas eu tenho que tirar isso senão tu vais sofrer
muito mais tarde. E puxei aquilo. Tinha que fazer. Fiz e pronto. É
assim, não pode vacilar. Tem que fazer? Tem. Então fui lá e fiz. Ela
deu um grito que minha nossa! Mas eu não podia ter pena. Agora
a ambulância está lá fazendo um curativo. Mas uma certeza ela
tem: não vai ter perigo nenhum de inflamar. (Mãezinha, São
Francisco do Sul).

Quando nos atemos às palavras de Mãezinha, podemos


apreender, por um lado, o quanto essas mulheres são reconhecidas em
suas comunidades como pescadoras que detêm o conhecimento em
questões alusivas ao mar e à pesca. Primeiro, foram chamá-la, quando
poderiam recorrer a outros pescadores da mesma rua. Segundo,
mesmo avisando a vizinha que seria um procedimento extremamente
doloroso, esta confia a ponto de deixá-la fazer, quando poderia esperar
pelo aparato médico que estava a caminho. Por outro lado, emerge a
valentia à qual se refere Safira: “Tinha que fazer!”. Mãezinha foi lá e fez
sem titubear a partir do aprendizado que, conforme postula Safira, se
deu com o mar.
Ao verbalizar a admiração por Mãezinha, a quem conhecia,
Safira se refere às demais pescadoras que sabia agora existirem, pois as
viu por meio de fotos que eu levava comigo para que umas soubessem
da existência das outras, como já dito. Ao mesmo tempo em que falava
da valentia que é própria dessa linhagem de guerreiras, Safira justificava
o motivo/agente que lhes permitiu serem como são: o mar.
Por outro lado, elas, ao serem ótimas pescadoras, seriam péssimas
donas de casa, o que apenas fariam de conta, o que Safira definia como
um disfarce.
Com a tua pesquisa tu estás ajudando essa linhagem de mulheres,
nós, pescadoras, a tirar um pouco, se tiver, de um peso de que
falta algo por fazer, de não ser uma dona de casa tão boa, coisas
que a mãe, uma tia ensinou, como manter tudo limpo, uma
tolha de louça bem branquinha. Com nós, pescadoras, não tem
Capítulo 5 | A relação com o estado 241

isso porque nós escolhemos o mar. É nossa paixão. Não falando


agora na questão de ter que fazer por dinheiro, para ganhar a
vida, mas pela paixão, pelo fascínio. É a nossa escolha. Não que
não goste de uma casa arrumada, mas a gente escolhe o mar. A
vida do mar, de pescadora. E com esse teu trabalho, tu vens e
mostras uma para as outras. E a gente vai vendo, vai conhecendo,
vai ficando com vontade de ir lá conhecer aquela que nos toca.
Mas também vê: não sou só eu! Tem outras. E isso dá uma força.
Já pensasse nisso: no trabalho que estás fazendo. Com nós? Já
pensasse nisso, Rose? Na verdade, tu descobres isso agora e
mostras que nós somos só um disfarce de dona de casa.

Safira se refere, a meu ver, à etnografia como uma forma de


contribuir para que elas tirem um pouco da culpa, se tiverem, de
não cumprir com o que os preceitos de gênero, hierarquicamente
definidos, lhes exigem em terra. Safira estava me dizendo que, ao
apresentar uma à outra por meio das imagens que eu ia produzindo,
eu estava, de certa forma, lhes mostrando o quanto seus cotidianos são
agitados, intensos, centralizados no mar, e a partir dele e da pesca. E,
ao ver outras pescadoras que ela nem imaginava existir, isso lhe dava
força, pois ela percebia que faz parte de uma linhagem que até então
não conhecia, o que, de certa forma, diz respeito à visibilidade, pois,
ao se dar conta de si própria por meio das imagens de outras, ela vê e
conclui: não sou só eu.
As mulheres com as quais convivi entraram na pesca e não
conseguem se imaginar sem continuar nessa vida, mesmo quando
ocorre de passarem pela difícil e irrevogável perda de seus homens. No
entanto, nem sempre a mulher pescadora é aquela nascida em família
de pescadores, como encontrei. Nesse sentido, é preciso desqualificar
o parentesco como pré-requisito para os processos de aposentadoria
em que ser mulher de pescador é considerado sinônimo de profissão
para que as pescadoras venham a ser reconhecidas como um sujeito
de direito, por elas próprias.
Se considerarmos a visibilidade como o conhecimento que as
comunidades têm sobre as mulheres que trabalham na pesca (SEMPERE;
SOUSA, 2008, p. 74),142 podemos dizer que oscila entre a visibilidade

As autoras consideram uma distinção teórica entre visibilidade dupla (profissional e


142

social) e visibilidade simples (social). As pescadoras que vão para o mar estariam dentro
da social, enquanto que as demais profissionais concentrariam uma invisibilidade de
forma dupla. As pescadoras em terra teriam uma visibilidade menor do que as que
Mulheres e o mar 242

mais expansiva que as mulheres que embarcam desfrutam, tendo em


vista o viés de gênero que tradicionalmente pauta essa atividade como
feita por homens. Elas teriam, portanto, um prestígio que as que atuam
em atividades feitas em terra não têm.143 No entanto, ainda é muito forte
reconhecer oficialmente as mulheres como pescadoras, mais em relação
ao seu estatuto de casadas com pescador do que como profissionais que
efetivamente são. É inegável que se avançou em termos de garantir o
registro de mulheres nas colônias de pesca, a partir de quando passaram
a acessar o direito ao seguro-desemprego e à aposentadoria. Porém, há
muito ainda a ser feito no intuito de reconhecê-las como profissionais,
independentemente de serem filhas ou esposas de pescadores.
Inspirando-me em Fraser (2007), eu afirmaria que é preciso
mais do que uma quebra da invisibilidade via um princípio de
reconhecimento tímido que ora avança, ora retrocede ou fica
estagnado. Ao se propor a pensar como se poderá revigorar a teoria e
a prática da igualdade de gênero sob as condições atuais, Fraser (2007)
deseja apontar o que deveria ser descartado ou preservado para as lutas
que virão. Ao discutir a questão dos direitos das mulheres, a autora
enfatiza que a representação não é apenas uma questão de assegurar
voz política igual a mulheres em comunidades políticas já constituídas.
É necessário reenquadrar as disputas sobre justiça que não podem ser
propriamente contidas nos regimes estabelecidos. Contestando o mau
enquadramento, o feminismo transnacional estaria reconfigurando
a justiça de gênero como um problema que Fraser (2007) denomina
de tridimensional. Ou seja, composto por uma tríade a ser pensada
de forma conjunta que implica redistribuição, reconhecimento e
representação (FRASER, 2007, p. 305).
Em outra obra, a proposta de Fraser já aponta para o sentido
de buscar um equilíbrio que alie tanto a questão do reconhecimento

embarcam, porém ainda um pouco maior do que a das esposas colaboradoras, no caso
as menos visíveis entre as invisíveis.
O fato de muitas mulheres trabalharem em terra, com grande destaque para os
143

processos de beneficiamento, faz com que elas próprias tenham dificuldade em se


assumir como profissionais que detêm saberes e conhecimentos profundos e qualificados
naquilo que fazem. Por outro lado, há pescadores que preferem e só colocam suas redes
para serem consertadas nas mãos de algumas mulheres conhecidas e reconhecidas
em suas comunidades como as melhores e mais habilidosas a fazerem aquele tipo
de atividade, sem a qual os apetrechos de pesca não têm condições de voltarem a ser
usados, implicando tempo e economia para a atividade pesqueira.
Capítulo 5 | A relação com o estado 243

quanto da redistribuição e da representação, situações que devem ser


analisadas dentro do contexto em que estão inseridas.

Nos casos em que o não reconhecimento envolve a negação


da humanidade comum de alguns participantes, o remédio
é o reconhecimento universalista; assim, a primeira e mais
fundamental compensação para o apartheid sul-africano foi a
cidadania universal “não racializada”. Ao contrário, quando o
não reconhecimento envolve a negação daquilo que é distintivo
de alguns participantes, o remédio pode ser o reconhecimento
da especificidade. (FRASER, 2001, p. 120).

A autora defende que é possível aproximar ética e justiça, justiça e


boa vida, perspectiva tanto de Charles Taylor quanto de Axel Honneth,
lembra Fraser. Para ela, há uma questão central que precisa ser olhada
de frente, de forma rápida e livre de dicotomias desnecessárias.

Se falharmos em formular essa questão, se nos agarrarmos,


ao invés, a falsas antíteses e dicotomias enganadoras,
perderemos a chance de vislumbrar arranjos sociais que
possam compensar injustiças econômicas e culturais. Apenas
olhando para abordagens integrativas que unem redistribuição e
reconhecimento, nós podemos alcançar as exigências da justiça
para todos. (FRASER, 2001, p. 137).

Se os argumentos de Fraser (2001, 2007) se fazem bons para


pensar, eu diria que quando o não reconhecimento envolver a negação
da humanidade comum das pescadoras, o acionamento de um reco-
nhecimento universalista visibilizado em uma expressão generalizada
como mulheres do campo pode ser acionado. No entanto, quando
o não reconhecimento envolver a negação do que lhes é distintivo
– ser pescadora – minha proposta corrobora com Fraser (2001): que se
reconheça a especificidade.

5.6 Enredamentos de uma rede feiticeira


Eu tive o incentivo do meu marido também, embora no começo o
relacionamento ficou meio abalado. Daí, eu falei pra ele: “tu não
trabalhas em uma área que tem duzentas mulheres? Eu trabalho
numa área que tem sessenta homens. Se nós botar em uma
balança, é a mesma coisa. O respeito que tens lá, eu tenho aqui”.
Mulheres e o mar 244

Aí ele disse: “deixa eu me acostumar”. Eu disse pra ele que hoje


tem homem cozinheiro, costureiro, tem até homem que faz faxina.
É porque tem profissão que é vista mais como de homem, outras
mais como de mulher. (Josi).

Entre as redes de pesca, uma das consideradas mais perversas,


tendo em vista que dela nada escapa, é a rede feiticeira. No formato
cônico de um funil, ela arrasta tudo nos fundos por onde passa. Nela,
o que entra, não consegue sair. Dela, nada foge. Por um lado, me
inspiro nessa rede que tudo o que pode captura. Por outro, me alio aos
pressupostos de Foucault (2009), segundo os quais a vigilância é uma
função definidora dos processos reguladores e de controle, “uma peça
interna no aparelho de produção e uma engrenagem específica do poder
disciplinar” (FOUCAULT, 2009, p. 169).
A partir de ambos, considero que se faz possível falar de
enredamentos de controle e vigilância vinculados aos processos de
cadastramento e recadastramento de trabalhadores brasileiros visando
à futura aposentadoria. Falo do que considero os enredamentos das
classificações trabalhistas que compõem os enquadramentos pelos
quais se pauta o INSS, entendendo que esta discussão se faz central
quando nos propomos a tentar entender algumas das implicações que
perpassam a busca por reconhecimento de mulheres como profissionais
da pesca; portanto, como pescadoras.
Dessa forma, iniciou-se este capítulo com uma discussão que diz
respeito à circularidade de conhecimentos, a qual se encaminhou para
a análise da construção dessas mulheres como sujeitos. Considerei suas
narrativas e as pistas que os dados de campo apontaram sobre seus modos
de (a)sujeitamentos, que dizem respeito ao que Maluf (2009, 2012) definiu
como “modos e regimes de subjetivação no contemporâneo, pensando
o sujeito não apenas como objeto da análise antropológica, mas como
categoria analítica e paradigma para uma abordagem antropológica do
contemporâneo” (MALUF, 2012, p. 2, grifo nosso).144

Com a intenção de exercitar o que eu definiria como a busca de um diálogo


144

próximo, minha interlocutora central é Maluf (2009, 2012) entendendo que a autora
traz contribuições instigantes para pensarmos sobre o que ela propõe como uma
“antropologia do sujeito”, a partir da qual visualizo o exercício, entre as muitas formas
de antropologias (BASTOS, 2010), de uma antropologia consequente (SAEZ, 2009).
Não só uma antropologia dos sujeitos – a partir dos embates em campo e voltados
ao campo, mas também uma antropologia com os sujeitos – antropólogos – com os
quais aprendemos a produzir e a nos construir como antropólogos. Pinço o que Maluf
Capítulo 5 | A relação com o estado 245

Tais modos de subjetivação se relacionam com as trajetórias de


mulheres pescadoras na busca por suas conquistas como profissionais,
repercutindo no processo e nas dificuldades de aposentadoria, em que
emerge, diante do critério definido pelo INSS de Segurado Especial, a
questão central do anonimato e da invisibilidade da mulher no setor da
pesca; posturas e visões de órgãos públicos e de pessoas que, de forma
geral, não sabem de suas existências e desconfiam de suas capacidades
de vivenciar uma “experiência subjetiva” (MALUF, 2009, p. 13).
A igualdade “não é a ausência ou a eliminação da diferença, mas
sim o reconhecimento da diferença e a decisão de ignorá-la ou de levá-
la em consideração” (SCOTT, 2005, p. 15). Por ser vista como feita por
homens, não se vê como possível que mulheres possam ter na pesca uma
experiência individual, que diz respeito não apenas a uma experiência
profissional, mas social; seu modo de ser e estar no mundo. Quando
ignoram ou desconsideram essa possibilidade singular de existir, ou
não a reconhecem como possível, esses técnicos cortam a possibilidade
de o reconhecimento ser efetivado. Assim fazendo, “retiram da vida o
sentido de experimentação e de criação coletiva. Retiram do ato de viver
o caráter pleno de luta política e o da afirmação de modos singulares de
existir” (BAPTISTA, 1999, p. 49).
Ao alimentar o sistema, que poderíamos considerar um
poderoso amolador de facas (BAPTISTA, 1999)145 contemporâneo,

(2012) propõe quando fala sobre uma antropologia do sujeito: “O enunciado ‘por uma
antropologia’ sinaliza que não existe uma antropologia do sujeito; e a locução ‘do sujeito’
sinaliza que existe ‘o sujeito’. O desenrolar do meu argumento vai, senão inverter os
sinais, atenuar um tanto o que pode ser lido como uma assertiva. Inicialmente porque,
como eu vou discutir adiante, o sujeito está presente, mesmo que na maior parte das
vezes de forma espectral, em diversos estudos antropológicos contemporâneos. Em
segundo lugar, porque, para grande parte das teorias sociais críticas contemporâneas,
por exemplo, no campo do feminismo e dos estudos pós-coloniais, em seu diálogo com
teorias do sujeito como as psicanalíticas, foucaultianas e as da filosofia da diferença,
entre outras, ‘o sujeito’ enquanto ente unificado, substantivo, prévio à experiência, o
sujeito da razão, representado na teoria antropológica clássica pela figura do ‘indivíduo
moderno’ seria uma ficção. Cabe explicitar que o que estou tomando como sujeito não
se reduz à abordagem da noção de Pessoa, essa sim com uma extensa e densa carreira
no interior da antropologia” [...]. (MALUF, 2012, p. 1-2, grifo nosso).
145
Luis Antônio Baptista usa esta expressão para falar da mutilação de corpos de
bêbados, travestis, negros, crianças e adultos com AIDS, entre outros, falando do
que considera na contemporaneidade uma reedição e aperfeiçoamento de estratégias
mórbidas de banimento, em que profissionais de prestígio, padres, atrizes, psicanalistas
“circulam dentro e fora da mídia, produzindo a ingênua e eficaz impressão de uma fala
individual e neutra” (BAPTISTA, 1999, p. 47). Ao falarem da fragilidade e carência
Mulheres e o mar 246

com dados que automaticamente vão compondo formulários que


classificam sujeitos, a mulher, por ser pescadora – ou a pescadora,
por ser mulher? – não encontra o respaldo necessário para ser, ela
própria, reconhecida. Em assim ocorrendo, precisa constituir provas
para tentar conseguir o que, por um princípio de nossa Constituição
Federal, seria um direito inalienável – o direito que todos têm a ter
direito – posto que erga (para) omnes (todos).146

desse outro, na verdade contribuem como amoladores de faca que promovem, acirram
e justificam o preconceito que desqualifica formas diferenciadas de ser e de existir, seja
por sexo, orientação sexual, raça.
146
“A expressão erga omnes, de origem latina (latim erga, “para”, e omnes, “todos”), é usada
principalmente no meio jurídico para indicar que os efeitos de algum ato ou lei atingem
todos (grifo nosso) os indivíduos de uma determinada população ou membros de uma
organização, para o direito nacional. Enquanto que os atos legislativos (leis, decretos
legislativos, resoluções, entre outros) têm como regra geral o efeito erga omnes, as decisões
judiciais têm como regra geral apenas o efeito inter partes, ou seja, restrito àqueles que
participaram da respectiva ação judicial. Alguns processos judiciais, contudo, possuem o
efeito erga omnes, como a Ação Direta de Inconstitucionalidade, quando se ataca um ato
normativo (que a princípio teria validade contra todos, como uma lei), a qual, se considerada
procedente, retirará do mundo jurídico tal ato normativo, valendo contra todos. Têm o
mesmo efeito, ou seja, eficácia contra todos (e mais efeito vinculante), as decisões definitivas
de mérito, proferidas pelo Supremo Tribunal Federal (STF), nas ações declaratórias de
constitucionalidade, nos termos do § 2o do art. 102 da Constituição Federal de 1988. Sendo a
inconstitucionalidade reconhecida em uma ação que não tem o efeito erga omnes, como no
caso de recurso extraordinário contra decisão judicial interposto junto ao Supremo Tribunal
Federal, à decisão poderá ser dado efeito erga omnes por meio de Resolução do Senado
Federal, conforme art. 52, inciso X, da Constituição Federal” (ERGA OMNES, 2011).
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Uma tarrafa ou uma rede se começa com um nó, porque se não


se começar com um nó, não se consegue fazer nem uma tarrafa
nem uma rede. Tudo começa com um nó. (Seu Vado, Costeira,
Florianópolis).
Fiz um grande esforço para não pregar ou moralizar, e, fora um
ou outro pequeno deslize, acho que consegui. Isso não significa
que eu não tenha convicções. À guisa de conclusão, aqui estão
elas. (BECKER, 2010, p. 274).

As observações que fiz no decorrer de minha pesquisa me


apontaram subsídios para afirmar que a denominada invisibilidade
feminina na pesca se dá de duas formas: uma por parte de quem olha
de fora, sejam órgãos públicos, acadêmicos, seja a população de forma
mais ampla que não conhece ou que não consegue supor que existam
mulheres pescadoras; outra diz respeito ao contexto interno em que as
famílias e as próprias mulheres pescadoras, com ênfase nas que atuam
em terra, muitas vezes não se dão conta de que sem elas a pesca não se
reproduz. As mulheres com as quais convivi estavam em praticamente
todas as etapas e formas em que a pesca ocorre, seja de cerco, de espera,
de fundo, de anzol, de gaiola, de espinhel; de peixe, de camarão, de siri,
de berbigão, conforme busquei demonstrar.
Se, por um lado, as muitas pescas não se realizam sem as redes,
que são muitas: de emalhar, de espera, de fundo, flutuante, de cerco,
entre muitas outras, por outro lado, a pesca também não cumpre seu
papel de fonte de renda e reprodução de formas específicas de vida
sem as mulheres, as quais escolhi como foco, carne e sangue, de minha
pesquisa. Não pretendi, de forma alguma, como já dito, tirar dos
Mulheres e o mar 248

homens o seu lugar no mundo da pesca, até porque na maioria dos


trabalhos sobre pesca são eles os principais ou únicos interlocutores.
Aliado a isso, em muitos contextos pesqueiros as mulheres atuam de
forma muito sutil, em decorrência de preceitos que não lhes permite
adentrar aos barcos ou aos ranchos de pesca, como em algumas regiões
do Brasil, conforme nos apontam muitas pesquisas. São os homens os
visibilizados e os espaços de pesca vistos como exclusivamente deles.
A contribuição inicial à qual esta pesquisa se propôs foi mostrar
que existem pescadoras embarcadas e, assim o fazendo, apontar
que existem muitos espaços de pesca em que também as mulheres
atuam e que são centrais. Isso implica, pois, nos questionarmos
sobre a dificuldade, em especial de órgãos públicos que tratam de
processos de aposentadoria ou daqueles que atuam diretamente com
essas populações, por exemplo, em reconhecer as mulheres como
pescadoras, tanto as que realizam suas atividades em terra quanto as
que embarcam. É como se, ao se considerar que elas estivessem em um
lugar fora de lugar – se posso assim me expressar –, por ser aquele visto
como um espaço eminente, mas não exclusivamente masculino, essas
mulheres não pudessem ou não tivessem capacidade, força, condições,
destreza, um corpo para exercer atividades na/da pesca.
Mais: Por que algumas mulheres, pelo fato de serem esposas de
pescador, são registradas e conseguem se aposentar como pescadoras,
como se fosse uma peça agregada ao homem, embora nunca tenham
trabalhado na pesca, enquanto outras que fazem desse o seu cotidiano
não conseguem esse reconhecimento por não serem legalmente casadas
com pescadores? Até quando a mulher vai precisar de um referencial
homem – filha de pescador; esposa de pescador – para ser vista como
pescadora? Até onde o anonimato, pautado pela terminologia autônoma
ou do lar, vai esconder, invisibilizar, a participação de mulheres
no mundo da pesca? Reafirmo: as mulheres compõem as muitas
instâncias da pesca: limpam, evisceram, comercializam, transformam,
embarcam. Como é possível que ainda continuem invisíveis aos olhos
de órgãos públicos estando em praticamente todos os lugares em que a
pesca se dá? Como é possível ainda ser tão incipiente o reconhecimento
dessas mulheres como sujeito, profissionais, pescadoras?
Trata-se de mulheres lutando em um mundo em que os
discursos de gênero o tempo todo estão dizendo: você não existe!
Pesca não é para você! Você não tem um corpo para a pesca! O que
essas mulheres estão mostrando é que elas têm um corpo para a
Considerações finais 249

pesca e não precisam virar um homem para ser pescadoras. Elas são
mulheres, estão e continuam pescando como mulheres. Para citar o
exemplo da indumentária da pesca, podemos dizer que o macacão
não tem gênero. Há algo de arbitrário quando se coloca um gênero
no macacão. E há algo de enfrentamento quando a pescadora coloca
um zíper nesse mesmo macacão para dar a ele o gênero que ela quer,
mostrando que continua mulher e que é pescadora.
Entendo que se faz central fazer um exercício de olhar o mundo
da pesca a partir de um prisma que vá das mulheres para os homens,
como pôde ser observado no capítulo específico sobre as narrativas
autobiográficas dessas mulheres, e no decorrer do livro, sobre como
se veem, como vivenciam e que significados aludem a seus espaços
de trocas e sociabilidade e sua valorização como trabalhadoras, entre
outras questões. Um olhar mais atento a esse mundo da pesca nos
poderá dar a possibilidade de perceber, mais do que dizem, como
vivenciam e significam esses aspectos.
Em um de seus estudos, realizado em uma comunidade
do litoral Sul do Brasil, e referenciado no decorrer deste livro em
diferentes momentos, Maluf pôde perceber realidades que colocam
em questão os modelos formais mais visíveis e, a partir delas, construir
interpretações, além de compreender mais sobre a cultura de gênero ali
vigente, suas complexidades e sofisticação. É uma maneira de entender
os significados ou, como afirma de forma contundente, “uma maneira
de entender como se constituem essas diferentes vozes, ou seja, como
se constituem socialmente as identidades de gênero na comunidade”
(MALUF, 1993, p. 14).
Posso aqui me referir ao fato visível encontrado em campo
em que, na grande maioria dos locais de pesca, homens e mulheres
trabalham em funções ora distintas, ora iguais; em atividades ora
separadas, ora juntas, mas que muitas vezes se entrecruzam. As
embarcadas trabalham em embarcações pequenas, nas quais ele e ela
pescam e delas trazem, limpam evisceram o pescado; ou pode ocorrer
também que, enquanto ele faz uma dessas atividade, ela faz outra
visando maximizar o tempo do qual dispõem.
Em relação às que trabalham em terra, são elas, em grande
maioria, que limpam, preparam, transformam. Nesses casos, ao
chegar a terra, os pescadores largam tudo e a partir de então elas dão
continuidade ao processo dali em diante, incluindo seleção, limpeza,
evisceração ou descasque e comercialização. Mas isso também pode ser
Mulheres e o mar 250

diferente, pois em outros casos os pescadores participam da limpeza,


eviscerando, preparando; outras vezes, mal eles chegam do mar, elas a
eles se juntam e, rapidamente, montam barracas improvisadas, pois os
fregueses já se aproximam para ser atendidos. Não há, portanto, uma
regra definida. Inúmeras são as possibilidades. Assim se mostrou o
mundo da pesca em que adentrei.
Existe forma de definir qual é mais importante? Quem chega
do mar ou quem aguarda com os equipamentos necessários para
continuar a atividade? Quem exerce o ato de trazer o peixe ou quem
tem habilidade de atrair a clientela? Seria interessante ponderar que
sem uma atividade as outras não se completam e o mundo da pesca
não se reproduz. Para além das mulheres que embarcam, as mulheres
são maioria nas atividades realizadas em terra, como já dito; porém,
essas atividades ainda não são devidamente consideradas trabalho da
pesca, mas uma obrigação de mulher ou filha de pescador.
Reitero: as mulheres ainda encontram muitas dificuldades em ser
reconhecidas como pescadoras e conseguir melhorar suas condições
de trabalho. Por exercerem uma pesca que se inclui na comumente
denominada artesanal, ou pequena pesca, as linhas de crédito para
suprir as suas necessidades, por exemplo, são menores do que as
usualmente ofertadas. Embora exista, em alguns casos, por exemplo,
a possibilidade de obter crédito de até dez mil reais, as exigências para
tal acesso deixam de fora muitas mulheres que não têm como dar
“garantias de pagamento”, exigência de instituições bancárias.

O Ministério da Pesca deveria fazer uma portaria para esses


acessórios que as mulheres precisam: panela, sacos para lavar os
produtos, os remos, uma reforma nas bateras. Quem já tem a
batera, tem que manter. Para o material delas. Esse valor que tem
hoje é para homens que já têm barcos maiores. Precisamos linhas
de crédito para as mulheres, para os utensílios. Não precisamos
de todo esse valor que hoje tem, mas de um valor menor para os
pescadores menores, inclusive as pescadoras. (Tina).

Sobre esse aspecto alusivo às linhas de crédito, considero que


cabe ao Ministério da Pesca e ao Pronaf, como programa nacional
dedicado à agricultura familiar, no qual se inclui a pesca, discutir,
analisar, considerar e propor novas formas de viabilizar o microcrédito,
considerando que este tem se revelado “precioso para conferir mais
responsabilidade e autonomia às mulheres, dando azo àquilo que os
Considerações finais 251

ingleses designam por empowerment” (NOWAK, 2007). No decorrer


do trabalho de campo encontrei mulheres que, em vez de desejarem
comprar embarcações muito maiores ou aumentar a tonelagem bruta
de suas embarcações, priorizam a compra de embarcações pequenas e
utensílios aparentemente muito simples, como panelas e bacias, mas
que fariam muita diferença, tendo em vista poderem “agregar valor”
aos produtos.
No que concerne ao extensionismo, a realização desta pesquisa
me trouxe a compreensão de que é preciso avançar muito ainda
em termos de metodologia que, de fato, permita espaços de troca e
diálogo intersaberes. Entendo que investir em espaços que priorizem
o lúdico é uma das possibilidades, se considerarmos que o lúdico
permite soltura corporal e a inclusão de diferentes públicos, sejam
alfabetizados, semialfabetizados ou completamente analfabetos.
Outro aprendizado diz respeito a perceber que as pescadoras me
ensinavam duas vezes: uma em relação à pesca e outra em relação ao
extensionismo. Ao verem as fotos de outras pescadoras que eu levava
para lhes apresentar, elas percebiam formas de saber-fazer de que até
então, como extensionista, eu não havia me dado conta. Por exemplo,
mesmo que o nome da rede – rede de espera – seja o mesmo em
Florianópolis ou em Barra do Sul, elas perceberam e me apontaram
que o jeito de fazer é distinto. Sutilezas que dizem respeito às muitas
possibilidades de as mulheres estarem e viverem na pesca artesanal
catarinense. Esse aprendizado me foi possível ao exercitar a etnografia
exercitando-me como antropóloga.
Em relação à busca por reconhecimento, há ainda um longo
caminho pela frente se considerarmos as situações narradas em que as
pescadoras se sentiram “humilhadas”, envergonhadas perante os técnicos
do INSS, de colônias de pesca ou de instituições nas quais tiveram que
acorrer. Ao INSS, como instituto centralizador e responsável pelos
processos de aposentadoria no Brasil, caberia um processo de formação
continuada de seus técnicos, bem como uma reavaliação do sistema atual
de enquadramento de futuras aposentadorias, o qual não contempla
de imediato mulheres pescadoras. Não sabendo onde enquadrá-las, a
categoria autônoma emerge como fixação da invisibilidade da mulher
na pesca. Em se declarando autônoma, a sentença está firmada: processo
indeferido!

O domínio do trabalho científico não tem por base as conexões


“objetivas” entre as “coisas” mas as conexões conceituais entre
Mulheres e o mar 252

os problemas. Só quando se estuda um novo problema com o


auxílio de um método novo e se descobrem verdades que abrem
novas e importantes perspectivas é que nasce uma nova “ciência”.
(WEBER, 1989, p. 83-84, grifo nosso).

Quanto à antropologia realizada em espaços “extra-academia”,


considero que isso vem se ampliando rapidamente. Por isso precisamos
construir uma agenda de discussão que envolva a participação de nossos
pares em torno de questões que dizem respeito à ética profissional,
ao diálogo com outros campos de conhecimento, às dificuldades
e aos impasses com os quais nos deparamos. Também precisamos
discutir sobre a repercussão dos resultados de nossas pesquisas, seja
nas instituições, seja na vida das pessoas com as quais as realizamos.
Defendo, dessa forma, o que eu denominaria de uma antropologia
da indignação, que não tem nada de romântico ou ingênuo, mas
que reivindica o meu direito de ser antropóloga, de ser humana e
de poder me indignar e materializar essa indignação apresentando
trabalhos consequentes, seja em formato de uma tese, de um livro, de
artigos. Entendo uma antropologia da indignação, portanto, como um
exercício de posicionamento articulado interpares que possa subsidiar
movimentos sociais, políticas públicas e a busca por reconhecimento de
populações com as quais vimos interagindo no decorrer da construção
da trajetória da antropologia brasileira.
Não consigo, dessa forma, vislumbrar a natureza da teoria
antropológica desvinculada do fazer antropológico, cuja centralidade
passa pelo trabalho de campo postulando, entre outros propósitos,
equiparar diferentes saberes. Nessa busca por compreender o outro,
cada vez de forma mais evidente, nossas teorias se mesclam a conceitos
nativos para construirmos uma compreensão sobre “o outro”. Os
nativos, por sua vez, se apropriam de nossos conceitos para buscar
compreender como os compreendemos, ao mesmo tempo em que
ampliam seus questionamentos, muitas vezes, a partir das teorias que,
por outro lado, postulamos a partir deles. Cada vez mais saímos dos
muros acadêmicos reconhecendo e sendo reconhecidos como parte
do universo que estudamos. De certa forma, “equivale a dizer que a
prática de sua profissão passa a incorporar uma prática política, quando
não em seu comportamento, certamente em sua reflexão teórica”
(OLIVEIRA, 2006, p. 42). E se a prática política for incorporada em
sua reflexão teórica, as repercussões irão além, afetando inclusive o
comportamento.
Considerações finais 253

A humanidade tem a capacidade de dar sentido: este fundamento


ontológico (MOORE, 1999) da antropologia a diferencia, me parece, de
outras ciências em termos do que postula Weber (1989) ao afirmar que
quem define o fato é a perpectiva do pesquisador, o que nos remete à
discussão objetividade/subjetividade.147 Para Weber, a objetividade nas
Ciências Sociais é muito peculiar, pois há aí imbricada a emergência
de uma dicotomia. Ao se falar em objetividade, a subjetividade ali está,
pois o fragmento que o pesquisador escolhe para olhar é qualitativo. O
saber vem, dessa forma, de meu olhar, o qual faz a mediação entre o eu
e a realidade. Os conceitos não conseguem reproduzir a realidade, mas
vêm contribuir para ordenar a apreensão que dela fazemos. Assim, “o
domínio do trabalho científico não tem por base as conexões objetivas
entre as coisas, mas as conexões conceituais entre os problemas”
(WEBER, 1989, p. 83).
Construir espaços de inserção da antropologia no estado é uma
tarefa difícil, considerando que o próprio antropólogo é também “cidadão
da sociedade dominante” (OLIVEIRA, 2006, p. 173). No entanto,
considero que o respaldo teórico, metodológico, epistemológico com o
qual nos afetamos na universidade é o que nos permite buscar empreender
o que considero o exercício da antropologia em espaços considerados do
estado. Ou seja, o exercício da antropologia, ele próprio, linha de fuga,
parte das molecularidades possíveis (DELEUZE; GUATTARI, 2009).
Isso se pensarmos que o estado, em princípio, é molar. Mas o molar é
perpassado pelo molecular; e o molecular é rizomático. Aí entendo a
possibilidade de uma antropologia da indignação.

Como é que te sentes, Rose, sabendo tudo o que a gente está te


contando e também que estás fazendo a gente pensar? Tu consegues
dormir? (Safira).

Em relação às pescadoras, Brandão (1986, p. 83) afirma que “o


contato com a terra obriga o homem a olhar para o chão, o contato
com o mar obriga-o a levantar a cabeça”. Talvez por isso as populações
pesqueiras e, em especial, as pescadoras, não se entregam e teimam em
olhar para a frente e para cima até o limite do que parece impossível,
no exercício contínuo do que Amorim (2008, p. 59) definiu como
uma resistência in extremis. Essa resistência in extremis, a meu ver, diz

Saez (2009, p. 16) reporta-se ao fato de que a antropologia é aquela que não postula
147

que não haja realidade objetiva, mas que nessa realidade objetiva há muito mais do que
supõem outros cientistas. Para ele, o que interessa é estar aberto à imprevisibilidade.
Mulheres e o mar 254

respeito às formas como as mulheres pescadoras vêm se construindo


como sujeitos que se (a)sujeitam a muitas situações, seja na pesca, na
família, nas instituições. Se sujeitando é que elas exercitam sua agência
e continuam sendo.
A expressão que usam para dizer sobre o como se dão conta
dessa situação é “a gente se sujeita”. Para conseguirem continuar sendo
sujeito, continuar durando (BACHELARD, 1994) como pescadoras, o
mar é acionado por elas como linha de fuga na qual encontram paz,
tranquilidade, esquecimento dos problemas e onde a exigência da vida
na pesca, que exige extrema atenção, por paradoxal que possa parecer,
atua como um facilitador desestressante de distração da vida que as
aguarda em terra.
O ato de concentração que a pesca exige – para evitar acidentes,
perceber o peixe, puxar as redes – funciona como momento de espécie
de meditação, segundo me definiram. Ao se concentrar totalmente no
ato de pescar, a pescadora distrai sua atenção dos problemas cotidianos.
Ao retornar do mar, independentemente de ter tido sucesso na pesca,
ela volta com a sensação de missão cumprida e com a satisfação do
vício que nutre pelo mar. É no exercício de se submeter, se (a)sujeitar
ao mar como grande fornecedor de alimentos e como linha de fuga,
mas também como um agente poderoso, que elas aprendem as lições
necessárias para os (a)sujeitamentos na/da vida, compondo-se como
sujeitos que, embora não reconhecidos, são: mulheres pescadoras.
No entanto, não sei defini-las com poucas palavras. Não sei de
onde tiram e como têm a força que têm. São mulheres obstinadas, que
parecem incansáveis. Não medem esforços para fazer o que tem que
ser feito. Não gastam muito tempo se lamuriando com as dificuldades.
Construíram trajetórias, corpos e vidas quando, desde muito cedo, aos
9, 8 anos de idade, tiveram que aprender a ser fortes, corajosas, valentes,
guerreiras, trabalhar feito um homem. Mas são mulheres. É de mulhe-
res que se trata. Mulheres, mães, esposas, filhas para as quais não se
perguntou se gostariam de entrar na pesca. Era preciso. Elas lá estavam.
E entraram.
Os seus corpos, além de adestrados para habilidades que juntam
masculino/feminino, vivem na iminência de perdas a partir das quais
duram e constituem temporalidades como mulheres das/nas pescas. É
no bom humor que elas formulam suas táticas de sobrevivência entre a
terra e o mar, sendo o mar não somente fonte de renda, mas um aliado
com o qual encontram a distração necessária dos desafios em terra a
partir da concentração contínua que exige. O medo da morte, da fome,
Considerações finais 255

da violência, das perdas é encarado por meio do enfrentamento da vida


em que acionam o riso, a brincadeira.
Trata-se, diz Bakhtin, de um riso ambivalente, “alegre e cheio de
alvoroço, mas ao mesmo tempo burlador e sarcástico, nega e afirma,
amortalha e ressuscita simultaneamente” (BAKHTIN, 2008, p. 10). O
riso, a brincadeira, seria uma espécie de arma com a qual as pescadoras-
guerreiras enfrentam as situações difíceis da vida, e a linguagem usual
de enfrentamento se pauta pela “grosseria e pelo uso corriqueiro de
palavrões, obscenidades, piadas” (BAKHTIN, 2006, p. 15).
O Tempo lhes deu tempo para aprenderem a enfrentar situações-
limite com as quais conseguem sabedoria, sanidade e ânimo para
enfrentar a vida. Em vez de assumirem uma postura chorosa de pessoa
triste e sofredora, utilizam como tática de sobrevivência e de duração
a jocosidade, o riso, o senso de humor e, às vezes, uma ironia sutil em
meio a dramas, perdas, intempéries, mas também alegrias, conquistas,
avanços.
Finalmente, as pescadoras me disseram, talvez, quando
perceberam que podiam me dizer, que a pesca não é, na verdade o
desafio.

Quando as pessoas perguntam pra gente: como vocês têm coragem


de pescar? Elas não percebem que a coragem maior é com a vida.
Agora, é o seguinte: a pesca e o mar nos ensinam a vida. Para
pescar e para viver é preciso concentração, atenção naquilo que
se está fazendo. Naquele momento: no mar e na vida! Se distrair,
por um momento que seja, na pesca é colocar em risco a perda da
vida. Se distrair na vida é deixar de viver o momento. E é só isso
que todos temos: o momento. Isso a pesca nos ensina. Mas o grande
desafio, não é a pesca. É a vida. (Safira).

Puxei o primeiro nó. Veio outro. E mais outro. E mais. Tudo


começa com um nó. Espero ter tecido bem os fios.
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ZARUR, George. Repensando o conceito de matrifocalidade. Cadernos de
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______. Os pescadores do Golfo. Rio de Janeiro: Achiame, 1984.
ZONABEND, Françoise. Une perspective infinie. La mer, Le rivage et la terre à
La Hague (presqu’île du Cotentin). Paris: Étude Rural, 1994.
FOTOGRAFIAS
Figura 1 – Saindo para o mar

Figura 2 – Esse tempo que muda


Figura 3 – Indumentária no mar

Figura 4 – Tarrafeando
Figura 5 – Pescando baiacu

Figura 6 – À espera
Figura 7 – Mulheres ao mar
Figura 8 – Na pesca da tainha
Figura 9 – Um porto seguro

Figura 10 – Amanhecer na pesca de siri de gaiola


Figura 11 – Sincronia em terra, sincronia no mar

Figura 12 – Chegando ao porto


Figura 13 – Fim de tarde, fim de pesca

Figura 14 – Camaradas
Figura 15 – Esperando para sair ao mar
Figura 16 – Indumentária em terra
Figura 17 – Enredando a rede
Figura 18 – Macacões de oleado
Figura 19 – Mãos no descasque de camarão
Figura 20 – Mãos na pesca I
Figura 21 – Mãos na pesca II
Figura 22 – A canoa Tansinha espera
Figura 23 – Ranchos e canoas
Figura 24 – Cordas, bandeiras e âncoras
Figura 25 – Bandeiras e botes
Figura 26 – Bandeiras multicoloridas I
Figura 27 – Bandeiras multicoloridas II
Figura 28 – Bicicletas
Figura 29 – A embarcação e o mar
Figura 30 – Embarcações
Figura 31 – A água como espelho

Figura 32 – Embarcações em descanso


Este livro foi editorado com as fontes
Minion Pro e Optima. Publicado on-line
em: editora.ufsc.br/estante-aberta

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