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Rose Mary Gerber
MULHERES E O MAR:
pescadoras embarcadas no litoral de
Santa Catarina, sul do Brasil
2021
© 2021 (e-book) Editora da UFSC [Nota do Editor = mesmo conteúdo]
© 2015 (impresso)
Coordenação editorial:
Cristiano Tarouco
Capa e editoração:
Paulo Roberto da Silva
Revisão:
Júlio César Ramos
Este livro está sob a licença Creative Commons, que segue o princípio do acesso
público à informação. O livro pode ser compartilhado desde que atribuídos os
devidos créditos de autoria. Não é permitida nenhuma forma de alteração ou a
sua utilização para fins comerciais.
br.creativecommons.org
Às pescadoras, mulheres de rara
linhagem de guerreiras.
PREFÁCIO.................................................................................. 13
INTRODUÇÃO.......................................................................... 16
Sobre as desventuras da perda da inocência ............................... 32
O exercício da antropóloga como sombra .................................. 37
Sobre o corpo da antropóloga ..................................................... 43
Narrar trajetórias; ouvir narrativas................................................ 46
A respeito dos capítulos do livro ................................................. 47
2
O Capítulo IV da Lei no 11.959, em seu artigo 8o, classifica pesca como I. Comercial: a)
artesanal: quando praticada diretamente por pescador profissional, de forma autônoma ou
em regime de economia familiar, com meios de produção próprios ou mediante contrato
de parceria; podendo utilizar embarcações de pequeno porte; b) industrial: quando
praticada por pessoa física ou jurídica e envolver pescadores profissionais, empregados
ou em regime de parceria por cotas-partes, utilizando embarcações de pequeno, médio
ou grande porte, com finalidade comercial (BRASIL, 2009). Embora eu tenha trabalhado
com mulheres que atuam em lagoas e rios, a grande maioria atua no mar.
Sobre o uso da tecnologia no fundo mar, ver Martins (1999).
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Introdução 17
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O Banco Mundial define a pobreza extrema como viver com menos de um dólar
por dia e pobreza moderada como viver com entre um e dois dólares por dia. Estima-se
que 1 bilhão e 100 milhões de pessoas em nível mundial tenham níveis de consumo
inferiores a 1 dólar por dia e que 2 bilhões e 700 milhões tenham um nível inferior
a 2 dólares. No Brasil, de acordo com o Censo 2010 do IBGE, estão em situação de
pobreza extrema 16,2 milhões de brasileiros que vivem com menos de R$ 70 por
mês. Voltado para esta situação, foi criado um programa social, Brasil sem Miséria,
do governo federal brasileiro, na gestão da presidenta Dilma Rousseff, lançado em
junho de 2011. Consiste na ampliação do programa anterior de combate à pobreza do
governo Lula (conhecido por Bolsa Família). Tem como objetivo promover a inclusão
social e produtiva da população extremamente pobre. A Sesep, ligada ao Ministério do
Desenvolvimento Social e combate à Fome, é responsável pela coordenação das ações e
gestão do Plano Brasil Sem Miséria, que prevê ações nacionais e regionais, pautadas por
três eixos: garantia de renda, inclusão produtiva e acesso a serviços públicos. No campo,
o objetivo central será aumentar a produção dos agricultores (grifo nosso). Na cidade,
qualificar a mão de obra e identificar oportunidades de geração de trabalho de renda
para os mais pobres. Simultaneamente, garantir maior acesso da população mais pobre à
água, luz, saúde, educação e moradia. O programa visa ações em: documentação, energia
elétrica, combate ao trabalho infantil, segurança alimentar e nutricional (cozinhas
comunitárias e bancos de alimentos), apoio à população em situação de rua para que
saia dessa condição, educação infantil, saúde da família, rede cegonha, distribuição de
medicamento para hipertensos e diabéticos, tratamento dentário, exames de vista e
óculos, assistência social por meio dos CRAS e CREAS (Disponível em: <www.mds.gov.
br; www.brasilsemmiseria.gov.br>).
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Segundo dados da FAO (2012), “en 2010 cerca un 86 por ciento del total de la
producción pesquera (128,3 millones de toneladas) se utilizó para consumo humano
directo. El 14 por ciento restante, es decir 20,2 millones de toneladas, se destinó a productos
no alimentarios, principalmente a la fabricación de harinas y aceite de pescado. Cerca de
un 47 por ciento del pescado destinado a consumo humano era en forma de pescado vivo y
fresco” (FAO, 2012, p. xxi, grifo nosso). Se levarmos em conta que a) aproximadamente
925 milhões de pessoas no mundo não comem o suficiente para serem consideradas
saudáveis e que isso significa que uma em cada sete pessoas no planeta vai para a cama
com fome todas as noites; b) o número um na lista dos dez maiores riscos para a saúde
é a fome, que mata mais pessoas anualmente do que AIDS, a malária e a tuberculose
juntas (FAO, 2013), podemos afirmar que, além de uma atividade econômica, a pesca é
central no fornecimento alimentar em forma de proteína para populações ribeirinhas e
costeiras que muitas vezes não têm acesso a programas e políticas públicas.
Mulheres e o mar 18
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Exceção encontrada em campo se refere à construção naval, na qual encontrei somente
homens trabalhando na construção de embarcações. Barra do Sul, onde esta pesquisa se
Introdução 19
uma categoria ampla, “as pescadoras brasileiras”, teria que se salvaguardar o direito à
diferença: “pescadoras” incluiria as mariscadeiras, as caranguejeiras, as pesqueiras, as
catadoras, enfim, as diferentes denominações usadas em distintos contextos brasileiros
que dizem respeito às muitas formas de viver da pesca, portanto, de ser pescadora.
Mulheres e o mar 22
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Os pescadores profissionais se organizam em torno de colônias ou sindicatos. Embora
eu não vá me deter aqui em uma discussão sobre a temática da organização, cabe uma
nota sobre as colônias, que foram as primeiras a serem organizadas no início do século
XX com o objetivo de defesa da costa brasileira, pois se entendia que os pescadores eram
os que mais a conheciam (VASCONCELLOS; DIEGUES; SALES, 2007, p. 3). Inclusive
o lema que encimava a frente das colônias e que em muitas ainda persiste é “Pátria e
dever”. Ao analisar a missão do Cruzador-auxiliar Jose Bonifácio, ocorrida entre 1919 e
1924, cujo lema era nacionalizar a pesca e organizar os seus serviços, também chamada
Campanha de Nacionalização da Pesca e Saneamento do Litoral, os autores discorrem
sobre os movimentos sociais de pescadores no Brasil, afirmando que, se por um lado,
os pescadores realizaram alguns movimentos sociais, por outro se mostram tímidos e
reticentes no processo de lutas. Eles afirmam que “seus ganhos políticos se apresentam
mínimos, o afloramento de lideranças praticamente nulo e a capacidade para a luta
extremamente difícil” (VASCONCELLOS; DIEGUES; SALES, 2007, p. 4). Os autores
também afirmam que, na verdade, os movimentos de pescadores só vieram a ocorrer a
partir de 1968, com a implantação das comunidades eclesiais de base da igreja católica,
aí inserida a pastoral da pesca. Para os autores as principais organizações junto aos
pescadores foram a Marinha de Guerra, as Ligas Camponesas e a Igreja Católica, sendo
a Marinha a criadora das Colônias de Pesca no litoral brasileiro, durante muito tempo
a única forma organizativa dos pescadores. Em Santa Catarina, as colônias contam com
cerca de 45 mil associados. Segundo informação coletada na Federação de Pescadores
de Santa Catarina – que inclui tanto o litoral quanto águas do interior (com quatro
colônias: Z-29/Chapecó; Z-34/Concórdia; Z-35; São Carlos, Z-38/Joaçaba) – o Estado
contava, em 2011, com 39 colônias, e estava em discussão a instalação da colônia Z-40/
Lages. Sobre essa temática, ver: Vasconcellos, Diegues e Sales (2007); Leitão (1997). Há
estados brasileiros em que também é forte o trabalho da Pastoral dos Pescadores, ligada
à Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). No litoral catarinense esse
trabalho ocorria em Laguna, na região Sul, mas não se trata de um trabalho estabelecido
nas demais localidades. Por exemplo, ao conversar com representantes da Diocese de
Itajaí, fui informada de que naquela região ele não é realizado. Uma das justificativas é
que a ênfase maior é na pesca industrial.
Introdução 23
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Mergulhar, mergulho, mergulhando são expressões utilizadas como metáfora que
querem dizer respeito à especificidade de meu campo, que é mar, mas também a um
dos pressupostos centrais do trabalho etnográfico que preconiza viver intensamente
o estar em campo. A expressão “é preciso mergulhar” me foi instigada por minha
orientadora, Sônia Maluf, durante um de nossos muitos diálogos. Bachelard (2008),
ao falar sobre os obstáculos epistemológicos (experiência primeira, conhecimento
geral, obstáculo verbal, conhecimento unitário e pragmático, obstáculo substancialista,
obstáculo animista, obstáculo do conhecimento quantitativo) preconiza que urge ao
conhecimento epistemológico uma construção que vai do interior ao exterior, sendo
que muitas vezes prevalece a experiência externa evidente, se escapando a crítica pelo
mergulho na intimidade (BACHELARD, 2008, p. 121, grifo nosso). É neste sentido que
mergulho se refere em Maluf à necessidade de adentrar ao campo de forma profunda,
o que corrobora com Bachelard quando ponderamos que quanto mais o mergulho
adentrar a intimidade, possivelmente mais complexos serão os elementos encontrados
que nos permitirão criticar, questionar e ponderar sobre o vivenciado. Para Amit (2000,
p. 6), “the notion of immersion implies that the ‘field’ which ethnographers enter exists as
an independently bounded set of relationships and activities which is autonomous of the
fieldwork through which it is discovered. Yet in a world of infinite interconnections and
overlapping contexts, the ethnographic field cannot simply exist, awaiting discovery”.
Mantive a idade da ocasião do trabalho de campo, entre 2010 e 2012.
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Barley (2006, p. 100) observa em especial que “a calendarização dos acontecimentos
na Terra dos dowayos é um pesadelo para quem quer que procure planejar, além dos dez
minutos seguintes”. O autor observa que os dowayos organizam as coisas a seu próprio
jeito, em um tempo ao qual ele levou muito tempo a habituar-se.
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Bachelard (1994), ao falar do que define como temporalidade, diz que em tudo há
uma ritmanálise que modula momentos de agito e de descanso em uma composição
temporal que faz parte da duração. Aqui, do fazer-se pescadora e do viver na/da pesca.
Mulheres e o mar 28
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A barra é o local limite para saída das embarcações em Barra do Sul. Quando o
tempo estava ruim, era comum os pescadores voltarem do local chamado boca da barra.
A boca da barra é o perigo e, ao mesmo tempo, a permissão, pois é ali que o mar mostra
se deixa sair para mais um dia de trabalho ou se não permite essa saída. É o ponto crítico
de perigo, de possibilidade de acidente. Da barra para dentro é a calmaria. Sair da barra
implica ir para o mar aberto e, portanto, para as surpresas que ele reserva. Quando em
campo, eu ficava em vários momentos diferentes na saída da barra apenas observando as
embarcações saírem e voltarem, momentos em que percebi que todas saíam e voltavam
pelo lado direito da barra, de quem olhava de dentro para fora, demonstrando que
há uma forma, uma técnica, um ponto-chave, para sair e entrar na barra, dando mais
abrigo e segurança às manobras das embarcações.
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Leach (1974), em uma discussão sobre a valoração e formas de ver o tempo, rememora
três histórias sobre o deus Cronos, pai de Zeus, citando como ritual mais importante o
festival conhecido como Cronia, que “ocorria no tempo da colheita, no primeiro mês
do ano, e parece ter sido uma espécie de celebração do Ano Novo” (LEACH, 1974, p.
198). O autor esclarece que o tempo de cronos não é aquele como o consideramos,
pautados “em relógios, rádios, observatórios astronômicos [...] O tempo de Cronos é
uma oscilação, um tempo que vai e vem, que nasce e é engolido e é vomitado, uma
oscilação do pai para a mãe, da mãe para o pai, repetidamente” (LEACH, 1974, p. 192,
199). Cronos, portanto, é oscilação.
Introdução 29
Segundo Safira, que viveu por vinte anos em uma ilha e que
observava diariamente as frequentes mudanças do tempo, ao explicar
sobre as diversas formas de manifestação do vento, contou-me que há,
inclusive, briga de ventos.
eram ininteligíveis: ou vai entrar uma lestada ou um terral. Ontem já deu rebojo.
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Dependendo da localização geográfica, o impacto dos ventos se dá de forma
diferenciada. O vento sul traz, geralmente, marés agitadas, mas também, na época da
tainha, de maio a julho, traz esse peixe, que é muito esperado, e que migra de sul para
norte do estado, e do país.
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Mutuca é um pequeno inseto que, ao picar, provoca muita coceira, podendo produzir
sérias reações alérgicas.
Mulheres e o mar 30
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Durham (1988, p. 33) considera dois tipos de participação: a objetiva (que estaria mais
afeita aos trabalhos com povos indígenas) e a subjetiva (pesquisa realizada nas cidades),
sobre a qual diz que é preciso ter cuidado para não cairmos em análises a partir de
categorias nativas. Pondera ainda sobre os meandros de quando uma pesquisa passa de
observação participante para uma participação observante, resvalando para a militância
(DURHAM, 1988, p. 27). Para a autora, ter-se-ia que ponderar uma discussão apurada
sobre questões teórico-metodológicas e epistemológicas aí envolvidas. Segundo ela, a
observação participante é um trabalho importante, mas é preciso avançar na procura
de novos caminhos (DURHAM, 1988, p. 34). Considero que a observação participante
é o que nos propícia a aproximação com o campo. É o princípio do que o decorrer do
tempo em campo permitirá vivermos e que eu estou qualificando como uma experiência
densa. Entendo que cabe um salto em termos de avançarmos no que Malinowski (1976)
postulou. A observação participante do autor estava contextualizada em uma antropologia
feita a partir da varanda, se podemos assim pensar. Atualmente, considero que precisamos
qualificar nossa estada em campo como participação que contempla observação, inserção
no cotidiano, afetação e uma disponibilidade de vivenciar uma experiência densa.
Introdução 33
19
Leiris (2007), ao falar sobre “A África fantasma” disserta sobre suas decepções em
que o campo lhe permitiu desmitificar ilusões anteriores. Na apresentação da obra,
Fernanda Peixoto afirma que “é de decepção que nos fala Leiris ao longo do relato: a
partida, rodeada por imagens românticas e fantasias de evasão; o cotidiano em terra
estranha; o regresso, definido antes por frustrações que por conquistas [...] a narrativa
aponta assim para a desmistificação da viagem, das realidades encontradas e do próprio
Mulheres e o mar 34
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Leiris fala sobre o que considera uma rotina monótona permeada pela mesmice que
tem o efeito permanente de paralisar o tempo em que, segundo ele, nada acontece: “as
cidades e os lugares se sucedem no correr das horas, das jornadas, das estações, dos
meses do ano. Mas como a viagem etnográfica não narra aventuras – ao contrário,
está enraizada na rotina –, seu registro frisa monotonia e tédio” (LEIRIS, 2007, p. 32).
Considero que é aí, no que parece a mesmice, que está a possibilidade e de onde emerge
a experiência da etnografia.
Introdução 37
21
Outsider: intruso. Uso o termo no sentido de Elias (1994), ou seja, pensando que
eu não era nem seria membro daquele grupo social. Embora não fosse rejeitada ou
excluída, estava claro para mim ser eu “de fora”; portanto, de certa forma, uma intrusa.
Por outro lado, Becker (2008, p. 15) utiliza o termo no sentido de “alguém de quem
não se espera viver de acordo com as regras estipuladas pelo grupo”. Embora eu me
propusesse a viver em campo as regras estipuladas pelo grupo, eu não fazia nem faria
parte daquele grupo. Eu e elas sabíamos disso.
22
No diálogo entre a sombra e o viajante, o viajante afirma: “[...] Para que haja beleza
do rosto, clareza da palavra, bondade e firmeza de caráter, a sombra é tão necessária
quanto a luz. Não são adversárias: antes, elas tomam amigavelmente a mão uma da outra
e quando a luz desaparece, a sombra foge atrás dela” (NIETZSCHE, 2007, p. 14).
23
Estivas são troncos de madeira que servem de apoio para tirar as embarcações dos
ranchos e colocá-las na praia; e vice-versa. Elas são dispostas em sequência sobre a areia
e a embarcação deve deslizar por cima delas à medida que são empurradas, no caso pela
pescadora e por sua sombra. As estivas que essa pescadora usava pesavam entre 15 e 25
quilos cada uma, o que ela levantava com facilidade. Eu comecei pelas mais leves.
Introdução 39
24
O português correto seria “trabalhaste”; porém, como se trata de um jeito muito
próprio de elas falarem, mantive a expressão, assim como manterei em outras ocorrências
similares neste livro.
Mulheres e o mar 40
o que estiver por ser feito. Eu garantia categoricamente que não iria
marear, ou seja, enjoar em alto-mar.25 Porém, para garantir que não
teria qualquer inconveniente e que não interferiria no ritmo de trabalho
delas, municiei-me com um pequeno estoque de medicação própria
para evitar enjoos. Internamente ponderava que nunca se sabe quando
nossos corpos podem nos trair, colocando em risco o estabelecimento
de uma relação de confiança em campo. Nunca fiz uso da medicação,
mas, por precaução, sabia que estava comigo. Para garantir que não
enjoaria, também estabeleci por norma não comer antes de sair ou
comer parcimoniosamente. Impus-me o jejum como forma de prevenir
qualquer possibilidade de enjoo.
Se eu mareasse, como dizem, colocaria em risco a continuidade
da pesquisa, tendo em vista que alguém vomitando é sempre uma
desagradável interferência dentro da embarcação. Afora algumas
experiências iniciais em que me colocaram à prova, como pedir que eu
me sentasse próximo à saída da fumaça do motor, ou propositadamente
acelerar a embarcação fazendo círculos de idas e vindas no mar, ambas
para testar minha capacidade de não marear, tornou-se comum ouvir de
pescadoras e seus camaradas: tudo bem?
Em um dos dias em campo, fui colocada à prova pelos camaradas
de uma das pescadoras, seu filho e um de seus irmãos. Era a primeira
vez que saía com eles. Depois de colocarmos as redes em três diferentes
pontos, as quais só seriam retiradas no dia seguinte, seu irmão gritou
para seu filho: “agora vamos procurar aquela rede que perdemos ontem”.
A pescadora, surpresa, perguntou: “perderam uma rede ontem? Como
não me falaram nada?” Inicialmente desconfiei que houvesse algo
errado, mas, imediatamente pensei: eles não fariam isso comigo! E
passei a ajudar a procurar a rede, perscrutando atentamente o mar. Eles
davam voltas e voltas, aceleravam a embarcação que fazia a água fria do
mar entrar pela gola da capa e escorrer em um filete até minhas nádegas.
Depois, diminuíam e faziam outra volta; mais uma, até que resolveram
voltar. Ao chegarmos a terra, minha suspeita se confirmou quando o
marido da pescadora, que havia ficado remendando redes, perguntou:
quando embarcou no litoral do Rio Grande do Sul para realizar sua tese de doutorado.
Ele relata o seguinte sobre se deparar com a possibilidade de enjoo e o que fez para
preveni-lo: “notei que faziam sempre a mesma pergunta: se eu já havia navegado. Ao
responder, percebia aqueles sorrisos que faziam alusão ao enjoo. Com a ajuda dos
remédios, consegui superar em parte o mal-estar, evitando vomitar, o que demonstraria
uma fraqueza perante o grupo” (ADOMILLI, 2007, p. 76).
Introdução 43
26
Ocorrem muitos acidentes em embarcações cujo eixo fica exposto; por isso o cabelo
recebe atenção especial para evitar qualquer imprevisto, devendo estar totalmente preso.
Muitas usam boné ou gorro. Uma das pescadoras me contou sobre um episódio que
viveu há alguns anos, quando o cabelo foi puxado pelo eixo quando ela se abaixou na
embarcação. Ficou totalmente careca, e esse fato desencadeou um quadro de depressão.
Segundo ela, por causa da vaidade: “não é porque é pescadora que não quer se sentir
bonita. Quando me vi careca, não aguentei, tive depressão”.
Macacão feito de uma espécie de plástico grosso, cujo nome advém de épocas
27
passadas em que os pescadores literalmente passavam óleo na roupa para que tivesse
uma maior durabilidade, segundo depoimento oral. As pescadoras que trabalham nas
embarcações menores não costumam usá-lo.
Introdução 45
28
Já no final do trabalho de campo, aprendi com uma das pescadoras uma de suas
invenções: uma garrafa PET transformada em um seguro urinol que se encaixa
perfeitamente entre as pernas, evitando que se molhe muito a calcinha ao urinar em
alto-mar.
Mulheres e o mar 46
29
Todas também me pediram cópia impressa do que eu havia lido, e seis delas sugeriram
que eu fizesse um livro com as narrativas e entregasse uma cópia para cada pescadora.
Enquanto não escrevia o livro, fiz uma compilação na íntegra das narrativas, encadernei
e lhes entreguei.
Mulheres e o mar 48
[...] É do campo, e não de fora dele, que vêm os fios que vão
compor a escrita. É preciso considerar como puxar esses fios, de
um material às vezes enorme, abundante, desordenado, regis-
trado das mais diferentes formas (diário de campo, entrevistas
anotadas, entrevistas gravadas, registros visuais, sonoros,
mentais). É preciso trabalhar esse material, e a melhor maneira é
ler, ouvir, passar e repassar e aos poucos começar a fazer alguma
coisa que a gente faz quando lê um texto mais difícil: anotar,
fichar, mapear os conceitos, as expressões, cartografar esse
material, reuni-lo em mapas, constelações. Lévi-Strauss dizia
sobre a análise dos mitos que o etnógrafo deveria se impregnar
deles, lê-los tantas vezes quanto necessário para tê-los na cabeça,
conhecê-los por dentro. A gente pode transpor essa lição para
o conjunto do material etnográfico de uma pesquisa, em todos
os seus registros – passar e repassar, ler e reler, e a partir daí
construir confluências, dissonâncias e consonâncias, encontrar
sentidos nas convergências, mas também nas divergências. Esse
é o momento também de organização e classificação de todo
esse material. E num segundo momento tentar perceber como
essas confluências e dissonâncias podem nos ajudar a estabelecer
perguntas e a colocar problemas em relação [...] Escrever é
percorrer um caminho. (MALUF, 2010, exposição oral).
BRASIL DE ÁGUAS:
ANTROPOLOGIA E PESCAS
USP, “onde lecionou de 1944 a 1969”. Embora tenha trabalhado durante todos esses
anos, a professora nunca concluiu sua tese de doutoramento, a qual Ciacchi se refere
como “inconclusa e desaparecida tese de doutorado”, afirmando que seria uma peça
importante para dar sentido à importante produção teórica de Gioconda Mussolini
(CIACCHI, 2007, p.182).
Mulheres e o mar 52
31
O território brasileiro é banhado pelo Oceano Atlântico, desde o cabo Orange até o
arroio Chuí, numa extensão de 7.408 km, que aumenta para 9.198 km se considerarmos
as saliências e as reentrâncias do litoral, ao longo do qual se alternam praias, falésias,
dunas, mangues, recifes, baías, restingas e outras formações menores. Ao todo, 17 dos
27 estados do Brasil são banhados pelo mar. A maior parte está localizada na Bahia,
com 932 quilômetros (12,5% do total); seguida de Maranhão, 640 km; Rio de Janeiro,
636 km; Rio Grande do Sul, 622 km; São Paulo, 622 km; Amapá, 263 km; Ceará, 573 km;
Pará, 562 km; Santa Catarina, 531 km; Rio Grande do Norte, 399 km; Espírito Santo,
392 km; Alagoas, 229 km; Pernambuco, 187 km; Sergipe, 163 km; Paraíba, 117 km;
Paraná, 98 km e Piauí, a menor área, com 66 quilômetros (LITORAL..., 2013). Faço
alusão a essa dimensão para referir-me ao fato do quanto agucei minha cautela para
falar sobre a pesca no Brasil, até porque ela não existe como uma única pesca. Como já
referido na introdução deste trabalho, são muitas formas, seja quando nos referimos aos
locais onde são realizadas, como em mar, rio, mangue, lagoa; seja aludindo a territórios
como Rio Amazonas, Nordeste Brasileiro, Litoral Catarinense; seja no que diz respeito
a apetrechos, técnicas e armadilhas diversas, como rede, anzol, puçá, espinhel, cultivo
com as mãos, com flechas, com linha, entre outras possibilidades.
Capítulo 1 | Brasil de águas 57
Companha diz respeito aos camaradas que compõem os tripulantes de uma pequena
32
que não seja como embarcada: “as únicas atividades pesqueiras realizadas
também por mulheres são a pesca do camarão e do siri feitas na beira da
lagoa” (MALUF, 1993, p. 36). E embora ela tenha observado que o produto
da pesca das mulheres era utilizado na alimentação familiar, suponho que
em alguns momentos de dificuldade econômica era também vendido
visando à aquisição de outros para o consumo familiar.
Também, em 1975, Maria das Graças Tavares realizou sua
dissertação de mestrado sobre a composição e organização de grupos
que exploravam o mar de Icaraí, no litoral cearense, em que pressupunha,
inicialmente, que os grupos de trabalho seriam influenciados
especialmente pelo parentesco, pela vizinhança, pelo compadrio, em
vez de outros fatores como produtividade, lucro e eficiência. No entanto,
o trabalho de campo lhe mostrou que, muito mais do que os fatores
inicialmente pensados, era a maximização da produção o motivador
central, sendo os demais fatores subordinados a este. Segundo a autora,
o resultado de sua pesquisa contribuiu com uma reavaliação do papel
do parentesco na composição de tripulações e grupos de trabalho em
torno da pesca. A afirmação da autora se faz interessante no sentido
de ponderarmos que são muitos os contextos pesqueiros e, portanto,
muitas as formas como a atividade da pesca se organiza. Nesse sentido,
encontrei como motivador central de agrupamentos em torno da pesca
a junção de uma tríade composta por parentesco, amizade e disposição
para o trabalho, o que será abordado adiante.
Juliana Pereira Lima Caruso, em 2011, ao realizar sua pesquisa
na Costa da Lagoa, Ilha de Santa Catarina, sobre a fuga matrimonial,
constatou uma preferência pela união entre pessoas do mesmo lugar,
e observou um destaque para cônjuges ligados por algum laço de
parentesco, como os primos. Ao fazer um paralelo com a renda de
bilro, “onde as flores da renda são ligadas umas às outras por inúmeros
fios”, a autora conclui que a fuga é como uma pétala da renda, “que
depende de inúmeros fios para existir” (CARUSO, 2011, p. 120).
A fuga, dessa forma,
34
Encontrei duas variedades do pirão de farinha de mandioca: escaldado, feito com
água fervendo. Ou feito com água fria que, em algumas localidades era denominado de
jacuva, como em Florianópolis; e em outras, de xiputa, como em São Francisco do Sul.
Capítulo 1 | Brasil de águas 65
35
Quist (2005), ao dizer que está satisfeita com o conteúdo da Declaração do ICSF
na Conferência Internacional do Trabalho, que defende a ampliação da definição
de “pescador”, pondera que seria necessário incluir aí o que se denomina de “esposa
colaboradora” (collaborating spouse). Trata-se de mulheres que trabalham no
empreendimento de pesca da família, mas não possuem outro estatuto que não seja
o de esposa de pescador, a exemplo do que vimos no Brasil. Seu trabalho é visto como
uma continuação das tarefas domésticas em que ela não tem direito de representar o
empreendimento familiar, ser eleita nos conselhos das organizações de pescadores ou
se beneficiar como profissional na previdência social. Quist esclarece que em relação
à “esposa colaboradora”, a legislação na França já considera essa condição, o que foi
instituído como fruto das demandas das esposas de pescadores na Bretanha após a
crise do setor pesqueiro naquele país. As mulheres reivindicaram o estatuto de esposa
de pescador a fim de terem direito a se aposentarem, direitos profissionais e acesso
a treinamento profissional, o que alcançaram em 18 de novembro de 1997, com a
aprovação da Lei de Orientação da Pesca. As esposas de pescadores ganharam assim o
estatuto correspondente, podendo se aposentar, representar os maridos nos conselhos
econômicos e nos programas de treinamento.
Capítulo 1 | Brasil de águas 71
não é ainda reconhecida por si só, mas tomada como uma espécie de
apêndice de um homem.36 Pensar a mulher como um sujeito – mulher/
pescadora – que trabalha em terra ou que embarca, remenda ou faz
redes, limpa, eviscera, tanto quanto ou, em alguns casos, mais do que ele,
ainda parece estar longe de ser uma conquista efetiva para as mulheres
que atuam na pesca, assim como parece estar longe reconhecer como
pesca as muitas atividades que estão além do ato de trazer seres vivos de
ambientes aquáticos (MANESCHY, 2000, p. 88).
Como já dito, minha pesquisa foi realizada no litoral de Santa
Catarina. É central, porém, frisar que não basta dizer de forma genérica
“o litoral”. É preciso relembrar aqui que, ao percorrer esse litoral, me
detive em algumas localidades, tais como Governador Celso Ramos,
São Francisco do Sul e Barra do Sul, região Norte do estado, o que
quer dizer que se tivesse realizado meu campo em outras localidades,
o resultado seria diferente, embora eu ainda estivesse falando do litoral
catarinense, além do que, outros pesquisadores poderiam fazer suas
pesquisas exatamente onde fiz e outros olhares seriam trazidos à tona
após a realização do campo.
Ao compor minha pesquisa, guiei-me por questões que diziam
respeito à existência de pescadoras embarcadas (Existiam? Quantas?
Onde? Com quem tinham aprendido a atividade?), a partir das quais
me desloquei em idas e vindas e novas idas. Como resultado, o trabalho
me trouxe como diferencial, em relação aos estudos sobre pesca aos
quais tive acesso, a existência de mulheres trabalhando embarcadas
na denominada pesca artesanal catarinense. Ou seja, na pesca simples
(DIEGUES, 1983; MALDONADO, 1994), compondo dados do que
considero ser uma contribuição interessante não só para a trajetória dos
estudos sobre pesca na antropologia brasileira, mas centralmente como
subsídios que poderão contribuir para respaldar a formulação futura de
políticas públicas voltadas às pescadoras.
A partir do momento em que meus dados de campo desconstroem
a pesca como espaço exclusivamente masculino, eles me apontam que há
36
Segundo Beauvoir (1991, p. 10), “a humanidade é masculina e o homem define
a mulher não em si, mas relativamente a ele [...] o homem é pensável sem a mulher.
Ela não, sem o homem”. Para a autora, é a mulher que se diferencia, determina-se em
relação ao homem; nunca ele em relação a ela. Ele é o absoluto; ela é o Outro. A autora
ainda afirma que “o casal é uma unidade fundamental cujas metades se acham presas
indissoluvelmente uma à outra: nenhum corte é possível na sociedade por sexos. Isso
é que caracteriza fundamentalmente a mulher: ela é o Outro dentro de uma totalidade
cujos dois termos são necessários um ao outro” (BEAUVOIR, 1991, p. 14).
Mulheres e o mar 72
37
A autora também chama a atenção para as dificuldades, muitas vezes, de localizar
trabalhos cujo título não deixa claro que trata sobre a temática em questão, mulheres
e pesca. A autora se refere ao catálogo da ABA, no qual sua própria dissertação de
mestrado, que aborda a relação homens e mulheres em uma comunidade pesqueira,
aparece sob a rubrica “trabalho”.
Mulheres e o mar 74
desses povos é maior do que aquilo que pode ser compreendido por
qualquer análise singular”.
Motta-Maués (1999, p. 382) fala em um jogo de invisibilidades
ao qual se refere como “dos homens pescadores, das mulheres em
comunidades de pesca”. Segundo ela, em relação aos pescadores, haveria
uma invisibilidade que se dá de fora para dentro, no nível mais formal
e público do estado, por exemplo. Quanto às mulheres, haveria uma
dupla invisibilidade,
38
Bachelard (2006) disserta sobre o fato de o espírito pré-científico desejar a unidade
como um princípio, o que considera que sempre é realizado sem esforço, pois, para tal,
basta definir uma maiúscula em que não cabem contradições e se negam as dualidades.
“O que é verdadeiro para o grande, deve ser verdadeiro para o pequeno, e vice-versa.
À mínima dualidade, desconfia-se de erro” (BACHELARD, 2006, p. 107).
Capítulo 1 | Brasil de águas 77
MULHERES PESCADORAS:
NARRATIVAS AUTOBIOGRÁFICAS
que não é preciso só querer; é preciso saber narrar uma vida. E para
saber narrar uma vida é preciso tê-la vivido. Aí reside a proposta que
denominei como narrativa autobiográfica de pescadoras.
As narrativas não têm nem me foram apresentadas em um sentido
linear. Ao narrar, as narradoras iam e vinham em suas trajetórias,
oscilando entre o vivido enquanto meninas e o que vivenciavam como
pescadoras. Apresentar essas narrativas na íntegra tornaria este livro por
demais volumoso. Coube-me fazer uma compilação visando propiciar
ao leitor o acesso ao que elas escolheram narrar a partir da proposta
de uma apresentação inicial de si mesmas, com um cuidado atento
para não transformar “ambiguidades e diversidades de significado da
situação da pesquisa em um retrato integrado” (CLIFFORD, 2008,
p. 40), até porque no decorrer do livro outros trechos de suas narrativas
e de outras pescadoras emergirão.39
No entanto, trechos do que me foi narrado não serão
publicizados, considerando aspectos que dizem respeito a episódios de
constrangimento e sofrimento que, se aqui fossem expostos, poderiam
ter sérias implicações éticas no sentido do preconizado pelo código
da ABA (1986), quando diz que “constitui direito das populações que
são objeto de pesquisa o direito de ser informadas sobre a natureza
da pesquisa e o direito de preservação de sua intimidade, de acordo
com padrões culturais”. As pescadoras compartilharam comigo esses
episódios a partir da relação de confiança que foi sendo construída no
decorrer do trabalho de campo, o que, no entanto, não me dá o aval
de tornar públicas questões extremamente privadas. Pelo contrário, por
ser uma antropóloga-interlocutora que se propôs a uma escuta atenta,
tenho este comprometimento com a antropologia e tenho com elas o
compromisso de não tornar público tudo o que me foi narrado a partir
da confiança que com elas construí.
39
Nos demais capítulos, nos depoimentos alusivos a críticas, sugestões, ponderações,
aparecerão como “uma pescadora”, visando preservar-lhes a identidade, como já
esclarecido. Em relação à redação de suas falas, em alguns trechos, excluem-se vícios
de linguagem que tornavam a leitura extremamente cansativa, como os sucessivos
né, então, daí. Fiz esta opção tendo em vista uma experiência vivenciada por ocasião
de minha especialização em Gerontologia, em 1992, quando apresentei o trabalho
final reproduzindo as falas como me foram ditas, ao que fui questionada por meus
interlocutores sobre o porquê de a minha fala se apresentar corretamente e as deles
com erros gramaticais e vícios de linguagem. Tal episódio me fez refletir sobre a questão
de nossa autoridade/humildade/honestidade no processo de escrita e de apresentação
do outro. Este exercício também foi realizado por Maluf (1993) no seu trabalho sobre
narrativas de bruxas na Ilha de Santa Catarina.
Capítulo 2 | Mulheres pescadoras 83
2.1.1 Josi
40
As narrativas foram coletadas no decorrer de 2011, data na qual mantenho a idade
das pescadoras.
Mulheres e o mar 84
ITAPOÁ
Itapema do Norte
BALNEÁRIO CAMBORIU
Barra
PARANÁ
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LAGUNA
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Visitei também Garuva, Navegantes, Biguaçu, São José e Palhoça, onde conversei
41
43
Na embarcação que Josi trabalhava, o pagamento era dividido por partes, e cada
tripulante ganhava uma parte. Como Josi realizava uma atividade considerada de maior
responsabilidade, que consiste em guiar o bote, ela recebia uma parte e meia. No final
do mês se somava o que deu e se dividia: metade para a embarcação visando pagar
custeios, combustível, consertos, e metade entre os tripulantes. Quem realiza atividades
diferenciadas, como Josi, recebe mais do que os que atuam apenas como tripulantes.
Mulheres e o mar 86
outra. Muda de mês para mês. Depende a época. E também faço filé. O
meu marido é professor, também faz, mas é mais demorado. Eu, em duas
passadas, tiro o filé inteiro. Já estou mais acostumada. A pesca é uma
área que tem desafio e, para mim, quanto mais desafio melhor. Quanto
mais diz que não dá, mais eu vou lá e faço. Tudo tem que ser uma coisa
bem mais planejada. Além de trabalhar, tens que saber administrar o
dinheiro, porque não vem todo mês certinho, tem que fazer economia.
Tem que saber o que entra, o que não entra. Tem que saber que este
mês deu fraco na pesca, mas eu fiz um filé, já entra mais um dinheiro.
Entendesse? É um jogo de cintura. Tem que ter muita força de vontade
também: não tem domingo, feriado, Natal. É direto.
2.1.2 Rosinha
2.1.3 Fátima
na Cipla. Casei com 23 anos, ele tinha 25. O futuro dele já era pra cá
mesmo. Mais ou menos em 1994 vim para Barra do Sul. Montamos um
mercado. Quando fechou o mercado, abrimos um bar. Também gosto
de trabalhar na igreja. Sou ministra da eucaristia. Comecei a pescar com
o meu marido que me ensinou. Aprendi com ele. Pesquei siri, aprendi
a remar. No começo, fazia errado porque para remar tem um jeito, com
o remo para frente e para trás. Eu pesco há 15 anos, mas tive problema
com a documentação. Descascava siri, sozinha, pescava, levava. É um
dinheirinho que entra pra gente. O dinheiro é um monte só. Daí a gente
decide para que quer. Decide junto: é para construir a casa? Então é
para a casa. O barco pequeno está no nome dele. O grande vai para o
meu nome. Mas sempre sou eu que corro. Sempre a mulher né. Eu que
tenho que olhar. Pescamos mais com rede de cerco. Nossa rede é em
torno de 12, 13 metros, malha seis, sete e oito grudada num pano. A
gente paga para remendar. Pegamos peixe, o parati. O nosso horário,
ou vamos às 10 e voltamos duas, três horas. Ou vamos à uma e meia e
voltamos às cinco horas. Às vezes vamos à noite, mas preferimos ir de
dia. Depende quando está dando o peixe e também depende do peixe.
A pesca do parati é assim: ele espana. Então tu vais bem quietinha. Daí,
o companheiro de trás é quem vê porque eles vão atrás. Nós na frente
porque eles são mais fortes. Daí ficamos quietos, escutamos. Daí faz tac
tac, tac. Daí sabe que é o parati. Então cerca e faz o caracol. Um vai no
remo, eu, e ele bate porque ele tem mais força. Assim, o parati corre
para dentro. Vendemos ali na minha sogra. Já é uma referência. Todos
pescam, os quatro casais, e botamos pra vender ali na minha sogra. A
maioria já acostumou ali porque é tudo fresquinho. Hoje, vendemos o
parati pequeno a três reais e o grande a quatro reais. No inverno é o mais
difícil. Ultimamente, sinto problema de coluna. Quando dói muito,
paro de ir um pouco. Acho que sinto muito o corpo porque é mais para
homem, mas tem que ajudar porque se vai outro camarada, divide em
três. Se eu vou junto, eu sou a camarada, fica pra gente. As mãos é o que
mais usa para puxar as redes. Daí responde no ombro. Dá dor. Ataca
a coluna porque tudo depende dela. Acho que a maioria das mulheres
que conheço não conseguiria fazer este trabalho porque é muito difícil.
Na verdade, eu não gosto, mas precisa. Outra coisa é que pescando é
também uma meditação pra gente. Mesmo que pegue pouquinho,
a gente agradece a Deus. Claro que se pegar mais, fica mais contente.
Daí a gente fica naquele silêncio. Agradece a Deus, tudo o que ele fez
pra gente. Eu sinto a presença de Deus junto comigo. É paz, alegria,
tranquilidade. Tá no meio do mar. A gente tem que se cuidar também
Capítulo 2 | Mulheres pescadoras 89
porque é perigoso. Como a gente luta, Deus vai ajudando. Sou ministra
da eucaristia. Sou coordenadora dos ministros. O meu marido também
é ministro. A gente visita os doentes. Isso faz um bem! Eu estudei até a
sétima série. O meu marido até o quarto ano. Eu tenho a Juliana, de 26
anos, que fez o segundo grau, e o Otávio, de 19 anos, é seminarista. Deus
me preparou: se fosse para dar o teu filho, você daria? Deus prepara bem
a gente. Quando a gente diz sim, as coisas acontecem. Na pesca, o vento
mais perigoso é o rebojo porque além do vento, ele faz onda. Ele roda
e a água cai dentro da batera. Um dia, deu. Me grudei na batera com as
mãos e os pés. Me deu um apavoramento. Por isso tem gente que morre:
de apavoramento. Por isso, não é toda mulher que vai.
2.1.4 Geni
44
Durante o meu trabalho de campo, em junho de 2012, Geni recebeu o diagnóstico
de câncer de pele em estágio que demandava o início imediato do tratamento com
radioterapia, exigindo cuidado com a exposição solar e, portanto, o seu afastamento das
atividades da pesca. Por outro lado, como seu filho havia casado com uma moça que já
tinha uma filhinha, Geni estava como cuidadora da menina enquanto a nora trabalhava
fora. As duas questões serão abordadas em capítulos posteriores.
45
Segundo explicação de Geni, o “pega” é uma armadilha feita com ferro redondo.
Deixa duas pontinhas e amarra com um pau que se pega no mato. O que a mãe usa hoje
é o covo (que é retangular), mas ela chama de “pega” também. E é certo porque também
pega siri.
Mulheres e o mar 90
de parati, rede de cerco. Lá para fora é rede de caceio, solta a rede com
a maré. De caracol. Faz o caracol com o barco. A rede de caceio é para
a anchova, guaivira. A de caracol é mais para pescadinha. Fiquei cinco
anos com o primeiro marido. Ele morreu de tétano. Quando a Jaque
tinha 12 dias, ele morreu. O Lídio já tinha cinco, porque eu casei ele já
estava na barriga. Continuei na mesma rotina. Eu ia pescar com os meus
irmãos. Ia na pesca do parati. Eu fiquei, vamos supor, um ano. Depois de
um ano fiquei com o Gel e depois de um ano fiquei com ele. Daí, fomos
morar juntos. Continuei na pesca com ele, que já era pescador. Daí, o
Lucas eu tive quando já estava há dois anos com ele. Gosto da pesca.
Pra pescar lá fora, sai as três da madrugada e fica até às 11 horas. Eu
pesco há 30 anos, mas só faz 15 anos que tenho a carteira de pescadora.
Eu fiz a inscrição em dois de junho de 1997. A gente nem pensava em
fazer isso porque naquele tempo não fazia das mulheres ainda. Então a
gente já pescava, mas não tinha a documentação. Sou a coordenadora
do dinheiro. Mas hoje em dia a gente vê que diminuiu a pesca. Até o
camarão diminuiu. Agora nem vou tanto no inverno porque é mais
difícil. Tem muita escassez. É mais para o verão. Daí eu vou com ele,
tanto no peixe quanto no siri. O siri é mais que o peixe no verão. Com
essa água viva que está aí não dá. É uma praga. Nadar? Só sei nadar
cachorrinho. Na pesca, o corpo judeia46 muito. O mais difícil é puxar
a rede lá fora. Ainda mais eu que puxo a parte do chumbo que é mais
pesado. Eu tenho que fazer força no bote para ficar na posição certa. Ele
já puxa mais o lado da cortiça porque daí ele puxa mais pano de rede
e eu não consigo. Na verdade, o trabalho mais pesado fica comigo, no
bote. A parte do corpo que mais se usa é as mãos, os braços. Fica tudo
dolorido. Acho que de tanto fazer força. Com o tempo vai aumentando
a dor. Acho que de tanto fazer força. Tem dias que nem vou, do cansaço.
Não dá. No verão é mais fácil porque dá mais peixe. Tem dias que é
terrível. Tu assistisses aquele filme Mar e fúria? Tem dias que parece
aquele filme. Um dia deu uma tempestade. Uma ventania de repente.
Desamarrou as bateras. Uma afundou. Depois, foi passando. Nunca vi
um mar tão grande na minha vida. Sabe que é bom contar a história da
gente. Quando a gente morrer, vai ficar de lembrança para os filhos e
os netos. Pelo menos uma coisa que a gente fez. Uma história. Quantas
pessoas não têm uma história para contar? Morre e não tem uma história
para contar para seus netos: uma história de luta, de guerreira!
2.1.5 Alzira
emoção muito grande pescar. Aquela rede que vem com bastante peixe
é uma emoção parecida, não é a mesma claro. Não existe comparação
entre ser mãe e ser pescadora. É diferente, mas é uma emoção tão forte
quanto. De forma diferente, mas é tão forte quanto tu vê o rostinho do
teu filho pela primeira vez. Cada peixe que tu tiras da rede, uma alegria
toma conta de ti. É emocionante, é incrível. Só quem é pescador e ama
o que faz para entender. É uma coisa inexplicável. Mas eu quero que os
meus filhos tenham uma vida melhor porque a vida da pesca não é ruim,
mas é incerta. Tem época que ganha bastante dinheiro, mas tem época
que fica muito sem poder pescar. Eu amo a pescaria, mas para trabalhar
na pesca tem que estar unido como o dedo e a aliança. O casal tem que
atuar junto, na venda, no beneficiamento para poder dar certo. Um não
é mais importante do que o outro. Eu sempre ensinei para os meus filhos
que homem e mulher no casamento têm o mesmo sexo. Isso porque tem
que trabalhar igual e sempre junto. Eu adoro o meu marido, de verdade
mesmo. Ele é o meu tudo. Claro que eu amo demais os meus filhos, lógico.
Na verdade, não sei dizer qual que eu amo mais: o marido, os filhos, a
pescaria, ou o acampamento.48 São formas diferentes de amar, mas são
parte da minha vida. Agora estou encostada, parada, mas sinto falta.
Entrei em uma depressão danada pela falta da pescaria mesmo. E ainda
tem quem diz que mulher não é pescadora. E como é. Aqui em Barra
do Sul tem umas quantas delas. […] Hoje, infelizmente, por motivo de
doença me encontro afastada da pesca porque rompi o tendão do braço
esquerdo devido a uma queda da bicicleta e estou aguardando cirurgia.
2.1.6 Cecília
48
Quando Alzira se refere ao acampamento, está falando do que considera que já
virou uma tradição da família que ela e o marido criaram, pois há cerca de dez anos
começaram a fazer uma vez por ano, no mês de julho, um período de acampamento
em região próxima, porém para a qual se deslocam de embarcação. Dizem que é o seu
período anual de férias. No entanto, da mesma forma que se deslocam de embarcação,
levam todos os apetrechos de pesca e continuam pescando no período, em teoria, de
descanso. Na ocasião do trabalho de campo, participei do acampamento com eles,
conforme já dito na introdução.
Capítulo 2 | Mulheres pescadoras 93
2.1.7 Neia
2.1.8 Márcia
Sou casada com Lourenço da Silva. Fiz 50 anos dia dois de maio.
Ele está com 52 anos. Sou casada há trinta anos. Meu nome completo é
nas costas, no que equivale à parte dos pulmões e diminuí as saídas para o mar,
principalmente quando aumentaram os acessos de tosse à noite. Ao comentar com as
pescadoras, elas me falaram: isso é o que a gente chama de friagem da madrugada.
Mulheres e o mar 96
2.1.9 Terezinha
Sinalizador luminoso.
50
Mulheres e o mar 98
a mudança para cá. Daí comecei a pescar com o meu irmão. Quando o
meu irmão voltou para Joinville pegamos outro pescador, que ficou com
a gente por dois anos. Era eu e esse pescador de camarada. Ele já era
um senhor de idade. Resolveu parar por causa da saúde. O barco está
no meu nome. Fiz minha documentação, carteira de pescadora. Estou
trabalhando até hoje. Quando comecei, queria vender camarão. Mas o
camarão estava com o preço muito baixo. A gente resolveu então limpar
o produto. Indicaram a Marisete, descascadeira. Trabalhamos juntas há
quatro anos. Além de a gente trabalhar juntas, a gente se tornou amiga.
Do mar, eu acredito que quem tem medo não entra no mar, porque o
mar tem vida. Tem dias que está uma mãe calma. Têm outros que está
uma mãe, mas uma mãe brava. É ele quem diz se a gente sai ou se volta
da boca da barra. Não tem jeito. Ele manda. Vou te dizer uma coisa
bem séria: se não gostar, não fica porque isso aqui não é fácil. Tem que
gostar. Eu nunca pensei que ia gostar. Eu podia imaginar qualquer coisa
na vida, mas não que ia fazer isso aqui. Na verdade, a gente simplifica a
história porque se for contar tudo da vida da gente, dá um livro.
2.1.10 Tina
lugar tem rede feiticeira.53 Muitos já estão cuidando. Nós vemos muitos
pescadores que trazem, com o peixe, o lixo. Nós fazemos isso muitas
vezes. O efeito nós não vamos ver agora, apesar de que já estamos vendo
muito, mas os nossos filhos, netos? Os filhos deles?
2.1.11 Cheila
como extremamente nociva, pois captura tudo que encontra. É considerada uma rede
que traz muitos danos à preservação das espécies e está proibida por lei.
Capítulo 2 | Mulheres pescadoras 101
e ver: era ele chegando. Aí, eu pensei: está aí a luz que pedi. Vou tentar.
Hoje sou casada com ele, embora no começo não quisesse nada com ele,
que ele é um alemão, como visse. Sei lá. Eu achava que não ia dar certo.
Hoje eu tenho uma família. Agora, estou sem sair para pescar com ele
porque as crianças estão muito pequenas. Eu tenho uma menina de oito,
uma de seis e o meu filho menor de quatro anos. Se eu for com ele, tenho
que pagar alguém para ficar com eles e a pesca está dando muito pouco
para poder pagar alguém. Assim que eles estiverem maiorzinhos, volto a
ir com ele. Daí, eu participo nos cursos na Epagri. Faço parte do Projeto
Cambira, que é uma cooperativa que a gente formou. Eu gosto dessas
coisas. De ir, participar. É assim a minha vida.
2.1.12 Adriana
O irmão de Adriana continua pescando com o pai e também tem a própria rede e
54
embarcação. A mãe também pesca camarão com o marido, de aviãozinho, que é uma
armadilha para pesca noturna de camarão.
55
Adriana usou o diminutivo de batera, uma embarcação usada na pesca que tem o
formato de seu fundo achatado. Quando é de dimensão pequena, costumam chamar de
baterinha.
Mulheres e o mar 102
2.1.13 Zica
2.1.14 Paulina
2.1.15 Iliete
Eu sou casada com Raul da Silveira. Ele está com 54 anos. Nós
temos cinco filhos. Marta, de 30 anos; Marcos, de 29; Marceli, de 28;
Capítulo 2 | Mulheres pescadoras 105
2.1.16 Adriana
tem os pescadores que pescam por esporte? Eles não tiram foto com
aquele peixe grande como se fosse um troféu? Assim somos nós. Quando
pegamos um cardume grande, fazemos um bom cerco, aquele é o nosso
troféu. E tem outra coisa: pescador pode falar mal de pescador; quem é
de fora não pode. Não é assim nas nossas famílias? Experimenta falar mal
de um, para ver se todos não vão defender. Sobre a vaidade, eu acho que
é fácil como outra profissão, desde a hora que a pescadora não diminua a
sua profissão. Eu me pinto, passo batom, uso brinco porque eu gosto. Eu
sou assim. Não é porque estou escolhendo um camarão, que tenho que
ter cabelo sujo; não é porque sou pescadora, que vou ganhar menos. Você
pode ganhar tanto quanto outra profissão. A gente pensa em investir cada
vez mais na pesca, nós dois. Não importa mais para nós o mundo lá fora,
buscar outro tipo de profissão; não nos interessa mais. Por isso, o nosso
interesse em preservar o ambiente para termos esta profissão por mais
tempo. A pesca para nós não é uma obrigação. É um prazer. Mas está
diminuindo. Não se pode negar. Está diminuindo cada vez mais, e não
é culpa nossa porque quem faz uma toalhinha de crochê não vai acabar
com a linha do mundo. É a indústria que está acabando com a pesca. A
traineira. E o governo incentiva mais a pesca industrial do que a artesanal.
2.1.17 Tereza
A minha irmã não. Ela pescava porque gostava mesmo. Ela era diferente
de mim: ela gostava! Desde o começo foi assim. Até hoje ela pesca,57 mas
está na casa da filha que vai ter um filho. É o primeiro neto dela. Voltando
à minha história: então fiquei adulta. Sou mãe solteira. Sou mãe solteira
dos meus três filhos. Os filhos dependiam de mim. Daí, eu trabalhava
de dia e de noite para criar eles. Tenho uma filha, com 23 anos, um filho
com 19 anos e um filho com 15 anos. A de 23 e o de 19 já se formaram;
eles terminaram o segundo grau. O mais novo está estudando. A de 23
é secretária de um consultório de dentista. O filho trabalha naquela loja
de chuveiro. A minha filha pescava, botava a rede, pescava siri enquanto
estudava. O meu filho também sabe tudo, mas teve osteomielite. Hoje
ele tem uma diferença nas pernas. Então é perigoso para ele devido à
friagem, à umidade. E porque a pesca está muito difícil. Cada um hoje
tem o seu trabalho, e o de 15 só estuda. Da pesca eu tirei tudo: o estudo, o
alimento deles. Esta casa eu não tinha. Na verdade, um tênis, eu não podia
comprar. Andei anos só de chinelo; com a mesma roupa anos seguidos
porque se quisesse comprar um tênis ou uma peça de roupa não tinha
para o pão, para o leite, para o estudo deles, para a passagem de ônibus
que sempre foi muito cara. E isso era o principal porque era para os meus
filhos. Eu era e sou responsável por eles. Como hoje. Eu vivo na e da pesca
até hoje. Quando eles nasceram eu morava em um ranchinho que era
duas peças. Numa peça fiz uma cozinha, no outro um quarto. A luz era
de liquinho. Água: era de balde. O rancho era todo furado. Botava uns
panos. Era assim. Não posso ter vergonha de contar porque foi isso o que
passei. Construí essa casinha há três anos e continuo pescando, pescando.
Tem gente que acha a pesca fácil, mas não. A gente envelhece muito, pega
muito tempo ruim. Mas era por necessidade que a gente começou. Não
tinha opção. Tinha que ir e pronto. Agora, menstruada eu não vou não.
Me poupo. Grávida eu ia até o último minuto. Só parava na quarentena.
Nunca fiz um pré-natal de um filho. O preço do ônibus sempre foi muito
caro. Se tirasse 15 reais na lagoa, tinha que pagar dez de ônibus. Então,
nunca fiz. Ainda bem que nasceram todos saudáveis. É assim na pesca: o
corpo sofre muito. Uma porque a gente se relaxa com a gente mesmo. É
como se o tempo passasse mais rápido para a gente do mar: tem muito sol,
a água salgada, o vento, o salitre. Já começa, olha pelo cabelo: o sol e o sal
Na localidade que vive Tereza, Canto da Lagoa – que é chamada de Ilha pela
57
população local porque a chegada via Laguna é por balsa – existem mais mulheres que
pescam com seus maridos, mas que, segundo Tereza, não é por necessidade: Tereza;
Cida (irmã de Tereza); Ivonete; Ivonete M.; Nilda; Glória; Fátima.
Capítulo 2 | Mulheres pescadoras 109
já toma conta. Parece que não adianta passar um creme. A pele já é mais
dura, ressecada, grossa. Diferente de uma mulher da cidade. A mulher
pescadora adoece mais rápido do que as outras. É artrose. É dor na coluna.
Ataca mais a parte dos ossos porque a gente pega muita friagem, muita
umidade. A minha mãe está com 72 anos. De tanto que pescou, perdeu os
rins. Hoje ela vive de hemodiálise. De tanta friagem deu uma infecção e
demorou muito para conseguir médico. Pelo SUS leva muito tempo, um
ano, mais. Hoje ela tem as pernas atrofiadas e vive de hemodiálise. Põe aí
no teu trabalho para ver se chega ao governo e para eles saberem que nós
precisamos disso: mais assistência na saúde. Um plano de saúde para a
mulher pescadora. Mais assistência e linha de crédito adequada para as
nossas condições e porque a gente precisa muito. Menos burocracia para
a aposentadoria, para conseguir se encostar quando estiver doente. Mais
fiscalização. E fiscalização honesta. Põe no teu trabalho. E eles não vão
poder dizer que é mentira porque tu filmasse, tirasse foto, falasse com a
gente. Não é só um trabalho escrito. A filmagem prova que é de verdade
que estivesse aqui e que falamos contigo. Quanto mais falar de nós, mais
vão ver que nós existimos, que trabalhamos na pesca. Tu perguntas se
eu hoje gosto da pesca? Eu gosto. Hoje eu não vivo sem a pesca. Hoje é a
minha vida. Antes eu tinha aquela obrigação. Hoje eu gosto. Se alguém
me oferecesse outro serviço, eu não aceitaria. De jeito nenhum! Eu me
sinto viva. A vida da pesca me dá uma sensação boa. Estar na lagoa. Ver
a natureza que Deus fez. Eu me sinto viva! Viva! É isso. Não sei se falei
dentro, como é que se diz, da tua expectativa, mas é isso que eu tinha para
te falar.
58
Embora dona Naca não considere, a forma de chamar a irmã, Mana, não deixa de ser
um apelido.
Mulheres e o mar 110
Naquela época nós só saía com o pai e a mãe. Quando tinha festa de São
Pedro, a mãe comprava roupa pra mim, mas tinha que ser tudo igual, eu
e a Nica, as duas iguaizinhas, como gêmeas: de saia plissada ou vestido
de florzinha. A minha mãe era costureira. Naquela época era assim: se
comprasse para a Nair, tinha que comprar para a Geni. As duas eram
quase do mesmo tamanho, tinham que ir pra baixo com roupinha igual.
Eu nunca fui presepeira. Olha, aquilo ali foi me dando uma coisa ruim
porque eu me acostumei na pesca. [E com quem a senhora aprendeu
a pescar?] Com meu pai. [E como foi?] Desde 8 anos eu já tarrafeava.
Eu já fazia rede e tarrafeava com 8 anos, eu. Oito; 9 anos. A minha mãe
botava as roupas do pai em mim porque naquela época não tinha roupa
para eu pescar. Eu era muito magrinha. Eu era a filha mais velha e,
naquela miséria, tinha que ir, tinha que fazer. Eu fui criada lá naquele
mato vestindo as calças do meu pai para poder ir pro mar. Já pensasse?
Com uma corda amarrada na cintura! Eu só vesti vestido para casar e
depois eu dei de presente. [Uma das filhas, que está junto no rancho de
pesca, pede: “mas a senhora não contou que, depois desses anos todos,
usou saia; ou vestido? Conta! Foi em São Paulo, na formatura da Isabel,
que eles fizeram a mãe colocar e eu não vi”.] Ah, foi. Me botaram uma
saia por aqui (altura dos joelhos) com um blazer e ficou por lá mesmo.
Eu não saí de dentro do salão. Um sapatinho meio alto. Fiquei ali dura
que nem uma estátua, eles convidavam para ir, eu tinha que ir pela mão
porque eu não sei andar de saia. [A filha: “quando eles falaram pra mim
que eles foram nessa festa lá na faculdade, eu não acreditei. Era o meu
sonho ver a mãe de saia ou de vestido; 41 anos eu tenho. Nunca vi a mãe,
nem de saia, nem de vestido”.] Não! Levei o meu filho no casamento
na igreja, fui de terninho, mandei fazer. Fui à formatura da Lucinha,
Pedagogia. Fui assim. Estou com dois sapatos novos. Um do casamento e
um da formatura. O do casamento do filhinho, encarunchou, botei fora.
Eu não uso; eu não uso salto. Pra mim, é tênis ou rasteira. Eu não sei
andar de salto, nem dançar, nada. Não dá. Eu já me acostumei. A minha
vida é isso. [Há quantos anos?] É só 49 anos! Eu tarrafeava tanto, tanto!
Chegou vez de eu ter oito tarrafas. O meu marido vendeu tudo, de tanto
que eu andava dentro da água. Era anoitecer, eu já corria pra praia. E de
manhãzinha, estava o dia clareando, eu pegava a tarrafa e ia pra praia
porque a gente morava ali, onde eu me criei, casei. Depois é que fui morar
lá onde moro. Ele vendeu as tarrafas todas. Levou para Florianópolis e
vendeu. [A filha: “e quantas vezes nós chorava porque queria ir junto com
a mãe pescar e a mãe não deixava. Aí ficava correndo pelas pedras, indo
atrás dela pelo mar. Nós chorava um monte. Desesperados. Parece que a
Capítulo 2 | Mulheres pescadoras 111
mãe ia para o mar e não ia voltar mais”.] Eu saía correndo e deixava eles.
Pequenininhos. Esse aqui foi criado lá naquela casa de cima. Ele foi pra
lá com 6 anos. E dali, eu tinha a minha batera a remo, porque toda vida
pesquei a remo. Eu puxava lá na praia da cruz. E eu me escondia quando
ia ver rede de manhã. Daí, eu saía escondida, ele dava falta. “Onde é que
tá a mãe? Onde é que tá a mãe?” Aquele não era a verdadeira sombra não,
ele era um carrapato. Aquilo era uma tristeza. Ele já começava a chorar:
“eu quero ir com a mãe; eu quero ir com a mãe”. Aí ele já sentava no meio
da estrada, que era de barro, e ficava chorando. Às vezes, eu chegava na
praia, botava a estiva, levava a batera rápido pra água. Quando eu tava
embarcando na batera ele chegava de corrida: “oh mãe, eu quero ir com
a mãe. Deixa eu ir”. Eu dizia: “Vai pra casa. Vai pra casa senão quando
eu chegar tu vás apanhar”. Dava até pena, sabe, porque eu ia na batera. A
gente rema com a frente pra praia. Eu dizia: “vai pra casa, vai”. Ele ficava
lá chorando. Porque demorou ir os cinco para o colégio. A Naizinha, a
Lucinha e o Beto, eles andaram na escola porque a diferença é de um ano
e meio cada um. Então os três estavam na aula e os outros dois em casa.
Quando eles estavam em casa, a Lucinha cuidava do Neco; mas quando
eles não estavam, era a minha preocupação. Por exemplo, eu saía de
manhã, o meu marido vinha pra baixo, esquecia, ia para o bar e ficava
no bar. Bebendo pinga. E eu preocupada. Mas, às vezes, eu chegava, ele
estava lá no terreiro brincando. Brincava. Era aquela pobreza. A minha
casa nem janela tinha. Era um buraco, não tinha nem como fechar. Era
com um saco. Um saco de estopa que eu botava. Eu, nós, somos tudo
rico hoje. Cruze! Bota riqueza nisso! Aquilo era trabalho. Tristeza! Mas
era bom. Eu tinha saúde. Eu tinha uma disposição que eu subia e descia
aquele morro correndo, aquele morro ali da praia da Cruz. Precisava ir
à praia, eu já descia correndo. E já subia correndo lá em casa. Até hoje,
se eu quiser fazer, eu faço. Não muito, mas eu ainda tento fazer alguma
coisa hoje. Mas era bom, bom demais, porque quando a gente é nova é
bom demais. Graças a Deus ainda continuo. No meio disso, eu fui pra
São Paulo, vim pr’aqui. Depois fui pra Navegantes. Depois que o meu
marido morreu, eu fui pra Navegantes, em 85. Depois voltei pra cá e
aqui vou ficar até morrer. Gosto de pescar. Só que no inverno é meio
difícil. É duro no inverno. É fogo! Muito frio! A idade que a gente tá já
não anima mais. Vontade de sete horas tá debaixo do cobertor. No sol,
eu estou com uma disposição que já saio. Agora, no tempo ruim. Ih,
fico encolhida, com dor no joelho, dor nas costas, dor nos rins, dor na
coluna. Já estou com frio porque eu sou muito frienta demais. Eu sou
frienta demais! Com 20 anos eu tinha três filhos. Eu era tão gelada, tão
Mulheres e o mar 112
gelada. Bem, eu vivia o dia inteiro no mar. Então é assim: eu sou Naca.
Sou uma pescadora de verdade!
59
Na praia do Capri, em São Francisco do Sul, quatro irmãs de Mãezinha e uma de
suas filhas participavam anualmente da pesca da tainha em um grupo que reunia cinco
mulheres e cinco homens. São elas Crescência (Quecha), Gilmara, Zenite (Zique), Gilmara
e Jaque, segundo me relatou Zenite Araújo da Silva, 48 anos, que começou a pescar com
12 anos, segundo suas palavras: comecei a jogar rede com o pai. Nessa pesca da tainha faz
muitos anos que estamos que nem lembro quanto. Saímos às cinco, cinco e meia da manhã
e voltamos às seis, seis e pouco da tarde. Ficamos mais ou menos umas sete horas.
Capítulo 2 | Mulheres pescadoras 113
levar a comida pra ele, mas tudo era gostoso porque a gente fazia com
amor e com carinho pra levar as coisas para o meu pai e o meu pai era
tudo na vida que eu tinha. Depois que ele morreu, eu sinto muita
saudade dele (emoção; lágrimas; pausa). É isso aí. [Ele era o seu
companheiro de pesca.] Ele era o meu companheiro. Tudo aprendi com
ele, com a minha mãe e com os meus irmãos. E agradeço a educação que
ele deu para nós. Nós éramos 13 irmãos. Todos os 13 irmãos eram
educados. E Deus o livre se saísse fora do sério, porque ele brigava com
nós. Eu aprendi muitas coisas com ele. [E a vida da pesca foi tudo direto
com ele?] A vida da pesca foi tudo com ele, desde o engenho à pescaria
foi com ele, e é essa vida que eu estou levando agora. Graças a Deus, a
vida que ele deu pra mim e para os meus irmãos foi uma vida boa
demais. Até hoje, agradeço a educação que ele deu pra nós: foi o meu
pai. E a nossa família está tudo desunida. Não sei por quê. Algum motivo
tem. Está tudo desunida. É isso que eu tenho que falar. Hoje eu moro
aqui no Iperoba. Eu era muito chegada ao meu pai, era a camarada dele
na pesca. Eu mesmo me emociono muito quando falo do meu pai. Eu
tive depressão quando ele morreu. Na época a gente pescava camarão de
tarrafa, camarão de picaré. Um pega lá, outro cá e vai puxando pela
lama. A gente também tinha um engenho de farinha. Eu já pesquei
parati, tainha. Eu defumava e vendia. No verão eu também trabalho na
peixaria descascando camarão e limpando peixe. Hoje o que eu pesco
mais é o parati. No inverno, maio e junho é tempo de tainha. Depois, a
tainha se acaba. É o tempo do parati. Novembro e dezembro é tempo de
camarão aqui no nosso mar. Aqui é o camarão ferrinho. Caranguejo
também é novembro e dezembro. A melhor época é no verão. Se vender
em casa, se ganha o dobro. Está escasso para nós. Então a gente vai para
o berbigão ou defumo o peixe. Nós éramos 13 irmãos, um falecido. Não
tinha que querer. Todos os filhos tinham que trabalhar. Depois, as mais
novas é que foi ficando mais leve. Tinha que cortar lenha, fazer comida.
E assim, pela pesca, sempre me interessei. E vou me interessar até o fim
da minha vida. Eu sou casada há 32 anos com o Eleomar. É Eleomar
Dias Castilho. Ele está com 58 anos. Eu casei com 18, ele com 24. Ele
trabalha na Prefeitura. Eu quero mostrar o exemplo que minha mãe deu
para meu pai para mostrar para meus filhos e meus netos. Tudo o que
acontecer ficar junto até o fim dos dias. Não é casar e separar. A pesca é
obrigatória para a nossa sobrevivência e eu comecei cedo. Minha
especialidade, como se diz, é fazer a cambira, que é uma técnica de fazer
o peixe. A gente lava bem o peixe. É cortada a cabeça, abre o peixe pelas
costas até a barriga. Põe a faca por baixo da espinha para separar a
Mulheres e o mar 114
2.3.1 A Safira
Mãezinha se refere à cópia das fotos e filmagens que eu ia fazendo à medida que
60
o trabalho de campo seguia. Ao terminar o trabalho, entreguei para cada uma das
pescadoras cópia em DVD e impressa.
Mulheres e o mar 116
disse: “eu não vou mais, tia”. Vi a mãe chorando, meio disfarçado, sabe,
e perguntei: “a mãe gosta de mim mãe, não é? Gosta né, mãe? Diz, mãe,
que gosta!”. Eu fiquei com aquela jardineirinha. Sei lá como dormi.
Mas eu lembro que foi o dia mais feliz da minha vida. Daí eu me
lembro do pai chegando depois de dias, porque ele não estava, com
uma camisa meio rosinha, com um cabeçote do barco. Quando me
viu: “Pois sim, Luiza!”. Porque ele me viu, sabe. Eu com vontade de
chorar, de emoção. Daqui a pouco passou dois anos: vamos voltar a
morar na ilha. A Safira fica para estudar. Daí eu não sei se eu completei
dois anos de estudo, porque eu tive duas professoras. O pai e a mãe
mandaram me buscar para ajudar porque deu uma enfermidade na
mão da mãe. Daí eu fui para ficar na ilha e não voltei mais para estudar.
Eu tinha entre 8 e 9 anos quando comecei a pescar. Eu lembro que a
mãe me disse: Sabe, tu vai puxar a rede com o pai na canoa. A mãe não
vai poder ir. Filha, tu abre bem a perna para poder ficar firme e não
cair. Fui, puxamos toda a rede. Depois, a mão da mãe veio a melhorar.
Teve um determinado tempo que era eu e a mãe que pescamos muito
sozinhas porque os meninos eram mais de não ir. O pai não ia por
estar doente. Eu e a mãe cansamos de ir seguido. Só nós duas. Era
motorzinho a gasolina na época. Se dava problema lá fora, ela montava
e desmontava. Arrumava e vínhamos nós duas. Então, ela aprendeu
com o meu pai. Eu, na verdade, aprendi com os dois. Mas aprendi
muito mais com a mãe: remendar rede, entralhar, fazer, tudo. Eu pesco
desde os 8 anos de idade, mas só faz três que tenho a carteira de
pescadora. Como a gente vivia na ilha, não pensava nessas coisas de
documentação. Eu só fiz a carteira em 2008. O Nezinho já tem a
carteira há mais tempo. Quando essa minha tia morreu, me deixou
terrenos, pois ela não tinha filhos. Resumindo, eu vendi os terrenos
mais barato e fizemos o sobradinho lá na ilha. Tudo é o tempo, porque
tu não vai fazer a mesma coisa a vida inteira. O que tu lembras da vida
na ilha? Essa pergunta foi constante durante vinte e poucos anos. Era
assim essa pergunta porque lá é um lugar muito visitado. Então
perguntavam: É bom morar aqui? É bom morar aqui? É uma resposta
que precisa ter conteúdo. Não pode ser sim ou não, porque a pessoa
quer saber por que sim, por que não. Tem que ter um porquê, né?
Durante muito tempo respondi assim: deve ser bom, porque ainda
estou esse tempo aqui. Deve ser porque eu não tinha tempo de analisar
por que estava lá e se era bom ou não, porque era contínuo. O dia que
mais me marcou, que eu resolvi experimentar viver nesta casa aqui, foi
Mulheres e o mar 118
quando eu estava sozinha na lancha com minha filha. Ela tinha entre
8 e 10 anos. A lancha encalhou num banco de areia. Ela me ajudou.
Era tão estranho. Vinha a água e escoava pela embarcação. Chuva fina.
Frio, frio! Ela se molhava. Depois, a gente conseguiu sair daquela parte
de sufoco. Ela disse: “Sofrimento né mãe?”. Aí, aquilo me doeu na alma.
Eu disse assim: “Meu Deus, está na hora. Chega!”. Então, não foi
naquele dia, mas aquilo assim. Que judiação! Pra que? Tinha uma
amiga que me dizia: “tu nunca vais sair daqui” e eu não tinha o controle
se ia ou não. Mas como aquilo doeu na alma, aí foi tudo sendo
favorável. E as condições da própria saúde. Lá é tudo mais difícil.
Botijão de gás, tu levas, tem que carregar; subir pelas pedras, caixa de
gelo. Tudo é mais judiado. Então foi uma questão de entendimento
mesmo porque chega uma hora, tu tens que parar porque não tem
condições. E depois que deu para sair. E é interessante o teu trabalho,
Rose, porque com o teu sentimento, com o teu trabalho tu consegues
entender que as pessoas, na verdade, são duas. No nosso caso, nós
procuramos a parte espiritual. Nós procuramos servir a Deus. E em
todo lugar, cada religião, cada pessoa. Tem duas pessoas. Tu estás
procurando conhecer melhor o que há além daquilo que se vê só com
os olhos. Eu pedia a Deus nos últimos dias: Senhor me dá um sinal.
Por que disso tudo? E na Igreja ele falou que viria algo, alguém de
algum lugar que eu nem esperava, que era algo mais grandioso que eu
nem poderia imaginar. E tu chegasses, Rose, com essa pesquisa, algo
grandioso, com as mulheres pescadoras de Santa Catarina: Quantas
histórias? Quanto sofrimento? Quanta luta? Mas também quanta
coragem? Chegasse para ouvir a minha história; para me fazer falar e
ao mesmo tempo ouvir. E eu, te contando, eu me emociono (lágrimas),
porque não parece ser a minha história. Parece que não sou e não fui
eu. Mas é. Essa é a minha história. Mas eu quero te dizer que eu fiquei
pensando essa noite na tua pesquisa e lembrei que tem mais pescadora:
a filha da Ana e do Dé, a Cheila, a Patrícia, minha irmã, que trabalha
também na banca de peixe. E a Patrícia é muito interessante.
Conversando contigo sobre a tua pesquisa e com as conversas que a
gente tem todo dia, eu passei a observar mais. A Patrícia inverte os
papéis. Eu não tinha me dado conta disso. Vê se tu concordas comigo:
nós todas somos as camaradas dos nossos maridos, dos nossos irmãos,
como tu já escrevesse. Eles são os mestres. Acho que, de certa forma, a
gente reproduz o ser esposa e o ser camarada. Eles é que são as
referências. No caso da Patrícia, não. Ela inverte. Quando ela sai com
Capítulo 2 | Mulheres pescadoras 119
o marido, ela que é a mestre. Ela que vira aquele motor e lá vai. Ele é
que senta na popa, como nós, as camaradas. Então tens que acompanhar
ela também. A minha mãe não pode de ficar fora porque foi com ela
que eu aprendi. Hoje, ela está mais na banca de peixe, mas se precisar
ir, ela vai. Ela sabe tudo. E tem mais: eu sei que eu já falei e que vais
fazer isso, mas eu quero reforçar: tens que escrever que cada uma de
nós faz de um jeito. Tens que falar sobre os tipos de embarcações, os
tipos de redes. Cada uma de nós tem um jeito de fazer. Pode ver:
quando a gente viu o que tu mostrasses da Josi, lá de Florianópolis. É
rede de espera, mas é outra forma de fazer. Tudo isso tens que falar. É
muita coisa, Rose. Até para mim, às vezes, faz um nó na cabeça, mas é
assim mesmo!
queria aquela vida para mim, que nunca ia casar com um pescador. Daí,
eu não casei com um pescador. Eu transformei depois (risos). [A filha
que, nesse dia, estava junto ouvindo, falou, rindo junto conosco: “Não
adiantou muita coisa. Pelo menos, a promessa que ela fez, ela cumpriu:
não casou com um pescador”.] Hoje, a vida pesqueira, para mim, é
muito abençoada porque a minha vida, eu construí na pesca porque
quando vivia só com o serviço dele, não passava necessidade, mas só
dava mesmo para viver. Aí, depois que nós passamos a pescar juntos,
Deus abençoou bastante. A pescaria nossa, nós mesmos pescamos e eu
mesma vendo. Daí valoriza mais porque o trabalho que nós fazemos
entra todo para nós. Não passa por intermediário. Às vezes, quando por
algum motivo não estou pescando, compro do Nego e da Safira porque
eu vendo na banca do peixe, ali onde sempre vais olhar e conversar com
a gente. Para vender na banca de peixe, eu acho que a mulher tem mais
paciência porque a gente escuta cada coisa ali, cada besteira ou asneira
dos clientes. O homem já vive mais estressado. Chega do mar com o
peixe fresco e não tem paciência para ficar ouvindo o que às vezes a
gente ouve. Por exemplo: o cliente olha e diz: “ah, esse peixe não é de
hoje”, e o peixe acabou de chegar! Eles chegam com as caixas e jogam
tudo e a gente que vai organizar, congelar, vender. Ali na banca mesmo
só tem um rapaz que vende, mas ele vende porque ele não pesca e os
homens que pescam estão ali só para ajudar na limpeza do peixe. Não
estão no balcão. Outra coisa é que os clientes querem mostrar que
entendem de peixe: chegam cheirando o ar e querem dizer que, pelo
cheiro, sabem como está o peixe. Se um peixe estiver estragado, como
alguns deles querem dizer, o urubu já teria carregado até o vendedor
(risos). Na semana passada, uma senhora falou para a amiga: “Olha,
se deve olhar o olho do peixe e esse não está bom”. Ela pensou que eu
não tinha escutado. E eu não aguentei porque o peixe tinha acabo de
ser descarregado: “A senhora não conhece nada de peixe, porque o olho
deste peixe está vivo!”. O peixe era fresquinho, tinha acabado de chegar!
Aí, ela assim: “Ah, eu quis dizer que o que a gente tem que olhar é o
olho do peixe”. É isso que a gente escuta; fora o cansaço, a dor que sente
de movimentos repetidos. Na profissão da pesca, no tipo de pescaria, o
que mais sofre são as mãos e as costas da gente. As mãos, os braços e
as costas é o que mais força porque nós puxamos tudo nas mãos. Tem
os barcos maiores que trabalham com rede, que puxam no guincho,
no rolo. Eles não põem a mão em nada. Nós não. Nós é tudo na mão
mesmo. Eu já fiquei doente pelo esforço repetido. Pegou os dois braços
Capítulo 2 | Mulheres pescadoras 121
de tanto limpar peixe. Estou descansando estes dias porque o braço está
doendo demais. Então, eu parei hoje e amanhã. Acho que era isso que
eu queria te contar.
3.1 O mar
62
Para Latour (2008), ator é tudo o que age. “Usar la palabra ‘actor’ significa que nunca
está claro quién y qué está actuando cuando actuamos, dado que un actor en el escenario
nunca está solo en su actuación” (LATOUR, 2008, p. 73). Daí se tratar de ator-rede em
conjunto, cujas agências ocorrem em simultâneo. Nesse aspecto, visando deixar claras
Capítulo 3 | O mundo da pesca das mulheres 125
para os indígenas é habitado por seres humanos e não humanos, e que um ponto de vista
não é uma interpretação subjetiva. Não existe um ponto de vista sobre algo; este algo
é o ponto de vista, tratando-se, portanto, de uma “ontologia integralmente relacional”
(VIVEIROS DE CASTRO, 2002, p. 385). A personitude e a perspectividade dizem
respeito à experiência pessoal, que é mais válida do que qualquer dogma cosmológico
substantivo na determinação dos seres que podem ser considerados agentes. Seguindo
um raciocínio pautado pelo perspectivismo, poderíamos dizer que nas pescas outros
seres ganham uma humanização a partir da qual mandam, desmandam, influenciam,
permitem ou impedem saídas e chegadas.
64
As marés são influenciadas pelos ciclos da lua, existindo o que os técnicos chamam
de “tábua de maré”, que registra e indica os horários do dia em que ela enche e vaza.
Mulheres e o mar 126
65
Na proposta de Deleuze e Guattari, o rizoma, que é multiplicidade, é formado de
linhas. “As multiplicidades se definem pelo fora: pela linha abstrata, linha de fuga ou
Capítulo 3 | O mundo da pesca das mulheres 129
66
Ao discorrer sobre as características da descrição etnográfica, Geertz (1989) afirma
que o etnógrafo inscreve o discurso social. Ao se remeter a Ricouer sobre a ideia da
inscrição da ação, aponta para a pergunta: o que a escrita fixa? (GEERTZ, 1989, p. 29),
levando a outra questão central. Diz Geertz: “o que faz o etnógrafo? Ele escreve. Ao
escrever, fixa o dito” (GEERTZ, 1989, p. 30).
67
Maria viveu uma tragédia envolvendo a perda de dois de seus três filhos com
implicações que, se fossem aqui publicizadas, poderiam colocar sua segurança e a de
seu filho sobrevivente em risco. Portanto, optei por omitir o que me foi narrado sobre
esta passagem de sua vida, pautando-me por pressupostos éticos que dizem respeito à
preservação da intimidade e da identidade de nossos interlocutores.
Mulheres e o mar 132
3.2.1 Embarcações
Maria faz alusão aos diferentes matizes que são visualizados no mar, em especial no final
68
da madrugada e início da manhã, quando ganha tonalidades que vão do azul profundo ao
azul claro, violeta, amarelo, rosa. Um fascinante e inacreditável espetáculo de cores.
Capítulo 3 | O mundo da pesca das mulheres 133
é feita de um pau só, sendo que, geralmente, vai de sete a nove metros. A
baleeira tem este nome pela sua forma abaloada, mais arredondada. Varia
entre dez a 12 metros. O bote é mais esguio. Varia de nove a 12 metros.
O caíco é pequeno e mais utilizado para o transporte até as embarcações
maiores. Geralmente, tem em torno de dois a três metros. A chata é uma
embarcação mais reta, com o fundo chato, que pode ter entre seis a oito
metros. A chalupa tem a sua popa quadrada, reta, diferente do bote, que é
mais afunilado, podendo ser de sete a 12 metros.
Acompanhei pescadoras que trabalhavam em bateiras ou botes de
madeira ou de alumínio. Algumas preferiam trabalhar a remo, porque,
segundo elas, o barulho do motor as irrita; outras já aparelharam suas
embarcações com motor, visto como um facilitador, pois permite
deslocamentos maiores, exigindo menor esforço físico.
Não encontrei, no decorrer de meu trabalho de campo, mulheres
que trabalhassem diretamente na construção de embarcações. Segundo
me relataram pescadores com os quais conversei, também diminuiu
muito o número de homens que continuam atuando nesse setor da
pesca artesanal. Em Barra do Sul, considerada pelos pescadores locais, a
capital da construção artesanal, ainda existiam pescadores que aliavam a
fabricação manual de embarcações à pesca. Eles recebiam as encomendas
de outros pescadores quando se tratava de uma embarcação nova, ou
para fazer reparos nas usadas.
Para adquirir uma embarcação, geralmente se acorre às
linhas de crédito do governo federal, como o Programa Nacional de
Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf).69 De forma geral, a
69
Segundo me esclareceu um extensionista técnico da Epagri, o Pronaf exige uma série
de documentos bem como a garantia de pagamento do financiamento contraído, em
que muitas vezes a embarcação com a qual já trabalham é utilizada para tal. Uma das
dificuldades que os pescadores encontram, se comparados aos agricultores, é que, por se
entender que vivem no meio urbano, quando procuram linhas de financiamento, muitas
vezes não conseguem se enquadrar nas regras do Pronaf, que exige comprovação de
que em torno de 70% da renda seja oriunda da atividade considerada rural, ou no caso,
pesqueira (o que também precisa ser repensado). Vejamos o exemplo: um pescador
que na safra, mesmo tendo atividades urbanas, consegue vender sua produção por 80
mil reais/ano (sendo sua esposa funcionária pública que ganha 20 mil reais anuais),
terá acesso ao crédito rural e direito à Declaração de Aptidão do Pronaf (DAP). Por
outro lado, um pescador que tenha renda anual de 20 mil reais e a esposa também
tenha a mesma renda de 20 mil reais/ano, alcançando 50% de renda com a pesca,
não se enquadra para ter acesso ao crédito rural. Outra questão é que, ao contrário
do agricultor, que tem atividades como pernoites, lazer, refeições, pousadas rurais
entendidas como atividades rurais, aquelas que os pescadores realizam, como frete de
embarcações, viagens para os turistas, venda de refeições, artesanatos, aluguel de casas
Mulheres e o mar 134
aos veranistas, etc. são enquadradas como demais. Em assim ocorrendo, não conseguem
a DAP, exigência central para acessar aos financiamentos com juros mais acessíveis.
Sobre formas de financiamento via Pronaf, ver: www. pronaf.gov.br.
O que para sua família era extremamente significativo pela religião, vivida de forma
70
que eu não fazia também uma pesquisa com e sobre eles; “afinal quase ninguém vem
saber de nós”. Ou: “nós também queremos falar. Por que só com elas?”. Ao que lhes
explicava meu propósito. No entanto, mesmo eles sabendo que meu interesse era pelas
pescadoras, quando podiam, sempre entravam nas conversas, opinando, comentando,
contando algum episódio. Percebi uma espécie de necessidade de falar e ser escutado.
Capítulo 3 | O mundo da pesca das mulheres 135
72
Faço um agradecimento especial ao colega da Epagri, Jefferson Oliveira, de Laguna,
especialista na área da pesca, com o qual tive conversas que contribuíram para me
esclarecer acerca das diferenças sobre apetrechos, redes, embarcações, o que aliei ao que
as pescadoras me narraram.
73
Existem também, além das redes, outros tipos de apetrechos para realizar as pescas:
pesca de peixe com anzol – apetrecho de metal para captura individual de espécie; pesca
de fisga – espécie de tridente, para a pesca realizada no complexo lagunar. O pescador
fica na proa da embarcação para ter visão de onde está o linguado. Rema lentamente
até avistar o linguado, momento em que vira o lado do anzol, que é o próprio tridente,
fisgando-o; pesca de gerival, ou berimbal – no complexo lagunar, é proibida. Em São
Francisco do Sul é legalizada. Em uma bateira ou canoa, um pau atravessado do lado
dela, coloca-se um par de gerival de um lado e um par do outro e captura-se só o camarão.
É predatória também, pois pega todo o fundo. Pesca de siri – existe a feita com covo, que
é uma armadilha fixa de fundo. Põe-se no final da tarde e se retira no dia seguinte. Existe
ainda a feita com espinhel, que é um fio de nylon no qual vai se dando nó e colocando
carne de gado. Em média, de cinquenta em cinquenta centímetros vai se soltando no
fundo; tem cerca de oitocentos a mil metros de comprimento. Espera-se cerca de meia
hora, depois se passa com a embarcação e vai-se recolhendo tudo com um puçá, que é
uma espécie de coador. O pescador fica praticamente deitado na embarcação; a linha vai
correndo pela mão direita e, com a esquerda, munida de um puçá, retira os siris.
Mulheres e o mar 136
três panos, ter muitas braças.74 A rede para camarão é uma; as redes para
peixes mudam de acordo com o tipo, o que vai repercutir no tamanho
da malha. Assim, uma rede para corvina tem malha oito, uma rede para
tainha tem malha dez, uma rede para peixes menores tem malha seis.
Para a pesca de siri que acompanhei, eram usadas armadilhas chamadas
de gaiolas, feitas de madeira e fechadas com linha de algodão depois de,
no interior delas, colocadas as iscas.
A expressão utilizada para refazer e recuperar a rede que se rompia
durante a pesca era consertar, remendar. Pescadores e pescadoras faziam
esse trabalho, geralmente juntos, dependia do tamanho da rede e do
estrago que tivesse sofrido. Para tanto, eram utilizadas agulhas e linhas
e, a exemplo do processo usado por costureiras e alfaiates, os panos iam
sendo costurados e refeitos à medida que a agulha avançava em meio
às malhas, refazendo os nós que davam formato aquele tipo de rede. Se
antes as linhas eram de algodão, cada vez mais são substituídas pelas de
nylon, made in China,75 o que exige firmeza e ao mesmo tempo provoca
fissuras nas mãos que consertam.
3.2.3 As bandeiras
74
Braça é uma medida usada pelos pescadores e pescadoras, que utilizam o braço
esticado como referência. Daí se dizer que a rede tem tantas braças.
75
O que trabalhei em Gerber (1997). Sobre Globalização, ver Bernan (1986); Appadurai
(1990); Featherstone (1990); Fonseca (1993); Harvey (1994); Ortiz (1994); Rial (1995).
Os denominados “panos de rede” atualmente são feitos industrialmente com linhas
de nylon e chegam às mãos de quem vai confeccionar a rede propriamente dita via
comércio local. Se antes a confecção era feita em casa a partir de linhas de algodão, a
produção industrial avançou no cotidiano da pesca num rápido processo, que Harvey
chamou de encolhimento do mundo, uma compressão espaço-tempo que teve um forte
impacto sobre práticas político-econômicas e sobre a vida social e cultural das pessoas
(HARVEY, 1994, p. 257).
Capítulo 3 | O mundo da pesca das mulheres 137
respeito a ter que gostar da pesca para nela continuar. Uma segunda
regra remete a considerar que, se o mar aparentemente não tem dono,
não tem cercas. É possível afirmar que há uma complexidade alusiva aos
muitos territórios que são sinalizados e que, portanto, mostram para
os que ali circulam quem é o dono daquele ponto. A delimitação e a
sinalização desses territórios, embora sejam migrantes e se desloquem
de acordo com a época do ano, são marcadas pelas bandeiras.
As bandeiras são, portanto, os sinalizadores que mostram
visualmente onde estão colocadas as redes de pesca, uma forma clara
de delimitar e dividir o espaço do mar e, embora aos olhos leigos
possam parecer todas iguais, cada pescador sabe qual é a sua. Ao lhes
perguntar como a identificam e como fazem para diferenciá-la em
meio a tantas, as respostas: “Cada um faz de um jeito; cada um costura
de um jeito; cada um inventa uma forma de saber que aquela é a sua”.
São jeitos de amarrar, dobrar, fazer, costurar em que cada um tem e
identifica a sua forma.
Ao perguntar-lhes como e com que material faziam, uma resposta
em comum: “inventamos”. Na ocasião de minha pesquisa, observei e eles
me contaram que estavam usando muito os restos de guarda-chuvas.
Ao indagar-lhes como chegaram aos guarda-chuvas, me esclareceram:
“Testamos e vimos que dura muito, não resseca tanto no sol e mantém a
cor por mais tempo”. Na verdade, percebi que tudo se aproveita em uma
permanente bricolagem: restos de panos, de saias, de camisetas de clube
de futebol e de tecido de guarda-chuvas ou sombrinhas.
É interessante aqui remeter a Martins (2007), que, no contexto
de Portugal, se referia à criatividade, às invenções e reinvenções dos
pescadores que constroem, consertam e laboram com as artes de pesca,
para os quais a atividade pesqueira dependia de uma sucessão de
invenções e novidades cotidianas. Diz esse autor que não se trata só de
imaginar como se deve construir um aparelho que opera escondido da
vista, mas que todas as possíveis circunstâncias são levadas em conta,
quando cada profissional constrói o aparelho e reinventa-o diariamente.
Eu diria que a capacidade criadora de pescadores e pescadoras é
de tal forma inventiva que, concordando com Martins (2007), qualquer
tentativa de descrição é insuficiente para revelá-la na totalidade.
Ao inventar e reinventar formas de viver a pesca, eles se inventam
e reinventam dando a esse já diverso universo mais diversidade,
possibilidades e peculiaridades que fogem a qualquer material
inicialmente adquirido de produções industriais. Ao fazer isso, estão
reinventando formas diferenciadas de viver a dita cultura pesqueira.
Mulheres e o mar 138
3.3 Os peixes
76
Maria Fernanda S. Pereira realizou sua pesquisa de mestrado na Costa da Lagoa,
Florianópolis, em que analisou as concepções e práticas relacionadas à formação da
criança, e observou que esta era, simultaneamente, um ser individual, mas também
membro representante da família formadora de uma rede relacional. No decorrer de
sua pesquisa, realizada com mulheres grávidas ou em período de resguardo, emergiram
questões que diziam respeito a prescrições e permissões alimentares no período de
gestação e no pós-parto (PEREIRA, 2012).
Aspecto citado por Mussolini (1980), quando de forma pioneira descreveu o cerco.
77
Capítulo 3 | O mundo da pesca das mulheres 141
Todos nós nos deparamos com questões em campo que dizem respeito à subjetividade.
78
Nesse sentido, sugiro ver, entre outros, Rabinow (1977); Barley (1983, 2006); Clifford
(1983); Geertz (2008); Oliveira (2009); Maluf (2010, 2011).
Capítulo 3 | O mundo da pesca das mulheres 143
79
A expressão que uso não tem qualquer relação com a obra de Tânia Stolze Lima,
Um peixe olhou para mim, 2005. A autora trabalha sobre o povo Yudjá e a perspectiva,
centrando sua pesquisa sobre o cauim, bebida fermentada que seria gente, pois, de certa
forma, mata. “O cauim é tido por seus iwa como ‘gente’ porque a embriaguez é um
grau de morte. Penso que tem um sentido implícito: não nos mataria se fosse gente. Em
outras palavras: se a gente morre-um-pouco, só pode ser gente. Se os iwa são retratados,
como parece, em uma tentativa de restituir o raciocínio dos que batizaram a bebida no
passado, é, talvez, como se tivessem dito a si mesmos: o cauim nos mata-um-pouco;
até parece que é ‘gente’!” (LIMA, 2005, p. 380). A expressão que utilizei naquele dia em
campo foi apenas como evocação imediata do que senti quando o olhar da arraia se
deparou com o meu.
Mulheres e o mar 144
Até as gaivotas estão fracas. Podes ver, olha lá: coitadas! Não têm
força nem para levantar voo; estão ficando raquíticas. Agora a
prefeitura vem obrigando a gente a limpar tudo, ensacar tudo em
saco plástico, onde já se viu? Coitadinhas das gaivotas! E a culpa
é dos turistas que querem a praia toda limpinha; os neuróticos
com limpeza. É a neurose do plástico. Coitadinhas! Eu dou comida
mesmo. Todos têm o direito de comer. Por que elas não teriam?
(João, Pântano do Sul, Florianópolis).
82
Janet Carsten e Stephen Hugh-Jones, ao organizar About the house, 1995, inspirados
nos escritos de Lévi-Strauss sobre “house societies”, propuseram como objetivo reunir
ensaios que falassem sobre casas, não no sentido de estrutura física, mas como espaço
que tem uma dinâmica processual e que diz muito sobre corpos, pessoas, relações;
como se vive, com quem se come, como se pensa. Segundo eles, “as casas ganham
significado para grupos sociais e representam o mundo em volta deles. [...] casas têm
dinâmica, características processuais encapsuladas na palavra ‘residência’” (CARSTEN;
HUGH-JONES, 1995, p. 1-2). Maluf (1993, p. 49), em seu trabalho de campo em uma
comunidade pesqueira de Florianópolis observou que a casa é “o espaço inteiramente
produzido e transformado pelo ser humano e impregnado de seus signos”. Ambos os
trabalhos dizem respeito às especificidades que cada sociedade imprime nesse espaço
onde transformações acontecem e as relações se dão.
Capítulo 3 | O mundo da pesca das mulheres 147
83
Woortmann (1986) afirma que a comida fala da família, aí incluídos homens e
mulheres, e que é por meio da percepção da comida que o gênero é construído no plano
das representações. Diz ele que quando se constrói a refeição, se constrói o gênero.
Embora se possa ponderar que há muito mais a ser considerado quando pensamos
sobre os processos de construção de gênero, essa correlação entre comida e gênero faz-
se interessante para pensarmos como a refeição mostra alguns processos relacionais.
Por exemplo, para observarmos quem recebe o que é considerado o “melhor pedaço”,
quem come junto com quem; quem serve a comida, entre muitos outros fatores. Há
também outro aspecto, levantado por Maciel (2004). A autora afirma que a comida
envolve emoção, trabalha com memória e sentimentos. A expressão, por exemplo,
comida caseira ilustra bem esse pressuposto, evocando aconchego, segurança, ausência
de sofisticação ou de exotismo. Remete ao familiar, ao próximo, ao frugal, diz a autora.
Quando dona Alícia, 61 anos, dona de um restaurante, me narrou que tentava fazer
tudo natural, como na minha casa, remetia, a meu ver, ao exposto por Maciel, pois
implicava trazer para seu estabelecimento um jeito de fazer: feito em casa. Esse jeito
de fazer em casa remete ainda às relações entre mulheres em que os aprendizados se
dão de mãe para filha, de avó para neta, de vizinha para vizinha em que um constante
“aprendi com” remete à memória dos saberes-fazeres de mulheres na cozinha. A esse
respeito Luce Giard traz uma rica discussão sobre lembranças, cheiros, especificidades
que nos fazem pensar como “dignas de interesse, de análise e de registro aquelas práticas
ordinárias consideradas insignificantes” (CERTEAU; GIARD; MAYOL, 1996, p. 217). A
cozinha é, portanto, um espaço em que o domínio que emerge é o feminino, segundo
Woortmann (1986), com o que concordo quando me refiro aos espaços da pesca que
percorri. Aspectos que dizem respeito à criatividade, às invenções e às habilidades da
culinária pesqueira do litoral de Santa Catarina, dos quais são as mulheres centralmente
detentoras.
84
Sobre a alimentação e a culinária, ver: Certeau, Giard e Mayol (1997); Maciel (2001,
2004); Zaluar (1982); Woortmann (1986); Canesqui e Garcia (2005); Rial (2003);
Cascudo (2003); Carneiro (2006); Barbosa (2007); Silveira (2011); Lévi-Strauss (2004,
2006); Kraieski (2007, 2012); Pagu (2012). Trata-se de temáticas centrais de troca entre
as mulheres pescadoras, cujos saberes-fazeres (CERTEAU, 1996) produzidos nesses
espaços repercutem no mar, quando os cozinheiros que atuam na pesca industrial, ao
virem a terra, pedem às suas esposas “alguma receita nova” para inovar (WAGNER,
1981) nas cozinhas dos barcos em que atuam. Assim, embora, a maioria das mulheres
Mulheres e o mar 148
fique em terra, a troca de seus conhecimentos chega ao mar, nos espaços considerados
exclusivamente masculinos, como as embarcações, propiciando uma troca contínua
entre mulheres e homens sobre invenções e reinvenções também no que diz respeito à
alimentação e à culinária advinda da pesca.
85
DaMatta (1997) preconiza que a sociedade manifesta-se por muitos espelhos e
idiomas, e que um dos centrais no Brasil seria a comida, viés pelo qual a reprodução
social também se dá. Concordo com DaMatta no sentido de que a comida nos fala
muito. Olhar a comida me disse muito sobre o lugar da mulher no mundo da pesca,
em especial sobre os processos de manipulação, preparo, transformação e consumo
alimentar em que a cozinha (CERTEAU; GIARD; MAYOL, 1997) e os ranchos de
pesca, em uma relação casa/rua (DAMATTA, 1991), se mostraram centrais, sendo
onde ocorrem processos de manipulação e transformação de alimentos. Portanto, de
cruzamentos e circulação de saberes-fazeres femininos.
Capítulo 3 | O mundo da pesca das mulheres 149
86
Lévi-Strauss propõe uma série de variações entre cada um desses componentes do
tetraedro em que oscilam cozimento no vapor ou cozimento na água, por exemplo. “Se o
sistema culinário considerado fizer uma distinção entre cozimento em água e cozimento
no vapor: este último, que afasta a água do alimento, se situará a meio caminho entre o
ensopado e o defumado” (LÉVI-STRAUSS, 2006, p. 446).
Mulheres e o mar 150
Naca, a Mãzinha, a Márcia, por exemplo, pois cada qual tinha o rancho
ou o seu porto, que era, na verdade, o local onde ficava a embarcação
enquanto não se estava pescando.
Tanto nas cozinhas quanto nos ranchos de pesca, havia um
elemento central: o fogo. O fogo, vindo do próprio fogão, era usado
para os preparativos de refeições frugais e para refeições coletivas,
como peixe assado na brasa, ou em forma de caldo, reunindo vários
pescadores/as amigos/as ou visitantes. Por outro lado, o fogo, que
podia ser de um fogão a gás ou feito com lenha diretamente no chão,
era imprescindível para processar produtos in natura, a partir de onde
camarão e siri, por exemplo, eram transformados, passando de cru ao
que é denominado de pré-cozido; de peixe sujo ao filé; de camarão ao
empanado; de siri à casquinha.
Nesse contexto que se compunha de cozinha, rancho, praia, casa,
rua, dentro, fora, o rancho é, por um lado, um espaço de transformações
alimentares em que o elemento fogo é central em todos os processos,
mesmo deslocado da cozinha da casa, mas é também um espaço de
sociabilidades que possibilita a emergência de conflitos, trocas, criações,
negociações entre profissionais da pesca, clientes, amigos e vizinhos que
circulavam por aquele espaço.
É interessante lembrar a distinção que DaMatta (1991) fez entre a
casa e a rua. Ele observou que a casa é o espaço dedicado ao sossego, à
segurança, opondo-se à rua, que seria o local de fora, onde estaria, entre
outros aspectos, o relacionado ao trabalho. A partir dos pressupostos
do autor, parece-me possível dizer que o rancho de pesca constitui-se
em um espaço de junção em que casa e rua, por vezes, se mesclam. Mas
é também um espaço entre a casa e a rua, ou ainda um espaço que se
transforma em uma segunda casa. Há ali a reunião de amigos e amigas,
a realização de trabalhos em grupo, bem como trocas de receitas,
confidências, problemas, mas também momentos em que o pescador ou
a pescadora acorrem quando querem ficar sozinhos, pois cada rancho
tem seu dono ou sua dona e, embora se entre sem bater, só se entra com
a permissão que a amizade propicia.
Fisicamente, o rancho de pesca não é totalmente rua, posto que
coberto e protegido das intempéries; nem totalmente casa, pois está
aberto como local aonde se chega para sair ao mar, e para onde se volta
após a jornada diária. Simbolicamente, ele é casa e é rua. É sossego,
mas também movimento.
Capítulo 3 | O mundo da pesca das mulheres 151
87
Nos contextos em que as mulheres com as quais convivi trabalham, o impacto das
novas tecnologias diz respeito às máquinas que passam a ser instaladas nos mesmos
espaços na busca, segundo as coordenadoras dos grupos, de preencher a falta de mão
de obra feminina. Por outro lado, encontrei invenções a partir de máquinas que foram
readequadas às necessidades da pesca como, por exemplo, a do jovem Ni, em Barra/
Balneário Camboriú, que, após alguns experimentos, transformou uma máquina
de descascar batata em outra de filetar peixes quando percebeu que a mãe e as duas
irmãs, para dar conta da produção, submetiam-se a muitas horas de trabalho. Com a
sua invenção, a produção que seria limpa em muitas horas teve seu tempo reduzido,
facilitando a vida das trabalhadoras. Algumas pessoas, de sua própria localidade e de
outras, tomaram conhecimento de seu invento e lhe encomendaram a máquina. Ou
melhor, a peça que reinventa a máquina, para o que ele não cobrou adicional além do
custo da peça, pois, segundo ele, quer facilitar a vida das mulheres. Ao lhe perguntar
se gostaria de patentear sua invenção, respondeu-me que não tinha condições, pois o
custo estava, na ocasião, em torno de dez mil reais. Podemos pensar nos pressupostos da
dialética da convenção/invenção preconizada por Wagner (2010, p. 96), se ponderarmos
que ao desconvencionar a máquina – de cortar batatas – e inventar a máquina – de
filetar peixes – o pescador criou e reinventou outra forma de filetar, que implica e está
implicada em uma reinvenção de sua própria cultura, de sua forma de estar na pesca.
Mulheres e o mar 152
3.4.3 As bicicletas
O mundo da pesca é imbuído de personagens e situações, se
podemos assim definir, que compõem os muitos cenários em que as
muitas pescas ocorrem. Assim, é certo que temos mulheres, homens,
mar, terra, crianças, águas, areias, céu, ventos, sol, lua, estrelas, gaivotas,
urubus, embarcações, redes; risos, choros, angústias, alegrias; períodos
de agito, períodos de calmaria, partidas, chegadas, partidas sem retorno.
Ciclos que se alternam na composição do calendário de capturas e
proibições que fazem parte desse mundo.
Nos lugares que percorri no litoral de Santa Catarina, pareceu-
me impossível fazer uma etnografia do mundo da pesca sem falar das
bicicletas. Elas são o meio de transporte mais usado por pescadores
e pescadoras, seja para se deslocar até os ranchos de pesca, para
comprar gelo, para entregar alguma mercadoria, ir a casa almoçar,
voltar. São usadas para quase tudo. A bicicleta é como que um
acessório indispensável. É praticamente impensável a vida de idas e
vindas de casa ao rancho, do rancho à venda, do rancho ao mercado,
sem a bicicleta.
Enquanto a lida na pesca segue seu ritmo, no mar, nos ranchos,
na banca de peixe, as bicicletas ficam jogadas na areia, ou encostadas em
alguma embarcação, em um poste, em um canto da praia ou do rancho,
enquanto as muitas atividades são feitas.
As bicicletas que circulam pelos muitos espaços que compõem
o mundo da pesca não são novas ou de última geração. São bicicletas
usadas. Geralmente, muito usadas, até mesmo velhas, desgastadas,
como se fizessem alusão ao processo de desgaste provocado pela
exposição contínua às muitas intempéries que constituem a vida na
pesca. Homem, mulher, bicicleta, tudo se desgasta mais rápido.
Não se trata de uma bicicleta qualquer. São específicas. Feitas
para deslocar, mas também para carregar. Longe de ser um opcional
e dando a impressão de já ser parte delas ao sair das lojas, a maioria
traz amarrada na garupa, ou à frente, uma caixa feita de plástico que
serve para o transporte de tudo o que se possa imaginar: redes, agulhas,
linhas, peixe, siri, camarão, gelo, gorros, roupas, compras diversas.
Enfim, para tudo o que for necessário transportar, ali está ela: a
bicicleta. E agregada a ela, a caixa de plástico, combinando um par que
mescla ecologia e plástico. As bicicletas compõem os muitos cenários
da pesca e se mostram parte constante do cotidiano de homens e
Mulheres e o mar 154
vou dar uma mão de tinta aqui e ali. Eu tenho que fazer os dois
serviços. Isso, muitas que são casadas e ajudam eles lá e cá. Tem
que ser revisto esse negócio de mulher pescadora. Ela tem duas
jornadas de serviço, além da de casa. (Tina).
denominar alguém como sendo aquilo que, de fato, não é haja vista que, em princípio, só
poderia ser pelos laços de sangue: “ele chamava dona Marlene de mãe”. Nos processos de
aprendizagem da pesca com senhores mais velhos que não seus pais, as duas pescadoras
que passaram por este processo utilizaram-se de expressões como, ser como um pai; ser
um pai. Em outros momentos, ao interpretar que alguém era parente de outro tendo por
base as denominações que usavam como avó, mãe, me deparei com esta situação. Por
Mulheres e o mar 158
exemplo, quando uma moça chegou chamando dona Rosinha de avó, e eu entendi que
esta seria sua avó consanguínea. Ao perceber meu equívoco, ela, rindo abraçada a dona
Rosinha, me esclareceu: ela é minha avó, mas porque eu escolhi de tanto que amo ela. Não
é vó? Em outro momento, Cheila se referiu a sua mãe como se estivesse viva, embora
eu soubesse que tinha falecido quando Cheila ainda era criança, o que me confundiu.
Rindo muito, me esclareceu: mas ela é minha mãe. Eu chamo de mãe. É minha irmã, mas
ela que me criou quando o pai deu a gente.
89
Segundo pescadoras e pescadores, além de estar diminuindo gradativamente o
número de profissionais que atuam na pesca artesanal devido ao fator econômico, esta
rápida diminuição também estaria ocorrendo em decorrência do ECA (Estatuto da
Criança e do Adolescente). Segundo os mesmos, ao considerar as atividades ligadas
à pesca como trabalho e não como forma de aprendizado da profissão, o ECA estaria
inviabilizando a continuidade desta forma de vida.
Capítulo 4 | O mundo das mulheres na pesca 159
Ela me disse: “Safira, tens que ir pescar com o pai porque a mãe
está muito doente. A mãe machucou muito a mão. Vai, filha.
Escuta bem o que a mãe vai te ensinar: abre bem as pernas para
ter firmeza no barco. Daí não tem perigo de tu caíres”. (Safira).
qual inventou uma máquina para facilitar o filetamento de peixes. Outra pescadora,
dona Rosinha, ao saber da máquina, comentou que gostou da ideia e comprou a que
o próprio Ni adaptou de acordo com sua invenção. Tina, ao adaptar calças jeans e
macacões de oleado para mulheres a partir do uso de um zíper mais macio, divulgou
entre as conhecidas o segredo de conseguir urinar no mar sem precisar tirar a calça ou o
macacão, o que aprendeu com uma velha pescadora. Em relação àquelas que participam
de cursos viabilizados pela Epagri, observei que elas (re)elaboram o que foi ensinado,
por exemplo, em cursos de culinária, adequando ao que possuem em casa; quando vão
ensinar para suas vizinhas ou parentas, ensinam também as suas invenções.
Capítulo 4 | O mundo das mulheres na pesca 161
conceito de rede, afirma que os autores que trabalham com esse conceito convergem
no que diz respeito a considerar como central em uma rede a “sua capacidade de
articulação e rearticulação permanente”. Para uma discussão sobre redes e aspectos
socioeconômicos de pequenas agroindústrias, ver Mior (2005). Segundo o autor, é
Murdoch (2000) quem propõe um nível intermediário de redes que seria mais adequado
Mulheres e o mar 164
Nosso grupo era uma denominação que elas utilizavam corriqueiramente ao verbalizar
92
quem fazia parte dele e, portanto, com quem trabalhavam. O número de mulheres por
grupo variou de três a dez, sendo quatro grupos compostos de cinco mulheres; três de
quatro mulheres; dois de três; outro de sete; outro de nove; um de dez mulheres.
Mulheres e o mar 166
outsiders, quando afirma que “a opinião interna de qualquer grupo com alto grau de
coesão tem uma profunda influência em seus membros, como força reguladora de seus
sentimentos e sua conduta”.
Capítulo 4 | O mundo das mulheres na pesca 167
94
O extensionsimo será abordado na relação entre saber científico e saber tradicional;
porém, é interessante pensarmos aqui que os extensionistas estão se pautando por uma
visão do senso comum.
Capítulo 4 | O mundo das mulheres na pesca 169
Vou fazer greve até ele pedir desculpa, pois ele é que foi o errado.
Já combinei com minha filha, nenhuma de nós duas fala com ele
até ele pedir desculpas, pois ele foi grosso com ela também, por algo
que deu errado lá fora.
[E se ele não pedir desculpas?]
Problema dele. Eu não trabalho mais como camarada. Hoje ele já
teve que chamar o Joaquim, que foi. Vamos esperar. Ele vai ver que
estava errado.
96
Elas utilizavam estas habilidades em especial nos momentos em que a pesca passava
por situações de miséria. Costumavam dizer: “a gente inventa”. Eu diria que há dois
tipos de invenções: a) diversão, que diz respeito à formação de grupos de bingo, de jantar
semanal, de passeios, de idas às igrejas (embora houvesse o forte motivador da fé e da
religião, percebi que também as idas às igrejas e cultos eram acionadas como parte dos
momentos de encontro com as amigas). Também incluo aqui os cursos e encontros
anuais de mulheres da área da pesca promovidos pela Epagri e pelas prefeituras
municipais, para os quais muitas reservam esses dias para o lazer, as brincadeiras, o
descanso do trabalho na pesca. Os encontros ocorrem uma vez ao ano e circulam entre
os diferentes municípios pesqueiros de determinada região; b) sobrevivência, pela qual
elas inventam pães, bolos, docinhos, toalhinhas bordadas, bolinhos fritos de banana,
tortas recheadas, frangos assados com farofa aos domingos, tudo para ser vendido na
própria vizinhança que, sabendo de suas habilidades, vai às suas casas para comprar.
São maneiras que elas encontram para melhorar a renda em épocas difíceis: “a pesca
tem época que dá boa, mas tem época que não dá nada. Esse ano o mar está castigando
a gente. Não tá fácil. Quando aperta, eu invento umas coisas, faço salgadinho, coxinha,
risoles. Também faço bolo de aniversário. Me viro” (Neia); “Eu invento; vendo pão, vendo
frango para ajudar na renda, mas 80% vêm lá de trás, da pesca” (Safira).
Mulheres e o mar 172
Tem aquela pessoa que a pessoa olha com os olhos e vê, e a outra
que precisa procurar para ver mais fundo. E é isso que estás fazendo
com o teu trabalho de entender tanto esforço físico, mas é o nosso
ganha-pão. Quem olha de longe e de fora, olha e diz: “olha como
eles gostam de pescar! Lá vão eles, mesmo com esse frio! Como
gostam!”. Mas tu, que estás vendo de perto e de dentro, sabes que
nem sempre é assim. Também é pela necessidade. Não é só porque
gosta. Mas também é porque se gosta. (Safira).
Tem que gostar sim e tem horas que a gente desanima. Ontem a
gente foi tirar a rede e tinha estragado um monte […]. Daí eu vim
para casa e desabafei com uma vizinha que veio aqui. Ela nunca
tinha me visto assim e perguntou: “Safira, tu gostas de pescar?”. Eu
pensei: mas isso quem tinha que perguntar é a Rose! E ela não me
perguntou assim: “tu gostas de pescar”. Não é Rose? Tu dissesses
que querias ouvir a minha história e eu contaria como quisesse.
Pesca é algo que começou obrigado. Tinha que pescar, mas ao
mesmo tempo eu gostava porque era uma novidade. Quando ela
me perguntou: “tu gostas de pescar?” Eu demorei a responder. Eu
precisei pensar; e respondi que gosto. Mas tu estás vendo como é
a nossa vida por dentro e vendo de perto. Não estás olhando de
longe. De longe é porque gosta de pescar. Mas, de perto, como estás
97
Magnani (2002, p. 17), ao discutir o método etnográfico sobre a cidade e sua
dinâmica, propõe “um olhar de perto e de dentro capaz de identificar, descrever e refletir
sobre aspectos excluídos da perspectiva daqueles enfoques que, para efeito de contraste,
qualifiquei de fora e de longe”. O autor afirma ainda (p. 16) que nessa discussão sobre
a especificidade da etnografia, é interessante lembrar os anthropological blues de Da
Matta (1978); experience-near versus experience-distant, de Geertz (1983); resíduos, de
Peirano (1995), estes últimos dizendo respeito a “certos fatos que resistem às explicações
habituais e só vêm à luz em virtude do confronto entre a teoria do pesquisador e as
ideias nativas”.
Capítulo 4 | O mundo das mulheres na pesca 173
com a gente, tu sabes que tem horas que não é porque gosta. É
pela necessidade. De fora e de longe é uma coisa; de perto, pode
ser outra. A gente gosta? Sim, gosta. Mas tem mais. Tem que ter
coragem para enfrentar o mar, mas também para enfrentar a vida.
(Safira).
98
Para uma discussão sobre corpo, corporeidade, corporalidade ver, entre outros, Beauvoir
(1991); Mauss (2003); Maluf (2001, 2009); Csordas (2008); Foucault (2009); Matos e Soihet
(2003; Sterling (2001); Latour (2004); Venn (2010); Paulilo (1987); Lima (2012); Perez
Fonseca (2008). O corpo e, neste caso, o corpo das pescadoras, é objeto e/ou sujeito? Em sendo
sujeito, é então sujeito dos sujeitos? Como e por onde considerar o corpo? Beauvoir (1991,
p. 59), ao falar sobre a contribuição da psicanálise na psicofisiologia no sentido
de considerar que não há fator que intervenha na vida psíquica dissociado de um
sentido humano, afirma que “não é o corpo-objeto descrito pelos cientistas que existe
concretamente e sim o corpo vivido pelo sujeito”. Por sua vez, Foucault (2009) centra sua
discussão sobre a relevância do corpo em que a corporeidade é central como realidade
biopolítica histórica, e que sob o crivo da disciplina estariam técnicas que perpassam
processos de modelagem, de construção de corpos dóceis. Segundo o autor, “é dócil
um corpo que pode ser submetido, que pode ser utilizado, que pode ser transformado
e aperfeiçoado” (FOUCAULT, 2009, p. 132). Csordas (2008, p. 102) fala de corporeidade
em uma discussão que postula o corpo como sujeito da cultura a partir de uma análise
da prática, o habitus, trabalhado por Bourdieu, aliado à noção de percepção, o pré-
objetivo, de Merleau-Ponty, em que não haveria uma distinção mente-corpo. A cultura
estaria corporificada desde o início, sendo o corpo “reconhecido pelo que ele é em termos
vivenciais, não como um objeto, mas como sujeito” (CSORDAS, 2008, p. 142). Por outro
lado, Almeida (1996) questiona se o corpo é um sujeito ou é, na verdade, o lócus das
performatividades que constituem o sujeito. Csordas (2008) preconiza que o corpo que
está em crise diz respeito à ideia de que existe um substrato biológico e natural que seria
transformado no corpo socialmente circunscrito a partir da intervenção da cultura.
Nesse sentido, Csordas vem contribuir com a discussão sobre essa temática que está em
cena, como resume Maluf (2001) quando diz que o corpo é visto numa perspectiva de
agência. Para Csordas (2008), o corpo é agente e experienciador, o que advém de uma
noção de embodiment que se pauta na fenomenologia pós-estruturalista ou pós-moderna.
A partir daí, Csordas busca problematizar dicotomizações, tais como natureza/cultura,
ao mesmo tempo em que procura escapar da ideia de corpo como um objeto em que
a realidade social seria inscrita. É com esse pano de fundo que o autor formula a ideia
de corpos sujeitos – em vez de objetos – de cultura em que o foco não se volta para as
representações simbólicas que tomam o mundo como realidade exterior aos corpos, mas
para as práticas e o estar no mundo. Csordas (2008, p. 101) argumenta que o paradigma do
embodiment pode ser elaborado para o estudo da cultura e do sujeito, e que sua perspectiva
advém da antropologia psicológica na direção da fenomenologia que “parte da premissa
metodológica de que o corpo não é um objeto a ser estudado em relação à cultura, mas
é sujeito da cultura; em outras palavras, a base existencial da cultura” (CSORDAS, 2008,
p. 102). O corpo seria o lócus em que emergem afetações, sendo este não objeto receptor,
mas um sujeito agenciador das inúmeras possibilidades em que essas afetações se dão
(CSORDAS, 2008, p. 102, grifo nosso).
Capítulo 4 | O mundo das mulheres na pesca 175
não tinha jeito. Essa expressão, não tinha jeito, diz respeito a não ter esse
corpo, o qual é construído na e pela pesca pelo adestramento corporal
que se faz na repetição e imitação cotidiana em que a disciplina do
corpo em relação às necessidades fisiológicas é apenas um aspecto.
Conforme já dito, há a disciplina do controle do enjoo, do uso da força
e do corpo (FOUCAULT, 2009). O corpo é fabricado num contínuo, na
experiência da/na pesca: a força, a mão, a coluna vertebral, as pernas, os
ombros, os olhos. As pescadoras fazem a pesca e a pesca as faz. Em suas
narrativas emergem ponderações sobre a construção de seus corpos,
moldados99 desde muito cedo para práticas que exigem simultaneamente
flexibilidade, firmeza, força e tolerância aos movimentos da embarcação:
99
O habitus se mostra uma noção interessante para pensarmos a construção de corpos
na pesca se pensarmos que ele é “o modo como a sociedade se torna depositada nas
pessoas sob a forma de disposições duráveis, ou capacidades treinadas e propensões
estruturadas para pensar, sentir e agir de modos determinados [...]” (WACQUANT,
2012, p. 36). É, ao mesmo tempo, sedimentação no corpo e corpo que sedimenta em
uma relação dialética do fazer e ser feito em que o individual e o grupal se mostram
no corpo. O tempo da vida das pescadoras foi e é perpassado por essa fabricação e
moldagem, tratando-se de um processo de longo prazo, iniciado quando eram crianças,
ou jovens mulheres, e que segue repetido, dia após dia, registrando uma corporalidade
em que elas reconhecem seus corpos como “um corpo mais para homem”. A fabricação
corporal é central no processo de fazer-se pescador/pescadora, em que a experiência
vivenciada se corporifica, deixa marcas, registra um habitus que remete a uma hexis
corporal diferenciada. Wacquant (2012), no texto “Esclarecer o Habitus”, propõe-se a
fazer uma reconstituição da gênese da noção de habitus, cujas raízes encontram-se na
noção aristotélica de hexis, estado adquirido. Sendo habitus o particípio passado do
verbo habere (ter ou possuir), no século XIII foi traduzido por Tomás de Aquino como
capacidade para crescer através da atividade. Wacquant afirma que a noção foi usada
por sociólogos como Durkheim, no curso “L’Évolution Pèdagogique en France” (1904-
1905); Mauss (em especial no ensaio “As técnicas do corpo”, de 1934); Max Weber (em
“Wistscheft und Gesellschaft”, de 1918); Veblen (que discorre sobre o que denomina de
habitus mental predatório dos industriais, em “The theory of the leisure class”, de 1899);
Elias (que fala sobre um habitus psíquico das pessoas civilizadas, 1937). Segundo
Wacquant, a noção ressurgiu na fenomenologia, nos escritos de Husserl, nos quais “o
habitus concernia à conduta mental entre experiências passadas e futuras, sendo que
Husserl usava como cognato conceptual o termo habitualität, mais tarde traduzido para
inglês pelo seu aluno Alfred Schutz como conhecimento habitual (e daí sua adoção
pela etnometodologia), uma noção que se assemelha com a de hábito, generalizada
por Maurice Merleau-Ponty (1945) na sua análise do corpo vivido como o impulsor
silencioso do comportamento social”. Porém, diz Wacquant, é no trabalho de “uma vida
inteira” de Bourdieu que se encontra “a mais completa renovação sociológica do conceito
delineado para transcender a oposição entre objectivismo e subjectivismo: o habitus
é uma noção mediadora que ajuda a romper com a dualidade de senso comum entre
indivíduo e sociedade ao captar ‘a interiorização da exterioridade e a exteriorização da
interioridade’” (WACQUANT, 2012).
Mulheres e o mar 176
100
Com a convicção de que à medida que o tempo passasse eu me familiarizaria com
aqueles espaços da pesca e com o cotidiano das mulheres, busquei registrar o maior
Mulheres e o mar 178
Porém, foi com grande surpresa que, ao voltar após ficar seis meses no
Estágio de Doutorado em Portugal, deparei-me com algumas mudanças
visíveis em quatro pescadoras. Uma delas tinha passado a arrumar as
unhas, fazer depilação com cera e massagem modeladora; outra passou a
arrumar as unhas e a pintar o cabelo. Mas foram outras duas as que mais
me surpreenderam: uma tinha emagrecido oito quilos. Ao manifestar
minha surpresa e comentar o quanto estava mudada, ela me alertou:
“não visse nada. A Neia emagreceu 20 quilos. Quando tu viajasses, nós
falamos: somos obrigadas a emagrecer antes da Rose voltar. Temos seis
meses. A Neia já disse que quer que tu tires as fotos tudo de novo para
mostrar como ela está agora. Tu não vais reconhecer”.
Enquanto mentalmente me questionava se a pesquisa teria
contribuído para motivar tal mudança, a pescadora concluiu sua fala:
“a gente falou: pois estamos dando entrevista, saindo em foto, filmagem.
O que vão dizer? Pescadoras gordas? Descuidadas? Nada disso! Vamos
emagrecer!” Tal afirmação me levou a refletir sobre os processos de
afetações que o campo possibilita, em que não apenas somos afetados,
mas onde também afetamos a vida das pessoas. Vi-me refletindo ainda
se teria sido o exercício de sombra proposto pela antropóloga que
teria instigado as pescadoras, ao olharem, responderem, conviverem
com a sombra, se olharem, perguntarem e voltarem para si mesmas se
propondo então a se recriar e se reinventar como mulheres pescadoras.
Em Maluf (2001, p. 88) encontramos a proposta de que o corpo
seja olhado, “não apenas como objeto da cultura, mas como também
dotado de agência própria; não apenas como receptáculo de símbolos
culturais, mas como produtor de sentido”. Nesse aspecto, o corpo das
pescadoras é produtor de sentido construído pela, para e na pesca, em
que a pesca as constrói e elas constroem a pesca. “São anos assim!”,
diziam-me.
É interessante trazer aqui as reflexões de Seeger, DaMatta e Castro
(1979), que se referem às populações ameríndias em que uma ideia
central diz respeito à fabricação do corpo na trajetória dos indivíduos.
Ao citar como exemplo a perfuração labial e auricular, definindo-a
como uma penetração gráfica, física, da sociedade no corpo, os autores
Quem vai dizer que nós estamos no mar se quem olha de longe
parece tudo homem? Parece ser tudo o mesmo corpo com a mesma
roupa. (Márcia).
Por isso dizem que não tem mulher na pesca. A roupa que usamos
é roupa de homem. Nosso corpo vira um corpo de homem: é calça
larga, macacão, bota grande, luva. Tudo é roupa de homem. Não
existe roupa de mulher na pesca. (Iliete).
Macacão feito de uma espécie de plástico grosso, cujo nome advém de épocas
101
passadas em que os pescadores literalmente passavam óleo na roupa para que tivesse
uma maior durabilidade, segundo depoimento oral.
Mulheres e o mar 182
A gente tem que inventar a partir do que tem. A gente faz assim:
tira essa costura dura da calça ou do macacão que só machuca.
Corta, tira fora e faz uma abertura. Depois é só colocar o zíper.
Mas tem que ser macio. Aí toda mulher pode fazer xixi no mar. A
única coisa é que sempre molha um pouquinho, mas que dá, dá.
Não fica esse macacão de homem. (Tina).
Segundo elas, já não é possível usar outro tipo de roupa que não
calças compridas, pois isso geraria um desconforto provocado pela
nudez. Foi interessante notar que, mesmo pescadoras que seguiam
preceitos religiosos cujas mulheres não devem usar calças compridas,
usavam por debaixo de saias ou vestidos, legs ou meia-calças, que não
deixam de ser tipos diferentes de calças. O imaginar-se sem calças
compridas faz com que as pescadoras denominem essa situação
aludindo à nudez, em que falam de desconforto e impossibilidade de se
imaginar de outra forma que não usando uma roupa que, embora e em
princípio, seria moldadora de corpos de homens, é aquela com a qual
elas se sentem familiarizadas e bem.
A vida é assim. Ela não vai aos poucos. Vai de uma vez. A não
ser em caso de uma doença. Mas com o pescador é assim: quando
vai, vai de uma vez. Teve um pescador que ficou cinco horas. Deu
uma bobeira. Quase foi. Quando o helicóptero estava voltando,
Mulheres e o mar 184
viu ele. Foi a sorte. Senão, já era. Assim, uma coisa, um descuido.
E a vida foi. (Alzira).
Não, vai bater. E ele ficou apavorado. Eu disse: “Calma, meu velho.
Calma! Não é assim”. E lá vem o Fonso, e lá vem o Fonso. Mas era
muito vento. O bote batia na água que respingava. Ele disse: “Meu
Deus do céu, nega. Nós vamos morrer debaixo do navio”. Eu disse:
“Calma, nego”. Foi a conta de nós pegar o cabo e jogar pro Fonso.
O Fonso só puxou a batera e o navio passou. Bem no rumo onde
nós estávamos. Ninguém disse uma palavra! Foi uma luta!
[E o navio nem via vocês porque são muito pequenininhos?]
Não, não. Ele nem vê porque é assim ó: quando o navio vem, até
uns quinhentos metros, uns seiscentos metros ele vê. Mas depois
não vê mais. Não vê! Olha, nega, foi por Deus. Aí outro dia foi
aqui, no mar da Taquara. Era escuro. Eu disse assim: “Nego, ali
vem um barco”. “Mas o barco vai passar por fora”, disse ele. Eu
digo: “Não pega na rede, não pega a bandeira”. Era escuro sabe.
“Nada, mulher! O barco vai passar por fora.” Eu disse: “Não,
não, faz uma volta pra nós não parar o motor, mas tu não pega
a bandeira. Vai mais um pouquinho pra terra”. “Essa mulher!
Uia mulher medrosa!” Eu disse: “Não, não, não é medrosa”. Foi
a sorte nós não pegar. A bandeira passou assim ó: arrastando
no barco. Outra vez nós estávamos colhendo rede aqui, veio
aquele barco, e veio, e veio, e veio. Nós fomos obrigados a saltar.
Quando vê que ele vem no rumo, a gente já tem que sair porque
eles não estão nem aí!
[E a senhora conhece alguém que pesca como vocês que chegou
a ir a fundo?]
Tem um primo nosso. Ele foi arrastar camarão, o Ananias, saiu de
madrugada. Disseram que ele cochilou, que não viu o barco. O barco
partiu a batera e ele morreu na hora. Só acharam ele depois de três
ou quatro dias. Outra vez nós estávamos com rede ali no mar do
Pinho. Deu um vento muito forte, que o vento, o mar, é uma coisa
que é complicada. Voltamos! O mar é vivo! Outra vez nós estávamos
lá perto do Gravatá, deu um vento terral que a água batia nas
minhas costas pra não cair no motor pra não parar. O vento sul, na
verdade, é o que mais prejudica nós, porque se dá vento sul e a maré
é pro sul, já cria muita onda. Fica banzerado que é uma coisa!
[Banzerado, o que é?]
Aquela marola que não é onda alta, mas também não é onda
baixa. Brisado já é o vento que vem do mar. Daí e difícil ir, vai
molhando tudo. Quando o meu filho estava com 19 anos, ele
pescava numa batera do pai, era caceio de corvina. Então viajava
três horas para fora. Ele e o meu sobrinho. Ele saiu uma quinta-
feira, uma hora da manhã. Eu levantei, fiz o café, arrumei a
Mulheres e o mar 186
comida e ele saiu. Depois, o pessoal veio tudo de fora, e nada dele
vir. E o vento da terra. Trovoada. E nada! Passou a noite toda no
mar. Aí eu fiquei apavorada. Não dormimos aquela noite. Foram
os barcos do Zezinho, do Anísio e de um rapaz, que hoje é morto,
procurar ele. Aí, o Zezinho perguntou como é que foi a noite,
se tinham visto uma batera de boca aberta. Eles disseram: “Se
eles estiverem vivos é um milagre, porque o que deu essa noite!”.
Aí, passou quinta-feira a noite toda. Sexta-feira à noite é que
acharam ele. Chegou em casa sábado à uma da manhã. Botaram
fora dez panos de rede, uns quinhentos quilos de corvina, o forro
da batera, pra aliviar a batera por causa da onda que era muito
alta e botava água pra dentro. Eles tiraram água à noite toda.
Disseram que tinha água até o joelho. O meu filho e o camarada.
No outro dia, eram três horas da tarde, ele estava com o pai lá
no porto trabalhando, arrumando a batera, tudo. Aí, dei café pra
ele. Ele começou a chorar. Daí eu beijei ele. Começou a chorar, a
chorar. Aí, eu disse: “O que é filho? Por que estás chorando?”. Ele
disse assim: “Nada mãe”. “Por que então? Estás pensando o que
passasses lá fora?” “Ah, mãe. Eu pensei de não ver mais a mãe.”
Vê que eles fecharam a casaria da embarcação e foram dormir os
dois para morrer ali dentro pra não ver as ondas do mar. Olha, a
gente vê todo mundo vivo, e eles não vinham, ai! [Nós duas não
aguentamos: choramos.]. Ser mãe de um pescador não é fácil.
Ainda bem que agora tem celular. O meu mais novo, quando
vai e demora, eu ligo: “Onde é que estás?”. “Estou aqui dentro
do bote, mãe!” Eu digo: “Ah, eu sei que estás aí dentro do bote,
mas onde filho?”. [Muito riso] Os meus três filhos homens estão
na pesca, um na industrial e dois na artesanal. A gente está
preparada pra tudo! E não está! É assim. (Rosinha).
102
Parte Geral, Livro I, Das pessoas – Título I – Das Pessoas Naturais, Capítulo I – Da
Personalidade e da Capacidade: Art. 6o A existência da pessoa natural termina com a
morte; presume-se esta, quanto aos ausentes, nos casos em que a lei autoriza a abertura
de sucessão definitiva; Art. 7o Pode ser declarada a morte presumida, sem decretação de
ausência: I – se for extremamente provável a morte de quem estava em perigo de vida;
II – se alguém, desaparecido em campanha ou feito prisioneiro, não for encontrado
até dois anos após o término da guerra. Parágrafo único. A declaração da morte
presumida, nesses casos, somente poderá ser requerida depois de esgotadas as buscas e
averiguações, devendo a sentença fixar a data provável do falecimento. Capítulo III – Da
Ausência – Seção I Da Curadoria dos Bens do Ausente. Art. 22. Desaparecendo uma
pessoa do seu domicílio sem dela haver notícia, se não houver deixado representante ou
procurador a quem caiba administrar-lhe os bens, o juiz, a requerimento de qualquer
interessado ou do Ministério Público, declarará a ausência, e nomear-lhe-á curador. Art.
23. Também se declarará a ausência, e se nomeará curador, quando o ausente deixar
mandatário que não queira ou não possa exercer ou continuar o mandato, ou se os seus
poderes forem insuficientes. Seção II Da Sucessão Provisória. Art. 26. Decorrido um
ano da arrecadação dos bens do ausente, ou, se ele deixou representante ou procurador,
em se passando três anos, poderão os interessados requerer que se declare a ausência
e se abra provisoriamente a sucessão. Art. 27. Para o efeito previsto no artigo anterior,
somente se consideram interessados: I – o cônjuge não separado judicialmente; II –
os herdeiros presumidos, legítimos ou testamentários. Art. 30. Os herdeiros, para se
imitirem na posse dos bens do ausente, darão garantias da restituição deles, mediante
penhores ou hipotecas equivalentes aos quinhões respectivos. § 1o Aquele que tiver
direito à posse provisória, mas não puder prestar a garantia exigida neste artigo, será
excluído, mantendo-se os bens que lhe deviam caber sob a administração do curador,
ou de outro herdeiro designado pelo juiz, e que preste essa garantia § 2o Os ascendentes,
os descendentes e o cônjuge, uma vez provada a sua qualidade de herdeiros, poderão,
independentemente de garantia, entrar na posse dos bens do ausente.
Mulheres e o mar 188
encontro do seu João. Daí, ele me viu. Eu abanei, ele chegou perto
de mim. Aí eu soltei o bote e fui pro bote dele pra depois pegar
esse aqui. E o trabalho pra pegar esse bote? Atrás, correndo. Peguei
na curva porque a embarcação, quando fica sem leme, o lado do
cabeçote do motor é o lado mais pesado. Aí, ele pende pra esse lado.
Ele fica dando aquela volta longe, longe, descansada. Parecia ser
um cabrito doido. Numa volta daquela foi que eu peguei. Pulei
pra dentro. Eu fiquei toda dolorida, uma meia hora surfando. O
meu braço aqui ficou tudo doído, machucado, vermelho. Passei
trabalho. Nunca tinha me acontecido isso aí. Nesses anos todos!
Mas sempre tem a primeira vez. Isso é pra eu me cuidar. (Naca).
Esse meu dedo aqui, que não estica mais, que ficou aleijado, foi
uma arraia. A gente estava pescando e fincou o esporão da arraia.
Foi um acidente de trabalho, como se diz. Fiquei com o dedo sem
prestar mais, defeituoso. Até hoje não prestou mais. (Luísa).
103
É uma peça metálica que existe para esticar a polia, que é um pedaço redondo de
borracha.
Mulheres e o mar 192
104
Disponível em: <http//www. sarapo.com.br>.
O escalpelamento é considerado um caso de saúde pública na região amazônica. Além
105
o maior número de vítimas de escalpelamento, cerca de 90% dos casos. Por perderem o
couro cabeludo, muitas mulheres usam um lenço na cabeça para esconder as marcas e, por
isso, elas são chamadas “As meninas de turbante”. O Pará vem realizando várias ações para
inibir o escalpelamento. O Amapá segue a mesma linha. O estado vem atuando de forma
preventiva na redução de acidentes com vítimas de escalpelamento por embarcação. Para
a execução de um trabalho mais efetivo, o governo do estado do Amapá conta com o apoio
da Associação de Mulheres Ribeirinhas e Vítimas de Escalpelamento da Amazônia, que
possui aproximadamente 150 mulheres associadas (SEM MÁSCARAS, 2009; Disponível
em: <www.direitos.org.br/index.php?option=com_content&task...>. Acesso em: 21 nov.
2011). Algumas iniciativas foram tomadas no sentido de minimizar essa situação, sendo
uma delas capitaneada pela defensora pública Luciene Strada de Oliveira, que, ao dela
tomar conhecimento em 2005, coordenou um diagnóstico sobre o assunto na região Norte,
a partir de onde a Defensoria Pública da União determinou e aprovou um programa de
erradicação do escalpelamento em uma ação conjunta com vários órgãos públicos, como
SUS, Marinha do Brasil, IML, além de instituições privadas, como fabricantes de motores
e ONGs (OLIVEIRA, 2010).
106
De autoria de Janete Capiberibe (PSB-AP), que tornou obrigatório o uso de proteção
no motor, eixo e partes móveis das embarcações, e que determinou que a embarcação
flagrada sem o uso desses equipamentos poderá ser apreendida e multada, além de o
condutor ter suspensa a habilitação para navegar. Em caso de acidentes pela falta das
proteções, quem dirige o barco pode ser processado.
A Associação de Mulheres Ribeirinhas e Vítimas de Escalpelamento da Amazônia
107
Como não ver que o corpo denuncia outro sentido, não aquele
que a técnica inicialmente consegue entender? Como não ver o que está
materializado de forma, em princípio, tão evidente para a pescadora,
de que, se fosse observado com um pouco mais de atenção, tornar-se-
ia possível dar-se conta? Na fala de Jussara, nota-se a experiência que
as pescadoras continuamente têm no que diz respeito a se depararem
com o despreparo de alguns técnicos, e no caso pincei o do INSS, para
atender um público que poderia ser denominado de diferenciado, como
as profissionais da pesca. Veja-se que a fala da referida técnica aponta
para uma noção de praia e mar como lugares de descanso, de férias, de
onde se sai mais bronzeada do que técnicos pálidos por trabalharem em
lugares fechados, segundo a observação irônica de Jussara.
Capítulo 4 | O mundo das mulheres na pesca 197
Por outro lado, Jussara remete a uma fala que se mostrou corriqueira
em campo e que alude à materialização que a pesca vai registrando no
próprio corpo no decorrer do tempo, um corpo que, por ter sido afetado
(LATOUR, 2010), à medida que se especializava, se constituía prova
irrefutável de uma profissão que diz quem são e por que são.
Capítulo 5
Ver Silva (2000). O autor aborda questões referentes ao fato de ser o pesquisador
108
dos dois lugares. Amparando-me nas palavras de Turner, seria um estar “no meio e entre
as posições atribuídas […] como se nada possuísse” (TURNER, 1974, p. 117).
Mulheres e o mar 200
110
A Epagri foi criada em 1991 a partir da fusão do Instituto de Pesquisa do Estado
(IASC) e das então associações de extensão rural (ACARESC) e pesqueira (ACARPESC),
tendo Acaresc na época a maior estrutura física e de pessoal, dedicada ao atendimento
à agricultura, cujo quadro de profissionais majoritariamente era de engenheiros
agrônomos. Passados mais de vinte anos, a Epagri ainda demonstra dificuldade em
Capítulo 5 | A relação com o estado 201
lidar com a área pesqueira. Sendo uma empresa resultado da referida fusão, ela não
conseguiu dar conta da diversidade implicada na junção de um trabalho que era feito
com agricultores e outro que se realizava com famílias de áreas pesqueiras. Como
continuamente tem que demonstrar que é uma empresa eficiente para o governo do
estado, e como a maricultura e a agricultura dão mais retorno financeiro e visibilidade
para Santa Catarina, os investimentos, tanto em corpo técnico quanto em recursos
financeiros, são destinados em maior volume para essas duas áreas do que para a pesca
artesanal, considerada por muitos técnicos como uma forma primitiva ainda de realizar
a atividade no mar, a qual consegue demonstrar pouco retorno financeiro. Há, portanto,
muito ainda a avançar.
111
A Epagri contempla pesquisa e extensão. O trabalho de extensão se divide em técnico
(realizado por engenheiros agrônomos e técnicos agrícolas que atendem a questões
ligadas à produtividade agrícola) e social (realizado por pedagogas, assistentes sociais,
enfermeiras, sociólogas, entre outras profissões, que trabalham com questões sócio-
humanas e ambientais).
A Epagri dispunha, na época da realização de minha pesquisa, de 12 centros de
112
114
Em seu trabalho de campo com uma associação de maricultores no Sul da Ilha
de Santa Catarina, Renata Britto também observou as dificuldades enfrentadas por
essa associação no processo de legalização das atividades. A pesquisadora observou
“o esforço de instituições ligadas à maricultura, capitaneada pela Epagri, para promover a
profissionalização, uniformização e padronização dos processos produtivos, para que os/
as produtores/as pudessem ser inseridos/as no mercado interno e, quiçá, internacional”
(BRITTO, 2012, p. 26). Um dos pescadores citados pela autora se refere às exigências
burocráticas, como licença ambiental, termo de ajuste de conduta, cujos documentos,
segundo ele, são difíceis de preencher “pelo próprio engenheiro da Epagri, quanto mais
um pescador” (Senhor Max apud BRITTO, 2012, p. 50). Segundo a autora, o discurso
oficial, “orientado pela lógica utilitarista/instrumental, defende a possibilidade de
conciliar desenvolvimento econômico e inclusão econômica, social e cultural por meio
da transformação do artesanal e da criação de um artesanal profissional competitivo
[...]” (BRITTO, 2012, p. 137).
115
Ao falar sobre as exigências dos órgãos reguladores, como Fatma, Ibama e Vigilância
Sanitária, um dos técnicos com os quais conversei culpou a bactéria, que seria
contaminante, para justificar a dureza da burocracia: “A burocracia é tão grande que
ele, o pequeno, não dá conta. E não é porque a lei quer, é por causa da bactéria que faria
mal a todos. Estamos em um país tropical. É diferente dos países da Europa que são mais
frios e onde a legislação é bem mais tranquila. Tem a questão aqui das barreiras sanitárias
que Santa Catarina tanto preza. A qualidade é negociável, a segurança não. Tem muitas
dúvidas, muitas questões que dependendo do técnico que pega o processo, será de uma ou
outra forma. Tem Fatma que fala que a área construída é o prédio; tem Fatma que diz
que é da cerca para dentro. Daí, quase todos ficam de fora. Isso que a Fatma é uma só”.
A fala do técnico ainda remete à complexidade que envolve a questão de quem exerce
os trâmites burocráticos e as muitas e diferentes formas de agir e exercitar o poder
em nome da burocracia e do próprio estado, o que veremos adiante neste capítulo em
relação aos processos de aposentadoria.
116
Tragtenberg (2006), faz uma discussão sobre burocracia e ideologia a partir de
um diálogo direto com Weber. Cita Frankel ao se referir à admiração de Weber pela
burocracia, pois ela “favorece uma administração racional realista” (TRAGTENBERG,
2006, p. 171). Tragtenberg (2006) defende que a burocracia é essencialmente um
conceito da esfera pública, operando a mediação entre o interesse particular e o interesse
geral; diz respeito não apenas a razões de eficácia na empresa, mas, sobretudo a razões
de poder no estado. O autor relembra ainda que, para Weber, é central contextualizar
“a burocracia, pois ela pode se colocar a serviço de diversos interesses de dominação”
(TRAGTENBERG, 2006, p. 187), tendo em vista que o exercício do poder se dá pela
administração. Sobre racionalização e burocracia, ver também Weber (1979, p. 229-282;
1993, p. 41-70; 1980, p. 16-38).
Mulheres e o mar 206
117
Sobre o poder do sistema, também veremos um pouco mais adiante quando nos
detivermos sobre os processos de aposentadoria. Em relação aos cursos ministrados
pelas extensionistas sociais da Epagri, por exemplo, para a compra de materiais simples
como gêneros alimentícios ou itens para compor artesanato, cujo valor liberado gira
em torno de trezentos reais, há a exigência de três orçamentos, o que demanda um
tempo que poderia ser mais bem utilizado na prática em campo, na relação com as
mulheres. Há ainda uma exigência do âmbito nacional de um número mínimo definido
de participantes por curso, registrados cada qual com o número de CPF, além dos
inúmeros relatórios finais comprovando o que foi executado. Uma demanda que toma
uma parcela considerável de tempo de extensionistas visando cumprir o que os níveis
hierárquicos exigem.
Capítulo 5 | A relação com o estado 207
118
No caso trabalhado pela autora, trata-se da comunidade negra Invernada Paiol de
Telha, em que as tensões, os questionamentos, as dificuldades relacionadas a processos
de regulamentação de terras e relações sobre quem está fora, quem está dentro do ponto
de vista do estado e dos pontos de vista das pessoas remete a “categorias que se referem
às diferentes formas de pertencer” (HARTUNG, 2009, p. 6).
Mulheres e o mar 210
No trabalho que realizou na Ilha do Capim, no estado do Pará, Leitão (1997) também
119
121
Aqui é preciso referir uma das grandes dificuldades da Epagri que, tendo um
quadro técnico formado preponderantemente por engenheiros agrônomos, encontra
sérias limitações para atender as populações pesqueiras (sem falar das indígenas), o
que precisa ser revisto. Os engenheiros agrônomos, preparados para lidar com a terra,
não se sentem à vontade em relação aos pescadores. Muitos querem a transferência
para regiões litorâneas, vendo-as como possibilidades de lazer pessoal, de melhor
qualidade de vida, mas não têm preparo, perfil e, destes, há os que não demonstram
vontade e disposição para aprender a lidar com o mar e com a pesca. Nas contínuas
comparações que fazem entre agricultores e pescadores, concluem que os primeiros
são mais organizados, planejam melhor e aceitam propostas de mudança, enquanto que
os segundos são vistos como desorganizados, agem sem planejar e são desconfiados em
relação a propostas de inovação que lhes pareçam inicialmente estranhas.
122
Huizinga (1990, p. 218), ao analisar o jogo como elemento da cultura, questiona se
a cultura continuaria se manifestando através de formas lúdicas. O autor enfatiza que
a expressão jogo traz em seu sentido “atividades que podem ser extremamente sérias”.
Ele também afirma que o elemento lúdico estaria em plena decadência desde o século
XVIII, e que “a civilização tem suas raízes no jogo, e para atingir toda a plenitude de sua
dignidade e estilo não pode deixar de levar em conta o elemento lúdico” (HUIZINGA,
1980, p. 229, 233).
123
Oliveira, ao fazer um estudo sobre uma família de santo de Almas e Angola, escolheu
como um dos tópicos de análise a jocosidade como forma de expressão das moralidades
dos membros do terreiro. A autora procurou pensar “a jocosidade como prática que não
se encerra em si mesma, mas uma prática que – além de ser um meio de expressão da
tensão entre a regra e quebra de regra – deve ser pensada como uma forma específica
de se relacionar (OLIVEIRA, 2012, p. 136). A ambiguidade nas expressões jocosas faz
com que escape a todo momento um pretenso sentido nas brincadeira (OLIVEIRA,
2012, p. 140). Mitchell (2010) observou que a brincadeira, o riso, o deboche e a
zombaria permitidos na dança Kalela era o que permitia a continuidade da vida tribal.
Ao realizarem a dança no contexto da cidade, os membros da tribo fortaleciam suas
relações por meio da jocosidade que a dança permitia.
Mulheres e o mar 212
Tem que fazer sentido, para que aceitem a novidade. Para Martins
(2007) há um processo de reinvenção contínuo, o qual atinge um estágio
ideal quando o pescador se abstrai, torna-se contemplativo, pois é aí que
ocorre uma espécie de explosão em que ele explica suas estratégias a
partir da intimidade que tem com aquela arte de pesca. Martins (2007)
percebeu que não se trata de algo grandioso ou espalhafatoso, mas que
há uma discrição nos procedimentos de reinvenção que são, na verdade,
quase invisíveis por dois motivos. Um, porque correspondem a pequenos
acréscimos que aproximam o aparelho de um grau de perfeição intuído
pelo pescador. Por outro lado, porque há também nos processos de
inovações que, por sua vez, vão alterar os resultados das pescarias,
a manutenção do sigilo. É nessa direção que Martins afirma que “as
Mulheres e o mar 214
124
Entre o oficio, que implica qualquer atividade de trabalho que requer técnica
e habilidade específica, e a profissão, como atividade para a qual um indivíduo se
preparou; e que exerce para obter os recursos necessários à sua subsistência (segundo
os dicionários da língua portuguesa), um e outro conceito nos fazem ponderar que as
mulheres pescadoras têm, por um lado, uma profissão, pois se trata do que exige muito
preparo, mas também exercem um oficio perpassado de técnica e habilidade.
Marié (1982, p. 22) observou que engenheiros que estariam encarregados de inserir
125
pois se pautavam por uma visão sobre esses territórios e pessoas como desqualificados
(territoire sans qualités; homme sans propriétés; homme sans situation), que ele resumiu
como ‘territoire sans nom’, territórios estes que, ao contrário de outros marcados por
insígnias altamente distintivas, como “Côte d’Azur, la Camargue ou Luberon, par exemple”
(MARIÉ, 1982, p. 40), fariam com que esses engenheiros considerassem os espaços
de pesca insignificantes, sem um significado especial, contrapondo-os aos altamente
distintos. Essas dificuldades dizem respeito ainda ao contexto da extensão rural, quando
técnicos demonstram dificuldade em trabalhar com o que denominam de pequeno
produtor, verbalizando que preferem lidar com produtores que já estejam estabelecidos,
aliado aos incentivos governamentais em transformar os pequenos em empresários.
Comunicação no sentido postulado por Freire (1977), segundo o qual a extensão
126
precisa ser compreendida como um espaço em que diferentes saberes podem e devem
conviver e ser respeitados.
Capítulo 5 | A relação com o estado 217
que diz respeito ao que foi resumido por Fleischer e Schuch (2010, p. 11)
como “envolver-se numa rede de conexão argumentativa”. Ao dissertarem
acerca da importância da discussão sobre ética e regulamentação, elas se
referem à necessidade de criarmos espaços de reflexão, “coletivizando
dúvidas que talvez estejam permanecendo nas ansiedades individuais de
cada pesquisador” (FLEISCHER; SCHUCH, 2010, p. 15). Ou seja, longe
de permanecer em elucubrações isoladas, contribuir para a composição
de redes de pares é central para que possamos nos construir e ampliar
nossos diálogos em conjunto.
Por meio da Lei no 11.958, de 26 de junho de 2009: Altera as Leis nos 7.853, de 24
128
e deveres na ordem civil”. Isso significa dizer que a “personalidade jurídica, portanto,
para a Teoria Geral do Direito Civil, é a aptidão genérica para titularizar direitos e
contrair obrigações, ou, em outras palavras, é o atributo necessário para ser sujeito de
direito” (GAGLIANO, 2004, p. 88). Desse modo, “quando uma lei é elaborada e toda
vez que a lei é interpretada – por juízes, advogados, funcionários públicos e cidadãos
em geral – encontra-se subjacente uma noção de sujeito de direito. O sujeito de direito
é aquele a quem a lei – em sentido amplo – atribui direitos e obrigações, aquele cujo
comportamento se pretende regular. A pergunta sobre como esse sujeito toma decisões
– em última instância, quem ele é – interessa aos juristas sob diversos pontos de vista.
Imputabilidade e inimputabilidade, capacidade e incapacidade, deliberação e intuição
são conceitos juridicamente relevantes e que se referem a estados mentais, intenções,
processos cognitivos, em suma, o que se passa em nossas cabeças quando tomamos uma
decisão” (CANTISANO, 2010, p. 132-151). O termo “sujeito de direito”, de um lado,
refere-se a quem é apto a ser submetido ao poder de outro, ou a uma ordem; de outro,
refere-se a quem é capaz de raciocinar, agir livremente e dominar os objetos do mundo.
A Marinha do Brasil define duas formas de ser pescador: amador e profissional. A
130
mas precisa provar. Um técnico do INSS vai à casa da pessoa para ver se
o que foi dito é verdade”.
Jussara, sobre a qual já me referi em capítulo anterior, e que era
uma das pescadoras que estavam presentes nessa reunião, durante o
intervalo, me confirmou que ocorrem essas visitas e me relatou como
foi a que uma técnica do INSS fez à sua casa, objetivando coletar provas
sobre se, de fato, seria considerada pescadora. Afora o relato de Jussara,
já citado e que fala de humilhação, outras pescadoras nos narram suas
experiências com o INSS:
“Aquellos que son incongruentes con nuestro estereotipo acerca de cómo debe ser
determinada especie de individuos. El término estigma será utilizado, pues, para hacer
referencia a un atributo profundamente desacreditador […]”.
133
Pensando o poder como relacional, Wolf (2003) diferencia quatro modalidades: 1)
individual: potência ou capacidade que cada um tem; bom para entender por que as
pessoas se envolvem no jogo de poder; 2) transacional: emerge nas transações e relações
entre as pessoas; 3) tático ou organizacional: diz respeito à exibição das capacidades de
algumas pessoas em relação a outras, enfatizando os instrumentos que permitem que
uns controlem as ações dos outros; 4) estrutural: manifesto nas relações; repercute nos
meandros das relações, mas também controla os contextos. Este último ele relaciona
com o poder de distribuir e alocar o trabalho social, em Marx, e a governança a qual
Foucault se detinha; ação sobre a ação.
Mulheres e o mar 226
134
Segundo Foucault, a constituição de “quadros” foi um dos grandes problemas da
tecnologia científica, política e econômica do século XVIII, em que o autor inclui
“inspecionar os homens, constatar sua presença e sua ausência, e constitui um registro
geral e permanente [...]” (FOUCAULT, 2009, p. 143). No caso aqui abordado, diz
respeito a um registro geral e permanente de (todos) trabalhadores brasileiros. Segundo
Foucault, trata-se de uma tática disciplinar que “se situa sobre o eixo que liga o singular e
o múltiplo. Ela permite ao mesmo tempo a caracterização do indivíduo como indivíduo,
e a colocação em ordem de uma multiplicidade dada. Ela é a condição primeira para o
controle e o uso de um conjunto de elementos distintos: a base para uma microfísica de
um poder que poderíamos chamar de ‘celular’” (FOUCAULT, 2009, p. 143-144). Em
relação ao sistema informatizado sobre aposentadoria do INSS, chegou-se ao último
estágio possível. Todos estão enquadrados.
Capítulo 5 | A relação com o estado 227
Cada vez mais sai da mão do servidor e vai para o sistema. Agora é o
sistema que define. Chega à frente do computador e vai respondendo,
e o sistema vai negar ou aceitar. O sistema não é uma pessoa, mas
é ele que define. Depois, chega lá, no presidente do INSS, que assina
aquilo que o sistema definiu. O Segurado Especial é o último estágio
da sociedade. Todos estão enquadrados no sistema.
microempresários. Percebi nas falas dos técnicos uma forte alusão a um discurso que
podemos denominar de “sebraeniano”, que diz respeito claramente a um discurso do
empreendedorismo que aponta que é mais interessante se constituir em empresariado.
Resta saber para quem isso é mais interessante, haja vista que há, por trás desse discurso,
uma série de exigências que se referem à legalização de empreendimentos bem como à
padronização dos produtos e de formas de vida.
Capítulo 5 | A relação com o estado 229
Eu fui com 4 anos para a Ilha dos Remédios. Faz seis anos que
estou aqui nessa casa direto. Vivi na Ilha 24 anos [...] A Patrícia
era bebê, os dois outros eram meninos. Quem sabe a tia adotou
eu por eu ser menina! Ela ficou comigo. Precisava colocar na
escola. Como colocar sem registro? Tinha que registrar. Então me
registrou lá mesmo em Curitiba. Eu sou filha de Luiza Castanho
Correia e de Jetel Mendes, mas no registro de nascimento está o
nome de minha tia, Eulália Mendes, como minha mãe, porque ela
me registrou. Não botou nem o nome do marido dela. Só o nome
dela mesmo. Daí ficou assim: o nome dela como mãe e sem pai.
(Safira).
Hoje, eu digo pra ti: “eu sou feliz!”. Eu olho pra mim, para eles e
digo: “Nós somos vencedores! O mundo não nos destruiu”. Há 39
anos começamos eu e ele, hoje somos 28. Entende? Hoje eu olho e
digo: “vencemos!”. O que eu posso fazer por eles eu vou fazendo,
abracei a causa da mulher casada, da mulher trabalhadora, da
mulher guerreira. Eu digo que o governo, na verdade, a Dilma
devia, eu digo pra ti Dilma: “devias olhar para as mulheres
pescadoras porque aqueles 540 reais são muito pouco. Podias fazer
um pouco mais pela classe pescadora”. Porque a gente escuta na
televisão que ela vai ajudar a mulher da pesca. Que Deus abençoe!
Que ela possa ter muita luz no coração dela, mas que faça logo
137
Como acompanhei reuniões do INSS em diferentes regiões do estado, foi possível
observar diferentes posturas. Por exemplo, no litoral norte, a equipe de técnicas
esclareceu sobre os quatro meses aos quais as pescadoras têm direito de trabalhar no
ano fora da pesca, sem perder o direito de segurada especial. Ou seja, como diziam as
secretárias de colônias e as pescadoras, o destino destas depende do técnico e de seu
preparo.
Dilma Rousseff, atual presidenta do Brasil.
138
Capítulo 5 | A relação com o estado 235
porque muita mulher vai morrer, como já estão morrendo, sem ter
o reconhecimento. (Judith, Balneário Camboriú).
Que faça uma lei digna da mulher porque sabe que a mulher é
mais fraca do que o homem, sabe que é mais difícil ela chegar
para dar um tapa no homem. Ela não quer fazer isso. Tem muitas
que nem trabalham mais porque não têm nem mais condições
de trabalhar. Se ela pudesse ainda receber o seguro-desemprego,
ainda seria feliz, mesmo que fosse no final da vida dela. (Rosinha,
Balneário Camboriú).
O Ministério da Pesca tem que dar uma ajeitada, apoiar quem é
pescador mesmo e dar a licença para o pescador pescar legalizado
e não como um bandido. (Marizete, Barra do Sul).
O pessoal da pesca, seja do Ministério, da Epagri, do governo, tem
que fazer isso que estás fazendo. O que estás fazendo? Ouvindo
nós. É isso que precisa antes de criar leis, normas, sem conhecer o
pescador e a pesca. É isso: “diz lá pra eles. Se eles querem ouvir a
gente, é claro!”. (Adriana, Itapoá).
aqui direto, todo dia. Não tem medo de nada. (Viviane, Barra,
sobre Rosinha, Balneário Camboriú).
param durante esse período, mas que sentem muitas dores na região abdominal e
lombar, o que faz com que, ao chegar do mar, como presenciei, tomem um banho
quente e se deitem, aquietando-se por algumas horas, diferentemente dos demais dias,
quando chegam, organizam tudo e continuam em outros afazeres.
140
Fonseca (2004), ao discorrer sobre a vida e a família de mulheres de classes
populares de Porto Alegre, Rio Grande do Sul, deu a um dos capítulos o título
“Mulheres Valentes”. De certa forma, o sentido é distinto do abordado pelas
mulheres com as quais trabalhei. Em Fonseca, essa denominação diz respeito às
histórias relatadas por mulheres sobre suas reações à infidelidade conjugal do
marido. A autora traz a história de três mulheres que trabalham para sustentar
suas famílias, referindo-se à valentia feminina no enfrentamento da infidelidade
masculina (FONSECA, 2004, p. 113-114, 129). O ponto em comum seria a agência
delas em relação à vida.
Capítulo 5 | A relação com o estado 239
O que estou te falando. Não sei se é certo dizer isso, estou falando
do íntimo, do meu ser. Não é algo que eu falaria para um jornalista
em uma entrevista rápida. O que vou te falar agora não é para tu
gravar, para tu escrever. É para tu lembrar. E, na hora certa, tu
vais lembrar. Pode ver: em cada uma das mulheres pescadoras, se
tu fores olhar lá atrás, na mocidade, na infância, tem uma história
de luta, de sofrimento. Tem, em nós, uma valentia. Não é? Uma
forma de enfrentar a vida, de ser guerreira, que a gente aprendeu
com o mar. E ele não amedrontou. Ele ensinou. Pode ver cada uma
de nós. (Safira, Barra do Sul).
grafo que de vez em quando deixe de lado máquina fotográfica, lápis e caderno, e
participe pessoalmente do que está acontecendo”.
Mulheres e o mar 240
social) e visibilidade simples (social). As pescadoras que vão para o mar estariam dentro
da social, enquanto que as demais profissionais concentrariam uma invisibilidade de
forma dupla. As pescadoras em terra teriam uma visibilidade menor do que as que
Mulheres e o mar 242
embarcam, porém ainda um pouco maior do que a das esposas colaboradoras, no caso
as menos visíveis entre as invisíveis.
O fato de muitas mulheres trabalharem em terra, com grande destaque para os
143
próximo, minha interlocutora central é Maluf (2009, 2012) entendendo que a autora
traz contribuições instigantes para pensarmos sobre o que ela propõe como uma
“antropologia do sujeito”, a partir da qual visualizo o exercício, entre as muitas formas
de antropologias (BASTOS, 2010), de uma antropologia consequente (SAEZ, 2009).
Não só uma antropologia dos sujeitos – a partir dos embates em campo e voltados
ao campo, mas também uma antropologia com os sujeitos – antropólogos – com os
quais aprendemos a produzir e a nos construir como antropólogos. Pinço o que Maluf
Capítulo 5 | A relação com o estado 245
(2012) propõe quando fala sobre uma antropologia do sujeito: “O enunciado ‘por uma
antropologia’ sinaliza que não existe uma antropologia do sujeito; e a locução ‘do sujeito’
sinaliza que existe ‘o sujeito’. O desenrolar do meu argumento vai, senão inverter os
sinais, atenuar um tanto o que pode ser lido como uma assertiva. Inicialmente porque,
como eu vou discutir adiante, o sujeito está presente, mesmo que na maior parte das
vezes de forma espectral, em diversos estudos antropológicos contemporâneos. Em
segundo lugar, porque, para grande parte das teorias sociais críticas contemporâneas,
por exemplo, no campo do feminismo e dos estudos pós-coloniais, em seu diálogo com
teorias do sujeito como as psicanalíticas, foucaultianas e as da filosofia da diferença,
entre outras, ‘o sujeito’ enquanto ente unificado, substantivo, prévio à experiência, o
sujeito da razão, representado na teoria antropológica clássica pela figura do ‘indivíduo
moderno’ seria uma ficção. Cabe explicitar que o que estou tomando como sujeito não
se reduz à abordagem da noção de Pessoa, essa sim com uma extensa e densa carreira
no interior da antropologia” [...]. (MALUF, 2012, p. 1-2, grifo nosso).
145
Luis Antônio Baptista usa esta expressão para falar da mutilação de corpos de
bêbados, travestis, negros, crianças e adultos com AIDS, entre outros, falando do
que considera na contemporaneidade uma reedição e aperfeiçoamento de estratégias
mórbidas de banimento, em que profissionais de prestígio, padres, atrizes, psicanalistas
“circulam dentro e fora da mídia, produzindo a ingênua e eficaz impressão de uma fala
individual e neutra” (BAPTISTA, 1999, p. 47). Ao falarem da fragilidade e carência
Mulheres e o mar 246
desse outro, na verdade contribuem como amoladores de faca que promovem, acirram
e justificam o preconceito que desqualifica formas diferenciadas de ser e de existir, seja
por sexo, orientação sexual, raça.
146
“A expressão erga omnes, de origem latina (latim erga, “para”, e omnes, “todos”), é usada
principalmente no meio jurídico para indicar que os efeitos de algum ato ou lei atingem
todos (grifo nosso) os indivíduos de uma determinada população ou membros de uma
organização, para o direito nacional. Enquanto que os atos legislativos (leis, decretos
legislativos, resoluções, entre outros) têm como regra geral o efeito erga omnes, as decisões
judiciais têm como regra geral apenas o efeito inter partes, ou seja, restrito àqueles que
participaram da respectiva ação judicial. Alguns processos judiciais, contudo, possuem o
efeito erga omnes, como a Ação Direta de Inconstitucionalidade, quando se ataca um ato
normativo (que a princípio teria validade contra todos, como uma lei), a qual, se considerada
procedente, retirará do mundo jurídico tal ato normativo, valendo contra todos. Têm o
mesmo efeito, ou seja, eficácia contra todos (e mais efeito vinculante), as decisões definitivas
de mérito, proferidas pelo Supremo Tribunal Federal (STF), nas ações declaratórias de
constitucionalidade, nos termos do § 2o do art. 102 da Constituição Federal de 1988. Sendo a
inconstitucionalidade reconhecida em uma ação que não tem o efeito erga omnes, como no
caso de recurso extraordinário contra decisão judicial interposto junto ao Supremo Tribunal
Federal, à decisão poderá ser dado efeito erga omnes por meio de Resolução do Senado
Federal, conforme art. 52, inciso X, da Constituição Federal” (ERGA OMNES, 2011).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
pesca e não precisam virar um homem para ser pescadoras. Elas são
mulheres, estão e continuam pescando como mulheres. Para citar o
exemplo da indumentária da pesca, podemos dizer que o macacão
não tem gênero. Há algo de arbitrário quando se coloca um gênero
no macacão. E há algo de enfrentamento quando a pescadora coloca
um zíper nesse mesmo macacão para dar a ele o gênero que ela quer,
mostrando que continua mulher e que é pescadora.
Entendo que se faz central fazer um exercício de olhar o mundo
da pesca a partir de um prisma que vá das mulheres para os homens,
como pôde ser observado no capítulo específico sobre as narrativas
autobiográficas dessas mulheres, e no decorrer do livro, sobre como
se veem, como vivenciam e que significados aludem a seus espaços
de trocas e sociabilidade e sua valorização como trabalhadoras, entre
outras questões. Um olhar mais atento a esse mundo da pesca nos
poderá dar a possibilidade de perceber, mais do que dizem, como
vivenciam e significam esses aspectos.
Em um de seus estudos, realizado em uma comunidade
do litoral Sul do Brasil, e referenciado no decorrer deste livro em
diferentes momentos, Maluf pôde perceber realidades que colocam
em questão os modelos formais mais visíveis e, a partir delas, construir
interpretações, além de compreender mais sobre a cultura de gênero ali
vigente, suas complexidades e sofisticação. É uma maneira de entender
os significados ou, como afirma de forma contundente, “uma maneira
de entender como se constituem essas diferentes vozes, ou seja, como
se constituem socialmente as identidades de gênero na comunidade”
(MALUF, 1993, p. 14).
Posso aqui me referir ao fato visível encontrado em campo
em que, na grande maioria dos locais de pesca, homens e mulheres
trabalham em funções ora distintas, ora iguais; em atividades ora
separadas, ora juntas, mas que muitas vezes se entrecruzam. As
embarcadas trabalham em embarcações pequenas, nas quais ele e ela
pescam e delas trazem, limpam evisceram o pescado; ou pode ocorrer
também que, enquanto ele faz uma dessas atividade, ela faz outra
visando maximizar o tempo do qual dispõem.
Em relação às que trabalham em terra, são elas, em grande
maioria, que limpam, preparam, transformam. Nesses casos, ao
chegar a terra, os pescadores largam tudo e a partir de então elas dão
continuidade ao processo dali em diante, incluindo seleção, limpeza,
evisceração ou descasque e comercialização. Mas isso também pode ser
Mulheres e o mar 250
Saez (2009, p. 16) reporta-se ao fato de que a antropologia é aquela que não postula
147
que não haja realidade objetiva, mas que nessa realidade objetiva há muito mais do que
supõem outros cientistas. Para ele, o que interessa é estar aberto à imprevisibilidade.
Mulheres e o mar 254
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Referências 285
Figura 4 – Tarrafeando
Figura 5 – Pescando baiacu
Figura 6 – À espera
Figura 7 – Mulheres ao mar
Figura 8 – Na pesca da tainha
Figura 9 – Um porto seguro
Figura 14 – Camaradas
Figura 15 – Esperando para sair ao mar
Figura 16 – Indumentária em terra
Figura 17 – Enredando a rede
Figura 18 – Macacões de oleado
Figura 19 – Mãos no descasque de camarão
Figura 20 – Mãos na pesca I
Figura 21 – Mãos na pesca II
Figura 22 – A canoa Tansinha espera
Figura 23 – Ranchos e canoas
Figura 24 – Cordas, bandeiras e âncoras
Figura 25 – Bandeiras e botes
Figura 26 – Bandeiras multicoloridas I
Figura 27 – Bandeiras multicoloridas II
Figura 28 – Bicicletas
Figura 29 – A embarcação e o mar
Figura 30 – Embarcações
Figura 31 – A água como espelho