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O poeta fala, no texto, sobre alguns toureiros que conheceu. O último de que fala é Manolete. Na primeira estrofe
do trecho que transcrevemos, ele recebe qualificações de uma forma ou outra relativas a mineral; na segunda, ganha
qualificações concernentes a vegetal. Seus predicados são a secura, a contenção, a agudeza. Ele é lenha, madeira, fibra
(vegetal seco) e não planta; é deserto (figura que lembra a secura, a contenção); é mineral (também evoca o que é seco
e agudo). Esses predicados estão presentes no interior (nervos) e no exterior (figura) do toureiro.
Seus atos são figurativizados pelo percurso da matemática. A vida apresenta uma enorme fragilidade. Nela, a
todo momento, roça-se a fímbria da morte. O poeta fala em fluido aceiro da vida (aceiro é um trecho da vegetação que
se desbasta para que o fogo não salte para lugares indevidos). O ascetismo, a contenção, a secura de Manolete derivam
da consciência dessa fragilidade, da certeza de que qualquer gesto menos preciso pode significar a morte. Por isso, à
tragédia, à emoção, à vertigem e ao susto, que poderiam levar à ruptura com a realidade, ele contrapõe o cálculo, a
precisão, o número, a geometria, os decimais, peso e medida. Os versos seguintes dizem que Manolete cultivava sua
flor asceticamente, secamente. A flor é a emoção. É preciso conter a emotividade, domar sua explosão e, depois,
trabalhá-la, não permitindo que se derrame. A emoção deve ser pouca. Não se deve nunca perfumar a flor, deixar que
uma emotividade descontrolada se espalhe.
Essas estrofes estão referindo-se ao toureiro, cujo trabalho lhe impõe condições tais que a presença da morte é
uma constante e a vida existe apesar das circunstâncias adversas. Deixamos três versos de lado em nossa leitura: mas
demonstrar aos poetas, sem poetizar seu poema e lenha seca da caatinga. Os dois primeiros versos não se integram ao
plano de leitura proposto, o da vida de um toureiro. Como a atitude de Manolete é um ensinamento para os poetas?
Esses versos determinam a criação de um outro plano de leitura: o do ato de poetar. Todas as figuras devem ser lidas
agora também nesse plano. O poeta deve ser seco, contido, agudo, domar as emoções. Sua poética deve ser contida,
para que, com um gesto menos calculado, não rompa ele com a realidade em que deve trabalhar.
O último dos três versos leva a um plano de leitura social. Não se trata mais do toureiro espanhol, mas do
nordestino (lenha seca da caatinga), que, vivendo em condições tão extremas, roça a todo instante a fímbria da morte,
devendo, pois, com precisão, calcular o fluido aceiro da vida. É seco, contido, doma suas emoções, pois qualquer gesto
menos preciso pode significar a ruptura definitiva.
Esse texto admite, pelo menos, três leituras: a do tourear, a do poetar e a do viver no Nordeste. As anedotas, as
frases maliciosas, de duplo sentido, os textos humorísticos jogam com dois planos de leitura. Neles, lê-se o que pertence
a um plano em outro. Veja, por exemplo:
— Então, o senhor sofre de reumatismo?
— É claro. O que o senhor queria? Que eu usufruísse do reumatismo, que eu desfrutasse do reumatismo, que eu
fruísse do reumatismo, que eu gozasse o reumatismo?
Observe que, nessa anedota, o verbo sofrer está usado em dois sentidos diferentes: sofrer + de + nome
designativo de doença significa “ter”; sofrer + de + nome abstrato significa “padecer”. A questão foi formulada com o
primeiro sentido, que determina um plano de leitura: o das doenças que se têm. Foi, no entanto, lida pelo interlocutor
no segundo sentido, que gera outro plano de leitura: o dos sofrimentos da vida.
Para que haja uma anedota, ou duplo sentido, é preciso que haja duas leituras em algum nível linguístico. Na
anedota abaixo, por exemplo, enuncia-se a frase com uma entonação e ela é lida com outra.
A professora passou a lição de casa: fazer uma redação com o tema “Mãe só tem uma”.
No dia seguinte, cada aluno leu sua redação. Todas dizendo mais ou menos as mesmas coisas: a mãe nos
amamenta, é carinhosa conosco, é a rosa mais linda de nosso jardim etc. etc. etc. Portanto, mãe só tem uma...
Aí chegou a vez de o Juquinha ler sua redação:
“Domingo foi visita lá em casa. As visitas ficaram na sala. Elas ficaram com sede e minha mãe pediu para mim ir
buscar coca-cola na cozinha. Eu abri a geladeira e só tinha uma coca-cola. Aí eu gritei para minha mãe: ‘Mãe, só tem
uma!’”.
Viaje Bem, revista de bordo da Vasp, :4, 1989. Apud ABAURRE, Maria Bernadete Marques & POSSENTI, Sírio. Vestibular Unicamp; língua portuguesa. São
Paulo, Globo, 1993. p. 91.
Um texto pode ter várias leituras, bem como pode jogar com leituras distintas para criar efeitos humorísticos.
Entretanto, o leitor não pode atribuir-lhe o sentido que bem entender. Ele contém marcas de possibilidade de mais de
um plano de significação. A primeira são as palavras com mais de um significado. Elas são chamadas relacionadores de
leituras, pois apontam para mais de um plano de sentido. É o caso do verbo sofrer ou da frase Mãe só tem uma tomados
em dois sentidos nas piadas acima. A outra são palavras ou expressões que não se integram no plano de leitura proposto
e, por isso, desencadeiam outro plano de sentido. São denominadas desencadeadores de leituras. No poema de Cabral
analisado acima, são desencadeadores as palavras poeta, poetizar, poema e a expressão lenha seca da caatinga.
O leitor cauteloso abandona interpretações que não estejam apoiadas no texto e em suas recorrências.
Dois exemplos de utilização das diversas possibilidades de leitura de um texto. No cartum de Geandré, o efeito
humorístico é obtido por meio da leitura desautomatizada de uma frase cotidiana. No anúncio do jornal, a duplicidade
de leitura é usada para opor um repertório erudito ao repertório popular das revistas em quadrinhos e desenhos
animados.
Exercícios
A múltipla possibilidade de leitura do texto pode ser usada intencionalmente pelo enunciador para que o seu
texto atinja o resultado que ele tem em mente. É o caso da passagem bíblica que segue, extraída do capítulo 12 do
segundo livro de Samuel. Para situá-la, convém recuperar resumidamente o que diz o capítulo anterior, que, sob o título
“Pecados de Davi”, relata um episódio pouco edificante para o grande rei de Israel.
Segundo o relato, certo dia, ao entardecer, Davi avistou, do terraço do palácio real, uma mulher que tomava
banho e se encantou por ela. Era Betsabeia, mulher de Urias, um dos trinta soldados mais valorosos de Davi. Estando
Urias ausente de Jerusalém, Davi dormiu com Betsabeia, engravidando-a. Não tendo conseguido empurrar a
paternidade da criança para Urias, Davi ordenou que Joab, seu sobrinho e comandante das tropas em guerra, colocasse
Urias bem na frente de batalha, na região de maior violência e risco, para que ele morresse. Executada a ordem do
soberano, Urias morreu e Davi tomou Betsabeia como esposa.
Segue então o texto que será objeto de análise.