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ntrevista

Entrevista com cacique Pequena, dia 28 de maio de 2015.

Lucas - Pequena, durante a produção da eu recebi a missão de ser cacique (em 1995), A sugestão de Peque-
na para a entrevista partiu
entrevista, perguntamos (a equipe de produ- que estive no meio de vários homens, em de Larissa. Ela havia fei-
ção, Lucas Barbosa e Ronaldo Salgado) qual Brasília, em Minas Gerais (em assembleias), to uma matéria sobre a
característica a senhora achava mais marcan- e eles (homens, lideranças indígenas presen- cacique para a disciplina
de Jornalismo Impresso
te em si. A senhora não soube responder e tes em uma assembleia ocorrida em Minas I, em 2014, e muito havia
ficou de nos dar a resposta hoje ... Gerais) disseram que nós mulheres só ser- se impressionado com a
Pequena - Ai, foi? (risos) víamos pra cama e pé de fogão ... (Quando mulher.
Lucas - Hoje, a senhora já é capaz de nos eles disseram isso) Eu me senti lá embaixo.
mostrar essa principal característica? Então, meu Deus, se mulher só serve pra
Pequena - Aí você me pegou ... cama e pé de fogão por que o meu povo me
Lucas - Como a senhora é hoje? Se a se- elegeu pra ser cacique? Porque uma cacique
nhora pudesse definir-se em uma palavra ... é uma grande pessoa. Por que me elegeram,
Pequena - A minha vida foi muito sofrida, pra eu passar por toda essa dificuldade na
não nego pra ninguém. Mas, hoje, eu tenho minha vida?
uma vida mais regular. Não é porque eu te- Quando eu levantei a voz (começou a
nha me tornado cacique. É que, hoje, as coi- discursar) e eles viram que era uma cacique
sas são totalmente diferentes de outrora. An- mulher, eles só não me comeram porque
tigamente, era uma vida; hoje é outra. E eu não foi possível. Na língua deles, porque eu
fui uma pessoa que sempre gostei de viver o não entendia, pode até ser que eles tenham
normal que todo mundo vive. me esculhambado. Lá, eu me senti no chão ...
Eu fui uma pessoa que só vivi o passado e Porque eu tinha saído daqui, tendo sido elei-
o presente; o passado era uma coisa, o pre- ta pelo meu povo, e lá eu ser descriminada é
sente é outra. No meu período de infancida- muito difícil. Não queriam aceitar aquela mu-
de (infância) foi muito diferente de hoje. Não lher com eles ...
vi o mundo por 11 anos. Eu acho que é uma Eu pedi a fala na mesa e disse que a mu-
grande tristeza na vida de uma pessoa, viver lher não tinha vindo ao mundo só pra cama e
11 anos sem ver o mundo, sem ver a luz do pé de fogão. A mulher tinha vindo ao mundo
Sol. Só vendo por apalpo. Só o apalpo e as também pra criar os objetivos dela, ser al-
oiças (ouvidos). Com 12 anos eu vi a luz do guém na vida e encostar '0 ombro no ombro
Sol. Para mim, foi uma grande alegria! do homem' e ter uma vida normal, ser uma
E eu me tornei uma mulher, né? Eu me pessoa também de respeito, ter também ca-
tornei uma mãe. Com quatro anos (poden- tegoria na vida, não ser só isolada.
do ver), eu me casei, passei a ser mãe, sou Depois, eu entendi que nós mulheres -
mãe de 16 filhos - não nego pra ninguém. E isso tanto faz ser índia ou branca (não-índias)
depois dessa convivência de família grande, - não somos aquelas pessoas tão desfigu-
eu passei a ser cacique, né? Porque o caci- radas como o homem machista acha que
que (Odorico) morreu (em 1992), eu tomei de somos. Porque existe muito homem que
conta da carga - posso dizer assim -, da cau- apoia as mulheres, mas existem muitos que
sa, da luta do povão. E eu fiquei lutando até não apoiamo Existem muitos homens ainda
hoje. Passei por altos e baixos, mesmo sendo no mundo que querem ser muito machão e
cacique. Mas, hoje, eu estou aqui, posso di- (para eles) a mulher não é nada - mesmo hoje
zer que tenho uma vida normal, todo mundo vendo a vida que a mulher vive: trabalhan-
me reconhece como cacique Pequena, todo do, fazendo por onde serem independentes.
mundo me respeita ... Não sei se tô dando a Porque a mulher, hoje, a maioria, não é mais
resposta pra vocês certa ... dependente do marido, nem de pai, nem de
Lucas - (A resposta da) pergunta é sempre mãe: elas são dependentes de si próprias.
do jeito que a senhora acha, é sempre o que Elas trabalham de forma que façam com que
a senhora tá pensando. Pequena, o seu filho elas possam chegar a encontrar a solução de-
Messias também este-
João, também numa pré-entrevista, definiu-a las para viver a vida que elas querem viver. E ve com Larissa na feitura
como "guerreira". A senhora concorda com antes não era assim. da matéria sobre Peque-
essa definição? Porque o modo que os índios falaram, eles na, na disciplina Jornalis-
mo Impresso I em 2014, e
Pequena - Essa história de guerreira não achavam que nós mulheres não éramos su- endossou a sugestão de
é só ele quem me define assim. Na hora que ficientes pra pegar os trabalhos que eles tra- entrevista.

CACIQUE PEQUENA I 87
Como no semestre balhavam, as lutas deles - isso tanto índios que a mulher pode, sim, representar politica-
2015.1 a turma de La- como não-índios. E eu mostrei pra eles que mente uma aldeia ou seja lá o que for?
boratório de Jornalismo
Impresso contou com o nós mulheres também temos a capacidade de Pequena - Bom, meu filho, eu aprendi co-
número ímpar de nove ser alguém na vida e de viver com os mesmos migo mesma. Eu aprendi com a fraqueza que
alunos, faltaria um nome objetivos deles. A mulher (tem a capacidade eu via do lugar (aldeia Jenipapo-Kanindé),
em uma equipe de produ-
ção das matérias. Lucas foi de) ser uma pessoa da alta sociedade, de ser onde todo mundo "passava necessidade".
quem acabou sozinho. uma pessoa guerreira, de ser uma pessoa ati- Aprendi sem precisar de ninguém - só Ele,
va, esperta, de ser uma pessoa atenta e lem- aquele lá de cima. Aquele lá de cima é tudo
brar o modo de ela viver sem ela viver só, iso- na minha vida; eu não troco ele por nada!
lada. A mulher também pode ser uma pessoa Aquele é meu braço forte: Aquele é meu pai,
da sociedade. Aquele é meu irmão, Aquele é meu amigo,
Eles falaram (lideranças indígenas presen- Aquele é tudo pra mim, eu sem Ele não sou
tes em uma assembleia ocorrida em Minas nada!
Gerais) que a mulher era como se fosse um Larissa - O que a fez perceber que, sim,
vaso - quando eu falo vaso, é como se a mu- a mulher pode ser atuante? Foi a vivência na
lher fosse uma pessoa que não tivesse vali- tribo ou foi realmente essa sua luta?
dade. E não é isso, nós mulheres não somos Pequena - Foi a luta (indigenista). Desde
assim. Nós mulheres temos as nossas atitu- que eu comecei a lutar, em 1984, eu venho
des, nossas experiências. percebendo que a mulher não é aquele en-
Mas eu fui e fiquei todos os dias, fui para tulho. A luta fez com que eu despertasse e
Brasília, marchei com eles três dias no sol abrisse a mente tanto das outras índias na
quente de meio-dia, pés descalços no asfal- aldeia, quando das outras que moram em
to ... Foi na luta pela aprovação do Estatuto outras aldeias - e também de vocês, não-
do índio - que até hoje não foi aprovado. índias. A mulher não é lixo!
Passei 19 dias nessa bolada, cheguei depois Larissa - E a senhora acha que essa sua
de 22 dias, porque fui e voltei de ônibus. visão influenciou no modo como a comuni-
Lucas - Então, na sua vivência de 70 anos, dade Jenipapo-Kanindé encara o papel da
ser uma mulher cacique foi a principal dificul- mulher?
dade da sua vida? Pequena - Com certeza! Não é à toa que
Pequena - Foi uma dificuldade porque (na aldeia) tem professora indígena, não é
não existia mulher cacique. E eu fui a primeira à toa que tem diretora indígena no colégio,
mulher cacique, da primeira capital do Ceará auxiliar de enfermagem indígena, duas ou
(Aquiraz) e do Brasil (não há dados que com- três moças trabalhando no Cras (Centro
provam isso, apenas há certeza de que ela de Referência de Assistência Socieh como
foi a primeira do Ceará). Eu fui essa pessoa: auxiliares da assistência social. Não é à toa
uma pessoa humilde, pobre, sem ter valida- que tem esse povo já, que entende da lei,
de para os homens - como eles disseram, entende de educação e está trabalhando
mulher só servia pra cama e pé de fogão. (com essa perspectiva).
Giulianne - Então, a senhora provou que Messias - Pequena, como a senhora edu-
a mulher também pode ser cacique ... cou e ainda educa suas filhas e netas para se
Pequena - (Interrompendo) Por isso que
eu disse, que nós, mulheres, não devemos
baixar a cabeça pra nenhum homem. É mari-
do? É. "Você não quer ganhar o dinheiro no "Porque O modo
final do mês"? "Quero". "Pois eu quero tam-
bém". Nunca a gente deve ser, minha filha, que os índios
dependente de ninguém: deve ser depen-
dente de si própria. A todo mundo que vem
falaram, eles
aqui eu do.u esse conselho. Não dou conse-
lho pro mal. Porque a mulher não é obrigada,
achavam .que nós
porque ela vai trabalhar lá fora, a esquecer
do marido.
mulheres não
Messias - Pequena, a senhora disse que éramos suficientes
estranhou quando foi nomeada cacique. Mas
pensou em recusar? pra pegar os
Para equilibrar o nú- Pequena - Eu recusei três vezes. Eu disse
mero na equipe de produ-
ção, o professor Ronaldo
que não, que não, que não, que eu era uma trabalhos que eles
compôs a dupla ao lado
de Lucas. "Na estranha
mulher e não um homem. Como é que eu ia
lá fora representar um povo se eu era uma
trabalhavam, as
tarefa de avaliar e ajudar
ao mesmo tempo", como
pontuava Ronaldo.
mulher?
Igor - Quando foi que a senhora aprendeu
lutas deles."

REVISTA ENTREVISTA I 88
o contato com Peque-
na foi bastante difícil, pois
"E eu mostrei pra eles que nós mulheres ela não possui celular ou
telefone fixo. A mediação
também temos a capacidade de ser entre a equipe de produ-
ção e a entrevistada foi

alguém na vida e de viver com os mesmos feita ou pela filha Juliana,


ou com os atendentes do
posto de saúde Jenipapo-
objetivos deles." Kanindé.

tornarem mulheres guerreiras e independen- Pequena nas lutas indigenistas) com a minha
tes como a senhora? mãe, quando tinha nove anos de idade".
Pequena - Isso é muito fácil. A gente se Giulianne - Cacique, a tribo Jenipapo-
senta, faz roda de conversa e eu passo tudo Kanindé só teve contato com não-indígenas
que eu sei. Falo que elas sejam fortes, pesso- a partir de 1980. Qual a sua lembrança dessa
as firmes, que não temam nada, porque é as- época, dos primeiros contatos, o que a
sim que a gente vive. E elas aprendem o que senhora carrega de aprendizado?
eu aprendi. Pequena - Antes nós éramos uma coisa
Eu queria que vocês tirassem um dia pra totalmente diferente. Nós éramos bem
conversar com a minha filha Juliana (também rústicos, bem caracterizados mesmo como
liderança indígena, tendo substituído a mãe índios. Aqui, onde hoje estamos sentados
no cacicado de 2010 a 2014, quando Pequena (hall da casa de Pequena), era mata virgem.
abdicou do cargo por motivos de saúde) que Era um povo que não tinha roupas de pano,
ia descer água dos olhos de vocês. E, hoje, sapato, chinelo, relógio. Única roupa de
ela é o que é por causa de quem? Conversem pano que usávamos era de saco de estopa.
com ela que ela explica tudo, que hoje tá onde (Alguém pode perguntar:) "Talvez por que
tá porque possuiu uma mãe que a ensinou fosse pobre demais?" Não, não era isso. Era
a viver no mundo - ela sempre diz isso. o modo de a gente viver. Do jeito que desse
Quando ela vai discursar, ela diz: "Eu tô onde na cabeça da gente, a gente vivia, porque
tô porque comecei a caminhar (acompanhar não havia contato com ninguém de fora (da

Para a produção des-


ta entrevista, o livro Mu-
lheres da Encantada, de
Bárbara Rocha, foi de
extrema importância. Na
obra, Bárbara traça um
perfil de três mulheres da
aldeia Jenipapo-Kanindé:
Pequena, Juliana e Ra-
quel - avó, filha e neta.

CACIQUE PEQUENA I 89
Durante a feitura da aldeia). Até os anos 1980 nós não tínhamos chama os antepassados indígenas), nos
produção desta entrevis- contato, de chegar gente na nossa casa, massacrariam também. E, por essa razão,
ta, Mulheres da Encantada
conquistou uma das qua- assim que nem vocês (equipe de Entrevista) ninguém se identificava como índio. Por essa
tro vagas para apresenta- e conversar com nós. Da era de 80 pra cá, razão, vivíamos escondidos aqui e ninguém
ção de Trabalho de Con- começou o contato mais forte (frequente) nos conhecia.
clusão de Curso (TCC) no
Congresso da Associação e - posso dizer assim - eles (equipe de Em Pindoretama (município cearense
Brasileira de Jornalismo pesquisadores da Universidade Estadual do vizinho a Aquiraz), no Iguape (localidade
Investigativo (Abraji). em Ceará) "descobriram" os índios. de Aquiraz), muitas pessoas conheciam e
julho passado.
Por que nós vivíamos guardadinhos, não sabiam que nós éramos índios, por sermos
abríamos a boca pra dizer que era índio? um povo diferente (dos moradores dessas
Nós tínhamos medo do massacre que tinha regiões). Pela nossa fisionomia, pelo nosso
havido 500 anos atrás. Nós não tínhamos modo de andar, pelo modo de viver, eles
como falar que éramos índios. Nós éramos sabiam que nós éramos um povo diferente.
um povo: o povo Cabeludos da Lagoa Igor - Dona Pequena, o que a senhora
Encantada (forma pela qual o povo Jenipapo- vê de positivo e de negativo - nesses 30, 40
Kanindé se autodenominava antes da década anos - de contato regular com o não-índio?
de 1980). Isso eu não nego pra ninguém. A senhora lamenta ter havido esse contato?
Depois dos estudos deles (os pesquisadores) Pequena - Nós (povo Jenipapo-Kanindé)
foi que apareceram esses quatro povos vivíamos em um paraíso, que nem Adão e
(que constituem as bases genealógicas Eva. Quando esse povo (os pesquisadores)

dos Jenipapo-Kanindé): Payaku, Tapuia chegou à nossa aldeia para fazer esse estudo,
(classificação usada para delimitar os índios éramos um povo que não tinha conhecimento
não falantes do Tuph, Jenipapo e Kanindé. de nada e, depois que eles vieram, tivemos
Nós éramos um povo tão escondido, já de conhecer a verdade que tinha de vir pras
que não tínhamos contato com ninguém, nossas mãos. Qual era a verdade? Que nós
que nós não sabíamos recepcionar ninguém. éramos um pessoal escondido e tínhamos
Quando o povo (os pesquisadores) chegava de ser conhecidos por todos - e foi o que
à nossa casa, a gente corria e se escondia. As aconteceu.
crianças corriam pra mata. Quando esse povo saiu, após o trabalho
Messias - Cacique Pequena, qual era a de quatro anos (de pesquisa), veio um rapaz
percepção que a senhora tinha do homem chamado Cordeiro (José Cordeiro, advogado
branco - como costuma falar - antes des- e ativista pelos Direitos Humanos), mandado
se contato com os pesquisadores e depois, pelo cardeal Dom Aloísio Lorscheider (à
No dia em que foi sus-
como era a relação nos anos seguintes? época, Arcebispo de Fortaleza; faleceu em
pensa a aula, a fim de que
os alunos colhessem uma Pequena - A gente pensava muita coisa 2007), nos conhecer e saber da nossa vida.
pré-entrevista, Lucas não - não só eu, a maioria do povo pensava E ele (José Cordeiro) disse: "Vocês (povo
pôde ir. A pré-entrevista
(assim). (Pensávamos) que o não-índio, Jenipapo-Kanindé) se unam, façam com que
só seria feita no dia 17 de
maio, somente 11 dias an- como já tinha massacrado muito os nossos ninguém bote vocês daqui pra fora". Porque a
tes da entrevista. troncos velhos (forma como Pequena especulação vai ser grande". E foi dito e feito.

REVISTA ENTREVISTA I 90
Larissa - En ão. a se ora acha que, a Dilma (Rousseff, PT, 2010 aos dias atuais) No dia 17, então, Lu-
cas e Ronaldo foram à La-
partir desses estudos, o povo teve maior - que hoje é uma pessoa muito carrasca
goa da Encantada, onde
consciência para assumir essa identidade pro Brasil, a gente tá vendo o que ele está se localiza a aldeia Jenipa-
indígena? fazendo pela televisão - foi a demarcação da po-Kanindé, no município
de Aquiraz, a cerca de 40
Pequena - Nós sabíamos que éramos terra. A terra é delimitada, é reconhecida e é
quilômetros de Fortaleza.
esse povo, que nós éramos índios. Nós não demarcada. Era um sábado e eles saí-
podíamos era abrir a boca e dizer: "Somos Messias - Cacique Pequena, mas houve ram às 13 horas, no carro
de Ronaldo.
índios". A partir desses estudos, contamos com algum traço dessa cultura indígena que
uma força maior, da Igreja (católica), através vocês tinham que foi perdido nesse contato
da Pastoral Indigenista (órgão da Conferência com o não-índio?
Nacional dos Bispos do Brasil destinado à Pequena - Não, de jeito nenhum! De forma
causa indígena). Nós éramos um pessoal que nenhuma! O que a gente perdeu é: antes a
não tinha a força de ninguém, era só a nossa gente andava de um jeito; hoje, a gente anda
força. E aquela força que nós tínhamos não de outro. Hoje, a coisa é diferente, filho: um
era suficiente pra dizer: "Nós somos índios e índio não pode viver como ele vivia antes.
ninguém nos bota daqui pra fora". Você já pensou se chegassem aqui na minha
A especulação (sobre nossas terras) casa e me vissem nua, que nem até a década
já estava muito grande. Tanto que nós de 1980 se vivia? Homens e mulheres (nus);
estávamos em um pouco de aldeia, não era a roupa deles era a pele. Não precisava de
(um espaço) tão grande quanto hoje nós roupa. O que se ia dizer? "O que essa mulher

temos. A aldeia era pequena e nós tínhamos tá esperando, um bocado de bicho"? Hoje,
de nos contentar. Por um lado, estávamos nós temos de viver igual a vocês (não-índios).
(antes da chegada dos pesquisadores) em um Mas não é porque vivemos iguais a vocês
paraíso, mas, por outro, estávamos à beira que nós vamos dizer que não somos mais
de um abismo. Mas o abismo se transformou índios. Não podemos perder a nossa cultura,
em paraíso novamente, porque, hoje, nós a nossa tradição. Continuamos a ser índios e
somos reconhecidos oficialmente. Não. tem nem a morte tira de nós sermos índios.
essa história de dizerem: "Ah, ela não é índia, Essa cultura a gente não deixa morrer. Nós
ela não tem nenhum reconhecimento". Hoje, já temos essa cultura desde a convivência
temos reconhecimento pelos governos. após o nascimento. (É passada) de pai para
Começou (o processo de reconhecimento) filho. Porque, (indígenas) vão nascendo e eles
Porém, as informa-
desde o governo de Fernando Henrique vão vendo a convivência que se tem aqui. ções colhidas por Lucas
Cardoso (PSOB, 1995-2002), com a A gente gosta muito de fazer fogueira e não foram suficientes
para que acertassem o
delimitação de 1.730 hectares de chão. No conversar uns com os outros sobre as coisas
endereço. Na estrada da
(governo) Lula (PT, 2003-2010), nós tivemos do passado, como era a convivência da gente Praia do Iguape, dever-
a terra reconhecida oficialmente. Aqui é uma antes - até por eu e outras pessoas sermos se-ia tomar estrada sub-
sequente a uma torre te-
localidade indígena. Somos índios e a nossa guardiãs da memória. Nós trazemos a nossa
lefônica. Nessa estrada,
terra é uma terra tradicional do índio trabalhar, cultura, as nossas tradições que os nossos haveria placas indicando
morar e viver. E na última foi a (Presidenta) troncos velhos deixaram para nós. a aldeia. Não havia.

CACIQUE PEQUENA I 91
Houve uma encruzilha-
da na estrada à esquerda
da torre telefônica. E outra,
e outra, e outra, e outra, e
outra ... Só depois de cerca
de 40min, eles reconhece-
ram estar perdidos e vol-
taram ao ponto inicial, na
torre telefônica.

"Então, meu Deus, se mulher só serve pra


cama e pé de fogão por que o meu povo
me elegeu pra ser cacique?"

Um costume que a gente perdeu foi do ficava "vazada", já que não tava mais todo
café que a gente tomava antes. Vejam como mundo ali, à mesa - (que era) um saco de
era o nosso café: era café de manjerioba, estopa no chão, ou uma esteira de junco,
uma planta que cresce igual ao café, mas ou um saco de tabuba. Os pratos eram
não fica do mesmo tamanho. Ela bota uma cuias, folhas de coaçu, de barro - quando
semente, que se apanha, lava, bota pro sol tinha. E comíamos com a mão; bebia-se o
secar e, quando seca, torra-se no fogo - com caldo com folha de cajueiro. Isso era a nossa
rapadura, açúcar ou qualquer coisa doce - cultura. Comia-se mandioca assada, comia-
e se pisa no pilão. E, aí, se faz aquele pote se batata assada, jerimum assado, certo?
de café pra guardar pra ficar tomando, uma (Comia-se) peixe pegado na beira da Lagoa
semana, duas semanas ... (da Encantada), que existia muito. Tudo
No fogo, pra tomar com café, nós isso era a cultura da gente aqui. Vivia-se do
tínhamos um panelão de peixe cozido, na mel, pegando mel na mata, pra vender, em
panela de barro, e uma cuia de beiju feita no Pindoretama, no Iguape. Na época, havia
caco (utensílio para cozinhar), feita à mão - muita caça para se comer. Nossa comida
porque, naquela época, nós não tínhamos era caça e peixe. Por isso, eu tô dizendo pra
talheres, xícaras, copos, pratos de vidro, vocês: nós tínhamos um paraíso e depois
mesas, cadeiras, não tínhamos nada. caímos no abismo.
E os pesquisadores pegaram essa nossa Giulianne - A senhora nasceu e morou
cultura para estender mundo afora. Eles nos no Riacho (localidade de Aquiraz próxima à
Ronaldo e Lucas pega- pegavam comendo isso - de manhã, (por volta Lagoa da Encantada, onde hoje fica a aldeia),
ram à direita na primeira das) seis horas, sete horas. E eles chegavam depois foi pra Mangabeira (município de
encruzilhada. Para piorar
fazendo isso por trás, pra gente não ver - Eusébio, também nas proximidades), mas,
a situação, praticamente
não havia casas no cami- porque nós não tínhamos hábito de conviver depois de um tempo, foi morar na região do
nho percorrido, o que os com eles e, quando víamos, os meninos (bate Pacoti (também em Aquiraz) ...
impedia de sequer infor-
uma mão na outra) iam pra dentro do mato. Pequena - Não, é assim ... Quem lhe
mar-se com moradores
da região. Aquela filmagem que eles estavam fazendo escreveu isso, lhe escreveu errado. Foi você,

REVISTA ENTREVISTA I 92
não foi? (apontando para Lucas, da equipe de aprender. Eu já enxergava, né? De volta à estrada do
Igor-A senhora passou um longo período Iguape, coube, coinci-
de produção da entrevista)
dentemente, a um entre-
Lucas - Foi (risos). cega, 11 anos. Como foi quando a senhora vistado na Revista Entre-
Pequena - Você não contou a história passou a enxergar? vista indicar o caminho
Pequena - Ah, foi o Céu, foi um céu que certo. Era Dom Giovanni,
direito. Meus pais (Maria Joana e João
proprietário da barraca
Alfredo) me tiveram no Riacho, no Saco se abriu na minha frente. Porque a pessoa Energia Erótica, entrevis-
do Marisco (região do Riacho). Minha mãe, ficar 11 anos sem enxergar e com 12 anos tado na edição nº 28 de
quando tinha um filho, outro morria - podia (poder) ver o mundo ... Porque uma pessoa Entrevista.
ter a idade que tivesse. E, quando a minha com 12 anos tá na infancidade ... Ver a luz
mãe me teve, ela tinha um filho homem do Sol, ver tudo ... Foi tudo na minha vida ...
de seis anos. Esse menino morreu. Ela se Aquela escuridão saiu da minha vida.
desgostou e foi embora do lugar. Era assim: E foi uma coisa (a cura) tão fácil, (a forma)
quando a minha mãe tinha um filho, outro como eu fiquei boa. A minha mãe me deu
morria, aí, ela saía do lugar e ia peregrinando tudo no mundo: gergelim, mostarda, hortelã,
no meio do mundo, até criar aquele outro. É couve ... Tudo de remédio que as curandeiras
tanto que minha mãe teve 12 filhos, mas só ensinavam ela dava e eu não ficava boa.
criou três. Três mulheres, os outros morreram. Certa vez, ela (mãe de Pequena) encontrou
Eram oito homens e quatro mulheres. uma pessoa - agradeço a Deus essa pessoa,
Giulianne - Eles morriam sempre por já não é mais viva - que a orientou para que
doença? eu tomasse a água da ostra crua. E a gente
Pequena-Sim, por doença. Naquela época,
nós (tribo Jenipapo-Kanindé) não tínhamos,
como agora, posto de saúde equipado, com
equipe (médica) completa. Naquela época,
não tinha nada disso. Naquela época, era uma
dificuldade muito grande. A criança adoecia,
ela tinha de tomar remédio da mata pra dar
na doença. Se desse na doença, a criança
escapava e se não desse a criança morria. Às
vezes, também, (procurava-se tratamento)
através de curadores, benzedores ... Se fosse
uma coisa que o curador curasse, a criança
escapava, se não fosse, morria.
A minha mãe não teve sorte, não sei por
quê. Ela se desgostou e foi embora do lugar
(Riacho). Aí, meu pai foi embora com ela
pra Mangabeira (no município de Eusébio),
Mangabeira do Pacoti, Mangabeira de
Aquiraz - hoje eu não sei se é do Eusébio,
se é do Aquiraz, não sei. Lá, eles moraram
três anos. Depois, eles vão à Barra do Pacoti
(A quiraz) , onde moraram por cinco anos.
E, depois, vão a um lugar bem próximo da
maré - a gente saía de casa e era mesmo que
tivesse pisando na água. O nome do lugar
era Rongó. Lá, eu cresci e, com 16 anos
(de idade), vim embora pra cá (Lagoa da
Encantada), com meu pai e minha mãe.
Giulianne - Então, a senhora passou a
conviver com o restante de seu povo só após
16 anos de idade ...
Pequena - Depois de 16 anos, eu voltei
pra cá (Lagoa da Encantada), vim morar aqui,
fiquei aqui e me casei (com Francisco Alves Dom Giovanni muito
Pinho, o seu Chiquinho) e ainda hoje estou ficou feliz com o inespera-
do encontro com Ronal-
aqui. Só quando eu voltei, passei a participar
do. Chegou-o a convidar
dos rituais (tradicionais dos Jenipapo- para tomar umas cacha-
Kanindé). ças - o que foi recusado.
Ele ainda cobraria de Ro-
Giulianne - E como foi essa reintegração?
naldo novas exemplares
Pequena -Ah, foi muito fácil. A pessoa que de Entrevista, a revista
tem o sangue daquilo ali tem nem dificuldade que "mudou a minha
vida", conta Giovanni.

CACIQUE PEQUENA I 93
Dom Giovanni
explicou ser relativamente
fácil chegar à Lagoa da
Encantada. Bastava, em
todas as encruzilhadas, ir à
esquerda.

morava quase dentro do rio, no Pacoti, onde senhora ficou cega, não foi isso?
havia muitas (ostras). Aí, ela dava pra eu Pequena - Eu acho que não nasci cega,
tomar. E, assim, fiquei tomando, por muito porque, se eu tivesse nascido cega, eu acho
tempo - não foi, assim, de uma hora pra que eu não tinha enxergado nunca, né?
outra (a cura). Com muito tempo tomando Messias - Cacique Pequena, alguma coisa
(água da ostra), eu comecei a ver. E foi assim. em especial lhe impressionou quando voltou
Graças a Deus, quem me deu a luz nos meus a enxergar?
olhos, foi a água da ostra crua. Depois eu Pequena - Vixe, meu filho, muita coisa.
passei a beber a água e a comer a ostra. Não foi alguma coisa, foi tudo. (Risos).
Giulianne-Ser cega foi a maior dificuldade Porque uma pessoa que não vê nada quando
na sua vida? vê tudo, o que tem de fazer? Agradecer a
Pequena - Sim, essa foi a maior Deus por aquela rica oportunidade. É uma
dificuldade. Não é fácil a pessoa ser cega, ter riqueza a luz dos olhos da gente, gente! Não
vontade de ver as coisas e não poder. tem dinheiro no mundo que pague. O que
Igor - A senhora não nasceu cega, a adiantaria eu viver uma vida inteira - vou
fazer uma comparação - com pais tão ricos
que não tivessem onde botar dinheiro, mas
eu viver a vida inteira cega? Que gosto teria?
"Nunca a gente Nenhum, porque eu não estaria vendo nada.
Não valeria a pena aquela riqueza. Então, não
deve ser, minha tem dinheiro no mundo que pague a nossa
saúde. É melhor ser pobre e humilde, mas
filha, dependente ter saúde, do que viver doente e ser rico
demais. Eu agradeço a Deus ter visto a luz
de ninguém: deve do Sol, ter visto tudo, e hoje estar aqui, no
meio de vocês, contando o fracasso que foi
ser dependente de o começo da minha vida - porque, pra mim,

si própria. A todo foi um fracasso.


Giulianne - A senhora conhece outros
A dica não foi 100%
eficaz, visto que, em algu-
mas, não se deveria pegar
mundo que vem casos de pessoas curadas pela água da
ostra?
à esquerda - somente se
deveria naquelas em que
aqui eu dou esse Pequena - Não. Aqui na aldeia não - nem
em canto nenhum. Eu sou a primeira pessoa
a opção esquerdista fos-
se uma rua minimamente
trafegável.
conselho." que foi curada pela água da ostra.
Giulianne - Não tem outro motivo ...

REVISTA ENTREVISTA I 96
Pequena - Porque eu tomei tudo no tá aqui o Chiquinho, teu primo, meu Detalhe: desde a
sobrinho ..." Porque minha mãe é irmã do pai saída da estrada para a
mundo e a única coisa que veio fazer com
Praia do Iguape, todas
que eu visse o mundo foi a água da ostra ... dele. Meu sogro era irmão da minha mãe. E as vias para se chegar à
Camila - Dessa época que a senhora ainda o meu pai era tio da minha mãe e irmão da Lagoa da Encantada são
minha vó Gregória. A minha vó por parte de de areia ou terra batida,
não enxergava, o que a senhora lembra? Qual
sem nenhum tipo de
lembrança lhe é mais forte daquela época? pai, pelo lado da minha mãe, é minha bisavó. sinalização e rodeados
Pequena - Era muito triste não enxergar. Olha como é feito uma salada. Uma salada pelo mato.
Você ouvir as pessoas falando: "ai, Pequena, de várias frutas, cortadas, mexidas e é feito
tudo bom, você tá com saúde?" E eu dizia: aquele angu. Dá pra entender na cabecinha
"Tô". (As pessoas diziam): "Você não tá me de vocês? (Risos). Foi uma pesquisadora dos
vendo não?" (Pequena respondia:) "Tô não, Estados Unidos que descobriu tudo isso.
se eu tivesse lhe vendo, eu diria". Aí, elas Beatriz - A senhora não sabia?!
diziam: "Pois, pegue aqui na minha mão". Pequena - Não, até aí, eu não sabia. Sabia
Às vezes, (diziam:) "Pegue no meu rosto". Eu que era casada como prima, mas como tia
apalpava. (As pessoas perguntavam:) "Você não. Essa moça que veio dos Estados Unidos
tá me conhecendo?" (Pequena respondia:) chegou aqui (aldeia Jenipapo-Kanindé)
"Tô não". Era muito difícil pra mim. Passei meio-dia e saiu era umas 17 horas ou 18
por todo esse processo, mas hoje tô aqui, no horas já. Só destrinchando, destrinchando,
meio de vocês (equipe de Entrevista). destrinchando ... Tinha hora em que eu me
Beatriz - A senhora não teve uma infância levantava, bebia água, tinha hora em que dava
praticando os ritos indígenas, como a vontade de dizer: "Vai-te embora, mulher".
senhora falou. Mas os seus filhos nasceram (Risos).
e criaram-se na Lagoa da Encantada ... letícia - A senhora falou muito nesse
Pequena - (Interrompendo) Graças a sangue indígena que corre nas suas veias.
Deus! Mesmo não tendo sido criada dentro da tribo,
Beatriz - Qual a maior diferença que a a senhora nunca deixou ser índia, sempre
senhora vê entre a sua infância e a infância carregou essa cultura. Eu queria saber da
de seus filhos? senhora: o que é ser índia?
Pequena - É uma diferença muito grande, Pequena - Bom, vou explicar com muita
minha fia. Diferença de a pessoa passar 11 delicadeza pra vocês, O índio é uma pessoa
anos cega pra quem nasce com 'as luzes que vem desde os troncos velhos, lá dos
dos olhinhos', vendo toda a luminosidade do
Céu, do Sol, de tudo ... Eles já nasceram nessa
cultura (indígena), junto com os parentes,
todo mundo junto... Eu não tenho nem
palavras para descrever pra vocês. Hoje, eles
são totalmente diferentes de mim. Porque eu
não tive infancidade. Gente, eu não sei o que
foi in fan cidade.
Beatriz - Todos os seus filhos mantêm os
costumes da tribo?
Pequena - Todos eles mantêm. Quando
é no tempo em que a gente faz o festival
(Marco Vivo, festa tradicional da tribo), só
vendo pra crer. ..
Felipe - Pequena, o que a senhora
aprendeu antes da volta à tribo com os seus
pais que tentou passar para os seus filhos?
Pequena - O que eu passei a eles foi: eu
não tinha aprendido nada (das tradições da
tribo) por estar fora do lugar, tinha sido cega
por 11 anos, mas, na hora em que eu cheguei
à aldeia, eu aprendi todos os ritos, porque
sangue é sangue.
Beatriz - Cacique, a senhora é tia do seu
marido, por um lado, e prima dele, por outro.
Como se deu esse relacionamento entre
a senhora e o seu marido? Como vocês se Só após todos esses
contratempos, Ronaldo e
conheceram?
Lucas finalmente chega-
Pequena - Eu o conheci antes mesmo de ram para a pré-entrevista
poder enxergar. "Minha mãe dizia: "Pequena, com Pequena - já eram
por volta das 15 horas.

CACIQUE PEQUENA I 97
Ronaldo e Lucas calcanhares dos Judas. Meu tataravô é índio, inclusive, gravado um CO, do qual você
encontraram Pequena em
meu bisavô é índio, meu avô é índio, meu fala com muito orgulho. De onde surgiu a
uma rede, deitada bastante
confortável. Sim, Pequena pai é índio, minha mãe é índia. (fala quase inspiração para compor? E qual a importância
teria de sair daquele sussurrando e pausadamente) E o que é do CD para você?
conforto para atender que eu sou? índia. Então, é isso. Estou lhe Pequena - Esse CD é muito importante
mais dois (ou um e meio)
jornalistas. explicando com muita delicadeza: sou índia, porque uma pessoa índia ter tido esse
com muito orgulho, só tenho a agradecer ao dom (oportunidade) de gravar um CD de
Pai Tupã por ser uma "ponta do galho" dos 16 músicas - onde tem música indígena,
meus troncos velhos. tem música lenta, tem música chamegada
Letícia - A senhora já sofreu muito (romântica) - músicas compostas por mim
preconceito por trazer esse sangue nas mesma.
veias? Larissa - E no que a senhora se inspira
Pequena - Vixe, demais, a gente sofre para criar as letras do CD que a senhora
muito preconceito! Não é fácil não. É que o gravou?
povo diz que índio não tem valor. Aqueles não- Pequena - Ah, a gente sobe no morro
índios que têm raiva dos índios dizem que os (duna), a gente respira o ar da natureza, aí
índios são preguiçosos, dizem que os índios vem muita coisa na mente da gente. E a gente
não prestam, que são uns pobre coitados, começa a cantar, cantar, cantar, quando dá
desvalidos, que não têm nada na vida ... Tudo fé, tem feito uma música.
que é ruim bota em cima dos índios. E muito Larissa - E a senhora as deixa gravadas
pelo contrário: nós somos muito ricos. Ricos na memória?
em sabedoria. Pra vocês (não-índios) terem a Pequena - Na memória, tudo na minha
sabedoria que o índio tem, precisam estudar, mente. Eu tenho um computador na minha
estudar e estudar e dizer: "Vamos procurar cabeça (risos).
uma tribo pra nós conversarmos com alguém Lucas - O que a senhora pensa de
pra nos repassar algum conhecimento". É declarações de pessoas que afirmam não
ou não é verdade? Tem muito não-índio que ser mais indígena quem utiliza serviços tidos
também têm a sabedoria que o índio tem. É como não-indígenas, como eletrodomésticos
um dom que o Pai Tupã nos dá. Torna-se um ou, até mesmo, roupas?
professor. Pequena - Eu não considero dessa forma.
Giulianne - Eu sei que a senhora tem Foi índio? É índio por toda a vida. Até fora
influências. além das tradições indígenas, (das aldeias), ele é índio. É índio na aldeia e
do catolicismo, mas também é evangélica ... fora da aldeia. Ele não pode tirar quem ele é
Como a senhora define a sua própria fé? por estar trabalhando em Fortaleza. Ele não
Como a senhora enxerga essa crença em um pode tirar essa origem dele, que ele é essa
ser maior? pessoa.
Pequena -"-Eu nuncapercoa fé: Essa fé que Lucas - Como é ser indígena em uma
eu recebi do Pai-Tupã, eu nunca vou perder. sociedade como a de hoje, onde o poder
As experiências que os meus pais, meus governamental não está nas mãos dos índios,
antepassados me deram antes de ir embora, onde muitos serviços básicos precisam
eu nunca perco. É uma parte que eu tenho ser negociados por vocês (indígenas) com
dentro da memória. Isso é guardado e nunca
vai se acabar essa parte da espiritualidade,
isso vai pro resto da vida.
Messias - Cacique Pequena, qual a
importância dessa terra (Lagoa da Encantada)
"Por. ,que nós
e da natureza para a tribo Jenipapo-
Kanindé?
vivrarnos
Pequena - Vixe, meu filho ... Essa terra é guardadinhos, não
tudo na nossa vida! Tudo na nossa vida é a
mãe-terra, a mãe-lagoa ... Porque aqui a gente abria a boca pra
trabalha, aqui a gente mora ... E a lagoa (da
o quebra-gelo desta
Encantada) - aqui, acolá - ainda tem peixe dizer que era índio?
que a gente pega pra comer ... Eu não tenho
pré-entrevista foi Bárbara
Rocha e o livro Mulheres nem palavras; isso aqui é tudo na nossa
Nós tínhamos medo
da Encantada. Pequena
demonstrou ter muito
carinho para com Bárba-
vida, nós sem essa terra não somos nada. Eu
gravei uma música da história da mãe-terra -
do massacre que
ra, tendo perguntado por
que "ela a abandonara".
quando acabar a entrevista eu vou cantar pra
vocês ouvirem.
tinha havido 500
Bárbara não mais a visitou
por ter ido morar em São Messias - Pequena, pois é, você também anos atrás."
Paulo. é uma compositora de músicas, tendo,

REVISTA ENTREVISTA I 98
essas pessoas de cultura e mentalidade "Cacique, a gente vai fazer isso, vai fazer Estava no momento
aquilo, você nos ajuda, você arruma votos da feitura da pré-entre-
diferentes?
vista, João, filho de Pe-
Pequena - Antes, a gente tinha um contato na aldeia para nós". E, às vezes, eu caio quena. Ele acompanhou
(com não-índios) muito difícil - muito difícil nessa camisada de arrumar votos pra eles. quase toda a conversa,
No fim das contas, o resultado não é nada. completando, quando ne-
mesmo. Mas, hoje, nós estamos entendendo
cessário, o raciocínio da
que nós também temos de ter contato com Porque eu não trabalho arrumando voto pra mãe - algo que Pequena
a sociedade "branca" (não-índia) e fazermos vereador, pra prefeito por dinheiro. esquecia ou mesmo per-
com que eles entendam que nós precisamos Eu trabalho dessa forma: -o, eu vou guntava a ele.

ter os mesmos direitos deles, como pessoas trabalhar pra você, tenho todo o gosto de
políticas. Porque eu posso dizer que eu sou trabalhar pra você. Mas, depois, se você se
uma política - uma política indígena, desde eleger, mande a nossa recompensa, o que
1995 (quando Pequena tornou-se cacique). nós precisamos". Porque, dentro da nossa
Porque tem de ter "cabeça" pra estar com aldeia, nós não precisamos só de pão e água:
vereador, com deputado, com ministro, com precisamos de muito mais.
prefeito, com senador ... Messias - E algum político já cumpriu
E nós somos um povo que vivemos na promessas que fez?
política 24 horas. Não digo todos os índios Pequena - Não. Até agora, não.

- porque há mundo índio que não entende lucas - Quais promessas, especificamente?
esse lado -, mas, pelo menos, as lideranças. Pequena - Quando a gente trabalha
Eu, como cacique, tenho de ser uma prefeita. pra eles (políticos), pedimos a eles ajuda
"Arrancar" lá de fora pra aqui. Que é pra para que a comunidade trabalhe dentro da
eu ver esses meus índios trabalhando aqui própria comunidade, sem precisar sair para
dentro, "ganhando o pão" deles aqui dentro. as cidades grandes. E eles prometem, mas
E foi o que eu fiz. não cumprem a palavra.
Mas (é preciso) você trabalhar com letícia - Pequena, por causa dessa luta
cuidado, pra não ser enganado nem ser política, em 1995, você foi eleita cacique -
engolido pela política não-índia. Porque o mesmo que, como dito antes da entrevista, Mas também varias
político não-índio é uma coisa; nós, índios, tivesse sido "o mesmo que ter posto uma outras pessoas da comu-
somos outra. faca no pescoço", por você não ter querido nidade, parentes ou não,
falaram com Pequena
Giulianne - A senhora já foi enganada por assumir o cargo. Mas, depois, você tomou durante a pré-entrevista,
políticos não-índios? gosto pela função? Qual é o lado bom e qual seja uma bênção ou co-
Pequena - Mais ou menos. Porque eles é o lado ruim de ser cacique? municando-a de um ocor-
rido. Nisso, deu para per-
prometem mundos e fundos, mas não fazem. Pequena - Eu não pretendia (ser cacique) ceber o quão matriarca é
Eles vêm aqui na reserva indígena (e dizem): porque eu era apenas uma simples mãe de Pequena na comunidade.

CACIQUE PEQUENA I 99
Na pré-entrevista, família. Eu não tinha ocação pra isso. Até
Pequena disse não ter porque a pessoa que era o cacique (Odorico),
problemas com nenhum
assunto a ser abordado
antes de morrer, não me deu nenhuma
na entrevista derradeira. instrução. Quando você não pega nenhuma
Só pediu que não se usas- instrução de ninguém, fica difícil de fazer as
se "palavreado técnico",
alegando ser uma pessoa coisas. E era o que eu pensava: "0 que é que
simples, sem "letra", isso eu vou fazer, sem ter nenhum conhecimento
é, estudo formal. de nada?" Eu era apenas uma mãe de família.
Eu vivia na minha simples casa com o meu
esposo e meus filhos.
Quando ele tombou (morreu), ficou
difícil pra mim, (porque) o povo queria que
eu fosse uma coisa que eu não planejava.
Apesar de, desde a época de 1984, eu ter sido
uma guerreira pra eles (indígenas Jenipapo-
Kanindé) - já que, mesmo sendo cacique,
Odorico não se opunha que eu saísse à
procura da defesa da terra, da lagoa, deles
aqui (indígenas Jenipapo-Kanindé) ... Toda
vida eu fui uma pessoa que tive espírito pra
isso. Eu não nego pra vocês: eu saía "só com
a cara e a coragem": eu saía de casa cinco
horas da manhã, com uma companheira
que não é índia (Zuleide, amiga de Pequena)
pra Pastoral Indigenista e só chegava dez,
11 horas da noite - a minha vida foi essa
durante 11 anos. Nós ajuntávamos os
bilhetes de ônibus, das passagens, para
que, quando completasse um mês, a gente
repassar para uma instituição que tinha,
onde eles repunham o dinheiro para nós,
pra nós podermos merendar. Porque nós
não tínhamos condição de estar, todo dia,
em Fortaleza, mas, todo dia, tínhamos de
ir, porque estávamos trabalhando por esse
povo (Jenipapo-Kanindé), por essa terra, por
essa lagoa (da Encantada).
Quando o cacique Odorico fechou os
olhos, as coisas dificultaram pra mim,
porque, mesmo eu saindo (da aldeia, em
busca de direitos para a comunidade), mas
ele tava dentro da aldeia (comandando-a),
né] Quando chegou. em 1995, que me
puseram para ser cacique, eu estranhei,
porque a Funai (Fundação Nacional do índio,
órgão estatal em prol dos direitos indígenas)
veio aqui, fazer o estudo para delimitação da
nossa terra, e disse: "A partir de hoje, você
vai 'andar com os próprios pés e enxergar
com os próprios olhos"'. O que ela quis
dizer? É como se fosse uma piada, porque
durante 11 anos eu andei com uma branca
(Zuleide). A Funai achou que essa moça que
andou comigo por 11 anos era uma "vara de
bastão" pra mim e eu precisava "andar com
os próprios pés e enxergar com os próprios
A conversa na pré-en-
trevista durou, aproxima- olhos". Aí, o bicho pegou pra mim.
damente, 1 h40min. Nada Giulianne - Por que a Zuleide resolveu
perto dois "oito dias ne- ajudar a senhora?
cessários", segundo João,
para que se fosse feito um Pequena - Lá em 84, 85, eu soube que
aprofundamento na histó- ia ter despejo, por conta de especulação,
ria de vida de Pequena.

REVISTA ENTREVISTA I 100


Após o fim da pré-en-
trevista, combinadas data
e horário (às 14h30min do
dia 28 de maio) da entre-
vista, Pequena só alertou
que poderia esquecer-
se dela e pediu para que
fosse feito lembrete, dias
antes.

de imobiliárias... E os anciaos ficaram de estudar a área de chão, disseram:


todos aperreados (gíria equivalente a "Cacique, vocês aqui não têm pra onde
atormentados). (Diziam:) "Nós vamos pra ir; o canto de vocês é aqui, porque vocês
onde?" Eu procurei Zuleide, para pedir ajuda a são índios verdadeiros. Tanto vocês são
ela - já que aqui não tinha emissoras de rádio, índios, quanto a terra de vocês é tradicional
de televisão, não tinha nada - e ela disse: indígena". Eu não tenho nem palavras pra
"Pequena, não se preocupe, que eu vou lhe dizer o quanto eu agradeço a essa equipe ter
ajudar. Meu pai tem terra dentro da (região da vindo aqui fazer esse estudo e saber que nós
Lagoa da) Encantada, mas eu prefiro perdê- somos esse povo que vive aqui e temos a
Ia pra vocês a perder pra outra pessoa". nossa terra tradicional pra morar e trabalhar.
Aí, nós nos reunimos, os índios daqui e Isso é tudo na nossa vida. Porque é como
ela, e fizemos a Associação Comunitária de eu disse pra vocês: o índio sem terra não é
Trairussu, Encantada e Tapuio. nada.
Beatriz - Desde que a senhora se tornou Lucas - Pequena, antes mesmo de
cacique, quais foram as grandes conquistas a senhora ser cacique, já despontava
que a senhora tem para contar? como essa liderança, na década de 1980
Pequena - Vixe, eu já tive tanta conquista
(n) ... A primeira conquista foi a delimitação
da área indígena (Jenipapo-Kanindé). Porque

. não é..porque
"Mas
eu fui a Brasília, em 1995, só com a cara e
a coragem, e, em uma plenária, eu pedi a
palavra e falei para o presidente da Funai que
queria que ele mandasse o povo dele fazer
vivemos
,...
Iguais
,
um estudo na área que nós tínhamos pra nós
ficar sabendo que tínhamos terra pra morar
a voces que nos
e nós éramos índios.
vamos dizer
Passou 1995, 1996, 1997... Quando
chegou 1998, tiveram aqui antropólogos,
sociólogos, historiadores, Incra (Instituto
que nao somos - Na volta para For-
taleza, Ronaldo e Lucas

Nacional de Colonização e Reforma Agrária),


DAS (Departamento de Assistência Social,
mais índios. Não depararam com outra di-
ficuldade: o pôr-do-sol.
Ronaldo teria de guiar
o órgão da Secretaria do Trabalho e do podemos perder a o carro até a estrada da
Praia do Iguape com o
Desenvolvimento Socieh ... Uma equipe de
cinco pessoas fez o estudo da terra e dos nossa tradição." sol batendo na vista. Em
certos momentos, era
preciso parar o carro para
índios para que fosse delimitada a área (da
saber aonde ir.
tribo Jenipapo-Kanindé). Quando terminaram

CACIQUE PEQUENA I 101


Com tal problema,
somado à má qualidade
da via, Ronaldo alertou
ser preciso sair do Cen-
tro de Humanidade li, da
Universidade Federal do
Ceará (UFC) bem cedo:
às 13h30min, no máximo.
Era preciso evitar a luz do
pôr-da-sol e a escuridão
da noite.

- por mais que seja informal, já que havia das assembleias? Há alguma festa especial?
outro cacique. Eu gostaria que a senhora Pequena - Tem. Quando tem os festivais
narrasse como foi esse processo de virar deles, eles mandam nos chamar. Nós só não
uma liderança, mesmo sem ter tido esse vamos se não pudermos ir, só não vamos se
objetivo em mente. não tiver transporte pra ir nos deixar.
Pequena - Porque o antigo cacique não Messias - E o que é discutido nessas
saía da aldeia para ir a Fortaleza resolver assembleias e nesses encontros?
nada nos órgãos públicos. E eu era essa Pequena - A gente discute tudo. Aí,
pessoa que saía, com essa grande amiga sim, é uma política de verdade, que não
(Zuleide), como acabei de falar, pra falarmos deixa a desejar a nada. Você discute
nesses órgãos públicos em defesa do povo saúde, educação, terra (indígena). A
Jenipapo-Kanindé. Você tá considerando forma como corre, hoje, a educação no
liderança, mas eu não era uma liderança Ceará é muito discutida. A forma que
iiormsti. Eu trabalhava pela defesa do povo corre a saúde também é discutida. Tudo
Jenipapo-Kanindé. Porque eu sabia que eles a gente discute nos três dias que são (as
mereciam ter essa defesa. Porque eles eram assembleias): cada um para uma coisa. Se
um pessoal que não tinha letra (estudos é (para ser discutida naquele dia) a terra,
formais) - como eu também não tenho; eu a gente discute um dia todinho: (sobre)
tenho essa grande sabedoria, mas letra eu reconhecimento, delimitação, demarcação,
não tenho. E eu queria vê-I os no cantinho homologação, desintrusão, registro (etapas
deles, sem ser preciso eles sair pra canto burocráticas para consolidação por parte
nenhum. Que aqui eles convivessem e os do Estado das terras indígenas) ... Começa
anos de vida fossem terminados aqui na de reconhecimento: porque há índios que
aldeia. A gente já tinha sido tão massacrada ainda não são reconhecidos no Ceará.
no passado - como meus pais me contavam Aí, tem deputado no meio (da discussão
-, não queria que no presente eles fossem nas assembleias), procurador (da República),
massacrados. até prefeito - às vezes - r se encontram,
Felipe - Como cacique, a senhora acha discutindo com os índios o que os índios
importante manter contato com outras estão querendo, o que não estão querendo.
populações indígenas do Ceará? A senhora Quem tem "voz prafalar" é a hora de a pessoa
Os alunos teriam de tenta manter contato com elas? botar tudo pra fora: todo o sofrimento, toda
programar-se nos respec- Pequena - Sim, eu mantenho contato com a sua história.
tivos estágios para saírem todos (os povos indígenas do Ceará): Tapeba, Giulianne - Foram nesses espaços que
em um horário possível
de se chegar à UFC até as Pitaguary, Tremembé ... (Pequena relaciona a senhora conseguiu a escola e demais
13h30min. O horário co- uma série de comunidades indígenas e serviços?
mum para início das aulas regiões no Ceará onde existem tribos). Pequena - Isso, minha filha. É verdade.
é às 14 horas - e, mesmo
assim, atrasos são cons- Messias - E que outras formas as tribos Eu comecei (a lutar) pela escola em 1999.
tantes. do Ceará encontram para se relacionar, além A Seduc (Secretaria Estadual da Educação

REVISTA ENTREVISTA I 102


do Ceará) veio aqui, fizemos reuruao com badalando, badalando... Eles (na Sedu c) Não houve problemas
tinham de entender a minha língua. "Eu quero nos estágios para tal libe-
essas pessoas, e eu cobrei da Seduc, pois
ração mais cedo. Porém,
precisávamos de escola - porque eu não a escola Jenipapo-Kanindé, porque todo Igor teve dificuldade de
queria que as crianças fossem criadas como mundo (todas as tribos) tá ganhando escola encontrar vaga para esta-
eu fui criada - vocês já ouviram toda a história e, lá, também precisa" (Pequena dizia). Eles cionar o carro dele nos ar-
redores da UFC, o que fez
da minha infancidade. diziam: "Não, a senhora não precisa de escola com que houvesse atraso
Então, a educação entrou aqui em 1999 porque lá tem um grupo escolar". (Pequena de alguns minutos no ho-
e a saúde também. Mas isso não foi fácil: respondia:) "Não, mas eu quero uma escola rário combinado.

eu trabalhei uns três anos. Teve de reunir nova". Até que eles se aborreceram comigo
todos os jovens, de 16 anos pra frente, e (decidiram:) "Vamos fazer a escola dessa
pra eles entrarem "no barco". Arrumei 16 mulher abusada e chata (n) que só vem fazer
jovens, e fomos a um Cetrex (Centro de zoada (expressão equivalente a barulho) na
Ensino e Treinamento em Extensão) em nossa cabeça". Trabalhei e, em 2000, saíram
Caucaia (município da Região Metropolitana os professores brancos e chegaram quatro
de Fortaleza), por três anos, (lutando) tanto professores índios.
pela parte da educação, quanto pela parte Giulianne - Por que a senhora achava
da saúde. íamos para lá para trazermos tão importante colocar indígenas como
Aisan (Agente Indígena de Saneamento) e professores nessa escola?
agente da saúde pra aqui (aldeia Jenipapo- Pequena - Por quê? E você ainda
Kanindé). pergunta por quê? Eu queria uma escola
Quando arranjei a escola pra cá, vieram indígena, com índios sendo professores,
quatro professores brancos para ensinar os para ensinar a cultura que temos. Porque os
curumins (crianças e adolescentes). Depois, brancos vinham ensinar só o convencional,
fiquei batendo em cima -água mole em pedra mas não ensinava a nossa cultura. E os
dura, tanto bate até que fura - para vir escola professores índios ensinam os dois - o
indígena. Saía daqui de manhã, ia pra Seduc ensino convencional e a cultura indígena.
(em Fortaleza), passava o dia badalando, Só do 9º pra frente é que eles (estudantes)

"Então. não tem dinheiro


. , no mundo que
pague a nossa saúde. E melhor ser pobre
e humilde, mas ter saúde, do que viver
doente e ser rico demais."

Outro problema de
logística seria o transpor-
te para ir até a Lagoa da
Encantada. Em outras en-
trevistas, havia-se ido em
três carros disponíveis na
equipe de Entrevista: o
de Giulianne, o de Igor e
o de Ronaldo.

CACIQUE PEQUENA I 103


Porém, Giulianne ha- saem pro (ensino) convencional lá fora. E ainda tenho ar a e de fazer mais: eu
via quebrado o pé e não Mas a primeira conquista da aldeia foi a não tô satisfeita. Eu quero arrastar aqui pra
poderia dirigir o próprio
carro. Tentou-se, então,
delimitação da área de chão: 1.731 hectares dentro uma minifábrica de polpa de fruta e
arranjar uma van com a para os índios Jenipapo-Kanindé aqui, na uma cooperativa de (fabricação de) roupas
universidade. Porém, não Lagoa da Encantada. Por isso tem (foi instituído pras índias trabalharem - e daqui de dentro
foi possível, o pedido foi
negado.
em 1999) o (festivan Marco-Vivo, (que ocorre) elas "ganharem o pão". Ainda tenho vontade,
todos os anos. se o Pai-Tupã não me arrebatar, eu, com toda
E, depois da terra, foram (conquistadas) essa minha idade de 70 anos, ainda vou fazer
energia elétrica e água encanada, em 2000. com que chegue tudo isso aqui.
Em 2005, veio o posto de saúde. Até então, Felipe - Pequena, a senhora acha que
desde 2000, tínhamos o Aisan e (visitas ter um índio eleito a um cargo de vereador
de) agentes de saúde. Foram quatro anos ou deputado, por exemplo, ajudaria a trazer
juntando recursos para a construção do mais conquistas? E já pensou em entrar na
posto de saúde. Todo o mês tinha reunião política, além de cacique, como vereadora?
com a Secretaria de Saúde, que dizia: Pequena - Em 2000, teve dois índios (da
"Cacique, tenha calma que a gente tá aldeia) que foram candidatos a vereador (de
arrumando recursos". Veio recurso federal Aquiraz), só não foram eleitos. Um foi o meu
e foi possível construir o posto. Em 2006, filho, o Antônio, que tirou cerca de 130 votos;
veio a dentista. Hoje, nós somos um povo- o outro foi um rapaz que foi meu "vice" quan-
posso dizer - privilegiado por termos uma do eu fui (nomeada) cacique: ele tirou, se não
equipe completa no posto de saúde. me engano, 13 votos. E, agora (para as próxi-
Isso fora outros projetos pequenos que mas eleições municipais, em 2016), eles vão
abrangeram a comunidade, feitos de 2000 se candidatar novamente para vereador.
a 2005. (Há na aldeia Jenipapo-Kanindé) Mas o que eu quero dizer pra vocês é:
Casa-de-farinha, pousada (destinado a ser vereador, ou ser deputado, ou ser pre-
hospedagem para turismo ecológico), museu feito é uma coisa boa. Mas há outro lado:
(da tribo Jenipapo-Kanindé) e Cras (Centro eu, como posso dizer que sou desde 1984
de Referência de Assistência Socieh. uma política indígena, digo que, para um
Isso (foi resultado de) força de vontade índio ser um vereador, ele vai pegar as
desta mulher que está aqui na presença de mesmas artimanhas do prefeito e do vere-
vocês. Essa mulher deu para esse lugar o ador não-índio. "Uma andorinha só não faz
que muitos tinham vontade de dar, mas não verão". Um só vereador índio não faz ve-
puderam - mesmo tendo letra na cabeça rão. Faz uma lei ou um projeto ... Se aquela
e na mão. Mesmo sem letra, fazendo das lei for pra defender o índio, tudo bem. Mas,
tripas coração, eu mostrei pros índios se for uma lei que venha não pra defender
Jenipapo-Kanindé e pro mundo que eu não o índio - mas pra destruir o índio - o vere-
tinha pegado esse cargo pra viver sentada ador índio ou entra na artimanha, pra ser
numa cadeira ou deitada numa rede. Eu a favor deles; ou sai fora. Eles (políticos
tinha pegado o cargo pra dar conta do não-índios) não aceitam que aquele índio
recado - e essa conta do recado eu já dei. esteja sendo contra eles. (Diriam os políti-
Eu dei o sangue, a vida, para fazer com que cos não-índios:) "Como é que você tá aqui
os índios, hoje, se encontrem com conforto, como vereador e, em vez de ser a favor de
com o que precisavam e nunca tinham nós, é contra nós"? O vereador índio acaba
tido. O que o cacique anterior não fez, essa fazendo o que os outros querem, não o que
mulher aqui faz - e agradece a Deus. ele quer. Quando é uma bancada de verea-
dor indígena - ah, meu amor! - são outros
quinhentos. Mas um só? Não, meu filho, eu
não acredito.

"Tudo que é ruim Letícia - Há algum lado ruim em ser ca-


cique?
bota em cima dos Pequena - Não, nunca achei. Foi ruim
quando eu fui discriminada por ser mulher -
índios. E, muito não aqui, na aldeia, mas lá fora, em Minas
Gerais, Brasília ... Mais em Minas Gerais! Lá

A solução foi alugar


pelo contrário: (em Minas, durante encontro de comunida-
des indígenas) é que eu fui discriminada pe-
uma van. Ronaldo conhe-
cia no bairro onde mora
nós somos muito los índios da Amazônia, dos índios do Sul...
Pra vocês verem como era difícil: eu fui no-
quem disponibilizava tal
serviço. E, assim, alugou- ricos. Ricos em meada como cacique no dia seis de março
se uma van para transpor-
tar os nove entrevistado-
res, Ronaldo e a fotógrafa
sabedoria." de 1995. No dia 12 de março, eu viajei pra
Brasília e pra Belo Horizonte. Com seis dias
Liana Dodt.

REVISTA ENTREVISTA I 104


A opção pelo freta-
mento da van, no fim das
contas, foi considerada
mais vantajosa: além de
não terem de enfrentar
as dificuldades na direção
impostas pelas estradas
de Aquiraz, os estudantes
economizaram gastos -
que também foram des-
centralizados.

de cacique, o que eu sabia, se eu nunca ti-


nha tido nenhuma orientação do cacique que
morreu? Viajei com a cara e a coragem, sem
ninguém comigo, só Deus, Jesus e Maria
Santíssima na frente. Lá (Minas) eu me sen-
ti embaixo, me senti. no chão! É muito difícil
ser discriminada!
Beatriz - Cacique, a senhora, em vários
momentos, foi desafiada, mas foi seguindo,
seguindo, seguindo, como a senhora mesma
diz, com "a cara e a coragem". De onde vem
essa força?
Pequena - Do alto. Da espiritual idade. De
Deus.
Lucas - Antes da entrevista, a senhora re-
clamou do fim do atendimento por parte da
Funasa (Fundação Nacional de Saúde) e do
atual feito pela Sesai (Secretaria Especial de
Saúde Indígena). Além desse, quais outros
erros a senhora acredita terem sidos feitos
na política indígena nos últimos anos?
Pequena - Eu tinha pra mim - mas não
está no nosso poder, tá no poder dos polí-
ticos - que a nossa terra, como foi delimi-
tada em 1999, quando fosse, por volta de
2000 ou 2001, ela seria declarada. E, entre
2002 e 2004, a terra fosse homologada. Em
2008 ou 2009, 2010 ela fosse registrada.
Eu achava que, a cada dois anos, fossem
Os emaranhados que
fazendo esse tipo de coisa (as terras Jeni-
se precisa enfrentar para
papo-Kanindé fossem passando por cada chegar à Lagoa da Encan-
processo de oficialização estataf). Mas não tada assustaram aqueles
que iam ao lugar pela pri-.
é assim. A terra foi delimitada em 1999 e só
meira vez. "Será que con-
em 2004 foi feito o reconhecimento. Agora, seguiremos voltar", foi o
em 2011 - vejam quantos anos de 2004 a tema da conversa na van
durante o caminho.

CACIQUE PEQUENA I 105


Mas não houve pro- 2011! - ela foi demarcada. Quatro anos de- uma vida como eles têm, que precisamos
blemas para chegar ou ir
pois e ainda não avançou nenhuma outra ser respeitados, que o índio não seja mais
embora: a chuva que havia
caído na manhã foi pouca, etapa. Botaram o pé em cima e ali ficou. Eu aquele, de anos atrás, que vivia escondido
então, as poças formadas achava que fosse fácil, mas não é tão fácil nas tocas: nós temos como ser alguém na
não foram grandes obs-
assim. Essa lentidão é que vem fazendo a vida, principalmente os jovens. Esses jovens
táculos. Por volta das 15
horas, a equipe começa- pessoa se desestimular. Mas é preciso que desejam ser professores, procuradores, ve-
ria a entrevista - da qual a pessoa tenha coragem e fé para conse- readores, serem algo na vida.
Pequena bem havia, sim,
guir o objetivo. E a fé em Deus que tenho Agora eu vou cantar a minha música -
lembrado.
que me fez acreditar que vou alcançar esse gravem: O índio é natureza/O índio é água-
objetivo. viva/O índio é natureza/O índio é água-viva/O
Lucas - Para finalizar: qual a expectativa índio, ele existe/Ele é de resistir/O índio, ele
que a senhora tem para os povos indígenas existe/Ele é de resistir/Na mata, trabalha o ín-
para esses próximos anos? dio/Ele trabalha no chão/Na mata, trabalha o
Pequena - Minha expectativa é de que índio/Ele trabalha no chão/Na santa terra tra-
os povos indígenas tenham as terras deles balha/Pra ele tirar o seu pão/Na santa terra
demarcadas, homologadas, desintrusadas, trabalha/Pra ele tirar o seu pão/Os índios es-
registradas e eles tenham confiança em al- tando juntos/Por suas terras, lutar/Os índios
cançar essas bênçãos de Deus, para que, estando juntos/Por suas terras, lutar/Sua terra
amanhã, eles possam viver livres como os demarcada e também homologada/Sua terra
pássaros voam nos ares. Esse é o meu gran- demarcada e também desintrusada/Sua terra
de desejo para o Ceará e onde tiver aldeia demarcada e também registrada/Não pode-
indígena. mos aceitar esse tipo destruidor/Não pode-
É o que eu peço ao Pai-Tupã: que eles mos aceitar esse tipo destruidor/Que veio
tenham a terra reconhecida para que, no pra destruir o nosso grande tesouro/Que veio
dia de amanhã, eles também possam dizer: pra destruir o nosso grande tesouro/O nosso
"Temos terra para trabalhar, viver e morar". grande tesouro é a nossa Santa Mãe- Terra/O
Porque, se uns têm a terra reconhecida, ou- nosso grande tesouro é a nossa Santa Mãe-
tros não têm. Então, eu sempre peço (bên- Terra/É nela que nós convive/É dela que nós
çãos de um modo geran, não só para nós precisa/É nela que nós convive/É dela que
Jenipapo-Kanindé, mas para todos. E os go- nós precisa/É dela que nós precisa, sem ela
vernos venham a entender o que é o índio, não somos nada/É dela que nós precisa, sem
que não queiram destruir os índios. Que ela não somos nada/Somos que nem peixi-
mesmo os empresários entendam-nos. Que nhos nadando fora da água/Somos que nem
o "povo grande" que vive no poder entenda peixinhos nadando fora da água.
que nós somos gente, que precisamos ter

A canção de Pequena
pode ser apreciada em
voz e imagem no Youtu-
be: https://youtu.be/Ogg-
Cqovmnml

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