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1
de
uma
longa
ausência:
um
lamento,
um
canto
que
vai
narrando
a
dor
sentida.
E
eu
chorei
de
tristeza
e
de
felicidade
ao
seu
lado.
Nesse
dia
entendi
com
clareza
algo
que
eu
sabia
intuitivamente:
entrei
para
o
indigenismo
como
filho,
e
não
como
“pai
dos
índios”,
como
muitos.
Indigenismo
de
estado
e
indigenismo
alternativo
A
aventura
política
começou
em
1973,
quando
entrei
na
Funai.
Aí
sim,
foi
um
choque
de
realidade
política.
Depois
do
curso
de
indigenismo
em
Brasília,
voltei
ao
Pará
para
retornar
aos
Xikrin,
agora
com
os
meios,
achava
eu,
de
contribuir
melhor
com
a
aldeia.
O
coronel
Nogueira,
chefe
da
Funai
no
Pará
e
Amapá,
mandou
me
chamar
e
me
comunicou
que
eu
não
iria
ser
“chefe
de
posto”
nos
Xikrin.
Quando,
estupefato,
perguntei
o
porquê,
ele
me
respondeu:
“Porque
você
é
amigo
dos
índios”.
Foi
a
minha
primeira
lição
no
funcionalismo
público!
Depois
de
uma
passagem
pelos
Assurini,
povo
de
língua
Tupi
recém
contatados
no
médio
Xingu,
me
integrei
na
equipe
do
Projeto
Krahô,
com
Gilberto
Azanha
e
Maria
Elisa
Ladeira,
meus
colegas
na
minha
rápida
passagem
pela
Universidade
de
São
Paulo.
Estava
claro
para
nós
o
quanto
o
paternalismo
autoritário
do
governo,
a
famosa
tutela
do
índio,
era
altamente
pernicioso
para
os
índios,
politicamente
desmobilizador.
Não
seria
o
Estado
que
iria
mudar
a
situação
dos
índios,
mas
eles
é
que
teriam
que
retomar
o
curso
de
suas
histórias.
A
nossa
missão
era
desconstruir
a
autoridade
do
“chefe
dos
índios”,
gerar
fartura
para
combater
a
fome
e
a
dispersão,
patrocinar
festas
para
reagrupar
as
aldeias,
e,
assim,
recompor
o
tecido
social,
os
valores
e
a
organização
da
vida
comunitária.
As
relações
de
poder
com
a
autoridade
da
Funai
em
Goiás,
também
comandadas
por
um
coronel
corrupto,
se
deterioraram
e
acabamos
pedindo
demissão.
Se
a
universidade
não
era
meu
lugar,
tampouco
a
Funai.
Pouco
tempo
depois,
uma
comitiva
de
índios
Krahô
veio
nos
resgatar
em
São
Paulo:
queriam
o
nosso
retorno,
não
estavam
suportando
o
retrocesso
a
uma
relação
autoritária.
Do
indigenismo
de
Estado,
migramos
para
o
indigenismo
alternativo,
ou
para
a
subversão,
como
se
dizia
naquele
tempo
de
ditadura.
Fundamos,
com
mais
alguns
colegas,
o
Centro
de
Trabalho
Indigenista
(CTI),
onde
continuamos
contestando
o
poder
abusivo
da
tutela
do
Estado,
apoiando
lideranças
de
2
oposição
aos
líderes
empossados
pelos
funcionários,
que
compartilhavam
a
ideologia
de
“assimilação”
do
governo
brasileiro.
Lutamos
por
direitos
básicos,
como
a
possibilidade
dos
índios
constituírem
advogados
independentes
nas
disputas
com
o
Estado,
direitos
que
anos
depois
foram
incorporados
na
Constituição
de
1988.
Participávamos
do
movimento
geral
da
sociedade
civil
brasileira
em
busca
de
alternativas.
Comecei
a
trabalhar
a
questão
da
memória
dos
povos
indígenas
através
da
imagem
no
contexto
de
um
trabalho
de
10
anos
que
fiz
no
Centro
Ecumênico
de
Documentação
e
Informação
(CEDI)
para
constituir
um
acervo
fotográfico
para
a
publicação
da
enciclopédia
dos
Povos
Indígenas
no
Brasil,
quando
visitei
os
grandes
acervos
do
Brasil.
Fazer
estas
fotografias
retornarem
às
suas
comunidades,
devolver
às
novas
gerações
estes
registros
da
sua
história,
podia
proporcionar
aos
índios
que
estavam
sofrendo
processos
de
transformação
tão
violentos
e
tão
rápidos,
uma
visão
retrospectiva
do
seu
processo
de
mudança.
Um
primeiro
movimento
Ainda
na
década
de
1970,
o
cineasta
Andréa
Tonacci
procurou
o
CTI,
com
a
proposta
da
“Inter
Povos”,
um
projeto
de
comunicação
intertribal
através
do
vídeo.
Mas
o
vídeo
ainda
estava
nos
seus
primórdios
e
a
ideia
não
vingou.
Quando
surgiu
o
VHS
camcorder,
já
com
uma
bagagem
de
17
anos
de
convivência
com
povos
indígenas
e
de
militância
indigenista,
resolvi
retomar
a
ideia,
e
assim
começou
o
Vídeo
nas
Aldeias.
Fui
então
para
os
Nambiquara,
no
norte
de
Mato
Grosso,
acompanhado
pelo
Beto
Ricardo,
improvisando
como
de
técnico
de
som,
onde
realizamos
a
experiência
da
qual
resultou
o
meu
primeiro
documentário:
“A
Festa
da
Moça”.
O
que
interessava
no
vídeo
era
a
possibilidade
de
mostrar
imediatamente
o
que
se
filmava
e
permitir
a
apropriação
da
imagem
pelos
índios.
Não
era
chegar
“com
uma
câmera
na
mão
e
uma
ideia
na
cabeça”,
mas
uma
câmera
na
mão
e
uma
cabeça
aberta
para
o
feedback
da
aldeia,
e
deixar-‐se
conduzir
pelos
seu
entusiasmo
e
pelos
seus
desejos.
Foi
assim
que
o
capitão
Pedro
Mãmåindê
assumiu
a
direção
das
minhas
filmagens.
O
meu
estilo
de
filmagem,
de
iniciante
autodidata,
foi
moldado
por
este
3
dispositivo,
o
que
me
jogou
de
imediato
no
“vídeo-‐transe”,
sem
jamais
ter
ouvido
falar
em
Jean
Rouch
ou
no
Cinema
Verdade.
O
transe,
é
claro,
era
nosso
e
deles,
que
ao
cabo
de
várias
performances
para
ajustar
a
sua
imagem,
resolveram
realizar
a
cerimônia
de
furação
de
nariz
e
lábios,
prática
abandonada
há
mais
de
vinte
anos.
Foi
uma
experiência
catártica,
muito
além
das
expectativas
iniciais,
que
nos
demonstrou
o
poder
da
ferramenta
e
do
dispositivo.
Na
sequência,
fui
para
os
Gavião,
que
acabavam
de
retomar
o
controle
da
comercialização
da
castanha
de
sua
reserva
sob
a
liderança
do
Krohokrenhum,
assessorado
pela
antropóloga
Iara
Ferraz,
sob
o
patrocínio
da
presidência
da
Funai
em
Brasília.
A
conquista
da
autonomia
econômica
e
o
contato
recente
de
um
novo
grupo
Gavião
que
veio
se
juntar
à
turma
de
Krohokrenhum,
os
levou
a
retomar
a
sua
língua,
a
prática
do
jogo
de
flechas
e
seus
rituais.
O
vídeo
caiu
como
uma
luva
para
o
projeto
de
retomada
cultural
dos
Gavião.
Krohokrenhum
comprou
uma
câmera
e,
inspirados
pelo
filme
Nambiquara,
retomaram
a
furação
de
lábio
dos
meninos,
filmada
pelo
jovem
Raimundo
Xontapti.
Os
meus
registros
daquela
época,
eram
extensos,
procurando
gravar
a
integridade
dos
cantos,
uma
descrição
etnográfica
detalhada
dos
rituais,
porque
essa
era
a
expectativa
dos
índios
que
assistiam
mil
vezes
a
tudo
o
que
eu
filmava.
Os
registros
daquela
época
são
hoje
documentos
históricos,
uma
memória
preservada
para
as
novas
gerações
destes
povos.
O
mesmo
processo
foi
iniciado
com
os
Xavante
do
Mato
Grosso,
em
parceria
com
a
antropóloga
Virginia
Valadão,
minha
esposa,
e
em
seguida
com
os
Waiãpi,
no
Amapá,
numa
parceria
muito
especial
com
a
antropóloga
Dominique
Gallois,
pelo
seu
domínio
da
língua
Tupi
e
pelo
seu
relacionamento
de
anos
com
este
povo.
Daí
resultaram
uma
série
de
filmes,
entre
os
quais
“O
Espírito
da
TV”,
de
certa
maneira
a
pedra
fundamental
do
projeto.
O
intercâmbio
de
imagens
entre
estes
povos,
gerou
o
desejo
de
intercâmbio
presencial
entre
povos
afins,
como
os
Waiãpi
e
os
Zo’é
de
língua
Tupi,
e
os
Parkatêjê
e
os
Krahô,
todos
dois
pertencentes
aos
Timbira
do
Maranhão,
Goiás
(agora
Tocantins)
e
sul
do
Pará.
Produzimos
estes
intercâmbios,
que
resultaram
em
dois
filmes,
“Eu
já
fui
seu
Irmão”
e
“A
Arca
dos
Zo’é”,
completando
a
trilogia
que
havíamos
iniciado
com
“A
Festa
da
Moça”.
4
Vários
grupos
com
as
quais
trabalhávamos,
Gavião,
Xavante,
Waiãpi,
já
tinham
suas
câmeras
e
produziam
registros
para
consumo
de
suas
próprias
comunidades
e
intercâmbio
com
outras.
Começamos
a
reunir
estes
materiais
e
trabalhar
em
pequenas
oficinas
de
edição,
em
que
eles
narravam
o
início
de
sua
trajetória
com
o
vídeo
e
comentavam
suas
filmagens.
Nesse
contexto
de
produção,
surgiram
curtas
como
“Jane
Moraita,
nossas
festas”,
do
Kasiripina
Waiãpi;
“Tem
que
ser
curioso”,
do
Caimi
Waiassé
e
“Obrigado
Irmão”,
do
Divino
Tserewahú,
ambos
Xavante;
e
“Furação
de
beiço”
do
Raimundo
Xontapti,
dos
Gavião.
Um
escola
indígena
de
cinema
O
projeto
logo
ganhou
reconhecimento
internacional
nos
meios
que
discutiam
trabalhos
inovadores
na
área
de
comunicação,
e
conseguiu
prosseguir
graças
a
bolsas
americanas
para
artistas,
da
Guggenheim,
Mc
Arthur,
Rockefeller,
e
apoios
da
cooperação
internacional
da
Holanda
e
da
Noruega.
Convidado
para
muitos
festivais,
fui
descobrindo
que
no
México
e
na
Bolívia,
haviam
sido
iniciados
projetos
similares
ao
nosso,
no
mesmo
ano
de
1986.
Descobri
também
que
as
minorias
do
primeiro
mundo
já
tinham
dado
muitos
passos
na
apropriação
dos
meios
audiovisuais,
tanto
na
esfera
das
suas
comunidades,
como
na
formação
de
jovens
em
cinema
nas
universidades
e
na
conquista
de
canais
de
televisão.
Este
era
o
movimento
da
história
e
resolvemos
investir
também
num
processo
de
formação
de
jovens
cineastas
indígenas.
Na
primeira
oficina
no
Xingu,
reunimos
trinta
índios
de
grupos
diferentes
de
várias
partes
do
país,
os
que
já
trabalhavam
conosco
e
outros
sobre
os
quais
eu
tinha
informação
que
estavam
começando
a
filmar
por
iniciativa
própria.
Foi
um
grande
encontro
de
jovens
que
não
se
conheciam,
em
que
buscávamos
uma
metodologia
de
formação,
o
que
os
bolivianos
e
os
mexicanos
já
estavam
fazendo.
Neste
encontro,
o
Divino
Tserewahú,
que
já
filmava
há
mais
tempo,
convocou
alguns
colegas
Xavantes
e
Suyá
para
ajudá-‐lo
a
filmar
um
grande
cerimonial
na
sua
aldeia,
Sangradouro.
Dessa
oficina,
que
durou
mais
de
dois
meses,
resultou
o
filme
“Wapté,
Iniciação
do
jovem
xavante”
(1999).
Depois
desse
encontro
nacional,
resolvemos
trabalhar
regionalmente
e
estabelecer
parcerias
com
ONGs
e
associações
indígenas.
Procuramos
a
5
Comissão
Pró-‐Índio,
que
realizava
um
trabalho
de
vanguarda
na
área
de
formação
de
professores
indígenas
e
de
autoria
indígena
no
Acre,
e
com
quem
tínhamos
uma
ligação
histórica.
O
CTI
apoiara
Terry
de
Aquino,
Meirelles,
na
formação
das
cooperativas
de
borracha
para
romper
a
escravidão
dos
“barracões”
dos
patrões
e
dos
regatões
da
exploração
da
borracha
no
estado
e,
também,
na
conquista
da
demarcação
das
terras
indígenas
dos
povos
da
região.
O
conjunto
de
professores
que
a
Comissão
reunia
era
formado
por
um
grupo
muito
especial,
já
com
uma
consciência
crítica
formada.
Foi
aí
que
convidei
Mari
Corrêa,
formada
nos
Ateliers
Varan,
uma
escola
de
cinema
direto
para
o
terceiro
mundo
sediada
em
Paris,
para
compor
a
equipe
do
VNA
e,
juntos,
adaptar
o
método
desenvolvido
por
eles
ao
mundo
das
aldeias.
Depois
de
uma
experiência
de
oficina
multiétnica,
entendemos
que
trabalhar
por
etnia
era
o
que
dava
mais
certo,
pelo
conhecimento
da
língua
e
pela
intimidade
que
os
jovens
de
cada
aldeia
tinham
com
seus
parentes.
De
lá
pra
cá,
nestes
15
anos
de
formação
de
realizadores,
trabalhamos
com
X
povos
indígenas
em
Y
oficinas,
das
quais
resultaram
Z
filmes,
dos
quais
X
estão
no
nosso
catálogo.
Um
certo
jeito
de
fazer
cinema
O
VNA
certamente
tem
um
método
de
ensino,
mas
antes
de
mais
nada,
os
resultados
obtidos
são
fruto
de
um
estilo
de
relacionamento,
de
convivência,
de
escuta
dos
povos
com
os
quais
trabalhamos.
O
fato
de
atendermos
a
uma
demanda
que
parte
deles
já
é
meio
caminho
andado.
Mas,
de
qualquer
maneira,
é
preciso
entender
as
injunções,
políticas
internas
da
comunidade,
saber
colocar
sua
presença,
seu
ponto
de
vista.
Uma
vez
conquistado
este
lugar,
todo
o
processo
flui,
porque
o
desejo
de
aprender
é
enorme.
Sem
roteiro
pré-‐concebido,
a
captação
do
material
dos
cineastas
indígenas
nas
oficinas
se
dá
de
maneira
intuitiva,
empírica
e
livre,
atenta
ao
imprevisto,
ao
espontâneo,
à
livre
expressão
e
criação
dos
seus
personagens.
Filmes
que
brotam
naturalmente
da
interação
e
cumplicidade
dos
cineastas
indígenas
com
seus
personagens,
que
são
tão
autores
dos
filmes
quanto
seus
cinegrafistas.
O
desejo
coletivo
da
realização
do
filme
cria
a
sinergia
que
gera
a
força
das
suas
produções,
e
a
intimidade
do
realizador
com
o
seu
meio
produz
a
sua
6
originalidade.
A
filmagem
numa
aldeia
cria
um
momento
especial
durante
a
oficina,
rompe
o
cotidiano,
permite
estabelecer
novos
canais
de
comunicação
dentro
da
comunidade,
valoriza
temas
esquecidos.
Não
há
momento
mais
emocionante
para
nós,
participantes
desse
trabalho,
do
que
ver
um
grupo
de
jovens
entrevistando
um
velho
-‐
feliz
este
por
estar
sendo
indagado
-‐
se
espantarem
com
histórias
desconhecidas
para
eles,
e
chegar
até
a
cobrar
do
velho:
“por
que
nunca
nos
contou
essa
história?”;
e
o
velho
responder:
“porque
vocês
nunca
perguntaram.”
O
espaço
da
oficina
é
um
espaço
aberto,
pelo
qual
toda
a
aldeia
circula.
Todas
as
noites
são
realizadas
projeções
a
céu
aberto,
onde
são
exibidos
filmes
de
outras
comunidades,
documentários,
ficções,
e
momentos
especiais
produzidos
pelos
alunos
ao
longo
da
oficina.
De
maneira
que,
durante
três
semanas,
um
mês,
os
alunos,
os
personagens
e
a
comunidade
como
um
todo
se
veem
imersos
em
cinema.
A
nossa
participação
no
processo
de
captação
se
dá
na
retaguarda,
já
que
raramente
participamos
presencialmente
das
filmagens,
ao
revisar
com
eles
as
imagens.
É
isso
que
justamente
permite
que
o
seu
olhar
se
expresse.
É
claro
que
orientar
uma
oficina
é
também
fazer
junto,
no
sentido
de
que
você
está
ali
dando
sugestões,
comentando,
discutindo,
dando
o
melhor
de
si.
Já
a
formação
de
um
editor
toma
mais
tempo.
Depois
de
dois
a
três
filmes,
se
revelam
aqueles
que
tem
talento
e
gosto
pela
coisa.
A
sucessão
dos
filmes
nos
quais
eles
se
reconhecem
é
também
uma
aprendizagem
do
conjunto
da
aldeia.
Trata-‐se
de
um
processo
coletivo
e
colaborativo
entre
índios
e
não
índios,
de
aprendizagem
progressiva
e
realização.
Para
contar
de
uma
maneira
mais
detalhada
o
processo
de
formação
e
produção
colaborativa,
de
descoberta
do
cinema
pelos
realizadores
indígenas,
de
interação
de
seu
trabalho
com
a
comunidade
e
o
amadurecimento
de
ambos,
selecionamos
uma
amostragem
de
cinco
coletivos
de
cinema.
Em
cinco
capítulos,
os
Xavante,
Ashaninka,
Kuikuro,
Huni
Kui
e
Mbya-‐Guarani
contam,
juntamente
com
membros
de
suas
aldeias
e
aqueles
que,
da
equipe
do
projeto,
ministraram
as
aulas,
como
se
deram
essas
oficinas,
o
processo
de
gestação
dos
filmes
e
suas
repercussões
ao
longo
do
tempo.
7
Nestas
narrativas
fica
claro,
também,
que
o
VNA
não
é
uma
intervenção
passiva,
ou
neutra
de
transferências
dos
meios
audiovisuais.
Em
alguns
momentos
os
próprios
índios
exercem
uma
certa
“auto
censura”,
no
sentido
de
corresponder
a
imagem
que
os
“Brancos”
esperam
deles.
O
VNA
enfrenta
o
desafio
de
levar
os
cineastas
a
romperem
essa
expectativa
e
trazerem
a
realidade
indígena
em
toda
a
sua
complexidade.
A
imagem
do
índio
Para
o
Brasil,
o
índio
é
parte
do
seu
mito
de
origem,
orgulho
da
originalidade
da
nação
frente
ao
mundo,
mas
é
ao
mesmo
tempo
símbolo
de
atraso,
um
entrave
ao
progresso,
fadado
ao
desaparecimento
e
ao
esquecimento.
“Programa
de
índio”,
por
exemplo,
expressão
depreciativa
muito
comum,
expressa
este
sentimento
de
desprezo
de
muitos
em
relação
aos
índios.
Com
a
descoberta
das
Américas,
os
filósofos
do
iluminismo
criaram
a
ficção
do
“bom
selvagem”.
Ventríloquos
do
“novo
homem”,
eles
o
usaram
para
fazer
uma
crítica
da
sua
própria
sociedade,
projetando
nele
tudo
o
que
eles
gostariam
de
ser
e
não
eram
mais.
Pintaram
então
no
“bom
selvagem”
a
inocência,
a
pureza
e
a
harmonia
do
homem
com
a
natureza,
as
maravilhas
da
sociedade
igualitária.
Este
conceito
se
cristalizou
e
se
perpetuou
de
tal
maneira
que,
até
hoje,
a
maioria
das
pessoas
ainda
enxergam
os
índios
através
desse
prisma,
e
gostariam
que
eles
correspondessem
à
sua
fantasia.
Os
filmes
dos
índios
se
confrontam
em
permanência
com
essa
visão.
Toda
e
qualquer
apropriação
dos
elementos
da
nossa
civilização
pelos
índios
é
visto
por
muitos
como
uma
degradação,
uma
perda
da
pureza.
Todos
eles
gostariam
que
os
índios
mantivessem
a
“pureza”
da
sua
cultura
original.
É
por
causa
desta
idealização
que
os
índios
muitas
vezes
são
classificados
em
“aqueles
que
ainda
são”
e
“os
que
não
são
mais”
índios
.
Quando
os
filmes
rompem
o
cerco
de
distribuição
para
“os
amigos
dos
índios”
e
ganham
reconhecimento
e
difusão
num
espaço
mais
amplo
no
cenário
audiovisual
brasileiro,
estes
sentimentos
conflitantes
vem
à
tona
com
clareza.
Pela
segunda
vez
tivemos,
em
2011,
um
de
nossos
filmes
selecionados
no
festival
de
Gramado.
O
jornalista
do
jornal
O
Estado
de
São
Paulo,
Luiz
Carlos
Merten,
que
cobria
o
festival,
comentava
no
seu
blog
a
respeito
dos
seus
colegas:”
Tem
8
gente
que
morre
só
de
pensar
em
assistir
a
filmes
de
índios”
ou,
“Tem
gente
que
acha
que
o
filme
nem
devia
estar
no
festival.
Mas
como
se,
como
cinema,
é
o
melhor
brasileiro
até
agora?”
O
crítico
Marcelo
Miranda
(http://noextracampo.blogspot.com)
comenta:
“(...)
Neste
sentido,
a
definição
de
‘ficção’
e
‘documentário’
se
esvai
ao
se
assistir
ao
‘As
Hiper
Mulheres’
-‐
assim
como
a
preconceituosa
conotação
de
‘filme
de
índio’,
que
inclusive
circulou
entre
alguns
jornalistas
antes
da
sessão.
Há,
acima
de
qualquer
pré-‐impressão,
um
trabalho
elaborado
e
impactante
de
encenação,
registro
e
criação
de
espaço.”
Enquanto
uns
elogiam,
outros
destilam
seu
racismo.
Robledo
Milani,
presidente
da
Associação
dos
Críticos
do
Rio
Grande
do
Sul,
em
seu
blog
http://www.cineronda.com.br/as-‐hiper-‐mulheres
de
16/09/2011,
escreve:
“Este
documentário
(ou
seria
ficção?)
parte
de
um
tema
curioso
(...)
para
a
realização
de
algo
que
soa
tão
distante
e
estranho
a
todos
nós
que
nem
chega
a
gerar
frustração,
reduzindo-‐se
à
indiferença
(...)
A
se
temer
apenas
o
fato
de
que
Gramado
tem
tradição
em
premiar
documentários
com
temática
indígena
–
“Raoni”,
“Serras
da
Desordem”
e
“Corumbiara”
são
apenas
alguns
dos
exemplos.
Resta
agora
a
torcida
para
que
esse
equívoco
não
se
repita.
O
programa
Cultura
Viva
Depois
de
18
anos
de
trabalho
financiado
pela
cooperação
internacional
e
muito
pouca
visibilidade
nacional,
no
governo
Lula,
o
ministro
Gilberto
Gil
e
sua
equipe
realizaram
uma
verdadeira
revolução
nas
políticas
públicas
da
cultura.
Assumindo
que
“o
Brasil
não
conhece
o
Brasil”,
e
que
num
“País
de
Todos”
todo
cidadão
deve
ter
não
só
o
direito
de
consumir,
como
de
produzir
cultura
desde
a
sua
perspectiva,
se
iniciou
uma
nova
era
de
valorização
da
diversidade
cultural
brasileira,
e
se
democratizou
o
acesso
aos
subsídios
da
cultura.
Num
diálogo
com
a
sociedade
civil,
tanto
as
Secretarias
da
Cidadania
Cultural,
como
a
da
Diversidade
e
da
Identidade,
traçaram
uma
política
inédita
de
subsídio
para
as
populações
tradicionalmente
excluídas
de
qualquer
subsídio
na
área
da
cultura
–
as
populações
das
periferias
dos
grandes
centros
urbanos,
grupos
da
cultura
popular,
remanescentes
de
quilombos
e
os
índios
-‐
raízes
das
nossas
culturas
populares
e
contemporâneas.
9
Neste
contexto,
o
Programa
Cultura
Viva,
que
subsidiou
Pontos
de
Cultura
por
todo
o
Brasil,
deu
um
apoio
considerável
à
rede
de
aldeias
atendidas
pelo
Vídeo
nas
Aldeias,
possibilitando
a
compra
de
melhores
câmeras
e
equipamentos
para
edição
dos
filmes
nas
aldeias,
dando-‐lhes
maior
autonomia
de
produção,
a
realização
de
inúmeras
oficinas
de
formação
e
encontros,
a
publicação
da
coleção
de
DVDs
Cineastas
Indígenas,
com
a
compilação
dos
melhores
filmes
de
autoria
indígena.
Muito
conhecido
no
mundo
indígena,
o
projeto
recebe
dezenas
de
pedidos
de
povos
que
querem
participar
das
oficinas.
Infelizmente,
por
falta
de
recursos,
somos
obrigados
a
recusar.
Os
programas
culturais
desenvolvidos
na
era
Lula
caminhavam
para
a
democratização
dos
meios
de
produção,
e
um
número
cada
vez
maior
de
Pontos
de
Cultura
Indígenas
estavam
sendo
desenhados,
e
tínhamos
em
vista
iniciar
um
processo
de
formação
de
formadores,
para
que
um
número
maior
de
grupos
de
apoio
dispersos
pelo
país
pudesse
atender
pelo
menos
uma
parte
dessa
demanda
reprimida.
Sonhando
alto,
poderíamos
ter
a
médio
prazo,
uma
rede
nacional
de
cineastas
indígenas
alimentando
seu
espaço
próprio
na
TV
pública
brasileira.
Num
momento
em
que
vários
países
da
América
Latina
implantam
programas
e
formulam
leis
inspiradas
no
modelo
brasileiro
do
Cultura
Viva,
o
Brasil
parece
abandonar
os
avanços
do
governo
Lula
e
voltar
a
uma
política
elitista
de
subsídio
cultural.
No
PAC
do
governo
-‐
Programa
de
Aceleração
do
Crescimento
-‐
não
devemos
nos
esquecer
que
o
“PAC
da
Cultura
e
da
Educação”,
talvez
sejam
os
mais
importante
deles.
O
índio
na
TV
brasileira
Provavelmente,
90%
da
população
brasileira
só
conhece
os
índios
através
da
televisão,
nos
noticiários
quando
há
problemas
e
disputas,
ou
nas
reportagens
e
nos
documentários
feitos
por
não
índios
que,
na
maioria
dos
casos,
lançam
um
olhar
exótico
sobre
a
realidade
indígena.
Portanto,
a
TV
é
a
quase
única
janela
para
os
índios
se
tornarem
conhecidos
pela
população
brasileira
numa
escala
nacional,
e
ao
mesmo
tempo,
é
na
TV
que
são
reproduzidos
os
clichês,
os
estereótipos
e
os
equívocos
sobre
os
índios.
Quando
os
autores
de
novela
criam
personagens
indígenas,
aí
então,
entramos
para
o
terreno
da
caricatura.
Daí
a
10
importância
da
existência
de
um
espaço
na
televisão
pública
brasileira
em
que
os
índios
possam
nos
revelar
sua
realidade
através
do
seu
próprio
olhar.
Vinte
anos
atrás,
os
filmes
que
a
gente
produzia
eram
recusados
pela
televisão
pública:
não
eram
do
formato
adequado,
não
tinham
a
duração
certa
para
a
grade,
não
possuíam
a
linguagem
própria
da
televisão.
Nos
últimos
três
anos,
trazido
pelos
bons
ventos
da
valorização
da
diversidade
cultural,
surgiu
o
programa
Auw’ê
de
documentários
sobre
a
realidade
indígena.
Apresentado
pelo
ator
“global”,
Marcos
Palmeira,
o
programa
da
TV
Cultura
exibiu
e
reprisou
40
títulos
do
nosso
catálogo.
Difundido
em
horário
nobre,
todo
domingo,
às
18
horas,
os
nossos
alunos,
Brasil
afora,
nos
davam
testemunhos
sentindo
a
repercussão
dessa
difusão.
Ser
descoberto
pelos
seus
vizinhos
com
os
quais
convivem
há
décadas,
sem
ter
jamais
tido
a
oportunidade
de
se
conhecerem
realmente.
Muitos
telespectadores
escreviam
para
o
site
do
programa,
comentando
e
parabenizando
pela
iniciativa.
Imaginem
então
a
emoção
dos
moradores
das
aldeias
que
tiveram
seus
filmes
exibidos
em
cadeia
nacional!
Infelizmente,
com
a
mudança
de
direção,
a
TV
Cultura
encerrou
o
programa
Auw’ê,
e
assim,
os
índios
se
viram
excluídos
da
televisão
brasileira,
já
que
essa
era
a
sua
única
janela.
O
índio
nas
escolas
Em
2008,
o
governo
brasileiro
tomou
uma
decisão
ousada,
no
sentido
de
instituir
a
obrigatoriedade
do
ensino
de
aspectos
culturais
dos
afro
descendentes
e
dos
povos
indígenas
nas
escolas
publicas
do
ensino
fundamental
e
médio.
Essa
decisão,
que
levará
alguns
anos
para
ser
implementada
de
fato,
implica
num
enorme
investimento
na
formação
dos
nossos
professores
numa
matéria
que
eles
nunca
estudaram,
e
na
geração
de
materiais
didáticos
atrativos
e
de
qualidade
sobre
estes
temas.
Sabendo
que
os
filmes
dos
índios
permitirão
um
acesso
mais
direto
à
realidade
indígena
contemporânea,
o
Vídeo
nas
Aldeias,
tem
voltado
grande
parte
de
suas
energias
na
produção
de
filmes
e
livros
didáticos
para
escolas.
Em
2010,
o
Vídeo
nas
Aldeias
fez
um
projeto
piloto,
subsidiado
pela
Petrobras
Cultural,
distribuindo
três
mil
kits
pra
três
mil
escolas
no
Brasil
com
uma
coletânea
de
20
filmes
da
coleção
“Cineastas
Indígenas”
e
um
guia
para
11
assessorar
o
professor
no
uso
e
nas
discussões
dos
filmes
em
sala
de
aula.
Esperamos
agora
trabalhar,
com
o
apoio
da
UNESCO,
numa
compilação
de
filmes
sobre
crianças
indígenas
para
o
jovem
público
escolar.
Imaginem
quando
nossos
filhos
e
netos
puderem,
desde
cedo
nas
escolas,
se
familiarizar
e
se
interessar
pela
diversidade
das
culturas
indígenas
deste
país,
e
estabelecer
uma
relação
lúdica
e
criativa
com
a
diversidade.
Será
um
privilégio
para
nós,
um
redescobrimento
do
Brasil.
Ao
conhecer
estes
povos,
teremos
mais
chances
de
respeitá-‐los,
e
aqueles
que
serão
vistos,
se
sentirem
mais
reconhecidos.
É
preciso
criar
no
país
um
ambiente
mais
favorável
em
relação
aos
índios,
e
permitir
que
eles,
nos
lugares
mais
distantes
do
Brasil,
deixem
para
trás
a
vergonha
de
ser
quem
são,
a
vergonha
pela
qual
muitos
tiveram
de
passar
em
gerações
passadas,
e
passar
ao
orgulho
de
ser
brasileiro,
pertencendo
a
um
povo
indígena
específico!
Se
todo
adolescente
pudesse
ter
a
experiência
de
choque
cultural
que
eu
tive
o
privilégio
de
ter,
este
mundo
seria
mais
tolerante
com
relação
às
diferenças
culturais.
Precisamos
de
muito
mais
diálogo
intercultural
para
o
índio
deixar
de
ser
um
corpo
estranho,
um
estrangeiro
em
sua
própria
terra.
A
ausência,
até
recentemente,
da
temática
indígena
no
sistema
educacional
brasileiro
e
a
reprodução
dos
eternos
clichês
e
preconceitos
na
mídia,
perpetuam
este
estranhamento,
esta
ignorância.
Os
índios
querem
participar
da
modernidade,
ser
incluídos
neste
país
e
gozar
de
cidadania
plena,
desde
que
sua
identidade
e
diferença
sejam
respeitadas.
É
preciso
apoiar
a
produção
indígena
contemporânea.
Por
ser
uma
ínfima
minoria,
o
acesso
aos
meios
de
comunicação
é
estratégico
para
eles.
A
temática
indígena
precisa
estar
nas
nossas
escolas,
precisa
estar
na
mídia,
mas
representada
por
eles
mesmos,
com
este
olhar
próprio
que
faz
toda
a
diferença.
12