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Em busca de uma ancestralidade brasileira, por Daniel Munduruku

Nasci índio. Foi aos poucos, no entanto, que me aceitei índio. Relutei muitas
vezes em aceitar essa condição. Tinha vergonha, pois o fato de ser índio estava ligado
a uma série de chavões com que muitas pessoas me insultavam: índio é atrasado, é
sujo, preguiçoso, malandro, vadio... Eu não me identificava com isso, mas nunca fiz
nada para defender minha origem. Carreguei com muita tristeza todos os apelidos que
recaíam sobre mim: índio, Juruna, Aritana e Peri, entre outros. E tive de conviver com
o que a civilização ocidental tem de pior, que é ignorar quem traz em si o diferente.
Ainda jovem me vi em crise de identidade. Aceitar minha origem significava
abandonar uma série de comportamentos que já tinha introjetado em mim como uma
forma de defesa, e eu não tinha muita coragem de fazer isso. Via que as meninas da
minha idade se afastavam de mim e, por isso, associei o fato de ser índio à ideia da
falta de beleza. Seria eu feio? Achava que sim. De outro modo, como entender que as
meninas se afastassem de mim e não tivessem o mínimo interesse em me namorar?
Nas minhas idas e vindas da aldeia para a cidade é que pude ir entendendo o que
a cidade tinha para me oferecer. E foi ouvindo as histórias que meu avô contava que
percebi o que os povos tradicionais podiam oferecer à cidade. Foi um caminho difícil
de fazer, mas o início dessa história chamava-se Apolinário.
Apolinário era o nome do meu avô. Era, porque já faz muito tempo que ele nos
deixou e foi morar na nascente do rio Tapajós, lugar para onde vão as almas
iluminadas, segundo meu povo. Com ele aprendi a ser índio. É claro que, naquela
época, eu não tinha certeza disso, mas desconfio que ele sabia exatamente aonde
queria chegar e foi me introduzindo no universo da sabedoria indígena. Hoje sou um
saudoso e agradecido neto. O interessante é que muito desse conhecimento ele me
passou sem dizer palavra alguma. Ele o fazia no silêncio de sua vida, na perfeita
harmonia com que vivia, na serenidade do seu rosto e no seu assentar-se de cócoras,
posição em que permanecia horas a fio meditando profundamente. Talvez tenha sido
esta a sua primeira grande lição: o silêncio.
Quando o velho Apolinário morreu, eu tinha apenas 12 anos e acompanhei meu
pai durante seu velório na aldeia. Naquela ocasião, eu estava em Belém do Pará,
onde eu morava com meus pais e estudava. Fiquei muito triste com a notícia e fiz
questão de acompanhar meu pai. Quando cheguei na aldeia, todos estavam muito
tristes. Fiquei olhando o rosto sereno do meu avô. Ele já estava bem velhinho. Ao fitar
seu rosto, tive a impressão de que também me olhava, entrava em mim para contar-
me – talvez lembrar-me – qualquer coisa de que já estava me esquecendo. Foi aí que
me lembrei de um fato curioso.
Sempre que eu vinha da cidade para a aldeia, chegava muito agitado, confuso,
inquieto. O velho ficava observando meus movimentos de forma muito discreta, não
deixando que eu percebesse que ele acompanhava meus modos. Num determinado
momento, convidou-me para tomar banho no igarapé que corria perto da aldeia. Fui
sem atentar em nada que fosse anormal no comportamento do velho. Ao chegar ao
rio, pediu que eu fosse até uma pequena queda-d’agua, sentasse numa pedra e
observasse todos os movimentos que o rio fazia. Não tinha a menor ideia do que
pretendia. Enquanto permaneci ali, ele não se moveu do lugar. Acocorou-se na parte
baixa do rio e jogou água sobre seu corpo com as mãos em concha. Vez por outra
olhava para mim e apontava para a água como se dissesse que eu também devia
olhar para ela.
Passaram-se muitas horas. No final, em vez de estar cansado por ter ficado
muito tempo numa posição pouco cômoda, sentia uma estranha paz percorrer meu
corpo. Então, meu avô levantou-se e chamou-me, dizendo: “Hoje você aprendeu algo
novo. Nunca se deixe levar pelo barulho interior. A gente tem de ser como o rio. Não
há empecilho no mundo que o faça sair do seu percurso. Ele caminha lenta mas
constantemente. Ninguém consegue apressar o rio. Nunca ninguém vai dizer ao rio
que ele deve andar mais rápido ou parar. Nunca apresse o rio interior. A natureza tem
um tempo, e nós devemos seguir o mesmo tempo dela”.
Era assim o velho Apolinário. Homem de poucas palavras, mas de sabedoria
infinita.
Em outra ocasião, o velho surpreendeu-me com uma coisa tão bonita que
fiquei impressionado. Na última vez em que fui à aldeia, ele me chamou de lado e,
deitado na rede, sussurrou ao meu ouvido: “existem duas coisas importantes que as
pessoas devem saber para viver bem suas vidas: 1) nunca devem se preocupar com
as coisas pequenas; 2) todas as coisas são pequenas”.

Munduruku, Daniel. O banquete dos deuses: conversa sobre a origem e a cultura brasileira. São Paulo: Global, 2009,
pp.13-15.

Contribuições da língua indígena para o Brasil

A língua indígena, principalmente o Tupy, através dos tupinambá, está presente


até hoje no nosso cotidiano: na fauna, flora, topônimos e expressões cotidianas.
Estudiosos verificaram, por exemplo, que de mil nomes de aves, 350 eram
designações tupis; de 550 peixes, metade é identificada com nomes tupis, e a
geografia brasileira é praticamente batizada com nomes nativos.
E até hoje temos a presença do nheengatu – espécie de língua geral tida como
língua oficial no Brasil até o século XIX –, basta observar a fala brasileira do interior e
o português cotidiano das cidades:

 Chega de nhenhenhém (nhem= fala, na língua tupi)


 Não deixe a peteca cair (peteca, palavra tupi que significa “bater com as
mãos”).

Algumas outras palavras: soco, socar, amendoim, maracujá, caatinga, pereba,


piranha, pororoca, pipoca, samambaia, igarapé, jaci, jaca, jacum Tainá, jacaré,
pitanga, caipira, caipora, caiçara, cumbuca, iara.

JECUPÉ, K.W. A terra dos mil povos: história indígena do Brasil contada por um índio. SP: Peirópolis, 1998, p.101.

TUPINAMBÁ, TUPI, TUPI-GUARANI

Na época da invasão portuguesa, quase toda a costa do Brasil era ocupada por
índios falantes de uma única língua, conhecida por “língua brasílica”, “língua geral”,
“língua geral da costa”, “tupi antigo” ou simplesmente “tupi”.
Embora admitissem descender dos mesmos antepassados, embora possuíssem
um patrimônio intelectual comum, não constituíam um povo, no sentido estrito do
termo, por estarem divididos em diversos grupos com identidade própria, muitas vezes
antagônicos entre si – como os tupiniquim, temiminó, maracajá, tabajara, caeté,
tupinaé, amoipira, potiguara, carijó, talvez os guaianá.
Os tupinambá, também falantes do tupi, formavam um desses grupos com
identidade própria; e habitavam faixas costeiras da Bahia, do Maranhão (a partir do
século 17) e do Rio de Janeiro – onde eram mais conhecidos por tamoio.
Embora, na literatura colonial brasileira, o vocábulo “tupi” também se aplique, em
sentido estrito, aos tupiniquim de São Paulo, neste livro só irá designar o idioma
comum a todos esses grupos, que também foi a língua corrente de grande parte das
populações mameluca e européia até o século 18, quando seu uso foi expressamente
proibido pelo marquês de Pombal.
Os lingüistas tratam hoje o guarani como um idioma autônomo, mas na época
colonial este termo designava um mero dialeto regional do tupi, falado pelos carijó e
provavelmente pelos guaianá, além de outros grupos da bacia do Paraná e Paraguais.
Basta lembrar que Ruiz de Montoia deu à sua gramática o nome de Arte de la lengua
guarani o más bién tupi.
Mas nem por isso se devem confundir “tupi” ou “guarani” com “tupi-guarani”. Esta
última expressão não designa um povo, nem uma língua, nem uma cultura. Tem
alcance unicamente teórico e identifica uma família de línguas em que figuram, por
exemplo, o tupi (como o defini antes) e muitos idiomas ainda falados no Brasil e países
vizinhos.
Quando se diz que duas ou mais línguas pertencem à mesma família lingüística,
implícito está o pressuposto de que derivam todas de uma mesma língua ancestral. O
caso da família tupi-guarani é análogo, por exemplo, ao da família românica, ou
neolatina, que reúne o português, o galego, o espanhol, o francês, o catalão, o italiano
– todas descendentes do latim e muito semelhantes entre si.
É evidente que, por metonímia, o emprego do “tupi” ou “tupi-guarani” poderá
designar a cultura ou o conjunto dos povos falantes dessas línguas.

MUSSA, Alberto. Meu destino é ser onça. Rio de Janeiro: Record, 2009, pp.13-14.

Pankararu, de Eliane Potiguara

Sabe, meus filhos...


Nós somos marginais das famílias
Somos marginais das cidades
Marginais das palhoças...
E da história?

Não somos daqui


Nem de acolá
Estamos sempre ENTRE
Entre este ou aquele
Entre isto ou aquilo!

Até onde agüentaremos, meus filhos?...

POTIGUARA, Eliane. Metade cara, metade máscara. São Paulo, Gobal, 2004, p.60.
Resistência – Rap da indígena Katú (disponível no Youtube)

Nunca entendi por que decidiram roubar e não pedir


Eu nunca entendi como eles matam e ainda sorri
Mas estamos aqui, vamos lutar e vamos te impedir
Então chega de genocídio e do nosso povo ferir.

O coração do guerreiro parou e seu sangue regou a terra


Gritos e choros se misturaram com o som da moto-serra
Vocês não entendem o que é ter honra, o que é ter ideais
Cala a boca e não desonrem meus ancestrais
Eu cheguei e aqui vou lutar, meu grito aqui eu vou soltar
Se quiser pode me encarar, aqui eu nasci e vou ficar
Só vim te avisar que a nossa luta nunca vai parar
E as nossas terras vocês não vão mais roubar

Nunca entendi por que decidiram roubar e não pedir


Eu nunca entendi como eles matam e ainda sorri
Mas estamos aqui, vamos lutar e vamos te impedir
Então chega de genocídio e do nosso povo ferir.

E eu vou, eu vou, eu vou existir


E eu vou, e eu vou, eu vou resistir
E eu vou, e eu vou, eu vou existir
Porque estamos aqui, vamos lutar e vamos te impedir

Pegue seu arte e sua voz, lute guerreiro e não desista


Seu coração ainda bate e sua alma ainda grita
Chega de genocídio, ruralista e governo golpista
Chegou a nossa hora de virarmos protagonistas
Destruindo a natureza eu já te disse que você não vai longe
Mas aqui o povo luta, aqui o povo não se esconde
Minha honra não tem preço e a natureza é meu berço
Para você não abaixo a cabeça e também não obedeço

E eu vou, e eu vou, eu vou existir


E eu vou, e eu vou, eu vou resistir
Porque estamos aqui vamos lutar e vamos te impedir
Então chega de genocídio e do nosso povo ferir.

Vocês não entendem o que é ter honra


O que é ter ideias,cala a boca e não desonrem meus ancestrais.

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