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THAYSA CAVALCANTE

LÍNGUA PORTUGUESA

Aluno (a):_______________________________________________________________ Turma: ________ Data _____/_____/_____

LITERATURA INDÍGENA

É índio ou não é índio?


Certa feita tomei o metrô rumo à praça da Sé. Eram meus primeiros dias em São Paulo, e eu gostava de andar de
metrô e ônibus. Tinha um gosto especial em mostrar-me para sentir a reação das pessoas quando me viam passar;
queria poder ter a certeza de que as pessoas me identificavam como índio, a fim de formar minha autoimagem.
Nessa ocasião a que me refiro, ouvi o seguinte diálogo entre duas senhoras que me olharam de cima abaixo quando
entrei no metrô.
– Você viu aquele moço? Parece que é índio – disse a senhora A.
– É. Parece. Mas eu não tenho tanta certeza assim. Não viu que ele usa calça jeans? Não é possível que ele seja
índio usando roupa de branco. Acho que ele não é índio de verdade – retrucou a senhora B.
– É, pode ser. Mas você viu o cabelo dele? É lisinho, lisinho. Só índio tem cabelo assim, desse jeito. Acho que ele é
índio sim – defendeu-me a senhora A.
– Sei não. Você viu que ele usa relógio? Índio vê a hora olhando para o tempo. O relógio do índio é o sol, a lua, as
estrelas... não é possível que ele seja índio – argumentou a senhora B.
– Mas usa sapato e camisa – ironizou a senhora B.
– Mas tem as maçãs do rosto muito salientes. Só os índios têm o rosto desse jeito. Não. Ele não nega. Só pode ser
índio e, parece, dos puros.
– Não acredito. Não existem mais índios puros – afirmou cheia de sabedoria a senhora B. – Afinal, como um índio
poderia estar andando de metrô? Índio de verdade mora na floresta, carrega arco e flecha, caça, pesca e planta
mandioca. Acho que ele não é índio coisa nenhuma...
– Você viu o colar que ele está usando? Parece que é de dentes. Será que é de dentes de gente?
– De repente até é. Ouvi dizer que ainda existem índios que comem gente – disse a senhora B.
– Você não disse que achava que ele não era índio? E agora parece que está com medo?
– Por via das dúvidas...
– O que você acha de falarmos com ele?
– E se ele não gostar?
– Paciência... ao menos nós teremos informações mais precisas, você não acha?
– É, eu acho, mas confesso que não tenho muita coragem de iniciar um diálogo com ele. Você pergunta? – disse a
senhora B que àquela altura já se mostrava um tanto constrangida.
– Eu pergunto.
Eu estava ouvindo a conversa de costas para as duas e de vez em quando ria com vontade.
De repente senti um leve toque de dedos em meu ombro.
Virei-me. Infelizmente elas demoraram a me chamar. Meu ponto de desembarque estava chegando: olhei para elas,
sorri e disse:
– Sim!!!
MUNDURUKU, Daniel. Histórias de índio. São Paulo: Companhia das Letrinhas, 2001.

1. Você conhece alguma situação parecida à vivenciada pelo autor do texto?


2. Em que trechos do relato as senhoras A e B apresentam uma visão estereotipada dos indígenas brasileiros?
3. Como a visão da senhora B reforça uma das formas de preconceito contra os povos indígenas?
4. Textos como o lido anteriormente são uma importante fonte de informação e de contato com o outro. Pensando nisso,
como a literatura de autoria indígena pode ajudar a combater preconceitos como os citados no relato de Daniel
Munduruku?

A literatura indígena brasileira


Parte das obras do movimento romântico se caracteriza como indianistas quando se estuda a história da literatura
brasileira. Elas são assim denominadas por apresentarem o indígena como personagem, diferindo-se do que chamamos
de literatura indígena, que apresenta a voz e a perspectiva dos povos originários, isto é, cujos autores são indígenas
brasileiros.
No entanto, desde o princípio houve uma literatura indígena, com narrativas mitológicas, lendas, cantos, que foi
transmitida oralmente por gerações. O que se alterou é que, principalmente a partir dos anos finais do século XX, tanto
essa literatura tradicional como a literatura contemporânea, que reflete sobre temas de interesses dos nativos, produzida
por indígenas, passaram a ser publicadas, tornando-se acessíveis para um público mais abrangente. Desde então,
nomes como Kaká Werá Jecupé, Emerson Guarani, Daniel Munduruku, Tiago Hakiy, Daniel Matenho Cabixi, Eliane
Potiguara, Ailton Krenak passaram a expressar, também de forma escrita, o ponto de vista desses povos e a propor
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reflexões sobre questões da história e da vida contemporânea dos indígenas. A seguir, leia
um trecho de conto do escritor Daniel Munduruku, do livro Contos indígenas brasileiros. Esse livro apresenta contos da
cultura de diversos povos nativos.

Do mundo do centro da Terra ao mundo de cima


Povo Munduruku (Mito Tupi)
No antigo tempo da criação do mundo com toda sua beleza, os Munduruku viviam dispersos, sem unidade e
guerreando entre si. Era uma situação muito ruim que tornava a vida mais difícil e indócil. Foi aí que ressurgiu Karú-
Sakaibê, o grande Criador, que já havia realizado tantas coisas boas para este povo.
Contam os velhos que foi ele quem criara as montanhas e as rochas soprando em penas fincadas ao chão. Eram
também criações dele os rios, as árvores, os animais, as aves do céu e os peixes que habitam todos os rios e igarapés.
Karú-Sakaibê, tendo percebido que o povo que ele criara não estava unido, decidiu voltar para unificá-lo e lembrá-lo
como havia trazido do fundo da Terra quando ele decidiu enfeitar a Terra com gente que pudesse cuidar da obra que
criara.
Assim contam os velhos sobre a vinda dos Munduruku ao mundo de cima. [...]
MUNDURUKU, Daniel. Contos indígenas brasileiros. 1. ed. São Paulo: Global, 2021.

Munduruku: formigas gigantes ou compridas. Por essa característica, também nomeia um povo nativo, conhecido por
ser guerreiro e poderoso. Está presente nos estados do Pará, Amazonas e Mato Grosso.
Karú-Sakaibê: forma como o povo Munduruku denomina seu herói criador e civilizador.
igarapé: pequeno córrego, onde normalmente ficam localizadas as aldeias Munduruku.

Os autores lidos anteriormente, Kaká Werá e Daniel Munduruku, foram precursores dessa produção escrita e publicada
por indígenas, que se iniciou abordando as tradições e a história sob o ponto de vista de seus povos. Atualmente, essa
vertente da literatura visa diminuir a invisibilidade que foi dada a essa cultura durante muito tempo, fazendo com que
seus textos não se detenham apenas a estética e técnicas de escrita, mas que ganhe ares de fenômeno político e
cultural relevante dentro da literatura brasileira, abordando temas de pertencimento, sentimento do ser indígena,
memória, identidade e resistência. A característica da ancestralidade é muito marcante na literatura indígena. No
entanto, não há somente contos que abordem mitos e lendas desses povos. A literatura de autoria indígena, ainda que
tenha surgido como movimento somente a partir de 1990, mostra-se como literatura diversa, que varia entre os gêneros
poesia, romance, contos sobre lendas, livros de não ficção e para o público infantil. O surgimento tardio desse tipo de
publicação evidencia a condição naturalizada de apagamento a que esses autores foram submetidos, havendo
resistência da sociedade em apoiar suas obras. E é por isso que escritores indígenas, como Daniel Munduruku,
defendem a prática da escrita e a consolidação dessa literatura como meio de resistência e disseminação da cultura de
seus povos.

A autora Macuxi Julie Dorrico escreveu um poema abordando o tema do pertencimento, no sentido de carregar consigo
a identidade indígena. O livro Eu sou macuxi e outras histórias (2019) exalta a cultura macuxi, comunidade indígena sul-
americana, localizada no estado de Roraima, na fronteira com a Guiana, e resgata a memória da sua infância e do povo
que vive nessa localidade. A seguir, leia o poema.

Não há fronteiras para o pertencimento


De um porto a outro
De norte a sul
Karitiana, guarani e macuxi

De um gosto a outro
Cruzeiro-do-sul
Kaingang, omágua/kambeba, pankararu

De um porto a outro
De norte a sul
Do meu ponto de referência
Viva os munduruku!

De um gosto a outro
De norte a sul
Wapichana, mura e mara-guaçús
Baniwa, Kadiwel e Guaicurús
THAYSA CAVALCANTE
LÍNGUA PORTUGUESA
No silêncio dos olhos de meus parentes amarelos
Ouço os sons dos maracás
Vejo a cor do urucum e do jenipapo em suas peles
Sinto o orgulho do pertencimento que sempre exala em seus cabelos!
Em suas sombras toca o tambor:
Eu sou! Eu sou! Eu sou!
Indígena eu sou!

De um porto a outro
De norte a sul
Do meu ponto de referência
Viva os kai-gua-ya-xucu

De um porto a outro
De norte a sul
Povos indígenas
Nessa vida e em tantas outras
Eu sou.
DORRICO, Julie. Não há fronteiras para o pertencimento. In: DORRICO, Julie. Eu sou macuxi e outras histórias. Minas
Gerais: Caos e Letras, 2019.

Leia a seguir um poema de Eliane Potiguara, do livro Metade cara, metade máscara.

1. Que papel das mulheres indígenas é exaltado no poema?


2. Embora o poema seja majoritariamente escrito em terceira pessoa, como é possível identificar a voz enunciadora
como manifestação de um pertencimento indígena?
3. Observe a recorrência da palavra forte no poema. Apesar da repetição, os diversos contextos frasais nos quais ela
aparece lhes conferem diferentes significados. Essas variações de sentido garantem certa progressão na noção de
enredo do poema (começo, meio e fim). Explique de que maneira isso acontece.
4. No poema “Identidade indígena”, do mesmo livro de Eliane Potiguara, lê-se que “o sumo de nossa ancestralidade nos
alimentará para sempre”. Qual é a importância da ancestralidade para os indígenas e como ela é exaltada na literatura?
5. Os textos dos autores indígenas lidos no capítulo foram escritos em língua portuguesa; em alguns casos, seguindo um
padrão formal culto. Por que você acha que isso ocorre?

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