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LATINA NA PERSPECTIVA DO
ROMANCE LOS DETECTIVES
SALVAJES DO ESCRITOR ROBERTO
REVELL – ISSN: 2179-4456 - 2023– v.1, nº.34 – Edição Especial de 2023
BOLANO
THE FACES OF DEATH IN LATIN AMERICA IN THE PERSPECTIVE OF THE
NOVEL LOS DETECTIVES SELVAJES FROM CHILEAN WRITER ROBERTO
BOLANO
Abstract: From the understanding that the literary text is built through the circulation of
historical, political and cultural elements produced under the vigilance of the multiple relations
developed among the individuals, in a certain time and place, the present study objectifies to
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1Doutor em Literatura e Cultura pela Universidade Federal da Bahia - Brasil, com período
sanduíche em Universidade Autônoma de Barcelona – Espanha. Professor Adjunto da
Universidade Estadual de Feira de Santana – Brasil. ORCID iD: https://orcid.org/0000-0002-
3061-6020. E-mail: edsonn.oliveira28@yahoo.com.br.
analyses the novel Los Detectives Selvajes (1998), from Chilean writer Roberto Bolaño (1953-
2003), taken as a representative artist of the main changes presented by the Spanish language
contemporary literature, in the ambivalent space that comprehends Spain and Latin America,
speciãlly, when it comes to the elegy’s pleãsure in the Lãtin-American context. Thus, based on
the discussion of themes related to life, to experience, to grief, to melancholy, death and game,
this work is supported by the historic-comparative method, taking in consideration the
profound observation of phenomenons, processes and relations that build the reality and the
fictional environment of the narrative in evidence. Therefore, motived by the reading and the
analysis of the featured novel, the survey talks, in certain circumstances, with different areas of
knowledge, such as history, mythology, philosophy and psychoanalysis, in order to comprehend
the several literature ways to communicate with other languages, and therefore, discuss which
Os poetas que circulam pela narrativa, Arturo Belano, Ulises Lima, García
Madero, a enigmática Cesárea Tinajero e outros tipos que fazem da atividade
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literária um ato de sobrevivência e perdição, são criaturas anônimas, sujeitos
que vivem à beira da invisibilidade e escrevem versos desesperados diante de
epitáfios que se espelham pelo deserto mexicano. São poetas revolucionários,
que não empunham bandeira alguma, mas entendem que a revolução está no
próprio ato da escritura, na sua manifestação como um dispositivo destrutor e
edificante que trabalha em paralelo ao Estado, pelos subúrbios da ética e da
estéticã, ãbsolutãmente sem rumo e sem teogoniã: “[...] crucero perdido en las
REVELL – ISSN: 2179-4456 - 2023– v.1, nº.34 – Edição Especial de 2023
Assim, seguindo o caminho aberto pela análise de Andrea Cobas Carral &
Verónica Gabiroto (2008, p.27), entendemos que a morte, que no romance não
se limita simplesmente à falência orgânica do corpo, trata-se também da
deterioração dos sistemas organizacionais, do adoecimento de referências
estéticas e dos mecanismos de construção e captação do real, aparece dobrada 87
continua intimidando vítima e algoz, unidos para sempre pela tragédia que
personificam. Neste caso, o trabalho com a poesia se converte em uma prática
suficientemente perigosa a ponto de colocar em risco a vida daquele sujeito que
a executa; trata-se de um ofício que se concentra em representar uma realidade
povoada de máquinas e de arquiteturas ambiciosas e vazias (engrenagens para
uma modernidade que não virá), com ruas em que os panfletos publicitários
formam tapetes de ilusão sobre os quais se equilibram penosamente as
estruturas do poder revolucionário.
4Tradução nossa: [...] minha filha, cujos hábitos de higiene não permito que ninguém coloque
em dúvida, lavava a boca a todo o momento, ao se levantar, no meio da manhã, depois de comer,
às quatro da tarde, às sete da noite, depois de jantar, antes de ir para cama, mas não havia
maneira de tirar o mau cheiro, de extirpar ou dissimular o odor que o vigilante farejava ou
soprava como um animal encurralado, e embora minha filha enxaguasse a boca com Listerine a
90 cada vez que escovava os dentes, o odor persistia, desaparecia momentaneamente para depois
voltar nas situações mais inesperadas, às quatro da manhã, na larga cama de náufrago do
vigilante, quando durante seus sonhos se dirigia até minha filha e se deitava sobre ela, um cheiro
insuportável que tirava sua paciência e discrição, o fedor do dinheiro, o fedor da poesia, talvez
inclusive o fedor do amor (BOLAÑO, 1998, p.441-442).
estéticas são produzidas sob a frequente condição de enfermidade. Assim como
sua poesia, hospedeira do mal-estar e do espírito de desintegração que
acometem a sociedade, o poeta personifica as tragédias que marcaram a
história política da América Latina e traduz estas mazelas através de seus
versos, de seu silêncio e com o uso de seu corpo, que passa a ser a superfície
orgânica sobre a qual atuam os agentes endêmicos que a adoecem e a
precisamente a mim, no final aceitei o meu destino. [...] Estar sozinho fortalece. Santa verdade.
E consolo para os imbecis, pois ainda que eu quisesse estar acompanhado esta é a hora em que
ninguém se aproxima de minha sombra. [...] Às vezes, quando bebo além da conta, mando todos
94 à merda, ele, os literatos que me esqueceram, todos os assassinos que me perseguem e me
espreitam na escuridão e até os tipógrafos perdidos na glória e no anonimato, mas depois me
acalmo e começo a rir. A vida tem que ser vivida, nisso consiste tudo, simplesmente. Me disse
um diã um bêbãdo que encontrei nã sãídã do bãr “Lã Mãlã Sendã” (O mãu cãminho). A literãturã
não vale nada (BOLAÑO, 1998, p.300-301).
proposto pelo autor; as cartas de azar ou de sorte que são lançadas sobre a mesa
aparecem manchadas pelo sangue da barbárie que ainda persegue nossos
rastros e descava do cemitério de nostalgias as lembranças que ressuscitam
antigos fantasmas e nos fazem reviver a história de horror e desolação
promovida pela ação de falsos heróis e pelo discurso inoperante de sujeitos
aviltados.
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O retorno ao passado por meio da recuperação de imagens associadas aos
conflitos que constituem a história latino-americana possibilita ao sujeito
contemporâneo compreender os níveis de complexidade que integram a sua
genealogia, mas não o liberta das amarras que ainda o mantém preso a este
tempo e não assegura que as armadilhas de que nos fala o teórico sejam,
efetivamente, neutralizadas. Trazer estas memórias, e de alguma forma,
atualizar a dor e o mal-estar que foram impressos no nosso D.N.A. nos coloca
REVELL – ISSN: 2179-4456 - 2023– v.1, nº.34 – Edição Especial de 2023
6 Tradução nossa: [...] Minha vida tem sido um desastre. [...] Imagino que meus pais se amaram
muitíssimo, e que houve entre eles uma forte atração sexual, mas jamais deveriam ter se casado
e muito menos tido filhos. Eu era o filho mais velho e recebia os bombardeios que vinham tanto
de um lado quanto de outro. São histórias tão tristes, tão destrutivas, que podem até se
transformar em algo cômico. Mas são insuportáveis. [...] Eu creio que a formação das pessoas
não acaba nunca. Não sou um ser humano pronto, nem de longe. Quando criança eu era muito
vulnerável, com o tempo fui me fazendo muito resistente. Mas quando tive meus filhos descobri
que tudo isso era falso, que a vulnerabilidade é meu epicentro. Meus filhos têm me tornado mais
humano. O que me faz tremer é que eles se metam nesse mesmo abismo em que eu estive
submerso (BRAITHWAITE, 2006, p.79-80).
7 Tradução nossa: [...] Sim, os revolucionários que conheci naquela época, e conheci muitos, viam
a si mesmos como motores transformadores da história. Vivi uma história sinistra, a do poeta
salvadorenho Roque Dalton, que foi falar com eles e fazê-los desistir de começarem a luta
98 armada. [...] Conversaram uma noite inteira, e a discussão chegou a um consenso. Dalton foi
dormir. Decidiram desfazer-se dele porque não estava de acordo com eles e lhe dispararam um
tiro na cabeça enquanto dormia. A loucura absoluta. E esses mesmos miseráveis, um ano depois
de terem sangrado tanta gente, compactuaram com a direita. Foi a morte da quimera
(BRAITHWAITE, 2006, p.80).
autocontemplação, não se trata de uma homenagem ao poeta, conhecedor de
todas as verdades, nem à literatura, mas da tomada de consciência frente à
necessidade de se pensar as experiências do indivíduo, no epicentro da dor em
que foram forjadas, manipulando-as a partir de diferentes pontos de
observação, recontando-as sob o influxo das condições de existência no atual
cenário econômico-político para, enfim, transformar a escrita a respeito delas
8Tradução nossa: Durante um tempo a Crítica acompanha a Obra, logo a Crítica se desfaz e são
os Leitores que passam a acompanhá-la. A viagem pode ser longa ou curta. Logo os leitores
morrem um a um e a Obra segue sozinha, ainda que outra Crítica e outros Leitores pouco a
pouco comecem a acompanhar o seu percurso. Logo a Crítica morre outra vez e os Leitores
morrem outra vez e sobre esse caminho de ossos a Obra segue sua viagem até a solidão.
Aproximar-se dela, entrar em sua embarcação é sinal inequívoco de morte segura, mas outra
Crítica e outros Leitores surgirão incansáveis e implacáveis e o tempo e a velocidade irão 99
devorá-los. Enfim a Obra viaja irremediavelmente sozinha na Imensidão. E um dia a obra morre,
como morrem todas as coisas, como se extinguirá o Sol e a Terra, o Sistema Solar e a Galáxia e a
mais recôndita memória dos homens. Tudo o que começa como comedia acaba como tragédia
(BOLAÑO, 1998, p.484).
Com base na sustentação de uma tríade formada pela obra, pelo leitor e
pela crítica, onde a posição ocupada por cada um deles tende a ser modificada,
segundo a movimentação de interesses externos e internos e a tendência da
obra em resistir a grandes terremotos, o fragmento nos propõe uma reflexão
em torno dos jogos que cercam a atividade literária, destacando-a, por fim,
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como última sobrevivente a navegar sozinha pela imensidão dos mares que,
mais cedo ou mais tarde, trará o seu desaparecimento, e a confirmação de uma
morte segura, exatamente como se dá com todas as coisas que estão dispostas
no universo. Bolaño tem consciência dessa finitude, a morte e as várias faces da
morte são peças fundamentais para o jogo de cartas proposto pelo autor, que
revive o passado na intenção de confrontá-lo, de violar as paredes de concreto
que asseguram a sua plenitude, mas está seguro quanto aos efeitos que serão
provocados pelos estilhaços decorrentes desta atitude demolidora. Em meio à
cortina de fumaça que coloca todos os personagens em uma espécie de diálogo
às cegas, onde as principais teses do autor são rigorosamente discutidas, o
romance elabora uma crítica contundente ao campo literário na cena
contemporânea, contexto em que a escrita e a figura do artista aparecem
associadas a uma dimensão espetacular da imagem.
Recebido em 18/08/2022.