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Weber Santos Nádia Maria. Sensibilidade da exclusão e loucura na literatura-memória de Lima Barreto. In: Caravelle, n°86,
2006. L'Amérique latine et l'histoire des sensibilités. pp. 71-86;
doi : https://doi.org/10.3406/carav.2006.2920
https://www.persee.fr/doc/carav_1147-6753_2006_num_86_1_2920
Abstract
ABSTRACT - This article deals with insanity in the literature-memory of Lima Barreto through the
relation between history and literature within the framework of Cultural History. The writings of this
Brazilian pre-modernist author, specially those that deal with his last confinement, taken from Diário do
Hospicio, have been used as a privileged source to reveal a certain «sensibility of exclusion», which
becomes closer to literary expression in the last unfinished novel, Cemitério dos Vivos.
Resumo
RESUMO - Este artigo discute, através da relação entre história e literatura e dos parâmetros da
História Cultural, a temática da loucura na literatura- memória de Lima Barreto. Os escritos deste autor
pré-modernista brasileiro, principalmente aqueles originados durante sua última internação
manicomial, Diário do Hospício, serviram de fonte privilegiada para descortinar-mos uma
«sensibilidade da exclusão», a qual tomou uma forma mais literária em seu romance inacabado
Cemitério dos Vivos.
CM.H.LB.
n° 86, p. 71-86, Toulouse,
Caravelle 2006
PAR
seus valores, conceitos, noções sobre a vida dos homens e suas práticas
sociais.
Assim como a literatura comporta a ficção, a escrita histórica também
comporta elementos de fíccionalidade em sua ontologia, desde que bem
amparados em bases «documentais», em fontes, como preza e precisa o
historiador. O entrecruzamento de história e literatura se dá, pois, através
do plano flccional, onde as representações do sensível aparecem nos
personagens e narrativas literárias. A literatura, assim como outras artes, é
expressão de sensibilidades, por excelência. E cabe ao historiador, através
de seu olhar e de seu questionamento, recriar este passado no presente,
dando-lhe um (novo!) significado.
E é por tudo isto que se pode falar de uma história das sensibilidades
feita através dos registros ficcionais da literatura. Pois estes registram
nada mais do que o «imaginário desde dentro», isto é, os conteúdos
sensíveis —e invisíveis- que também compõem as ações humanas. Em
outras palavras, também é desta sensibilidade revelada por este tipo de
escrita que são feitos os atos humanos, estes mesmos que constróem as
sociedades. A ficção mostra aquilo que é vivido no imaginário de quem
escreve e, ao mesmo tempo, aquilo que pode ser contado aos outros. O
recurso ficcional, no caso literário, através de sua linguagem simbólica,
funciona como um «documento de sensibilidade», que pode representar
um certo passado -aquele dos «homens que foram vencidos pelos fatos».
Pesquisando sensibilidades sobre a loucura em textos literários do
início do século XX no Brasil deparei com textos de Lima Barreto que se
tornaram fonte privilegiada para esta discussão1.
Lima Barreto dispensa apresentações. Ou ainda, seu nome, ao ser
pronunciado, dispensa que se fale nele como um dos maiores escritores
brasileiros do século que acaba de findar. Mas não era e não foi assim na
época em que viveu. Lima Barreto lutou muito, em vida, para colocar
seus escritos no meio literário que era aceito «oficialmente» pelos literatos
do momento. Poucas vezes conseguiu uma interlocução à altura de suas
novas ideias e modo de escrever; mas seus amigos -poucos, é verdade-
foram sempre fiéis e tentaram abrir-lhe portas.
Escrever fez Lima Barreto sentir-se humano. Neste ato, ele colocou
toda sua criatividade, não importando se tenha morrido louco, bêbado,
ou marginalizado. No sentido revolucionário, ele foi um produto
histórico e social de sua época. Mesmo tendo sofrido discriminações
várias, ele soube, em sua literatura, compor uma obra mestra sobre a
sociedade em que vivia, suas mazelas e alegrias. Mesmo sentindo-se
inferiorizado no meio social e cultural que o circundava, ele cumpriu o
esforço de ultrapassar tudo isto em nome da literatura. Esta, sua amante
mais frequente, ao mesmo tempo que deu a ele o que pediu, também o
Mas, a outra impressão que se tem, ao 1er sua obra, é que todos estes
fatos foram, além de marcantes, matéria-prima para sua literatura de
ficção.
Esta, enquanto Lima ainda vivia, foi duramente criticada por ser uma
«literatura autobiográfica», onde, em cada um de seus romances, seus
personagens representavam verdadeiras partes de sua personalidade, ou
ainda, a imagem de seu pai -em Recordações do escrivão Isaías Caminha,
Triste fim de Policarpo Quaresma, só para citar os mais conhecidos e
polémicos na época. Seriam, também, aos olhos dos críticos, «romances-
catarses», onde o lado pessoal de sua crítica a vários setores da sociedade
aparecia em detrimento da «arte de criar». Para alguns destes, a
criatividade aconteceria, somente, no âmbito da ficção, jamais esta
podendo ter uma âncora na realidade, seja uma realidade pessoal, seja a
realidade coletiva, de uma nação, por exemplo.
Assim escreveu Eugênio Gomes, no prefácio da edição de o Cemitério
dos Vivos:
Em seus romances à clef, como Recordações do Escrivão Isaías Caminha,
no qual vinga asperamente as suas humilhações em contacto com os
meios jornalísticos e, em Numa e Ninfa, destinado a fixar a comédia
política numa das épocas mais curiosas da vida republicana em nosso
país, o humour satírico de Lima Barreto deriva para o lado pessoal, com o
sacrificio da criação literária. 6
O que realmente, então, teriam dito seus críticos sobre seu «romance-
memória», Cemitério dos Vivos, escrito exatamente com o intuito revelado
de mostrar a vida dentro dos hospícios, por onde ele passou?
Neste momento, interessa-nos a ligação de Lima com a loucura e
alguns de seus escritos onde ela aparece mais efetivamente. Na verdade,
suas reflexões sobre esta temática apontam para uma profundidade ímpar
em sua obra, onde os momentos de ficção fluem em sensibilidades...
... mas afinal, a maior, senão a única ventura, consiste na liberdade; o
Hospício é uma prisão como outra qualquer, com grades e guardas
severos que mal nos permitem chegar à janela. Para mim, porém, tem
sido útil a estadia nos domínios do senhor Juliano Moreira. Tenho
coligido observações interessantíssimas para escrever um livro sobre a
vida interna dos hospitais de loucos. Leia o Cemitério dos Vivos. Nestas
páginas contarei, com fartura de pormenores, as cenas mais jocosas e as
mais dolorosas que se passam dentro destas paredes inexpugnáveis.
Tenho visto cousas interessantíssimas.?
também era «quase negro» como ele? Há uma passagem em que ele conta que o diretor
do hospício [Juliano Moreira] foi ver uma algazarra que acontecia, por conta de um
paciente ter subido no telhado. LB fez um comentário a este médico sobre tal doente e «o
diretor nada disse; mas foi preciso ele vencer, com sua doçura, a sua paciência e a
simplicidade de sua alma, a indelicadeza desse seu hospitalizado. Hei de falar mais
longamente sobre ele, que é uma interessante figura que conheci.» p. 85.
8 Os manuscritos do Diario de Hospicio encontram-se na Coleção Lima Barreto, na Seção
de Manuscritos da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Os apontamentos do diário
foram escritos em folhas de papel de formato ofício, de baixa qualidade, a lápis, papel
provavelmente obtido no hospício. Conforme Assis Barbosa, estes escritos apresentam as
características das anotações de Lima Barreto vazadas em primeira redação, isto é, rapidez,
de onde dificuldades para a leitura, omissão quase geral de pontuação, letras e palavras
apenas esboçadas, quando não comidas, sobretudo fins de palavras. Daí o trabalho
imenso do organizador para dar uma forma «editável» deste material. Ver nota 2 (e ss.) à
página 272 da edição ora pesquisada.
9 «O primeiro capítulo doCemitério dos Vivos foi publicado ainda em vida do autor na
Revista Souza Cruz (número 49, janeiro de 1921), com o título As origens. Mas Lima
Barreto não pôde concluir o romance, que seria talvez a sua obra prima, cujos fragmentos
incorporamos ao Diário de Hospício, série de apontamentos tomados por ocasião da
segunda estada do escritor no sombrio casarão da Praia Vermelha, ou seja, de 25 de
dezembro de 1919 a 2 de fevereiro de 1920. Os dois manuscritos se completam; pode-se
mesmo dizer que se confundem». Excerto da nota introdutória («Nota prévia») do
organizador da obra, Francisco de Assis Barbosa, na edição de 1956 de Cemitério dos
vivos, p. 25.
Sensibilidade da exclusão 77
1° Esta autora atribui, ainda, um outro valor a estes registros de memória como
documentos históricos: aquele decorrente de uma nova concepção de verdade, própria às
sociedades individualistas. «Sociedades que separaram o espaço público do privado, a vida
laica da religiosa, mas que, em todos os casos, afirmaram o triunfo do indivíduo como um
sujeito voltado para si, para sua razão e seus sentimentos. Uma sociedade em cuja cultura
importa aos indivíduos sobreviver na memória dos outros, pois a vida individual tem
valor e autonomia em relação ao todo. É dos indivíduos que nasce a organização social e
não o inverso» (Gomes, 2004, p. 13). Paradoxalmente a esta importante análise, Lima
Barreto escreveu este diário em condições de quase nenhuma privacidade, como ele
mesmo reclama em quase todo o texto, fazendo de seus escritos o próprio espaço desta
sua privacidade perdida. É interessante ver como, dentro desta mesma sociedade, existiam
«nichos» onde o indivíduo pouco valia, não era dotado de autonomia, tampouco de valor.
Aqui, fala-se de hospício, este espaço público de exclusão, e de onde nasceram —e este é o
paradoxo- as narrativas sensíveis, ou escritos de si, com as quais se está trabalhando.
Sensibilidade da exclusão 79
Lima Barreto sabia que estava doente. Mas enquanto havia vida nele,
havia substrato para sua literatura, para sua criatividade.
Porém, ele confessou seus medos, medo tanto de estar
enlouquecendo, como o aquele da Medicina, que poderia ter feito com
ele o que quisesse; e, com isto, ele denunciava, também, o exercício desta
profissão, quando realizada por profissionais que nem sempre estavam à
altura de sua responsabilidade. Assim, no romance, ele escreveu sobre um
jovem médico que o examinou, na realidade de sua internação:
Eu passei, desde minha entrada no pavilhão, nas mãos de cinco médicos.
(...) Sentia, não sei porque, nesse rapaz, um grande amor à novidade,
uma pressa e açodamento, muito pouco científicos, em experimentar o
«remédio novo». Percebia-se por seu ar abstrato, distraído, que era
84 C.M.H.LB. Caravelle