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REVISTA DE HISTÓRIA

Bilros História(s), Sociedade(s) e Cultura(s)

JORGE LUIS BORGES, O FAZEDOR DE HISTÓRIAS:


AS RELAÇÕES ENTRE HISTÓRIA, MEMÓRIA E
ESQUECIMENTO ATRAVÉS DA NARRATIVA LITERÁRIA

Sônia Meneses

Docente da Universidade Regional do Cariri-URCA, doutora em história pela Universidade


Federal Fluminense-UFF. Pesquisa das relações entre história e mídia, tempo presente,
internet e história, história e literatura.

119 Bilros, Fortaleza, v. 2, n. 2, p. 119-133, jan.-jun. 2014.


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JORGE LUIS BORGES, O FAZEDOR DE HISTÓRIAS: AS RELAÇÕES


ENTRE HISTÓRIA, MEMÓRIA E ESQUECIMENTO ATRAVÉS DA
NARRATIVA LITERÁRIA

JORGE LUIS BORGES, THE MAKER OF STORIES: THE RELATIONS


BETWEEN HISTORY, MEMORY AND FORGETTING THROUGH
THE LITERARY NARRATIVE

Sônia Meneses

RESUMO ABSTRACT:

Este artigo analisa aspectos da obra de This paper examines aspects of the work of
Jorge Luis Borges, procurando investigar Jorge Luis Borges, seeking to investigate
como o autor aborda temáticas how the author tackles themes traditionally
tradicionalmente associada ao fazer associated with historiographical do as
historiográficos como: tempo, memória e time, memory and forgetting, in order to
esquecimento, de forma a compreender understand how literature can work
como a literatura pode trabalhar conceitos concepts and construct meaning from such
e construir significados a partir de tais categories.
categorias.
Palavras-chaves: Literatura, Jorge Luiz
Keywords: literature, Jorge Luis Borges,
Borges, Memória, Esquecimento
forgetting, memory

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Fatos que povoam o espaço e que chegam ao fim quando alguém


morre podem maravilhar-nos, mas uma coisa, ou um número infinito
de coisas, morre em cada agonia, a não ser que exista uma memória
do universo, como conjecturaram os teósofos. No tempo houve um
dia que apagou os últimos olhos que viram Cristo; a batalha de Junín e
o amor de Helena morreram com a morte de um homem. O que
morrerá comigo quando eu morrer, que forma patética ou perecível o
mundo perderá? (Borges, Jorge Luis, A testemunha, 1999.)

Imagine-se colocar a questão sobre o que morrerá consigo no terminar dos seus
dias. Que lembranças do outro o seu silenciamento levará? A citação acima, extraída do conto
“a testemunha” do escritor argentino Jorge Luis Borges, coloca-nos diante da alteridade do
ato de lembrar. Faz-nos compreender que a memória sempre nos situa numa relação com o
outro e o findar de cada vida trás à tona a própria dimensão do esquecimento. Todavia o
extrato evoca ainda outras histórias implícitas: a narrativa fundadora do cristianismo e a morte
de seu principal ícone, a batalha de Junín um dos eventos que precipitaram a independência
do Peru e por fim, a história de Helena, filha de Zeus, mulher de Menelau, cuja beleza
preencheu a imaginação de heróis e por quem tantos morreram disputando seu amor. Três
narrativas, totalmente distintas e distantes: a primeira religiosa; a segunda histórica e por fim,
a terceira, mitológica.

Embora essas histórias partam de lugares diferentes, no texto de Borges, são


colocadas em um mesmo horizonte de significação e relevância. No pequeno trecho o autor
quebra, surpreendentemente, com os elementos de hierarquização entre verdade e ficção,
imaginação e realidade. Ainda que projete a dúvida quanto à existência de uma memória
universal que guardaria todos os acontecimentos humanos, que a modernidade nomeou de
história, é sobre o indivíduo que recai a responsabilidade do ato de lembrar. No conto de
Borges cada evento humano, de grandes ou pequenas proporções, histórico ou vulgar, é visto
pelos olhos de alguém que pode testemunhar.

Dessa forma, suas histórias não precisam obedecer a uma correspondência direta
com os eventos do mundo, pois, o autor simplesmente as considera como histórias contadas,
vivas. Formuladoras de memórias que pulsam no imaginário de vários grupos humanos. São
importantes, pela capacidade de agenciamento que produzem, como, pelo poder de
sensibilização que realizam, sendo assim, o lembrar se ampara ainda em duas outras ações, o

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ouvir e o contar, por isso, o autor parece demonstrar certa melancolia diante da morte das
lembranças que estarão, para sempre, perdidas no tempo pela morte de seu narrador.

Jorge Luis Borges foi um contador de histórias e também um grande ouvinte. Sob
a influência dos avôs acostumou-se a imaginar o mundo com as histórias lidas e narradas por
eles, fato que o estimulou precocemente ao acesso às literaturas inglesa, americana, francesa,
assim como a história da Argentina, grande referência em seus escritos. Desde cedo,
familiarizou-se ao universo literário na casa dos pais, em Palermo nos subúrbios de Buenos
Aires; lugar no qual se reuniam nomes da intelectualidade argentina de princípios do século
XX. Espaço de fabulação de história, de memórias e esquecimentos e que, por toda vida,
acompanharam Borges em sua peregrinação pelo mundo. Acometido por um processo
degenerativo que mais tarde o faria perder completamente a visão, nas últimas décadas de sua
vida, foi através da voz de sua mãe, lendo-lhe livros e relatando-lhe o dia-a-dia, que
enxergava o mundo quando a cegueira tomou conta de seus olhos.

Tanto pelas influências que teve na Argentina, como por seu vagar pelo mundo
conhecendo outras línguas, costumes e memórias, Borges produziu uma literatura de fronteira
no dizer de Beatriz Sarlo (2008), uma literatura nas orillas, provocativa e inovadora, para a
autora:

Borges inscreve uma literatura no limite, reconhecendo ali uma forma cifrada da
Argentina. Superfície indecisa entre a planície e as primeiras casas da cidade, as
orrillas possuem as qualidades de um lugar imaginário, cuja topologia urbano-
criolla desenha a clássica rua “sem calçada” (…) Borges escreve um mito para uma
Buenos Aires que, a seu ver, precisava de um. A partir de uma memória que quase
não é a sua, opõe a cidade moderna essa cidade estética sem centro, construída
inteiramemente sobre a matriz da margem. (SARLO, 2008, p.49-50).

Nela, inúmeros elementos literários se cruzam marcando uma produção densa e


assinalada por auto-referências. Borges narrava o mundo em seus textos na mesma medida em
que parecia narrar-se dentro deles pois “o narrador que lembra de modo exaustivo seria
incapaz de passar por alto o importante, nem força-lo, pois o que narra formou um desvão
pessoal da sua vida, e são fatos que ele viu com os próprio olhos” (SARLO, 2007, 52).

Por isso não é surpresa que o tema da memória e do esquecimento sejam aspectos
tão recorrentes em sua obra, posto que, o autor fazia com que seus questionamentos
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metafísicos, filosóficos e existenciais se tornassem problemas em sua escrita aos quais


juntava-se ainda uma renitente preocupação com a história. Esta última, presença
fantasmagórica que queria dizer ao leitor que ali também, onde a imaginação parecia explicar
o mundo, o real pedia licença para entrar obedecendo às astúcias de sua fabulação, dessa
forma, para Borges o real vale, sobretudo, por sua dimensão desconcertantemente fantástica.

Consequentemente, seu realismo fantástico nos faz pensar não apenas nos
problemas que o autor coloca à própria literatura e sua relação com o espaço de seu país no
século XX e suas experiências pessoais marcadas pela perda da visão, a timidez e a velhice,
mas estimula-nos a ver em sua literatura um elemento problematizador para a escrita da
história na medida em que o autor é capaz de operar com conceitos fundamentais para o
campo historiográfico, tal é a força de suas provocações ao tratar dos conflitos da memória e
do esquecimento sempre enredados em suas crônica e poemas. Fala de literatura, mas fala
também para a história, sugere-nos que compreender os labirintos do tempo é também
imaginá-lo a partir da dimensão criativa do próprio ato de narrar.

Por conseguinte, apresenta-se aqui, primeiramente, um duplo desafio: pensar a


literatura como problema para a história, como produção formuladora de sentidos tanto sobre
os passado, como sobre conceitos para o campo da história, nesse caso a memória e o
esquecimento e, por outro lado, refletir como esses conceitos podem ser analisados tomando
como ponto de partida uma narrativa tradicionalmente definida como ficcional. Isto,
necessariamente, leva-nos a uma terceira questão: pensar a história, ciência que por
excelência se define como fabuladora de narrativas reais a partir da literatura, para qual
narrar, prescinde de uma ligação direta com os eventos “reais” do mundo. Dessa forma,
colocamo-nos diante de um intercruzamento de duas fronteiras, tal como se fossem rios de
tonalidade diferente que se tornam navegáveis pelo ato de tecer histórias.

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1. Pensar a memória e o esquecimento nas fronteiras da literatura e história

O tempo ensinou-me algumas astúcias: (…) simular pequenas


incertezas, já que, se a realidade é precisa, a memória não o é; narrar
os fatos (…) como se não os entendesse totalmente; lembrar que as
normas anteriores não são obrigações e que o tempo se encarregará de
aboli-las. (…) A poesia não é menos misteriosa que os outros
elementos do orbe. Tal ou qual verso afortunado não pode envaidecer-
nos, porque é dom do acaso ou do espírito; só os erros são nossos.
Espero que o leitor descubra em minhas páginas algo que possa
merecer sua memória; neste mundo a beleza é comum (BORGES,
1969).

Se não fosse Borges a escrever o prólogo do seu quinto livro O Elogio da Sombra
de 1969, desavisados, talvez pudéssemos ler aí as confissões de um historiador refletindo
sobre as manifestas limitações de sua atividade historiadora, tal é a similitude daquilo que nos
aproxima das inquietações do escritor, senão vejamos: o lugar da obra no tempo e as
mudanças na conformação de suas regras, os paradoxos narrativos de cada evento, as escolhas
do autor para construir seus objetos e, por conseguinte, a dimensão de arbitrariedade nessa
seleção ou em sua construção narrativa.

Borges fala de sua poesia, mas nos faz pensar sobre o trabalho do historiador e
problemas muito similares com os quais nos deparamos na operação historiográfica. Ao final,
manifesta um desejo: “espero que o leitor descubra em minhas páginas algo que possa
merecer sua memória”, com ele, o autor claramente reconhece sua própria escrita como lugar
de memória, portanto, faz do texto literário, artefato de recordação. Uma escrita que tanto
pode estimular a lembrança a partir dos elementos que evoca como pode ser espaço de
reflexão sobre ela como sugere no poema João 1, 14:

Conheci a memória,
essa moeda que não é nunca a mesma.
Conheci a esperança e o temor,
esses dois rostos do incerto futuro.
Conheci a vigília, o sono, os sonhos,
a ignorância, a carne,
os torpes labirintos da razão,
a amizade dos homens,
a misteriosa devoção dos cães.

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O autor vai além, ao fazer da própria história e do tempo seus principais


problemas narrativos, embora isso não lhe surja como engajamento literário, ou profissão de
fé, manifesta-se como objeto constante de suas preocupações. Por não se satisfazer com a
realidade referencial, Borges cria outra, ou outras, nas quais o tempo é marcado por rupturas,
permanências, deslocamentos entre a realidade referencial e o mundo imaginado em seu
realismo fantástico. Em seus escritos, a insegurança do tempo que passa assusta da mesma
forma que fascina. Para marcar a temática temporal como aspecto inquietante de suas
reflexões, ao apresentar a coletânea de prosas e poemas, no livro “O Outro, O Mesmo”
(1999), chama a atenção para o fato:

Dentre os muitos livros de versos que minha resignação, meu descuido e às vezes
minha paixão foram rabiscando, O Outro, O Mesmo é o que prefiro. Aí estão o
"Outro poema dos dons", o "Poema conjectural", "Uma rosa e Milton" e "Junín",
que, se a parcialidade não me engana, não me desonram. Aí estão também meus
hábitos: Buenos Aires, o culto aos ancestrais, a germanística, a contradição do
tempo que passa e da identidade que perdura, meu estupor de que o tempo, nossa
substância, possa ser compartilhado. (1999, p.06).

Borges reconhece sua relação pessoal com sua obra, ali estão seus “hábitos”. Ao
marcar o próprio sujeito como substancia temporal ancora a possibilidade de compreensão do
passado numa relação partilhada através da literatura que procura tecer o lugar do passado no
presente, e, consequentemente no futuro. Dessa maneira, talvez possamos ver ainda um claro
engajamento borgeano com o passado, dimensão simbólica objetivada através de sua
narrativa. Uma literatura que escreve o passado reinventado a partir de questões
contemporâneas.

Suas tessituras não seguem o caminho previsível e suas intrigas sempre parecem
ultrapassar o espaço-temporal referencial sem, no entanto, se contrapor totalmente a ele,
labirintos que se estendem intercruzando realismo fantástico e história. O leitor de Borges é
sempre convidado a entrar em uma casa de espelhos que deformam, criam e escondem
imagens. Espelhos que por sinal, são a metáfora recorrente em sua obra. Nela corremos o
risco de nos perdermos como quem caminha entre simulacros inquietantes de personagens,
eventos e sensações.

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Entre o real e o fantástico, entre o nacional e o cosmopolitismo, Borges conta


histórias como quem constrói os caminhos, muitas vezes estranhos e, aparentemente
indecifráveis desse labirinto de espelhos, os quais, o próprio Borges dizia temer, como no
conto “Os Espelhos Velados” no livro O Fazedor:

Quando menino, conheci esse horror a uma duplicação ou multiplicação espectral da


realidade, mas diante dos grandes espelhos. Seu infalível e contínuo funcionamento,
sua perseguição de meus atos, sua pantomima cósmica eram então sobrenaturais,
desde que anoitecia. Um de meus instantes rogos a Deus e a meu anjo da guarda era
o de não sonhar com espelhos. Sei que os vigiava com inquietude. Algumas vezes
temi que começassem a divergir da realidade; outras, ver neles meu rosto
desfigurado por adversidades estranhas. (1999a, p.15).

Como se ele estivesse em diálogo com seus personagens, habitando também o


mundo metafórico de sua literatura, o espelho para Borges configura-se na confrontação com
uma realidade fantástica que pode ser lida como sua rejeição a um modelo de sociedade e
urbanidade que se construía em Buenos, temor que pode ainda ser explicado também pela
dificuldade do auto-reconhecimento dentro dos valores tradicionais que criavam o ideal da
argentinidade.

Beatriz Sarlo ressalta que Borges produz uma literatura sempre em conflito, de
caráter duplo; nela o real parece encontrar lugar nas fronteiras de uma tradição portenlha e
uma literatura universal pois, como diz a autora, “de frente para o passado criolo, Borges se
pergunta como evitar a força do local que somente produz uma literatura regionalista e
extremamente particularista, sem renunciar à densidade cultural que vem do passado e é parte
de sua própria história?” (apud Miotto, 2010, p. 14).

Equilibrando-se nessa linha tênue entre a nostalgia do que passou e a negação de


um presente cujas afetações nacionalistas desprezava e para a qual o peronismo era a maior
representação, o autor encontra no mundo configurado de sua obra, o passado que idealizava
em suas memórias ao qual acrescenta o interesse de construir um outro olhar sobre a
argentinidade, que deveria ser concebida por valores mais cosmopolitas que locais, já que
para ele, segundo, Rodriguez-Monegal, “o nacionalismo é somente um conceito romântico,
anacrônico ou uma experiência de sangue oriunda dos militares de sua família” (MIOTTO,
2010, p.15).
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Assim, o mundo tecido por Borges era o lugar onde a morte encontra a vida e a
história podia descobrir a imaginação. Talvez essa fosse a maneira encontrada por ele para
dialogar com seus futuros leitores, mesmo quando ele próprio tivesse silenciado, situação que
pode ser experimentada logo na primeira crônica do livro O Fazedor, dedicado a Leopoldo
Lugones:

Se não me engano, você não me queria mal, Lugones, e teria gostado de gostar de
algum trabalho meu. Isso nunca ocorreu, mas desta vez você vira as páginas e lê
com aprovação um ou outro verso, talvez por reconhecer nele sua própria voz, talvez
porque a prática deficiente lhe importe menos que a sã teoria. (1999a, p.08).

O encontro que ocorre no ano de 1960 e é o diálogo de Borges com outro escritor,
também argentino, falecido em 1938. Personagem complexa, poeta, expoente do modernismo
argentino, Lugones foi também um político controverso que partiu da esquerda radical para
torna-se aliado das forças mais conservadoras do seu país o que inclusive o aproximou do
fascismo. Se Leopoldo Lugones não fosse real, talvez tivesse dado um bom personagem saído
da imaginação borgeana.

Lugones influenciou sobremaneira seus escritos iniciais, principalmente, por seu


engajamento à gauchesca, causa exaltada nas primeiras décadas do Século XX para o que
seria a construção de um das principais figuras da identidade argentina moderna: o gaucho,
configuração do herói anônimo e nômade, que representaria a “essência” da argentinidade, o
que o contrapunha à imagem do caudilho, personagem truculento do poder local que
representava as oligarquias e o estado. Borges continua seu diálogo improvável:

“Minha vaidade e minha nostalgia armaram uma cena impossível. Pode ser (digo
para mim mesmo), mas amanhã eu também estarei morto e nossos tempos se
confundirão e a cronologia se perderá num orbe de símbolos e de algum modo será
justo afirmar que eu lhe trouxe este livro e que você o aceitou.” (Idem)

O autor nos introduz em um jogo narrativo no qual constrói um tempo intervalar;


um lugar que congrega a dispersão de dois mundos através da literatura, nesse caso, a crônica
instaura um presente-passado ficcional que permite que a conversa entre o autor e seu

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personagem já falecido se realize. Por outro lado estabelece também um diálogo com nosso
presente-presente na medida em que somos também confrontados com o oferecimento
provocativo de Borges como se nossos tempos também se tivessem misturado e “a cronologia
tivesse se perdido nesse orbe de símbolos”.

É no cruzamento desses dois tempos que nossa imaginação criadora é capaz de


formular novas lógicas de identificação e assimilação pelo efeito de verossimilhança que o
texto produz. De alguma maneira o compreendemos porque o círculo hermenêutico da obra
sempre se renova, para usar a expressão de Paul Ricoeur (1997), numa ação em que se
misturam-se elementos históricos e literários concedendo sentido à obra.

A artimanha de se colocar como personagem em seu próprio texto serve como


artifício para que ele mesmo não leve, no findar de seus dias, as lembranças e histórias que
não queria ver esquecidas, mesmo aquelas que povoaram sua imaginação. Dessa maneira,
Borges não somente realiza um jogo ficcional de uma cena improvável, ele se torna também
história contada. Pelo ato da escrita de Jorge, Lugones vive para nós pelo ato da leitura como
alguém que continua contando, como personagem de seu próprio diálogo, Borges também
quer se tornar lembrança. Intenção que fica clara no prólogo do livro Borges Oral (1999-b),
coletânea de aulas dadas por Borges na universidade de Belgramo, de 1979, quatro anos antes
de sua morte:

Graças ao auditório, que me prestigiou com sua indulgente hospitalidade, minhas


aulas alcançaram um êxito que eu não esperava e que certamente eu não merecia. A
exemplo da leitura, a aula é uma obra em colaboração, e aqueles que a ouvem não
são menos importantes que aquele que a profere. Neste livro está minha parte
pessoal daquelas sessões. Espero que o leitor as enriqueça, como as enriqueceram os
ouvintes. (1999-b, p. 05).

Aqui o tempo, a lembrança, a morte e a história mantêm sua dimensão de


experiência humana, mas extrapolam o universo de onde elas partem e cruzam a fronteira de
nosso próprio tempo. Dessa maneira, fatos imaginários se misturam a eventos reais não em
uma oposição binária que obrigaria uma escolha entre verdade e ficção, mas são assim
dispostos para fazer pensar o real a partir de outras conexões.

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Cruzamento que somente se torna possível pela capacidade criadora da narrativa


que, partindo de uma compressão do mundo, das experiências temporais no qual concorrem
vários signos e símbolos, ampara sua contextura; na ação, na densidade complexa da vivência
humana em seus aspectos e riqueza. É o mundo no qual o autor busca referências para sua
obra, sem ele, a tessitura de sua intriga dificilmente poderia se tornar um todo coeso e
inteligível.Para Walter Benjamim, compreendida dessa forma, a narrativa assume uma função
utilitária, na medida em que, “essa utilidade pode consistir seja num ensinamento moral, seja
numa sugestão prática, seja num provérbio ou numa norma de vida” (BENJAMIM, 1996,
200).

Universo simbólico estruturado em uma rede de relações e inter-relações que


definem a própria postura diante da realidade. Realidade que em si não pode ser apreendida a
não ser através dessa teia de construções, o que se ressalta portanto, é a capacidade da obra
literária de se constituir como lugar de lembrança e por conseguinte, cenário da dialética entre
memória e esquecimento.

O caráter de mediação da narrativa não se manifesta somente na organização de


um mundo próprio da obra, ela efetiva também uma, ou várias temporalidades. Torna o tempo
mais do que um conceito e o faz existir como categoria compreensível a partir do ato
narrativo. Sendo assim, as referências temporais são mobilizadas de maneira a contribuir para
ordenar o emaranhado de nossas percepções, atualizando-as ao mesmo tempo em que as
insere em uma ordem reconhecível de significados. Vejamos como o autor nos apresenta essa
relação no poema Heráclito, do livro Elogio à Sombra:

O segundo crepúsculo.
A noite que mergulha no sono.
A purificação e o esquecimento.
O primeiro crepúsculo.
A manhã que foi a aurora.
O dia que foi a manhã.
O dia numeroso que será a tarde desgastada.
O segundo crepúsculo.
Esse outro hábito do tempo, a noite.
A purificação e o esquecimento.
O primeiro crepúsculo...
A aurora sigilosa e na aurora
a inquietude do grego.
Que trama é esta

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do será, do é e do foi?
Que rio é este
pelo qual flui o Ganges?
Que rio é este cuja fonte é inconcebível?
Que rio é este
que arrasta mitologias e espadas?
É inútil que durma.
Corre no sonho, no deserto, num porão.
O rio me arrebata e sou esse rio.
De matéria perecível fui feito, de misterioso tempo.
Talvez o manancial esteja em mim.
Talvez de minha sombra,
fatais e ilusórios, surjam os dias.

Heráclito de Borges nos joga no torvelinho do rio que é o próprio tempo do qual
não se pode escapar já que ele “corre no sonho, no deserto, num porão”. Águas que estão
sempre em movimento e que engendram a trama e que congregam passado, presente e futuro
e na qual são arrastadas “mitologias e espadas”. Projetando a experiência do sujeito que vive
os efeitos de suas correntezas ao ser arrebatado pelo tempo em sua tripla dimensão, sujeito
que é também parte dele, “de matéria perecível fui feito”, nos diz o autor. Por isso nos avisa:
“eu sou esse rio” e é através de seus cursos que nos enlaçamos ao passado e ao futuro,
descortinam-se imagens de nossa infância e projeta-se nele nossa velhice, o segundo
crepúsculo que necessariamente encontrará a todos.

Mas o rio do qual Borges fala, também poderia ser, outro: Lethe, o mitológico
grego que trás a benção purificadora do esquecimento, ressaltando a necessidade de também
nos ser dada a possibilidade do esquecer. Dessa forma, a imersão no rio de Borges, é um
mergulho de um homem no tempo, não por acaso, tal conclusão nos faz lembrar outro autor
que dedicou sua vida a pensar a história e o tempo: antes de morrer, Marc Bloch cunhou uma
de sua expressão mais conhecidas para se referir à história: ciência dos homens no tempo.

Para finalizar, realizo um último exercício de reflexão com o conto Diálogo de


Mortos, no qual Borges coloca lado a lado dois expressivos personagens da história argentina:

(…) – Que aflição ver um guerreiro tão notável derrubado pelas armas da perfídia! –
disse em tom rotundo. – Mas também que íntima satisfação ter ordenado que os
vitimários purgassem seus crimes no patíbulo, na praça da Vitória!
(…) Devo a você esta dádiva de uma morte bizarra, que não soube apreciar naquela
hora, mas que as gerações seguintes não quiseram esquecer.

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Rosas, que retomara o prumo, olhou-o com desdém. – Você é um romântico –


sentenciou. – O favor da posteridade não vale muito mais do que o contemporâneo,
que não vale nada e que se consegue com algumas divisas.
(…) Pode ser – disse Quiroga –, mas eu vivi e morri e até hoje não sei o que é o
medo. E agora quero que me apaguem, que me dêem outro rosto e outro destino,
porque a história se cansa dos violentos. Não sei quem será o outro, o que farão
comigo, mas sei que não terá medo.
– A mim me basta ser o que sou – disse Rosas – e não quero ser outro.
– Também as pedras querem ser pedras para sempre – disse Quiroga – e durante
séculos o são, até que se desfazem em pó. Mas Rosas não lhe deu atenção e disse,
como se pensasse em voz alta:
– Vai ver não estou afeito a estar morto, mas estes lugares e esta discussão me
parecem um sonho, e não um sonho sonhado por mim, e sim por outro, que ainda
está por nascer.

A cena inusitada é o encontro entre Juan Manuel Rosas e Facundo Quiroga.


Nomes que povoam tantos os livros da história da argentina como o universo popular daquele
país. Rosas, morto na Inglaterra, em uma pequena confortável estância no interior daquele
país em 1877, conhecido como o grande ditador, ligado ao poder conservador e aos grandes
proprietários locais, impôs-se com governante de plenos poderes na lutas de unificação do
território portenho, embora se colocasse como defensor da federação. Facundo Quiroga,
falecido em 1835, assassinado em lugar ermo no interior da argentina, tornou-se a imagem do
combatente, nômade, solitário e valente. Caudilho violento que atemorizava e fascinava
ajudando a povoar o imaginário das histórias e crônicas populares auxiliou Rosas a dominar o
interior contra os unitários. Para alguns, Quiroga foi morto a mando de Rosas que temia o
aumento de seu poder entre soldados e líderes locais tornando-se empecilho para sua vitória.

Todos os elementos que acabei de mencionar estão dispostos nesse diálogo. Pelas
falas das personagens são evidentes os conflitos, dissensos e dúvidas as quais a própria
história nacional argentina se coloca ao realizar a narrativa de construção de seu território
nacional. Estão ai, a figura imponente de Rosas a chegar no inferno (ou no céu) a deferência
subserviente dos populares que o guardavam: e, lá do fundo, alguém gritou um palavrão, mas
um terror antigo os detinha e não se atreveram a mais nada. A presença assustadora e mítica
de Facundo, “com dez ou doze ferimentos mortais (…) como lista na pele de tigre” é o único a
confrontá-lo.

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Contudo se avançarmos um pouco mais em nossa reflexão, podemos notar que,


embora construa uma cena que remete a elementos de uma história nacional o próprio Borges
a desdenha colocando em xeque a fragilidade de sua elaboração, posto que, “o favor da
posteridade não vale muito mais do que o contemporâneo, que não vale nada e que se
consegue com algumas divisas”. Por isso, seu Quiroga, pede pra ser outro, queria se despir da
vestimenta do herói truculento que o cobria e quem sabe construir para si outra memória.

Todavia, não é objetivo de Borges contar a versão daquilo que realmente ocorreu
a Rosas e Quiroga, pois, flagra-os justamente depois da morte, assim, o autor cria uma outra
possibilidade de encontro, no espaço possível que a ficção permite e, consequentemente,
submete seus personagens a um encontro engendrado em uma outra ordem de sentido que
somente é possível no mundo que sua obra. Por isso parte da negação, do não possível, do não
plausível “dois mortos que se encontrarem” para ressaltar a tensão presente na própria
narrativa histórica do país.

A partir da força de inventividade de sua literatura, Borges cria formas de


representação histórica que também servem à tradução do mundo problematizando-o por
outros caminhos a partir do ato literário. Com argumenta Beatriz Sarlo (2008), se a
originalidade de Borges reside na sua resistência de ser encontrado, ali onde o buscamos,
talvez esse possa ser também indício para pensarmos a relação entre história e literatura.

Ao pensarmos nessas duas formas narrativas: literatura e história, pode se


compreender como suas feituras dialogam em várias categorias de percepção do real num
jogo dinâmico e tumultuoso de signos e referenciais. Nelas um agente é fundamental: a
tessitura da intriga. Para além das formas sob as quais diferentes histórias organizam é no ato
de narrar que seus conteúdos adquirem sentido e explicação. Isso não significa dizer que a
textualidade se sobrepõe à vivência ou às práticas humanas, mas sim, que o próprio ato de
narrar é uma ação puramente humana. É pela necessidade de não silenciarmos, para retomar o
início do texto, e de compreendermos nossas ações no tempo que contamos histórias, e
talvez, exatamente, por isso que Borges ofereceu as suas.

Os textos borgeanos nos sugerem como a memória e esquecimento podem ser


tomados como objetos literários de grande força e significação. Mas além disso, pudemos
perceber que o próprio arranjo de sentidos estruturados em sua obra acaba por servir como

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REVISTA DE HISTÓRIA

Bilros História(s), Sociedade(s) e Cultura(s)

poderoso agente de efetivação de lembranças que extrapolam o próprio texto. Ao jogar com
elementos do real misturado-os a personagens e eventos imaginados, formula interpretações
muito particulares sobre a própria história argentina e seus atores, o que faz desta, “um
encontro de caminhos. (…) a qual não se instala por inteiro em nenhum lugar” (SARLO,
2008, 17). Uma obra marcada pela tensão tanto do mundo de onde parte, como daquele que
cria através da literatura.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS

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Brasilense, 1996.
BORGES, Jorge Luis. Borges Oral. Obras Completas. São Paulo: Globo, 1999.
________. Elogio da Sombra. Obras Completas. São Paulo: Globo, 1999.
________. Fervor de Buenos Aires. Obras Completas. São Paulo: Globo, 1999.
________. O Fazedor. Obras Completas. São Paulo: Globo, 1999.
________. O Outro, o Mesmo. Obras Completas. São Paulo: Globo, 1999.
MIOTTO, Franciele Cristina. El Sur – a fundação de um espaço mítico em Jorge Luis Borges.
2010. 110 f. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-Graduação em Letras, Cultura e
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PRATT, Mary Louise. Literatura e História – perspectivas e convergências. Bauru: Editora
da Universidade do Sagrado Coração, 1999.
ROCCA, Pablo. Uma literatura de fronteiras: Jorge Luis Borges, ficções e debates. O Eixo e a
Roda - Revista de Literatura Brasileira, Belo Horizonte, v. 18, n. 2, p.123-142, 2009.
SARLO, Beatriz. Jorge Luis Borges, um escritor na periferia. São Paulo: Iluminuras, 2008.
SARLO, Beatriz. Tempo Passado – Cultura da memória e guinada subjetiva. São Paulo: Cia
das Letras, 2007.
RICOEUR, Paul. Tempo e Narrativa. Tomos I, II, III, São Paulo: Papirus Editora, 1997.

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Artigo recebido em abril de 2014. Aprovado em maio de 2014.

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