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Sônia Meneses
Sônia Meneses
RESUMO ABSTRACT:
Este artigo analisa aspectos da obra de This paper examines aspects of the work of
Jorge Luis Borges, procurando investigar Jorge Luis Borges, seeking to investigate
como o autor aborda temáticas how the author tackles themes traditionally
tradicionalmente associada ao fazer associated with historiographical do as
historiográficos como: tempo, memória e time, memory and forgetting, in order to
esquecimento, de forma a compreender understand how literature can work
como a literatura pode trabalhar conceitos concepts and construct meaning from such
e construir significados a partir de tais categories.
categorias.
Palavras-chaves: Literatura, Jorge Luiz
Keywords: literature, Jorge Luis Borges,
Borges, Memória, Esquecimento
forgetting, memory
Imagine-se colocar a questão sobre o que morrerá consigo no terminar dos seus
dias. Que lembranças do outro o seu silenciamento levará? A citação acima, extraída do conto
“a testemunha” do escritor argentino Jorge Luis Borges, coloca-nos diante da alteridade do
ato de lembrar. Faz-nos compreender que a memória sempre nos situa numa relação com o
outro e o findar de cada vida trás à tona a própria dimensão do esquecimento. Todavia o
extrato evoca ainda outras histórias implícitas: a narrativa fundadora do cristianismo e a morte
de seu principal ícone, a batalha de Junín um dos eventos que precipitaram a independência
do Peru e por fim, a história de Helena, filha de Zeus, mulher de Menelau, cuja beleza
preencheu a imaginação de heróis e por quem tantos morreram disputando seu amor. Três
narrativas, totalmente distintas e distantes: a primeira religiosa; a segunda histórica e por fim,
a terceira, mitológica.
Dessa forma, suas histórias não precisam obedecer a uma correspondência direta
com os eventos do mundo, pois, o autor simplesmente as considera como histórias contadas,
vivas. Formuladoras de memórias que pulsam no imaginário de vários grupos humanos. São
importantes, pela capacidade de agenciamento que produzem, como, pelo poder de
sensibilização que realizam, sendo assim, o lembrar se ampara ainda em duas outras ações, o
ouvir e o contar, por isso, o autor parece demonstrar certa melancolia diante da morte das
lembranças que estarão, para sempre, perdidas no tempo pela morte de seu narrador.
Jorge Luis Borges foi um contador de histórias e também um grande ouvinte. Sob
a influência dos avôs acostumou-se a imaginar o mundo com as histórias lidas e narradas por
eles, fato que o estimulou precocemente ao acesso às literaturas inglesa, americana, francesa,
assim como a história da Argentina, grande referência em seus escritos. Desde cedo,
familiarizou-se ao universo literário na casa dos pais, em Palermo nos subúrbios de Buenos
Aires; lugar no qual se reuniam nomes da intelectualidade argentina de princípios do século
XX. Espaço de fabulação de história, de memórias e esquecimentos e que, por toda vida,
acompanharam Borges em sua peregrinação pelo mundo. Acometido por um processo
degenerativo que mais tarde o faria perder completamente a visão, nas últimas décadas de sua
vida, foi através da voz de sua mãe, lendo-lhe livros e relatando-lhe o dia-a-dia, que
enxergava o mundo quando a cegueira tomou conta de seus olhos.
Tanto pelas influências que teve na Argentina, como por seu vagar pelo mundo
conhecendo outras línguas, costumes e memórias, Borges produziu uma literatura de fronteira
no dizer de Beatriz Sarlo (2008), uma literatura nas orillas, provocativa e inovadora, para a
autora:
Borges inscreve uma literatura no limite, reconhecendo ali uma forma cifrada da
Argentina. Superfície indecisa entre a planície e as primeiras casas da cidade, as
orrillas possuem as qualidades de um lugar imaginário, cuja topologia urbano-
criolla desenha a clássica rua “sem calçada” (…) Borges escreve um mito para uma
Buenos Aires que, a seu ver, precisava de um. A partir de uma memória que quase
não é a sua, opõe a cidade moderna essa cidade estética sem centro, construída
inteiramemente sobre a matriz da margem. (SARLO, 2008, p.49-50).
Por isso não é surpresa que o tema da memória e do esquecimento sejam aspectos
tão recorrentes em sua obra, posto que, o autor fazia com que seus questionamentos
122 Bilros, Fortaleza, v. 2, n. 2, p. 119-133, jan.-jun. 2014.
Seção Artigos
REVISTA DE HISTÓRIA
Consequentemente, seu realismo fantástico nos faz pensar não apenas nos
problemas que o autor coloca à própria literatura e sua relação com o espaço de seu país no
século XX e suas experiências pessoais marcadas pela perda da visão, a timidez e a velhice,
mas estimula-nos a ver em sua literatura um elemento problematizador para a escrita da
história na medida em que o autor é capaz de operar com conceitos fundamentais para o
campo historiográfico, tal é a força de suas provocações ao tratar dos conflitos da memória e
do esquecimento sempre enredados em suas crônica e poemas. Fala de literatura, mas fala
também para a história, sugere-nos que compreender os labirintos do tempo é também
imaginá-lo a partir da dimensão criativa do próprio ato de narrar.
Se não fosse Borges a escrever o prólogo do seu quinto livro O Elogio da Sombra
de 1969, desavisados, talvez pudéssemos ler aí as confissões de um historiador refletindo
sobre as manifestas limitações de sua atividade historiadora, tal é a similitude daquilo que nos
aproxima das inquietações do escritor, senão vejamos: o lugar da obra no tempo e as
mudanças na conformação de suas regras, os paradoxos narrativos de cada evento, as escolhas
do autor para construir seus objetos e, por conseguinte, a dimensão de arbitrariedade nessa
seleção ou em sua construção narrativa.
Borges fala de sua poesia, mas nos faz pensar sobre o trabalho do historiador e
problemas muito similares com os quais nos deparamos na operação historiográfica. Ao final,
manifesta um desejo: “espero que o leitor descubra em minhas páginas algo que possa
merecer sua memória”, com ele, o autor claramente reconhece sua própria escrita como lugar
de memória, portanto, faz do texto literário, artefato de recordação. Uma escrita que tanto
pode estimular a lembrança a partir dos elementos que evoca como pode ser espaço de
reflexão sobre ela como sugere no poema João 1, 14:
Conheci a memória,
essa moeda que não é nunca a mesma.
Conheci a esperança e o temor,
esses dois rostos do incerto futuro.
Conheci a vigília, o sono, os sonhos,
a ignorância, a carne,
os torpes labirintos da razão,
a amizade dos homens,
a misteriosa devoção dos cães.
Dentre os muitos livros de versos que minha resignação, meu descuido e às vezes
minha paixão foram rabiscando, O Outro, O Mesmo é o que prefiro. Aí estão o
"Outro poema dos dons", o "Poema conjectural", "Uma rosa e Milton" e "Junín",
que, se a parcialidade não me engana, não me desonram. Aí estão também meus
hábitos: Buenos Aires, o culto aos ancestrais, a germanística, a contradição do
tempo que passa e da identidade que perdura, meu estupor de que o tempo, nossa
substância, possa ser compartilhado. (1999, p.06).
Borges reconhece sua relação pessoal com sua obra, ali estão seus “hábitos”. Ao
marcar o próprio sujeito como substancia temporal ancora a possibilidade de compreensão do
passado numa relação partilhada através da literatura que procura tecer o lugar do passado no
presente, e, consequentemente no futuro. Dessa maneira, talvez possamos ver ainda um claro
engajamento borgeano com o passado, dimensão simbólica objetivada através de sua
narrativa. Uma literatura que escreve o passado reinventado a partir de questões
contemporâneas.
Suas tessituras não seguem o caminho previsível e suas intrigas sempre parecem
ultrapassar o espaço-temporal referencial sem, no entanto, se contrapor totalmente a ele,
labirintos que se estendem intercruzando realismo fantástico e história. O leitor de Borges é
sempre convidado a entrar em uma casa de espelhos que deformam, criam e escondem
imagens. Espelhos que por sinal, são a metáfora recorrente em sua obra. Nela corremos o
risco de nos perdermos como quem caminha entre simulacros inquietantes de personagens,
eventos e sensações.
Beatriz Sarlo ressalta que Borges produz uma literatura sempre em conflito, de
caráter duplo; nela o real parece encontrar lugar nas fronteiras de uma tradição portenlha e
uma literatura universal pois, como diz a autora, “de frente para o passado criolo, Borges se
pergunta como evitar a força do local que somente produz uma literatura regionalista e
extremamente particularista, sem renunciar à densidade cultural que vem do passado e é parte
de sua própria história?” (apud Miotto, 2010, p. 14).
Assim, o mundo tecido por Borges era o lugar onde a morte encontra a vida e a
história podia descobrir a imaginação. Talvez essa fosse a maneira encontrada por ele para
dialogar com seus futuros leitores, mesmo quando ele próprio tivesse silenciado, situação que
pode ser experimentada logo na primeira crônica do livro O Fazedor, dedicado a Leopoldo
Lugones:
Se não me engano, você não me queria mal, Lugones, e teria gostado de gostar de
algum trabalho meu. Isso nunca ocorreu, mas desta vez você vira as páginas e lê
com aprovação um ou outro verso, talvez por reconhecer nele sua própria voz, talvez
porque a prática deficiente lhe importe menos que a sã teoria. (1999a, p.08).
O encontro que ocorre no ano de 1960 e é o diálogo de Borges com outro escritor,
também argentino, falecido em 1938. Personagem complexa, poeta, expoente do modernismo
argentino, Lugones foi também um político controverso que partiu da esquerda radical para
torna-se aliado das forças mais conservadoras do seu país o que inclusive o aproximou do
fascismo. Se Leopoldo Lugones não fosse real, talvez tivesse dado um bom personagem saído
da imaginação borgeana.
“Minha vaidade e minha nostalgia armaram uma cena impossível. Pode ser (digo
para mim mesmo), mas amanhã eu também estarei morto e nossos tempos se
confundirão e a cronologia se perderá num orbe de símbolos e de algum modo será
justo afirmar que eu lhe trouxe este livro e que você o aceitou.” (Idem)
personagem já falecido se realize. Por outro lado estabelece também um diálogo com nosso
presente-presente na medida em que somos também confrontados com o oferecimento
provocativo de Borges como se nossos tempos também se tivessem misturado e “a cronologia
tivesse se perdido nesse orbe de símbolos”.
O segundo crepúsculo.
A noite que mergulha no sono.
A purificação e o esquecimento.
O primeiro crepúsculo.
A manhã que foi a aurora.
O dia que foi a manhã.
O dia numeroso que será a tarde desgastada.
O segundo crepúsculo.
Esse outro hábito do tempo, a noite.
A purificação e o esquecimento.
O primeiro crepúsculo...
A aurora sigilosa e na aurora
a inquietude do grego.
Que trama é esta
do será, do é e do foi?
Que rio é este
pelo qual flui o Ganges?
Que rio é este cuja fonte é inconcebível?
Que rio é este
que arrasta mitologias e espadas?
É inútil que durma.
Corre no sonho, no deserto, num porão.
O rio me arrebata e sou esse rio.
De matéria perecível fui feito, de misterioso tempo.
Talvez o manancial esteja em mim.
Talvez de minha sombra,
fatais e ilusórios, surjam os dias.
Heráclito de Borges nos joga no torvelinho do rio que é o próprio tempo do qual
não se pode escapar já que ele “corre no sonho, no deserto, num porão”. Águas que estão
sempre em movimento e que engendram a trama e que congregam passado, presente e futuro
e na qual são arrastadas “mitologias e espadas”. Projetando a experiência do sujeito que vive
os efeitos de suas correntezas ao ser arrebatado pelo tempo em sua tripla dimensão, sujeito
que é também parte dele, “de matéria perecível fui feito”, nos diz o autor. Por isso nos avisa:
“eu sou esse rio” e é através de seus cursos que nos enlaçamos ao passado e ao futuro,
descortinam-se imagens de nossa infância e projeta-se nele nossa velhice, o segundo
crepúsculo que necessariamente encontrará a todos.
Mas o rio do qual Borges fala, também poderia ser, outro: Lethe, o mitológico
grego que trás a benção purificadora do esquecimento, ressaltando a necessidade de também
nos ser dada a possibilidade do esquecer. Dessa forma, a imersão no rio de Borges, é um
mergulho de um homem no tempo, não por acaso, tal conclusão nos faz lembrar outro autor
que dedicou sua vida a pensar a história e o tempo: antes de morrer, Marc Bloch cunhou uma
de sua expressão mais conhecidas para se referir à história: ciência dos homens no tempo.
(…) – Que aflição ver um guerreiro tão notável derrubado pelas armas da perfídia! –
disse em tom rotundo. – Mas também que íntima satisfação ter ordenado que os
vitimários purgassem seus crimes no patíbulo, na praça da Vitória!
(…) Devo a você esta dádiva de uma morte bizarra, que não soube apreciar naquela
hora, mas que as gerações seguintes não quiseram esquecer.
Todos os elementos que acabei de mencionar estão dispostos nesse diálogo. Pelas
falas das personagens são evidentes os conflitos, dissensos e dúvidas as quais a própria
história nacional argentina se coloca ao realizar a narrativa de construção de seu território
nacional. Estão ai, a figura imponente de Rosas a chegar no inferno (ou no céu) a deferência
subserviente dos populares que o guardavam: e, lá do fundo, alguém gritou um palavrão, mas
um terror antigo os detinha e não se atreveram a mais nada. A presença assustadora e mítica
de Facundo, “com dez ou doze ferimentos mortais (…) como lista na pele de tigre” é o único a
confrontá-lo.
Todavia, não é objetivo de Borges contar a versão daquilo que realmente ocorreu
a Rosas e Quiroga, pois, flagra-os justamente depois da morte, assim, o autor cria uma outra
possibilidade de encontro, no espaço possível que a ficção permite e, consequentemente,
submete seus personagens a um encontro engendrado em uma outra ordem de sentido que
somente é possível no mundo que sua obra. Por isso parte da negação, do não possível, do não
plausível “dois mortos que se encontrarem” para ressaltar a tensão presente na própria
narrativa histórica do país.
poderoso agente de efetivação de lembranças que extrapolam o próprio texto. Ao jogar com
elementos do real misturado-os a personagens e eventos imaginados, formula interpretações
muito particulares sobre a própria história argentina e seus atores, o que faz desta, “um
encontro de caminhos. (…) a qual não se instala por inteiro em nenhum lugar” (SARLO,
2008, 17). Uma obra marcada pela tensão tanto do mundo de onde parte, como daquele que
cria através da literatura.
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