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A reminiscência do desconforto: entre a ficção e o

testemunho em Os cus de Judas

Alice Araújo (UERJ)

Resumo:
O objetivo do presente trabalho é analisar a obra Os cus de Judas de António
Lobo Antunes e a forma como essa obra conversa com os conceitos de metaficção
historiográfica proposto por Linda Hutcheon no texto A poética do Pós-Modernismo e
descentralização proposto por Stuart Hall no texto A identidade em questão de modo a
construir a imagem de um personagem fragmentado que está inserido em uma realidade
de memórias desconfortáveis que que oscilam entre a ficção e o testemunho do autor.

Abstract:
The objective of this work is to analyze the book Os cus de Judas by António
Lobo Antunes and the way in which this work converses with the concepts of
historiographical metafiction proposed by Linda Hutcheon in the text A poética do Pós-
Modernismo e descentralização proposed by Stuart Hall in the text The identity in
question in order to build the image of a fragmented character who is inserted in a
reality of uncomfortable memories that oscillate between fiction and the author's
testimony.

Palavras chave: Metaficção historiográfica, Fragmentação, Descentralização,


Memórias, Os cus de Judas

Introdução:

O objetivo do presente trabalho é analisar a obra Os cus de Judas de António


Lobo Antunes e a forma como essa obra conversa com uma gama de teoria literária no
que diz respeito ao indivíduo contemporâneo. A obra em questão tem sua primeira
publicação no ano de 1979 sendo o segundo livro do autor que lhe garantiu em 1987 um
prémio da embaixada de França em Lisboa. O livro corresponde ao período de guerra
colonial portuguesa que aconteceu no território da África no início dos anos 1970 e
apresenta uma revisitação do autor ao passado fazendo com que o leitor confunda em
que momento o autor fala de si e em que momento o livro é mera ficção.

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Essa obra de Lobo Antunes permite um diálogo direto com a história de Portugal
uma vez que focaliza nos horrores vividos na guerra que antecedem a independência
portuguesa e isso se faz do ponto de vista crítico. A geração que sobreviveu à guerra
depositou suas esperanças na Revolução dos Cravos que viria a ocorrer em 1974,
entretanto esta geração não colheu os frutos da mesma. Em Os cus de Judas o leitor
depara-se com um desses heróis que tem uma história desprezada pela História
portuguesa.

Numa narrativa altamente fragmentada o leitor tem a experiência desconfortante


de adentrar no mundo mais obscuro que a guerra pode oferecer.

O título
Um ponto que já chama a atenção do leitor de imediato é o próprio título do
livro, a saber, Os cus de judas. Essa construção só é esclarecida ao longo do romance
que aponta para onde de fato se passaram as maiores partes das experiências do
personagem. O título sugere a compilação de duas expressões portuguesas, cu do
mundo e onde Judas perdeu as botas, que querem dizer “fim do mundo” ou “lugar
inóspito. Essa construção aponta para o fato de que a história que será narrada pelo
personagem transitará em algum lugar distante situado em um país que ele não
reconhece como sendo sua pátria, seu lugar de origem. Embora por diversas vezes na
narrativa haja a descrição de lugares físicos, não é possível situar o narrador em nenhum
deles. Há certo distanciamento dele com o lugar de onde ele fala:

“No cu de Judas, oculto por uma farda de camuflado que me


fornecia a aparência equívoca de um camaleão desiludido, adiava
a minha partida para Estocolmo a bordo de um barco de papel
impresso, para viajar de helicóptero, de balões de plasma entre os
joelhos, a recolher da mata os feridos das emboscadas, que
sobreviventes estupefatos erguiam à maneira dos corpos bandidos
dos náufragos.” (ANTUNES, 2007)”

Os cus de Judas
A obra é dividida em capítulos que recebem como título as letras do alfabeto de
A a Z. Nessa construção história e memória vão se entrelaçando de modo que nem

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sempre a narrativa é tão linear quanto a própria ordem alfabética sugere e isso escapa ao
leitor como a evidência de um desgaste físico e psicológico de um homem que após a
experiência da guerra vê-se fracassado e preso ao passado.

O livro começa com uma longa descrição sobre um jardim zoológico e já se vê


de imediato a característica prosaica presente na narrativa uma vez que todo o enredo se
trata de uma conversa onde um homem apresenta a uma interlocutora sua experiência.
Podemos ver esse traço no trecho ““Os plátanos entre as jaulas acinzentavam-se como
nossos cabelos, e afigurava-se-me que, de certo modo envelhecíamos juntos”
(ANTUNES, 2010). Após detalhar o ringue de patinação e passear por entre alguns
animais rememorando sua infância — uma lembrança agradável diante de tudo o que se
lê a seguir— o narrador introduz sua interlocutora no que seria essa “prosa”.

É de suma apontar, também, para o tempo no qual o romance é construído. O fio


condutor da obra são as memórias, desse modo pode-se observar que o tempo é
psicológico. Como em um grande quebra cabeça, aos poucos o leitor vai encaixando as
peças e as ordenando de modo a entender o todo que é apresentado.

Se num primeiro momento o leitor é transportado para lembranças nostálgicas e


familiares do narrador, já no segundo capítulo ele se depara com as pistas de onde se
originam as desconfortantes memórias — Santa Margarida, Moscavide, Mafra, Elvas,
Tomar, Madeira— lugares em que o narrador começou sua carreira militar ainda em
Portugal. Cabe destacar o aparecimento da esfera militar na narrativa como um lugar
onde a masculinidade dos jovens é forjada.

O que encontra-se na narrativa é a história da Guerra colonial portuguesa


relatada por um médico psiquiatra que está na posição de narrador personagem e que
conta sua história na guerra. É importante destacar essa primeira aproximação do autor
da obra com o personagem da mesma uma vez que a formação acadêmica de Lobo
Antunes era em psiquiatria. No livro a mulher que ouve o narrador não participa da
conversa, apenas escuta passivamente e a quem ele pede atenção:

Escute. Olhe para mim e escute, preciso tanto que me escute, me


escute com a mesma atenção ansiosa com que nós ouvíamos os
apelos do rádio da coluna debaixo de fogo, [...] escute-me tal
como eu me debrucei para o hálito do nosso primeiro morto na

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desesperada esperança de que respirasse ainda, o morto que
embrulhei num cobertor e coloquei no meu quarto, era a seguir ao
almoço e um torpor esquisito bambeava-me as pernas
(ANTUNES, 2007)

Esse médico retornou na experiência da guerra com lembranças de morte e


sofrimento e, mesmo que fosse essa a intenção, a guerra não serviu para assegurar uma
figura heroica a Portugal. O que encontra-se é uma crítica ao fato de a história
portuguesa nunca ter se ocupado de tal que mais parece que ela nunca existiu e isso
causa certa indignação a esse narrador ex-combatente de guerra:

Por que camandro é que não se fala nisto? Começo a pensar que o
milhão e quinhentos mil homens que passaram por África não
existiram nunca e lhe estou contando uma espécie de romance de
mau gosto impossível de acreditar, uma história inventada que a
comovo a fim de conseguir mais depressa [...] que você veja
nascer comigo a manhã na claridade azul pálida que fura as
persianas e sobe dos lençóis, [...] Há quanto tempo não consigo
dormir? Entro na noite como um vagabundo furtivo com bilhete
de segunda classe numa carruagem de primeira, passageiro
clandestino dos meus desânimos encolhido numa inércia que me
aproxima dos defuntos e que a vodca anima de um frenesi postiço
e caprichoso, e às três da manhã vêemme chegar aos bares ainda
abertos, navegando nas águas paradas de quem não espera a
surpresa de nenhum milagre, a equilibrar com dificuldade na boca
o peso fingido de um sorriso. (ANTUNES, 2007)

Com o auxílio apenas de sua memória o personagem descreve detalhadamente


os lugares pelos quais passou e aponta para características que só quem realmente viveu
aquilo é capaz de apontar. Ele fala do calor, da precariedade das instalações
hospitalares, da miséria da população africana, do sofrimento que enfrentavam seus
colegas feridos, a tensão, a falta de comida, o quanto sentia-se impotente por não poder
ajudar os companheiros etc:

Internados em enfermarias desconjuntadas, vestidos com o


uniforme dos doentes, passeávamos na cerca de areia do quartel

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os nossos sonhos incomunicáveis, a nossa angústia informe, os
nossos passados vistos pelo binóculo ao contrário das cartas da
família e dos retratos guardados no fundo das malas sob a cama,
vestígios préhistóricos a partir dos quais poderíamos conceber,
como os biólogos examinando uma falange, o esqueleto
monstruoso da nossa amargura. (ANTUNES, 2007)

Devido aos tantos transtornos oriundos da guerra as lembranças pelo


personagem apontadas não são nostálgicas ou reconfortantes. Sua relação com o
passado é tensa, problemática, dolorida, e isso porque ela não vem até ele de forma
inocente e sim como modo de questionar a política de um império que ruiu. Os
acontecimentos históricos são revisitados e esses acontecimentos criam um sujeito sem
perspectiva de futuro, uma vida sem futuro. A verdade entremeada em toda a narrativa é
que esse sujeito é na verdade a personificação de como estaria o país. Nesse livro de
Lobo Antunes não há possibilidade de redenção ou utopia possível. Seu personagem é
totalmente cético. É um sujeito que quer agarrar-se a esse fio de afeto que
possivelmente existe. Esse sujeito é muito mais envelhecido pela experiência que viveu
do que pela idade em si.

Para um leitor de primeira viagem Os cus de Judas pode ser uma obra altamente
desconfortável uma vez que é preciso estar atento não apenas ao texto em si, mas
também às nuances que estão por trás da construção literária. É uma narrativa arrastada
e permeada por nuances que constroem um sujeito que assume um sentimento de não
pertencimento e isso é visto tanto em pistas deixadas pelo autor quanto por diálogos
diretos do próprio personagem:

Quem veio aqui não consegue voltar o mesmo, explicava eu ao


capitão de óculos moles e dedos membranosos colocando
delicadamente no tabuleiro, em gestos de ourives, as peças de
xadrez, cada um de nós, os vivos, tem várias pernas a menos,
vários braços a menos, vários metros de intestino a menos,
quando se amputou a coxa gangrenada ao guerrilheiro do MPLA
apanhado no Mussuma os soldados tiraram o retrato com ela num
orgulho de troféu, a guerra tornou-nos em bichos, percebe, bichos
cruéis e estúpidos ensinados a matar, não sobrava um centímetro

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de parede nas casernas sem uma gravura de mulher nua,
masturbávamo-nos e disparávamos, o mundo-que-o-português-
criou são estes luchazes côncavos de fome que nos não entendem
a língua, a doença do sono, o paludismo, a amebíase, a miséria.
(ANTUNES, 2007)

Nesse ínterim as memórias na obra são também um modo de fixar o não lugar
desse indivíduo que não tem possibilidade de retornar ao que era pois agora ele está
marcado pelo trauma. Ele, porém, não aceita isso que foi feito com ele.

Diante de toda a construção aqui exposta podemos analisar o livro de Lobo


Antunes dentro de duas perspectivas: a da fragmentação do sujeito pautada no conceito
de metaficcção historiográfica e a da descentralização do sujeito, propostas por Linda
Hutcheon e Stuart Hall respectivamente.

Fragmentação
Nota-se o excesso de uso de metáforas e comparações para a construção das
memórias e isso é usado como recurso para que o personagem venha a traduzir e
explicar o mundo arruinado no qual ele está inserido. O excesso de períodos e
parágrafos longos também fazem parte dessa descrição que é cruzada, ora fala da
guerra, ora trás de volta a mesa de bar, ora fala de seu passado. Esse fluxo de
consciência, endossado pelo álcool, faz com que a estrutura se torne cada vez mais
fragmentada:

Já reparou que a esta hora da noite e a este nível do álcool o corpo


se começa a emancipar de nós, a recusar se a acender o cigarro, a
segurar o copo numa incerteza tateante, a vaguear dentro da roupa
oscilações de gelatina? O encanto dos bares, não é?, consiste em,
a partir das duas da manhã, não ser a alma a libertar-se do seu
invólucro terrestre e a seguir verticalmente para o céu no esvoaçar
místico de cortinas brancas das mortes do missal, mas a carne que
se livra, um pouco espantada, do espírito, e inicia uma dança
pastosa de estátua de cera que se funde até terminar nas lágrimas
de remorso da aurora, quando a primeira luz oblíqua nos revela,
com implacabilidade radioscópica, o triste esqueleto da solidão
sem remédio. (ANTUNES, 2007)

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Outro ponto que também contribui para a fragmentação do texto é nas vezes em que há
a marca dialogal quando ele chama a atenção da sua ouvinte para o que está falando
como se observa na introdução do capítulo H : “Escute. Olhe para mim e escute, preciso
tanto que me escute, me escute com a mesma atenção ansiosa com que nós ouvíamos os
apelos do rádio da coluna debaixo de fogo, a voz do cabo de transmissões que
chamava.” (ANTUNES, 2007)

A fragmentação textual aplica-se ao conceito de metaficção historiográfica


proposto por Linda Hutcheon em sua obra: A poética do Pós-Modernismo. Esse
conceito estabelece que a realidade pós moderna ao fazer-se presente dentro da criação
ficcional, perde a linearidade e consistência estrutural da narrativa tradicional. Essa
noção pode ser lida no trecho: “A presença errante e sinuosa do inconsciente, sem o
qual não se pode compreender a posição do sujeito, persiste na heterogeneidade e nas
contradições dentro do próprio sujeito.” (HUTCHEON, 1991, p. 205). Desse modo
pode-se perceber que um sujeito autor fragmentado só será capaz de construir
personagens fragmentados. É esse tipo de personagem que vemos na construção de
Lobo Antunes.

Descentralização
Stuart Hall no texto “A identidade em questão” traz à tona o fato de que na
modernidade as identidades estão em crise e com isso descentradas “isto é, deslocadas
ou fragmentadas” (HALL, 2005, p 8). No mesmo texto ele diz:

“Estas transformações estão também mudando nossas identidades


pessoais, abalando a ideia que temos de nós próprios como
sujeitos integrados. Essa “perda de si” estável é chamada,
algumas vezes, de deslocamento ou descentração do sujeito. Esse
duplo deslocamento constitui uma “crise de identidade” para o
indivíduo.” (HALL, 2005, p.9)

Em Lobo Antunes encontramos esse deslocamento no capítulo G:

(...) e eu perguntava ao capitão O que fizeram do meu povo, O


que fizeram de nós aqui sentados à espera nesta paisagem sem
mar, presos por três fileiras de arame farpado numa terra que nos
não pertence, a morrer de paludismo e de balas cujo percurso

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silvado se aparenta a um nervo de nylon que vibra, alimentados
por colunas aleatórias cuja chegada depende de constantes
acidentes de percurso, de emboscadas e de minas, lutando contra
um inimigo invisível, contra os dias que se não sucedem e
indefinidamente se alongam, contra a saudade, a indignação e o
remorso, contra a espessura das trevas opacas tal um véu de luto,
e que puxo para cima da cabeça a fim de dormir, como na
infância utilizava a bainha do lençol para me defender das pupilas
de fósforo azul dos meus fantasmas. (ANTUNES, 2007)

Nesse trecho encontra-se a marca da crise uma vez que o sujeito busca
reconhecer sua identidade, mas já não a reconhece mais. Há uma angústia e essa
angústia que irá construir suas memórias fragmentadas, deslocadas e descentralizadas.

Conclusão
A experiência de se ler Os cus de Judas é um tanto quanto agoniante uma vez
que tira o leitor de sua zona de conforto e o apresenta a uma construção totalmente
diferente do habitual. É necessário paciência e diligência para se entender os caminhos
que tomam uma nação quebrada e uma pessoa que personifica essa nação. O leitor fica
diante de um amanhã que não chega torcendo para que, de repente, aqueles traumas
sejam apagados para que enfim o indivíduo volte a viver em paz mesmo que essa não
seja uma perspectiva possível.

No livro o narrador personagem resgata cenas do passado através de memórias


que lhe parecem muito latentes e presentes em seu dia. Dessa forma parece que há uma
tentativa de superar os remorsos que sente e que por tanto tempo foi silenciado. O
médico psiquiatra parece pagar a conta de um passado dolorido contanto a história do
que de fato aconteceu com ele. Nas nuances mais profundas pode-se notar um autor que
também tenta superar a guerra que viveu e tenta lidar com tudo aquilo que ela lhe
proporcionou desde perdas físicas até perdas emocionais.

Como o próprio título do trabalho sugere, a proposta que esse texto buscou
apresentar é como as reminiscências, as memórias do narrador personagem são
doloridas e em como elas estão entremeadas entre a ficção construída e o testemunho do

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próprio autor de modo a apresentar um personagem fragilizado que não é capaz de
reconhecer mais seu lugar no mundo: ''o medo de voltar ao meu país comprime-me o
esôfago, porque, entende, deixei de ter lugar fosse onde fosse, estive longe demais,
tempo demais para tornar a pertencer aqui''. (ANTUNES, 2007).

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Referências Bibliográficas:

ANTUNES, António Lobo. Os cus de Judas. Rio de janeiro: Objetiva, 2007.

HALL, Stuart. A Identidade em questão. São Paulo. DP&A Ed., 2005.

HUTCHEON, Linda. A Poética do Pós Modernismo. Rio de Janeiro: Imago Ed., 1991.

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