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As fotografias de um caderno: passeio pelas memórias coloniais de Isabela

Figueiredo

Silvio Renato Jorge

Caderno de memórias coloniais poderia ser enquadrado na série de livros que,


publicados a partir dos anos 2000, se propõem a reler o fim do percurso colonial
português, tendo como referência a ótica dos retornados. Todavia, já em seu princípio,
somos levados a perceber que o livro ultrapassa em muito essa proposta, seja por acenar
nitidamente para um acerto de contas com a memória do pai, seja por, até mesmo em
virtude dessa primeira proposta, mostrar-se avesso a uma visão inocente ou festiva do que
foi a experiência colonial portuguesa, investindo na ironia como instrumento político de
crítica e análise.

Posso afirmar, portanto, que estamos diante de um texto que interpela seus
fantasmas, o pai e a vida em Moçambique, ciente da impossibilidade de apaziguamento
e conforto: o que se constrói a partir daí é um relato de memória, de memória de segunda
geração, diria melhor, que mistura amargor e doçura, ódio e saudade, respeito e desprezo,
em um processo que bem parece dialogar com os versos de “Mora na filosofia”, de
Monsueto e Arnaldo Passos, quando estes perguntam: “Pra que rimar amor com dor”? E
cito: “Eu vou te dar a decisão / Botei na balança / E você não pesou / Botei na peneira /
E você não passou”. Nitidamente, ao lermos as palavras inscritas nos Cadernos, a
“balança” e a “peneira” apresentadas por elas apontam para a consciência de que qualquer
movimento para reinterpretar esse passado só poderá se constituir tendo como ponto de
partida a ideia de afeto, em seu sentido próprio, ou seja, aquilo que afeta, que mobiliza,
que induz a uma tomada de posição, o que fica claro não apenas nas quase iniciais
palavras da narradora – “Quem é que não foi deixando os seus múltiplos corações
algures? Eu há muitos anos que o substituí pela aorta” (2010, p.11) –, mas também nas
epígrafes por ela escolhidas. A primeira é de Paul Auster, do livro Inventar a Solidão, e
diz:

De cada vez que abria uma gaveta ou espreitava para dentro de um armário, sentia-me como um
intruso, um ladrão devassando os locais secretos da mente de um homem. A todo o momento esperava que
o meu pai entrasse, parasse incrédulo a olhar para mim e me perguntasse que raio é que eu pensava que
estava a fazer. Não me parecia justo que ele não pudesse protestar. Eu não tinha o direito de invadir sua
privacidade.

A segunda, de Primo Levi, de Os que Sucumbem e os que Salvam, por sua vez,
diz:

A memória humana é um instrumento maravilhoso, mas falível.


(...)
As recordações que jazem dentro de nós não são gravadas em pedra; não só têm a tendência para
se apagarem com os anos, como também é frequente modificarem-se, ou inclusivamente aumentarem,
incorporando delineamentos estranhos.

Os dois fragmentos enunciam processos que se constituíram no texto, ou melhor,


que constituirão o texto por eles introduzido. São sucessivas as gavetas que se abrem para
desvelar aos nossos olhos a estatura do pai, como homem e como colonizador; por outro
lado, a devassa empreendida pela filha em busca de seus lugares secretos – os dele e os
dela –, tem como suporte uma memória que se sabe construída não apenas por vivências,
mas também por relatos e ficções, por lacunas que permitem incorporar ao texto
“delineamentos estranhos”, leituras outras assimiladas na vida através daquilo que se
ouviu ou se pensou ter ouvido. É nessa trama entre a memória obsessiva do pai e escrita
lacunar do que era ser uma criança branca na Lourenço Marques dos anos setenta que se
vai constituir o texto, também ele uma trama de gêneros e materialidades discursivas.

Nessa linha de leitura, o Caderno apresenta duas características muito marcantes,


que eu não poderia deixar de destacar. A primeira delas é o fato de recuperar cenas,
imagens, resquícios de características do fato colonial que são destacadas em boa parte
das reflexões teóricas sobre o tema: fala-se de sexualidade, de racismo, do mito
civilizatório. A segunda é a presença vigorosa de um eu discursivo que reconhece sua
inevitável parcela de responsabilidade nesse processo, ainda que involuntária, e não se
permite a omissão da violência intrínseca ao fato, violência essa que reverbera na seleção
das palavras e na agudeza irônica com que desvela a fala do colonizador. Por isso, é tão
significativo lermos a narradora afirmando “Digo nós, porque eu estava lá” (2010, p. 23),
ou “Não havia olhos inocentes” (2010, p. 28), ou ainda
Mas parece que isto era só na minha família, esses cabrões, porque segundo vim
a constatar, muitos anos mais tarde, os outros brancos que lá estiveram nunca praticaram
o colun..., o colonis..., o colonialismo, ou lá o que era. Eram todos bonzinhos com os
pretos, pagavam-lhes bem, tratavam-lhes melhor, e deixaram muitas saudades (2010,
p.49).
Caderno de memórias coloniais: novas narrativas sobre histórias pessoais e coletivas
dos colonizadores portugueses na África do século XX

Flavia Arruda Rodrigues

Isabela Figueiredo não narra, conforme afirma lhe ter sido pedido pelos outros
portugueses que ficaram na África, o que seriam mágoas e injustiças sofridas, a partir do
ponto de vista do colonizador naquele que transformou o espaço alheio. A prosa de
Isabela Figueiredo assume posicionamentos políticos distintos, críticos à colonização e,
nisso, reside a traição na fotografia da capa do livro.

Lá pela Metrópole andam muito amiguinhos dos pretos!, mas que vejam bem quem eles são, e a
paga que nos deram por tudo o que aqui enterramos, e era nosso; esta cidade, o trabalho, donde comiam. É
por ti que vão saber. Tens de contar. Conta a todos”. (...) Em silêncio, mas num silêncio ainda mais fundo,
porque afinal já era uma mulher, voltei a chorar o que perdia e haveria de pagar. A dívida alheia que me
caberia. Nunca entreguei a mensagem de que fui portadora. (FIGUEIREDO, 2009, p.109-111)

Nesse trecho, Isabela Figueiredo assume a voz do colonizador que não conseguiu
ou não quis embarcar de volta para Portugal. Nele, transparece a mágoa do português de
Moçambique em relação ao da metrópole, Lisboa. Na narrativa de Isabela Figueiredo,
essa voz do colonizador, que se pretende de todo um grupo, expressa uma necessidade de
dar a conhecer a perspectiva colonial do fim da ditadura e da posse de outros territórios.
No entanto, ao narrar, ela se nega a executar essa tarefa.

O fim do controle português a partir de Lisboa pôs os colonos portugueses em


situação de vulnerabilidade política, uma vez que eram eles os gerentes locais dessa
engrenagem colonial, agora desestruturada.
Eram eles os responsáveis por tarefas como a urbanização das cidades nas
colônias e a construção de suportes de infraestrutura, tais como edifícios comerciais e
residenciais, linhas de ferro e estradas. Igualmente, atuavam como gestores do imenso
contingente de mão-de-obra negra local, que trabalhava em condições sub-humanas,
sujeito a castigos físicos violentos e a um salário irrisório que não deixava o sistema
laboral muito distante do escravocrata. Eram os colonizadores que lidavam diretamente
com os trabalhadores negros. Os portugueses de Lisboa, apesar de se beneficiarem
economicamente do sistema colonial, só tinham contato com ele através dos jornais ou
de boletins administrativos. Eis porque a narradora de Isabela Figueiredo afirma que em
Lisboa andavam “amiguinhos dos pretos”: um dos paradoxos da desestruturação da
engrenagem colonial é que os portugueses da metrópole responsabilizaram os retornados
por explorarem brutalmente a mão-de-obra local, embora também tenham se sustentado
economicamente a partir dela.

O relato de Isabela Figueiredo apresenta uma coerência inusitada: a belle vie de


uns estava associada ao trabalho dos outros. Trabalho que não se qualifica, do qual não
se fala, de outros que não têm nome porque não são efetivamente conhecidos.
Isabela Figueiredo, ao contrário, desconstrói o protagonismo português na
colônia, e especialmente aquele que verifica na figura de seu pai, ao mesmo tempo
carinhoso com a família e violento com os negros. É nele que a autora vai condensar a
figura do colonizador português, e, para tal lançará mão de uma narrativa de caráter
nostálgico.

Em sua narrativa, a autora, embora seja ela própria um produto do ambiente


colonial (e não negue essa perspectiva), não adere à vontade de dominação e violência da
geração de seus progenitores. Ela rememora seu passado e reconstitui sua infância na
Lourenço Marques dos anos 1960 e 1970.

Isabela Figueiredo percebe, ao contrário do pai, o valor do trabalho dos negros,


concluindo que é esse labor alheio que sustenta sua vida confortável de colona portuguesa
de classe média em Moçambique.

Recebi todos os discursos de ódio do meu pai. Ouvi-os a dois centímetros do rosto. Senti-lhe o
cuspo do ódio, que custa mais que o cuspo do amor, e enfrentei, olhos nos olhos, a sua raiva, a sua
frustração, a sua tão torpe ideologia e, ouvindo, não disse nada, nem um assentimento, nem um músculo se
mexeu, e eu, inteira, era um não.

Tive medo do meu pai. Que me batesse com as manápulas, que me gritasse, que me dissesse tu
não és minha filha, porque minha filha não gosta de pretos, não acompanha com pretos, não sonha com
pretos. Havia uma raiva tão grande dentro de si, em amigável convívio com o amor que podia oferecer-me
de um momento para o outro. (FIGUEIREDO, 2009, p. 117-118)

A narradora se põe numa atitude de enfrentamento em relação a seu pai. Por


consequência, também investe contra a construção do homem colonial português. Se por
um lado a virulência e a agressividade típicas do momento colonial fabricaram indivíduos
como esse pai, por outro ele exerce o papel de pai zeloso. Em Caderno de memórias
coloniais, não se encontra somente esse pai, como também ambientes propícios para as
infâncias felizes de pessoas que, no passado, foram crianças e jovens do espaço colonial
português. Uma vez que esse passado se perdeu na fuga para Lisboa, silenciando-se
depois por tantos anos, estabelece-se, no livro, um discurso melancólico da perda abrupta,
do abandono repentino de lares, amigos, familiares e bens materiais.

No breve primeiro capítulo do livro, que ocupa apenas uma página, Isabela
Figueredo escreve:

Manuel deixou o seu coração em África. Também conheço quem lá tenha deixado dois
automóveis ligeiros, um veículo todo-o-terreno, uma carrinha de carga, mais uma camioneta, duas vivendas,
três machambas, bem como a conta no Banco Nacional Ultramarino, já convertida em meticais.

Quem é que não foi deixando os seus múltiplos corações algures? Eu há muitos anos que o
substituí pela aorta. (FIGUEIREDO, 2009, p.11)

Nesse trecho, que apresenta o leitor ao universo colonial da antiga Lourenço


Marques, a autora evoca um cotidiano que lhe era particular, como o era a tantos outros
portugueses que lá viviam. Deixar o coração em África significou abandonar
abruptamente um dia a dia corriqueiro, feito do cultivo de investimentos emocionais e
comerciais, que incluía a relação com familiares, amigos, parceiros de negócios e negros,
assimilados ou não. As violências perpetradas contra esses últimos indivíduos eram
normais para a maior parte dos portugueses que viviam no contexto colonial, fazendo
parte da conduta deles esperada. É, aliás, a naturalização desses discursos que constituem
uma das potências do livro, uma vez que eles flagram características da colonização
portuguesa que a autora revisa.
Se o português da colônia a que ela se refere quisesse ou pudesse manter seu
status social em Lisboa, tomando um drinque num bar equivalente ao encontrado na
Lourenço Marques daquela época, certamente estaria num estabelecimento mais caro, no
mínimo menos decadente. Ao deslocar o espaço em que esse português da elite colonial
toma sua bebida, Isabela Figueiredo está equivalendo ou equilibrando as posições sociais
do conjunto de portugueses brancos e dos negros moçambicanos, desqualificando a
pompa dos primeiros e valorizando o trabalho dos outros. É por essa via que ela se torna
uma traidora: a autora não adere ao discurso colonial vitorioso que seus conterrâneos
esperavam dela.
Os pesados restos coloniais no Caderno de memórias coloniais, de Isabela Figueiredo

André Souza da Silva

O referido romance narra uma outra história, em tudo distinta daquela levada a
cabo pela história oficial, como forma de problematizar os pesados restos coloniais no
imaginário de uma nação.

Não por acaso, relembra Isabela Figueiredo:

O meu pai gritava lá dentro e, aos safanões, trazia-o [o preto escravizado] para fora, atordoados
ambos. Segunda, vais trabalhar, ouviste? Segunda, estás nas bombas às sete. Vais trabalhar para a tua
mulher e para os teus filhos, cabrão preguiçoso. Queres fazer o que da vida? Safanão. Soco. E a mulher e
os filhos e o bairro todo, e eu, estávamos ali, imóveis, paralisados de medo do branco. Terminada a função,
o branco mete uma nota na mão da negra e diz-lhe, dá de comer aos teus filhos; depois levanta-me no ar,
atrás de si, presa pelo seu pulso, enquanto grita ao negro, segunda-feira, nas bombas, ai de ti [...] Porque
aquela terra, senhores, era do meu pai. O meu pai era todo o povo moçambicano. Vivia-o em força e raiva.
Espumou até ao último dia, recusando baixar a voz perante um negro, mostrar-lhe os documentos, as guias
de viagem, tratá-lo por você, dar-lhe a mão em sinal de aceitação da sua autoridade. Com ou sem
independência, um preto era um preto e o meu pai foi um colono até morrer (FIGUEIREDO, 2018, p. 76 e
120).

Como salta do trecho, o comportamento do pai de Isabela não só dá a tônica do


tratamento dispensado ao negro como também evidencia, de modo geral, o sentimento de
posse do homem branco português em relação à terra alheia, tomando-a como sua e
afeiçoando-a cada vez mais à imagem de cidades como Lisboa, de onde saiu o eletricista
com a esposa para participar do processo de colonização (ou de modernização como era
pretensamente chamado pelos colonos) de Lourenço Marques, hoje Maputo, capital de
Moçambique, terra de nascimento de Isabela Figueiredo. Sendo assim, a insistente recusa
ao reconhecimento da liberdade do homem negro africano –mesmo após o
enfraquecimento e término do salazarismo e do marcelismo que juntos prolongaram o
escravismo e bancaram treze anos de absurda Guerra Colonial (1961-1974) em Angola,
Moçambique e Guiné-Bissau – contraria a narrativa que os próprios colonos legaram à
jovem Isabela aquando de sua partida para a metrópole, onde deveria contar o suposto
horror pelo qual teriam passado os portugueses assim que os homens da FRELIMO
(Frente de Libertação de Moçambique) deram início ao naturalmente sangrento processo
de independência do país.

A perpetuação da narrativa que Isabela deveria fazer chegar a Lisboa servia para
maquiar o Estado racista que direta ou indiretamente todos os portugueses, inclusive
aqueles que viviam na metrópole, tinham ajudado a montar e do qual evidentemente
usufruíam mais de perto ou à distância. A denunciar a atmosfera de hipocrisia dentro da
qual foi educada, lembra a autora:

Todos os lados possuem uma verdade indesmentível. Nada a fazer. Presos na sua certeza
absoluta, nenhum admitirá a mentira que edificou para caminhar sem culpa, para conseguir dormir, acordar,
comer, trabalhar. Para continuar. Há inocentes-inocentes e inocentes-culpados. Há tantas vítimas entre os
inocentes-inocentes como entre os inocentes-culpados. Há vítimas-vítimas e vítimas-culpadas. Entre as
vítimas há carrascos (FIGUEIREDO, 2018, p. 136).

Entretanto, para a tristeza dos colonos, Isabela demonstrava desde a adolescência


que se recusaria a levar adiante a narrativa anacrônica com a qual havia crescido, tendo
percebido desde muito nova, através dos livros, que na terra onde vivia não existia
redenção comparável à das personagens literárias, pois “aquele paraíso de interminável
pôr-do-sol salmão e odor a caril e terra vermelha era um enorme campo de
concentração32 de negros sem identidade, sem a propriedade do seu corpo, logo, sem
existência” (FIGUEIREDO, 2018, p. 45-46). Dessa forma, sem eximir-se da parcela de
culpa que lhe cabe pelo colonialismo, Isabela Figueiredo (“inocente-culpada”) se recusa
a levar para Lisboa qualquer história que preservasse a imagem luso-tropical de um
império edificado à custa da morte, escravização e violação de milhares de negros e
negras. “A colonazinha preta, filha de brancos, a negrinha loira” (FIGUEIREDO, 2018,
p. 59), ainda que fosse recebida na metrópole com toda a carga de preconceito endereçada
aos retornados33, tinha consciência de que, para a maioria dos colonizadores, incluindo
o seu pai, o testemunho que não daria seria encarado como uma grande traição, afinal,
antes de embarcar, fora advertida diversas vezes que:

Lá pela Metrópole andam muito amiguinhos dos pretos! mas que vejam bem quem eles são, e a
paga que nos deram por tudo o que aqui enterramos, e era nosso; esta cidade, o trabalho, donde comiam. É
por ti que vão saber. Tens de contar. Conta a todos”. [...] “Coragem. Não te esqueças de contar a verdade!”
[...] Em silêncio, mas num silêncio ainda mais fundo, porque afinal já era uma mulher, voltei a chorar o que
perdia e haveria de pagar. A dívida alheia que me caberia. Nunca entreguei a mensagem de que fui
portadora. (FIGUEIREDO, 2018, p. 130–132).

Nesse sentido, a renúncia de Isabela em endossar o que seria mais uma versão
da narrativa colonial portuguesa pode enfim ser encarada como parte de um
reconhecimento necessário e ainda por fazer da pavimentação dum lugar de fala para
quem dela fora secularmente privado, uma vez que ainda hoje o povo negro luta por um
protagonismo social e discursivo que seja verdadeiramente reconhecido não apenas em
Portugal, mas em quase qualquer país ocidental marcado pelo imperialismo. Neste
cenário, sobretudo num país onde até hoje as transformações do “25 de Abril não
conseguiram produzir uma mudança profunda na consciência coletiva da sociedade
portuguesa” (SANTOS, 1990, p. 27) que fosse capaz de alterar uma mentalidade
fortemente marcada por décadas de ideologia fascista-colonial, trazer à tona uma outra
história para a Guerra Colonial em Moçambique, como pretende o Caderno, implica em
evidenciar as mazelas de um estado de coisas em cima do qual o salazarismo construiu
os seus valores controversos e modelou o pensamento de milhares de homens igualmente
controversos como o pai de Isabela – cristão, patriota, nacionalista, racista –, com quem
a narradora também busca se acertar através da escrita numa das passagens mais bem
conseguidas do livro:

Não foi fácil ser a filha do eletricista. Sonhei muitas vezes que o eletricista havia de morrer de
muitas maneiras e deixar-me livre para pensar, para existir sem medo. Para lhe responder. E um dia morreu
mesmo, sem que pudéssemos ter feito completamente as pazes, sem que eu estivesse totalmente crescida,
e ele totalmente vencido, e agora está aqui sentado, a dois centímetros do meu rosto, a ler-me, e eu,
sinceramente, só queria dizer-lhe que vivemos um tempo demasiado curto para o nosso amor, confuso,
desajustado, injusto. Que foi só isso que nos aconteceu: um tempo, um espaço, um tabuleiro de xadrez
errado para o amor. E que o traí para que pudéssemos levantar a cabeça (FIGUEIREDO, 2018, p. 145-146).

Esta “traição”, na altura em que ocorreu, no rescaldo do 25 de Abril, já se


mostrava muito necessária, mas se torna ainda mais indispensável à medida que a
associamos aos acontecimentos mais recentes da vida portuguesa, os quais insistem em
demonstrar como o imaginário colonial continua profundamente arraigado no seio da
cultura nacional. Desse modo, Isabela Figueiredo e outros escritores de sua geração, ao
caminharem na contramão de uma tendência luso-tropicalista que nunca realmente
desapareceu da relação de Portugal com os trópicos, tentam colmatar as esperanças que
o projeto histórico-político da fatídica Revolução de 1974 não fora capaz de cumprir
coletivamente. Assim, por mais que as obras desses autores devam ser lidas como
exemplares de uma resistência intergeracional que se dedica a “preservar a memória, em
salvar o desaparecido, o passado, em resgatar, como se diz, tradições, vidas, falas e
imagens” (GAGNEBIN, 2006, p. 97) em detrimento duma “vontade de esquecimento”
que pode ser bastante perigosa, é importante salientar que, sem uma política de Estado
mais eficaz no combate ao racismo e aos resquícios da ditadura ainda evidentes em
Portugal, a literatura não pode fazer muito mais do que denunciá-los.
Ainda assim, é dessa forma que livros como o Caderno de memórias coloniais
ajudam a (re)elaborar o necessário reconhecimento de um passado colonial sem o qual a
projeção de um Portugal futuro não poderá ser feita. Enquanto não forem verdadeiramente
discutidos, os traumas fantasmáticos de outrora, sob a inscrição da memória individual
ou coletiva, insistirão em assombrar a vida de um país historicamente acostumado a
esperar por quem resolva milagrosamente as suas grandes questões.

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