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A
Abstract
4 Se relação entre cultura nacional e identidade feminina vem sendo bastante desenvolvida, o mesmo
não pode ser dito de sua relação com a homossexualidade; consultar Lauren Berlant e Elizabeth
Freeman (1994), Lee Edelman (1994) e Arnaldo Cruz-Malavé (1998).
5 “Amizade construída duma maneira adulta e egoísta como só dois solteirões podem construí-la
sem os entraves da esposa, dos filhos e das constantes reuniões familiares” (p. 123).
6 Para uma valorização da noção de identidade, após a crítica pós-estruturalista, e para sua articulação
com a noção de diferença, ver Kathryn Woodward (2000) e Stuart Hall (2000). 39
Ipotesi, revista de
estudos literários
intelectual particular 7, anverso da construção do intelectual moderno, seja
Juiz de Fora, isolado, exilado, seja revolucionário, engajado, porta-voz. É este espaço modesto
v. 5, n. 1
p. 37 a 48 o meu lugar possível de fala agora.
somos todos estrangeiros
nesta cidade
neste corpo que acorda
(Guilherme Zarvos)
7 Sonho com o intelectual destruidor das evidências e das universalidades, que localiza e indica nas
inércias e coações do presente os pontos fracos, as brechas, as linhas de força; que sem cessar se
desloca, não sabe exatamente onde estará ou o que pensará amanhã, por estar muito atento ao
presente...” (FOUCAULT, M.: 1989, 242).
8 Para uma outra leitura da questão gay na obra de Silviano Santiago, ver Ana Maria Bulhões de
Carvalho (1997).
9 Para não sobrecarregar o texto de referências, mencionarei no corpo do trabalho apenas as páginas
das citações tiradas das três obras literárias analisadas (de Santiago, Ribondi e Abreu), acompanhadas
pelas abreviaturas correspondentes (KJ para Keith Jarret no Blue Note, CH para Na Companhia de
40 homens e EE para Estranhos estrangeiros).
obsessão pela auto-revelação. A música é uma metáfora para uma narrativa O entre-lugar das
homoafetividades
caudal, que se desdobra pela memória, pelas impressões, e rompe as amarras
do olhar vigilante de si mesmo e do outro. Denilson Lopes
Começa também a lembrança. Da madrugada de domingo vamos ao
início do fim de semana, sexta-feira. A solidão do presente remete a uma
procura na memória, ou melhor, a uma disponibilidade para o passado.
Até chegar na quinta-feira, um calendário invertido. Como não sabia porque
estava naquela cidade, também não sabia porque ligara a Roy, de quem fora
amante por seis anos, vivendo em “apartamentos separados e [na] mesma
cama” (KJ, p. 63). O sexo criou a intimidade, não o contrário. Reencontro
pelo telefone, sem corpo, sem olhos nos olhos, só voz, depois do
desaparecimento após anos. Não o pedido humilhado de uma mulher
apaixonada ao homem que não a ama mais de “A Voz Humana” de Cocteau.
“Você pensa agora que o telefone é uma forma de encontrar uma pessoa sem
verdadeiramente encontrá-la” (KJ, p. 57). Há todo um ritual cotidiano que
antecede. A sopa. O corpo quase nu, que se sabe depois envelhecido.
A sobremesa. O uísque. Novamente o uísque.
Começam a conversar, a jogar. É o outro, ele, Roy, que pede. O número
do telefone. Você quer dominar, achar razões para ligar. Você até acha.
Você quer controlar. Começa o streaptease. Primeiro, as roupas descritas, depois
o passado compartilhado aflora. Ironias e ciúmes. Os amigos perdidos no
mundo. Os amigos sobre quem se silencia não por pudor diante da morte, da
AIDS, mas para não ser redundante, talvez. Não há o que falar, nada para
esconder. Resta a constatação da mudança nos bares que fecharam, do corpo
que muda. De uma identidade gay transitamos para o horizonte da experiência
cotidiana. Aflora a mágoa. E você conduz a fala para que a “ternura ressentida
e silenciosa” (KJ, p. 64) não invada a conversa, para que não perca o controle
sobre a afetividade. Esta perda só vai acontecer no último conto, “When I fall
in love”, diante do amigo, amante morto. Ao outro, a voz é cedida, ao permitir
que dê a versão de sua estória, de seu primeiro encontro, mas só quando o
outro não está mais lá. Tarde demais. Não só as lembranças irrompem mas os
afetos. Mas nem tudo acaba com a morte. As pequenas brincadeiras fazem o
protagonista, envelhecendo, retornar à infância. Pelas memórias o corpo volta
a ser criança, sem passado, sem dor, sem ressentimentos, ainda que por um
momento: tapar e destapar o ouvido para não congelar em “Days of Wine and
Rose” e o chicotinho queimado no fim de “Autumn Leaves”. Em “When I Fall
in Love”, o fim é sério, sem a brincadeira infantil de “Autumn Leaves” que nos
resgata da auto-complacência, da auto-piedade, mas o jogo ainda não acabou.
“Se você nunca soube quando tudo começou, como vai poder adivinhar como
tudo vai terminar? é o que você se pergunta” (KJ, p. 147). É o que me pergunto,
nesta estória de amor entre leitor e autor, também plenamente assumida, a
única que se passa no Brasil, no Rio de Janeiro, como também no conto fora
desta coletânea, ainda inédito em livro, “Uma Casa no Campo”. Voltando a
“Days of Wine and Roses”, também é tarde demais para que o protagonista
assuma, nomeie seu passado, sua “longa relação sexual e amorosa”
(KJ, p. 65), nos seus limites, mas sem subestimá-la pela ironia. “Você sabe que
não foi um caso. Pode não ter sido paixão mas classificar o relacionamento 41
Ipotesi, revista de
estudos literários
de caso é minimizar experiências que te constituíram e te transformam no que
Juiz de Fora, você é hoje” (KJ, p. 66). Há uma luta entre a explicação, os porquês e o que
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p. 37 a 48 as coisas simplesmente são. Não há palavras suficientes. Com a idade, não
vem a sabedoria do velho narrador tradicional, o que nos chega desse romance
de contos mistura a constatação da perda e uma frágil sobrevivência num
cotidiano hostil, estrangeiro, que resiste a ser afetivizado, mas no entanto o é.
A lembrança final do gozo físico é como se instaurasse uma ética do desejo,
na constatação mesma do desamor, em que estes pares se nutrem um do
outro, não se opõem.
O pertencimento está num encontro passado. Amor entre estrangeiros.
Um, brasileiro, que sempre viaja, agora em pequena cidade do interior dos
EUA (poderia ser a mesma de “Autumn Leaves”). Outro, norte-americano em
NY, que nunca viaja, nunca muda de lugar, telefone. No final, vem a resposta,
Roy dá o troco. Muda de telefone e não permite que a companhia telefônica
avise o novo número. Os personagens estão num entre-lugar, que não é um
não-lugar, para usar o conhecido termo de Marc Augé. Não se trata de um
espaço de passagem impessoal. Apesar do incômodo, este espaço de trânsito
é um lugar afetivizado, que se situa também num entre-tempo, como aparece
em “Autumn Leaves”: “Você estava (e ainda está) convencido de que nada do
que se está passando nessa temporada de neve, frio e chuva está sendo feito
para durar” (p. 32). Não se trata de falar de um tempo atrasado, como de um
lugar reificadamente à margem, nem de um fluxo constante que tudo nivela,
nadifica, indiferencia. A melancolia existe não como idealização de um passado
morto mas trata-se de um “entre-tempo” (BHABHA, 1998, p. 338) que emoldura
e constitui um entre-lugar, na frágil possibIlidade de uma alegria minoritária
e não tanto de mal-estar de intelectuais à sombra de Adorno, que se recolhem
E não conseguem enxergar para além do dilema revolução ou um caos que
abra para autoritarismos. Aqui existe um certo cansaço, mas não ressentimento.
Não mais o tom empenhado, quase engajado, de “O Entre-Lugar do Discurso
Latino Americano”10, mas uma certa deriva entre fronteiras e barreiras que se
multiplicam e se deslocam. Silviano Santiago, trinta anos depois de seu ensaio
clássico, se recolhe, se afasta cada vez mais da figura de um intelectual maior.
Tempo de projetos menores, pensamentos débeis, sensibilidades frágeis para
o presente. O narrar, a experiência substituem as polêmicas de uma universidade
que cada vez mais se profissionaliza e se auto-legitima. A cada vez maior
visibilidade do escritor diante do ensaísta parece reafirmar esta escolha por
uma política do afetivo
Se para Silviano tudo parece estar tarde demais, o afeto revelado como
transitoriedade, lembrança e perda, há mesmo uma recusa da condição
estrangeira (“você passou a ter ódio de ser reconhecido como estrangeiro”,
KJ, p. 26) pela sua estigmatização em favor de um pertencimento no
passado ou em lugares públicos, o tom muda um pouco na procura do
encontro em Caio Fernando Abreu e Alexandre Ribondi, no sentido de
uma ética da deriva, valorizadora dos encontros momentâneos e de
uma felicidade estrangeira.
42 10 “Falar, escrever, significa: falar contra, escrever contra” (SANTIAGO, 1978, p. 19).
Afinal, por que estamos separados se sentimos tanta saudade? Afinal O entre-lugar das
homoafetividades
percorremos – você vindo e eu indo a mesmíssima avenida que percorre
idêntica em todos os detalhes sua cidade e a minha
Denilson Lopes
(Marilene Felinto)
11 Como se sabe o termo foi cunhado no século passado, anterior mesmo à emergência do termo
heterossexual. Não gostaria de entrar no debate se o termo é marcado por valores negativos,
decorrentes da sua medicalização e criminalização tão intensos que devesse ser substituído ou que
deva ser mantido por um esforço militante de explicitar e ressignificá-lo, defendido entre nós por
Luiz Mott. O que me interessa aqui é que o termo parece reificar um processo dual de constituição
da orientação sexual que encontra resistências não só entre intelectuais, mas na vida cotidiana.
12 O termo foi colocado em pauta no Brasil por Jurandir Freire Costa, no sentido de buscar expressões
mais ambíguas entre pessoas do mesmo sexo e menos essencialistas. Minha única ressalva é que
erotismo ainda remete a toda uma grande tradição de práticas e prazeres associados à sexualidade,
quando, por exemplo, falamos em literatura erótica. 43
Ipotesi, revista de
estudos literários
salvação” (CH, p. 34). Entre o suave desencanto, acertos de conta com o
Juiz de Fora, passado de Silviano e o arrebatamento quase místico de Caio, os contos de
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p. 37 a 48 Ribondi são suaves, delicados, mas nunca apontam para a transcendência.
A dor nunca tira a beleza do momento. A procura modesta não se encerra
com o fim da estória porque há uma outra estória. O momento não sacia mas
é o que temos. “É uma lástima o breve prazo de uma vida. Porque é sempre
longo o encontro entre dois corpos” (CH, p. 39). A felicidade não está nas
palavras, nem em redenções, mas em pequenos gestos como o colocar a mão
no ombro do outro, durante a caminhada, antes da despedida (CH, p. 41).
Em “A Saudade do Ar”, o tom é o de reencontro de ex-amantes. Aqueles
que ficam na lembrança, mortos ou esquecidos, do outro lado do telefone,
retornam. Encontro marcado, no sul da França, depois de longa ausência.
“Quando nos encontramos, ele teve vontade apenas de me desejar uma boa
noite e entregou as flores amarelas. Eu lhe entreguei as mangas-de-cheiro”
(CH, p. 44). Estórias são contadas, compartilhadas. Deitam juntos. “Quis me
beijar mas, no caminho entre a boca de Manuel e minha boca, ele deixou
exalar o primeiro suspiro do seu outono” (CH, p. 46). As lágrimas de Manuel
falam de partidas, de perdas, de solidão, tudo que pode ficar demasiado
pesado, piegas ao ser falado, algo que não consegue ser expresso. A intimidade
vem do observar um ao outro. A relação não coloca o sexo como central, mas
esta intimidade, que mesmo quando não há mais sexo, permanece. O tempo
não volta atrás, não houve reencontro, o que houve foi um encontro. Apenas.
Nada de irremediável, duradouro, nem a dor.
Em “O Derretimento da Neve”, o protagonista cai, o instrutor de esqui
ri. Convite para bebida mais tarde. Tudo muito rápido, nas primeiras linhas.
Sem recusa, negaceios, ironias, diferente dos contos de Silviano. Encontro em
meio a viagens. A cidade estrangeira se torna uma casa, um mundo enorme,
sempre à espera, para ser descoberta. E a casa do amante, Günther, onde
viveu por dois meses, é espaço de encontro, mesmo que haja uma despedida.
“A despedida foi feliz. Ou quase feliz. Um pouco feliz. Houve traços de
felicidade. Disfarcei os olhos, senão chorariam. Fiquei com Veronete para
vasculharmos a cidade até o fim” (CH, p. 93).
Quando as estrelas começarem a cair
Me diz, me diz o que que a gente faz aqui
(Renato Russo)
Referências Bibliográficas