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MEU PAI

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Therezinha Mello

MEU PAI

1ª. edição

Rio de Janeiro
2022
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MEU PAI – Memórias poéticas
Therezinha Mello
Copyright Therezinha Mello © 2022

Texto revisado segundo o Novo Acordo Ortográfico da


Língua Portuguesa. Todos os direitos reservados e
protegidos pela Lei 9.610 de 19/02/1998. Nenhuma parte
deste livro, sem a autorização prévia por escrito do autor,
poderá ser reproduzida ou transmitida, sejam quais forem
os meios empregados.

Designer gráfico: Clayton Miranda


Organização e revisão: Therezinha Mello
Coordenação: Carlos Frederico Cardoso

Reservam-se os direitos desta edição à


CAPITOLINA EDIÇÕES
www.capitolina.com.br
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CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

M527m

Mello, Therezinha, 1957-


Meu pai : memórias poéticas / Therezinha Mello. – 1. ed. –
Rio de Janeiro : Capitolina Edições, 2022.
158 p. : il. ; 21 cm.

ISBN 978-65-88765-03-6

1. Autobiografia – Escritoras. 2. Poesia brasileira. I. Título.

CDD – B869.8
Bibliotecária Roberta Maria de O. V. da Costa – CRB7 5587
Recomendamos que esta ficha catalográfica seja reproduzida nos padrões acima. Assim o
editor terá certeza da correta catalogação de seu livro nas bibliotecas e fichas de referências
4
usadas nos diversos setores associados a veiculação de livros.

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A vida sempre se me afigurou
uma planta que extrai sua
vitalidade do rizoma; a vida
propriamente dita não é visível,
pois jaz no rizoma.

O que se torna visível sobre a


terra, dura um só verão, depois
fenece... Aparição efêmera. (...)

mas nunca perdi o sentimento da


perenidade da vida sob a eterna
mudança. (...)

O que vemos é a floração — e


ela desaparece. Mas o rizoma
persiste.

C. G. Jung

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Sumário

PREFÁCIO 9

NOTA DA AUTORA 19

1 - NASCER - 1914 23

2 - REVOLUÇÕES - 1932 e 1935 35

3 - O SONHO - 1939 71

4 - PEDRAS NO CAMINHO - 1952 79

5 - SURPRESA - 1956 a 1957 91

6 - BIÁ TÁ TÁ - 1958 e 1959 109

7 - VIDA QUE SEGUE - 1960 em diante 121

8 - E O QUE FICA DE TUDO? 135

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PREFÁCIO

Este livro nasceu sob o signo do tempo


pandêmico, parido na cidade do Rio de Janeiro, em
circunstâncias inusitadas de isolamento e reclusão.
Mas, equivoca-se aquele que o pressupõe sombrio. A
obra reverbera o que teimou em persistir saudável no
ambiente insano. Algo de numinoso pleiteava, a todo
instante, que a consciência humana abdicasse da
indiferença e aprendesse com a dor dos mortos a
elevar-se de si para o outro. O ciclo das mortes sem
sentido e das verdades ignoradas precisava ser
interrompido, a fim de dar lugar não só à renovação
da vida, mas também a uma outra História.
Therezinha Mello coaduna-se com o que há de
transcendente no espírito do tempo e, em prosa e
verso, exerce a mais basilar das formas de empatia: a
que vibra na frequência da gentileza, do perdão e da
cura, em direção à própria ancestralidade.

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Therezinha Mello

Pegar ao colo o recém-nascido que a autora


nos entrega é aconchegar memórias muito antigas,
até então sem porvir, enclausuradas em fotos, cartas e
bilhetes, emaranhadas às notas de velhas canções,
subentendidas na simbologia de uma bandeira,
confiscadas da caderneta do serviço militar.
Memórias que se abriram à possibilidade de uma
escrita. O trabalho de pesquisa e concatenação das
fontes disponíveis permitiu que a autora imprimisse
coerência entre o narrado e o real, viabilizando a
consistência autobiográfica. É cumprido, dessa
forma, o pacto entre o escritor e o texto, como
pressuposto pelo pensador alemão Walter Benjamim:
em toda escrita de si há um contrato com a verdade.

Toda narrativa biográfica, portanto, lida de


alguma forma com a premência de ter que reescrever
os fatos sem, entretanto, desconectar-se da realidade.
A reorganização do real não pode implicar em perda
de nexo ou coerência. Existem, contudo, memórias
por demais tênues para contratar o pacto

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Meu Pai -memórias Poéticas

benjaminiano, assentadas tão somente em


impressões. São murmúrios do passado — um
cheiro, uma cor, uma dor de não sei o quê. Sem a
tangibilidade, resta ao autor contemplar a biografia
sob outro ângulo, o do imaginário. Ainda que nem
tudo possa ser visto e atestado, não se trata de ficção,
mas de uma versão possível do real. Therezinha
utiliza-se da linguagem poética para imaginar as
origens das suas impressões mais sutis. Seu texto
preenche as lacunas da memória, deslizando para os
contornos subjetivos da prosa poética, por exemplo,
quando precisa retornar à mais tenra infância, a fim
de descrever a si, ainda um bebê, e ao Reino da Pedra
Pontuda. Versos próprios ou alheios, inseridos ao
longo do percurso, vão aguçar a percepção do leitor
para o que é essencial na narrativa, como em “O que
havia”, sequência de imagens cotidianas, cuja força de
sentido é suscitar, inversamente, o que deixou de
haver. Ou, ainda, em “Gaivotas”, em que a poetisa dá
voz ao pai que devaneia em frente ao mar e dele intui
afetos que nunca pôde constatar.

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Therezinha Mello

Ao problema das fontes primárias e das


impressões tênues dos sentidos, agrega-se ainda outra
dificuldade para a autora, que é a de se deparar com
reminiscências propositadamente abafadas ou
distorcidas. Trata-se de um tema que intrigou
pesquisadores de áreas diversas, como a psicologia, a
sociologia e a filosofia. Michael Pollak, sociólogo e
historiador austríaco, chama de memórias subterrâneas
as lembranças banidas voluntariamente do cotidiano,
quando grupos de afeto são impelidos a abafar as
vozes de seus mortos queridos. Por que razão o
fariam? Por vergonha, medo, precaução?

Seja como for, o que foi silenciado é capaz de


resistir ao esquecimento e persistir. Em surdina, ao
invés de perder força, aquilo que está abafado exerce
estranho fascínio sobre os vivos. Os que foram
calados esperam pacientemente por uma escuta
cuidadosa que ouse conhecer e garantir-lhes outro
sentido à existência. Entretanto, é preciso uma aguda
sensibilidade para compreender a hora exata de

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Meu Pai -memórias Poéticas

publicizar o que está tão bem guardado em


subterrâneos voluntários, não antes de os mortos
fazerem jus a um julgamento sem vingança, não
depois de se tornarem anacrônicos.

Sobre a expectativa das almas, por natureza


insondável, C. G. Jung divaga em Memórias, sonhos e
reflexões, 1986: ...aparentemente, as almas dos mortos só
“sabem” o que sabiam no momento da morte e nada mais.
Daí seus esforços para penetrar na vida, para participar do
saber dos homens. (...) tenho a sensação de que elas se colocam
diretamente atrás de nós, na expectativa de perceber que
respostas daremos a elas e ao destino. Não há certezas na
colocação junguiana, são conjecturas, mas à literatura
é facultado penetrar em regiões imperscrutáveis. A
escrita permitiu que Therezinha nunca perdesse de
vista a alma postada atrás de si, cujo ideal silenciado
ansiava por sua voz. Ouvidos apurados, a autora
entreabre as cortinas da sociedade sergipana de
meados do século XIX, espia os estertores da Velha
República, contempla os antagonismos políticos dos

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Therezinha Mello

anos 30 e a ascensão de Getúlio Vargas, repara nas


misérias da II Grande Guerra, enquanto adentra com
delicadeza os subterrâneos da linhagem familiar. De
lá, traz para o centro da cena aquele que lhe
sussurrava às costas: seu pai, João Coelho,
nordestino, migrante, uma alma idealista.

É preciso coragem para revirar os desvãos


daquelas recordações que foram encobertas pelo véu
da História. A palavra é propositadamente grafada
aqui com inicial maiúscula, a fim de identificá-la
como a versão oficial dos vencedores e diferenciá-la
das histórias silenciadas dos vencidos. Ao abordar o
contexto político do Brasil dos anos 30, a autora terá
que enfrentar a questão de a qual lado pertencem as
memórias que ressuscita. A referência a D. Quixote,
em “Revoluções”, dá a dica. É de um sonho
impossível que se fala. Estaria João Coelho a golpear
moinhos de vento? A certa altura, Therezinha indaga
sobre a motivação política do pai, no cenário de
fundo: Consciência, curiosidade, um pouco desses dois

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Meu Pai -memórias Poéticas

estímulos? O leitor atento terá identificado a resposta


ao final de “Nascer”, em versos de advertência que
ressignificam a sina do menino João. Não é o enredo
de um perdedor o que temos. É de um guerreiro que
se trata:

“que ninguém despreze:


esse nascer
tem um sonho,
esse nascer
quer lutar.”

Ao cabo, terá a autora reconstruído esse pai.


Um esforço de reorganização do real que demandou
toda uma existência e que é possível ver desde os
seus poemas mais antigos, como no trecho de
“Inventando histórias”, de 2011:

“Desenhos em claro escuro,


eu inventava um pai.
Que só eu tinha.

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Therezinha Mello

Que me contava histórias,


ainda muito cedo.
Eu inventava um pai só meu.
Que era
de brinquedo.”

Os versos fazem supor que ressignificar o


pai tenha sido a razão de a poesia ter ido morar tão
precocemente no “Reino da Pedra Pontuda”.
A escrita é um ato substituto do brincar infantil, diz
Freud no texto “Escritores criativos e devaneios”, de
1907: Não se esqueçam que a ênfase colocada nas lembranças
infantis da vida do escritor – ênfase talvez desconcertante –
deriva-se basicamente da suposição de que a obra
literária, como o devaneio, é uma continuação, ou um
substituto, do que foi o brincar infantil. Para ele, o escritor
criativo brinca como uma criança, reinventando a si e ao
mundo sem perder o sentido do real.

Com esta obra Therezinha conclui o seu


desenho. Reinventa a identidade paterna, pinçando as
recordações tangíveis e as imaginárias, as manifestas e

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Meu Pai -memórias Poéticas

as subterrâneas, para em seguida amalgamá-


las em prosa e verso. Ao fazê-lo, regenera com
empatia as feridas ancestrais. Inverte com sua escrita
a própria genealogia. É a filha quem transmite ao pai
o legado do pertencimento, é ela quem
oportuniza outra “História”. É a filha quem
dá à luz o pai. E porque todo nascer faz sentido, todo nascer
tem razão, reconstrói a si mesma na cura desse outro.

Mirian Calabria
Poeta e ensaísta

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NOTA DA AUTORA

Este livro dá início ao Projeto Memórias da


Capitolina Edições, dedicado à publicação de
registros, autobiográficos ou não, sobre pessoas e
famílias. Histórias de vida que precisam ser
iluminadas para assim, e a partir daí, tornarem-se
memórias. Por não ser justo esquecê-las.

O conjunto de informações, esparsas e bem


peculiares, que de forma intuitiva fui colecionando
sobre meu pai, ganhou esse formato. Virou
finalmente uma história; ou, talvez, tenha sido ela, a
própria história, que já me espreitava desejando
nascer. Ver o sol e espreguiçar-se, para então cair no
mundo e ser contada. Sair da sombra, por assim
dizer.

Meu pai morreu quando eu ainda não tinha


chegado aos dois anos de idade. Não tenho
recordações conscientes de nosso convívio tão fugaz,

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Therezinha Mello

mas conheço, no entanto, a força de sua


profundidade. Ao longo da vida nunca desisti de
respigar os vestígios afetivos que poderiam ter ficado
desse nosso encontro, mapeando essa ausência, para
lembrar Mia Couto. Não se tratava de uma abstração:
meu pai vivera ao meu lado. Mas quem era ele além
daquela foto na parede?

Sempre me falaram de sua personalidade


alegre. Que gostava de brincar. Não duvido que
tenha sido em “faz de conta”, que combinamos tudo.
Uma grande brincadeira em que primeiro ele sumia,
depois eu procurava. Precisaria seguir as pistas
atentamente, até conseguir preencher o espaço vazio.
Só assim, um dia, ele apareceria de novo. Seria esse o
jogo. Devo ter tido medo e desejado brincar de outra
coisa. Não devo ter gostado da ideia sem graça de
que ele teria que sumir, e sumir por muito tempo.

Imagino que devem ter havido coisas


rotineiras, chamegos de todo pai, e de toda filha. Um
último beijo, um último olhar, uma lágrima. É certo

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Meu Pai -memórias Poéticas

que, em algum instante, nossas mãos se soltaram e


então sentimos, os dois, enorme pena. Uma dor
indefinível por não podermos continuar a existir
juntos, como todo mundo.

Antes de tomar seu lugar na moldura que


permaneceria anos na parede da sala, ele deve ter
aberto minha mão minúscula e nela colocado o que
me disse ser um presente só meu. Com a
recomendação de que eu teria que crescer um pouco
para então começar a usar e de que isso faria parte do
jogo também. Depois deve ter me falado baixinho:
Deixo com você o dom de escrever. Tudo o que você pensar,
tudo o que sentir, tudo o que imaginar. Não é maravilhoso?
Ele prometeu que seria divertido pela minha vida
inteira e, olha, que tem sido mesmo.

Este livro é o último desafio da nossa


brincadeira. Construí a imagem de meu pai pouco a
pouco, seguindo pegadas e unindo pontos. Hoje o
tenho de volta, ocupando o lugar que sempre foi dele
por direito. Juntos no mesmo espaço-tempo,

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Therezinha Mello

resistentes sob o sentimento da perenidade da vida


definido por Jung. Entre cumplicidades e
semelhanças, mergulhados em requintada sutileza,
restauramos nosso vínculo. Somos de novo pai e
filha nessas memórias poéticas.

Therezinha Mello

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1 - NASCER - 1914

Que eu seja volvido criança e o fique sempre, sem


que importem os valores que os homens dão às
coisas, nem as relações que os homens estabelecem
entre elas.
Fernando Pessoa
Livro do desassossego

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Meu Pai -memórias Poéticas

1914. Quinta-feira, 25 de junho, nasce o


menino João Coelho de Mello, em Aracaju, Sergipe.
Filho de Ceres Bastos Coelho e Dácio Vieira de
Mello, tinha três irmãos: Fernando, Décio e José
Joaquim. João Coelho tornou-se, assim, o caçula da
família.

Os pais tinham marcante história de amor


para contar. Dácio, advogado e jornalista, era homem
de boa formação intelectual. Comparado à família de
Ceres, tinha limitados recursos financeiros.

Dácio Vieira de Mello

Ceres tinha sobrenome pomposo — Bastos


Coelho — e esse fato dificultou bastante o
relacionamento dos dois, já que o pai dela não

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Therezinha Mello

aprovou o namoro em função da distância social que


se colocava entre eles.

Ceres Bastos Coelho

Os Bastos Coelho eram muito conhecidos em


Aracaju, especialmente por seu personagem mais
importante, José Rodrigues Bastos Coelho,
proprietário de salinas e navios a vela. Era o pai de
Ceres. Criou uma bandeira para seus navios, ainda no
século XIX, que em 1920 foi oficializada como a
bandeira do estado de Sergipe.

Contrariando o pai, Ceres decidiu casar-se


com Dácio e tornar-se Ceres Coelho de Mello, o que
fez com que o velho Bastos Coelho a deserdasse.
Mas Ceres sustentou com firmeza sua escolha,

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Meu Pai -memórias Poéticas

bastante incomum naqueles tempos. Era o início do


século XX numa pequena cidade nordestina, o
mundo era predominantemente masculino e moça
“de família” não desobedecia assim a um pai.
Sobretudo um pai rico e com tanto poder.

Naquele ano tinha início na Europa a


Primeira Guerra Mundial, que duraria quatro anos.
No Brasil, a escravidão havia sido abolida há apenas
vinte e seis anos. Vivíamos, portanto, o pós-
escravagismo, com as aflitivas diferenças sociais e
laços de dependência que, até hoje, fazem parte de
nossa cruel realidade. Na região de Sergipe e Bahia
não foi diferente, com a formação de grupos de
negros ex-escravizados — quilombolas — que
precisavam continuar trabalhando nas fazendas em
condições análogas à escravidão.

Em Aracaju, o sistema de abastecimento de


água canalizada havia sido implantado em 1909 e,
naquele ano de 1914, as ruas vinham sendo
pavimentadas com pedras regulares, além de estarem

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Therezinha Mello

sendo realizadas obras de embelezamento, esgotos


sanitários, estradas de ferro, drenagem e eletricidade.

Ceres, a despeito de ter demonstrado força ao


abandonar sua condição social privilegiada, precisou
ajustar-se a nova condição financeira bem diferente,
na companhia do marido. Os irmãos, especialmente
as irmãs Alice e Julieta, procuraram apoiá-la
financeiramente na criação dos filhos. Mas eram
pessoas de temperamento forte e a dependência
financeira costuma arrastar consigo outras tantas, de
ordem psicológica.

João Coelho, assim como seus irmãos,


estudou em boas escolas de Sergipe. Gostava de ler e
ao longo da vida fez disso, além de hábito, uma
necessidade. Escrevia bem, comunicava-se com
facilidade, era menino simpático e espirituoso. A foto
o revela bem-comportado e sério, aos doze anos de
idade, em 1926.

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Meu Pai -memórias Poéticas

Um dos irmãos de Ceres, Alice e Julieta,


recebeu o nome do pai: José Rodrigues Bastos
Coelho. Nascido em 25 de novembro de 1889,
formou-se médico em 1913, pela Faculdade de
Medicina do Rio de Janeiro, tendo clinicado também
em Goiás e Minas Gerais. Autor da obra Coisas e
vultos de Aracaju, foi um dos fundadores da Cruz
Vermelha na cidade de Santos, São Paulo, colaborou
em jornais e revistas e escolheu, para sua tese de
doutoramento, o tema Defesa da maternidade. Em 1931,
por seu intermédio, enquanto Interventor Federal, e
com o apoio do governo de Sergipe, foram enviadas

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Therezinha Mello

oito jovens sergipanas para ingressarem na Escola de


Enfermagem Anna Nery, no Rio de Janeiro. Entre
elas, a pioneira Opelina Rollemberg.

Homem generoso, profissional competente e


atuante, ficou conhecido na família carinhosamente
como “Dr. Bastos” e faleceu em 1967, no Rio de
Janeiro.

Alice e Julieta nunca se casaram, não tiveram


filhos e transferiram aos sobrinhos todo seu potencial
maternal, revestido de autoritarismo e preconceito.
Conseguiram reduzir o protagonismo de Ceres diante
dos filhos, chamando a elas afeto e respeito dos
sobrinhos. João Coelho, como os irmãos,
desenvolveu apreço especial pelas tias. Essa condição
trouxe consequências para futuros relacionamentos
familiares.

Os quatro rapazes cresceram muito “bem


criados”, ainda que a família Bastos Coelho já vivesse
a decadência de seus recursos, com o falecimento do

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Meu Pai -memórias Poéticas

patriarca José Rodrigues. Todos obedeceram à


tendência migratória dos nordestinos em geral e
seguiram, cada um a seu tempo, para o Rio de
Janeiro, em busca de futuro mais promissor.

Ceres, já viúva, também decidiu deixar


Aracaju como todos os irmãos, já que nenhum deles
teve interesse em dar continuidade aos negócios do
pai.

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Therezinha Mello

Sina

Esse nascer,
ainda só um choro de menino,
promessa muda e interrogação,
que ninguém se engane:
esse nascer é destino,
esse nascer é paixão.

Esse nascer,
de benjamim tão risonho,
que acaba de nos chegar,
que ninguém despreze:
esse nascer tem um sonho,
esse nascer quer lutar.

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Meu Pai -memórias Poéticas

Esse nascer,
mesmo em terra tão pequena,
brasileira e nordestina,
que ninguém se esqueça:
esse nascer já é pena,
esse nascer, já é sina.

Therezinha Mello

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2 - REVOLUÇÕES –
1932 e 1935

É minha lei, é minha questão


Virar esse mundo, cravar esse chão
(...)
E amanhã, se esse chão que eu beijei
For meu leito e perdão
Vou saber que valeu delirar
E morrer de paixão.

Chico Buarque e Ruy Guerra


Sonho impossível

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Therezinha Mello

Em março de 1930 o voto não era secreto.


Além disso, não votavam nem mulheres, nem
analfabetos. Júlio Prestes saiu vitorioso nas urnas e
aguardou alguns meses para tomar posse. Enquanto
isso, tanto ele como Getúlio Vargas retornaram a
seus estados de origem: São Paulo e Rio Grande do
Sul.

Julio Prestes foi o último Presidente da


chamada República Velha brasileira, mas não chegou
a assumir no cargo. Prestes foi impedido pelo
movimento denominado Revolução de 30, iniciado
nos quartéis gaúchos e depois estendido às terras
mineiras. Um golpe que levou ao poder Getúlio
Vargas.

Vargas, de 1930 até 1934, tornou-se assim,


chefe do Governo Provisório. Isso porque o golpe
tinha gerado o término das eleições, o fechamento do
Congresso e tornado nula a Constituição de 1891, até
então em vigor. O caráter temporário do Governo
devia-se ao aguardo de nova Constituição.

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Meu Pai -memórias Poéticas

O que foi a
Constitucionalista de 1932

Até 1930 dominavam o país as oligarquias de


São Paulo — Barões do Café — e de Minas Gerais
— gado leiteiro — que se revezavam na Presidência
da República e se locupletavam com as vantagens
dessa condição. Esse período ficou conhecido como
o da “política do café com leite”. Tal sistema de
oligarquias, a certa altura, começou a ser contestado
por outras, ligadas principalmente ao Rio de Janeiro,
Rio Grande do Sul e Bahia, que também pleiteavam
participação nas decisões políticas.

Ao se aproximarem as eleições de 1930, seria


a vez de Minas Gerais eleger seu candidato. No
entanto, o presidente Washington Luís indicou para
seu sucessor o paulista Júlio Prestes. Sendo assim, às
vésperas das eleições, os estados de oposição,
apoiados pela oligarquia mineira, formaram uma
frente que lançou a candidatura, em chapa
independente, de Getúlio Dornelles Vargas.

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Meu Pai -memórias Poéticas

Em 1932, no entanto, mantinha-se o


Governo Provisório de Vargas, de caráter ditatorial,
gerando insatisfações. Revoltavam-se as antigas
oligarquias cafeeiras, a classe média paulista, bem
como boa parcela de brasileiros desejosos de que
Getúlio legitimasse o Governo com a nova
Constituição. Começava então a desenhar-se em São
Paulo uma revolta armada.

O assassinato em maio de 1932, de quatro


jovens estudantes em uma passeata contra Getúlio
Vargas nas ruas de São Paulo, criou o que
poderíamos chamar de primeiros heróis da
Revolução Paulista: Martins, Miragaia, Dráusio e
Camargo, o MMDC, oficializado mais tarde como
entidade.

A Revolução Constitucionalista de 1932 teve


início em São Paulo, com um saldo final de mais de
1000 mortos, número superior ao observado entre os
brasileiros que participaram da 2ª. Guerra Mundial. A

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Therezinha Mello

luta foi sangrenta, com aviões, fuzis, canhões e


baionetas e durou quase três meses.

Os paulistas contavam com o apoio de tropas


do Rio de Janeiro, Minas Gerais e Rio Grande do Sul,
que infelizmente não chegaram. A escassez de
armamentos era tanta que usavam o recurso de
matracas, instrumentos que, com um veloz giro de
manivela, geravam ruído semelhante ao de
metralhadoras, com o intuito de iludir o adversário.
Em 28 de setembro, os paulistas renderam-se às
tropas getulistas.

O saldo positivo de tantas vidas perdidas —


quando brasileiros lutavam contra brasileiros, por
igualdades democráticas, alguns, e pelo retorno do
status quo, outros tantos — foi a decisão de Getúlio
Vargas de finalmente criar a Assembleia Constituinte
e aprovar a Constituição de 1934.

A Era Vargas, iniciada em 1930, permaneceria


até 1945, quando Getúlio foi deposto. Ela

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Meu Pai -memórias Poéticas

compreende o Governo Provisório, de 1930 a 1934,


o Governo Constitucional, de 1934 a 1937 e o
Estado Novo, de 1937 a 1945.

Voluntários – Quem lutou em 32


“Para completar o Batalhão, aliste-se!”. Essa era a
chamada de um dos cartazes divulgados pelo
MMDC, conclamando jovens voluntários para a
guerra paulista e organizando a revolução. Os jornais
também exerciam esse papel de estimular a ida para o
front. Havia mesmo nas ruas provocações nesse
sentido, tanto masculinas como femininas: Se não veste
farda, veste saia! . Era o exército constitucionalista que
se formava.

João Coelho, em 9 de julho de 1932, quando


teve início a Revolução Constitucionalista, acabava de
completar dezoito anos. Com tão pouca idade,
juntou-se àqueles que acreditavam que a ditadura de
Vargas não era o melhor para o Brasil.

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Therezinha Mello

Apresentou-se ao batalhão de Mogi das


Cruzes, São Paulo, onde hoje existe um museu com
acervo de imagens e objetos, como um capacete
perfurado por tiro.

Perguntado sobre o medo que esses rapazes


sentiam ao serem compelidos à luta, um veterano do
Batalhão 14 de julho afirmou muitas décadas mais
tarde: “Para um rapaz de 20 anos da geração de 32, não
existia essa palavra. A palavra medo era inexistente. Nós
estávamos dispostos a qualquer sacrifício, lutando por São
Paulo.” .

Aos voluntários era oferecido um curto


período de treinamento. A partir daí, havia idealismo,
arroubo de juventude, muita vontade de vencer e, em
muitos casos, falta de opção. “Tenho uma barbearia no
Largo de São Bento... Vim porque não tinha mais barbas
para fazer em São Paulo. Estão todos nas trincheiras.” .

Ainda que movido por variadas razões, o


jovem soldado de 32 arriscava mais que a pele, mais

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Meu Pai -memórias Poéticas

que a sorte. Era a vida que arriscava, em luta


sangrenta por ideais democráticos.

Em cada um daqueles jovens que se alistavam


— e em meu pai, naturalmente — devia haver um
pouco de Martins, Miragaia, Dráusio e Camargo,
considerados mártires daquela revolução. O quarteto
MMDC pode ter sido a circunstância que aumentou a
indignação, despertou a coragem e fez nascer o
desejo heroico naqueles voluntários.

Meu pai, àquela altura, morava no Rio de


Janeiro. Na única foto que registra sua participação
no conflito, entre dois companheiros exibia o cigarro
e o semblante entre sério, irreverente e desafiador.
No verso, a anotação feita por ele à caneta-tinteiro:
Quando em Mogi das Cruzes - 1932. Consciência,
curiosidade, um pouco desses dois estímulos? Talvez
— como a maior parte de nós, quando meninos
ainda — experimentasse com receios e estranheza a
vida adulta que somente começava e buscasse apenas
seus pares, seus iguais, sua “turma”. Tinham um

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Therezinha Mello

objetivo comum e a força da pouca idade. Isso lhes


bastava.

João Coelho – Revolução de 32

Se em Aracaju, havia tido infância com


escolas de bom nível, pais dedicados e avô abastado,
na juventude percebia em torno de si, já desde aquela
época, um Brasil desigual. Como um país
democrático poderia prosseguir sem sua
Constituição? Como continuar sob a batuta de um
ditador? Era sua natureza lutadora que brotava com
força. A justiça social torna-se bandeira de quem tem
consciência e, aos dezoito anos, somos donos do

44
Meu Pai -memórias Poéticas

mundo. Especialmente vestindo farda, calçando


botas, usando capacete e integrando um batalhão.

O mais relevante, no entanto, é que a


experiência de combater, por quase três meses,
distante da família e dos amigos, em inimaginável
ambiente de guerra, deve certamente lhe ter deixado
bem vivo o sabor da luta. Mostrado a ele que ideais
democráticos precisam de bem mais que
simpatizantes. E que a luta, com todos os seus riscos,
vale a pena. Uns saem dela como heróis. São poucos.
A maioria permanece anônima, totalmente
desconhecida. Mas são esses, os que arriscam, os que
parecem estranhos ou ingênuos, os que quebram
paradigmas, os que sofrem largamente por
acreditarem numa ideia, são esses os que mudam o
mundo.

João Coelho deve ter tido na


Constitucionalista de 32, a primeira aprendizagem
sobre si mesmo e sua natureza, da qual jamais
conseguiria fugir. Percebeu muito cedo que era

45
Therezinha Mello

preciso agir, que tudo poderia ser diferente e que ele


tinha um papel a cumprir. Não poderia desistir.

A revolução comunista de 35

Muitos acreditavam e diziam àquela época,


que era no quartel que um jovem “aprenderia a ser
homem”. Um traço machista daquela sociedade, que
associava a disciplina rígida da vida militar a
masculinidade. O fato é que se muitos, uma vez
cumprida a obrigação de alistar-se, mudam
completamente a opção profissional, outros tantos se
sentem, de fato, atraídos pela carreira.

Nas primeiras décadas do século XX, os


recrutas que se alistavam no Exército Brasileiro
passavam a ser portadores de um documento
fundamental: a Caderneta Militar.

46
Meu Pai -memórias Poéticas

Além de foto e impressões digitais, continha


anotações sobre o militar e tíquetes para passagem
em transportes públicos.

Os dados fornecidos sobre seu portador eram


os seguintes: nome, altura, cor, tipo de cabelos, tipo
de barba (se raspada ou não), cor dos olhos, tamanho
da boca, formato do rosto e do nariz. Se era leitor, se
sabia escrever, se sabia contar, se tinha outros sinais
relevantes ou característicos. Atualmente, um
documento como esse é vendido a colecionadores

47
Therezinha Mello

por apenas R$ 20,00. Essencial para rapazes como


João Coelho, no início dos anos 30, tornou-se hoje
simples curiosidade, embora revele bastante sobre
aquele momento social brasileiro. Um país de negros,
poucos mais de quarenta anos após a abolição da
escravatura e que, desde o Império, empreendia
esforços para embranquecer, como faz até hoje.

Cabelos crespos, lábios grossos, nariz largo,


não saber assinar o próprio nome, nem ser capaz de
ler ou contar constituía um conjunto de informações
discriminatórias, que dificultavam bastante a vida de
um jovem àquela época. Especialmente porque se
colocava ao lado da fotografia, “de frente, sem
sorrir”, como que vaticinando um futuro de muitos
entraves.

48
Meu Pai -memórias Poéticas

Parte interna da Caderneta Militar


de Fernando Coelho de Mello,
irmão de João Coelho – III RI – 1923

Era comum que rapazes nordestinos, ou de


outros pontos do Brasil, vissem no serviço militar
uma oportunidade de viajar para o Rio de Janeiro,
movidos pela curiosidade de conhecer e viver na
Capital Federal. Tinha sido assim com João Coelho
que, em 1935, ano em que completaria sua
maioridade, já era Sargento do Exército, no III

49
Therezinha Mello

Regimento de Infantaria - RI, Praia Vermelha, bairro


da Urca.

Curiosamente, neste mesmo ano, Dalvo, seu


colega de quartel, Sargento como ele, precisou
receber a irmã, que chegaria de navio ao Porto do
Rio de Janeiro, vinda de Aracaju, e pediu a João
Coelho que o acompanhasse. Os dois haviam se
tornado amigos a partir da coincidência de serem
conterrâneos. João Coelho era bem-humorado e,
como estavam de folga, aceitou o convite.

Partiu com Dalvo para o porto, sem saber


que ali conheceria a mulher que seria sua esposa.
Minha mãe, Adelia. Ingênua no imenso Rio de
Janeiro, muito séria e com toda a beleza de seus vinte
anos. Eu gostava de brincar com ela: “— Que sorte a
sua! Já encontrou o marido esperando no desembarque!”. Ela
sempre sorria, disfarçando a alegria da recordação.
Gostava de contar que desembarcara usando chapéu,
como era normal entre as moças. A elegante peça se
incluiu no vestuário feminino, tornando-se

50
Meu Pai -memórias Poéticas

indispensável, por exemplo, para ir ao Centro da


cidade, ao cinema ou visitar amigas.

“ Oh! ter vinte anos sem gozar de leve


A ventura de uma alma de donzela! (...)
Oh! nos meus sonhos, pelas noites minhas
Passam tantas visões sobre o meu peito! (...)
Bate meu coração com tanto fogo!”

Álvares de Azevedo
Lira dos vinte anos

Os três — garotos ainda — tornaram-se cada


vez mais unidos. Ela, com esperança de junto com o
irmão trazer o restante da família que deixara em
Sergipe. Eles, João Coelho e Dalvo, identificados
como “melhores amigos” pelo afeto e pelas visões de
mundo, o que incluía o amor à farda e às opções
políticas voltadas à justiça social.

Não há imagens dos três juntos em 1935. Há


um flagrante do carnaval, com meu pai acompanhado

51
Therezinha Mello

de tio José, ambos fantasiados de marinheiros, talvez


ao som do sucesso daquele ano, a marchinha Grau
dez, de Lamartine Babo.

“ A vitória há de ser sua, sua, sua,


moreninha prosa
Lá no céu a própria lua, lua, lua,
não é mais formosa,
Rainha da cabeça aos pés,
Morena eu te dou grau dez!”

Da direita para a esquerda: João Coelho,


José Joaquim, seu irmão, com a esposa, Zizi, em 1935

Tornou-se hábito vermos nossos


antepassados em fotos desgastadas com a cor do

52
Meu Pai -memórias Poéticas

tempo passado e sisudos, como era de praxe. Mas ali


não. Ali não havia rugas ainda; havia sorrisos e o viço
da mocidade. Os três acreditavam que preocupações
tinham solução e que o mundo se multiplicava em
inúmeras possibilidades. Havia esperanças
interioranas, muito bem querer e sede de futuro.
Costumamos ser assim quando mal acabamos de
dobrar a esquina que nos tira da adolescência e uma
seta nos aponta que a vida adulta, fica logo ali na
frente. Não foi diferente com eles. Mas 1935, do
ponto de vista político e social, se desenhava
conflituoso e polarizado. Estávamos a quatro anos
do início da II Guerra Mundial e crescia mundo afora
o movimento antifascista.

Na Alemanha a força aérea nazista era


organizada secretamente, Hitler instituía o serviço
militar obrigatório e assinava dois decretos. Um que
concedia cidadania alemã apenas a quem tivesse
“nacionalidade alemã ou de sangue afim” e outro que

53
Therezinha Mello

definia todos os judeus como “não sendo de sangue


alemão”.

Na Inglaterra, Watson Watt patenteava o


radar, de importância fundamental na Segunda
Guerra e a Rússia continuava sob o domínio de
Stalin.

No Brasil, como já vimos antes, vivíamos a


Era Vargas com Getúlio, cujo estilo, sem sombra de
dúvida, era visivelmente ditatorial. Essa característica
fez com que parcela relevante do movimento
operário se mostrasse insatisfeita. Não só com a
forma pela qual o Governo interferia na organização
dos sindicatos, como com as dificuldades que
encontravam para lutar por seus direitos. A carteira
de trabalho, que passou a ter caráter obrigatório a
partir também de 1934, tornou-se instrumento de
controle do Governo sobre os trabalhadores, a partir
dos dados cadastrados. Através dela, participantes de
greves e manifestações eram rapidamente
identificados e presos. Essa mesma linha de

54
Meu Pai -memórias Poéticas

raciocínio levou o Presidente Vargas, em abril de


1935, a sancionar a Lei de Segurança Nacional,
apelidada de Lei Monstro. A medida era resultante do
descontentamento do Governo em relação aos
movimentos dos trabalhadores.

A Lei de Segurança Nacional, meses após sua


criação, colocou na ilegalidade a Aliança Nacional
Libertadora - ANL, uma organização política de
oposição a Getúlio Vargas e que tinha, na sua
composição, os chamados “tenentes”, jovens oficiais
oriundos da revolução de 30 e os comunistas. Eram
os aliancistas.

Um nome surgia no Brasil nesses anos 30,


que entraria para a História e afetaria fortemente a
vida de João Coelho: Luiz Carlos Prestes. Opositor
de Getúlio, o jovem militar Prestes nos anos 20 tinha
liderado o movimento político-militar de extrema-
esquerda denominado Coluna Prestes, que combatia
o governo de Arthur Bernardes.

55
Therezinha Mello

Deslocando-se pelo interior do Brasil


conheceu nossas imensas desigualdades sociais. Em
1927 precisou exilar-se na Bolívia, quando se
aproximou do PCB - Partido Comunista Brasileiro,
procurado por seu respectivo Secretário Geral e, em
1930, anunciou sua adesão ao comunismo. Luiz
Carlos Prestes defendia a revolução agrária e anti-
imperialista no Brasil. O latifúndio e o imperialismo
eram considerados os primeiros obstáculos a serem
vencidos para que o comunismo pudesse ser
implantado por aqui.

Em 1931, mudou-se para Moscou, onde


exerceu a profissão de engenheiro, além de estudar
marxismo e leninismo. Em 1934 foi aceito como
membro do PCB por ordem da Internacional
Comunista e foi, em reunião realizada em Moscou,
que ficou decidida a intenção de se promover, no
Brasil, uma revolução armada. Era a Revolução de
1935 — que aconteceria em novembro daquele ano,
na Praia Vermelha, Rio de Janeiro — que ali nascia

56
Meu Pai -memórias Poéticas

como ideia. O objetivo era tirar Getúlio Vargas do


poder.

A intenção da Internacional Comunista ao


criar partidos era consequentemente conquistar o
poder e implantar o comunismo mundo afora, a
exemplo do que ocorrera na Rússia em 1917. Já em
dezembro desse mesmo ano, Prestes deixou a União
Soviética para retornar ao Brasil, onde chegaria com
identidade falsa, acompanhado de Olga Benário,
militante da Internacional Comunista. O casal
manteve-se, a partir daí, no Rio de Janeiro, na
clandestinidade. Com eles chegaram, igualmente sob
identificações falsas, assessores da Internacional
Comunista. A efervescência política era grande.

Prestes era um homem inteligente, estudioso


e articulado. Personalidade forte e determinada. Um
líder que conquistou jovens de sua época, desde os
tempos de militar, depois capitaneando a Coluna
Prestes e também nesse seu retorno ao Brasil, já
integrando o movimento comunista. Com projeção

57
Therezinha Mello

nacional, ganhou a alcunha de Cavaleiro da


Esperança.

“(...) são gerações para as quais Prestes foi uma


figura legendária nesse período. O Cavaleiro da
Esperança. Nós, os garotos, torcíamos pela Coluna.
Dentro de nossa inconsciência política, mas com uma
veneração enorme por aquele jovem comandante.”

Tenente Apolônio de Carvalho - 1935

Nos quartéis, rapazes militares que se


identificavam com os valores da ideologia,
enxergavam em Prestes a possibilidade quase mágica
de mudar o mundo para muito melhor, a partir de
suas convicções. Tanto João Coelho, como seu
inseparável amigo e futuro cunhado Dalvo, estavam
juntos nesse sentimento e na decisão de participar da
revolução que se desenhava: uma luta armada, tática
costumeira do partido comunista.

58
Meu Pai -memórias Poéticas

Prestes dizia que naquele momento era mais


fácil construir o Partido Comunista nos quartéis do que nas
fábricas. De fato, além de Prestes, eram também de
origem militar vários outros integrantes da estrutura
do PCB.

A questão é que a revolução não foi bem


organizada. Com pequeno apoio político e financeiro
de Moscou, equívocos e desencontros de
informações, além do fato de que os militantes
estavam divididos em relação à posição do PCB — e
de Prestes, naturalmente — de acelerar os
preparativos para desencadear a luta armada.

Uma reunião da direção do PCB em


novembro de 1935 decidiu que havia no Brasil uma
situação revolucionária, mas que o momento de
desencadear a revolução seria decisão da direção
partidária e teria caráter nacional e de massas.

Estouram revoltas em Natal e em Recife e as


informações que chegavam ao Rio de Janeiro eram

59
Therezinha Mello

muito imprecisas. O PCB, em apoio aos rebelados do


Nordeste, resolveu deflagrar de imediato a revolução
no Rio de Janeiro na Vila Militar, Realengo, Campo
dos Afonsos e no 3º. Regimento de Infantaria da
Praia Vermelha, onde estavam meu pai, João Coelho
e meu tio Dalvo.

O esperado era que essas unidades militares,


vitoriosas em suas ações, contassem com o apoio da
população civil, o que não aconteceu. As rebeliões
ficaram restritas aos quartéis. Quarteladas, assim
definidas.

Praia Vermelha – Rio de Janeiro - 1935

O Governo batizou a revolta de “intentona”.


Intentona Comunista de 35. Segundo Houaiss, “plano

60
Meu Pai -memórias Poéticas

insensato, ataque imprevisto”. Mas os participantes não


aceitaram tal denominação, por entenderem que
desvalorizava a seriedade dos objetivos que
nortearam o movimento.

“Estávamos em frente do Regimento. Não havia


tiros; não havia mais nada. E nós saímos presos.
Porque resolvemos nos juntar para mostrar coesão e
para nos defendermos dos elementos que estavam lá e
que queriam nos fuzilar. Porque a ordem devia ser de
nos fuzilar. E junto conosco estavam soldados e as
demais praças. Sargentos e tudo. Que não
participaram. Mas estavam lá e foram presos junto
conosco. Ficamos todos juntos. O objetivo era
demonstrarmos que não estávamos abatidos. Esse era
o significado. Que eu sinto. Eu nunca perguntei, não
falei com ninguém. Mas, na prática, a gente queria
demonstrar que não estávamos com medo.

61
Therezinha Mello

Nós fizemos o levante conscientemente, embora


tenham dito que fizemos intentona.”

José Gutman

2º. Tenente do Exército


9ª. Cia do 3º. Regimento de Infantaria
Praia Vermelha, Rio de Janeiro

A partir daí, a repressão por parte do governo


foi dura e sem precedentes. Centenas de aliancistas e
comunistas foram presos em todo o Brasil.

“Os fatos não permitem mais duvidar do perigo que


nos ameaça. (...) O comunismo encarado como força
desintegradora e agente provocador de sérias
perturbações, constitui, no Brasil, pela sua profunda
e extensa infiltração, já comprovada mas desconhecida
ainda do público, perigo muito maior do que se
possa supor.”

Discurso de Getúlio Vargas


27 de novembro de 1935

62
Meu Pai -memórias Poéticas

O insucesso do levante da Praia Vermelha


tornou-se o fato mais devastador na vida de João
Coelho, Adelia e Dalvo. Os dois amigos foram
excluídos do Exército. Passaram ambos a ter em
mãos Certificados de Reservistas com a seguinte
anotação: Excluído das fileiras militares, por ser portador de
ideias e conceitos extremistas. Esse alerta fechava todas as
portas que tentassem ser abertas por eles na direção
de novos empregos.

Meu tio estava entre os que foram presos de


imediato. A essa altura, estava noivo. Ele e Adelia
tiveram a casa invadida e revirada pela Polícia de
Getúlio Vargas. Nenhum documento encontrado,
nenhum material suspeito, nada que comprovasse
ligações com o Partido Comunista, mas ele foi levado
de camburão. Para onde? Lembro de minha mãe
contando que depois de muito procurar, localizou o
irmão, que acabou sendo solto e voltando para casa.
Como consequência do abalo emocional, não só pela
enorme perda que significava ser expulso do

63
Therezinha Mello

Exército, como pelos maus tratos na prisão e, ainda


mais, por tornar-se incapaz de recomeçar
dignamente, um ano depois, em 1936, Dalvo faleceu
devido a problemas cardíacos. Adelia estava ao lado
dele e suas últimas palavras foram: Eu vou embora... .

Minha mãe trabalhava, como era comum na


época, em um atelier de costura. Era o que ela sabia
fazer bem e, essa atividade, exerceria por muitos anos
ao longo da vida. Com muita competência, sem
nenhum reconhecimento, com muito cansaço e
mínimo retorno financeiro. Viveu o luto do irmão, ao
mesmo tempo em que procurava saída para o fato de
ter ficado absolutamente sozinha, quando o que
desejava era ter novamente toda a família junto de si.

João Coelho iniciava a peregrinação que


marcaria seu árduo caminho para reposicionar-se
profissionalmente. A seu favor tinha alguns parentes
que, fosse como fosse, representavam possibilidades
de apoio e ajuda. Foi ele, a partir daí, a única pessoa
com quem Adelia passou a contar. Entre eles, a

64
Meu Pai -memórias Poéticas

simpatia inicial transformou-se em romance que


duraria para sempre. Ficaram noivos em junho de
1937.

“ Lar, doce lar

Hoje visitei pela vez primeira o meu futuro lar que,


com fé no Todo Poderoso, será sempre um ninho
sagrado de ventura e de amor. Minha mui
queridíssima noiva lá estava a adorná-lo com todo seu
encanto, pureza e ingênua graça. Belo quadro!

Tive o prazer de ter gravado nas minhas retinas, qual


uma tela deslumbrante da antiga Grécia. (...) Mãe de
Deus, Maria Santíssima, toda pura e Virgem,
abençoe com Vossa imensa bondade nunca
desmentida aquilo que com tão boa vontade pretendo
tornar cheio de felicidade: meu lar. Dai-me forças
para isto realizar, bem como à minha futura
companheira. Fazei com que ela não mude um
centímetro da trajetória de vida que até então tem

65
Therezinha Mello

seguido. Protegei-a, bem como a mim, que não sou


merecedor das vossas graças.”
João Coelho de Mello
17 de agosto de 1937

O Partido Comunista permaneceu na


clandestinidade. Luiz Carlos Prestes foi condenado à
prisão em 1940 e anistiado por Vargas cinco anos
depois. Em julho de 1945, o estádio do Pacaembu,
São Paulo, lotou com cem mil pessoas. Era um
comício em sua homenagem que contou com
visitante ilustre. Lá esteve presente ninguém menos
que o poeta chileno Pablo Neruda. Na ocasião, leu
poema dedicado a Prestes, que mais tarde se incluiu
no livro Canto Geral, com o título Dito no Pacaembu.

“Quantas coisas quisera hoje dizer,


brasileiros, (...)
palavras que me disseram
ao passar os operários, os mineiros, os pedreiros,
todos
os povoadores de minha pátria longínqua.

66
Meu Pai -memórias Poéticas

Que me disse a neve, a nuvem, a bandeira?


Que segredo me disse o marinheiro?
Que me disse a menina pequenina dando-me espigas?
Uma mensagem tinham: Era:
Cumprimenta Prestes.(...)”

Pablo Neruda
Julho de 1945

Enquanto viveu, meu pai não esqueceu


aquele que reconhecia como um grande líder. Minha
mãe contava que, muitos anos depois, ele chegaria
em casa eufórico. Tinha ido ao centro da cidade e,
para sua surpresa, conseguido falar com Prestes. Ele
mesmo, em pessoa! Ganhei o dia!, comentou animado.
Já, Adelia, não tinha gostado nem um pouco da
notícia.

Prestes exilou-se na União Soviética após ter


seus direitos políticos cassados e, em 1979, voltou ao
Brasil depois de promulgada a Lei da Anistia.

67
Therezinha Mello

Gaivotas

Gosto
de ter de volta o mar,
que abraçava inda menino
na Atalaia.

De esticar os olhos
na distância alargada,
e assim,
da praia,
imaginar os navios de meu avô,
— poderoso, forte —
rumo às salinas do norte.

Depois, observar as gaivotas,


desenhando liberdades no céu.

Gosto
de poemar a moça desconhecida,
que esperava

68
Meu Pai -memórias Poéticas

no porto do Rio.

De me pensar com ela,


na tarde anoitecida,
e assim,
desse vagar,
quixotear vitórias de cavaleiro
— presunçoso e gentil —
em bem-querer juvenil.

Depois, observar as gaivotas,


desenhando destinos no céu.

Gosto
de apostar no mundo
que ainda sonho, já adulto,
nas certezas de tudo que serei.

De correr o risco
no calor do embate,
e assim,

69
Therezinha Mello

do impulso
de afrouxar os nós de todas as gargantas,
— amoroso e decidido —
expor a minha voz e ser ouvido.

Depois, observar que gaivotas,


sem depender da nossa vontade,
permanecerão, para sempre,
desenhando interrogações no céu.

Therezinha Mello

70
3 - O SONHO - 1939

Beijei-te na síncope de um desejo,


senti a alma fremir, louca aflição.
Encontrei o ritmo
dos perfumes do teu beijo,
senti falar na alma o coração.

Na noite de insônia em que te vi,


na idolatria do teu amor,
na recordação,
sonhei que eras,
Adelia,
o meu ensejo.
No sonho te consagro
a minha adoração.

João Coelho de Mello


Meu sonho

71
72
Meu Pai -memórias Poéticas

Em 9 de outubro de 1939 João Coelho casou-


se com Adelia Dias de Mello. Cerimônia simples em
cartório civil, ele aos vinte e cinco, ela aos vinte e
quatro anos. À época, ele trabalhava na Light,
exercendo a função de trocador de bonde; ela
permanecia dedicada a atividades de costura. Apesar
de o Rio de Janeiro não ter proporcionado a nenhum
dos dois individualmente bons começos, acreditaram
que, juntos, poderiam construir uma vida feliz. Meu
pai escreveu sobre esse momento:

“ À Adelia,

Um dia tive um sonho, do qual logo encontrei a


heroína. O enredo foi o seguinte: procurava eu alguém
do sexo chamado fraco, que me entendesse dentro do
todo do meu eu, e que me fosse franca, leal, bondosa e,
consequentemente, a mais amiga entre as amigas. O
suprassumo.

Minha companheira, quiçá, ou como vulgarmente


chama a sociedade, esposa. Ela, a heroína do meu

73
Therezinha Mello

sonho, era morena, nariz afilado, olhos grandes e


perscrutadores, dando margem a algum psicólogo
entendê-la como sagaz. Casei, fui feliz. Acordei-me e
c’est fini. Acabou o sonho.

Despertei impressionado com a heroína do sonho que


acabo de relatar. Jurei a mim mesmo que haveria de
encontrá-la. Encontrei-a um dia. Fugiu de mim.
Reiniciei minha perseguição e fui mais feliz. Expus
minha situação de apaixonado adorador. Relutou,
mas aceitou. Somos noivos há dois anos. Somos
felizes. Nos amamos. Eu a adoro e tenho sido o mais
feliz dos infelizes, graças a minha mui querida
Adelia.”
João Coelho de Mello
10 de junho de 1939

O casamento não contou com a simpatia das


tias solteiras — Alice e Julieta — que haviam criado
João Coelho e seus irmãos. Entre as críticas mais
conhecidas, a de que preferiam moça de pele mais

74
Meu Pai -memórias Poéticas

clara. Mas meu pai tinha outros tios, Bastos Coelho e


Nicota — também irmãos de minha avó Ceres —
que receberam Adelia naquele núcleo familiar com
cordialidade e, mais adiante, com sincera afeição.
Mais de vinte anos depois eu teria contatos
frequentes com alguns deles e com os primos da
minha geração.

Em 1940 João Coelho e Adelia tiveram o


primeiro filho, Luiz, nome escolhido por meu pai. O
combinado entre eles era de que a escolha do nome
se nascesse menina, seria dela; caso contrário, o
privilégio seria dele. O trato se manteve e, quando,
em 1944, nasceu Carlos, coube também a ele escolher
o nome. Mais tarde, a razão dessas opções foi
esclarecida. Sim, porque não foram propostas
aleatórias. Tratava-se de homenagear aquele que
permanecia no coração de meu pai na condição de
“figura legendária” venerada pelos garotos de 1935,
como definira Apolônio de Carvalho. Luiz Carlos
Prestes, o Cavaleiro da Esperança.

75
Therezinha Mello

Nosso mapa

A rosa dos ventos nos há de apontar,


dos destinos,
os mais precisos.

A travessia, no mapa dos sonhos,


terá largas estradas
e claras coordenadas.

Pelos mares, não nos faltarão faróis.


Em terra firme, felizes,
saberemos semear boas raízes.

A bússola, já a temos
na esperança que usamos como guia.
Se, juntos, já divisamos o caminho,
sigamos simplesmente.

76
Meu Pai -memórias Poéticas

Navegando “a todo pano”.


Ou costeando a praia, mansamente.
Mãos dadas e vento brando.

Therezinha Mello

77
78
4 - PEDRAS NO
CAMINHO - 1952

Um homem se humilha
se castram seus sonhos.
Seu sonho é sua vida
e vida é trabalho.
E sem o seu trabalho
o homem não tem honra, (...)

Gonzaguinha
Um homem também chora

79
80
Meu Pai -memórias Poéticas

Os anos 40, quando meus pais iniciavam a


vida de casados, trouxeram os horrores da Segunda
Guerra Mundial. Isso vale para os que foram para o
campo de batalha e para os que ficaram. Tempos
ruins. Um dos irmãos de minha mãe, tio Valdemar,
esteve lutando na Itália. Eu o conheci. Ele morava na
Ilha do Governador e nos visitava sempre. Era
pessoa humilde e afável. Nunca se recuperou
totalmente da experiência que tinha vivido na guerra.
Chamava-se à época “neuroses de guerra” a todo
aquele saldo de assombros psíquicos que o
acompanhariam dali em diante, sem nenhum
tratamento psicológico adequado.

O rádio constituía elemento fundamental nas


residências, como canal de comunicação. Tinha-se
por aqui o Repórter Esso. Ao ouvir o conhecido
prefixo, as pessoas corriam para saber das notícias e,
com elas, o desfilar de nomes de mortos em campo
de batalha; todos com os corações apertados,

81
Therezinha Mello

pensando em amigos e parentes que lá estavam e que


não se sabia se voltariam um dia.

A partir de 1945, advieram todas as


dificuldades de um pós-guerra que se refletiu em
todo o mundo. Para meu pai, particularmente, o dia-
a-dia continuava penoso. Sem esquecer os
sentimentos revolucionários, mas sendo então
responsável por esposa e dois filhos, permanecia à
cata de um serviço incansavelmente. Sua exclusão do
Exército e a associação desse fato a ideias comunistas
representavam obstáculo permanente e insuperável a
esse objetivo.

O fato levou a família à necessidade de morar


durante anos com parentes ou amigos, muitas vezes
em locais precários e distantes. “De favor” é a
expressão que define esse tipo de cortesia. Em todos,
a incômoda experiência de estarem inadequados em
espaço que não lhes pertencia, falando baixo para
não incomodar, sentindo-se pequenos em relação ao
entorno. Pela vida adiante, imagino que esse tipo de

82
Meu Pai -memórias Poéticas

memória seja capaz de reavivar, em situações novas,


o gosto amargo da baixa autoestima, que bebe na
fonte de antigos sentimentos de insegurança e
humilhação. Acredito que tais sensações de menos-
valia possam manter latente, de forma simbólica, a
presença opressora do senhorio ou “dono da casa”,
cobrador da dívida que não se pode pagar. A quem se
deve desculpas dadas à boca pequena, coração
envergonhado e sorriso amarelo. Fácil, não foi. Para
nenhum deles.

Picos e vales, ditados por funções que


conseguia e perdia permanentemente, foram
transformando o descontraído João Coelho em um
homem angustiado. A natureza alegre e divertida não
o abandonava nos períodos em que contava com um
emprego, fosse como fosse. Mas quando se tornava o
portador da notícia da própria derrota ao voltar para
casa, pouco a pouco, a depressão chegava. Não há
olhar de compreensão da sociedade para um homem
que, com esse tipo de limitação, não consegue honrar

83
Therezinha Mello

seu papel de provedor da família. Todas as vezes que


escuto a canção Um homem também chora, de
Gonzaguinha, suponho que ali deva estar descrito o
tormento de meu pai e todo seu sentimento de
impotência, diante de um fato que seguia em seu
encalço dia após dia: não conseguir um espaço no
mercado de trabalho.

Minha mãe, com as costuras, procurava


compensar a ausência dele nas despesas da casa.
Apesar de queixar-se da situação, o que é
compreensível, manteve-se firme a seu lado. Os
filhos foram crescendo e, compreendendo melhor os
motivos das dificuldades, cultivavam cumplicidade
entre si e, ambos, em relação à mãe. Ela tornou-se
verdadeira guerreira e heroína, enquanto meu pai
consolidava-se como responsável por todo aquele
desacerto. Tudo era muito doído para todos.

Toda essa imensa instabilidade não permitiu,


no entanto, que eles se perdessem um do outro.
Aliás, esse era um temor de meu pai, o de perder

84
Meu Pai -memórias Poéticas

minha mãe, que ele externou em correspondência de


14 de abril de 1938:

“Pela vez primeira me senti fraquejar em quase


desespero. (...) são as dificuldades da vida, enfim, o
medo de te perder, minha Adelia.”

Ela certamente ouviu opiniões desfavoráveis


sobre ele, mas o defendeu; conselhos, que não quis
seguir; palpites e conclusões alheias que não a
levaram ao arrependimento da escolha que fizera.
Talvez, em muitos momentos, eles se entreolhassem,
protegendo um ao outro, das invasões de privacidade
diante das quais precisavam se calar. O que merece
destaque é o fato de que, apesar de todas as “pedras
do caminho”, nunca esqueceram o papel que tinham
a cumprir diante dos filhos e de si mesmos. Ainda
que enfrentando batalhas diárias, os meninos sempre
os tiveram ao alcance das mãos e dos olhares. Essa
condição era compromisso e orgulho. Nunca houve
abandono, sentimento que considero dos mais
amargos que se pode propiciar a alguém. Fizeram

85
Therezinha Mello

juntos tudo o que foi possível e devem ter


lamentado, juntos também, tudo aquilo que não
conseguiram, dividido responsabilidades e culpas e,
talvez, elaborado juntos o perdão que pediriam aos
filhos, como na canção de Ivan Lins e Vitor Martins,
Aos nossos filhos:

“Perdoem por tantos perigos,


Perdoem a falta de abrigo,
Perdoem a falta de amigos,
Os dias eram assim.”

Meus pais demonstravam sentir, todos os


dias, que as juras de 1939 tinham sido fortes o
suficiente, para seguirem além dos poemas e dos
sonhos juvenis.

86
87
Therezinha Mello

Herança

Aos que hoje nos veem


em distância de tempo
e de silêncios,
uma herança:
fomos inevitavelmente felizes,
em ternura quieta
e mansa.

Nas aflições dos instantes,


nos buscamos nos olhos.
Tateamos mãos aflitas
sem nada dizer,
ou maldizer,
e cerramos entre elas,
nossa fragilidade infinita.

88
Meu Pai -memórias Poéticas

Depois, seguimos.
Era lenta a construção,
que nos juramos terminar.

Aos que hoje nos veem


em distância de tempo
e de silêncios,
uma certeza:
se nos fizemos um só
e em tanto sentimento,
foi para lhes deixar futuros;
nunca, arrependimento.

Therezinha Mello

89
90
5 - SURPRESA –
1956 a 1957

Pensou que eu não vinha mais, pensou,


cansou de esperar por mim,
acenda o refletor,
apure o tamborim,
aqui é o meu lugar,
eu vim.

Chico Buarque
De volta ao samba

91
92
Meu Pai -memórias Poéticas

No ano de 1956, após onze mudanças de


endereço ao longo de quinze anos, inseguranças,
medos, carências e muitas dificuldades — as tais
“horas apertadas”, como minha mãe chamava —
finalmente boa notícia.

Meu pai conseguira, com o auxílio do irmão,


meu tio Fernando, um emprego civil na Tesouraria
do Sanatório Militar de Itatiaia - SMI, criado em 1926
com a função principal de assistir militares
portadores de tuberculose.

Itatiaia — em tupi, “pedra pontuda” — é


uma cidade localizada no Vale do Paraíba, ao sul do
estado do Rio de Janeiro, próximo a Resende e
Penedo, com natureza exuberante e clima excelente.
O Sanatório localizava-se a aproximadamente
trezentos metros da entrada principal do Parque
Nacional de Itatiaia, cuja área corresponde a uma
fazenda que, no século XIX, tinha pertencido ao
Barão de Mauá. Foi criado em 1937, pelo Presidente

93
Therezinha Mello

Getúlio Vargas, passando a ser o primeiro parque


nacional do Brasil.

Originalmente, Itatiaia chamava-se Campo


Belo e tinha sido, embora por pouco tempo, um dos
diversos endereços da família. Esse em 1948,
também promovido por tio Fernando. O fato de essa
tentativa ter sido frustrada, motivou meu tio a
empenhar-se na busca de nova oportunidade para
meu pai, dessa vez com sucesso.

Ambiente de trabalho do Sanatório Militar de Itatiaia.


Na foto, Fernando, irmão de João Coelho

94
Meu Pai -memórias Poéticas

Na foto abaixo, a equipe de trabalho do SMI,


discriminada no verso por meu pai, nominalmente.

1 – Tenente Coronel Médico Dr. Rêgo Barros – Diretor


2 – Dr. Orlando – 3 – Capitão Amir 4 – Tenente Bonfim
(meu chefe) 5 – Tenente Roberto 6 – Tenente Reini

95
Therezinha Mello

Imagino que esse tenha sido momento de


glória para João Coelho. Conseguiu não só elevar a
própria autoestima, exercendo funções bem mais
adequadas à sua formação e capacidade, como
também proporcionar à família condição de melhor
equilíbrio financeiro e emocional. Em 11 de janeiro
de 1958, o Sanatório Militar de Itatiaia expediu o que
chamavam oficialmente de “referências elogiosas” a
alguns funcionários da Tesouraria, entre eles meu pai:

3 – Tarefeiro João Coelho de Mello - A esse auxiliar


está entregue encargo de suma importância e
responsabilidade, responsável que é, pela feitura do
Balancete de Material, trabalho que além de
capacidade, exige especial atenção. Trabalhando com
a sua peculiar boa vontade, esse funcionário não se
preocupa com o horário normal, mas,

96
Meu Pai -memórias Poéticas

desprendidamente, quer à noite, quer em dias sem


expediente neste estabelecimento, empresta o seu afã a
esta dependência, preocupado apenas com a boa
marcha do serviço e a tranquilidade de seus Chefes.

Moravam em casa simples, à beira do


ribeirão, um afluente do rio Paraíba do Sul que
atravessa a cidade. Residência alugada, mas que
representava um salto de qualidade na vida de todos.
Meu tio Fernando, querido e amigo, era das poucas
visitas. Se o lugar ainda hoje não tem grande
movimento, há mais de sessenta anos atrás, muito
menos. Era e ainda é lugar bucólico e afastado.
Minha mãe lembraria esse período com saudades por
toda a vida. Ela gostava de observar a lua cheia e
recordar as noites enluaradas de Itatiaia como um
símbolo de sua felicidade. Tinha fortes razões para
isso.

Enxergo essa fase da vida de meu pai como


uma espécie de redenção. João Coelho era um

97
Therezinha Mello

libertário e, para alguém assim, constituir família


pode tornar-se muito complexo, porque são
estruturas que dificilmente se fazem compatíveis.
Mas ele era pessoa alegre e amorosa, com a vida, com
os filhos, com minha mãe, com os amigos. Nada do
que ouvi sobre ele sugeriu que ele flertasse com a
irresponsabilidade ou a displicência. A mesma força
que fazia com que ele se apaixonasse por seus ideais
coletivos e largos, também fazia com que ele amasse
a família. Tudo era paixão e lhe cabia no peito. Se
mulher e filhos sofreram pelas condições que as
impossibilidades dele criaram, ele também sofria e se
responsabilizava por tudo. Conquistar esse lugar em
Itatiaia devia representar o “passo certo” que a
sociedade lhe exigia e que ele achava que devia
àquelas três pessoas e a si mesmo. Provavelmente
uma forma de se retratar ou um sincero e consciente
pedido de perdão, que todos pareciam aceitar,
mergulhados em inédita sensação de estabilidade,
alegria e, sobretudo, de dignidade.

98
Meu Pai -memórias Poéticas

Eu cheguei à família nesse momento de


serenidade. Sem ninguém contar comigo,
desorganizei uma situação que apenas ia começando
a se sustentar de pé. Minha mãe tinha quarenta e um
anos; meu pai, quarenta e dois. Soube que foi com
acanhamento que ela contou a novidade aos filhos. O
mais novo, aos doze anos, estudava em Resende, no
Colégio Dom Bosco, onde fazia o antigo curso
ginasial. Registrou anos depois em livro de sua
autoria, que minha mãe chegara a ficar sem falar com
meu pai alguns dias, por considerá-lo responsável
pela gravidez inesperada. Sentia-se envergonhada e já
muito idosa para ter filhos. E que meu pai, ao
contrário, “mostrou-se radiante” com a novidade.
Queria ser pai novamente e considerava minha
chegada um prenúncio de boa sorte.

O mais velho, pelos dezesseis anos, estava no


Rio de Janeiro em seu primeiro emprego, morando
temporariamente com meu tio José Joaquim, irmão

99
Therezinha Mello

de meu pai e comentou em correspondência a João


Coelho de outubro de 1956:

“Meu pai, o que me é de mais surpresa é saber que a


cegonha vai passar por aí. Ao saber dessa notícia
fiquei um pouco chocado, pois só agora, depois de doze
anos!”

Finalmente, de 1957, trecho de


correspondência de João Coelho ao irmão José
Joaquim e à cunhada Zizi:

“Não é preciso dizer que fiquei imensamente


satisfeito pelo comparecimento do Luiz ao batizado
da minha Therezinha. Acho que ele já lhe contou
como foi o mesmo, em casa, por força das
circunstâncias, isto é, o padre tinha pressa em viajar
(o padre é Capitão do Sanatório) e como não ia ter
missa, resolveu batizá-la em casa. Tudo muito
simples, conforme você bem deve imaginar. (...) Graças
a Deus fui muito feliz ao receber Therezinha. Ela
espera em breve a visita de vocês.”

100
Meu Pai -memórias Poéticas

Dadas as dificuldades de condução entre


Itatiaia e Resende, minha mãe contava que precisou
ficar internada por um mês no Hospital da Academia
Militar das Agulhas Negras, aguardando o momento
do parto, que foi realizado por uma religiosa,
enfermeira, Irmã Coelho. Fazia muito frio e eu
chorava muito, o que levou meu pai a me acudir com
uma chupeta, que finalmente me acalmou. Meu nome
foi escolha de minha mãe, que sendo católica,
homenageou assim Santa Therezinha do Lisieux, de
quem era devota.

Pois que as portas deste mundo se abriram


para mim em Itatiaia, um lugar que minha imaginação
denomina, a partir de agora, “Reino da Pedra
Pontuda”. Lá os dias eram frios, mas eu não ligava,
porque o colo de minha mãe era morno, com leite
doce e antigas canções de ninar. Ela guardava carinho
especial por bonecas, desde aquelas do Nordeste,
nascidas de sabugos de milho. Agora, porém, tinha
nos braços a menina recém-nascida, que lhe surgira

101
Therezinha Mello

sem nenhum projeto. Chegada improvável, espécie


de mágica inesperada, que lhe mudara a vida, só
possível naquele Reino, onde a alegria era bem-vinda
e toda a gente podia ser feliz.

Meu pai brincava comigo eufórico, como se


eu fosse a própria vida lhe dizendo que os temporais
já tinham passado. Que histórias sempre têm
monstros e assombros, mas que um dia tudo se
acerta. Ele me sorria como um herói, que já conheci
vitorioso e feliz nos braços da amada, com emprego
fixo, dois filhos crescidos e a menina que acabara de
nascer. Vivíamos em nosso castelo, aquela alegria
simples e delicada. Meus irmãos eram grandes e, eu,
pela novidade que representava, ganhava ares de filha
única. Do meu tamanho, só mesmo o cãozinho Totó,
que me acompanharia todo o tempo.

Visitas de parentes do Rio de Janeiro para


conhecer o bebê eram muito bem-vindas e
descontraíam a todos. Ganhei de presente um estojo
da Johnson, dado por meus tios Décio e Bezita. Com

102
Meu Pai -memórias Poéticas

ele havia um livreto para ser preenchido pouco a


pouco com os primeiros registros de meu
desenvolvimento. Soube assim que, ao nascer tinha 4
kg e 45 cm, que meu batismo aconteceu em 9 de
junho de 1957 e que, em 27 de abril de 1958,
caminhei sozinha dois metros, pela primeira vez, de
meu pai a meu irmão.

Meu pai passou a ter pressa de chegar em


casa depois do expediente e minha mãe se
desdobrava em cuidados. A rotina da casa tinha sido
alterada para melhor. Talvez eu tenha sido, depois do
novo posto de meu pai, o primeiro motivo de
comemoração após tantos outros de apreensão, que a
família havia tido por longo tempo.

Hoje me deixa feliz a ideia de que fiz parte de


um momento promissor daquele grupo familiar. Que
sorriram ao meu redor. Que meus pais, por alguns
meses, olharam-se felizes, acreditando no futuro, no
fim das intempéries, nos amanheceres da vida. Os
dois acreditaram nisso olhando na minha direção e

103
Therezinha Mello

me inspirando, com essa atitude, a ter esperança e


valorizar cada instante da minha caminhada.

Therezinha e Adelia
Itatiaia - Julho de 1957

104
Meu Pai -memórias Poéticas

Therezinha
Itatiaia – Novembro de 1957

105
Therezinha Mello

Decisão das estrelas

Todo nascer
é decisão das estrelas.
Um combinado
e delicado arranjo.
Todo nascer é fluido
como o bocejo de um anjo.

Todo nascer
quer abraço morno,
em mãos de acalanto.
Porque todo nascer é espanto,
todo nascer é dor
e solidão.

É salto no escuro.
É escolha
que a memória apaga.

106
Meu Pai -memórias Poéticas

É medo,
é cedo,
é grito de socorro.

É invadir o mundo
e esquecer as armas.
É perder paraísos,
arriscar voos
sem ter asas.
É se lançar
no infinito de existir.

Mas todo nascer é,


também,
fidelidade natural à própria vida,
conquista de territórios.
Reverência
ao encontro sagrado
de duas existências.

107
Therezinha Mello

Todo nascer traz em si


a diferença,
sutil e crucial,
entre um sim e um não.

Porque todo nascer faz sentido,


todo nascer tem razão.

Therezinha Mello

108
6 - BIÁ TÁ TÁ - 1958 e 1959

Me poupa do vexame
de morrer tão moço.
Muita coisa ainda quero olhar.

Ednardo
Pavão misterioso

109
110
Meu Pai -memórias Poéticas

Meu primeiro ano de vida foi assim: calmo,


silencioso e, a maior parte do tempo, vivido quase
exclusivamente próximo a meus pais. Imagino que
nesse período eu tenha divertido o casal já
“quarentão”, meio pais, meio avós, com as graças de
criança ainda bem pequena. Minha mãe dizia que,
quando fui crescendo, gostava de cantarolar e ensaiar
uma dancinha, ouvindo Biá tá tá, coco alagoano de
Heckel Tavares, gravado nos anos 50 por Marlene e
sucesso da época:

“ Biá tá tá,
biá tá tá
Esse coco saboroso
você come e não me dá,

Morena boa,
morena boa
Morena você veio da terra das Alagoa
A terra é boa,
a terra é quente

111
Therezinha Mello

A terra dá tanta coisa


que a gente fica contente!”

A casa ficava quase na entrada da floresta.


Quando eu fechava os olhos ouvia mais forte o
barulho do Ribeirão, que nunca parava e onde se
costumava atravessar a correnteza andando, de pedra
em pedra. Minha mãe cantava para eu dormir.
Quando ficava cansada, interrompia e ficava um
tempo só me balançando. O Ribeirão, não. Ele
jamais se cansava.

O Reino da Pedra Pontuda tem o céu mais


bonito do mundo. Minha mãe costumava conversar
com a Lua, principalmente se estivesse bem cheia,
redondinha no céu estrelado. Certa noite, a Lua disse
a ela que meu pai, como costumam fazer os heróis,
teria que seguir sua jornada para outro Reino, muito
mais longe. Minha mãe chorou olhando pra Lua,
pedindo para que aquilo não acontecesse. Não
adiantou. Ninguém ainda sabia daquele segredo: só a

112
Meu Pai -memórias Poéticas

Lua e o Ribeirão que, como eram amigos há muito


tempo, todas as noites tinham longas conversas.

No dia seguinte, quando fechei os olhos para


dormir, o Ribeirão me contou tudo. Que meu herói
teria que ir embora, que deixaria sua amada e partiria
voando junto com outros seres luminosos e alados.
Eu perguntei “por quê?” ao Ribeirão e ele me disse
que os sonhos do meu pai não cabiam no Reino da
Pedra Pontuda. Que eles eram grandes e precisavam
de muito mais espaço em outro Reino maior. Eu
chorei bem alto, como nunca tinha chorado. Gritei
com o Ribeirão, briguei, não queria mais falar com
ele. Mas o Ribeirão sempre continuava a falar.
Explicou que meu pai não queria ir, porque eu era
ainda muito pequena e porque tudo, naquele “agora”
tão recém-chegado, estava dando certo. Mas que não
ia ter jeito.

Então meu pai passou a ficar muito tempo


deitado na cama, com minha mãe ao lado, cuidando
dele. Ela contava que não sabia como se dividir entre

113
Therezinha Mello

mim e meu pai. Uma trabalheira! Que quando ele


passava mal, eu andava até a beira da cama e
segurava-lhe a testa. E que ele dizia: “— Só minha filha
mesmo pra me ajudar!”.

A alegria da casa desapareceu como se um


mágico muito mau tivesse transformado nossa vida
de repente. As pessoas passaram a falar baixo,
cochichando conversas que meu pai não podia ouvir.
Já o Ribeirão, sem se importar, continuou o mesmo,
com sua voz que entrava pelas janelas e atravessava a
casa. Quando se zangava, roncava forte e trazia muita
água, levando tudo. Minha mãe corria e tirava as
roupas que quaravam sobre as pedras. A Lua espiava
distante e, com carinho, como se tentasse nos ajudar,
mantinha-nos envolvidos em luz clara.

Naquela casa, enquanto eu aprendia a chegar


ao mundo, meu pai aprendia a deixá-lo. Como se
tivéssemos nos encontrado em movimentada estação
de trens, com horários rígidos, onde teríamos que
embarcar para destinos diferentes. Aflitos, adiávamos

114
Meu Pai -memórias Poéticas

a despedida, enquanto observávamos, ao longe, a


chegada dos trens que se aproximavam
simultaneamente e em sentidos opostos.

Quando mais tarde, a cama ficou vazia e


minha mãe ficou mesmo muito triste, nos
preparamos para deixar o Reino da Pedra Pontuda.
Ela me disse, certa vez, que andava pela casa
abraçada ao paletó que ele usava para ir ao Sanatório.
“Acho que estava maluca.”, ela relembrava com sorriso
desalentado. No dia distante, que ela recordava,
minha mãe era, ela própria, aquela peça de roupa,
vazia de quem mais amava. Ou a velha Parker preta
de baquelite, agora abandonada pela mão que antes a
conduzia nos escritos do Sanatório e que minha mãe
também manteve entre seus guardados, como uma
reverência. Passado muito tempo percebi que, de
fato, às vezes nos tornamos a casca vazia de quem já
não temos.

O Totó não entendeu muito bem. Retirado


de casa, retornava teimosamente para nossa

115
Therezinha Mello

companhia. Eu também não podia entender, mas de


alguma forma podia sentir que, com apenas dois anos
de vida, teria muito a perder deixando aquele Reino.
O Ribeirão que conversava comigo, a luz da Lua, a
terra do quintal, o verde onde descansávamos a vista,
o calor do sol que nos agasalhava os invernos e o ar
sempre fresco nos verões. Além de minha mãe e meu
pai, juntos e ao meu lado, em convívio real e sereno.
Desse período ficaram memórias: todas fortes, todas
importantes, todas indeléveis e, todas, inconscientes.
Ao garimpá-las fiquei convencida de que eram
preciosidades.

Minha mãe ficaria viúva todos os dias a partir


daquele 23 de março de 1958. Nunca admitiu outro
par; jamais aceitou a ideia de “nadar ao lado de outro
cisne”. Exatamente como no soneto Os cisnes, de Júlio
Salusse, poeta fluminense do início do século XX,
que ela mantinha manuscrito em antigo caderno e
que sempre relia emocionada:

116
Meu Pai -memórias Poéticas

“A vida, manso lago azul algumas vezes,


algumas vezes mar fremente,
tem sido para nós constantemente
um lago azul sem ondas, sem espumas.
(...)
Um dia um cisne morrerá, por certo.
Quando chegar esse momento incerto,
no lago, onde talvez a água se tisne,

que o cisne vivo, cheio de saudade,


nunca mais cante, nem sozinho nade,
nem nade nunca ao lado de outro cisne!”

Em 1960 a família, mais uma vez, mudava de


endereço, mas já não contava com os mesmos
personagens. Continuava com quatro componentes,
mas meu pai já havia seguido seu próprio destino. Eu
me incluíra então nessa nova versão de um grupo,
que não tinha outra escolha a não ser honrar a vida
tendo a coragem de seguir em frente.

117
Therezinha Mello

Aquele formato familiar me obrigaria a


conviver com uma ausência enorme. Tão grande que
se impôs como presença, a ser decifrada e entendida,
para só então poder ser amada em toda a sua
plenitude.

118
119
Therezinha Mello

Imponderável

Logo agora,
que eu já quase estava,
aprendendo a dançar?

Logo agora?
Que estrela foi essa,
que quis te levar?

Brincando
de esconde-esconde,
eu te procuro.
Mas, onde?
Você se escondeu tão longe!

Biá tá tá, biá tá tá!


Que estrela foi essa,
que quis te levar?

Therezinha Mello

120
7 - VIDA QUE SEGUE –
1960 em diante

Se lembra do futuro,
que a gente combinou?
Eu era tão criança e ainda sou.

Chico Buarque
Maninha

121
122
Meu Pai -memórias Poéticas

No Rio de Janeiro a vida seguiu seu curso,


que é do tempo seguir sem precisar do nosso auxílio.
Meu pai deixou uma pequena pensão cujo
recebimento gerava, mensalmente, ida nossa ao
centro da cidade. Eu e minha mãe seguíamos rumo
ao antigo IPASE — Instituto de Previdência e
Assistência dos Servidores do Estado — que atendia
ao servidor público e civil. Depois, invariavelmente,
passávamos pela Lojas Americanas, onde ela
comprava alguma miudeza e um punhado de balas de
mel, que íamos degustando já na condução de volta.
Era o dia mais “folgado” do mês.

Outra rotina, essa cumprida anualmente, era a


celebração de missa “pela alma de Coelho”, como
dizia ela, que repetiu o gesto, sem nenhuma exceção,
até falecer em 1998.

Durante muitos anos, nós duas voltamos a


Itatiaia. Pegávamos um ônibus verde na rodoviária,
onde eu, pelos cinco anos, já sabia ler: Evanil. Em

123
Therezinha Mello

processo metonímico, falávamos em “pegar o


Evanil”, para nossa pequena viagem.

Evanil- Modelo anos 60

Lá tinham ficado tio Fernando, meus primos


e um passado que minha mãe gostava de visitar.
Como se tudo tivesse ficado apenas em suspenso,
aguardando a nossa chegada para continuar. Como se
não fosse verdade que o único homem que ela ainda
amava tivesse sido sepultado ali, junto com todos os
seus projetos de vida.

Meu tio representava para ela um pouco de


meu pai. Uma parte dele que sobrevivera para

124
Meu Pai -memórias Poéticas

dialogar com ela. Para compreender sua dor e lhe


trazer um pouco de calma. Com ele tinha dividido os
caminhos de um tempo curto, que prometendo ser
redenção, tornou-se desapontamento.

Nunca deixávamos de ir, os três, ao pequeno


cemitério, onde ela rezava e chorava diante da
sepultura. A certa altura, quando eu já era
adolescente, providenciou para que se fizessem
reparos no jazigo e acrescentou, em mármore branco,
a lápide com o nome de meu pai e as datas de
nascimento e morte.

Lembro que, enquanto aguardávamos o dia


de levar a pedra até lá, minha mãe a deixou pousada
sobre o armário da sala. Eu lia o nome de meu pai
em relevo naquela peça branca, e experimentava mais
uma vez a distância incômoda que nos separava. Não
podia entender que ele fosse apenas aquele nome
esculpido, cercado de tristezas. Mas, se dele não tinha
lembranças, teria o quê então? De que tipo de
matéria poderia me valer para concretizá-lo? Essas

125
Therezinha Mello

indagações permaneciam silenciosas e minha pouca


idade não permitia que tivesse consciência delas.

A vida me posicionou de tal forma naquele


grupo familiar que eu, diariamente, convivia com
uma história trágica, que tinha começado muito antes
de mim, com pessoas que ali permaneciam, mas com
quem eu não tinha compartilhado um passado. Na
história, meu pai saiu de cena e eu permaneci junto
aos demais personagens. Coube a eles me posicionar,
com suas próprias interpretações, sobre tudo o que
havia antecedido a minha entrada em cena. E eu,
além de continuar procurando meu pai, precisava
achar meu próprio lugar naquela história, cujo arco
narrativo, com a troca de personagens, havia mudado
de rumo e teria que prosseguir.

No Rio, minha mãe contava também com


mais dois cunhados, irmãos de meu pai, e suas
esposas. Tio Décio, a quem eu chamava Dedé e de
quem gostava muito, e tia Bezita, moravam bem
próximos de nós, em Higienópolis, Rio de Janeiro.

126
Meu Pai -memórias Poéticas

Quando ele morreu eu tinha dez anos e lembro bem


desse dia. Pedi a um colega da escola que avisasse à
professora que não iria à aula. Que meu tio tinha
morrido. Quando a mim perguntaram se gostaria de
me despedir de Dedé no quarto da casa, onde ele já
vinha doente há algum tempo, tive medo e respondi
que não. Não gostava de ver doentes nem de
situações de morte, embora não soubesse exatamente
a razão. Depois lembro que chorei e que todos
choravam.

Tia Bezita era pessoa boa e solidária, muito


engraçada e de gênio forte. Tornou-se, além de
comadre, amiga fiel de minha mãe. Gostava
sinceramente de nós e convivíamos muito. Sempre
tinha um lanchinho para oferecer quando íamos até
lá. “É só uma boquinha; em casa você come melhor.”. Era
um bordão que ela sempre repetia e que nos fazia rir.

Havia também Emidgia, tia Zizi. Prima de tia


Bezita e esposa de tio José Joaquim, não tinha a
simpatia como um traço de personalidade. Era de

127
Therezinha Mello

difícil trato, em total oposição ao marido. Tio José


era educado, doce e muito gentil. Vez ou outra me
levava para passar uns dias com eles em Copacabana,
onde moravam. Quando completei quinze anos de
idade, ele e tia Zizi me levaram para passear no
Jardim Botânico e me deram de presente uma
pulseira de ouro, que tia Zizi mantinha guardada há
anos como objeto de estimação. Sentada ao lado dele
no sofá da sala, ouvi uma recomendação: “Quando você
escolher alguém para casar, preste atenção no nível cultural.
Isso é muito importante. Procure casar com alguém do seu nível
cultural.” Nunca esqueci esse conselho “de pai” que,
conscientemente ou não, segui à risca e que deu
mesmo muito certo.

Minha mãe me levava, desde bem pequena,


para visitas esporádicas a tia Nicota e sua filha Adail,
no bairro do Grajaú, Rio de Janeiro. Visitávamos
também tia Alice e tia Julieta, na Tijuca, o que eu
fazia muito pouco à vontade. O apartamento era
escuro e tia Julieta vivia acamada. Eu tinha que ir até

128
Meu Pai -memórias Poéticas

ela para cumprimentá-la, mas o gesto de educação


nada espontâneo me assustava. Minha mãe
comentava que, anos antes, com meu pai ainda vivo e
em dificuldades financeiras, tinha sido necessário à
família morar com essas tias no Engenho Novo. Eu
percebia que ela não guardava boas lembranças
daquele período.

Nesses encontros as conversas fatalmente


chegavam ao meu pai, sob a forma de recordações,
saudades e lamentos, que eu escutava sem
compreender muito bem. Sempre me lançavam um
olhar de piedoso enternecimento, por eu estar
crescendo sem a presença dele. Os comentários me
deixavam a sensação paradoxal de que eu tinha de
fato perdido alguém muito importante que, ao
mesmo tempo, não havia tido a chance de conhecer.
Raspa do tacho, temporã, responsabilidade,
contrapeso, eram palavras que buscavam me definir
nessas “conversas de adulto”, às quais presenciava ao
lado de minha mãe. Quem era eu nessa história e

129
Therezinha Mello

quem era esse pai com quem não podia estar, eram
questões que não sabia responder. Convivia com essa
espécie de tábula rasa. Uma folha de papel em branco
que eu teria a tarefa de preencher. Montagem lenta e
gradativa de um grande painel de colagens.

Por toda a minha vida, para tentar enxergá-lo


eu olhava para trás. Tudo indicava que ele estaria lá.
Mas onde? Eu não tinha registros. Depois
compreendi que poderia percebê-lo ao meu lado, me
ajudando a continuar. Não sei se quando cresci um
pouco mais ou quando, bem mais tarde, a vida me
colocou absolutamente só, pude então encontrá-lo
dentro de mim e, finalmente, entender todo o
enredo.

130
131
Therezinha Mello

O que havia

Havia um quintal,
com mangueira em flor,
abacateiro, amendoeira,
a casa na ladeira
e um pé de romã.

Havia o pátio da escola,


pasta de couro, merendeira,
TV em preto e branco,
brincadeira,
e também um bambolê.

Havia boneca,
o balanço de corda,
comidinha, cirandinha,
histórias da vizinha,
e bolas de sabão.

132
Meu Pai -memórias Poéticas

Havia ainda mãe e irmãos.


Havias primas,
dever de casa, balão.
Havia banho de chuva
e sorvete, no verão.

Mas havia um chorar à toa,


um choramingar
chato, de criança,
que ninguém sabia
de onde vinha.

Devia ser manha,


devia ser birra.
Podia ser saudade.

A menina não sabia


o que havia.

Therezinha Mello

133
134
8 -E O QUE FICA DE TUDO?

Mas de tudo fica um pouco.


Da ponte bombardeada,
de duas folhas de grama,
do maço — vazio — de cigarros,
ficou um pouco.
Pois de tudo fica um pouco.
Fica um pouco de teu queixo
no queixo de tua filha.

Drummond
Resíduo

135
136
Meu Pai -memórias Poéticas

Morei com minha mãe até quase completar


trinta anos. Metade desse tempo, só as duas. Sempre
que ouvia minha mãe falar sobre a própria vida — o
que costumava fazer frequentemente — percebia em
sua expressão e mesmo em suas lágrimas, o profundo
sofrimento que ela havia experimentado desde muito
jovem. Mas o que eu, de fato, nunca vi — nem nas
palavras, nem nos gestos, nem nas entrelinhas — foi
algum traço de crítica a meu pai, que denotasse
mágoa ou raiva em relação a ele. Antes ela acreditava
na força do destino ou em falta de sorte.

Cantarolava na cozinha constantemente, a


canção gravada por Carlos Galhardo em 1937, O
destino desfolhou, cuja letra aprendi bem menina por
ouvi-la cantar, e ainda tenho na memória:

“O nosso amor traduzia


Felicidade e afeição
Suprema glória que um dia
Tive ao alcance da mão… (...)

Meu amor, de nós dois,


Eu não sei qual é o mais infeliz.”

137
Therezinha Mello

Certa vez, quando acabou de cantar,


murmurou baixinho: “Eu não sei quem foi mais infeliz. Se
fui eu, ou se foi Coelho.”. Ela não sabia que eu a
observava. Nunca o chamou pelo primeiro nome.
Usava o sobrenome: Coelho. Provavelmente era
assim que ele devia ser conhecido no Exército,
quando lhe foi apresentado.

A Psicologia, ao tratar das memórias, nos


ensina que elas nem sempre são claras, conscientes e
objetivas. Podem ser afetivas, corporais, olfativas,
auditivas. Podem vir de recantos que conhecemos
pouco e precisamos ter a coragem de desbravar. Pois
foi um pouco visitando ambientes terapêuticos, outro
tanto estudando História, muito ouvindo pessoas que
o conheceram e, acima de qualquer coisa, visitando o
mais íntimo dos meus próprios lugares pessoais, que
o encontrei.

Gosto de pensar o mundo como uma enorme


família universal, agradam-me os valores socialistas
enxergando soluções que contemplam a todos nós.

138
Meu Pai -memórias Poéticas

Somos uma espécie. Somos semelhantes apesar de


únicos. Pensar no todo e reconhecer que “os meus”
são todos, que sou parte de algo maior, que tudo
influi em tudo, é uma linha de pensamento que
guarda coerência e humanidade em si. As injustiças
sociais que tanto incomodavam meu pai, acabaram
chegando cruas e dilacerantes até ele, a partir da
própria condição política do Brasil dos anos 30,
fazendo com que sentisse na pele o não ter e ter que ter
pra dar de Djavan. A falta do essencial aliada à
ausência de horizontes que apontassem para qualquer
forma de reversão.

Olga Benário, mulher de Luiz Carlos Prestes,


era militante comunista, foi presa pelo governo de
Vargas, deportada para a Alemanha e, lá, morta pelos
nazistas. Quando já adulta pude ler sua carta de
despedida, me chamou a atenção um trecho que,
imaginei, poderiam ser palavras de meu pai deixadas
à família, aos amigos: “Lutei pelo justo, pelo bom e pelo

139
Therezinha Mello

melhor do mundo. Prometo-te agora, ao despedir-me, que até o


último instante não terão por que se envergonhar de mim.” .

Eu me tornei fã do meu pai. Um espírito


libertário que, enquanto pôde, procurou lutar
defendendo seus pontos de vista. Ouso ombrear meu
discurso ao de Olga: não tenho por que me
envergonhar de meu pai, nem julgá-lo, nem olhar de
lado a vida que ele escolheu. Tenho, isto sim,
sentimento de admiração por sua autenticidade.
Drummond considerava que há uma coisa de
imponderável, de positivo, entre as pessoas do mesmo sangue e
da mesma família, que elas não percebem, mas que funciona.

Ao tentar reproduzir a caminhada de João


Coelho, a partir de 1939, foi impossível separar sua
existência da de minha mãe. Eles conseguiram o que
inúmeros casais almejam, sem sucesso, porque o
desafio é mesmo muito grande. Honraram a decisão
de construir, lado a lado, uma família e de mantê-la
sem dispersão, com todos os percalços. Amaram os
filhos e ensinaram a eles com o exemplo, o sentido

140
Meu Pai -memórias Poéticas

da lealdade e do companheirismo. Cumpriram o


papel de pais, baseados em sincero sentimento de
amor. Isso é sucesso.

Meu pai não teria tido forças para continuar


sob tantas críticas, incompreensões, julgamentos e
frustrações, se não acordasse todos os dias disposto a
buscar o melhor para minha mãe. E ela, que por
personalidade encarava seriamente e com muita fé
tudo o que fazia, não teria sido a mulher forte que foi
se não confiasse na fiel presença a seu lado do
homem que amava. Se não colocasse essa sua escolha
acima de qualquer outra. Tudo teria sido diferente se
eles tivessem desistido um do outro, ou ambos do
projeto inicial; mas isso nunca aconteceu. Sentiam-se
coautores de uma obra, especialmente junto aos
filhos, que cresceram funcionais, embora muito
diferentes entre si. Era essa a prioridade e
conseguiram conquistá-la. Foram humanos e dignos.

Eu agradeço ao meu pai a capacidade de


criticar o mundo em que vivo e minha insatisfação

141
Therezinha Mello

com as desigualdades sociais que persistem e só


crescem no meu país e no mundo. Sei que trago dele
a coragem de dizer o que penso. Quando olho o
mundo e me revoltam as injustiças, quando pesquiso
com critério o candidato que seleciono para nele
votar, quando os desrespeitos ao ser humano me
embrulham o estômago, quando choro pelas baixezas
do dia a dia, sei que ele me olha com satisfação e se
reconhece em mim. Se, de alguma forma, hoje
consigo representá-lo em suas convicções, no meu
próprio “estar no mundo”, isso é honra para mim.

Sei que posso me envaidecer dos pais que


tive, tão diferentes nas visões de mundo e tão unos
no caráter, na bondade e na tenacidade. Creio que foi
esse o legado, na minha leitura tão peculiar, do que
foi a vida de meu pai.

Imagino o cotidiano dos dois —


compreendendo, divergindo, brigando, esquecendo,
concordando — como qualquer casal. Tendo
segredos, planos, esperanças, preocupações e

142
Meu Pai -memórias Poéticas

cansaços, como qualquer casal. Mas tomo como


privilégio colecionar poemas apaixonados de meu pai
para minha mãe, que ela preservou enquanto viveu.
Isso é raro. E tenho o convívio de uma vida sob o
mesmo teto com ela, testemunhando que nem um
dia sequer, ela deixou de amá-lo. Isso também é
muito raro. Talvez tenha sido assim que comecei a
intuir as razões pelas quais devia, também eu, amá-lo
tão intensamente e de forma incondicional.

Os pianistas Nelson Freire e Martha Argerich


eram amigos desde crianças. Há uma cena no
documentário de João Moreira Salles — Nélson Freire
— em que os dois tocam, frente a frente,
entendendo-se por olhares e sorrisos. Tocavam a
mesma canção, não o mesmo piano, e o resultado era
uma harmonização perfeita.

Ela veio visitá-lo em 2021, quando Nelson


estava bem doente. Despediu-se e, já do carro que a
levaria ao aeroporto, decidiu retornar e tocar para ele
variações de Schubert que, por hábito, gostavam de

143
Therezinha Mello

executar juntos. O significado da peça tocada era: “eu


te amarei a vida toda”. Ele morreria dias depois.

Lendo essa história, lembrei meus pais:


tocaram afinadamente e por toda a vida a mesma
canção, ao mesmo tempo, embora em pianos
diferentes. Porque sabiam que, depois de tudo, se
tornariam um só, em tênue sublimação, imersos para
sempre na suavidade daquela melodia.

144
Meu Pai -memórias Poéticas

“Não é perante autoridades terrenas ou divinas que ele se


verga. (...) ajoelha-se perante sonhos e quimeras. O meu
marido é um homem bom.”

Mia Couto
O mapeador de ausências

145
146
AGRADECIMENTOS

Carlos Frederico Cardoso, pela amorosa ideia do projeto.

Laís Angela Mello e Flávia Luiza Mello, neta e sobrinha-


neta de João Coelho, por abraçarem a ideia.

Mirian Calabria, pela escuta permanente e em “ouvido


absoluto”, das minhas intenções.

Aos quatro, pelo carinho.

147
148
FONTES DE PESQUISA

Livros:

ANDRADE, Carlos Drummond de. Nova reunião:


23 livros de poesia. Rio de Janeiro: BestBolso, 2012.
p. 191.

ANDRADE, Carlos Drummond de. Uma forma de


saudade. Rio de Janeiro: Editora Schwarcz S.A., 2019.
p. 20

CERVANTES DE SAAVEDRA, Miguel de. Dom


Quixote de La Mancha. São Paulo: Abril Cultural,
1981.

COÊLHO, José Rodrigues Bastos. Coisas e vultos de


Aracaju. Rio de Janeiro: Jornal do Commercio, 1956.

COUTO, Mia. O mapeador de ausências. São Paulo:


Companhia das Letras, 2021. p. 154

JUNG, Carl Gustav. Memórias, sonhos, reflexões.


Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986. p.7-8.

MELO, Carlos Dias de. Apenas um homem de bem.


Rio de Janeiro: Fábrica de livros SENAI, 2002.

PESSOA, Fernando. Livro do desassossego. Jandira,


SP: Ciranda cultural, 2019. p.396.

149
Therezinha Mello

VIANA, Marly de Almeida Gomes. Revolucionários


de 35: sonho e realidade. São Paulo, Companhia das
Letras, 1992.

Artigos:

PANDOLFI, Dulce Chaves. A Aliança Nacional


Libertadora e a Revolta Comunista de 1935, 2004. In:
Getúlio Vargas e seu tempo. Rio de Janeiro: Banco
Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social,
[2004]. p. 175-182
PRESTES, Olga Benario. Carta de despedida de Olga
Benario, 1908. Disponível em:
http://www.pensarecausar.com/2011/08/carta-de-
despedida-de-olga-benario.html

ROCHA, Kelly Cristina Resende. Desvelando o


ensino em Sergipe: processos formativos de Opelina
Rollemberg (1919-1934). In: VI Congresso Nacional
de Educação, 2019, Fortaleza.
SERVIDOR JÁ pode contar com o IPASE, Rio de
Janeiro, Memorial da Democracia, 1938.
Disponível em:
http://memorialdademocracia.com.br/card/getulio-
cria-o-instituto-de- previdencia-e-assistencia-dos-
servidores-do-estado

150
Meu Pai -memórias Poéticas

Vídeos:

BUENO, Eduardo. Canal Buenas Ideias. A


revolução constitucionalista, Youtube, 20/06/2018.
Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=JsrlSnJXY5I .

VILLA, Marco Antonio; KARNAL Leandro. JC –


Debate sobre a revolução de 32, Youtube,
09/07/2014. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=rdHdIYBM2x
M.

Documentários:

1935, O ASSALTO ao poder. Direção de Eduardo


Escorel. São Paulo: Canal Curta!, 2002, 98 minutos.
Disponível em:
https://canalcurta.tv.br/filme/?name=1935_o_assalt
o_ao_poder_versao_longametragem

A GUERRA dos paulistas — Revolução


constitucionlista de 1932, TV Cultura, 2011.
Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=NxfQ4AQHk3
I.

151
Therezinha Mello

HISTÓRIAS do Brasil — A revolução de 30, TV


Senado, 2017.
Disponível em:
https://www12.senado.leg.br/tv/programas/historia
s-do-rasil/2017/02/revolucao-de-30-historias-do-
brasil .

SALLES, João Moreira. Nelson Freire, Canal Curta!,


2003. Disponível na plataforma Tamanduá.

O VELHO – A história de Luiz Carlos Prestes.


Direção de Toni Venturi. 1997,104 minutos.
Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=1u02uqMK6Ek

152
CATÁLOGO
PEÇA PELO SITE OU PELO TELEFONE
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Tel.: (21) 2147.0501 - 3597.6967
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Jorge da Capadócia, o menino guerreiro


Therezinha Mello – 2013
Livro infantil sobre a coragem, em que o herói enfrenta
um enorme dragão.

O relógio da sala
Annita Hartman – 2014
Prosas poéticas carregadas de sabedoria, delicadeza e
literariedade.

Seis tempos
Therezinha Mello – 2014
Contos sobre as emoções humanas: amor, afeto, tristeza,
alegria, medo e raiva.

153
Therezinha Mello

Minha história
Maria Luisa Tenório – 2014
Romance autobiográfico marcante, que convida à reflexão
sobre persistência e fé.

Na esquina do mundo
Luiz Augusto França – 2014
Encontro de adolescentes indígenas e portugueses,
durante as grandes navegações.

Cantilena de mulher – Poemas da alma feminina


Therezinha Mello – 2015
Poemas baseados nos conflitos, encantos e paixões da
mulher.

A batida do coração
Mariza Reis Raja Gabaglia – 2015
Poemas, contos breves e prosas poéticas.

O anjo de Copacabana
Fabio Bastos – 2015
Crônica sobre as peripécias de um anjo da guarda vivendo
em Copacabana.

Pedaços de mim
Denise Chaves da Fonseca – 2015
Poemas sobre superação e fé.

154
Meu Pai -memórias Poéticas

Menu poesia – Porque a alma tem fome de arte


Mônica Alves - 2015
Poemas intimistas, de reflexão psicológica.

Canários livres
Marcio Musa - 2016
Uma fábula sobre a liberdade.

Ser um cartão postal à porta de sua casa


Anna Maria Carneiro – 2016
Uma mulher na maturidade, um amor e a simbólica Paris,
em trama perfeita.

Um presente de Natal
Diversos autores – 2016
Primeiro volume da coletânea Novos talentos Capitolina, com
11 autores em textos sobre o Natal.

Minhas desmemórias – Poema autobiográfico


Marcos de Carvalho – 2017
Poema autobiográfico com narrativa competente e
profunda sobre a tortura dos “anos de chumbo” no Brasil.

A herança de Samantha
Luiz Augusto França – 2017
O realismo mágico confere à obra ares juvenis como os
cabelos azuis de Samantha, cuja herança acena, já no
título, à curiosidade do leitor.

155
Therezinha Mello

Crônicas inúteis
Fabio Bastos – 2017
O autor apresenta seleção de crônicas que considera mais
interessantes, em seus quinze anos de carreira, com
diversos livros publicados.

Amar futuro saudade


Ariadna Antares – 2017
Poesia de vida inteira, profunda e inquieta. Por vezes
chegaram à luz sangrando, em dor intensa. Outras, em
leveza simples, chamando a atenção em sutileza, para o
que é de fato essencial.

Virgindade perpétua de Maria


Hamilza Porthun - 2018
Com maestria acadêmica, mas sem deixar de lado a fé, a
autora adentra a um dos temas mais polêmicos sobre
Maria: sua virgindade, antes, durante e depois do parto de
Jesus.

Ocaso
Marina Fonseca – 2018
Para ser lido ou sorvido gole a gole, de modo compassivo,
deleitando-se com as inferências de quem tem a palavra
poética como velha conhecida.

Canteiros sem fim
Vânia Calmon – 2019
Memórias de Maria Margarida Faria Onofre, 91 anos, que
teve a vida dedicada ao trabalho solidário na cidade de
Vila Velha(ES).

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Meu Pai -memórias Poéticas

Trajetória de uma costureira


Maria Luisa Tenório – 2019
A autora resgata, em texto confessional, a capacidade
humana de perceber uma vocação e, ao mesmo tempo, de
ser fiel ao seu dom.

Mil toneladas de pecados


Fabio Kiefer - 2020
Uma história que fala da nossa humanidade,
transportando-nos de forma competente pelo autor, para
o lado sombrio dos centros urbanos, habitualmente
invisíveis à sociedade.

Semeando na madrugada e outros poemas


Maria Lúcia Rodrigues – 2021
Na obra, poesia passeia com delicadeza entre temas
cotidianos. Presta homenagem aos amores mais queridos,
reverencia os amigos, lembra com singeleza os tempos
idos, além de celebrar alegrias e elevar o espírito à
plenitude do sagrado.

Para você eu posso contar


Ezequiel Lemos - 2022
Conjunto de crônicas em que, segundo prefácio de Carlos
Eduardo Novaes, “Alguns textos evocam um sabor
nostálgico, outros nos chegam temperados pelo humor,
mas em todos, absolutamente todos, percebe-se a
presença da vida em ebulição,”.

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Este livro foi composto na tipologia Garamond,
no corpo 12. A capa em Cartão Supremo 250g e
miolo em papel Pólen Soft 80g/ m2
Impresso na gráfica da Editora Multifoco
www.editoramultifoco.com.br
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