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ANÁLISE DO DISCURSO, TEXTUAL E LEXICAL

Morte e vida severina


João Cabral De Melo Neto

Michela Graziosi

1 INTRODUÇÃO

João Cabral de Melo Neto, um dos maiores poetas brasileiros da terceira fase modernista, insere-se
cronologicamente naquela importante manifestação artistica do pós-guerra conheçida como
Gerãção de 45 mas, em virtude dos seus peculiares meios expressivos e estilísticos, de facto
consegue alçancar um lugar autónomo e privilegiado.
O seu é um percurso artístico interamente pessoal onde a poesia, lógica e racionalista, caracterizada
por uma rigorosa geometria formal e uma conotação objetiva, nasce de um trabalho consciente e
meticuloso, de um esforço intelectual e lúcido, concretizando-se numa linguagem enxuta e exata,
que não se deixa seduzir pelos sentimentalismos e pela inspiração1.
Morte e vida severina, auto de Natal pernambucano, uma das suas obras mais conhecidas, terçeira e
última da “trilogia do rio” 2, que daz voz a sua terra natal, o Pernambuco, e aos problemas dos
pobres trabalhadores rurais, constitui um lugar onde o autor se faz cantor da áspera e crua realidade
nordestina: além de representar a triste sorte dos retirantes, que nos períodos cíclicos da seca
escapam do Nordeste para chegarem ao litoral e tentarem fugirem da miséria, o texto contém
também uma mais ampla e universal reflexão sobre a condição humana. A odisseia de morte-vida
do protagonista Severino adquire portanto um valor paradigmático e liga todos os outros miseráveis,
todos os outros Severinos-irmãos, destinados à mesma, inexorável sorte:

Somos muitos Severinos


iguais em tudo na vida:
(…) E se somos Severinos
iguais em tudo na vida
morremos de morte igual,
mesma morte severina (…)3.

1 Cfr. “Morte e Vida Severina”, documentário da GloboNews disponível em http://especial.g1.globo.com/globo-


news/morte-e-vida-severina/. O repórter Gerson Camarotti lembra-se do exemplo que o escritor lhe deu para
explicar porque sempre negou a inspiração na sua poesia. Caso lhe acontecesse de acordar-se no meio da noite com
uma ideia na cabeça - afirmou o autor - esquecê-la-ia, porque não seria uma sua ideia mas um sonho que veio.
“Portanto – concluiu – é eco de alguma coisa. A ideia precisa ser o resultado de um esforço intelectual”.
2 Cfr. “Cão sem plumas” (1950), “O rio” (1953) e “Morte e vida Severina” (1955).
3 Cfr. João Cabral de Melo Neto, Morte e vida Severina (auto de natal pernambucano), Olympio, Rio de Janeiro
1979, p. 71.
Não foi por acaso que o escritor escolheu as formas populares dos autos medievais 4 e dos versos
redondilhos para tratar de um tema relacionado com o povo e a pobreza. Por meio desta peça
teatral, escrita entre 1954 e 1955 e comissionada por Maria Clara Machado, diretora do Teatro
Tablado do Rio de Janeiro, que precisava de uma obra para encenar no Natal, o autor tinha a
intenção de descrever os nordestinos, destinando o trabalho final ao povo; portanto era necessário
que ele encontrasse uma forma estética válida e adequada, a única possível para se exprimir:

O verso utilizado só poderia ser o popular, aquele que encontramos nos romances e
romanceiros. (…) Se utilizasse outra linguagem, se tivesse posto alexandrinos na boca de
um retirante analfabeto, teria caído na oratória, no requinte, e não atingiria o objetivo em
vista. O povo só sente o romanceiro popular5.

Inspiradora e marcante foi uma notícia lida pelo escritor que denunciava o baixo nível de esperança
de vida, de apenas 28 anos 6, no Pernambuco, terra de belezas naturais mas também de dor e de
contrastes sociais: terra onde as pessoas morrem antes dos trinta e já estão velhas, onde o rio é um
guia de traços humanos que indica um percorso de esperança, onde cantar exelências é o trabalho
mais rentável, onde as pessoas conhecem a morte em vida, a mesma morte severina/ que é a morte
de que se morre/ de velhice antes dos trinta,/ de emboscada antes dos vinte,/ de fome um pouco por
dia. Afinal, não possuindo o teatro os recursos técnicos necessários para a encenação e tendo a
diretora considerado a obra um auto de natal ilegítimo, decidiu-se não a montar, e em 1956 o texto
foi publicado como poema na coletânea “Duas Águas”. Por fim, em 1966 Morte e vida severina foi
representada como peça teatral no Teatro da Universidade Católica de São Paulo, com as músicas
do jovem Chico Buarque de Hollanda.
Embora com esta obra o autor não tencionasse fazer arte engajada mas poesia pura, objetiva e
racional, em linha com a sua poética, o elemento de crítica social é o que foi mais enfatizado pelos
críticos brasileiros e estas inferências políticas feitas sobre o poema irritaram-no. Numa entrevista
feita pelas tradutoras italianas Tilde Barini e Daniela Ferioli, Cabral explicou a essência do seu
trabalho artístico que tem a finalidade em si mesmo, na receção pelos leitores, na sua visibilidade
efetiva e na sua materialidade, exemplificando também o complicado e laborioso processo de
criação por meio de comparações práticas, duma maneira simples, lógica, racional:

Paul Eluard ha scritto un libro intitolato Donner à voir. Questo titolo sintetizza la mia
preoccupazione: voglio rendere visiva la mia poesia. Non so se Morte e vita severina aumenti o no
la coscienza sociale, se L'uovo di gallina rifletta una preoccupazione sociale. Io voglio soltanto
“donner à voir”. Per questo costruisco la mia poesia come un falegname costruisce una sedia, un
calzolaio un paio di scarpe. Anche il calzolaio, il falegname sentono l'angoscia della creazione. Il
poeta ha un'idea. Si mette al tavolino e comincia il suo lavoro. Alle volte deve aspettare anni prima
di arrivare a un risultato. Anche il giocatore di calcio che prepara il goal soffre, per creare, come il
falegname, il calzolaio, il poeta. Per me non esiste differenza fra i poeti e gli altri professionisti.

4 O auto é uma peça teatral em forma poética de origem medieval que trata de temas religiosos e profanos. Sendo uma
criação essencialmente popular, apresenta uma linguagem que integra vocabulário e expressões consagradas pelo
povo e divide-se em partes declamadas, bailados e cantos, geralmente acompanhados por pequenos conjuntos
musicais. Luiz Roncari em “O homem da terra”( Literatura brasileira: dos primeiros cronistas aos últimos
românticos, EDUSP São Paulo 1995, p. 84 1995) escreve: “os autos são formas de representação da Idade Média
que tiveram seu início com a encenação de quadros edificantes tirados da Bíblia (…). A princípio eram encenados
dentro da própria igreja, mas aos poucos foram sendo levados para fora dela, para a porta de entrada e para os pátios,
até chegarem às feiras e praças públicas. À medida que foram ganhando esses novos espaços, enriqueceram-se com
novos elementos, mais realistas e naturalistas, aproximando seus personagens dos homens comumns que foravam
seu público (…)”.
5 Cfr. Félix de Athayde, Idéias fixas de João Cabral de Melo Neto, Rio de Janeiro, Nova Fronteira/FBN, Mogi das
Cruzes: Universidade de Mogi das Cruzer 1998, p. 106 em Janaina de Alencar Mota e Silva Marandola, Caminhos
de Morte e de Vida. O rio severino de João Cabral de Melo Neto, Rio Claro, São Paulo 2007, p. 68.
6 Simbolicamente, na primeira parte da obra, Severino descreve o povo nordestino em 28 versos.
Tutti lottano contro la realtà, contro una materia che deve essere dominata 7.

Afastando-se completamente da ideologia e da erudição das palavras da Gerãçao de 45, criando


uma poesia anti-lírica e ancorada à realidade, objetivada em textos que fazem apelo ao raciocínio e
à inteligência do leitor, João Cabral de Melo Neto poderia ser aproximado mais ao concretismo, em
virtude da recusa da criação artística e da consideração da poesia como uma resultante de um
trabalho rigoroso e escrupoloso.

O título da obra é particularmente significativo porque apresenta aquela oposição tímica que
determina a linha argumentativa do texto e faz com que a narrativa se desenvolva, referendo-se ao
percurso físico e existencial do protagonista. Trata-se porém de um caminho ao contrário, que
sugere uma inversão da ordem natural das coisas, porque parte da morte para chegar à vida.
Severino deixa a sua terra de origem, uma serra magra e ossuda, onde a morte ataca em qualquer
idade,/ e até a gente não nascida, com a esperança de direcionar-se para uma perspetiva de vida. O
adjetivo no título indica portanto um destino comum às pessoas que moram no sertão nordestino e
que são condenadas a uma vida “severina”, ou seja uma existência amarga e triste, que parece quase
uma morte mascarada e que conduz à verdadeira morte em breve, ligando os moradores da terra por
meio de um fio indissolúvel, tornando-os irmãos e filhos da mesma sorte hostil e forçando-os à
emigração, para tentarem fugir desta situação cruel.
O contexto social afeta e uniformiza a vida que as personagens conduzem: o mesmo acontece em
Vidas Secas (1938) de Graciliano Ramos, onde a aspereza do sertão influencia as existências e os
caracteres dos membros da família do Fabiano. De facto, aqui também o título da obra é indicativo:
as vidas dos protagonistas, muitas vezes comparados aos animais, tornam-se “secas” porque
determinadas pelo sertão, o ambiente inóspito onde vivem e do qual fogem, trazendo com eles uma
esperança de resgate que se transformará em símbolo, ultrapassando os limites da catinga 8.
Ao longo da sua viagem Severino, que segue o percurso do rio-guia Capibaribe do sertão até o
Recife, encontra várias pessoas, guardiões de um mundo que parece parado num tempo antigo e
indefinido e que ele ainda não conhece, com as quais discute e reflete das privações e das
dificuldades da vida no Nordeste. Muitas vezes o nosso protagonista, cansado por causa da longa
jornada, pensa em interromper a sua linha e procurar um emprego, que nunca obtém: a morte é a
única entidade sempre presente no trajeto e, paradoxalmente, é ela que dá trabalho. Significativo é o
diálogo com a mulher sentada à janela que, depois de Severino ter-lhe perguntado se lá se
encontrava algum trabalho, pede-lhe informações sobre o que fazia na sua terra natal para lhe
atribuir uma tarefa adequada. Todavia, nenhuma das aptidões e dos ofícios do homem ligados à
terra são úteis e a mulher explica bem porque, fornecendo uma imagem do processo da morte lógico
e rápido, comparado a uma cultivação simples que não precisa de esforços:

7 Cfr. “Incontro con João Cabral de Melo Neto” em Morte e vita severina, Tilde Barini e Daniela Ferioli, Einaudi,
Torino 1973, pp. 14-15.
8 Cfr. Graciliano Ramos, Vidas Secas, Editora Record, Rio de Janeiro, Sao Paulo 2001, p. 126: “E andavam para o
sul, metidos naquele sonho. Uma cidade grande, cheia de pessoas fortes. Os meninos em escolas, aprendendo coisas
difícies e necessárias. Eles dois velhinhos, acabando-se como uns cachorros, inúteis, acabando-se como Baleia. Que
iriam fazer? Retardaram-se, temerosos. Chegariam a uma terra desconhecida e civilizada, ficariam presos nela. E o
sertão continuaria a mandar gente para lá. O sertão mandaria para a cidade homens fortes, brutos, como Fabiano,
Sinha Vitória e os dois meninos”.
Como aqui a morte é tanta,
vivo de a morte ajudar.
(…) É, sim, uma profissão,
e a melhor de quantas há (…).
Como aqui a morte é tanta,
só é possível trabalhar
nessas profissões que fazem
da morte ofício ou bazar.
Imagine que outra gente
de profissão similar,
farmacêuticos, coveiros,
doutor de anel no anular,
remando contra a corrente
da gente que baixa ao mar,
retirantes às avessas,
sobem do mar para cá
Só os roçados da morte
compensam aqui cultivar,
e cultivá-los é fácil:
simples questão de plantar;
não se precisa de limpa,
de adubar nem de regar;
as estiagens e as pragas
fazem-nos mais prosperar;
e dão lucro imediato;
nem é preciso esperar
pela colheita: recebe-se
na hora mesma de semear9.

Talvez o sonho que o levou a começar a viagem seja uma ilusão e Severino, desesperado, depois de
ter chegado finalmente ao Recife e ouvido a conversa de dois coveiros que falavam sobre os
retirantes que chegavam lá e em vez da vida encontravam a morte, decide suicidar-se nas águas do
rio. E enquanto ele, morto que ainda vive e espera apenas pelo enterro que o juntará à terra, aquela
terra que lhe deu uma vida de privações mas lhe permitiu continuar a sobreviver, vai interromper a
sua linha, o rio nunca a para, não seca, mas vai toda a vida:

E chegando, aprendo que,


nessa viagem que eu fazia,
sem saber desde o Sertão,
meu próprio enterro eu seguia.
Só que devo ter chegado
adiantado de uns dias;
o enterro espera na porta:
o morto ainda está com vida.
A solução é apressar
a morte a que se decida
e pedir a este rio,
que vem também lá de cima,
que me faça aquele enterro
que o coveiro descrevia:
caixão macio de lama,
mortalha macia e líquida,
coroas de baronesa
9 Cfr. João Cabral de Melo Neto, Op. cit., pp. 84-85.
junto com flores de aninga,
e aquele acompanhamento
de água que sempre desfila10.

O rio e o homem fazem parte de um sistema simbiótico onde se compenetram e confundem por
causa de uma condição de precariedade determinada pela seca, partilhada por ambos: o caminho do
nosso protagonista é inspirado e conduzido pelo rio, muitas vezes caraterizado por traços humanos,
que acaba por identificar-se com Severino e com o viver dos outros irmãos nordestinos, que nunca
param, sempre tinham fugido e fugirão da miséria, à procura de uma vida digna.
Afinal, durante o tempo em que o mestre carpina José, um das personagens com os quais Severino
depara na sua viagem, tenta dissuadi-lo do terrível propósito do suicídio dizendo-lhe que é preciso
enfrentar a vida cada dia porque ainda vale a pena viver embora não seja fácil, chega uma mulher
para anunciar ao trabalhador o nascimento do seu filho. Assim, a perca da esperança e do antigo
sonho e a morte iminente, concretizadas na imagem de Severino que quer tomar a melhor saída
saltando fora da ponte e da vida, são desviadas pelo nascimento dum menino que, saltando para
dentro da vida, com a sua presença nova e viva e o seu primeiro grito, parece vencer a morte e
reafirmar a esperança, a possibilidade cíclica de recriação da vida, mesmo que não seja uma
redenção, porque vai ser sempre uma existência severina. Mas o sentido da vida de Severino e dos
seus irmãos aqui está, em terem alcançado a consciência da própria condição severina e da
necessidade da luta quotidiana: o sentido da vida só existe se ela for vivida na sua totalidade, com
todas as sua dificuldades.

2 O TEXTO

A elaborada pesquisa linguística e o emprego de uma linguagem popular, áspera e escassa, muito
próxima da oralidade, constituem as caraterísticas mais marcantes do estilo desta obra singular.
O expediente linguístico-formal da iteração de palavras e frases articula o ritmo do poema como se
fosse uma cantiga de roda onde Severino parece um antigo cantor de baladas que utiliza um registro
linguístico de um tempo não bem definido; porém, de facto, ele narra apenas a fatigante
quotidianidade d a população a g r a r i a d o N o r d e s t e b r a s i l e i r o .
Lendo este texto de acordo com uma perspectiva intertestual, vejamos como o autor, para além da
meticulosa pesquisa e reconstrução geográfica e recuperação das suas memórias, trabalhou também
com elementos simbólicos da narrativa bíblica, com o folclore nordestino e com a poesia popular da
região pernambucana. Este cruzamento literário então determina os fios principais da trama desta
rica obra de natureza regionalista que, partindo de uma situação específica, porque definida
territorialmente e historicamente, desenrola a narrativa que adquire progressivamente um valor
universal.

La redondilha, con la sua variabilità di accenti, snoda dialoghi e storie, confessioni e cori, con tutta
naturalezza, intorno al tema spaventoso dei retirantes, uomini che la siccità scaccia dal paese e
trasforma in bestiame inutilmente raccolto nella dignità della sua purezza. Il ricordo del Natale
evangelico (e si ricordi che Cabral è tenacemente laico) s'introduce pienamente in questa favola
profana, per la sua stessa concretezza di tradizione popolare e scenica. L'obiettivo finale è un
consiglio senza ottimismo dato al povero Severino (…), un consiglio della vita alla vita, spiegabile
per se stessa e che si rifà alla sua pazienza. Pesa ancora dunque, in Cabral, il mito della “natura”?
Ma qui è la sua natura: di lui poeta; il suo occhio, intriso delle cose familiari. Sicché non pare

10 Cfr. Ibidem, pp. 99-100.


onesto prestargli, o domandargli, un'ideologia11.

Para escrever os monologos do retirante Severino, o autor recuperou do seu passado também a
literatura de cordel12, uma das mais populares e acessíveis do Nordeste, com a qual ele relacionou-
se desde que era pequeno e que carateriza a estrutura poética, a linguagem e o tema da obra. De
facto o público que o escritor esperava atingir era o povo inculto, aquelas pessoas que tinham uma
história parecida com a de Severino; porém estas não manifestaram interesse pelo texto ou nunca o
conheceram e foi por esta razão que o autor definiu Morte e vida severina um poema fracassado
que gerou um grande mal-entendido:

Eu tenho a impressão de que [Morte e vida severina] é um poema fracassado. Escrevi para esse
leitor ou auditor do romanceiro de cordel, para esse Brasil de pouca cultura, e esse Brasil nunca
manifestou nenhum interesse por ele. Quem manifestou interesse por ele foi o Brasil das capitais, o
Brasil que vai aos teatros. Foi um grande mal-entendido. Quem gosta dele é gente para quem eu
não escrevi. E a gente para quem eu escrevi nunca tomou conhecimento dele13.

O RETIRANTE EXPLICA AO LEITOR QUEM É E A QUE VAI

O meu nome? Severino, → palavra-chave


como não tenho outro de pia.
Como há muitos Severinos, → anáfora
que é santo de romaria,
deram então de me chamar
Severino de Maria;
como há muitos Severinos → anáfora
com mães chamadas Maria,
fiquei sendo o da Maria
do finado Zacarias.
Mas isso ainda diz pouco: → anáfora
há muitos na freguesia,
por causa de um coronel
que se chamou Zacarias
e que foi o mais antigo
senhor desta sesmaria.
Como então dizer quem fala
ora a Vossas Senhorias?
Vejamos: é o Severino
da Maria do Zacarias,
lá da serra da Costela,

11 Cfr. Ruggero Jacobbi, Poesia brasiliana del Novecento, Longo Editore, Ravenna 1973, pp. 56-57.
12 A literatura de cordel é um gênero literário oral e popular, em prosa ou em verso, impresso em folhetos. O nome
vem da península ibérica, onde esses impressos eram exibidos e vendidos dependurados ou cavalgando cordões que,
em provençal, significa “cordel”. Escritos em forma rimada, muitos dos poemas eram ilustrados e tinham
xilogravuras; de custo baixo e tom humorístico, retratavam principalmente acontecimentos de vida cotidiana da
cidade ou da região. Em algumas situações os poemas eram acompanhados de violas e recitados em praças para o
público.
13 Cfr. Cfr. Félix de Athayde, Op. cit., p. 110 in Braz Pinto Junior, Alusão e intertexto: a dinâmica da apropriação em
Morte e vida severina, UFGD, Dourados 2014, p. 36.
limites da Paraíba.
Mas isso ainda diz pouco: → anáfora
se ao menos mais cinco havia
com nome de Severino
filhos de tantas Marias
mulheres de outros tantos,
já finados, Zacarias,
vivendo na mesma serra → palavra-chave
magra e ossuda em que eu vivia. → hendíadis, metáfora, prosopopeia
Somos muitos Severinos
iguais em tudo na vida: → palavra-chave
na mesma cabeça grande
que a custo é que se equilibra,
no mesmo ventre crescido
sobre as mesmas pernas finas,
e iguais também porque o sangue → metáfora
que usamos tem pouca tinta.
E se somos Severinos
iguais em tudo na vida,
morremos de morte igual, → palavra-chave
mesma morte severina: → palavra-chave
que é a morte de que se morre “de”→ anáforas
de velhice antes dos trinta,
de emboscada antes dos vinte,
de fome um pouco por dia
(de fraqueza e de doença → hendíadis
é que a morte severina
ataca em qualquer idade,
e até gente não nascida). → perífrase
Somos muitos Severinos
iguais em tudo e na sina: → palavra-chave
a de abrandar estas pedra “a” → anáforas
suando-se muito em cima,
a de tentar despertar
terra sempre mais extinta, → antítese
a de querer arrancar
algum roçado da cinza. → antítese
Mas, para que me conheçam
melhor Vossas Senhorias
e melhor possam seguir
a história de minha vida,
passo a ser o Severino
que em vossa presença emigra.

Severino, voz narrativa do texto e singular cantor de baladas da serra da Costela, apresenta-se ao
leitor antes de referir a história da sua vida, ou melhor, da sua emigração para encontrar a vida.
Todavia não é simples: o seu único nome é Severino, assim como se chama um santo conhecido e
venerado, portanto há muitos outros Severinos e não são suficientes as referências à mãe, ao pai e
ao lugar de origem. Há muitos outros Severinos, filhos de tantas Marias e tantos Zacarias, que
vivem no mesmo sitio árido, uma serra magra e ossuda, como o sertanejo faminto e esquelético.
Existe portanto uma sintonia entre o sertão e os homens severinos, ambos desolados e secos: à
humanização da paisagem correspondem a naturalização e a homogeneização da humanidade, num
subtil jogo simbiótico de equivalências. Desde os primeiros versos Severino acaba por perder a sua
individualidade, confluir e confundir-se na coletividade anónima dos muitos Severinos/ iguais em
tudo na vida, que morrem da mesma morte: quanto mais Severino tenta definir-se, menos
individualiza-se porque outros homens partilham os seus traços biográficos e fìsicos, e é assim que
se determina a mudança gramatical do substantivo “Severino”, que acaba por tornar-se um adjetivo
utilizado para sublinhar as caraterísticas da inteira coletividade e do seu destino. A condição de
morte em vida é amplificada pelas imagens da cabeça grande, do ventre crescido e das pernas
finas, que fazem pensar em seres desnutridos mais próximos à morte do que a vida e também na
extensão enorme de uma paisagem vazia e estéril, de acordo com aquela simbiose entre os humanos
e o ambiente natural que mencionámos antes. E esta morte niveladora, que marca a existência do
grupo dos Severinos que transcendem o síngulo indivíduo, anula também a dimensão do tempo e
das fases da vida. De qualquer forma morre-se sempre: antes dos trinta por causa de uma velhice
antecipada, antes dos vinte por causa das emboscadas, e em qualquer idade de fome, de fraqueza e
de doença, um pouco por dia. Até antes de serem nascidas as crianças são condenadas a esta sina
terrível e inelutável; e se a vida significa faticar em vão, tentar despertar/ terra sempre mais extinta
e sofrer esperando o fim dos dias e das penas, na relação de oposição entre as duas faces da mesma
moeda a morte parece ligeira e silenciosa enquanto a vida se configura mais sólida e pesada. Afinal
é a tensão morte-vida que, resolvendo-se na luta quotidiana para continuar a viver, conduz à fuga-
caminho de Severino e dos outros irmãos, que é, ao mesmo tempo, percurso da coletividade e
pesquisa e afirmação da individualidade e da sobrevivência de cada um.

ENCONTRA DOIS HOMENS CARREGANDO UM DEFUNTO NUMA REDE, AOS GRITOS


DE "Ó IRMÃOS DAS ALMAS! IRMÃOS DAS ALMAS! NÃO FUI EU QUE MATEI NÃO!"

— A quem estais carregando,


irmãos das almas, → anáfora principal do trecho
embrulhado nessa rede?
dizei que eu saiba.
— A um defunto de nada,
irmão das almas,
que há muitas horas viaja
à sua morada.
— E sabeis quem era ele,
irmãos das almas,
sabeis como ele se chama → figura etimológica
ou se chamava?
— Severino Lavrador, → anáfora
irmão das almas,
Severino Lavrador, → anáfora, figura etimológica
mas já não lavra. → figura etimológica
— E de onde que o estais trazendo,
irmãos das almas,
onde foi que começou
vossa jornada?
— Onde a Caatinga é mais seca,
irmão das almas,
onde uma terra que não dá nem planta brava.
— E foi morrida essa morte,“morrida, morte” → anáforas, figuras etimológicas
irmãos das almas,
essa foi morte morrida
ou foi matada? → anáfora
— Até que não foi morrida,
irmão das almas,
esta foi morte matada,
numa emboscada. → anáfora
— E o que guardava a emboscada,
irmão das almas,
e com que foi que o mataram,
com faca ou bala? → anáfora
— Este foi morto de bala,
irmão das almas,
mais garantido é de bala,
mais longe vara.
— E quem foi que o emboscou,
irmãos das almas,
quem contra ele soltou
essa ave-bala? → palavra-chave, metáfora
— Ali é difícil dizer,
irmão das almas,
sempre há uma bala voando
desocupada.
— E o que havia ele feito, → anáfora
irmãos das almas,
e o que havia ele feito
contra a tal pássara?
— Ter um hectares de terra,
irmão das almas,
de pedra e areia lavada
que cultivava.
— Mas que roças que ele tinha,
irmãos das almas,
que podia ele plantar
na pedra avara? → prosopopeia, → antítese
— Nos magros lábios de areia, → prosopopeia
irmão das almas,
os intervalos das pedras,
plantava palha.
— E era grande sua lavoura,
irmãos das almas,
lavoura de muitas covas,
tão cobiçada?
— Tinha somente dez quadros,
irmão das almas,
todas nos ombros da serra,
nenhuma várzea.
— Mas então por que o mataram, → anáforas
irmãos das almas,
mas então por que o mataram
com espingarda?
— Queria mais espalhar-se,
irmão das almas,
queria voar mais livre
essa ave-bala.
— E agora o que passar?
irmãos das almas,
o que é que acontecerá contra a espingarda?
— Mais campo tem para soltar,
irmão das almas,
tem mais onde fazer voar
as filhas-bala.
— E onde o levais a enterrar,
irmãos das almas,
com a semente de chumbo → oxímoro
que tem guardada?
— Ao cemitério de Torres,
irmão das almas,
que hoje se diz Toritama,
de madrugada.
— E poderei ajudar,
irmãos das almas?
vou passar por Toritama,
é minha estrada.
— Bem que poderá ajudar,
irmão das almas,
é irmão das almas quem ouve
nossa chamada.
— E um de nós pode voltar,
irmão das almas,
pode voltar daqui mesmo
para sua casa.
— Vou eu, que a viagem é longa, → inversão
irmãos das almas,
é muito longa a viagem → inversão
e a serra é alta.
— Mais sorte tem o defunto,
irmãos das almas,
pois já não fará na volta
a caminhada.
— Toritama não cai longe,
irmão das almas,
seremos no campo santo
de madrugada.
— Partamos enquanto é noite,
irmão das almas,
que é o melhor lençol dos mortos
noite fechada. → metáfora, anástrofe
As primeiras personagens que Severino encontra no seu percurso são dois homens que carregam
numa rede um defunto de nada, cujo nome é Severino. Esta figura introduz uma das várias
tipologias de morte com a qual o nosso protagonista depara, ou seja aquela matada, que evidencia a
violência no sertão e denuncia alguns hábitos típicos da região, como as disputas de propriedade de
terras, divididas em latifúndios, e a impunidade das mortes consequentes. A única culpa de
Severino Lavrador, de facto, consistia apenas em possuir alguns hectares de terra que cultivava,
porém não lucrativos, porque ele tinha somente dez quadras/ (…) todas nos ombros da serra, de
pedra e areia lavada. Por isso o homem, representado simbolicamente através da figura do ave-
bala, queria fugir desta situação de miséria mas não conseguiu fazê-lo porque encontrou a morte em
breve. E agora em si traz o signo indelével da violência dos grandes proprietarios, a semente de
chumbo: a locução é intensa e contém a oposição entre a leveza da semente, que é a origem da vida
das plantas, e o chumbo pesado, que sugere uma sensação de opressão definitiva e contrasta
também com a figura do ave-bala e o seu desejo de liberdade em vida, que paradoxalmente acaba
por tornar-se uma possibilidade ganha com a morte. Depois de ter ouvido o relate dos homens,
Severino oferece-lhes a sua ajuda para carregarem o defunto e levarem-no ao cemitério.
Desde o início o diálogo carateriza-se pelo vocativo irmãos da alma que se repete em cada pergunta
e resposta e faz com que os versos assumam o ritmo e a musicalidade de uma ladainha religiosa. A
iteração e as variações ao redor do campo semântico da morte (morte, morrida, matada, mataram)
amplificam quer a ferocidade quer a “normalidade” do homicídio e a banalidade do mal. Também
aqui a morte parece ser mais leve do que a vida, dado que só uma vez falecido o defunto vai ter a
possibilidade de voar mais livre (Mais campo tem para soltar/ (…) tem mais onde fazer voar/ as
filhas-bala). Incisivo e subtilmente veemente é o humor negro duma das últimas respostas de um
dos irmãos da alma (Mais sorte tem o defunto/irmão das almas/ pois já não fará na volta/ a
caminhada), cuja origem, explicada pelo escritor, está relacionada com uma crua e verdadeira
história que ele aprendeu na Espanha:

Dizem que na época de Franco, ele mandava fuzilar seus inimigos num lugar chamado Sória, o
mais frio do país. Conta-se que, um dia, um condenado virou-se para os soldados que iriam
executá-lo e disse: “Puxa, como faz rio neste lugar”. Ao que um dos soldados respondeu: “Sorte
tem você, que não precisa fazer o caminho de volta”. Foi assim que essa frase foi parar no meio de
Morte e vida severina. Há mais humor negro do que isso14?

O RETIRANTE TEM MEDO DE SE EXTRAVIAR PORQUE SEU GUIA, O RIO CAPIBARIBE,


CORTOU COM O VERÃO

— Antes de sair de casa


aprendi a ladainha → referência metalinguística
das vilas que vou passar
na minha longa descida.
Sei que há muitas vilas grandes,
cidades que elas são ditas; → anástrofe
sei que há simples arruados, → anáforas
sei que há vilas pequeninas,
todas formando um rosário → palavra-chave, metáfora
cujas contas fossem vilas,
todas formando um rosário
14 Cfr. João Cabral de Melo Neto, Cadernos de Literatura Brasileira, São Paulo, Instituto Moreira Salles, n.1, mar. de
1996, p. 27.
de que a estrada fosse a linha.
Devo rezar tal rosário
até o mar onde termina,
saltando de conta em conta,
passando de vila em vila.
Vejo agora: não é fácil → lítotes
seguir essa ladainha;
entre uma conta e outra conta,
entre uma a outra ave-maria,
há certas paragens brancas,
de planta e bicho vazias, → anástrofe
vazias até de donos,
e onde o pé se descaminha.
Não desejo emaranhar
o fio de minha linha
nem que se enrede no pêlo
hirsuto desta caatinga.
Pensei que seguindo o rio → palavra-chave
eu jamais me perderia:
ele é o caminho mais certo,
de todos o melhor guia.
Mas como segui-lo agora
que interrompeu a descida?
Vejo que o Capibaribe,
como os rios lá de cima,
é tão pobre que nem sempre
pode cumprir sua sina
e no verão também corta,
com pernas que não caminham. → prosopopeia
Tenho de saber agora
qual a verdadeira via
entre essas que escancaradas
frente a mim se multiplicam.
Mas não vejo almas aqui,
nem almas mortas nem vivas;
ouço somente à distância
o que parece cantoria.
Será novena de santo,
será algum mês-de-Maria;
quem sabe até se uma festa
ou uma dança não seria? → anáforas, figuras etimológicas

Severino tem medo de perder-se porque o rio-guia Capibaribe secou com o verão. O percurso do
retirante, feito de vilas grandes e pequeninas e de arruados, parece assumir a forma de um rosário,
que traz consigo uma rica simbologia: as suas contas são as vilas e cidades e o rio constitui a sua
linha circular, assim como a vida dos Severinos que seguem o ciclo da seca, afastando-se da terra de
origem para sobreviverem e voltando no período de chuva. A reza do rosário corresponde ao
caminho de Severino, ao cumprimento progressivo e inelutável do seu destino, mas também àquela
imanente sensação de proteção que reside na firmeza da sua alma: ele sabe que deve rezar o rosário,
embora não seja fácil seguir a ladainha, ou seja a sua confiança religiosa, nem lidar com as
paragens brancas e o pêlo hirsuto da caatinga, símbolos das dificuldades “descontínuas” que ele
encontra no seu percurso e que fazem com que o pé se descaminhe; em contraposição, a linha
circular do rio-guia é o caminho mais certo 15. Todavia o Capibaribe acaba por tornar-se parecido
aos homens que fogem da seca: ele é pobre e nem sempre consegue terminar o seu curso,
particularmente no verão, quando as suas pernas não caminham. Mas é necessário que Severino
reaja e pesquise a sua via e no preciso momento em que ele pensa em tudo isso, antes de encontrar e
seguir novamente o curso do rio, de longe chegam novas melodias de morte.
Além do rosário, neste trecho há outras referências aos elementos da religiosidade, que caraterizam
o “sentimento” da região e dos habitantes: a ladainha, que é também uma pista metalinguística
porque os versos partilham com ela a mesma musicalidade e o mesmo ritmo, a ave-maria, a novena
de santo, e por fim a referência ao mês-de-Maria.

NA CASA A QUE O RETIRANTE CHEGA ESTÃO CANTANDO EXCELÊNCIAS PARA UM


DEFUNTO, ENQUANTO UM HOMEM, DO LADO DE FORA,VAI PARODIANDO AS
PALAVRAS DOS CANTADORES

— Finado Severino,

quando passares em Jordão

e o demônios te atalharem

perguntando o que é que levas...


— Dize que levas cera,

capuz e cordão

mais a Virgem da Conceição.


— Finado Severino, etc. ...
— Dize que levas somente

coisas de não: fome, sede, privação. → climax


— Finado Severino, etc. ...
— Dize que coisas de não,

ocas, leves:

como o caixão, que ainda deves.


— Uma excelência

dizendo que a hora é hora.


— Ajunta os carregadores

que o corpo quer ir embora.


— Duas excelências...
15 Vejamos também a escolha exata e emblemática do verbo e do substantivo na oposição entre o pé se descaminha e o
caminho mais certo do rio.
— ... dizendo é a hora da plantação. → metáfora
— Ajunta os carregadores...
— ... que a terra vai colher a mão. → metáfora, anástrofe

Continuando com o seu percurso, Severino ouve de longe um canto que provém de uma casa onde
se executam excelências para um defunto, simbolicamente chamado, de novo, Severino. Um
homem do lado de fora vai parodiando as palavras dos cantadores: assim uma outra morte marca o
c a m i n h o do retirante e parece anular a perspetiva de vida e de es perança.
Ainda uma vez a leveza da morte é sublinhada pelas coisas de não que o defunto deve levar consigo
e anunciar aos demônios-guardões do rio Jordão: trata-se de uma outra referência ao culto cristão,
através da trasformação do rio Aqueronte, de pagã memória, no bíblico Jordão, onde Jesus recebeu
o batismo e que os israelitas ultrapassaram quando entraram na terra de Canaan.
As coisas ocas e leves representam as dificuldades de uma vida inteira: fome, sede, privação e o
mesmo caixão que em breve se tornará pesado, por causa do cadáver que trará consigo também a
gravidade da vida que já não é mais. De acordo com uma metáfora recorrente no texto, afinal a
morte é representada como uma coltura, um processo natural, que tem o seu tempo, o seu ritmo e as
suas fases: é a hora de plantação/ (…) a terra vai colher a mão.

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