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Padre Giovanni Battista Scaramelli, s.j.
1ª edição – março de 2015 – CEDET
Título Original: Discernimento de’ spiriti – per il retto regolamento dela azioni proprie, ed
altrui; esta edição tem como texto base o da edição espanhola, Discernimiento de los
espiritus – para governar rectamente las acciones próprias e las de otros; obra muy util,
especialmente a los diretores de las almas, Madrid, Imprensa de La Regenaracion, 1859 –
com cotejo com o texto original italiano (Veneza, Appresso Simone Acchi, 1764) e da
versão francesa (Paris, Hte. Walzer, Libraire-Éditeur, 1893).
CEDET LLC is licensee for publishing and sale of the electronic edition of this book
CEDET LLC
1808 REGAL RIVER CIR - OCOEE - FLORIDA - 34761
Phone Number: (407) 745-1558
e-mail: cedetusa@cedet.com.br
Editor:
Diogo Chiuso
Editor-assistente:
Thomaz Perroni
Tradução:
Leonardo Sera ni Penitente
Revisão:
Gustavo Nogy
Capa & editoração:
Laura Barreto
Conselho Editorial:
Adelice Godoy
César Kyn d’Ávila
Diogo Chiuso
Silvio Grimaldo de Camargo
ECCLESIAE – www.ecclesiae.com.br
Reservados todos os direitos desta obra. Proibida toda e qualquer reprodução desta edição
por qualquer meio ou forma, seja ela eletrônica ou mecânica, fotocópia, gravação ou
qualquer meio.
FICHA CATALOGRÁFICA
Discernimento dos espíritos: para a correta condução de nossas ações e das ações de nossos
semelhantes / Padre Giovanni Battista Scaramelli, s.j.; tradução de Leonardo Sera ni
Penitente – Campinas, SP: Ecclesiae, .
Título original: Discernimiento de los espiritus – para governar rectamente las acciones
próprias e las de otros
ISBN: 978-85-8491-003-8
– .
Í
CAPÍTULO X
Explicam-se alguns instintos (movimentos)
de espíritos duvidosos ou incertos (suspeitos)
CAPÍTULO XI
Expõem-se as diversas maneiras como o
espírito do Senhor opera nas almas
CAPÍTULO XII
Expõem-se as diversas astúcias com as quais
o demônio, com seu perverso espírito, engana as almas
CAPÍTULO XIII
Manifestam-se as ilusões com que o demônio
engana as almas incautas, começando neste
capítulo pelas ilusões que acontecem na oração
CAPÍTULO XIV
Das ilusões diabólicas que acontecem na
prática das virtudes e dos vícios
CAPÍTULO XV
Expõem-se brevemente as características
do espírito humano
IMPRIMI POTEST
R. P. Joannes Antonius Timoni, s.j.
In Provincia Romana
Praepositus Provincialis
§I
1. O Apóstolo São João nos adverte para que não sejamos fáceis em
dar crédito a qualquer espírito, mas que examinemos diligentemente,
primeiro, se é de Deus, ou se traz sua origem de outra causa que não
seja boa.17 Santo Agostinho,18 sobre estas palavras, deduz e fala da
seguinte maneira:
Quisera fazer prova de tais espíritos, se estivesse seguro de não errar; porque se eu
não tenho experiência e averiguação dos espíritos que trazem sua origem de Deus,
afundarei naqueles espíritos que nascem de outro princípio, e carei enganado. Que
posso fazer, pois, para experimentar semelhantes espíritos, e não me enganar? Ó,
quisera Deus, que nos ordenou, como a São João, a averiguação dos espíritos que
nascem Dele, ter se dignado a nos dar as regras para conhecê-lo e discerni-lo!19
Assim ele escrevia, e não re etia, já que, se bem não nos dá estas
regras o Santo Apóstolo, elas nos são fornecidas por outras partes da
Sagrada Escritura, pelos Santos Padres, pelos Santos e Doutores. E
estas bastam para se formar um prudente juízo de qualquer espírito, se
é bom ou mau: nisso consiste ter um bom discernimento dos espíritos;
e isto será o que faremos no decorrer deste livro.
§ II
§ III
§. I.
§. II
§. III
§. IV
§. I
§ II
§ III
§ IV
§. V
§ I.
§. II
§I
§. II
§. III
§. IV
§. V
§. VI
§. VII
Mas para fazer isto, quem não vê que não pode bastar um exame
super cial e precipitado, senão que se requer a mais exata e diligente
pesquisa?
4. Mas porque é – de poucos o penetrar o segredo dos corações de
outros, para examinar os impulsos e movimentos como são em si
mesmos, é necessário que observemos as operações exteriores, e que
nos indícios que estas nos dão fundemos o juízo das moções interiores
do ânimo, e nisso consiste a discrição dos espíritos. Esta regra nos dá
o Salvador.135 Não podemos entrar (quer dizer o Divino Mestre) nas
profundezas da árvore, ou em suas raízes, para ver sua qualidade; e
assim devemos observar o fruto que ela produz, e da qualidade dele
argüir se a árvore é boa ou má. E concluí que a mesma norma
devemos guardar com as pessoas; isto é, deduzir do que se mostra por
fora aquilo que está velado lá dentro.136 Vejo, diz Santo Agostinho,
teus pensamentos, porque, se bem não penetro com a vista de minha
mente o interior de tua consciência, vejo tuas obras, que são o fruto,
isto é, o efeito de teus pensamentos. Nisto, pois, há de empregar o
Diretor toda a sua sensatez e diligência; em observar atentamente as
obras externas de seus discípulos, para entender, pelo que se vê, o que
não se pode ver, e por um julgar o outro. Deve também indagar os ns
a que se endereçam os movimentos interiores do ânimo; porque assim
como do m se deriva toda a malícia ou bondade de nossos atos, de
igual maneira desses ns retamente se argüi o que são, se bons ou
maus. Sobretudo, deve examinar minuciosamente as circunstâncias, já
que, por causa destas nossas ações, cam freqüentemente viciadas ou
perfeitas. Em suma, assim como nos Provérbios uma mulher diligente
é chamada de coroa de seu marido, assim pode dizer-se que um
Diretor diligente e cuidadoso em examinar os procedimentos de seus
discípulos, é a coroa de seus méritos, porque o conduz seguramente a
uma grande perfeição.
§. VIII
§I
§ II
§. IV
E por isso, como nos ensina o mesmo Santo Doutor, a esta luz
devemos sempre aspirar, devemos amar, temos que buscá-la
ansiosamente, sedentos para que a consigamos, e, vivendo com ela,
jamais morramos.150
2. Nem por isso nego que talvez Deus ponha em trevas certas almas
queridas por Ele, e as deixe submersas nelas por largo tempo.151 Mas
se deve advertir que nestes casos toda a obscuridade está na fantasia, à
qual não passa a luz intelectual, que está contida integralmente no
entendimento; e embora esta seja, às vezes, tão espiritual e tão pura,
que não a conhecem aqueles que a possuem, não deixa de guiar, sem
embargo, a potência intelectiva e de encaminhá-la a Deus. E, com
efeito, se vê claramente que assim acontece, porque aquelas pessoas
envolvidas em espessas trevas prosseguem agindo como antes, com
muita perfeição, dirigidas indubitavelmente pela luz divina. Disso deve
tomar nota o Diretor para saber se seu discípulo é movido por Deus
em suas operações mentais, pois reconhecendo nele uma mente que
procede com retidão e santidade de pensamentos, pode crer
justamente que ali reina o Pai das luzes.
§. V
§. VI
§ VII
§I
§. II
§ III
§ IV
§. V
Vós não compreendeis a minha fala, porque não podeis ouvir minhas palavras.172
§. VI
O m, pois, que ele (demônio) tem em sugerir que o bem seja feito a
descoberto é perverso, porque quer que que corrompido de vanglória
ao torná-lo exposto e elogiado pelos homens: só para serem vistos
pelos outros. Procura também que os favores, as ternuras, as falsas
lágrimas, os êxtases ngidos e outros aparentes favores que faz o
demônio de ordinário, ocorram em público, já que ali existe
freqüência de gente, porque quer que as obras de seus sequazes sejam
vistas pelos outros. Mas Jesus Cristo, todo ao contrário, disse: ”Se
queres repartir esmolas, guarda-os de fazê-lo como os hipócritas, que
distribuem nas sinagogas e nos lugares públicos; se queres fazer
oração, guarda-os de imitar estes pér dos que gostam de fazer sua
oração nas sinagogas e nas esquinas das praças, com o qual todas as
obras desabam, roídas pelo verme da vaidade”.180 “Mas tu”,
prossegue dizendo o Redentor, “querendo dar esmolas, dê-as em
segredo; querendo oração, faça-as em teu aposento, e ali, a sós, rogue
a teu Pai celestial. Excetuam-se, contudo, aqueles casos especiais nos
quais quer Deus, por motivos de grande glória Sua, que as obras boas
e os favores que faz apareçam em público”.
6. Não guarda, nalmente, o devido respeito às qualidades das
pessoas. Num solitário, diz Ricardo de São Vitor, que deve atender à
quietude da contemplação, desperta os demônios pensamentos de
fazer grande bem ao próximo.181 Nos principiantes, que não estão
ainda arraigados na virtude, e devem atender ao próprio
aproveitamento, mete também o inimigo semelhante sugestão de
ajudar às almas dos outros, como nota Santa Teresa: mas não sendo
eles ainda aptos para engendrar lhos espirituais com seus
ensinamentos, segue-se que a outros não são de proveito, e a si
mesmos se fazem dano com semelhantes desejos. Contra semelhantes
principiantes, que seguem este instinto indiscreto e diabólico, levanta-
se e os repreende fortemente São Bernardo, dizendo o seguinte: “tu
que ainda não estás rme em tua conversão, que não tens clareza, ou a
tens tão tenra e frágil, que a qualquer vento de contrariedade se
enverga; tu, digo, conhecendo-te por tal, pretendes agenciar a salvação
dos outros? Que necessidade é a tua, meu irmão?”182
7. Ao contrário, àqueles que, por obrigação de seu ofício, devem
atender à saúde dos próximos, costuma meter o demônio exagerado
amor ao retiro, à quietude, à solidão, e um temor indiscreto de
manchar a própria consciência com o exercício das obras exteriores de
caridade. Como o fez a santa esposa, que, acordada à meia-noite por
seu marido, em vez de deixar logo sua quietude para ir ao seu
encontro, começou a escusar-se dizendo: “já me desnudei, não quero
mais colocar meu vestido; já lavei meus pés, não quero mais uma vez
sujá-los”.183 Neste temor da esposa de sujar seus pés e voltar a colocar
os vestidos, reconhece São Gregório o exagerado temor que têm
alguns, aos quais toca o cuidado das almas, de revestir-se dos antigos
afetos e de contrair as passadas manchas.184 Assim também desperta o
demônio nos superiores um pensamento demasiado solícito de
consagrar-se à oração, a m de que não velem, como o pede seu
ofício, sobre os afazeres de seus súditos; nas cabeças das famílias, para
que não atendam, como devem, à educação dos lhos e criados; e nas
mulheres, para que não cumpram com pontualidade suas tarefas, e
sejam causa de muitas inquietudes e de muitos prejuízos a seus
domésticos. Em suma, sabe o demônio que a discrição é o sal que dá
tempero a todas as boas obras e as tornam agradáveis a Deus, e por
isso, não podendo impedir, esforça-se ao menos a pô-las a perder com
toda a sorte de indiscrição e de imprudência. Por isso disse Ricardo
que nos impulsos interiores devemos examinar sempre se se mescla
alguma indiscrição.185 E por este caminho poderá o Diretor adquirir
muita luz para discernir se as almas que dirige são movidas a agir pelo
espírito diabólico.
§. VII
§. I
§. II
§. III
Daí se segue que ela tem duas partes: uma, que pertence ao
entendimento, com o qual conhece o homem o que é por um
conhecimento verdadeiro; ou seja, sabe que é muito pequeno; e desta
já falamos no capítulo sexto. A outra, que pertence à vontade, com a
qual a pessoa se trata conforme o que sabe que é; é dizer: despreza-se
em seu coração, põe-se abaixo dos outros, confunde-se e se aniquila
em seus afetos, como explica São Boaventura.197 Desta, pois, agora
diremos que é uma das nítidas notas com que se manifesta o espírito
divino, porque Deus já tinha declarado que enxerga com olhos
amorosos a todos aqueles que são pobres e humildes de coração, e
estão cheios de temor santo e reverencial.198 E por Isaías protesta que
Ele habita nos espíritos humildes, e dá vida aos corações submissos e
contritos.199 Finalmente, o mesmo Redentor nos assegura que seu
eterno Pai comunica seus segredos somente àqueles que se fazem
pequeninos, que se humilham e se submetem a todos em seus
corações.200
2. São Bernardo, falando de si mesmo, disse assim: se o céu vir abrir-
se sobre mim, ampliar em mim o seu peito, e baixar uma chuva
copiosíssima de meditações; se sentir que se me abre o entendimento
para uma saborosa inteligência da Sagrada Escritura; e se sentir que
com luz celestial, infusa, se me revela os segredos mais recônditos dos
divinos mistérios, acreditarei que comigo está o Divino Esposo, e que
tem vindo visitar-me e enriquecer-me com seus preciosos dons.
Assinala depois, a nosso propósito: se sentir, além disso, que se me
infunde no íntimo do espírito uma devoção humilde, que engendra em
mim o ódio e desprezo de tudo o que é vão, de modo que nem a
abundância das visitas celestiais me enalteça, então sei que estarei
seguro de estar comigo o divino Pai, e que me trata com amor
paterno, destilando-me um espírito de humildade. E aqui se há de
notar que o Santo, em meio às suas revelações, inteligências e
altíssimas contemplações, não se tinha por seguro, se com elas não
viesse acompanhada – como que marcadas por um selo – a nota de
uma profunda humildade.
3. À autoridade de um grande Santo Padre acrescente-se a
experiência de uma Será ca: Santa Teresa confessa que Deus jamais
lhe fez qualquer favor a não ser quando estava aniquilando-se diante
de suas próprias misérias, e que o mesmo Senhor lhe sugeria matéria
de maior humilhação, para que mais profundamente se diminuísse no
conhecimento de si mesma. Sobre esta experiência, funda a Santa esta
máxima de espírito, que Deus tanto mais obra nas almas,
especialmente em tempo de oração, quanto as reconhece mais
dispostas, com a humildade, para receber Suas graças:
O que eu tenho reconhecido e entendido é que toda esta fábrica da oração está
fundada sobre a humildade, e que quanto mais se abate uma alma em oração, tanto
mais Deus a levanta. Não me recordo que me haja feito o Senhor graça alguma, das
que logo direi, que não haja sido enquanto estava aniquilando-me e confundindo-me
com um verme tão mal e miserável; e Sua Majestade procurava dar-me a entender
coisas que me ajudassem a conhecer-me, que eu nem saberia imaginar.201
Tão verdadeiro é, que não existe sinal mais claro e seguro do espírito
divino como uma verdadeira humildade, pela qual a pessoa se tenha
por indigna dos divinos favores; estando deles privada, não os deseje;
recebendo-os, confunda-se; maravilha-se de como Deus os comunica;
tema-os e os esconda, e só os manifeste ao Diretor, obrigada pelo
temor de ser enganada.
4. Teve razão o douto e místico Gerson em assegurar aos Diretores,
com grande garantia, que não duvidem de qualquer operação que seja
precedida, acompanhada e seguida da humildade, sem mistura do
contrário, porque é certo que provém do bem espírito, e tem a Deus
por autor.202 Semelhante sentimento é o do Abade Antíoco,203 que
atribui à humildade, não à conjectural ou provável, mas à evidente, o
sinal de que Deus habita no coração de quem nela reside.204
5. Mas para não errar em matéria de tanta monta, há de se advertir
bem o que eu disse desde o princípio – que a humildade, para que seja
sinal de verdadeiro espírito, não há de ser afetada, mas sincera.
Humildade afetada é dizer de si coisas desprezíveis e baixas sem, do
mesmo modo, senti-las no coração. Humildade sincera é sentir, de si,
desprezo, e, segundo este sentimento, privilegiá-lo com sinceridade em
seu ânimo, depreciar-se em seu coração e sofrer em paz ao ser
depreciado pelos outros. Se, acima disso, uma pessoa chegasse a amar
as diminuições, e as recebesse com agrado, então chegaria a elevar tal
virtude a um grau heróico. Humildade afetada é não querer conhecer
os dons de Deus, e fechar de propósito os olhos para não vê-los.
Humildade sincera é conhecer os benefícios e favores que Deus nos
faz, mas atribuí-los somente a Deus, e dar-Lhe toda a glória, sem que
se nos assalte nenhum ponto de complacência ou vaidade; antes,
diante de nosso demérito, sacar daqueles dons conhecidos de Deus,
afetos de confusão. Disse o Apóstolo que é próprio do espírito de
humildade de Deus fazer-nos conhecer os dons que temos recebido de
Sua bené ca mão.205 De outra sorte, se entrarmos numa afetada
ignorância ou esquecermos os divinos favores, como poderemos ser-
Lhe agradecidos? Como dar-Lhe os devidos louvores? Como elevar-
nos em correspondência de amor? Como mover-nos na con ança de
Sua bondade? Reconheçais, conclui, pois, Santo Agostinho, que o que
tens não tens por si mesmo, a m de que não sejais orgulhoso nem
ingrato.206 Belas palavras! Conhece que os bens que recebes são de
Deus e nada tens que veio de ti, para que não sejas nem soberbo, por
vaidade, nem ingrato, por esquecimento.
6. Concluo com uma lição de Santa Teresa em que se encontra todo
o juízo desta doutrina. Não se preocupe dumas humildades que há –
ela fala das almas favorecidas por Deus com o dom da perfeita
contemplação:
(...) das quais penso tratar, que lhes parece humildade não entender que o Senhor
lhes vai dando dons. Compreendamos bem como isto é, que no-los dá Deus sem
nenhum merecimento nosso e agradeçamo-lo a Sua Majestade; porque, se não
conhecermos que recebemos, não nos estimulamos a amar. E é coisa muito certa que,
quanto mais nos virmos ricos, reconhecendo que somos pobres, mais proveito nos
advirá, e até mesmo mais verdadeira humildade. O resto é acovardar o ânimo e dar-
lhe a entender que não é capaz de grandes bens e, começando o Senhor a dar-lhos,
começa-se a atemorizar com medo de vanglória.207
§. IV
1. A terceira nota é uma rme con ança em Deus, e por isso mesmo
apoiada num santo temor de si mesmo. Quão própria seja do espírito
bom a con ança em Deus, deduz-se evidentemente de ter posto Deus,
principalmente nela, a força e e cácia de nossas orações, de maneira
que só aquela oração, feita com fé e con ança, será poderosa para
conquistar o coração de Deus, e obter de Suas mãos todos os favores.
O mesmo está declarado muitas vezes nas Sagradas Letras.208 Disse
Cristo, por São Mateus, que todo aquele que pedir com con ança na
oração, seguramente receberá. De novo diz que não há coisa
impossível para quem pode esperar com viva fé.209 E acrescenta que se
tivermos fé ao menos como um grão de mostarda, poderemos operar
prodígios estupendos, até chegar a transpassar os montes de um lugar
a outro.210 Semelhantes declarações faz Deus a favor desta santa
con ança no Velho Testamento, como em Daniel, dizendo que jamais
têm cado enganados em suas esperanças, nem confusos, os que têm
con ado em Sua Majestade.211 E nos Salmos, assegurando-nos que
basta esperar Nele para estar livres de todo o mal.212 E em outros mil
lugares, de modo que seria muito amplo relatá-los. Só quero observar
que o Redentor, para autenticar esta fé, e para imprimi-la com
grandeza nos corações dos éis, fazendo graças milagrosas no
momento de sua predicação, as atribui de ordinário à con ança dos
que a recebem. Assim querendo curar uma mulher do uxo de sangue,
disse-lhe: Con ança, lha! A tua fé te salvou.213 Querendo dar a vista
a dois cegos, disse-lhes: Credes que eu posso fazer isso? Sim, Senhor,
responderam eles. Então ele tocou-lhes nos olhos, dizendo: Seja-vos
feito segundo vossa fé.214 Desejando dar saúde a um paralítico,
exortou-o primeiro a conceber uma rme con ança: Jesus, vendo a fé
daquela gente, disse ao paralítico: Meu lho, coragem!215 Livrando da
invasão dos demônios à lha da Cananéia, muito a igida, atribuiu a
liberdade à fé de sua mãe.216 Curando o servo do centurião, atribuiu
toda a glória daquela cura à fé de seu amo.217 Abrindo os olhos a
outro cego, disse-lhe que sua con ança o havia curado.218 Deixou
outros semelhantes sucessos, pelos quais manifestamente se vê a
grande estima que Deus tem desta fé; parece, então, que a Divina
Majestade se deixa vencer apenas por ela, para conceder qualquer
graça, até dispensar as leis mais estreitas e inalteráveis da natureza.
Mas se tanto agrada a Deus o ver uma fé tão rme e enraizada nos
corações dos éis, será preciso dizer que ela é toda conforme o seu
espírito, a ponto de nenhum outro, apenas Deus, poder destilar em
nossos corações um afeto que tanto Lhe agrada. E por isso, se o
Diretor encontrá-la nas obras, e especialmente nas orações de seus
discípulos, poderá justamente decidir que são movidos interiormente
pelo espírito do Senhor.
2. Mas é preciso advertir que esta con ança em Deus há de ser
acompanhada de um santo temor de si mesmo, porque de outra forma
não será reta, senão vã, e quiçá atrevida. Também os pecadores
con am em Deus, e vão dizendo, de maneira vã, dentro deles mesmos:
Ora, já que Deus é bom e misericordioso, nada temos que temer Dele;
continuemos pecando. Esta é precisamente aquela tola con ança de
que fala o Sábio nos Provérbios: O homem tolo con a, passa adiante e
prossegue no pecado.219 A con ança verdadeira e santa só se encontra
naqueles que, esperando em Deus, temem a si mesmos, e descon am
de suas forças. Se observam sua própria fraqueza, entram num justo
temor; se põem os olhos na bondade de Deus e em Suas promessas,
tomam grande ânimo; e juntando, deste modo, com a bela união, uma
viva fé com um santo temor, correm seguros no caminho da perfeição
cristã, como corre seguro um navio à desejada praia, que é impelido
pelo ar favorável na popa, quando está submerso na água com o
lastro. Tenha, pois, o Diretor, particular cuidado para que seus
penitentes não partam jamais separados dos santos afetos:
descon ança ou temor de si, e con ança em Deus, porque o temor
sem a esperança degenera em pusilanimidade, e a esperança sem o
temor em presunção e atrevimento. Onde estão entrelaçados estes dois
afetos, conduzem com segurança a alma ao porto da bem-aventurada
eternidade, e por isso são um dos mais belos sinais do espírito divino.
§. V
§. VI
§. VII
§. VIII
Com isto não quer dizer que o Divino Mestre que, por ódio de nós
mesmos, devamos nos dar a morte por nossas próprias mãos, mas,
antes, que devamos dar a morte a nossos maus apetites e a nossas
perversas inclinações, fazendo-lhes guerra com uma incessante
abnegação. Isto, como bem observa São João Crisóstomo, é
propriamente aborrecer-se a si mesmo; porque assim como não
podemos focar o rosto, nem ainda ouvir a voz daqueles que
aborrecemos mortalmente – ao contrário, apartamos nossa vista deles
com enfado –, assim também, aborrecendo-nos a nós mesmos,
devemos retirar com violência o ânimo mal inclinado daquelas coisas
que não agradam a Deus: que é o mesmo que morti cá-lo fazendo-se
violência.237
3. Daí se infere divinamente Cornélio de Lápide, que a abnegação de
si mesmo é a base e o fundamento sobre o qual se sustenta toda a
fábrica da perfeição cristã; esta é a raiz de que nasce toda a virtude, e
esta é a fonte de onde sai toda a perfeição. E por isso quem deseja
chegar a ser perfeito na escola de Cristo, deve ter sempre diante dos
olhos esta doutrina da contínua morti cação, e com ela regular todas
as suas ações; e desta maneira virá a ser verdadeiro discípulo e el
imitador de Jesus Cristo.238 Tão verdadeiro é que o espírito da interior
morti cação é inseparável do espírito de Jesus Cristo.
§. IX
§. X
1. A nona característica é a liberdade de espírito. Para isto é
necessária prova, porque o disse claramente São Paulo.243 Onde está a
liberdade de espírito, ali se encontra também o espírito do Senhor.
Existe a necessidade de explicar em que consiste esta liberdade de
espírito, que só Deus engendra em nossas almas. Por liberdade de
espírito alguns entendem como que uma certa soltura de consciência
(desapego) e um certo agir livre e franco, pouco conforme às leis da
razão e da fé; mas se enganam, porque esta não se deve chamar de
liberdade, mas de dissolução de espírito. Para entender o que é a
liberdade de espírito é necessário saber o que é servidão de espírito, já
que aquela é uma virtude que, de modo especial, recebe luz de seu
oposto. A servidão do espírito, pois, não é outra coisa que uma
sujeição voluntária da alma a algum vício, pelo qual a miserável se
deixa dominar. Explica-o admiravelmente Santo Ambrósio,
declarando aquelas palavras dos Salmos: Eu sou vosso; salvai-me.
Não pode, diz o Santo Doutor, um homem do mundo dizer a Deus:
eu, Senhor, sou teu, porque têm muitos senhores que o tiranizam.
Estando diante da luxúria, tal vício lhe diz: tu és meu, porque desejas
os prazeres do sentido. Vem a avareza e lhe diz: tu és meu, porque o
ouro e a prata a que vives apegado são o preço pelo qual tenho
comprado sua escravidão. Se é colocado diante do esplendor das
iguarias, dizem-lhe: tu és meu, porque a suntuosidade dos convites é o
preço pelo qual te entregaste a mim. Vem a ambição e lhe diz: és
inteiramente meu, e não sabes que te tenho colocado acima dos outros
para que me servisses a mim, que tenho dado a ti poderes sobre as
outras pessoas, para que estivesse sujeito a meu poder? E vêm os
demais vícios, e dizem todos: tu és meu. Finalmente, conclui o Santo:
Pois que escravo tão vil e miserável é este, a quem tantos pretendem para si, e
querem sujeitá-lo a seu domínio?244
§. XI
§. XII
§. I
§. II
§. III
§. IV
1. O terceiro caráter é o desespero, ou a descon ança, ou a vã
segurança, mas não a verdadeira con ança em Deus. Sabe o demônio,
diz São João Crisóstomo, que a con ança é aquela preciosa corrente
que nos leva ao paraíso; porque com este santo afeto tomamos grande
ânimo e nos levantamos a Deus; por isso, depois de cometidos os
pecados, nos mete afetos e pensamentos mais pesados que o chumbo,
com os quais se esforça em levar-nos ao desespero, que é o maior de
todos os males.259
2. Mas por que vê que raras vezes consegue precipitar as almas dos
éis ao abismo, quase irreparável, do desespero – o que faz o maligno?
Procura fazê-las cair ao menos numa certa descon ança, com a qual,
se não desesperam, certamente não esperam, e se esforça com grande
fôlego para tê-las abatidas, a m de que, fazendo-as frágeis e
perecíveis paulatinamente, já não tenham mais vigor para fazer bem
algum. E o pior é que faz tudo isso o demônio com uma arte tão
maliciosa e velada, que chega a persuadi-las que é coisa justa e
razoável o car assim fechadas naquele abatimento de espírito; porque
depois de ter-lhes representado com aquela falsa humildade de que
temos falado – as fraquezas passadas, ou as faltas cotidianas –, sugere-
lhes outros pensamentos, que têm aparência de verdade; isto é, que é
grande a bondade de Deus, mas que elas se opõem com sua malícia às
obras da divina graça; que Deus está pronto a dar-lhes toda a ajuda,
mas que elas não a merecem; e nalmente, que todo o mal não vem de
Deus, senão deles. Com isso, convencidos destas e outras semelhantes
razões aparentes, mantém-se consternadas nos braços de sua
descon ança. Esta é uma das mais maliciosas astúcias com que o
inimigo infernal retarda o proveito espiritual a um grande número de
pessoas devotas, e especialmente às mulheres, que, sendo por natureza
tímidas, são fáceis em cair nestes desfalecimentos. Caídas uma vez
neste buraco, permanecem ali envilecidas, sem poder dar um passo no
caminho da perfeição. Rogo, portanto, aos Diretores, que velem com
muito cuidado os seus penitentes, para que não caiam jamais nesta
rede, e se alguma vez entrarem nela, advirta-lhes logo o engano. Diga-
lhes com toda a franqueza que o espírito de descon ança não é nem
pode ser o espírito de Deus, senão que sempre é espírito diabólico.
Ensina-lhes a confundir-se e humilhar-se com paz por suas culpas; mas
ao levantar-se depois a Deus com uma forte e viva esperança,
re etindo que a divina misericórdia excede, com in nito excesso, à
malícia e número de pecados. Sugira-lhes alguns atos que devem fazer
quando o demônio os assalta com descon ança e pusilanimidade,
dizendo a Deus, com São Paulo: Deus está pronto a perdoar-me, então
quem poderá condenar-me?260 Ou com Isaías: Deus, que quer dar-me
Sua graça, está próximo de mim, então quem poderá me ser contrário
com um tal defensor ao lado?261 Meu Deus está em minha ajuda;
quem poderá, pois, fulminar contra mim a sentença de condenação?
Animado com estas tão reconfortantes palavras, entre depois numa
grande esperança, e vai repetindo com Jó: Mesmo que me quisesse
morto, Senhor, eu, contudo, esperaria de vós a saúde. Tenho-vos feito
muitos agravos, é verdade, mas este de descon ar de vossa suma
bondade, não o farei jamais. Ainda que me visse na borda do inferno,
a ponto nele entrar, nem por isso deixaria de esperar em vós.
Finalmente, ordene-lhes que continuem a repetir estes ou outros atos
semelhantes de esperança, até que sintam o coração descansado. Além
disso, para fechar a porta às sugestões do inimigo, ajudará muito
impor-lhes, depois de haver cometido alguma falta ou pecado, que se
arrependam logo, e se humilhem diante de Deus, e depois se lancem
no seio da divina bondade, e aqui dilatem o coração com uma santa
con ança antes que venha o demônio a apertá-lo com seus vis
desfalecimentos. Feito isto, prossigam em servir a Deus com alegria,
com paz e com santa liberdade.
3. Mas é preciso advertir que tudo isto que dissemos sobre o espírito
do desespero e da descon ança acontece depois de feito o pecado,
como insinua também o citado Santo Doutor. Antes de pecar, mete o
inimigo outro espírito de todo diverso, ainda que não menos
pernicioso, que é o espírito de uma vã e temerária segurança que torna
o homem amigável com sua culpa. Representa-lhe em Deus uma
misericórdia quase estúpida e insensata, que se deixa ofender
impunimente, para que, enganado o pecador com essa estulta
persuasão, se desarme de todo o temor, e recupere o ânimo para
arrojar-se ao pecado. A estes deve o Diretor avisar do grande perigo a
que se expõem de ser abandonados pela divina misericórdia, se de sua
doçura tomam ocasião para ofendê-la. Deve dizer-lhes que a
misericórdia de Deus é como o mar que conduz ao porto seguro os
marinheiros, se estes se ajudam com as velas e os remos; mas se
quisessem car ociosos, e com sua folga dar ocasião ao naufrágio,
esperando que o mar trabalhasse sozinho – quem não vê que restariam
todos afogados? Assim é precisamente Deus, um mar de misericórdia e
um oceano de bondade. Se nós nos esforçamos, concentrando forças
para não cair, e nos condoendo por nossas culpas passadas, este mar
dulcíssimo nos conduzirá salvos ao porto da bem-aventurada
eternidade. Mas se nós não quisermos nos ajudar; se, antes,
desejarmos nos expor aos perigos da perdição, lisonjeando-nos de que
tudo será realizado pela divina misericórdia, então este mar
suavíssimo de bondade nos deixará incorrer num eterno naufrágio. E
para concluir em poucas palavras toda essa doutrina, digo que os
Diretores devem procurar que os penitentes esperem sempre na
bondade de Deus, depois de cometido o pecado, e temam sempre
antes de cometê-lo. Desta maneira, expulsarão o espírito diabólico de
desespero e de descon ança que surge depois da culpa, e o espírito de
uma estúpida garantia que a precede.
§. V
§. VI
§. VI
§. VIII
§. IX.
§. X
§. XI
§. XIII
§. I
§. II
§. IV
§. V
§. VII
um sopro passou pelo meu rosto, e fez arrepiar o pelo de minha pele.309
§. VIII
§. IX
1. O espírito de revelações é sempre suspeito, se não reside em
pessoa de singular bondade, porque Deus não revela seus segredos
senão às almas queridas e amadas. O espírito de freqüentes êxtases317
e raptos318 é também suspeito (falo de raptos e êxtases perfeitos), se a
pessoa que recebe tão especiais favores não tem passado pela prova de
atrozes puri cações, e não tem chegado a uma grande perfeição,
porque Deus não se une tão estritamente com almas impuras.
Estigmas (chagas) nas mãos, nos pés e nas costas, e outros sinais
prodigiosos nos membros do corpo, se não acontecem em pessoas
heróicas, devem-se ter por muito duvidosos; porque semelhantes
coisas são verdadeiros testemunhos de santidade. Não faltam
exemplos de pessoas perversas que têm alcançado por arte diabólica
estas maravilhosas impressões em seus corpos, para aderir crédito de
santidade com semelhantes aparências. Em suma, quando se ofereçam
ao Diretor estes ou outros espíritos duvidosos ou incertos, acuda
sempre aos sinais do bom e mau espírito que expusemos nos capítulos
anteriores, porque, com eles, como pedra de toque, discernirão
facilmente se são ouro do paraíso ou escória vil do inferno. Advirta-se,
contudo, que, algumas vezes, com o espírito bom se ajunta o mau,
porque acontece que a um só tempo obrem numa mesma alma Deus e
o demônio, e por isso se podem reconhecer os sinais e marcas de
ambos. Neste caso, deve proceder, como se costuma dizer, com pés de
plumas (cautelosamente), examinando com muita diligência todos os
movimentos interiores, para separar o joio do trigo, e arrancar aquele
e cultivar bem este. Deve, sobretudo, encomendar-se muito, mas muito
mesmo, e de coração, a Deus, que não deixará de dar-lhe luz para não
errar.
CAPÍTULO XI
Expõem-se as diversas maneiras como o espírito do Senhor opera
nas almas
§. I.
§. II
Ensinai-me a fazer a vossa vontade, pois sois o meu Deus.322 Senhor, mostrai-me
os vossos caminhos, e ensinai-me as vossas veredas.323
§. III
§. IV
§. V
§. VI
É
1. É próprio somente do espírito de Deus entrar na alma, e com seus
doces atrativos mudá-la totalmente em seu amor, sem que haja
precedido causa alguma de semelhante mudança; quer dizer, sem que
na fantasia, no entendimento ou na vontade tenha procedido alguma
operação apta a causar aquela chama devota. E da mesma forma que
o dono entra em sua própria casa sem enviar antes um aviso, ao
contrário do que ocorre com um estranho – que toca a porta antes, dá
notícia de quem é, e pede entrada –, assim Deus, verdadeiro dono das
almas especialmente perfeitas, sobre as quais tem particular possessão,
entra às vezes nelas com a comoção de santos afetos, sem que o
entendimento e a vontade abram-Lhe a porta. Desta forma ensina
Santo Inácio em seus exercícios:
Só a Deus pertence consolar a alma sem causa precedente, pois só Ele tem direito
de entrar nela e sair quando quiser, movendo-a ao amor de Sua divina Majestade.
Digo sem causa precedente, isto é, sem nenhum aviso prévio ou conhecimento de
qualquer objeto, que dê origem àquela consolação.335
§. VII
§. I
§ II.
§. III.
§. V
§. VI
1. Para não cair, pois, nos laços de um inimigo tão fraudulento, três
coisas o Diretor precisa inculcar em seus penitentes. A primeira, pedir
sempre a Deus a luz para conhecer suas tramas, e ajuda para saber
escapar delas. Um peregrino, que numa noite escura necessita parar
num país cheio de precipícios, não se arrisca a caminhar sem luz. Esta
noite é a presente vida, em que nos encontramos envoltos nas trevas
da ignorância. O país por onde temos de passar é este mundo, cheio
de precipícios que o demônio escondeu por todas as partes. Falta-nos
a luz para descobri-los. Que temos então de fazer para não
despencarmos a cada passo? Pedir a luz a Deus, repetindo
freqüentemente: Emite-me a tua luz e a tua verdade.361
2. A segunda, depois que o penitente, com o favor da divina luz,
descobrir as tramas do inimigo, exorte-o grandemente a não perder o
ânimo, nem descon ar, nem acovardar-se; mas, con ante no auxílio de
Deus, defenda-se com valor e combata com grande ânimo, porque, diz
Santo Inácio, o demônio tem a natureza e a propriedade das mulheres,
as quais, segundo a disposição que encontram nos homens, ora cam
muito tímidas, ora muito atrevidas. Façais que uma mulher trave uma
contenda com algum homem, e que lhe encontre temeroso, logo ela
toma um ânimo incomum, e chega a ser tanto mais atrevida quanto o
homem se mostra mais vil; mas, se o encontra audaz e resoluto, logo
diminui o ânimo, se assusta, se enche de temor e se retira. Justamente
isso é o que se passa com o demônio. Se, assaltando-nos, nos encontra
animados e fortes em rechaçá-lo, faz-se mais vil que uma tímida lebre,
e não volta tão cedo ao ataque, mas se nos primeiros combates e
acometimentos nos percebe pavorosos, descon ados e covardes, não
existirá besta mais furiosa que ele, nem cessa jamais de nos
molestar.362
3. O terceiro, inculque nele que revele ao confessor ou a outro
homem douto e espiritual todas as tentações, tanto as que são
patentes, quanto as que lhe parece disfarçadas, e, geralmente falando,
ter com ele uma total clareza e abertura, não podendo saber e nem
ainda quiçá suspeitar qual seja o laço no qual o quer prender o
demônio, e levá-lo atrás de si com um escravo. Diz o citado Santo que,
querendo o demônio ganhar uma alma, imita o costume de um louco
amante – que, desejando enganar a uma senhorita, lha de honestos
pais, ou a uma casada, que tem por marido um homem honrado, nada
procura tanto que aquela não revele ao pai, nem esta ao marido, os
discursos e tratos que passam entre eles, porque, descobrindo-se
alguma coisa dessas estreitas con anças, já desespera de poder
conseguir seu malvado intento. Assim o inimigo, querendo levar um
homem à perdição, põe todo seu esforço para que não manifeste aos
ministros de Deus suas sugestões, ingerindo-lhe no ânimo ou temor,
ou repugnância, ou vergonha, ou descon ança, e às vezes chegando
mesmo a fechar-lhe sicamente a boca. Se talvez sucede que o homem
comece a abrir-se e a manifestar suas tramas, enche-se de raiva, se
enfurece e desespera, porque, descoberto o enredo, já o vê
desvanecido.363 Recomende, pois, grandemente a seus discípulos o
descobrir-se – porque disso depende sua segurança.
CAPÍTULO XIII
Manifestam-se as ilusões com que o demônio engana as almas
incautas, começando neste capítulo pelas ilusões que acontecem na
oração
§. I
§. II
À
Coisa maravilhosa! À chegada daquele falaz mensageiro não
conheceu o santo homem o engano: deu crédito ao embuste (quiçá o
permitiu Deus para nos fazer mais cautelosos). Levantou o pé para
subir naquela carruagem amejante. Mas o quê?! Persignando-se,
naquele ato, a frente e o peito com a santa Cruz, desapareceu a
carruagem, os cavalos e o mensageiro, e se desvaneceu de seus olhos,
naquele instante, a falsa luz. Um fato semelhante conta Paládio372
sobre São João Crisóstomo, que predisse com espírito profético uma
insigne vitória ao Imperador Teodósio.373 Porque se lhe apareceu
também o demônio em gura formosa, sobre uma carruagem muito
luminosa, prometendo-lhe elevá-lo às estrelas, se, dobrando seus
joelhos, o adorasse. Mas João, guiado de luz celestial, reconheceu o
engodo, e lhe respondeu: Eu adoro o Rei do Céu, mas tu não o és. A
esta repulsa desapareceu a visão e o maquinador da trama evadiu-se
confuso.
4. Algumas vezes se trans gura o inimigo infernal em outras formas.
Para enganar às almas recolhidas com Deus, toma a gura de algum
Santo ou Santa, e por vezes também toma o temerário a gura mesma
de Jesus Cristo, para dar credibilidade com aquela falsa aparência à
fealdade, e autenticar a mentira. Nesta forma se apresentou diante de
São Pacômio,374 dizendo: Eu sou Cristo, que venho a ti, meu el
servo, para visitar-te.375 Mas o Santo, não experimentando em si
aqueles efeitos de paz, de quietude e serenidade que costumam causar-
lhe as verdadeiras visões do Redentor, o rejeitou com indignação e
opróbrio, dizendo-lhe: Afasta-te de mim, diabo, porque sois maldito, e
tua visão. Então se foi o demônio, e deixando um horrível fedor, disse:
Havia-te conquistado com meu engano, se não o tivesse impedido o
Redentor com seu poderoso braço, mas nem por isso perco o ânimo;
jamais deixarei de fazer-te guerra feroz. De outro monge se conta, nas
vidas dos Padres, que ouvindo dizer o demônio, trans gurado na
forma do Redentor – eu sou Jesus Cristo –, fechou imediatamente os
olhos e disse: Eu não quero ver a Jesus Cristo nesta vida, mas basta-
me vê-Lo na outra vida.
5. Mas o que neste particular deve encher-nos de um justo e santo
temor é saber que o demônio, com estes seus enganos, não só tem
alucinado os olhos de homens santos, senão que os têm talvez cegado
totalmente. É digno de lágrimas o caso referido por Paládio376, sobre
Valente, monge de grande virtude. A este se lhe começou a aparecer o
demônio em forma de anjo muito resplandecente, e encontrando
crença no homem simples, voltava freqüentemente para enganá-lo
com estas lúcidas aparições. De modo que o infeliz, parecendo já que
estava introduzido entre os coros dos anjos, e admitido a tratar
familiarmente com eles, engrandeceu-se com soberba, como se já
tivesse chegado a ser um deles. Então o inimigo, vendo-lhe tão
disposto a receber os enganos, ganhou-lhe inteiramente com outra
forte ilusão. Pôs diante de seus olhos uma amplíssima procissão de mil
anjos, todos com tochas acessas e resplandecentes nas mãos. Ao m,
dela vinha um personagem de mãos formosas e decoroso aspecto, que
representava a pessoa de Cristo. Em sua chegada, um dos anjos que
estavam ao seu lado dirigiu-se ao monge e disse:
Valente, Cristo te ama tanto, que veio visitar-te acompanhado de tão nobre
comitiva; vai imediatamente ao seu encontro e adora-o profundamente.
§. III
§. IV
§. V.
§. I
§. II
Não me delongo mais numa matéria que jamais tem m, podendo bastar as poucas
ilusões referidas para dar luz, com o m de desvelar outras inumeráveis com que se
esforçam nossos inimigos para nos levar ao mal com a aparência de bem.
§. III
1. Mas não quero deixar passar em branco as outras espécies de ilusões com que se
esforçam os malignos espíritos para apartar-nos do bem, com o pretexto de mal; porque
não só costumam os enganadores vestir o vício com o belo hábito da virtude, para
sgar os incautos, senão também esconder o formoso rosto da virtude com as sombras
do vício, para que, no lugar de amá-la, aborreçam-se e fujam dela. Entre milhares de
ilusões desta sorte, escolho algumas que sirvam de exemplo e de regra às pessoas
espirituais.
2. Sabe o demônio o quanto conduz aos progressos do espírito a penitência corporal;
sabe com quanto ardor tem sido sempre praticada pelos Santos, como meio
importantíssimo para subir ao cume da perfeição. Que faz, então, o maligno? Veste-a
com o manto da indiscrição, para que aos olhos de algumas pessoas espirituais
apareçam muito feias, e assim não sejam abraçadas por elas, senão antes afastadas
como danosas. Faz-lhes parecer indiscreto todo o rigor que praticam com seu corpo;
faz-lhes parecer que uma pequena disciplina lhes retire todas as forças; que uma hora de
cilício lhes vai debilitar o estômago; que um jejum lhes vai enfraquecer de modo que
não possam exercitar seus próprios ministérios. Daí que começam a olhar a penitência
como uma virtude nociva e impeditiva de um bem maior; voltam-lhe as costas,
prosseguindo em tratar com delicadeza seu corpo. Não se disse aqui que se deva
praticar uma penitência imoderada, que seja de notável prejuízo à saúde corporal; esta é
certamente repreensível. Diz-se somente que não é tal uma penitência moderada e
proporcionada ao sujeito. Esta tem aquela sombra de indiscrição com que a pinta o
demônio; antes, devem-na praticar as pessoas piedosas, para que, enfraquecendo um
pouco o atrevimento do corpo, tome vigor o espírito para contradizer a seus impulsos
irracionais, e fazê-lo caminhar retamente pela senda da virtude. É também necessária
para dar alguma satisfação a Deus das culpas próprias, porque diz São Gregório que
Deus não pedirá contas daqueles deleites pecaminosos que a pessoa tiver sufocado em si
mesma com uma espontânea penitência.425 Ao contrário, prossegue o Santo, no dia do
juízo castigará Deus severamente àquele que tiver perdoado os erros de seu corpo,
tratando-o brandamente: Após esse exame rigoroso, Deus punirá severamente aquele
que agora se trata com muita indulgência. Noteis aqui, pois, em que consiste a ilusão
do demônio; na penitência justa, reta e proporcionada faz aparecer aquela indiscrição
que se encontra na penitência excessiva e exorbitante, para afastar totalmente a alma
desta importantíssima virtude. Abra, pois, os olhos quem deseje aproveitar, e não se
deixe enganar.
3. Mas quando esta ilusão não menos perigosa não tem efeito, urde o inimigo outra
diversa, mas não menos perigosa. São Gregório, falando do jejum, que é uma parte da
penitência, descobre esta fraude da serpente infernal. Procura, diz, que alguns
presentemente satisfaçam a sua gula, mas com ânimo e desejo de morti cá-la depois no
futuro com rigorosos jejuns. Desta maneira, tem-nos quietos e iludidos, porque a não
morti cação da gula sempre segue, e o jejum idealizado para o futuro jamais chega, e
assim nunca executam a devida penitência.426 Ao contrário, assinala o grande
Pontí ce, os homens santos, em vez de ser enganados, enganam eles mesmos ao
demônio e à sua própria carne, porque a igem no momento presente, e com grande
rigor, seu corpo, e aquietam as queixas da carne rebelde, com a promessa de alimentá-la
no futuro. Mas, não perdoando jamais as acostumadas asperezas, nem concedendo à
carne o alívio prometido, continuam no mesmo teor de penitência, e vão fazendo
grandes progressos na vida espiritual, e desta maneira santamente iludem os seus
enganadores.
4. Sabe o demônio que não existe coisa que mais sirva para a extirpação dos defeitos
e acréscimo das virtudes do que o devoto exercício de meditar as eternas verdades;
porque à luz destas descobre a alma a grandeza dos bens celestiais, e se enamora deles,
e despreza a vaidade dos bens terrenos. Reconhece a beleza da virtude, e se lhe
enamora; e a malícia do vício, e se lhe aborrece. E, sobretudo, entende o grande mérito
que tem Deus para ser amado, e se dedica inteiramente à Sua Majestade. Compreende
também o pér do que da falta deste santo exercício provém ao mundo cristão toda a
sua ruína espiritual, como disse Jeremias.427 Por isso o iníquo maquina sobre este
exercício suas ilusões. Pinta-o com as cores de uma prática inútil, ociosa e infrutífera,
para que as pessoas religiosas percam toda a estima por ele, e o abandonem. Então lhes
sugere o inimigo que um tal exercício não é para elas; que perdem inutilmente o tempo;
que, no lugar de honrar a Deus, desonram-No; que seria melhor empregar-se em atos de
caridade, em proveito dos próximos, e em atos de Religião em honra a Deus, e outras
coisas semelhantes. E o pior é que muitos dão créditos a semelhantes ilusões, julgando
para tanto danoso, ou ao menos inútil, este frutuosíssimo modo de orar, e se afastam
dele. Abra, pois, os olhos, qualquer um que, iludido por estas falsas aparências, tem
tido por má, ou ao menos por não tão boa, uma prática tão santa e tão proveitosa.
Re ita que a meditação, ainda que árida e combatida por pensamentos vãos, nada
perde do fruto e nada se diminui o mérito, se a pessoa for cuidadosa em rechaçar os
pensamentos, e constante em sofrer a moléstia dessa secura. Tenha presente a doutrina
que o já referido São Gregório nos dá em seus Morais. Diz o Santo que, enquanto nós,
sobre o altar da oração, fazemos a Deus sacrifício de nosso coração, frequentemente
ocorre que se movam em nossa mente pensamentos impertinentes para retirar-nos o
fruto de tão grato sacrifício; mas que se nós fôssemos diligentes em desejá-lo, o
sacrifício restará intacto, como restou intacto o sacrifício de Abraão, quando baixavam
do alto aves de rapina para devorar a vítima, porque ele estava pronto para expulsá-las.
5. Acrescento que estas mesmas orações áridas e secas, de que o inimigo toma ocasião
de caluniar o uso santíssimo de meditar para enganar às pessoas débeis, costuma ser de
ordinário mais frutuosas que as orações doces e saborosas, porque nelas se exercitam
mais as verdadeiras virtudes. Nelas se pratica a constância em remover as distrações; a
humildade em reconhecer a própria miséria e em reputar-se um indigno dos divinos
favores; a conformidade com o querer divino em sujeitar-se às suas disposições em coisa
tão difícil; a delidade em não se retirar da presença de Deus, quando parece que o
mesmo Deus se esconde da alma. E, por isso, às pessoas que persistem constantes em tal
exercícios, apesar de qualquer desolação, costuma comunicar o Senhor ajudas
poderosíssimas, ainda que menos patentes, em prêmio por sua fortaleza, com as quais
fazem grandes progressos no caminho da perfeição cristã. O persistir largamente na
consideração das coisas divinas, quando a meditação deleita, é coisa fácil, e à qual se
acomoda o mais débil principiante, é coisa bem compatível com o amor próprio; mas o
durar largo tempo constante quando a meditação é penosa, é coisa muito difícil, e
própria apenas das pessoas adiantadas, porque é coisa que muito repugna à natureza.
Se o leitor, pois, tiver incorrido alguma vez nesta ilusão, retira pela meditação essa
máscara feia com que o demônio o trans gurou, e verá quão grande bem é ela em si
mesma.
6. Sabe o demônio que o retiro, a solidão, o silêncio, a modéstia dos olhos, a
seriedade do rosto, e a compostura no porte, são todas virtudes criadas pelo espírito do
Senhor, e o fazem crescer até a última perfeição. O invejoso tem visto nos desertos, nos
lugares ermos, nos claustros, milhares de almas boas que por estes meios têm subido ao
cume mais sublime da santidade. E por isso desacredita tão belas virtudes, e para fazê-
las aborrecíveis às pessoas devotas, cobre-as com um véu negro de melancolia. Faz-lhes
parecer a vida retirada como uma vida triste, cheia de hipocondria; o silêncio, como
uma triste melancolia; a modéstia e circunspecção no porte exterior como uma prisão
de todas as potências, capaz de se tornar um tuberculoso, a m de que tais pessoas,
atemorizadas com tais aparências, entreguem-se ao palavrório, à exibilidade, e se
derramem em coisas exteriores, com grave prejuízo de seu espírito. Se o leitor tiver sido
enganado de semelhantes ilusões, basta que dê uma olhada nos Romualdos428 que se
vêem nos lugares ermos, tão cheios de júbilos nos corações que consolam com seus
raciocínios a quantos conversam com eles; aos Franciscos de Paula429, que saem dos
claustros ermos e solitários tão cheios de alegria, que enchem dela a quem os olha, e de
outros inumeráveis que encontraram na solidão, no silêncio e na morti cação dos
sentidos um paraíso de contento. E entenda que o demônio é um falsário, que adultera
a moeda mais preciosa, para que não tenha saída entre as pessoas espirituais.
7. O contentamento que resulta do falar, do rir, do conversar e da liberdade que se
concede aos olhos, à língua e aos demais sentidos, é contentamento que nasce dos
mesmos sentidos e neles acaba, sem poder penetrar no profundo da alma para contentá-
la. Ao contrário, a alegria que resulta do silêncio, do retiro e da morti cação dos
sentidos é alegria que nasce da abundância da divina graça, a qual, derramando-se toda
na alma, penetra-a profundamente, até o íntimo, para deixá-la plenamente farta e
contente. Disse Cristo a seus discípulos: deixo-vos a paz, a quietude, o contentamento;
mas não aquela paz que dá o mundo a seus sequazes, que é toda exterior, mas a que Eu
dou a meus servos, por meio de Minha graça, é a que resido dentro, no fundo do
espírito, para enchê-los de contentamento. Daí verá o leitor em que se fundam as
ilusões do demônio, quando representa a vida morti cada tão diferente do que é em si.
8. Semelhantes ilusões podem acontecer relativamente a todo o ato de virtude, ao
qual o inimigo dê a aparência de vício, assim como podem acontecer com todo o ato de
vício, ao qual o enganador dá a semelhança de virtude, como mostrei no parágrafo
antecedente. Aliás, assim ocorre de ordinário, porque, disse Cornélio de Lápide, sobre a
interpretação daquelas palavras dos provérbios – Quem declara justo o ímpio e
perverso o justo, ambos desagradam ao Senhor –430 que esta é a propriedade dos
demônios: perverter obstinadamente a natureza de todas as virtudes e de todos os
vícios, tal como se alguém pusesse na cara de um homem a forma de besta, e na cara de
uma besta a forma de homem. E tudo isto o forjam nossos perseguidores, para fazer
com que se enganem os homens espirituais, abraçando o vício como virtude, e fugindo
da virtude como se fosse vício, de forma como até agora falamos431. Não se maravilhe,
pois, o leitor, se Inocêncio III432, explicando o terceiro Salmo penitencial, chega a dizer
que não é possível exprimir a multidão de ilusões a que estão expostas nossas
almas.433
9. Que remédio, pois, haverá para tantos enganos que contra nós maquinam nossos
inimigos? Eu não encontro outro a não ser que, fora da doutrina e experiência que uma
pessoa possa ter adquirido com os sucessos próprios e alheios, se encomende a Deus
para que lhe dê a luz do discernimento, para distinguir o verdadeiro bem do verdadeiro
mal, como conclui o Doutor Angélico, na explicação acima referida, sobre o texto do
Apóstolo – Satanás se trans gura em anjo de luz: É, portanto, muito difícil para o
homem cuidar de si mesmo; então ele deve recorrer à ajuda de Deus.434
CAPÍTULO XV
Expõem-se brevemente as características do espírito humano
1. Depois de já ter declarado quais são as características do espírito
de Deus, e quais as marcas do espírito diabólico, quais os modos com
que Aquele age para levar suavemente as almas ao bem, e quais as
astúcias e ilusões que este trama para afastá-las do bem e conduzi-las
ao mal, resta tratar do terceiro espírito que reina em nós, que é o
humano. Fá-lo-ei agora, mas com suma brevidade, porque este
espírito, tomado por si só, não é tão e caz como o divino, nem tão
ardiloso como o diabólico; e, assim, não tem necessidade de tão exatas
advertências. Ademais, o fato de se ter conhecido a qualidade dos
referidos espíritos serve de muita luz para entender a índole deste
terceiro.
2. O espírito humano, ora se une ao divino, ora ao diabólico. Une-se
com o divino quando é movido por Deus para agir sobrenatural e
santamente, e então vem a ser divino. Une-se com o espírito diabólico
quando é movido pelo demônio para ações pecaminosas e perversas:
une-se também com seus ministros, quando é incitado pela carne aos
prazeres do sentido, ou estimulado pelo mundo para a conquista das
honras, das dignidades, das pompas, das riquezas e dos
engrandecimentos terrenos, e então vem a ser diabólico. Do espírito
humano, tomado neste sentido, temos falado bastante em todo o
desenvolvimento deste opúsculo, e por isso não é necessário
acrescentar mais. No presente capítulo falamos do espírito humano
enquanto é distinto do divino e do diabólico, quer dizer, enquanto se
considera segundo seus próprios movimentos; isto é, enquanto é um
impulso que nasce da natureza humana. Se o impulso tem sua origem
da luz natural, da reta razão, o espírito humano é bom, mas se é
derivado da natureza viciada do pecado original, como de ordinário
costuma ocorrer, então o espírito humano é mau.
3. Confesso que não é fácil discernir em alguns dos nossos
movimentos interiores se são excitados por nossa própria natureza, ou
movidos por Deus, ou instigados pelo demônio, pela enorme
semelhança que podem ter tantos movimentos, ora com os impulsos
de um e ora com os do outro espírito. Contudo, podem ser
encontrados alguns indícios e sinais prováveis, porque nossa natureza
contaminada, quando é deixada a si mesma, inclina-se de ordinário
àquelas coisas que são cômodas e correspondentes ao corpo vil, ou
seja, às suas comodidades, aos seus gostos, às suas vantagens e à sua
reputação, e se aborrece das coisas que a isto são contrárias. E estas
inclinações ou movimentos imperfeitos e defeituosos se chamam
pontualmente impulsos humanos, e, com outro nome, chamam-se
também amor próprio. Tomás de Kempis435 os descreve
maravilhosamente em seu livro de ouro Imitação de Cristo:
A natureza é astuta; a muitos atrai, enreda e engana, e não tem outra coisa em
mira senão a si mesma. (...) A natureza tem horror à morti cação, não quer ser
oprimida, nem vencida, nem sujeita, nem submeter-se voluntariamente a outrem. (...)
A natureza trabalha por seu próprio interesse e só atenta no lucro que de outrem lhe
pode advir. (...) A natureza gosta de receber honras e homenagens. (...) A natureza
teme a confusão e desprezo. (...) A natureza aprecia a ociosidade e o bem-estar do
corpo. (...) A natureza gosta de possuir coisas esquisitas e lindas e aborrece as vis e
grosseiras. (...) A natureza cuida dos bens temporais, alegra-se por um lucro
pequeno, entristece-se por um prejuízo e irrita-se com uma palavrinha injuriosa. (...)
A natureza é cobiçosa, antes quer receber do que dar; gosta de ter coisas próprias e
particulares. (...) A natureza inclina-se para as criaturas, para a própria carne, para
as vaidades e passatempos. (...) A natureza gosta de ter qualquer consolação exterior
com que deleite os sentidos. (...) A natureza tudo faz para seu próprio interesse e
proveito, nada sabe fazer de graça, mas espera sempre, pelo bem que faz, receber
outro tanto ou melhor em elogios ou favores e deseja que se faça grande caso de seus
efeitos e dons. (...) A natureza preza-se de muitos amigos e parentes, ufana-se de sua
posição elevada e linhagem ilustre, procura agradar aos poderosos, lisonjeia os ricos,
aplaude os seus iguais. (...) A natureza logo se queixa da penúria e do trabalho. (...)
A natureza atribui tudo a si, em seu proveito peleja e por a. (...) A natureza deseja
saber segredos e ouvir novidades, quer exibir-se em público e experimentar muitas
coisas pelos sentidos; deseja ser conhecida e fazer aquilo donde lhe resultem louvor e
admiração. (...).436