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Discernimento dos espíritos: para a correta condução de nossas ações e das ações dos

nossos semelhantes
Padre Giovanni Battista Scaramelli, s.j.
1ª edição – março de 2015 – CEDET

Título Original: Discernimento de’ spiriti – per il retto regolamento dela azioni proprie, ed
altrui; esta edição tem como texto base o da edição espanhola, Discernimiento de los
espiritus – para governar rectamente las acciones próprias e las de otros; obra muy util,
especialmente a los diretores de las almas, Madrid, Imprensa de La Regenaracion, 1859 –
com cotejo com o texto original italiano (Veneza, Appresso Simone Acchi, 1764) e da
versão francesa (Paris, Hte. Walzer, Libraire-Éditeur, 1893).

Os direitos desta edição pertencem ao


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Editor:
Diogo Chiuso
Editor-assistente:
Thomaz Perroni
Tradução:
Leonardo Sera ni Penitente
Revisão:
Gustavo Nogy
Capa & editoração:
Laura Barreto

Conselho Editorial:
Adelice Godoy
César Kyn d’Ávila
Diogo Chiuso
Silvio Grimaldo de Camargo
ECCLESIAE – www.ecclesiae.com.br

Reservados todos os direitos desta obra. Proibida toda e qualquer reprodução desta edição
por qualquer meio ou forma, seja ela eletrônica ou mecânica, fotocópia, gravação ou
qualquer meio.

FICHA CATALOGRÁFICA

Scaramelli, Giovanni Battista ()

Discernimento dos espíritos: para a correta condução de nossas ações e das ações de nossos
semelhantes / Padre Giovanni Battista Scaramelli, s.j.; tradução de Leonardo Sera ni
Penitente – Campinas, SP: Ecclesiae, .

Título original: Discernimiento de los espiritus – para governar rectamente las acciones
próprias e las de otros

ISBN: 978-85-8491-003-8

. Vida e práticas cristãs . Catolicismo


. Autor . Título

– .

INDICES PARA CATÁLOGO SISTEMÁTICO

. Vida e práticas cristãs – .


. Catolicismo –
ÍNDICE
APRESENTAÇÃO À EDIÇÃO BRASILEIRA
INTRODUÇÃO
CAPÍTULO I
Explica-se o que é espírito,
e quantas espécies de espíritos existem
CAPÍTULO II
Apresenta-se a maneira como se produz
dentro de nós os três referidos espíritos:
Divino, diabólico e humano
CAPÍTULO III
Explica-se o que é o discernimento dos
espíritos enquanto graça gratuitamente dada
CAPÍTULO IV
De ne-se o que é o discernimento dos espíritos
enquanto virtude adquirida com arte e com indústria,
e a obrigação que têm os Diretores de conquistá-la
CAPÍTULO V
Propõem-se os meios pelos quais pode o
Diretor adquirir o referido discernimento dos espíritos
CAPÍTULO VI
Sinais (marcas) do espírito divino relativamente
aos movimentos ou atos do nosso entendimento
CAPÍTULO VII
Sinais do espírito diabólico relativamente aos
movimentos ou atos do nosso entendimento, de
todo contrários às características do divino Espírito
CAPÍTULO VIII
Sinais do espírito divino relativamente aos
movimentos e atos da vontade
CAPÍTULO IX
Marcas do espírito diabólico sobre os movimentos
ou atos da vontade, inteiramente opostas
aos sinais do espírito de Deus

Í
CAPÍTULO X
Explicam-se alguns instintos (movimentos)
de espíritos duvidosos ou incertos (suspeitos)
CAPÍTULO XI
Expõem-se as diversas maneiras como o
espírito do Senhor opera nas almas
CAPÍTULO XII
Expõem-se as diversas astúcias com as quais
o demônio, com seu perverso espírito, engana as almas
CAPÍTULO XIII
Manifestam-se as ilusões com que o demônio
engana as almas incautas, começando neste
capítulo pelas ilusões que acontecem na oração
CAPÍTULO XIV
Das ilusões diabólicas que acontecem na
prática das virtudes e dos vícios
CAPÍTULO XV
Expõem-se brevemente as características
do espírito humano
IMPRIMI POTEST
R. P. Joannes Antonius Timoni, s.j.
In Provincia Romana
Praepositus Provincialis

Cum Librum cui Titulus: Discernimento degli Spiriti per il retto


regolamento delle azioni proprie, ed altrui, a P. Jeoanne Baptsita
Scaramelli nostrae Societatis Sacerdote conscriptum, aliquota ejusdem
Societatis Theologi recognoverint, & in lucem edi posse probaverint,
potestate nobis a R. P. Ignatio Vicecomite Vicario Generali ad id
tradita, facultatem concedimus, ut typis mandetur, si ita iis, ad quis
pertinet, videbitur. In quorum dem literras manu nostra subscriptas,
& sigillo nostro munitas dedimus.

Romae die 29. Decembris, 1750.


NIHIL OBSTAT
Noi Riformatori
Dello Studio di Padova.

Avendo veduto per la Fede di revisione, ed aprovazione del P. F.


Paolo Tommaso Manuelli Inquisitore nel Libro intitolato:
Discernimento de’ Spiriti per il retto regolamento delle azioni proprie,
ed altrui, del P. Gian Maria Scaramelli della Caompagnia di Gesù ec.
non v’esser cosa alcuna contro la Santa Fede Cattolica, e parimente
per Attestato del Segretario nostro niente contro Principi, e buoni
costumi: concediamo Licenza a Simone, Occhi Stampatore di Venezia,
che possi esser stampato, osservando gli ordini in materia di stampe, e
presentando le solite copie alle Pubbliche Librerie di Venezia, e de
Padova.

Dat. li primo Febbraro 1751.


Daniel Bragadin Kav. Proc. Rif.
Barbon Moro ni Kav. Proc. Rif.
Registrata in livro a carte 19. al num. 217.

Micheli Angelo Marino – Segretario


APRESENTAÇÃO À EDIÇÃO BRASILEIRA
Ainda no intuito de recuperar a nossa sã doutrina, e aspergi-la
incansavelmente,para a santi cação das almas e a maior Glória de
Deus, lançamos agora a utilíssima e indispensável obra do Pe. G. B.
Scaramelli, douto na doutrina sacra e experimentado na condução das
almas pelo caminho da santidade.
Dono de uma erudição patrística incomum, de uma sólida formação
tomista, este lho de Santo Inácio de Loyola colheu as lições e
exemplos dos grandes Santos e Doutores da Santa Igreja, aliou-as às
evidências de seu trabalho como Diretor Espiritual, no contato direto
com seus dirigidos, e acabou construindo um material prático
incomparável.
E é justamente isto o que torna este livro especial, porque nos coloca
em contato direto e mais simples com aquela ciência segura das coisas
sagradas, sem, porém,cair na super cialidade doutrinária e/ou
vacuidade existencial que costumamos encontrar nas obras mais
recentes sobre a espiritualidade cristã.
É também relevante porque, com a decrepitude injusti cável da
língua latina, e a incompreensível ausência de publicação e interesse,
nos últimos anos, sobre a vida dos Santos, muito provavelmente
nenhum de nós, leitores, conseguiríamos ajuntar numa só obra, e em
poucas páginas, este cabedal impressionante de regras e regulamentos
que a Santa Igreja, por inspiração do Espírito Santo, nos vem
proporcionando.
A cada parágrafo, um comentário profundo e signi cativo sobre a
Sagrada Escritura, um ensinamento teológico de São Bernardo, Santo
Agostinhoe Santo Tomás de Aquino, uma lição moral de Santo
Ambrósio, São Gregório e Santo Inácio de Loyola, um dado místico
de São João da Cruz, uma sentença iluminada de Santa Teresa
D’Ávila, e assim sucessivamente, até o m da obra. E tudo relacionado
pontualmente com as maiores di culdades que vão aparecendo na
caminhada cristã, di culdades universais, sentidas e combatidos por
todos os Santos.
É
É realmente de maravilhar tudo o que está aqui escrito. São regras
rmes, muito seguras, e por vezes absolutamente surpreendentes.
O leitor verá, no decorrer do seu estudo, o quanto arriscamos a
nossa alma quando pretendemos andar sozinhos nas coisas espirituais,
e cará estupefato por ver a quantos enganos estamos sujeitos quando
buscamos a autêntica vida cristã.
A Santa Igreja, mãe cuidadosa e amorosa, pelo Santo Espírito de
Deus, não cansa de nos advertir sobre os diversos critérios existentes
acerca das falácias e engodos espirituais que seus lhos costumam
experimentar. Ela forma para nós um Santo Magistério e uma Santa
Tradição,como ato de amor.
E o Pe. Scaramelli nos fez o favor de resumi-los em linguagem
simples, direta e prática.
Todos precisamos deste livro. Uma obra que nos põe em nosso
devido lugar, sem falsas ilusões a respeitos de nossas experiências
espirituais,sem sentimentalismos super ciais, com o estímulo à
prudência, à temperança, inclinando-nosà humildade, aos bens
espirituais, e nos desiludindo quanto às consolações sensíveis e as
emoções passageiras dos sentidos.
Uma obra que nos ensina a descon ar quando a Cruz não vem,
quando vivemos uma vida inteira sem qualquer noite escura, nem dos
sentidos e muito menos do espírito: a descon ar quando só temos, em
nossas experiências religiosas, as consolações da pele, as emoções, as
amenidades, os pseudo-êxtases,que são contentamentos meramente
sensíveis.
Ou seja, nada de sofrimentos muito angustiantes, de provas e
purgações. Nenhuma associação ao Mistério Sacrossanto da Paixão de
Nosso Senhor Jesus Cristo e compaixão da SS. Virgem Maria e os
sofrimentos de São José. Numa só palavra: a esperança de imitar a
Cristo sem se assemelhar a Ele.
Se as coisas caminham assim, muita descon ança, nos pede o Pe.
Scaramelli! Aí não há amor heroico, aquele santo abandono nos
braços da Santíssima Trindade, num ato de amorvitimal.
Só arrepios, lágrimas, emoções, coisas da pele. Nada de Cruz, de
amor e entrega total, estas sim, coisas do entendimento e da vontade.
Prudência! Prudência! e Prudência!
Fenômenos como revelações, colóquios angélicos, aparições de
Nossa Senhora e Nosso Senhor, lágrimas, pseudo-êxtase, consolações
sensíveis e todos os demais carismas são tratados com a seriedade
necessária, apontando com transparência a esfera de poder que o
demônio tem e como ele faz para macaquear tudo e tudo pora perder.
Para isso, ele se associa à nossa soberba, impulsionada pela natureza
que está inclinada sempre ao amor próprio, que induz sermos sempre
muito bondosos e complacentes conosco.
O momento é muito propício para a divulgação deste livro. Muitos
movimentos eclodiram e estão eclodindo no seio da Santa Igreja,
através de seus lhos, ou para Ela se destinaram; sem o discernimento
dos espíritos, não haverá peregrinação segura.
Coloquemo-nos dispostos ao Santo crivo da Madre Igreja.
No que concerne aos carismas – ou, como teologicamente são
chamados, às graças gratuitamente dadas (gratis data) – a análise de
suas causas necessita muita cautela, e a isso já nos havia exortado o
Papa Paulo VI, por exemplo,quando se referia mais abertamente ao
movimento carismático, em meados de 1971;portanto, depoisdo
Concílio do Vaticano II, e citando expressamente o Pe. Scaramelli
como um mestre da arte do discernimento, em sua audiência geral1.
Mais recentemente, oPapa Emérito, Bento XVI, dirigindo-se aos
representantes da Renovação Carismática Católica, expressou seu
desejo de que, re etindo a milenar cautela da Santa Igreja, todos os
movimentos e comunidades eclesiais que porventura surgissem, fossem
dirigidas pelos Bispos e Padres, por meio de um discernimento
prudente e sábio.2
É nosso mais sincero desejo de que este rico material chegue às mãos
de todas as autoridades eclesiásticas, e seja difundido
abundantemente, para que, com o estudo destas regras seguras,
possamos nos avaliar com mais descon ança, menos presunção
espiritual, e nossos Pastores se sintam mais con antes e sólidos em
governar almas, em desvelar as artimanhas perversas do demônio,
suplicando sempre e a todo momento, em nosso auxílio, as luzes do
Santo Espírito de Amor.
INTRODUÇÃO
1. Na peregrinação de nossa vida, aquela estradapor onde
caminhamos – a rma o Sábio em Provérbios3 –que talvez nos
pareçareta, pode na verdade ser enganosa;que pareçaconduzir-nos à
vida eterna, na realidade pode nos levar à morte e à perdição: Há
caminhos que parecem retos ao homem e, contudo, o seu termo é a
morte.E o que é acrescentadonum outroCapítulo deve nosdeixar ainda
mais cautelosos e mais receosos a respeitode nossas próprias ações:
Todos os caminhos ao homem parecem puros, mas o Senhor é quem
pesa os corações.4 Pelas palavras todos os caminhos ao homem
parecem puros deve-se entender, diz-nos Cornélio de Lápide,5 o
homem bom, que, mesmo analisando atentamente suas ações, nada de
mal reconhece nelas; mas Deus, que penetra o íntimo dos nossos
corações com uma visão limpíssima, não as reconhece por boas,
porque as vê manchadas com algum mau afeto ou sinistra intenção.6
2. E por isso nos pede tanto o Apóstolo que examinemos todas as
nossas obras, que questionemos se sua origem é boa ou defeituosa,
com o m de que, julgando-as boas à luz de um reto discernimento, as
abracemos, mas reconhecendo nelas alguma aparência de mal, as
rechacemos.7 Faltando este discernimento, toda a virtude, diz São
Bernardo de Claraval,8 perde sua luz, e se transforma em vício
abominável.9 Porque o discernimento é a virtude que modera os
afetos, regula os bons costumes, dirige todas as virtudes e a tudo
imprime norma, dá modo, dá ordem, dá decoro e estabilidade. Infere
o Santo, então, ser necessário,àquele que corre pela trilha da perfeição
cristã, levar nas mãos a tocha acesa de uma sábiadiscrição,10 caso
queira chegar sem tropeços à consecução da virtude, da qual ela é
mãe.11
3. Tudo isso se ajusta maravilhosamente com a célebre sentença do
grande Pai dos monges, Santo Antônio Abade,12acolhida com
unânime consentimento por todos os Padres do Egito.13 Tendo-se
juntado a eles numa conferência de espírito, para examinar qual das
virtudes merecia a primazia, depois de ter exposto vários e distintos
pareceres, colocou-se em pé Santo Antônio Abade, e de niu que no
coro das virtudes apenas ao discernimento dos espíritos se deveria
conceder a preeminência, porque ela é a mãe, a guarda e reguladora
de todas as outras virtudes: ela é a que, com segurança, conduz as
almas a Deus, eleva-as ao cume da perfeição.E de sua ausência resulta
que, trabalhando alguns sem cessar, jamais cheguem à santidade.14
4. Não posso, pois, fazer coisa mais útil para qualquer pessoa em
cujas mãos chegar este pequeno livro, do que apresentar nele um
corpo de regras aptas para discernir a qualidade do próprio espírito,
ou melhor, para compreender quem ele toma por guia de seus
pensamentos e de seus afetos: se o demônio, se o amor próprio, ou se
Deus. Porque, ou será pessoa espiritual, e, em tal caso, com este
discernimento dos espíritos, poderá acautelar-se dos enganos,
concentrando todas as suas ações de tal modo que,segura e
velozmente,corra para o caminho da perfeição conforme a doutrina
dos Santos; ou será pessoa do mundo, e nesse caso conhecerá as
astúcias com que o demônio interiormente o engana, e servirá muito
para não se desviar da senda direita da eterna saúde.15
5. Creio, no entanto, que o presente livro será mais apropriado aos
Diretores das almasdo que para qualquer outra pessoa, porque se a
qualquer pessoaele é útil, aos Diretores, por causa de seu ofício, o
discernimento dos espíritos é necessário. Diz São Bernardo que a
virtude do discernimento é encontrada em poucos; e por isso devemos
sujeitar o próprio espírito ao parecer e obediência de nossos Diretores,
e não fazer nem mais nem menos daquilo que nos for prescrito por
eles, suprindo, dessa maneira, o discernimento que nos falta com o
que eles devem ter.16 Acrescenta que, caso alguém tenha esta rara
virtude, nem por isso deve valer-se dela para regular seu próprio
espírito, senão que deva, antes, sujeitar-se ao discernimento do seu
Diretor; e isso porque ninguém é bom juiz em causa própria, e
também porque quer Deus, segundo a presente providência, que o
homem não se governe a si mesmo, mas que seja regulado e dirigido
por outro homem. Suposto, pois, que aos Diretores das almas compete
singularmente o reto discernimento dos espíritos, a eles se endereçará,
de modo particular, o presente opúsculo.
Fr. G. B. Scaramelli
Societatis Iesus
Padre Giovanni Battista Scaramelli, s.j.
CAPÍTULO I
Explica-se o que é espírito, e quantas espécies de espíritos existem

§I

1. O Apóstolo São João nos adverte para que não sejamos fáceis em
dar crédito a qualquer espírito, mas que examinemos diligentemente,
primeiro, se é de Deus, ou se traz sua origem de outra causa que não
seja boa.17 Santo Agostinho,18 sobre estas palavras, deduz e fala da
seguinte maneira:
Quisera fazer prova de tais espíritos, se estivesse seguro de não errar; porque se eu
não tenho experiência e averiguação dos espíritos que trazem sua origem de Deus,
afundarei naqueles espíritos que nascem de outro princípio, e carei enganado. Que
posso fazer, pois, para experimentar semelhantes espíritos, e não me enganar? Ó,
quisera Deus, que nos ordenou, como a São João, a averiguação dos espíritos que
nascem Dele, ter se dignado a nos dar as regras para conhecê-lo e discerni-lo!19

Assim ele escrevia, e não re etia, já que, se bem não nos dá estas
regras o Santo Apóstolo, elas nos são fornecidas por outras partes da
Sagrada Escritura, pelos Santos Padres, pelos Santos e Doutores. E
estas bastam para se formar um prudente juízo de qualquer espírito, se
é bom ou mau: nisso consiste ter um bom discernimento dos espíritos;
e isto será o que faremos no decorrer deste livro.

§ II

2. Não é possível compreender o discernimento dos espíritos, e como


podem adquiri-lo os Diretores Espirituais, sem se saber, antes, o que é
espírito. Este nome se instituiu para signi car muitas coisas, porque se
aplica a Deus, à terceira pessoa da Santíssima Trindade, a todos os
anjos bons e maus, e às almas racionais. Acomoda-se também para
expressar algumas coisas materiais e corpóreas, como, por exemplo, o
ar agitado e o movimentado dos ventos.20 Ou mesmo à respiração do
ar,21 como se lê sobre a Rainha de Sabá.22 Os médicos o tomam para
indicar uma substância tênue, aérea, lúcida e muito sutil, que,
difundindo-se por todos os nossos membros e potências corporais,
torna-os ágeis para o movimento e aptos para suas próprias funções.
Tudo isso é chamado espírito, mas não são desses espíritos que
trataremos aqui. Entendemos por espírito, pois, um impulso, uma
moção ou inclinação interior do nosso ânimo para alguma coisa que,
na ordem do entendimento, seja verdadeira ou falsa, e, na ordem da
vontade, seja boa ou má. Assim, se alguém tem o costume de mentir,
dizemos que tem o espírito da mentira; se se sente interiormente
impelido à morti cação corporal, dizemos que tem espírito de
penitência; se é inclinado a dominar os outros, dizemos que tem o
espírito da soberba; se é movido por certa vontade e gana de parecer
bom aos olhos alheios, dizemos que tem o espírito da vanglória.
Agora, este impulso interior dirigido às coisas, ou viciosas ou
virtuosas, falsas ou verdadeiras, consiste em dois aspectos: um
pertence ao entendimento, com o qual nos sentimos inclinados a
acreditar ou não em algo verdadeiro ou falso; e o outro, que pertence
à vontade, com o qual nos sentimos movidos a acolher ou rechaçar
alguma coisa boa ou má. E esta inclinação do entendimento ou moção
da vontade a um objeto é o que especi camente se chama de espírito.
Se o movimento da vontade dirige-se a um objeto mau, diz-se espírito
mau; e se é inclinado a um objeto bom, diz-se espírito bom. O mesmo
digo na ordem do entendimento: se este é levado a crer no verdadeiro,
diz-se movido pelo espírito reto; mas se é impulsionado a crer no
falso, diz-se dominado pelo espírito mau.
3. Por isso o Redentor, repreendendo São Tiago e São João, que
estavam indignados contra a cidade de Samaria e desejavam fazer
descer fogo do céu para reduzi-la a cinzas, disse-lhes: Vós ainda não
sabeis que espírito os move.23 Isto é: vós ainda não sabeis quais devem
ser as inclinações do vosso coração, pois meus servos não devem ser
tão ardentes, nem tão inclinados ao castigo; mas, antes, mais
facilmente inclinados à mansidão, à humanidade e ao perdão. O
Apóstolo dos povos, falando de si próprio aos éis de Corinto,
a rmou o mesmo:
Não tenho recebido aqueles conhecimentos e diversões vãs que inspiram o mundo,
mas aquelas inteligências sobre-humanas e sentimentos santos que Deus infunde.24
E nalmente, quando o amado discípulo nos adverte para que não
sejamos fáceis em dar aval a qualquer espírito,25 que outra coisa nos
quis dizer senão que não sejamos fáceis em ter por bom todo o ditame
do entendimento, nem toda a inclinação da vontade, que
reconheçamos em nós ou nos outros? Conclui-se, portanto, que
espírito não é outra coisa que um impulso, moção ou movimento
interior para crer ou descrer, fazer ou deixar de fazer alguma coisa; e
que, tal é o espírito, assim será sua moção, boa ou má.

§ III

1. São Bernardo assinala seis classes diversas de espíritos, que podem


mover os homens em suas operações.26 Descendo depois a detalhes,
demonstra, com a autoridade da Sagrada Escritura, quais são estes
espíritos. O primeiro é o Espírito Divino, que fala ao coração,
conforme o dito de São Davi.27 O segundo é o espírito angélico, que
fala, com efeito, dentro de nós, como confessa por experiência própria
o Profeta Zacarias.28 O terceiro é o espírito diabólico, a quem permite
Deus muitas sugestões perversas, como atesta o Real Profeta.29 O
quarto é o espírito da carne, do qual são alguns dominados, como
con rma o Apóstolo.30 O quinto é o espírito do mundo, do qual
estava isento o Apóstolo.31 O sexto é o espírito humano, do qual é o
homem a própria testemunha, porque o experimenta dentro de si –
como diz o Apóstolo.32
2. O Espírito Divino é uma moção interior, que sempre nos inclina
ao verdadeiro, e nos afasta do falso; impele-nos ao bem, e nos aparta
do mal; e por isso é sempre santo. Às vezes Deus realiza esta moção
por Si mesmo, derramando com Suas próprias mãos sobre a nossa
mente aquela luz celestial que é apta para acordá-la, e tocando por Si
mesmo nosso coração com santos afetos. Outras vezes a faz por
intermédio dos anjos, e então se chama espírito angélico, porque Deus
destinou-os para a nossa guarda, para que acendam em nossos
corações o amor pela virtude, o horror aos vícios, e nos repreendam
por nossos excessos; em suma, para que edi quem em nós um espírito
reto;33 e, voltando ao anjo, possamos despertar, assim como um
homem se recorda de um sonho. Essa recordação interna, realizada
pela mão do anjo, é especi camente o espírito angélico. O espírito
diabólico é um impulso ou movimento interior que sempre nos conduz
ao falso e ao mal, e nos distancia do bem; e por isso é sempre mau.
Destes perversos movimentos é sempre autor o demônio, porque, ou
os levanta por si mesmo, ou por meio da carne e do mundo, que são
seus subordinados e com ele confederados, como diz São Bernardo.34
O espírito da carne é, em nós, uma inclinação aos deleites do sentido,
pertencentes ao paladar, tato, visão, audição e olfato – assim o diz São
Bernardo. O espírito do mundo é uma propensão interna à ambição,
às honras, à glória, aos cargos, dignidades, terras e riquezas. O
Doutor Melí uo35, depois de haver dito que quando nos sentimos
incitados ao prazer, à honra, à riqueza, opera em nós o demônio por
meio destes seus pér dos aliados, carne e mundo, acrescenta que,
quando, no momento posterior, nos sentimos movidos à ira, à
impaciência, à inveja, às inquietudes, às descon anças, à revolução e
amargura de ânimo, opera então o maligno por si só. O espírito
humano, nalmente, é uma inclinação da natureza humana,
corrompida pelo pecado original, àquelas coisas que são conforme o
aproveitamento e benefício do corpo. Nossa natureza, se é movida por
Deus ou por seus anjos, inclina-se ao bem; se é impelida pelo demônio
ou por seus ministros, propende ao mal; e se é abandonada a si
mesma, persegue as coisas agradáveis ao corpo vil, que de ordinário
não são boas. Pois bem, esta instigação natural que experimentamos é
o espírito humano que reina dentro de nós; e este, diz São Bernardo, é
o pior espírito, porque está entranhado em nós, e com ele somos
tentados por nós mesmos.36
3. Advirta-se, porém, que se pode, e até mesmo se deve, reduzir
comodamente estes seis espíritos a três, porque o espírito angélico se
reduz ao Divino, já que os anjos só operam em nós por ordem de
Deus; o espírito da carne e do mundo se reduz ao diabólico, pois o
demônio, por meio deles, seus aliados, geralmente nos ataca e destila
em nosso ânimo seu venenoso espírito. E assim, todos os espíritos se
reduzem nestes três: Espírito Divino, espírito diabólico e espírito
humano.37 Assim falam comumente os ascetas e místicos; e desta
maneira falaremos também em todo o presente tratado.
CAPÍTULO II
Apresenta-se a maneira como se produz dentro de nós os três
referidos espíritos: Divino, diabólico e humano

§. I.

1. Insinuamos que as causas ou princípios dos três espíritos, Divino,


diabólico e humano, são Deus, o demônio e a nossa natureza
contaminada pelo pecado de Adão. Falta agora apresentar o modo
com que obram dentro de nós estas diversas causas para imprimir,
cada qual, o seu próprio espírito em nossos ânimos. Comecemos pela
primeira causa, que é Deus, e relembremos que, para operar os atos
santos e virtuosos (pertencentes ora ao entendimento, ora à vontade),
não basta ter adquirido por meio da graça santi cante38 um ser
Divino, nem ter recebido os hábitos infusos das virtudes teologais39 e
morais;40 nem tampouco basta termos sido enriquecidos com os
preciosíssimos dons do Espírito Santo41. Além disso, exigem-se
indispensavelmente as ajudas atuais42 da Divina Graça, que são certas
luzes que nos persuadem da verdade, mostram-nos a amabilidade da
virtude e a indignidade do vício, e certas moções interiores que nos
detenham no que é bom e nos afastem do mal. Porque assim como
não basta, para executar os atos naturais, que tenhamos uma natureza
humana com seus sentidos e potências hábeis para operar, sendo
também necessários os espíritos vitais, que, difundidos pelos
membros, tornam nossas potências dispostas e prontas para as obras,
assim, para fazer os atos sobrenaturais e divinos, não basta que
tenhamos a participação da natureza Divina com todas as virtudes,
dons e potências sobrenaturais, mas são indispensáveis os auxílios e
graças atuais, que, da mesma forma que os espíritos vitais, dão vigor à
vontade para operar o bem. Aqueles misteriosos animais, vistos por
Ezequiel, deixando-o assombrado, tinham mãos, tinham pés e tinham
também asas; e, no entanto, para andar necessitavam de um impulso
interior que os movessem até o término de sua viagem: iam para o
lado aonde os impelia o espírito.43 Assim, para existir atos santos não
bastam as virtudes infusas e os dons, que são como os pés e as asas
para ir a Deus, mas se requer, além disso, que o mesmo Deus, com a
ajuda de Suas iluminações e piedosos afetos, internamente nos incite
ao bem. Com isso já terá compreendido o leitor como Deus produz
em nós o Seu espírito, que é pela doação de Suas Graças atuais,
porque nas luzes que Ele nos infunde e nas piedosas moções que
desperta em nosso coração consistem aquelas moções e inclinações ao
bem e aquele horror ao mal, que se chama Espírito Divino, segundo o
que foi apresentado no capítulo precedente. E porque Deus é o que
nos ilumina e nos move, ou por Si mesmo ou por meio dos anjos,
segue-se que freqüentemente recebemos o Espírito Divino ou
imediatamente de Deus, ou por intermédio dos anjos.

§. II

1. Passemos a ver, agora, como o demônio nos infunde seu espírito


diabólico, que é aquele pestífero veneno que dana inumeráveis almas;
mas antes quero mencionar algumas informações, que é importante
ter presente nesta matéria. Deve-se supor que quando os anjos
rebeldes caíram do céu, todos foram precipitados, mas nem todos
foram precipitados aos abismos, tendo cado grande parte deles nessa
região do ar obscuro que circunda a terra e forma nossa atmosfera.
Estes são em tão grande número que, se tivessem corpo, como diz São
Roberto Belarmino,44 obscureceriam o sol em pleno meio dia.45 E
Haimon,46 não sem o consentimento dos Padres, chega a dizer que,
quando amontoados, estes demônios, que se movem pelo ar para
danar os mortais, não cam tão espessos quanto um átomo.47 Seu
ofício é tentar incessantemente os homens, ou incitando-os ao mal, ou
apartando-os do bem, e tal serviço tão perverso é causado pela inveja
que têm de nós, e pela soberba com que se levantam contra Deus,
como a rma Santo Tomás.48 Pela inveja, porque não podem suportar
que venhamos a ocupar aquelas resplandecentes cadeiras das quais
eles foram justamente expulsos. Pela soberba, porque pretendem
tornar-se semelhantes a Deus, pois assim como Deus envia os Anjos
para guardar e cuidar das cidades, reinos e pessoas que vivem nelas,
também os malignos disputam para velar pela perdição das
províncias, reinos e cidades da terra, e de cada um de seus habitantes.
E assim como diz Alberto Magno,49 seguido do comum dos teólogos,
teremos todos um demônio que vela e atende à nossa ruína.50
2. Dado isso por suposto, nada mais será necessário, para conceber
como se forma dentro de nós o espírito diabólico, do que entender o
modo pelo qual se formam as tentações diabólicas. Os demônios, que
em tanta multidão nos rondam, entram em nosso cérebro, cuja
entrada não lhes está impedida,51 e por meio do choque de espíritos
movem espécies52 falsas de objetos e imaginações53 de coisas ilícitas,
combinando-as de tal sorte que nos apresentem o mal como muito
conveniente, e assim nos convidem a abraçá-lo. Além disso, penetram
no sentido interior, no qual reside o apetite sensitivo, e a agitação dos
mesmos espíritos e dos humores desperta afetos perversos em direção
a estes ou aqueles objetos, bem como acendem as paixões
pecaminosas. Estes pensamentos, por sua vez, às vezes são falsos, às
vezes são maus, e estes afetos perversos são especi camente aquelas
propensões, aqueles impulsos e aqueles estímulos para o mal, que
chamamos espírito diabólico. Mas se deve advertir que, segundo a
doutrina de São Bernardo, quando o demônio nos assalta por si
mesmo, ingere em nossos ânimos amargura de espírito, porque excita
pensamentos turvos, afetos inquietos, agitações penosas,
descon anças, quedas de ânimo, desesperos, invejas, ódios, rancores,
tédios e melancolias de muito tormento. Quando, porém, nos aborda
por meio de seus ministros, como a carne e o mundo, imprime em nós
espírito doce, mas falaz e lisonjeiro, já que desperta em nosso ânimo
espécies e desejos gostosos de prazeres, de honras, de preeminências,
de fausto e riquezas, com que nos pinta diante dos olhos do
entendimento uma falsa felicidade, que depois deságua numa
verdadeira infelicidade temporal e eterna.54

§. III

1. Finalmente, para entender como nossa natureza, corrompida pelo


pecado original, produz em nós o espírito humano, é necessário
lembrar-se do que era a natureza humana antes do pecado de Adão, e
o que ela se tornou depois. Antes que nosso primeiro pai caísse em tão
conhecida culpa, a concupiscência obedecia servilmente à razão: não
podia levantar-se con ituosamente contra o império da vontade,
porque o grande dom da inocência, que então possuía, tinha as
espécies bem arranjadas, e os humores corporais e paixões bem
ordenados, sujeitos ao império da razão. Mas, depois, com o pecado
de Adão, nossa natureza foi ferida com aquele golpe mortal e perdeu
os dons da graça, especialmente o dom da justiça original e da
integridade, cando gravemente debilitada em seus bens naturais.
Então foi quando o entendimento tornou-se obscuro, a imaginação
instável, e a vontade débil e fraca; desenfreada cou a concupiscência,
que começou a rebelar-se com todas as suas paixões contra a vontade
e contra a razão, recusando-se a aceitar o freio da subordinação. Este
é o estado miserável em que atualmente nos encontramos, e por isso
nossa natureza, assim ordinariamente desconcertada, impele-nos
àquelas coisas com as quais a carne, o mundo e o demônio têm
amizade. Estes impulsos, pois, ou movimentos, todos defeituosos,
enquanto provém da nossa natureza, chamam-se espírito humano.

§. IV

1. Mas não é fácil, diz São Bernardo, o discernir se os movimentos


internos do ânimo provenham ou da natureza humana, ou do
demônio, ou da carne, ou do mundo, confederados para nosso dano,
porque inclinando-se a nossa corrupta natureza a desejar as coisas que
querem aqueles seus três grandes inimigos, não é possível saber se ela,
por sua corrupção, ou aqueles, com suas instigações, são a causa de
tais movimentos defeituosos.55 Daí, prossegue dizendo, que pouco
importa semelhante discernimento; porque sendo estes impulsos de
uma mesma coisa, e todos igualmente perigosos e nocivos, todos
devem ser rechaçados com solicitude e diligência.
2. Todavia, porque em algum caso pode ser conveniente para a boa
direção das almas o entender a proveniência de seus maus movimentos
– se de dentro da corrupção da natureza ou fora pela instigação do
demônio –, darei aqui aquelas conjecturas que se podem ter. As coisas
que têm sua origem em nós mesmos, e em nossa natureza,
espontaneamente as empreendemos, e espontaneamente as deixamos;
mas aquelas coisas que nossos inimigos nos administram desde fora,
imprimem-se em nós com muita força, e não podemos com facilidade
impedir seus progressos, porque é outro o que opera dentro de nós,
apesar de toda a nossa resistência. Além disso, os impulsos da
natureza geralmente têm alguma causa natural que os desperta; mas as
sugestões do demônio nascem, na maioria dos casos, de improviso, ou
sem alguma causa, ou por qualquer ligeira ocasião. Alguns assinalam
outras possibilidades. Se a tentação teve princípio de maus
pensamentos e perversas imaginações inculcadas sem motivo, ou por
conta de mais tênue causa, será sinal que seu autor foi o demônio;
pois parece que neste caso falta causa natural su ciente para levantar
este fogo. Mas se a tentação começa pela rebelião dos sentidos, e
passa, posteriormente, a excitar na mente pensamentos pecaminosos,
será conveniente atribuir a culpa à natural comoção dos humores e
espíritos, e, por conseguinte, à perversidade da natureza inclinada ao
mal. Com esta regra descobriu São Felipe56 que certa tentação impura
que sentiu havia sido sugerida pelo inimigo infernal, que com
semblante de um pobre se lhe apareceu junto ao an teatro romano.
Assinalam também que, se a pessoa recorre a Deus no momento da
tentação, e ela se desvanece logo, então é sinal de que advinha do
demônio; porque nossos inimigos temem muito a oração fervorosa e
devota; e quando nos vêem com estas armas, preparados para a
defesa, perdem logo o ânimo, e se retiram. Mas se, recorrendo a
pessoa com fervor à oração, não cessa a tentação, será indício de que
esta nasce dentro da fragilidade da natureza; porque não querendo
obrar Deus extraordinariamente, ajuda a vontade para resistir, e deixa
que a natureza siga seu curso. Em suma, observe o Diretor o modo
com que se levantam e duram as tentações, e terá luz bastante para
conhecer quais são seus autores; porque, na verdade, certos modos
violentos, improvisados, obstinados, e sem ocasião su ciente,
normalmente não têm a sua origem na natureza, de quem é próprio o
proceder mais sossegadamente, e com naturalidade em seus
movimentos, ainda que sejam desregrados. É verdade que estas regras
não são infalíveis; mas com o largo manejo das almas, chega o
Diretor, por meio delas, a conhecer de que princípios provêm certos
impulsos pecaminosos de que padecem. Servindo-se, então,
oportunamente de tais notícias, pode depois aplicar-lhes remédios
compatíveis à sua necessidade.
3. Note o leitor que, se tenho estabelecido bem a essência dos
espíritos nas moções atuais internas que geralmente experimentamos,
e tenho elaborado toda a sua diferença segundo a diversidade de tais
movimentos, então podemos aplicar também o nome do espírito às
causas e princípios dessas moções. Assim, não somente se chama
espírito divino aquele impulso santo que o homem em si mesmo
experimenta, senão também se diz espírito divino o próprio Deus,
enquanto produz estes santos estímulos no coração do homem. Não
só se chama espírito diabólico aquele incentivo ao mal que por vezes
padecemos dentro de nós, senão também o próprio demônio,
enquanto açoda estes péssimos incentivos em nossos corações. O
mesmo se pode dizer do espírito humano.
CAPÍTULO III
Explica-se o que é o discernimento dos espíritos enquanto graça
gratuitamente dada

§. I

1. Já que o leitor compreendeu tantos e quantos são os espíritos que


podem despertar em nossos corações, e os movimentos que eles
produzem dependentes de suas causas, não lhe será difícil entender o
que é o discernimento dos espíritos. Mas para proceder
ordenadamente é importante distinguir dois discernimentos dos
espíritos: um, pertencente às graças gratuitamente dadas, que é o
sétimo entre as graças enumeradas pelo Apóstolo.57 O outro consiste
num juízo prudente, adquirido com arte e com indústria, acerca do
próprio ou alheio espírito. O primeiro discernimento é um dom
gratuito que a poucos se concede. O segundo é um industrioso
discernimento que qualquer um pode conseguir. Do primeiro
falaremos no presente capítulo; e do segundo nos seguintes.
2. Santo Tomás disse que o discernimento dos espíritos, enquanto
graça gratuitamente dada,58 é um claro conhecimento dos segredos
dos corações dos outros.59 De nido dessa maneira, é bem verdade que
o discernimento dos espíritos assemelha-se de algum modo à profecia;
porém, é muito diferente dela, porque à profecia compete geralmente
o conhecimento de qualquer coisa oculta, e com mais propriedade a
notícia das coisas futuras contingentes; à discrição dos espíritos, por
sua feita, só pertence o descobrimento dos corações. Esta graça é
sempre infundida por Deus para proveito espiritual dos próximos (é
este o m a que se destinam todas as graças gratuitamente dadas);
porque, na realidade, não existe coisa que adicione maior
credibilidade à doutrina da fé como o ver que quem a propõe conhece
os segredos do coração que são manifestos somente a Deus; não existe
coisa que mais conduza à reta direção das almas éis como o penetrar
os ocultos esconderijos de seus corações. Não existe dúvida de que
Deus tem repartido esta graça a seus servos éis, quando vemos que
alguns deles diziam acertadamente aos outros os pensamentos que
passavam por seus entendimentos, e os afetos que alimentavam em
seus corações; alguns, no ato da con ssão sacramental, revelavam a
seus penitentes os pecados que – ou por fraqueza de memória, ou por
vergonha culpável – deixavam de confessar; eis o sinal claro de que,
com a vista da mente, entravam para ver no íntimo das consciências;
outros, nalmente, chegavam a ver até o estado em que se
encontravam as outras almas, se em graça de Deus ou em desgraça, o
que é um grau de discernimento mais alto e mais estimável.
3. E justamente porque o ver o interior das pessoas é graça que se
outorga a poucos, por isso outros sagrados Doutores explicam de
outra maneira o discernimento dos espíritos; sendo graça
gratuitamente dada, é infusa pelo Espírito Santo em nossas mentes.
Dizem que esse tipo de discernimento consiste num instinto ou luz
particular que comunica o Espírito Santo para discernir com reto
juízo, ou em si, ou em outros, de que princípio provem os movimentos
internos do ânimo, se do bom ou do mau.60 Isto é coisa diversa
daquela de nição dada segundo a mente do Doutor Angélico; porque
uma coisa é a pessoa conseguir de fato, com os olhos da sua mente,
ver os segredos dos corações alheios. Outra, bem distinta, é saber
discernir com juízo reto, por força de uma luz muito particular – e só
após de já se ter manifestado os segredos do coração –, a origem de
certos movimentos, se boa ou má. Nesta segunda, mesmo sendo um
discernimento dos espíritos infuso, a causa da luz extraordinária que
Deus infunde na alma para torná-la apta para semelhante
discernimento é uma graça inferior à primeira, como podemos ver. É
neste segundo sentido que o Apóstolo expõe o discernimento dos
espíritos. Escrevendo aos Coríntios, diz-lhes que aquele que será entre
eles o agraciado pelo discernimento dos espíritos, conhecerá
claramente que os preceitos propostos em sua carta foram recebidos
de Deus.61 Note-se: o Santo não diz que tal pessoa é espiritual, isto é,
descobridor dos espíritos – que com a vista interior conseguirá ver no
íntimo do seu coração os fatos que Deus lhe tem comunicado; a rma,
sim, que tal pessoa, escutando a doutrina de sua epístola, conhecerá
com segurança que lhe foi transmitida por Deus. E neste sentido
entendem comumente os Santos Padres a graça gratuitamente dada da
discrição ou discernimento dos espíritos.62

§ II

1. Isto suposto, passemos agora a declarar a de nição que demos,


considerando todos os seus aspectos, e começando pela matéria que
tem por objeto. Mas antes se há de supor que a regra infalível da
nossa crença é a Sagrada Escritura e a Tradição Apostólica, enquanto
recebidas da Santa Igreja Católica, e que a regra segura de nossas
operações santas e sobrenaturais é a reta razão iluminada com a
doutrina da fé. Daí que aqueles impulsos que nos levam a crer o que
está relevado na Sagrada Escritura, e o que por hereditária sucessão se
tem irradiado até nós pelos Apóstolos, são, na ordem do
entendimento, espírito reto e santo; se, ao contrário, os tais impulsos
nos inclinam a crer o oposto, são evidentemente espírito falso e
perverso. Igualmente, no que diz respeito à vontade, todas aquelas
moções que nos fazem agir segundo a reta razão e segundo os divinos
documentos são claramente espírito bom; mas aqueles que nos fazem
discordar da razão natural e da lei divina são, seguramente, espírito
mau. Digo, pois, que o discernimento, enquanto é um dom infuso de
Deus nos entendimentos humanos, não tem por objeto e matéria de
suas revelações certos espíritos que sem dúvida são bons ou maus,
verdadeiros ou falsos, pois para fazer reto juízo numa matéria tão
clara, não são necessárias as luzes especiais do Espírito Santo, senão
que basta a luz ordinária da fé, que a nenhum el Deus nega.
Baseando-se nisso é que o Angélico Doutor explica as palavras do
Apóstolo.
2. As matérias do discernimento infuso são certos espíritos
duvidosos ou incertos, dos quais não é fácil entender se trazem sua
origem do princípio bom ou mau; por exemplo, certos impulsos e
moções para crer em alguma coisa verdadeira, ou para fazer alguma
coisa boa, mas que não é claramente verdadeira nem abertamente boa;
e mesmo se for em si verdadeira e boa, pode endereçar-se a algum erro
ou mal, ou ao menos impedir um bem maior. Tais são, na ordem do
entendimento, certas revelações privadas, certas locuções internas,
certas visões feitas aos sentidos interiores ou exteriores, certas
doutrinas novas e certas verdades que não estão reveladas na Sagrada
Escritura, nem ensinadas pelos Sagrados Doutores, às quais se sente
por vezes inspirada alguma pessoa. Na ordem da vontade, tais são
certos impulsos para fazer coisas grandes e santas, mas incomuns:
certos estímulos para empreender coisas superiores às próprias forças,
ainda que fundados na con ança da Divina providência; certas
inspirações de passar de um estado bom a outro também bom ou
ainda melhor; certas invejas ardentes da saúde dos semelhantes, que
postos em execução podem surtir êxito bom ou infeliz; certos ardores
na oração que parecem santos, mas não constam de sua santidade; e
outras mil coisas que têm muito boa aparência, mas que justamente se
teme que possam nascer de mau princípio, ou podem parar num
péssimo m. Agora digo que, assim como é difícil formar reto juízo de
tais espíritos duvidosos, então é muito oportuno, para esses casos
difíceis, o discernimento infuso, porque por meio dele recebe o homem
a luz especial para discernir a qualidade de semelhantes espíritos, e
para decidir sem errar se são bons ou maus. E por isso eu dizia que
estes espíritos incertos e duvidosos são o objeto próprio desta graça
gratuitamente dada. Ensina-o claramente São Bernardo.63 O mesmo64
diz Gerson65. E aqui este místico Doutor atribui o discernimento
quanto aos espíritos duvidosos àquela operação divina, que não só
pode discernir a qualidade dos espíritos, senão que também pode
dividir o espírito da própria alma, embora na realidade espírito e alma
seja, em substância, a mesma coisa.

§ III

1. Eu disse que o discernimento de tais espíritos se faz por meio de


um juízo reto, regulado por uma luz extraordinária, com que Deus
esclarece a mente do homem discreto .66 Mas aqui se pode perguntar
se este juízo que permite o discernimento é certo e infalível, ou incerto
e sujeito a erro. A esta dúvida responde o Pe. Suarez,67 dizendo que
semelhante juízo não é formalmente certo e infalível, porque uma tal
infalibilidade não pode provir senão da evidência ou da fé; e nem um
nem outro compete ao referido juízo.68 Não é evidente, porque, sendo
verdade que decide a respeito da qualidade dos espíritos, não os vê em
si mesmos de forma clara; não é ato de fé, porque, sendo verdade que
se move da luz divina, não se move da palavra de Deus; e julga os
espíritos não porque tenha alguma revelação divina de sua qualidade,
senão apenas pelo mérito que neles reconhece. Distingue o Doutor
Angélico69 duas espécies de profecia: uma perfeita, com a qual
conhece o Profeta as coisas futuras, por revelação expressa que recebe
de Deus,e por isso forma um juízo certo e infalível das verdades
reveladas. A outra imperfeita, que mais propriamente se deve chamar
instinto profético, pelo qual conhece o Profeta as coisas secretas, não
por divina revelação, mas só por certa luz que Deus lhe comunica.
Neste caso, ele não pode estar certo e seguro da verdade das coisas
que entende; porque, não sabendo ao certo se a luz que o move
provem de Deus ou de outra causa falaz, tampouco pode estar seguro
da verdade daqueles objetos que com semelhante luz se lhe
manifestam. E, com efeito, erram talvez alguns homens santos nesta
espécie de profecia menos perfeita, como dizem São Gregório70 e
Ricardo de São Vitor.71 Aplicando, pois, a doutrina ao nosso caso,
digo que o discernimento dos espíritos não é como a profecia perfeita,
porque o homem que discerne não tem qualquer revelação de Deus
acerca dos espíritos de que forma juízo, senão que somente tem acerca
deles certa luz e certo instinto muito semelhante ao instinto profético;
e por isso não pode ter uma segurança infalível sobre a retidão ou
maldade de tais espíritos, e assim não pode ser formalmente certo e
seguro o juízo que ele forma a respeito deles.
2. Com isso, assinala o citado Doutor, que tal juízo que discerne os
espíritos, se for regulado pela luz particular do Espírito Santo, é
materialmente certo e infalível; porque, sendo verdade que a pessoa
que julga não pode estar segura de acertar com a verdade por falta de
motivo infalível para julgar, seu juízo é certo, contudo, por causa do
princípio que interiormente o move, não podendo o Santo Espírito
excitar-nos a julgar falsamente, nem mover-nos a pronunciar algum
erro. Este parece ser também o de São Bernardo.72 E não se ofusque o
leitor por aquela expressão – mas quando o Espírito fala –, usada por
São Bernardo, porque em tal locução o termo espírito é entendido
pelo Santo não só como uma palavra expressa por Deus, mas também
como qualquer moção especial que faça Deus no íntimo do espírito.

§ IV

1. Eu disse que pertence à graça gratuitamente dada do


discernimento não só formar reto juízo dos outros espíritos, mas
também do próprio. Mas se deve notar que é diferente o modo com
que a pessoa discreta discerne os movimentos de próprio espírito e os
dos outros, porque diz São Gregório que as almas boas distinguem
suas operações santas e divinas das diabólicas e humanas por certo
sabor de espírito que lhes faz conhecer e sentir a diversidade.73
Con rma o mesmo Gerson, dizendo que por meio deste interno sabor
se desfazem as trevas de toda a dúvida, e a alma se assegura do bom
espírito.74 Isto, no entanto, deve-se entender no caso da alma que
tenha saboreado novamente do espírito do Senhor; porque sendo este
tão diferente do espírito humano e diabólico, tanto quanto é diverso o
branco do negro e a luz das trevas, é fácil, a quem muitas vezes o tem
experimentado, discerni-lo de qualquer outro espírito falso e
adulterado. Mas isso de ordinário (salvo algum caso particular que
possa ocorrer) não seria verdadeiro se a pessoa jamais tivesse provado
o espírito de Deus reto e verdadeiro. Falando agora dos espíritos dos
outros, digo que estes não se podem conhecer pela via do sabor,
porque ninguém pode experimentar ou gostar do que acontece no
íntimo dos corações alheios. E por isso é que o discernimento destes
depende unicamente daquele juízo reto de que acima falamos, e da luz
infusa que dirige semelhante juízo para acertar com a verdade. E aqui
quero advertir às pessoas espirituais que, mesmo que talvez sintam, ou
lhes pareça ser certo por alguma suavidade, que é Deus o que age
nelas, não deixem por isso de aconselhar-se com homens doutos, e
especialmente com seus Diretores espirituais, e de guiar-se em tudo de
acordo com seu parecer; porque a segurança que experimentam não é
tal que não possa estar sujeita a algum engano. Santa Teresa,75 numa
de suas contas de consciência ao diretor, disse-lhe que por alguns dias
em que falava muito recolhida com Deus, mesmo que se tivessem
unido contra ela todos os Santos e sábios do mundo, e a tivessem
colocado na mais horrível prova para fazê-la crer que o demônio, e
não Deus, era o autor de suas revelações, jamais a teriam convencido
a crer nisso.76 E logo acrescenta que, não obstante tanta certeza, não
teria movido uma mão contra a ordem ou conselho de quem a
dirigisse. Este é o modo verdadeiro de assegurar-se de não errar. Por
isso o já citado Padre Suarez, falando destas mesmas pessoas devotas
que podem por certo sabor interno discernir a qualidade do próprio
espírito, adverte que devem ainda, para proceder com segurança,
sujeitar-se ao juízo de outros, porque, considerando o afeto que temos
por nós mesmos, podem inclinar-se mais a uma parte que a outra, e
ser enganadas.77

§. V

1. Confesso que o discernimento dos espíritos que até agora temos


abordado, sendo graça gratuitamente dada, pode Deus reparti-la a
pessoas ainda manchadas com culpa grave, porque, como diz o
Doutor Angélico, não repugna que estas espécies de graças sejam
conferidas também a almas delinqüentes. Assim, pode Deus, pelo bem
espiritual de algumas pessoas simples, dar a seu Diretor, ainda que seja
de uma má consciência, luz extraordinária com que possa discernir a
qualidade boa ou má de seus espíritos, a m de que retamente as guie
pelo caminho da saúde e perfeição cristã. Digo, sem embargo, que isto
não sucede de ordinário, senão que quase sempre concede Deus esta
graça a pessoas espirituais, que sejam tais não apenas enquanto ao
dom de conhecer, mas também enquanto à bondade de vida. Assim,
São Paulo, no citado texto, falando daqueles que teriam a graça do
discernimento dos espíritos, chama-os espirituais ou Profetas; e assim
como não se dá de ordinário a graça da profecia aos que são
pecadores, tampouco se dá o dom de discernimento.78 Esta mesma
verdade volta a inculcar muitas vezes na mesma Epístola.79 O homem
espiritual é aquele a quem compete julgar todas as coisas, e,
conseguinte, também aquelas que estão escondidas nos corações dos
homens.80 Só é espírito o que chega a penetrar com vista limpa todas
as coisas, mesmo as mais profundas que estão em Deus; assim sendo,
quanto mais não será hábil para penetrar o fundo de nossos corações?
E isto é mais claramente conforme a minha proposição: O homem
animal (carnal) não aceita as coisas do Espírito de Deus.81 O homem
carnal não é capaz de conhecer o Espírito Divino, e, portanto, de
diferenciá-lo do diabólico nem do humano. E a razão disto é
manifesta, porque para receber aquela luz pura e especial que se
infunde com a graça do discernimento são necessários tranqüilidade
da mente, pureza de consciência e domínio sobre as próprias paixões,
dotes todos de que se vêem privadas as almas pecadoras. E esta é
pontualmente a razão que traz Santo Tomás, que, ao falar da profecia,
disse: pode-se conceder a pecadores, mas muito raramente sucede que
se lhes conceda.
2. Ademais, é coisa indubitável que sempre tem existido na Igreja de
Deus almas puras que possuem por graça infusa o discernimento dos
espíritos próprios e alheios. São Jerônimo82 a rma que no povo
hebreu havia sacerdotes cujo próprio ofício era discernir os Profetas
verdadeiros dos falsos, e distinguir os ditos e sentenças proclamados
por impulso divino daqueles proclamados por impulso humano ou
diabólico.83 E assim é muito provável que muitos desses tivessem
infuso o dom de semelhante discernimento. Se queremos falar da lei
evangélica, são tantos os que nela receberam de Deus este dom,
mesmo no modo eminente explicado logo no início, que não é possível
contabilizar. Santa Maria Madalena de Pazzi84 via os pensamentos
que suas noviças revolviam em suas mentes, e os defeitos em que
caíam, e isto era tão notório em todo o monastério, que não se
atreviam as religiosas, especialmente as que haviam estado em seu
cuidado, pôr-se diante da Santa sem haver examinado primeiro suas
próprias consciências; e estando depois em sua presença, procuravam
ter bem guardada a mente e o coração, para que não lhes chegassem
pensamentos que as envergonhassem, sabendo que a Santa os
penetrava integralmente. Santa Catarina de Sena85 mirava os
pensamentos de seus domésticos, e lhes manifestava os segredos de seu
coração com a mesma clareza com que um amigo revela a alguém os
sentimentos do seu próprio coração. E o Pe. Raimundo86, seu
confessor, conta que, querendo esconder um defeito interno, assim foi
carinhosamente advertido por ela: Por que quereis esconder uma coisa
que eu vejo mais claramente que vós? Nesta nossa última época, São
José de Cupertino87 via também as culpas com que estavam
manchados aqueles com quem tratava, e com quem casualmente se
encontrava pelo caminho, e até as espécies de pecados de que estavam
contaminados; geralmente admoestava-lhes dizendo: “apresse-se em
lavar a cara”, querendo signi car que fossem se lavar com o Sangue
de Jesus Cristo na con ssão sacramental. E por isso alguns amigos
seus, réus talvez de alguma culpa, não se arriscavam a aproximar-se de
sua cela sem ter ido antes aos pés do confessor para puri car sua
consciência. Mas de que serve alargar-nos mais nessas narrações de
semelhantes graças de que estão cheias as histórias?
CAPÍTULO IV
De ne-se o que é o discernimento dos espíritos enquanto virtude
adquirida com arte e com indústria, e a obrigação que têm os
Diretores de conquistá-la

§ I.

1. Eu disse que as histórias sagradas estão cheias de pessoas às quais,


por divina virtude, era concedido o penetrar com os olhos da mente os
mais internos segredos das consciências dos semelhantes, para
descobrir seus ocultos movimentos; ou que ao menos podiam formar
reto juízo de tais movimentos por meio de uma luz muito
extraordinária que o Espírito Santo infundia em sua mente. Ocorre
que estes são muito poucos se comparados com os muitos que, por
razão de seu ofício, têm a obrigação de saber discernir a qualidade dos
espíritos dos outros. Nesta obrigação se encontram os Pais espirituais
e Diretores que tomam para si a direção das almas, não sendo possível
que possam conduzi-las com segurança pelo caminho da saúde e da
perfeição sem que conheçam qual o princípio que gera os pensamentos
de sua mente e os impulsos de seus corações, e cheguem, por esta via,
a discernir se são bons ou maus. Por isso, para suprir o discernimento
infuso que o Divino Espírito gratuitamente comunica a poucos, é
necessário outro discernimento que todos possam adquirir, e a todos
seja comum, já que a todos os confessores é comum a direção das
almas. E desta pontualmente falaremos daqui em diante, ensinando o
modo como podem adquiri-las os Diretores.
2. O discernimento, pois, dos espíritos que se pode adquirir com
indústria (empenho), consiste num juízo reto que formamos acerca
dos espíritos alheios, por meio das regras e preceitos que nos
subministram as Sagradas Escrituras, a Santa Igreja, os Santos Padres,
os Sagrados Doutores e a experiência dos Santos, dependendo
também da luz da prudência. Não se pode duvidar de que exista esse
tipo de discernimento que cada um pode adquirir, porque ele está
claramente insinuado nas Sagradas Escrituras. O amado Discípulo nos
avisa que não desejemos crer nos espíritos sem fazer antes a prova
para conhecer se são de Deus.88 O Apóstolo nos exorta a não andar às
cegas, mas provar todas as coisas, e abraçar apenas aquelas que em
virtude da prova se reconheçam boas, e rechaçar as que se descubram
ruins.89 Agora, pois, quais são estas provas que tanto nos inculcam as
Sagradas Escrituras? São, por acaso, outra coisa que não os exames
trabalhosos (industriosos) sobre as ações, exames que dependem dos
preceitos e regras tomadas das fontes sagradas da Divina Escritura?
Certo é que o dom do discernimento infuso não tem necessidade de
provas tão incomuns. Basta, a quem tem o discernimento por graça
gratuitamente dada, ver as operações dos outros, ou que se lhe
manifestem os movimentos dos corações, para que possa decidir sobre
a qualidade boa ou má dos espíritos; porque nestes a luz
extraordinária que Deus lhes dá supre as diligências humanas. O
mesmo Redentor, depois de nos ter advertido para que nos guardemos
dos falsos profetas, que por fora parecem ovelhas e por dentro são
lobos,90 diz que nós os conheceremos por suas ações, isto é, avaliando
diligentemente suas ações; tal diligência não se pode fazer sem re etir
se tais obras concordam com as regras de toda a retidão e santidade,
ou, pelo contrário, discordam delas. Acrescento que Jesus Cristo não
deu esta sábia advertência somente a algumas pessoas
extraordinariamente iluminadas, mas a todas. Assim é que todos
podem alcançar este discernimento, não certamente por dom infuso,
porque isso pertence a poucos, senão por arte e por indústria.
3. Foi justamente isto o que queria dizer o Pe. Suarez, quando falava
da “discrição dos espíritos”.91 Diz bravamente o Doutor Exímio que,
por um lado, todos somos admoestados a veri car os espíritos; por
outro, o discernimento gratuitamente dado não se dá a todos; logo,
somos admoestados a procurar com uma diligência humana um
discernimento moralmente certo, não só entre o espírito verdadeiro ou
falso, senão também entre o bom e o mau, entre o bom ou melhor e
entre o seguro ou perigoso – coisa que conseguem os mestres do
espírito por meio das regras que ensinam os homens espirituais e
doutos, regras que estão inteiramente fundadas na Sagrada Escritura,
na tradição, na doutrina da Igreja Católica e dos Santos Padres, na
experiência dos Santos e na reta razão ilustrada pela luz da santa fé,
tal como antes a rmamos.
4. Daí se segue que o discernimento que trataremos no desenrolar
deste livro não é um dom, senão uma virtude adquirida com as
próprias diligências. Segue-se também que os juízos que esta virtude
de discernir forma acerca dos espíritos não são infalíveis; porque,
mesmo sendo infalíveis as regras e documentos que se dão para julgar
bem, por serem extraídos da Sagrada Escritura e dos Santos Doutores
da Igreja, não é infalível que esse tipo de discernimento aplique
retamente aos seus juízos os referidos ditames. Poder-se-á dizer, na
melhor das hipóteses, que gozam de uma certeza moral e prática,
como diz o citado Doutor, enquanto fundadas em razões que mostrem
claramente a conformidade com as ditas regras, de maneira que não se
possa sem imprudência julgar o contrário.

§. II

1. E agora faça o Diretor uma re exão sobre a obrigação grave que


tem em sua consciência de procurar a todo custo tal discernimento dos
espíritos, sem o qual não é possível que deixe de errar freqüentemente
no governo das almas, com grave prejuízo delas. O que nós diríamos
de um homem que se mete a curar os enfermos sem jamais ter
aprendido aquelas regras pelas quais se conhecem os males que
assaltam os corpos humanos, nem ter adquirido as notícias necessárias
para distinguir uma enfermidade de outra, e poder aplicar a cada uma
o remédio adequado? Não diríamos ser um inepto para semelhante
ministério? E que foi temerário empreendê-lo? Antes, diríamos que
pecava exercitando tal emprego, pois em vez de curar os enfermos,
põe-se em evidente risco de lhes dar a morte. É justamente este o
nosso caso. Um Diretor que não tem adquirido um su ciente
discernimentode espírito não pode conhecer as origens dos impulsos e
movimentos do nosso ânimo – se de Deus, se do demônio, ou se da
nossa corrupta e depravada natureza; e isso é ainda mais verdadeiro
quando as moções interiores são extraordinárias, como sucede com
freqüência às pessoas contemplativas. Assim, expõe-se ao manifesto
perigo de aprovar o que é digno de repreensão, e a repreender o que é
digno de aprovação, e de prescrever regras inoportunas, pelas quais
põe impedimento às almas, no lugar de promover a sua perfeição, ou
quiçá as encaminhe pela senda da perdição. Disso se infere que não
pode eximir-se de alguma nota de temeridade, e de alguma mancha de
culpa, qualquer um que se meta a Pai espiritual das almas sem haver
adquirido a devida instrução e discernimento dos espíritos, e muito
mais se se expõe a confessar nos monastérios de religiosas, entre as
quais existe sempre muitas que seriamente atendem à perfeição, e
sempre se encontra alguma a quem Deus conduz por caminho
extraordinário, e não pode conferir os movimentos do seu coração
senão com seu confessor.
2. Santo Tomás reconhece no homem duas ignorâncias, ambas
pecaminosas: uma é chamada de direta, e ocorre quando a pessoa de
propósito não quer entender o que está obrigado a saber; a outra é
chamada de indireta, e ocorre quando a pessoa, para escapar do
trabalho ou para distrair-se com outras ocupações, descuida de
aprender o que por dever de consciência está obrigado a saber.92
Logo, não se pode escusar de pecado o confessor que não procura
adquirir aquelas luzes que são necessárias para um conhecimento reto
dos espíritos, porque a isto lhe obriga o seu ofício e a caridade, já que
esta lhe veda expor-se ao perigo de errar em matéria tão elevada.
3. Porém, ainda mais especi camente fala Santo Agostinho a nosso
propósito. Disse o Santo que negligenciar a devida caridade sempre é
pecado, podendo-se ou não, no momento, evitar tal falta (supondo,
porém, que antes se tivesse dado ocasião culpável à falta presente);
porque disse o Santo: se o defeito pôde ser evitado, a culpa está na
vontade presente; se não pôde evitar-se, a culpa está na vontade
passada.93 Se um Diretor, então, erra com prejuízo dos outros,
tomando um espírito mau por bom ou um bom por mau, peca, ainda
que não tenha vontade de pecar; peca, digo, não por vontade que tem
no presente, senão pela vontade que não teve e devia ter em adquirir
su ciente doutrina antes de expor-se a semelhantes exames. E se o
leitor desejar ter ainda mais razão disto, ser-lhe-á dada por São João
Crisóstomo.94 Que não pode andar isento de culpa, e quiçá de
condenação, aquele que teria forma de encontrar a verdade, caso
tivesse a vontade de buscá-la com um estudo adequado a seu
ministério. Para que, pois, não aconteça tão grave mal a algum
Diretor, senão que possa cumprir exatamente cada um com as
estreitíssimas obrigações de seu sagrado ofício, farei a exposição no
seguinte capítulo dos meios com que se pode conseguir aquele
discernimento que é tão necessário para a boa conduta das almas.
CAPÍTULO V
Propõem-se os meios pelos quais pode o Diretor adquirir o referido
discernimento dos espíritos

§I

1. Se todo o professor está obrigado a saber e a praticar os meios


com que pode conseguir o m de sua arte, quanto mais obrigado não
estaria um mestre do espírito a saber e praticar aqueles meios pelos
quais somente pode (se Deus não o quer socorrer com dons
extraordinários) chegar a discernir o espírito verdadeiro do falso, e
dar a cada um a devida direção, quando é esta, segundo o célebre dito
de São Dionísio Areopagita,95 a arte mais excelsa e divina que pode
dar-se, cooperando com ela para a saúde e perfeição das almas, pelas
quais Deus deu Sua vida, e derramou o Preciosíssimo Sangue de todas
as Suas veias? Os meios que devem ser usados são muitos; e entre eles
escolherei os principais e mais importantes, e brevemente os
descreverei.
2. Primeiro meio: Pedir a Deus incessantemente a luz do
discernimento, porque os pensamentos e afetos dos mortais são
incertos e muito duvidosos.96 E só Deus, que vê o íntimo dos
corações, é que compreende nossos espíritos, como Ele mesmo o
protesta nos Provérbios.97 Por isso deve-se esperar apenas de Sua
Divina Majestade aquela luz que é necessária para discerni-los sem
erro e engano. A Deus, disse São Lourenço Justiniano,98 pertence dar
uma certa inteligência, e com esta visão mental se miram as ilusões
espirituais dos demônios, e se distinguem as diversas qualidades dos
movimentos interiores das almas.99 Se alguém tem necessidade da luz
da sabedoria para discernir os espíritos dos outros, peça-o a Deus, que
lhe dará de mãos cheias. Mas que se advirta, diz o Apóstolo, que se
peça com viva e rme fé, porque aquele que titubeia é semelhante às
ondas do mar agitadas pelos ventos, que não têm rmeza; e assim que,
sendo utuante no crer, será também inábil para receber a desejada
discrição.100
3. Mas então convém renovar os rogos com mais fervor, quando o
Diretor está para examinar alguma alma; e muito especialmente
quando encontram certos pontos mais intrincados e abstrusos, que ele
não sabe penetrar e distinguir com sua ciência, para que lhe aclare
Deus o entendimento com suas luzes celestiais. Então deve dizer-lhe,
tal como o Santo Rei Josafá:
Eu, Senhor, não sei que juízo formar desta alma; não me ocorre outra coisa que
alçar os olhos e a mente a Vós, para implorar o socorro de vossa divina luz.101

4. Mas aqui salta logo uma dúvida. É que, se para este


discernimento é também necessária luz sobrenatural, então parece não
existir diferença entre o que se adquire com a indústria e o que se
recebe da divina ilustração. Respondo que é importante distinguir
duas luzes sobrenaturais: uma extraordinária, e outra ordinária. A
primeira é uma graça gratuitamente dada; e esta última pertence à
graça comum a todos os homens justos. A primeira é concedida a
poucos e a última não se nega a ninguém, mormente se está na graça.
Agora, a luz que pertence ao dom do discernimento infuso, de que
falamos no capítulo III, não é esta última, senão aquela primeira, e
consiste numa iluminação da mente, pura, clara e penetrante, pela
qual a pessoa logo enxerga, ou em si mesma ou por pequenos indícios,
sem inquisição nem exame, os movimentos dos ânimos alheios, e
distingue logo a qualidade de tais movimentos. Esta espécie de
discernimento, quando Deus a concede, é a melhor – quem não o vê?!
– porque com ela se chega rapidamente e com segurança a descobrir o
que se esconde nos corações dos outros. É explicada
maravilhosamente por São João da Cruz,102 que diz assim:
Mas se deve advertir que aqueles que têm espírito podem conhecer com mais
facilidade, e um mais que o outro, o que está no coração e no íntimo do ânimo, e as
inclinações e talentos das pessoas; e isto por indícios exteriores, por menores que
sejam, como por palavras, movimentos e outros sinais... Daí que, ainda que essas
pessoas espirituais não possam, de forma natural, conhecer os pensamentos, ou o que
está no interior, podem conhecer, porém, por indícios, mediante a iluminação
sobrenatural.

5. Mas a luz que pertence ao discernimento ordinário dos espíritos,


capaz de adquirir-se por qualquer um, e da qual estamos falando no
presente capítulo, não é tão clara, tão viva nem penetrante, mas mais
baixa, obscura e débil, e não pode por si mesma, nem com a ajuda
apenas de algum indício, penetrar a origem das moções internas. Tem
a necessidade de largos, diligentes e repetidos exames. São necessários
preceitos, regras e bem fundada doutrina, porque, ao cabo, seu ofício
não é outro senão esclarecer e dirigir a mente do mestre espiritual,
para que aplique bem nos casos particulares as regras que se dão para
o discernimento dos espíritos; e com esta boa aplicação acerte no alvo
da verdade com o juízo que forma. Esta luz, pois, é ordinária, e a
ninguém se nega; e por isso todos os superiores, Pais espirituais e
Diretores das almas, devem pedi-la a Deus continuamente, de modo
especial quando se põem a examinar o espírito de seus discípulos, ou
eles lhes dão conta do seu interior, e ainda com mais particularidade
nos casos árduos e duvidosos; porque, de outra sorte, mesmo que
tenha adquirido bons estudos, enganar-se-ão na aplicação da doutrina,
e não formarão um justo e verdadeiro juízo das operações internas dos
outros, e só se poderá dizer deles que discernem bem na teoria, mas
não na prática. Em suma, recordem-se da doutrina tão autorizada do
Concílio Tridentino103. Deus quer que façamos o que podemos para
tornar-nos hábeis; e para aquilo que não alcançamos por nosso
esforço, deseja que imploremos sua ajuda – para o que está pronto a
nos dar.

§. II

1. O segundo meio é nos aplicarmos a aprender as regras que


ensinem a discernir o espírito verdadeiro do falso, especialmente com
a leitura e estudo da Sagrada Escritura; e para não errar na
inteligência dos sentidos mais recônditos, valer-nos de algum douto e
erudito intérprete. Para distinguir o ouro do latão que o simula, e de
qualquer outro metal vil, a natureza nos providenciou a chamada
pedra de toque. A pedra de toque com que se discerne o espírito
verdadeiro do aparente são os documentos, preceitos e regras que se
dão para este discernimento. As regras, em primeiro lugar, encontram-
se na Sagrada Escritura, dentro da qual Deus as pôs e espalhou. A ela
é necessário acudir para extraí-las, como ensinava a seus monges
Hugo de São Vitor.104 Dizendo Hugo a seus discípulos que na Sagrada
Escritura aprenderiam a desprezar o mundo, a defender-se das tramas
de seus infernais inimigos, a reprimir os maus desejos da carne, e que
conquistariam a compulsão do coração, a disciplina nas obras, a
humildade da mente e a paciência nas adversidades, não lhes quis
dizer outra coisa senão que com aquele santo estudo aprenderiam qual
é o espírito do mundo para desprezá-lo, qual é o espírito do demônio
para rechaçá-lo, qual é o espírito da carne para refreá-lo, qual é o
espírito de Deus para abraçá-lo; e que tudo isso aprenderiam com
regras seguras e infalíveis, porque ensinadas pelo próprio Deus. Por
isso é indispensável que nos alimentemos da lição da Sagrada
Escritura, para também sacarmos os sinais do verdadeiro espírito.
2. É terrível a ameaça que Deus lança aos sacerdotes de Oséias.105
Diz Cornélio de Lápide que por aquela palavra scientiam entende o
Profeta o conhecimento de Deus e da divina Lei, não só especulativo,
senão prático, que os sacerdotes daquele tempo descuidavam de
aprender com o estudo da Sagrada Escritura.106 E por esta
negligência, perniciosas a todo o povo, ameaçava Deus que retiraria
de Israel o sacerdócio e o culto dos altares. Mas não quero signi car
com isto que Deus revogará o sacerdócio dos Diretores que vivem
esquecidos e alheios deste sagrado estudo. Sei muito bem que o caráter
sacerdotal é indelével. Muito menos quero dizer que retirará de sua
Igreja a ordem sacerdotal, como privou dele a Israel. O que digo é que
retirará dos Diretores aquelas graças especiais que seriam muito
oportunas para torná-los bons sacerdotes e dignos ministros dos
sagrados altares. E certamente com justo castigo, porque não merece
ajudas particulares de Deus quem não cuida de fazer-se hábil para
ajudar o próximo no exercício do seu sagrado ministério.
3. Digo, em segundo lugar, que aquela bela pedra em cujo toque se
distingue o espírito verdadeiro do falso, encontra-se também nos
livros dos Santos Padres e dos Doutores, os quais a extraíram da
Divina Escritura, e nos propuseram para a utilidade do nosso governo.
Os ditos documentos são também seguros, porque são tomados da
Sagrada Escritura. Seguras são também as experiências dos Santos e
seus documentos, que se encontram em suas vidas ou em suas obras,
porque eles, em suas ações e lições, eram movidos pelo Espírito Santo,
que com modo particular lhes assistia em suas operações. Portanto,
devem os Diretores das almas estudar freqüentemente nestes livros,
para sacar deles aqueles aforismos de espírito com que terão que
discernir e regular os movimentos interiores de seus penitentes.
Confesso que pretendi poupar-lhes o trabalho com esta minha obra,
tendo recolhido nela várias daquelas notícias com as quais possam
seguramente discernir qualquer espírito – se é verdadeiro ou falso, se
bom ou mau; e possam também conduzir a cada um com retidão pelo
caminho da perfeição, ou ao menos da saúde, segundo a plural
qualidade das pessoas que estejam sob sua direção. E assim espero que
este meu pobre trabalho possa servir-lhes de muita ajuda e alívio.
Entretanto, não devem contentar-se com isto, mas sim procurar trazer
por entre as mãos, e ler freqüentemente, outros autores de maior
crédito, porque sempre é mais pura aquela água que se colhe da fonte
do que aquela que se toma nas correntes.
4. Pondo em prática os Diretores estas diligências, não deixará Deus
de subministrar em suas mentes bastante luz para formar reto juízo
sobre as almas de seus penitentes, e sobre seus interiores movimentos,
porque, diz Santo Agostinho, pertence à divina Providência o fazer
que as pessoas devotas, que buscam piedosamente e com diligência a
Deus, bem como a verdade das coisas que pertencem a seu divino
serviço, não quem sem modo de encontrá-la.107

§. III

1. O terceiro meio é que o Diretor tenha em si mesmo ao menos


experiência das diversas qualidades dos espíritos, porque, como bem
disse Gerson, a Sagrada Escritura, os Padres e Doutores nos dão
regras gerais, as quais di cilmente podem ser aplicadas aos casos
particulares se a pessoa não os têm experimentado em si mesma.108 E,
antes dele, nos havia ensinado o Espírito Santo que de nós mesmos
temos que tomar as regras para entender o que se passa no ânimo
alheio.109 Daí se segue que um Diretor tem de atender seriamente ao
estudo da oração, e particularmente da meditação, para que,
conhecendo por experiência o que é a luz e o que são as trevas, o que
é o movimento falso e o movimento santo, o que é a consolação e a
aridez de espirito, saiba também julgar depois retamente nos outros
acerca de semelhantes coisas; porque, como disse São Gregório, não
pode existir justo juízo das trevas em quem jamais teve notícia alguma
da luz.110 Como saberá, pois, distinguir as obras tenebrosas do
inimigo infernal um Pai espiritual que não está acostumado a receber
a divina luz que de ordinário se infunde na oração?
2. Segue-se também que tem de atender com propósito à consecução
da virtude cristã, para que a conheça, não só de vista, por assim dizer,
mas também por tê-la provado e experimentado. Para que saiba o
modo com que se praticam as di culdades que aparecem e a maneira
como são vencidas. Torna-se perito de suas próprias falhas, conhece os
perigos em que desliza, os modos de escapar deles, e a arte com que se
toma fôlego da mesma falha para correr com maior velocidade à
perfeição. É isso o que precisamente ensina Ricardo de São Vitor.111
Se, após isso tudo, tivesse passado o Diretor por tentações, por
escrúpulos, por aridez, por desolações e pela experiência de grandes
provas, seria sem dúvida mais apto para conduzir os outros por estes
caminhos sinuosos, dizendo o Espírito Santo pelo Eclesiástico: O que
pode saber aquele que não tem sido tentado?112

§. IV

1. Quarto meio. Que o Diretor em guiar as almas proceda com


humildade, porque de outra sorte não acertará a formar reto juízo,
nem a dar um justo regramento, e isto por dois motivos. O primeiro,
como disse acima, para um bom discernimento dos espíritos é
necessária a luz de Deus, mesmo que seja pela via ordinária; e Deus
não concede esta luz àquele que con a em seu próprio saber, na
perspicácia de seu entendimento, em sua prudência, e em sua ampla
experiência, àquele que se compraz na boa conduta que parece ter no
governo das almas, àquele que se jacta e gloria, àquele que não se
proteja de uma certa vaidade interior e soberba, e de parecer tal aos
olhos dos outros, se não procede com humildade na palavra,
esperando de Deus todo o bom sucesso, e reconhecimento pelo favor
vindo de Sua Divina e bené ca mão, sendo, nisso, muito
verdadeiro.113 O segundo motivo é porque não existe Diretor tão
especialista que não tenha necessidade de recorrer freqüentemente a
conselhos de personagens doutos e experientes, e isso quando se pode
encontrar com essas personalidades dotadas do dom do discernimento
infuso, especialmente em casos duvidosos, em acontecimentos
estranhos, na direção de consciências extraordinariamente enredadas e
de algumas muito elevadas; e se o Diretor não for humilde, e,
prendendo-se demasiadamente em sua prudência, não quiser buscar o
conselho de outro, nem sujeitar-se ao seu parecer, cairá em muitos
erros com prejuízo das almas submetidas à sua direção.114 Diz o
Espírito Santo: Não te apóies em tua prudência; porque, como dizem
os sábios, é verdadeira prudência não se ater somente à própria
prudência, mas tomar sempre conselho de pessoas sábias, mormente
em coisas de muita monta, como sempre são as que buscam o bem
espiritual das almas. E, de fato, quando São Jó convida os homens à
sabedoria, não quer que algum deles seja sábio: Mas, vós todos, voltai,
vinde, pois não acharei entre vós nenhum sábio?115 Ou seja, como
explica São Gregório, não se deseja que alguém se proclame sábio e se
estribe con antemente em sua sabedoria, ou, numa palavra, que seja
sábio por sua própria estima e conceito.116 Mas, se é verdade que o
sábio e o prudente é apenas aquele que não se toma por tal, nem se
prende em si, nem na sua própria prudência, convirá dizer que, se é
prudente, se é humilde, facilmente estará disposto a aconselhar-se com
pessoas doutas e discretas, sujeitando-se a seus pareceres e ditames.

§. V

1. Quinto meio. Que o Diretor não se afeiçoe (ou se entusiasme)


demasiadamente por seus penitentes, porque de outra sorte decidirá
sempre a seu favor, movido mais pelo afeto que pela razão, nem
certamente será sempre reta a sua decisão. Já se sabe que não pode dar
justa sentença um juiz apaixonado, porque, como diz Cornélio de
Lápide, explicando o dito de Malaquias,117 o homem julga segundo o
afeto, e, conforme a inclinação do ânimo, será benévolo ou adverso;
atribui ao vício o que é ato de verdadeira virtude, ou à virtude o que é
vício abominável.118
2. Por este mesmo motivo, jamais deve receber alguma alma sob sua
direção por alguma ganância temporal que lhe possa resultar, porque
se é grande a força que tem o interesse para corromper aos juízes
terrenos, não é menor a que tem para alterar o parecer dos juízes
espirituais das almas. São Bernardo, escrevendo ao Pontí ce Eugênio,
refere-se, com fórmulas de grande louvor, a um ilustre fato do Cardeal
Martin. Este, nalizada sua estada na Dinamarca, voltou à Itália, mas
tão desprovido de dinheiro e de cavalos, que, estando em Florência,
não tinha forma de prosseguir sua viagem. O Bispo daquela cidade lhe
deu um cavalo; este mesmo Bispo, no dia seguinte, dirigiu-se a Pisa,
porque ali tinha um litígio com um desafeto; o Cardeal já havia
chegado a Pisa, e o Bispo pediu-lhe para que ele desse um voto a seu
favor. O santo Cardeal, ao ver que tinha recebido um donativo da
pessoa sobre quem tinha que emitir um parecer, e proferir a sentença,
respondeu: Enganei-me, eu não sabia que possuías esse pleito; toma o
vosso cavalo que está na cavalaria. E ordenou que logo se lhe
restituísse.119 A mesma loa faz a Gaufrido,120 Legado também
Apostólico, contando dele exemplos singularíssimos de desinteresse
em recusar doações, mesmo muito pequenas, dizendo que ele podia
falar como Samuel, quando renunciou à judicatura do povo: “Se
existe alguém de cuja mão tenha eu recebido algum dom, fale agora, e
acuse-me, que eu estou pronto a restituir-lhe integralmente”.
Finalmente, conclui com estas nobilíssimas palavras:
Oh!, se a Santa Igreja tivesse muitos destes ministros! A estes eu desejaria
manifestar todos os meus pensamentos. A estes eu desejaria revelar todos os segredos
do meu coração. Nessas mãos eu me entregaria totalmente, como a quem é uma só
coisa comigo. Oh!, quão seguro me sentiria debaixo de tais guardas e Diretores da
minha vida! Oh!, quão bem-aventurado me reputaria!

Tanta verdade é que o proceder com total desinteresse na direção das


almas dá segurança aos Diretores e quietude às almas dirigidas a
respeito do governo de suas consciências. E por acaso, quem deseja
formar reto juízo dos espíritos dos outros, e endereçá-los bem, não
deve ter outra mira em seu sagrado ministério que o proveito das
almas, e a pura glória de Deus; nem deve manter em seu coração
algum afeto demasiado que possa alterar a justa estimação.

§. VI

1. O sexto meio é que o Diretor tenha um entendimento instruído,


mas não sofístico. Eu não nego que as ciências especulativas, e
especialmente a Teologia, sejam o fundamento sobre o qual se estriba
toda a faculdade da ascética e mística, e que sem aquelas não podem
adquirir-se com perfeição estas duas faculdades. Digo somente que o
teólogo, para examinar as obras do espírito, não tem de ser demasiado
sutil e re exivo, nem pretender quase reduzir as coisas à
demonstração, porque desta sorte jamais formará um juízo prático,
sábio e discreto. Observa o Pe. Lacroix,121 em seu livro Teologia
Moral, que a mesma agudeza do entendimento e mesmo o saber
funcionam para alguns teólogos como um impedimento para ouvir até
mesmo as con ssões ordinárias, e para julgar retamente as
consciências dos outros; porque sua excessiva sutileza e suas agudas
re exões enredam-se a si mesmas e confundem seus penitentes.122
Procure, pois, o Diretor estar bem instruído nas ciências sagradas, mas
quando tenha que decidir sobre os espíritos dos outros, não se cuide
de demasiadas sutilezas, nem seja incontentável, para não dar em
cavilações e so smas, senão que, tendo su cientemente conhecido que
as operações dos outros são ou não conformes às máximas da fé e às
regras da moral cristã, pro ra seu juízo e aplique seu regime,
lembrando-se de que o juízo do discernimento não tem de ser
evidente, senão racional e humano; ou seja, apoiado sobre motivos
razoáveis.
2. Fora disso, se deseja o Diretor ter bom discernimento dos
espíritos, é necessário que não se mova a julgar por razões terrenas,
mas sim divinas; porque, diz o Crisóstomo, que não existe coisa pior
que dar sentença sobre as coisas espirituais por dependência das
razões humanas. Tenho observado muitas vezes que muitos
confessores, ainda que doutos, tomam por ponto de reputação o não
crer em nada daquelas coisas que no plano sobrenatural têm algo
extraordinário, seja visão ou revelação, êxtases ou outra comunicação
de espírito; e o pior é que se gloriam desta incredulidade, como se o
dar fé a alguma destas coisas fosse simples, e o não crer em nada fosse
sanidade e prudência. Quem se rege por estas máximas humanas e
ainda errôneas, não é possível que tenha discernimento dos espíritos,
porque é coisa certíssima que este tipo de espírito extraordinário tem
sempre existido na Igreja de Deus, e sempre existirá.
3. Notem a advertência da qual nos previne Blosio,123 em seu
Monile spirituale.124 Este douto e devoto asceta previne o leitor de seu
livro que não imite o juízo perverso de alguns homens, que desprezam
as visões e revelações como sonhos vãos, mostrando-se nisto pouco
humildes e menos espirituais; porque não se devem ter em pouco caso
aquelas revelações divinas com que maravilhosamente se ilustra a
Igreja de Deus.
4. Nem o citado Blosio deixa-se governar por seu capricho em
proferir esta sentença, senão que fala fundado na doutrina irrefragável
da Sagrada Escritura. O Profeta Joel, aludindo a nossos tempos,125 diz
que Deus, nos tempos vindouros, difundirá seu espírito sobre toda a
sorte de pessoas; que profetizarão os homens e as mulheres, e
receberão de Deus verdadeiras visões. E São Paulo ainda com mais
clara expressão, diz a nosso propósito: Não queirais extinguir nos éis
o espírito do Senhor, nem queirais depreciar as profecias.126 O douto
expositor Estio,127 interpretando estas palavras, disse que peca contra
este preceito do Apóstolo qualquer que sem exame, nem das pessoas,
nem do modo com que sucedem semelhantes coisas extraordinárias,
menospreza-as e cegamente as rechace.128
5. Mas não quero signi car com isso que o Diretor tenha que ser
fácil em dar crédito a coisas incomuns e extraordinárias; antes,
previno-lhe que seja cauteloso e detido em dar-lhes crédito; e quero
mesmo que se posicione sempre com um passo mais atrás, pelo perigo
que existe de enganos, de ilusões, e talvez também de hipocrisias e
cções, especialmente quando se trata de visões, de revelações e
locuções, que mais que qualquer outra coisa estão sujeitas aos
equívocos de nossos inimigos. Digo somente que proceda com
prudência – não humana, mas divina; que não seja incrédulo; que não
seja regido por máximas mal fundadas, nem por elas busque crédito
de sanidade, mas que antes, com conselho mais lúcido, examine
diligentemente as coisas, se concordam ou não com as regras que
temos da Divina Escritura, da Igreja Católica e dos Santos, e à luz
delas faça um juízo, não evidente (pois isso em semelhantes coisas não
é possível), mas prudente, sobre a retidão ou falsidade dos espíritos,
cujo governo empreende, estando sempre persuadido que se este ou
aquele espírito particular não é bom, não faltam na Santa Igreja
outros que o sejam; porque, como disse o Angélico, e o provam as
Sagradas Escrituras, em nenhum tempo têm faltado almas escolhidas
que possuem o espírito de revelação (o mesmo se entende de outros
favores sobrenaturais), não para introduzir na Igreja novas doutrinas,
mas para dar boa regra às operações dos éis.129 Deve ir, pois, pelo
caminho do meio, aquele que quer ser Diretor e não destruidor dos
espíritos.

§. VII

1. O sétimo meio é examinar exatamente as coisas, e ponderá-las


bem, antes de formar o juízo. Josué, aquele grande capitão de Deus,
ao ver aparecer diante de si um homem armado, que era o anjo do
Senhor em gura humana, xou-lhe o olhar na frente, e lhe perguntou
nesta forma: És dos nossos, ou dos nossos inimigos? E desta maneira
descobriu que era o santo anjo, enviado de Deus para defesa de seu
exército.130 Veja-se aqui o que deve fazer um Diretor solícito da saúde
e perfeição de seus discípulos: xar a vista da mente sobre suas
operações, e examinar se são santas e pertencem a nós, que, sendo
ministros de Deus, estamos confederados com sua Divina Majestade,
ou se, ao contrário, pertencem aos nossos inimigos – mundo, demônio
e carne. Por isso não deve pronunciar logo uma sentença, e de nir
contra ou a favor do penitente (salvo se for um espírito claramente
bom ou manifestamente mal), senão indagar primeiro atentamente os
movimentos, os impulsos, as ações, os procedimentos e as
circunstâncias que concorrem.
2. Diz São Gregório:
É sumamente necessário que em todas as nossas ações ponderemos com grande
cuidado de que impulso somos movidos a operar, se de inclinação da carne, ou de
ímpeto de espírito.131
E dá a razão, porque sucede muitas vezes que o impulso carnal se
cobre com a capa de afeto espiritual, de modo que para alguém possa
parecer uma operação espiritual, porquanto enganado com a
aparência de moção interior. Mas se o Santo Doutor pede tão diligente
exame para o reto discernimento dos próprios afetos, quanto maior
indagação e re exão serão importantes para o discernimento dos
afetos alheios, quando é muito mais fácil discernir a qualidade dos
movimentos que se levantam em nosso coração do que aqueles que se
escondem nos corações dos outros?
3. Santo Ambrósio132 quer que seja tal a diligência deste exame, que
chegue a penetrar o mais íntimo das almas e de suas consciências, para
não errar em seus juízos. Para este m traz a sábia decisão que tomou
Salomão naquela controvérsia das duas mulheres, cada uma das quais
pretendia ser mãe de uma criança. Uma delas gritava que a criança era
seu lho; “Mentes!”, dizia a outra, “Porque é fruto das minhas
entranhas”. “Sabem muito bem meus olhos”, replicava aquela,
“quantas noites estiveram desvelados para atender à sua criança”.
“Meus seios sabem também”, respondia esta, “quanto leite
subministrava para sustentá-lo”. Em meio a estes clamores, proferiu o
Sábio Rei a sua decisão. Disse, pois: “Já que as duas são mães deste
bebê, que se divida em duas partes, e a cada uma se lhe dê a metade”.
“Dividatur, dividatur”, exclamou a falsa mãe, “que me contento”.
“Oh!, isto não”, replicou a verdadeira mãe; “dura sentença é esta para
mim; desejo, antes, que ele viva nos braços de minha rival que morto
no meu peito”. “Pois esta”, disse então Salomão, “é a verdadeira mãe:
não se mate a criança, entregue-a a ela”.133 Depois de alegado o fato,
acrescenta para a nossa instrução o Santo Doutor:
É próprio, disse, do homem sábio, distinguir os movimentos ocultos das
consciências, e com a sutileza de seu espírito, como com uma espada aguda, penetrar
até as entranhas de outras almas, para separar o verdadeiro do falso, o bom do mau,
e passar a limpo a verdade.134

Mas para fazer isto, quem não vê que não pode bastar um exame
super cial e precipitado, senão que se requer a mais exata e diligente
pesquisa?
4. Mas porque é – de poucos o penetrar o segredo dos corações de
outros, para examinar os impulsos e movimentos como são em si
mesmos, é necessário que observemos as operações exteriores, e que
nos indícios que estas nos dão fundemos o juízo das moções interiores
do ânimo, e nisso consiste a discrição dos espíritos. Esta regra nos dá
o Salvador.135 Não podemos entrar (quer dizer o Divino Mestre) nas
profundezas da árvore, ou em suas raízes, para ver sua qualidade; e
assim devemos observar o fruto que ela produz, e da qualidade dele
argüir se a árvore é boa ou má. E concluí que a mesma norma
devemos guardar com as pessoas; isto é, deduzir do que se mostra por
fora aquilo que está velado lá dentro.136 Vejo, diz Santo Agostinho,
teus pensamentos, porque, se bem não penetro com a vista de minha
mente o interior de tua consciência, vejo tuas obras, que são o fruto,
isto é, o efeito de teus pensamentos. Nisto, pois, há de empregar o
Diretor toda a sua sensatez e diligência; em observar atentamente as
obras externas de seus discípulos, para entender, pelo que se vê, o que
não se pode ver, e por um julgar o outro. Deve também indagar os ns
a que se endereçam os movimentos interiores do ânimo; porque assim
como do m se deriva toda a malícia ou bondade de nossos atos, de
igual maneira desses ns retamente se argüi o que são, se bons ou
maus. Sobretudo, deve examinar minuciosamente as circunstâncias, já
que, por causa destas nossas ações, cam freqüentemente viciadas ou
perfeitas. Em suma, assim como nos Provérbios uma mulher diligente
é chamada de coroa de seu marido, assim pode dizer-se que um
Diretor diligente e cuidadoso em examinar os procedimentos de seus
discípulos, é a coroa de seus méritos, porque o conduz seguramente a
uma grande perfeição.

§. VIII

1. Finalmente, o último meio para adquirir o discernimento dos


espíritos é saber o Diretor quais são as marcas de um espírito bom, e
quais as do espírito mau, porque pouco lhe serviria o conhecer as
ações externas e os impulsos internos de seus lhos espirituais, se
depois de tudo isso não soubesse discernir quais destes são de Deus,
quais são sugeridos pelo demônio e quais movidos pela própria
natureza corrupta. Mas porque à notícia dessas características
(marcas), bem aplicada aos casos particulares, se reduz, ao m, toda a
discrição dos espíritos, por isso procurarei apresentá-las, ao menos em
alguma parte, nos capítulos que seguem. Desta maneira pouparei aos
Diretores uma prolongada fadiga de irem buscá-las entre os livros da
Sagrada Escritura, dos Santos Padres e dos Doutores; pois, como disse
acima, são elas as normas das quais se têm de deduzir as regras
características do espírito. Entretanto, rogo aos Diretores das almas
que não se acovardem nem enfraqueçam o ânimo diante das diversas
coisas que se exige para um bom mestre do espírito; porque Deus não
deixará de dar-lhes todos aqueles dotes que são necessários para seu
sagrado ministério, quando eles, descon ando de si mesmos, ancorem
somente em Sua Divina Majestade. Antes devem adquirir grande
ânimo, considerando que talvez não haja coisa mais agradável a Deus
que um bom Diretor dos espíritos, que, a partir de um justo juízo,
saiba conhecer as almas, e com um prudente governo conduzi-las à
sua Majestade. Se apartares o precioso do que é vil, diz o Senhor, serás
como a minha boca.137 Quem é aquele que sabe separar retamente o
precioso do vil, a não ser um Diretor prudente, que sabe discernir com
sabedoria o espírito precioso de Deus, do espírito vil do mundo, da
carne, do homem e do demônio? Pois, a seu respeito, Deus disse
precisamente que pronunciará sentenças dignas de sua boca: Vós sereis
como minha boca.
CAPÍTULO VI
Sinais (marcas) do espírito divino relativamente aos movimentos ou
atos do nosso entendimento

§I

1. É imprescindível que eu, desde agora, advirta ao Diretor que não


basta um só sinal daqueles que exporei no decorrer deste livro, para
decidir se o espírito próprio ou de outros seja santo ou perverso;
porque, assim como uma andorinha não faz verão, tampouco um sinal
ou característica que se veja em certas ações não é indício su ciente
para de nir que nele reina o espírito bom. Como, ao contrário, um
caráter mau nem sempre será sinal bastante para dizer que domina
nele o mau espírito. Para estabelecer, pois, um juízo reto e justo, vários
sinais são exigidos, ou pelos menos tantos quantos bastem para
formar um prudente juízo de tal espírito, como nos ensina Gerson.138
Igualmente é importante advertir que os sinais que mais adiante
daremos para o discernimento dos espíritos não servem apenas para
aquelas moções que acontecem de modo originário, como quando por
interna inspiração somos incitados ao bem, ou por instigação maligna
provocados ao mal, senão também para aqueles impulsos que
sucedem de modo extraordinário, como quando Deus nos sugere
alguma coisa por intermédio da visão, da locução, ou pela luz de
alguma outra extraordinária contemplação, ou quando o demônio nos
insinua alguma falsidade por visão, por palavras enganosas, ou por
outros modos não naturais nem habituais. E por isso os ditos sinais
poderão servir para descobrir qualquer sorte de espíritos. Sendo assim,
vejamos agora as marcas (sinais) pelas quais se distinguem os
conhecimentos que Deus move daqueles que são sugeridos pelo
demônio.

§ II

1. Primeiro sinal do espírito divino quanto aos conhecimentos do


entendimento. O espírito divino sempre ensina o verdadeiro: nem
pode, em caso algum, sugerir o falso, porque o mesmo Jesus Cristo
nos assegurou por Sua própria boca que Ele é espírito de verdade.
E eu rogarei ao Pai, e ele vos dará outro Paráclito, para que que eternamente
convosco. É o Espírito da Verdade, que o mundo não pode receber, porque não o vê
nem o conhece, mas vós o conhecereis, porque permanecerá convosco e estará em
vós.139

E de novo torna a inculcar-nos o Redentor que, sendo o espírito


divino espírito da verdade, não pode ensinar senão o verdadeiro.140
Justissimamente, disse, compete ao divino espírito ser espírito da
verdade, porque Ele é a fonte da qual brota toda a verdade, e aquele
que, como riachos, derrama sobre nós todas as verdades simples e
puras que nos conduzem à eterna saúde, e que nos liberta de todos os
erros e de todas as falsidades que nos impedem de alcançar a eterna
felicidade.
2. Daí se segue que qualquer pensamento ordinário ou revelação
extraordinária que de algum modo se oponha a algum preceito da
Sagrada Escritura, ou a alguma de nição dos Concílios, ou a alguma
tradição apostólica, ou aos sentimentos da Igreja Católica, não pode
ser sugerido por Deus, devendo ser considerado um espírito falso,
porque a Sagrada Escritura, como disse o Apóstolo São Pedro, foi
inspirada pelo mesmo Deus.141 Os Concílios, como con rma o mesmo
Príncipe dos Apóstolos, são presididos pelo Espírito Santo: Porque
pareceu bem ao Espírito Santo e a nós (...).142 As tradições chegam a
nós derivando dos Apóstolos, que as receberam do Redentor. E a
santa Igreja não pode errar, porque o mesmo Cristo alcançou a
infalibilidade143 para a fé de Pedro:
Simão, Simão, eis que Satanás vos reclamou para vos peneirar como o trigo; mas
eu roguei por ti, para que a tua con ança não desfaleça; e tu, por tua vez, con rma
os teus irmãos.144

Logo, qualquer ato do entendimento que se oponha a esta regra de


infalível verdade é falsidade e mentira, e não pode ser inspirado por
Deus. Antes, igualmente dever-se-á ter por falaz se for contrário ao
comum sentir dos Santos Padres e Doutores, que foram tão
iluminados por Deus.
§ III

1. Segundo sinal. O espírito divino jamais sugere à nossa mente


coisas inúteis, estéreis, vãs ou impertinentes, porque, se não convém a
um Rei da terra falar com seus súditos de semelhantes coisas, muito
menos tal coisa será compatível com o Monarca dos céus.145 Minhas
palavras, diz Deus, são fogo que, queimando, puri ca, são martírio
que, golpeando, desmancha toda a dureza, e, batendo, desintegra todo
o vício, toda a culpa, todo o defeito, e o reduz a nada: em suma, são
palavras de muito peso e de grande utilidade. Disto infere o Diretor
que se uma alma recebe em sua oração certos conhecimentos que nada
ajudam, eles não são de Deus; se tiver algumas locuções que
transmitem mais curiosidades e não conhecimentos frutuosos, ou
algumas visões que não se ordenam ao proveito próprio, ou de outros,
estas não seriam certamente enviadas por Deus, de quem o obrar
infrutuosamente é oposto.
2. Deus disse, por Ezequiel, aos falsos profetas que não eram
movidos pelo bom espírito: Vêem só visões vãs, só fazem predições
enganosas, para signi car, com isso, que é a mesma coisa ter visões
infrutíferas (o mesmo se diz de qualquer outro conhecimento) e ter
visões mentirosas, que não trazem a sua origem do bom espírito. Daí
pode concluir o Diretor o que há de pensar sobre as revelações de
certas mulheres, que são fáceis em profetizar sobre a vida, sobre a
morte, sobre a saúde desta ou daquela pessoa, de anunciar o êxito dos
matrimônios, ou de outros negócios temporais. Vá com muita cautela
em dar-lhes crédito, porque Deus não revela senão raras vezes, e por
coisas de grande proveito para o próximo, e para a Sua maior glória.

§. IV

1. Terceiro sinal. O espírito divino traz sempre luz à nossa mente.


Deus freqüentemente declara na Sagrada Escritura que Ele é luz, sem
mescla de obscuridade nem trevas.146 Noutra parte, protesta que
sendo Ele uma luz pura, tem a propriedade, à maneira do sol material,
de iluminar a todos os que vivem neste mundo.147 E Jesus Cristo,
querendo dizer que os homens não obedeciam ao instinto daquele
conhecimento que Ele infundia em seus entendimentos, diz que não
amavam a luz, mas sim as trevas.148 E novamente a rma: enquanto
tiverdes luz do conhecimento acerca de minha divina pessoa, credes
nesta luz, para que sejais meus lhos, que Sou fonte de verdadeira luz.
Tão verdadeiro é que a luz é inseparável de qualquer conhecimento
que desperta Deus no entendimento humano. Em verdade, acredito
que seja mais fácil de suceder que o sol se levante sobre o nosso
hemisfério sem iluminá-lo do que opere Deus em nosso entendimento
sem ilustrá-lo. Mesmo com esta diversidade, a luz do sol visível,
escondendo-se no pôr do sol, afasta-se de nossos olhos; porém, a luz
do divino sol invisível, caso sigamos seus rastros, jamais abandona o
nosso entendimento, como disse Santo Agostinho, explicando as
seguintes palavras de São João:
aquele que me segue não andará em trevas, mas terá a luz da vida. (...) Se seguires
apenas o sol visível, ele te abandonará no ocaso. Se não caíres longe Dele, Ele nunca
te abandonará.149

E por isso, como nos ensina o mesmo Santo Doutor, a esta luz
devemos sempre aspirar, devemos amar, temos que buscá-la
ansiosamente, sedentos para que a consigamos, e, vivendo com ela,
jamais morramos.150
2. Nem por isso nego que talvez Deus ponha em trevas certas almas
queridas por Ele, e as deixe submersas nelas por largo tempo.151 Mas
se deve advertir que nestes casos toda a obscuridade está na fantasia, à
qual não passa a luz intelectual, que está contida integralmente no
entendimento; e embora esta seja, às vezes, tão espiritual e tão pura,
que não a conhecem aqueles que a possuem, não deixa de guiar, sem
embargo, a potência intelectiva e de encaminhá-la a Deus. E, com
efeito, se vê claramente que assim acontece, porque aquelas pessoas
envolvidas em espessas trevas prosseguem agindo como antes, com
muita perfeição, dirigidas indubitavelmente pela luz divina. Disso deve
tomar nota o Diretor para saber se seu discípulo é movido por Deus
em suas operações mentais, pois reconhecendo nele uma mente que
procede com retidão e santidade de pensamentos, pode crer
justamente que ali reina o Pai das luzes.
§. V

1. Quarta marca. O espírito divino traz ao entendimento docilidade.


A luz sobrenatural que, agindo, Deus infunde no entendimento, não
lhe faz engessado à verdade que entende, nem inalterável na opinião
que emite; antes, fá-lo brando, exível e fácil a inclinar-se aos
sentimentos de outrem, especialmente se o parecer contrário ao seu
vem dos superiores, que têm de Deus a autoridade de julgar. Calei-me,
já não abro a boca, porque sois vós que operais – 152 dizia a Deus o
Santo Rei Davi.153 Deus me abriu o entendimento, eu não contradigo
nem me oponho. Noteis aqui a docilidade que causa em nossa mente o
espírito divino. Todos sabem com quanta selvageria empreendeu o
Apóstolo São Paulo para impugnar a pessoa de Cristo e Sua santa lei,
quando, não satisfeito em opor-se com as palavras, passou a
combater-lhe com as obras, e moveu aberta guerra a seus seguidores,
terminando por executá-los sob o pretexto de qualquer trabalho sujo.
Contudo, apenas penetrou sua mente um raio da luz divina, quando,
deposto todo o ódio, rendeu-se logo a Jesus Cristo.154 Que quereis de
mim? Ver-me-eis aqui pronto para tudo: e logo começou a promulgar,
na pública sinagoga, a glória de Jesus. Se uma pessoa, pois, chega a ter
estavelmente e por hábito tal exibilidade de entendimento, que não
tenha mais um próprio parecer e seja fácil sujeitá-lo a outro, leva
consigo um grande sinal de santidade, porque é tão grande a
inclinação natural que todos temos de aderir à nossa própria opinião e
de defendê-la contra quem ouse objetar-lhe, que só Deus, com sua luz
clara, pode arrancá-la de nossa mente.
2. A esta perfeição havia chegado aquele devoto solitário, que em
toda a sua vida não havia persistido com ninguém, nem mesmo sabia
o signi cado da palavra con ito. Convidado por outro bom eremita a
litigar com ele sobre a posse de certo ladrilho (mas apenas para fazer
prova de um ato litigioso por ele totalmente desconhecido), jamais
pôde acomodar-se a semelhante contenda, porque cada vez que o
companheiro lhe dizia que aquele ladrilho era seu, ele, levado de bom
hábito a sujeitar-se ao parecer alheio, respondia-lhe prontamente que
o tomasse, que ele de boa vontade o cedia. Se o Diretor encontrar
semelhante docilidade num entendimento culto, aberto, discursivo e
bem instruído, teria sem dúvida o sinal mais evidente do bom espírito,
e até mesmo de um espírito grande, dado o maior apego que os
homens normalmente têm por seus próprios juízos, conforme aquele
ditado célebre: Nulo é todo aquele que está disposto a abrir mão de
seu gênio.

§. VI

1. Quinto sinal. O espírito divino faz discreto o entendimento.


Ricardo de São Victor, sobre aquelas palavras do salmo – Bendito seja
Deus, que adestra minhas mãos para a guerra e meus dedos para a
batalha –, reconhece cinco dotes de discernimento, que o espírito
divino confere com sua luz ao entendimento humano. Primeiro, juízo
justo, com o qual decide retamente o que é lícito e o que é ilícito.
Segundo, deliberação reta, com a qual pode conhecer, de modo
separado, dentre as coisas lícitas, aquelas que nos casos particulares é
mais conveniente abraçar, e aquelas que se deve rechaçar. Terceiro,
boa disposição para que nas coisas de expediente que se deve executar,
dar ordens individuais convenientes e conter-se nos modos mais retos
e melhor regulados. Quarta, sábia economia para conhecer quando,
segundo as presentes circunstâncias, deve temperar o rigor, ou quando
deve aumentá-lo. Quinto, prudente moderação, para entender como
convém praticar a virtude, segundo a exigência do tempo, do lugar e
das ocasiões cotidianas. Agora, pois, se nosso entendimento estiver
adornado destes cinco dotes: de juízo para decidir o que é lícito; de
reta deliberação em elegê-lo; de boa deliberação em ordená-lo; de
justa economia em temperá-lo; e de prudente moderação em executá-
lo, todos vêem que possui então um perfeioa discernimento , enquanto
discerne com toda a retidão as obras que serão empreendidas, e o
modo como serão efetuadas. Estes, pois, são os preciosos efeitos que o
espírito divino, por sua natureza, produz nos entendimentos em que
opera; mas não em todos igualmente: em uns mais e em outros menos,
segundo a maior ou menor luz que lhes comunica.
2. De outro lado, vê-se manifestamente que o espírito divino traz
sempre aos entendimentos humanos este espírito discreto; porque,
agindo com sua luz, acomoda-se sempre à idade, ao estado e à
condição da pessoa. Deus infunde certos pensamentos num jovem de
pouca idade, e outros em um velho de idade já avançada. Algumas
idéias põe na cabeça de um religioso, e outras na de um secular.
Algumas espécies desperta na mente de uma pessoa livre, e outras na
de um casado. Alguns pensamentos inspira a quem começa o caminho
da perfeição, e outros a quem já se avizinha do nal. O mesmo posso
dizer acerca da prática das virtudes particulares, ao menos no que
tange ao exterior. Todos devem, por causa do exemplo, exercitar-se na
virtude da humildade; mas algumas humilhações externas o Senhor
sugere a um príncipe, e outras a um plebeu; umas a quem vive nos
claustros, apartado do século, e outras a quem faz vida fora dos
claustros e no meio do mundo. Em suma, é muito verdadeiro o que
diz Ricardo, que não é possível alguém proceder com justo juízo de
discernimento em suas operações se o entendimento não está ilustrado
com a luz divina. Quando, pois, o Diretor reconhecer em seus
penitentes, especialmente os de espírito elevado, conhecimentos retos,
convenientes, prudentes, discretos e santos, terá todo o fundamento
para crer que o espírito do Senhor reside em suas mentes.

§ VII

1. Sexto sinal. O Espírito Divino infunde sempre na mente


pensamentos humildes. É verdade que Deus enobrece nosso
entendimento com Sua luz, e o eleva a conhecimentos que são
superiores a sua esfera, e talvez com modos que estão fora do
ordinário. Mas ao mesmo tempo infunde pensamentos humildes, pelos
quais a alma possa conhecer o seu nada, sua baixeza e sua miséria. E
ela constata, antes, que naqueles mesmos conhecimentos luminosos
nada tem de si, e pelos quais ela se abata e humilhe em suas próprias
exaltações. Deus aparece a Moisés na sarça ardente, na gura de uma
resplandecente chama, faz-lhe embaixador junta ao faraó, e o elege
para libertar o povo israelita da tirania daquele bárbaro rei. A uma
visão tão bela, a uma empreitada tão ilustre e a uma tarefa tão
honrosa, ao invés de exaltar-se, Moisés se enche de pensamentos
humildes, reconhece sua insu ciência e confessa com sinceridade:
E quem sou para executar uma empresa tão gloriosa, e para tratar com o faraó
negócios de tão excelsa envergadura?155

E como Deus continuou a estimular-lhe, com palavras e com


prodígios, a aceitar o cargo tão honorí co, ele também insistiu em
renovar os protestos de sua inabilidade até chegar a declarar-se lento,
inapto para a fala, balbuciante, tartamudo e incapaz de manejar com
o povo e com o rei um negócio tão sublime: tenho a boca e a língua
pesadas.156 Observeis aí os pensamentos que inspira Deus quando está
presente em nosso entendimento.
2. Vejamos o mesmo em outros Profetas. Fala Deus a Jeremias, e no
primeiro discurso o faz saber que foi escolhido para Seu Profeta, e
destinou-lhe para levar sua embaixada aos Reis, aos príncipes, aos
sacerdotes, aos reinos e todos os povos. E o que ainda é mais
relevante, manifesta-lhe o singular privilégio que o havia concedido –
de santi cá-lo no seio de sua mãe:
Antes que no seio fosses formado, eu já te conhecia; antes de teu nascimento, eu já
te havia consagrado, e te havia designado profeta das nações.157

Entretanto, o que fez Jeremias ante tão glorioso anúncio? Eleva-se


por ventura com seus pensamentos? Forma de si mesmo, por acaso,
algum alto conceito, proporcional à glória de seu nascimento e de sua
missão? Muito pelo contrário: veste-se de pensamentos baixíssimos, e
responde ao Senhor que ele não é apto para ser Profeta, porque é uma
criança que ainda não sabe falar: E eu respondi: Ah! Senhor Javé, eu
nem sei falar, pois que sou apenas uma criança. Deus aparece para
Isaías no trono de sua glória sobre um solo excelso e elevado, e
circundado em sera ns, que com doces cânticos tributam-Lhe
louvores. E ele está tão longe de reputar-se semelhante em pureza
àqueles puros espíritos, entre os quais se vê admitido, que antes da
primeira vista daquele teatro de glória, declara-se um homem de
lábios demasiadamente imundos e manchados: Ai de mim, gritava eu.
Estou perdido porque sou um homem de lábios impuros, e habito com
um povo de lábios impuros (...).158 Se quiséssemos buscar outros
fatos, em con rmação desta verdade, extraídos das vidas dos nossos
Santos, os exemplos que poderíamos trazer seriam incontáveis. Mas
É
basta, por todos, um só, que é o mais ilustre de todos. É justamente a
resposta que deu a Virgem Maria ao arcanjo São Gabriel, quando este
a assegurou que estava eleita, dentre todas, para a Mãe do Altíssimo.
Porque a Virgem, diante de tal revelação, não só não se exaltou em
sua mente com pensamentos compatíveis àquela excelsa dignidade a
que se via sublimada, senão que, formando humilíssimo conceito de si
mesma, protestou que ela era serva e escrava do Senhor: Eis a Serva
do Senhor. Não se pode, pois, duvidar que o espírito de Deus, ao
mesmo tempo que levanta nosso entendimento a conhecimentos
divinos, infunde-lhe pensamentos humildes e da própria baixeza, e
tanto mais humilde quanto é mais extraordinário e eminente o modo
com que opera. Valha-se o Diretor, pois, de um sinal tão claro e seguro
para conhecer se o entendimento do seu discípulo, por mais altivo que
se perceba nas visões, êxtases, revelações ou outras contemplações, é
movido pelo espírito divino.
CAPÍTULO VII
Sinais do espírito diabólico relativamente aos movimentos ou atos
do nosso entendimento, de todo contrários às características do
Divino Espírito

§I

1. Não é a luz, diz o Apóstolo, tão oposta às trevas, como o espírito


de Deus é contrário ao espírito do demônio? Que união pode haver
entre a justiça e a iniquidade? Ou que comunidade entre a luz e as
trevas? Que compatibilidade pode haver entre Cristo e Belial?159 Por
isso, depois de ter exposto as marcas pelas quais se descobre o espírito
divino nos atos da nossa mente, insinuarei a seguir os sinais pelos
quais se faz conhecer o espírito diabólico nos mesmos atos mentais.
Desta sorte, apresentados estes diversos sinais, uns ao lado dos outros,
far-se-ão mais discerníveis ao Diretor, porque, segundo o dito dos
lósofos, as coisas se fazem mais claras e perceptíveis quando são
postas frente-a-frente com seus contrários.
2. São João Crisóstomo é da opinião de que somos vencidos pelo
demônio não porque seja difícil conhecer os enganos que trama contra
nós, mas porque, tendo ao nosso lado um inimigo tão formidável,
encontramo-nos profundamente adormecidos, sem velar um pouco em
nossa defesa.160 Mas se tivéssemos, prossegue o Santo, uma serpente
venenosa na cama, poderíamos dormir? Certamente não. E, apesar de
tudo, tendo dentro de nós inimigo formidável como é o demônio,
vivemos sem pensar nisso, e andamos muito negligentes e
despreocupados com o nosso dano. Nem adianta dizer, acrescenta o
Santo, que a serpente é um inimigo que eu vejo, e por isso me defendo,
e o demônio não enxergo, e por isso não o temo, porque é justamente
pelo fato de ser um inimigo invisível, astuto e enganador, que se torna
mais digno de temor e requer mais vigilante defesa. Finalmente,
conclui: Deve-se estar, pois, alerta, e bem prevenido de armas
espirituais; atente-se de antemão para as suas artes e enganos, a m de
que, quando ele quiser enganar, sejas tu que o engane, como
recomenda o Apóstolo São Paulo – que com esta previsão, e com a
notícia dos pensamentos falazes que ele habitualmente sugere, acabou
por derrotá-lo.161 Para conhecer, pois, estes conhecimentos malignos
com que o demônio se insinua em nossa mente, darei as balizas no
presente capítulo. Caberá depois ao leitor valer-se delas para si
mesmo, e ao Diretor usá-las para o benefício de outros, com aquela
vigilância e cordura que o Santo Doutor tanto recomenda.

§. II

1. Primeiro sinal do espírito diabólico. O espírito diabólico é o


espírito da falsidade. Mas aqui é necessário que, antes, eu coloque
uma observação, que é importante ter sempre diante dos olhos para
conhecer as tramas com que o maligno espírito se introduz, assim no
entendimento – de que agora falamos – como também na vontade – de
que falaremos logo mais. O demônio, diz Santo Agostinho, às vezes
nos assalta abertamente, e outras vezes nos arma ocultamente as
armadilhas. Quando nos assalta de forma aberta, fá-lo como um leão
feroz; quando nos assalta escondido, fá-lo como um dragão
ardiloso.162 Numa outra parte disse a mesma coisa, apenas
acrescentando que se deve temer mais o demônio quando vem a nos
enganar com falsa aparência, que quando a descoberto nos move
guerra.
2. O demônio, pois, sendo o pai da mentira, atira sempre para
incutir alguma falsidade em nossa mente. Mas como? Ou faz de forma
desvelada, como um leão selvagem, ou de forma velada, como um
dragão enganador. Assalta-nos abertamente quando nos mete na
cabeça pensamentos contra a fé, ou contra o sentir unânime dos
Santos Doutores, quando nos sugere máximas pouco conformes à
grandeza da divina misericórdia ou da divina Providência, para abater
nosso espírito, quando nos excita idéias pouco compatíveis com a
moralidade das virtudes cristãs, ou pensamentos insubsistentes contra
nosso semelhante, capazes de acender em nós veementes paixões. Em
tais casos, é fácil que seja o demônio conhecido tal como é, não só
pelo confessor, mas também pelo penitente, porque aparece com seu
próprio rosto; é dizer: com a aparência de falsário e mentiroso. Mas
outras vezes vem insidiosamente mascarado, e com aparência de anjo
celeste, como diz São Paulo:

Pois, se o próprio Satanás se trans gura em anjo de luz.163

Diz-nos coisas verdadeiras, santas e conformes à doutrina da fé e da


moral cristã, mas com o desígnio de mesclar entre muitas verdades
alguma mentira, ou para granjear-se, com o verdadeiro alguma
credibilidade, para nos iludir nalmente com a falsidade. E o malvado
faz isto ora por via de sugestão, ora por via de aparição e clara
locução. Conheço uma religiosa à qual deu o demônio por largo
tempo santos pensamentos e devotos afetos; enganou-a também
muitas vezes com ngidas aparições de Jesus Cristo; depois começou a
propor-lhe algumas máximas falsas e, encontrando nela a crença,
induziu-a pouco a pouco a renegar a fé.
3. Outros semelhantes e infaustos sucessos nos conta Cassiano,164
como o daquele monge, que, iludido pelo demônio, foi induzido a
circuncidar-se e fazer-se hebreu; e do outro que, com a persuasão do
inimigo, dispôs-se a matar seu lho, pretendendo imitar o ato heróico
de Abraão em sacri car seu querido unigênito; e também daquele que
se precipitou miseravelmente em um poço por uma vã esperança,
sugerida pelo enganador, de que sairia ileso pelas mãos dos anjos; e
nalmente, de outro, que, acreditando conversar familiarmente com
os anjos, tratava com os demônios, e os adorava sob a mentirosa
gura do Redentor. Confesso que quando o demônio vem assim
encoberto com o aspecto devoto, não é tão fácil reconhecê-lo, ou
porque mova interiormente os pensamentos sem desejar ser visto, ou
porque os insinue com falsas aparições. E, por isso, o Diretor deve
examinar com muita diligência as máximas que em semelhantes casos
sente a tal pessoa, e se não as considera compatíveis com as regras
certas e seguras da verdade que expus nos capítulos precedentes,
acredite seguramente que houve ilusão: corrija-a, portanto, e procure
afastá-la para longe do inimigo, porque de outra sorte tomará maior
atrevimento, e mais forte a possessão, com grave dano para a pobre
alma. Assim nos avisa Santo Anselmo.165 Diz o Santo Doutor que
quando o demônio, enganando nossos sentidos com falsas aparições,
não afasta a mente da justa e reta crença ou obra, e a rma coisas que
não são alheias de um anjo santo, não há erro na fé. Mas quando,
depois, começa a propor coisas falsas e errôneas, é necessária grande
vigilância e um sensato discernimento para não segui-lo, mas antes
retirá-lo prontamente das proximidades. E este vigilante discernimento
deve estar nos Diretores, aos quais compete examinar as máximas que
passem pelas mentes de seus discípulos, ou que são sugeridas desde
fora, para descobrir de que espírito são dominadas, e para dar-lhes
justo e seguro discernimento.

§ III

1. A segunda marca do espírito diabólico. O espírito diabólico, ao


contrário do divino, sugere coisas inúteis, efêmeras e impertinentes. O
demônio, quando não encontra modo de insinuar-se com a falsidade e
a mentira, acaba, por não sofrer vergonhosa repulsa, valendo-se de
outra arte maligna: procura dar alimento ao entendimento com
pensamentos inúteis, para que, ocupado com estes, não se empenhe
nos pensamentos santos e proveitosos. A isto se endereçam tantas
distrações que o pér do mete na cabeça dos éis no momento das
orações. A isto miram certas visões, das quais nenhum bom efeito
resulta. Existe coisa no mundo mais santa, ou mais devota, que os
estigmas do nosso amabilíssimo Redentor? Pois eu conheço uma
pessoa a quem o demônio, por muitos anos, esteve simulando em
todas as suas orações as chagas dos sagrados pés, e nesta visão mental
a deixou submersa. Fazia-as aparecer em várias guras, ora dilatadas,
ora restritas; vez ou outra, fazia-lhe ver que saía delas um verme,
dizendo-lhe que este era o símbolo de sua alma, entre outras
semelhantes leviandades. Todas aquelas representações eram
completamente vazias de santos afetos; não havia uma re exão séria,
um sentimento sólido e proveitoso, nenhum sumo de verdadeira
devoção. Pareciam galhos frágeis, sem peso, sem fruto e sem
substância. Por isso não se podia duvidar que aquele acontecimento
tivesse sido uma contínua ilusão do demônio, que havia ocupado
aquela mente com visões imaginárias, como um doce pasto, para que
não se aplicasse à oração com retidão de pensamentos e santidade de
afetos. Veja-se aí, pois, a propriedade do espírito diabólico: destilar
nas mentes dos éis ou coisas falsas para induzi-los ao mal, ou coisas
infrutíferas para afastá-los do bem.

§ IV

1. Terceiro sinal do espírito diabólico. Deixar na mente trevas ou


falsa luz. O demônio não só é pai da mentira, mas também das trevas;
e por isso, quando investe contra nós abertamente, faz o que é próprio
de sua natureza, e produz em nossa mente trevas, obscuridade e
escuridão. Isso é o que nos assegura São João Crisóstomo.166 E então
ofusca a mente, obscurece o entendimento, enche a alma de
tribulações, de ansiedade e angústias. Nestes casos, é fácil de ser
conhecido, porque, produzindo efeitos que lhes são próprios, por si
mesmo se manifesta. Mas quando o inimigo urde ocultamente, então
espraia luzes em nosso entendimento, mas luzes falsas, porque sua luz
nada mais é do que certa luz natural que ele desperta na imaginação,
pela qual representa com alguma claridade os objetos, e excita algum
deleite no apetite sensitivo. Mas tal luz não passa ao entendimento,
nem pode fazer-lhe apto para penetrar as verdades divinas, e muito
menos engendrar no íntimo do espírito afetos de sincera devoção.
Assim, todo o efeito desta luz falsa se reduz a um certo bem-estar nos
sentidos internos, que é todo corporal, todo super cial, e sem
qualquer sinal de genuína espiritualidade. E depois, ao m, este
mesmo bem-estar, deleite corpóreo, vai desaguar em iniqüidade e
perturbação, não sendo possível que o enganador, após muita
dissimulação e ngimento, não apresente a sua verdadeira face.
Podemos dizer, por isso, com São Cipriano, que o demônio se
apresenta sempre como servo de Deus, ou como adversário
fraudulento que engana, ou como inimigo violento que combate com
suas negras e turbulentas persuasões.167
2. São Pedro Damião168 quer que o demônio não só ofusque a mente
dos éis com suas trevas e com sua falsa luz, mas que também não os
cegue totalmente; e explica o modo com que procede o malvado, com
os lamentáveis sucessos do desventurado Zedequias. Diante dos olhos
deste infeliz Rei, mataram todos os seus lhos por ordem do bárbaro
Nabuco, Rei da Babilônia.169 Depois retiraram dele seus dois olhos, e
não sei se foi mais infeliz quando via do que quando não pôde ver
mais. O Santo, escrevendo a Hildebrando, que depois foi Sumo
Pontí ce170, disse que o Rei da Babilônia é o demônio, príncipe da
confusão e das trevas, que trucida nas almas incautas todos os partos
de suas belas obras, diante de seus próprios olhos, quando ainda são
capazes de olhar tais perdas com dor. Depois de removidas as santas
operações, cega-as para o entendimento das coisas sobrenaturais.
Finalmente, entregando-as aos desejos das coisas mundanas, cega
também os olhos da razão, ofuscando a luz natural.171 Aquele que
não desejar, pois, car cego para as coisas divinas, proteja-se das
trevas e da falsa luz com que o pér do engana nosso entendimento.

§. V

1. Quarta nota do espírito diabólico. O espírito diabólico é perverso.


Assim o mostram, por si mesmos, os hereges, que jamais se rendem –
nem à santidade, nem à Sagrada Escritura, nem à autoridade dos
Sumos Pontí ces, nem à infalibilidade dos Concílios, nem à doutrina
dos Santos Padres; ao contrário, sempre persistem obstinados em suas
opiniões. E de onde lhes provém tanta pertinácia em seu
entendimento, senão do demônio, que reina neles e lhes infundiu seu
espírito estúpido?
2. Repreendendo Jesus Cristo a incredulidade dos hebreus, disse-
lhes:

Vós não compreendeis a minha fala, porque não podeis ouvir minhas palavras.172

Assinala Santo Agostinho:173 “por isso não podiam ouvir o


Redentor, porque, obstinados em seus erros, não queriam corrigir-se
dando crédito a Sua doutrina”. Grande estupidez foi esta, não querer
dar ouvidos às palavras de Jesus Cristo, que arrebatavam os povos
inteiros com sua suavidade, tiravam-nos das cidades e dos lugares, e
os conduziam às orestas, ao isolamento e às ribeiras desertas do mar,
totalmente esquecidos, não só dos próprios negócios, mas também de
comida e água. Uns declaravam que nada mais podiam fazer a não ser
segui-Lo, porque a Sua divina boca tinha palavras de vida eterna:

Senhor, a quem iríamos nós? Tu tens as palavras de vida eterna.174

E outros publicavam e diziam que jamais homem algum havia falado


como Ele, tão sábia e docemente:

Jamais algum homem falou como este homem!175

Qual, pois, foi a causa de tanta estupidez naqueles incrédulos? Disse-


o o próprio Jesus: ”Vós tendes o diabo como vosso pai; e embriagados
com seu espírito, quereis perseverar contumazes em vossas falsas
opiniões, e por isso foges de escutar meus discursos, temendo que os
retire do engano: porque o diabo é seu pai, nele escolhestes perseverar
– como explica a glosa”. Tanto é verdade que o espírito diabólico é
espírito de pertinácia.
3. Se alguma vez encontrar, o Diretor, alguém que tenha aderido por
muito tempo às ilusões do demônio, de modo que já tenha tomado
posse de sua mente, tocará então com a mão semelhante violação, tão
rme se encontre o seu parecer. E por isso, diz Cassiano, que o
demônio com nenhum outro vício conduz mais seguramente uma
alma à perdição quando lhe introduz uma certa teimosia, com a qual,
ignorando os conselhos das pessoas mais autorizadas, se apóie
somente em seu juízo.176 Da docilidade, pois, ou teimosia, que o
Diretor reconhecer em seus discípulos, poderá tomar fundamentos
para entender qual o espírito que move seus entendimentos.

§. VI

1. O quinto caráter do espírito diabólico é a indiscrição, pela qual se


incita os excessos. Não falo aqui das obras más que de ordinário nos
incita o inimigo, porque destas terei que falar depois. Falo só das
obras que parecem boas, às quais ele talvez fraudulentamente nos
estimule com alguma idéia sua indiscreta. E digo que, incitando-nos a
elas o traidor, por m malvado, procura sempre nos apartar da retidão
com algum excesso. Por isso, a só indiscrição nas obras boas,
mormente se é notável e contínua, dá grande fundamento para crer
que não são inspiradas por Deus, que de nenhum excesso é causa. São,
sim, sugeridas pelo inimigo. O espírito, pois, do demônio, manifesta-
se indiscretíssimo, porque nas obras boas que maliciosamente nos
sugere não guarda nem a devida medida, nem o devido tempo, nem o
devido lugar, nem a devida atenção à qualidade das pessoas. Não
guarda a devida medida, porque, incitando-nos, por exemplo, à
penitência, nos sugere rigores excessivos, disciplinas muito ásperas,
cilícios demasiado rígidos, jejuns muito prolongados, vigílias muito
continuadas. E isso tudo é feito com dois ns perversos. O primeiro,
para dar isca e pasto à soberba, porque depois expõe a sua penitência
e sua ampla maceração, para que se tenha alguma vã complacência do
fato exposto e se jacte de suas feridas. O segundo, para debilitar as
forças corporais e destruir a saúde; com isso, o desejo de austeridade
acaba substituído depois pelo horror, a penitência indiscreta por
excessiva delicadeza e, ainda, numa total impotência de prosseguir nos
exercícios de devoção. E desta sorte, as asperezas trazem à infeliz alma
enganada mais danos do que os prazeres anteriores, como observa
muito bem Cassiano:

O sono não pode superar uma noite desnecessariamente prolongada.177

2. O próprio Cassiano nos relata que, havendo o abade João


ampliado o jejum por uns dias, sentindo-se debilitado no corpo e
esgotado em suas forças, foi-se ao terceiro dia à mesa para recuperar-
se. Ao se aproximar, foi para perto dele o demônio, na gura de um
negro etíope que, prostrando-se a seus pés, disse: “Perdoa-me, oh
abade! Fui eu quem lhe impôs esse indiscreto jejum!”. Assinala
Cassiano que o santo abade então atentou-se que havia sido induzido
pelo demônio a empreender indiscretamente uma abstinência muito
superior às suas débeis forças (e que podia causar dano a seu espírito),
já que ele era um homem por outo lado de grande perfeição e bastante
rme na virtude da discrição.178
3. Não nego, por isso, que às vezes Deus inspira em seus servos
penitências bastante extraordinárias, de jejuns prolongados por mais
dias, de vigílias não interrompidas do sono, de ásperos cilícios e
disciplinas de sangue; mas em tais casos é necessário advertir duas
coisas: a primeira é que não há sombra de indiscrição por parte de
quem a empreende, porque, estimulando-lhe Deus à austeridade
desinteressada, imprimi-lhe forças corporais e espirituais para
sustentar semelhante peso, embora exorbitante. Tampouco existe
indiscrição da parte do Diretor que permite a sua execução, porque
em tais casos Deus concede sinais manifestos de Sua vontade.
4. Não guarda o demônio o devido tempo, porque, incitando a
algum bem aparente, fá-lo em tempos impróprios e inconvenientes.
Apenas com este indício um Diretor prudente acertou ao descobrir um
falso espírito. Numa comunidade religiosa havia uma pessoa com
crédito, de espírito singular, especialmente porque corria fama de que
freqüentemente se lhe aparecia o Menino Jesus, e a consolava com Sua
doce presença. O confessor soube que, no dia em que se achava
presente aquela pessoa, na Sexta-Feira Santa, num proveitosíssimo
sermão da Paixão do Redentor, havia tido quase sempre diante dos
olhos o Divino Menino com muitas ternuras de afetos. Só isto lhe
bastou para entrar numa veemente suspeita que aquela pessoa estava
iludida pelo comum inimigo, porque não lhe parecia nem o tempo,
nem a ocasião, próprio de semelhante visão. Se nenhum homem
prudente, dizia ele, em semelhante dia e conjuntura, tomaria por
matéria de suas considerações a infância de Jesus Cristo, quanto mais
destoante seria, em tais circunstâncias de tempo, pôr-se diante dos
olhos, em imagens de menino, o mesmo Deus que é in nitamente mais
prudente que todos os homens juntos? Com efeito, não saiu vã nem
enganosa a sua suspeita, porque, tendo-a examinado depois,
encontrou-a, por outras razões, manifestamente enganada.
5. Não conserva o devido lugar, porque o demônio instiga sempre a
fazer as obras boas em lugares públicos, em muitas vezes os menos
aconselháveis para tais ações, ao modo dos fariseus, homens de
espírito diabólico, dos quais disse Cristo:

Fazem todas as suas ações só para serem vistos pelos outros.179

O m, pois, que ele (demônio) tem em sugerir que o bem seja feito a
descoberto é perverso, porque quer que que corrompido de vanglória
ao torná-lo exposto e elogiado pelos homens: só para serem vistos
pelos outros. Procura também que os favores, as ternuras, as falsas
lágrimas, os êxtases ngidos e outros aparentes favores que faz o
demônio de ordinário, ocorram em público, já que ali existe
freqüência de gente, porque quer que as obras de seus sequazes sejam
vistas pelos outros. Mas Jesus Cristo, todo ao contrário, disse: ”Se
queres repartir esmolas, guarda-os de fazê-lo como os hipócritas, que
distribuem nas sinagogas e nos lugares públicos; se queres fazer
oração, guarda-os de imitar estes pér dos que gostam de fazer sua
oração nas sinagogas e nas esquinas das praças, com o qual todas as
obras desabam, roídas pelo verme da vaidade”.180 “Mas tu”,
prossegue dizendo o Redentor, “querendo dar esmolas, dê-as em
segredo; querendo oração, faça-as em teu aposento, e ali, a sós, rogue
a teu Pai celestial. Excetuam-se, contudo, aqueles casos especiais nos
quais quer Deus, por motivos de grande glória Sua, que as obras boas
e os favores que faz apareçam em público”.
6. Não guarda, nalmente, o devido respeito às qualidades das
pessoas. Num solitário, diz Ricardo de São Vitor, que deve atender à
quietude da contemplação, desperta os demônios pensamentos de
fazer grande bem ao próximo.181 Nos principiantes, que não estão
ainda arraigados na virtude, e devem atender ao próprio
aproveitamento, mete também o inimigo semelhante sugestão de
ajudar às almas dos outros, como nota Santa Teresa: mas não sendo
eles ainda aptos para engendrar lhos espirituais com seus
ensinamentos, segue-se que a outros não são de proveito, e a si
mesmos se fazem dano com semelhantes desejos. Contra semelhantes
principiantes, que seguem este instinto indiscreto e diabólico, levanta-
se e os repreende fortemente São Bernardo, dizendo o seguinte: “tu
que ainda não estás rme em tua conversão, que não tens clareza, ou a
tens tão tenra e frágil, que a qualquer vento de contrariedade se
enverga; tu, digo, conhecendo-te por tal, pretendes agenciar a salvação
dos outros? Que necessidade é a tua, meu irmão?”182
7. Ao contrário, àqueles que, por obrigação de seu ofício, devem
atender à saúde dos próximos, costuma meter o demônio exagerado
amor ao retiro, à quietude, à solidão, e um temor indiscreto de
manchar a própria consciência com o exercício das obras exteriores de
caridade. Como o fez a santa esposa, que, acordada à meia-noite por
seu marido, em vez de deixar logo sua quietude para ir ao seu
encontro, começou a escusar-se dizendo: “já me desnudei, não quero
mais colocar meu vestido; já lavei meus pés, não quero mais uma vez
sujá-los”.183 Neste temor da esposa de sujar seus pés e voltar a colocar
os vestidos, reconhece São Gregório o exagerado temor que têm
alguns, aos quais toca o cuidado das almas, de revestir-se dos antigos
afetos e de contrair as passadas manchas.184 Assim também desperta o
demônio nos superiores um pensamento demasiado solícito de
consagrar-se à oração, a m de que não velem, como o pede seu
ofício, sobre os afazeres de seus súditos; nas cabeças das famílias, para
que não atendam, como devem, à educação dos lhos e criados; e nas
mulheres, para que não cumpram com pontualidade suas tarefas, e
sejam causa de muitas inquietudes e de muitos prejuízos a seus
domésticos. Em suma, sabe o demônio que a discrição é o sal que dá
tempero a todas as boas obras e as tornam agradáveis a Deus, e por
isso, não podendo impedir, esforça-se ao menos a pô-las a perder com
toda a sorte de indiscrição e de imprudência. Por isso disse Ricardo
que nos impulsos interiores devemos examinar sempre se se mescla
alguma indiscrição.185 E por este caminho poderá o Diretor adquirir
muita luz para discernir se as almas que dirige são movidas a agir pelo
espírito diabólico.

§. VII

1. Sexto caráter do espírito diabólico. O espírito do demônio inspira


sempre pensamentos vãos e soberbos, ainda que em meio às obras
santas e virtuosas. Por isso, prossegue Ricardo no texto referido, para
descobrir os enganos dos nossos inimigos, devemos examinar se em
nossas obras há louvor humano, ostentação de uma exibição, coisas
vãs, ou impelidas por alguma leviandade. Já se sabe que o demônio
mete sempre pensamentos de própria estima, de preferência e de
desprezo pelos outros, esforçando-se em todas as ocasiões de nos
transmitir a soberba de sua mente, com a qual se levantou com o
desejo de igualar-se ao Altíssimo. E por isso, quem se move por este ar
de vaidade em qualquer coisa que faça, é levado pelo espírito infernal.
2. Mas aqui é necessário que o Diretor observe diligentemente se a
vaidade nasce com os pensamentos, como que entranhada neles, ou se
sobrevém aos pensamentos como forasteira e estranha. No primeiro
caso, não se pode duvidar que tais pensamentos trazem sua origem do
espírito mal, que se reduz ao diabólico, porque tem o vício inato; no
segundo caso, não é assim, porque já se sabe que o demônio estuda
para destruir e corromper todas as obras de Deus. O Senhor semeia,
com mão benigna, em nossos entendimentos, os grãos escolhidos dos
santos pensamentos, e o maligno espalha sobre eles, com mão
invejosa, o joio de vãs e soberbas imaginações.186 Mas esta mistura de
vaidade que sobrevém, não exclui dos primeiros pensamentos ou
altíssimas contemplações o fato de provirem de Deus, ou que não
sejam movidos por um m reto, ou que não tragam de sua natureza a
devida submissão da alma. Explico isto com o célebre fato de São
Bernardo, que, pregando um dia, foi tocado em sua mente de espírito
de vaidade; mas ele, com prontidão e cordura, rechaçou o inimigo
com aquelas palavras: “não comecei a pregar por ti, nem acabarei por
tua instigação”. Neste caso, como todos percebem, não se pode
duvidar que o Santo fosse movido a fazer aquele devoto discurso do
espírito do Senhor, mesmo que se introduzisse depois o espírito
malvado. Isto que se tem dito da vaidade, é importante observar em
todas as notas do espírito diabólico que foram mencionados ou ainda
serão. Sempre convém notar se o espírito mau é intrínseco aos
impulsos com que a pessoa se sente estimulada a coisas que são boas
em si, ou se vem posteriormente perturbá-las. Ademais, convém
examinar se a pessoa recebe com horror o espírito diabólico, e se o
rechaça com aborrecimento quando de repente aparece, pois disto
pode tomar-se novo argumento para inferir que nela opera o espírito
bom, já que se enfada e se opõe ao mal. É importante que o Diretor
tenha esta advertência sempre diante dos olhos; de outra sorte, cairá
em muitos erros ao aplicar nos casos particulares as regras que
estamos apresentando.
CAPÍTULO VIII
Sinais do espírito divino relativamente aos movimentos e atos da
vontade

§. I

1. Se tanto importa conhecer de que princípio nascem os


pensamentos do entendimento, se de Deus ou do demônio, muito mais
necessário é discernir de que espírito procedem os atos da vontade, em
que consiste todo o bem moral que adorna a alma e todo o mal moral
que a afeta. Estes atos do entendimento, mesmo que tenham por si
mesmos o fato de serem falsos ou verdadeiros, a bondade e a maldade,
pertencentes à vontade, são por eles tomados; a bondade e a maldade
transferem para eles ou o bálsamo da virtude ou o veneno do vício.
Por esta razão, diz belissimamente o Cardeal Bona187 que devemos
penetrar com sagaz expediente as profundezas do coração para
indagar todos os afetos e todos os movimentos mais escondidos; pesá-
los nas balanças do santuário, e com a doutrina de Cristo e dos
Santos, e tal como pedra de toque, examinar e provar suas qualidades
boas ou más.188 Prosseguindo, pois, a ordem que tenho empreendido,
exporei primeiro as notas que levam consigo o espírito de Deus,
acerca dos movimentos da vontade, e depois os sinais absolutamente
opostos com que procede o espírito diabólico, para que, postos um
diante do outro, se torne mais fácil de discerni-los. Estas serão as
balanças e a pedra de toque que porei nas mãos do leitor, para fazer
de um e de outro o melhor discernimento.

§. II

1. A primeira nota do espírito divino relativamente aos atos da


vontade é a paz que Deus deixa impressa na vontade quando a move.
Este é um dos sinais mais especí cos do espírito de Deus. Basta dizer
que é chamado por antonomásia, nas Sagradas Escrituras, o Deus da
paz.189 Jesus Cristo, por Sua mesma boca, tem na paz um sinal
pessoal.190 “Dou-vos a paz”, isto é, aquela paz íntima e sincera que é
propriamente minha, e não aquela paz enganosa que concede o
mundo.191 Assinala o Real Profeta que, falando Deus às almas santas
que se recolhem no interior de seu coração, diz-lhes palavras de paz. E
que não vem o Senhor habitar senão àqueles corações que estão
plenos de paz.192
2. É de observar que, querendo o Apóstolo anunciar aos povos, para
os quais endereçava suas Epístolas, a abundância da divina graça, une
sempre a graça com a paz. E assim, escrevendo aos romanos, diz: Que
a graça e a paz de Deus nosso Pai, e do Senhor Jesus Cristo estejam
convosco.193 O mesmo anúncio fez aos Coríntios, o mesmo aos
Gálatas, aos Efésios, aos Filipenses, aos Colossenses, aos
Tessalonicenses, a Timóteo, a Tito e a Filémon. Tão inseparável é a
paz da graça, pela qual opera em nós o espírito do Senhor. E ainda
com mais clareza, falando o Apóstolo daqueles preciosos frutos com
que o espírito divino enriquece as almas puras, diz que um destes é a
paz.194 O mesmo a rma o Apóstolo São Tiago, dizendo em sua
Epístola Canônica que os frutos de toda a bondade têm sua semente
na paz.195 Por m, são tantos os testemunhos da Escritura que dizem
que Deus, quando age na alma, traz a paz, que não se pode negar este
caráter ao espírito divino, sem incorrer numa grande temeridade. Pois,
se o Diretor, examinando alguma alma favorecida por Deus, perceber
que, após as comunicações que esta alma recebe em sua oração, ali
está impressa uma paz íntima, serena, sincera e estável, terá um
grande sinal de ser ela visitada pelo Senhor, que, vindo aos Apóstolos
depois de sua Ressureição, levava-lhes a paz: Pax vobis.

§. III

1. O segundo sinal é a humildade – não a afetada, mas a sincera. São


Bernardo de ne esta virtude assim:
A humildade é uma virtude porque é o mais verdadeiro conhecimento de si mesmo,
diminuindo-nos.196

Daí se segue que ela tem duas partes: uma, que pertence ao
entendimento, com o qual conhece o homem o que é por um
conhecimento verdadeiro; ou seja, sabe que é muito pequeno; e desta
já falamos no capítulo sexto. A outra, que pertence à vontade, com a
qual a pessoa se trata conforme o que sabe que é; é dizer: despreza-se
em seu coração, põe-se abaixo dos outros, confunde-se e se aniquila
em seus afetos, como explica São Boaventura.197 Desta, pois, agora
diremos que é uma das nítidas notas com que se manifesta o espírito
divino, porque Deus já tinha declarado que enxerga com olhos
amorosos a todos aqueles que são pobres e humildes de coração, e
estão cheios de temor santo e reverencial.198 E por Isaías protesta que
Ele habita nos espíritos humildes, e dá vida aos corações submissos e
contritos.199 Finalmente, o mesmo Redentor nos assegura que seu
eterno Pai comunica seus segredos somente àqueles que se fazem
pequeninos, que se humilham e se submetem a todos em seus
corações.200
2. São Bernardo, falando de si mesmo, disse assim: se o céu vir abrir-
se sobre mim, ampliar em mim o seu peito, e baixar uma chuva
copiosíssima de meditações; se sentir que se me abre o entendimento
para uma saborosa inteligência da Sagrada Escritura; e se sentir que
com luz celestial, infusa, se me revela os segredos mais recônditos dos
divinos mistérios, acreditarei que comigo está o Divino Esposo, e que
tem vindo visitar-me e enriquecer-me com seus preciosos dons.
Assinala depois, a nosso propósito: se sentir, além disso, que se me
infunde no íntimo do espírito uma devoção humilde, que engendra em
mim o ódio e desprezo de tudo o que é vão, de modo que nem a
abundância das visitas celestiais me enalteça, então sei que estarei
seguro de estar comigo o divino Pai, e que me trata com amor
paterno, destilando-me um espírito de humildade. E aqui se há de
notar que o Santo, em meio às suas revelações, inteligências e
altíssimas contemplações, não se tinha por seguro, se com elas não
viesse acompanhada – como que marcadas por um selo – a nota de
uma profunda humildade.
3. À autoridade de um grande Santo Padre acrescente-se a
experiência de uma Será ca: Santa Teresa confessa que Deus jamais
lhe fez qualquer favor a não ser quando estava aniquilando-se diante
de suas próprias misérias, e que o mesmo Senhor lhe sugeria matéria
de maior humilhação, para que mais profundamente se diminuísse no
conhecimento de si mesma. Sobre esta experiência, funda a Santa esta
máxima de espírito, que Deus tanto mais obra nas almas,
especialmente em tempo de oração, quanto as reconhece mais
dispostas, com a humildade, para receber Suas graças:
O que eu tenho reconhecido e entendido é que toda esta fábrica da oração está
fundada sobre a humildade, e que quanto mais se abate uma alma em oração, tanto
mais Deus a levanta. Não me recordo que me haja feito o Senhor graça alguma, das
que logo direi, que não haja sido enquanto estava aniquilando-me e confundindo-me
com um verme tão mal e miserável; e Sua Majestade procurava dar-me a entender
coisas que me ajudassem a conhecer-me, que eu nem saberia imaginar.201

Tão verdadeiro é, que não existe sinal mais claro e seguro do espírito
divino como uma verdadeira humildade, pela qual a pessoa se tenha
por indigna dos divinos favores; estando deles privada, não os deseje;
recebendo-os, confunda-se; maravilha-se de como Deus os comunica;
tema-os e os esconda, e só os manifeste ao Diretor, obrigada pelo
temor de ser enganada.
4. Teve razão o douto e místico Gerson em assegurar aos Diretores,
com grande garantia, que não duvidem de qualquer operação que seja
precedida, acompanhada e seguida da humildade, sem mistura do
contrário, porque é certo que provém do bem espírito, e tem a Deus
por autor.202 Semelhante sentimento é o do Abade Antíoco,203 que
atribui à humildade, não à conjectural ou provável, mas à evidente, o
sinal de que Deus habita no coração de quem nela reside.204
5. Mas para não errar em matéria de tanta monta, há de se advertir
bem o que eu disse desde o princípio – que a humildade, para que seja
sinal de verdadeiro espírito, não há de ser afetada, mas sincera.
Humildade afetada é dizer de si coisas desprezíveis e baixas sem, do
mesmo modo, senti-las no coração. Humildade sincera é sentir, de si,
desprezo, e, segundo este sentimento, privilegiá-lo com sinceridade em
seu ânimo, depreciar-se em seu coração e sofrer em paz ao ser
depreciado pelos outros. Se, acima disso, uma pessoa chegasse a amar
as diminuições, e as recebesse com agrado, então chegaria a elevar tal
virtude a um grau heróico. Humildade afetada é não querer conhecer
os dons de Deus, e fechar de propósito os olhos para não vê-los.
Humildade sincera é conhecer os benefícios e favores que Deus nos
faz, mas atribuí-los somente a Deus, e dar-Lhe toda a glória, sem que
se nos assalte nenhum ponto de complacência ou vaidade; antes,
diante de nosso demérito, sacar daqueles dons conhecidos de Deus,
afetos de confusão. Disse o Apóstolo que é próprio do espírito de
humildade de Deus fazer-nos conhecer os dons que temos recebido de
Sua bené ca mão.205 De outra sorte, se entrarmos numa afetada
ignorância ou esquecermos os divinos favores, como poderemos ser-
Lhe agradecidos? Como dar-Lhe os devidos louvores? Como elevar-
nos em correspondência de amor? Como mover-nos na con ança de
Sua bondade? Reconheçais, conclui, pois, Santo Agostinho, que o que
tens não tens por si mesmo, a m de que não sejais orgulhoso nem
ingrato.206 Belas palavras! Conhece que os bens que recebes são de
Deus e nada tens que veio de ti, para que não sejas nem soberbo, por
vaidade, nem ingrato, por esquecimento.
6. Concluo com uma lição de Santa Teresa em que se encontra todo
o juízo desta doutrina. Não se preocupe dumas humildades que há –
ela fala das almas favorecidas por Deus com o dom da perfeita
contemplação:
(...) das quais penso tratar, que lhes parece humildade não entender que o Senhor
lhes vai dando dons. Compreendamos bem como isto é, que no-los dá Deus sem
nenhum merecimento nosso e agradeçamo-lo a Sua Majestade; porque, se não
conhecermos que recebemos, não nos estimulamos a amar. E é coisa muito certa que,
quanto mais nos virmos ricos, reconhecendo que somos pobres, mais proveito nos
advirá, e até mesmo mais verdadeira humildade. O resto é acovardar o ânimo e dar-
lhe a entender que não é capaz de grandes bens e, começando o Senhor a dar-lhos,
começa-se a atemorizar com medo de vanglória.207

Se o Diretor encontrar, pois, humildade sincera e profunda na


oração de seu penitente, não hesite, mesmo que seja muito elevada, e
muito menos há de hesitar se a reconhece em todas as suas ações,
sendo esta virtude a divisa própria do espírito de Deus.

§. IV

1. A terceira nota é uma rme con ança em Deus, e por isso mesmo
apoiada num santo temor de si mesmo. Quão própria seja do espírito
bom a con ança em Deus, deduz-se evidentemente de ter posto Deus,
principalmente nela, a força e e cácia de nossas orações, de maneira
que só aquela oração, feita com fé e con ança, será poderosa para
conquistar o coração de Deus, e obter de Suas mãos todos os favores.
O mesmo está declarado muitas vezes nas Sagradas Letras.208 Disse
Cristo, por São Mateus, que todo aquele que pedir com con ança na
oração, seguramente receberá. De novo diz que não há coisa
impossível para quem pode esperar com viva fé.209 E acrescenta que se
tivermos fé ao menos como um grão de mostarda, poderemos operar
prodígios estupendos, até chegar a transpassar os montes de um lugar
a outro.210 Semelhantes declarações faz Deus a favor desta santa
con ança no Velho Testamento, como em Daniel, dizendo que jamais
têm cado enganados em suas esperanças, nem confusos, os que têm
con ado em Sua Majestade.211 E nos Salmos, assegurando-nos que
basta esperar Nele para estar livres de todo o mal.212 E em outros mil
lugares, de modo que seria muito amplo relatá-los. Só quero observar
que o Redentor, para autenticar esta fé, e para imprimi-la com
grandeza nos corações dos éis, fazendo graças milagrosas no
momento de sua predicação, as atribui de ordinário à con ança dos
que a recebem. Assim querendo curar uma mulher do uxo de sangue,
disse-lhe: Con ança, lha! A tua fé te salvou.213 Querendo dar a vista
a dois cegos, disse-lhes: Credes que eu posso fazer isso? Sim, Senhor,
responderam eles. Então ele tocou-lhes nos olhos, dizendo: Seja-vos
feito segundo vossa fé.214 Desejando dar saúde a um paralítico,
exortou-o primeiro a conceber uma rme con ança: Jesus, vendo a fé
daquela gente, disse ao paralítico: Meu lho, coragem!215 Livrando da
invasão dos demônios à lha da Cananéia, muito a igida, atribuiu a
liberdade à fé de sua mãe.216 Curando o servo do centurião, atribuiu
toda a glória daquela cura à fé de seu amo.217 Abrindo os olhos a
outro cego, disse-lhe que sua con ança o havia curado.218 Deixou
outros semelhantes sucessos, pelos quais manifestamente se vê a
grande estima que Deus tem desta fé; parece, então, que a Divina
Majestade se deixa vencer apenas por ela, para conceder qualquer
graça, até dispensar as leis mais estreitas e inalteráveis da natureza.
Mas se tanto agrada a Deus o ver uma fé tão rme e enraizada nos
corações dos éis, será preciso dizer que ela é toda conforme o seu
espírito, a ponto de nenhum outro, apenas Deus, poder destilar em
nossos corações um afeto que tanto Lhe agrada. E por isso, se o
Diretor encontrá-la nas obras, e especialmente nas orações de seus
discípulos, poderá justamente decidir que são movidos interiormente
pelo espírito do Senhor.
2. Mas é preciso advertir que esta con ança em Deus há de ser
acompanhada de um santo temor de si mesmo, porque de outra forma
não será reta, senão vã, e quiçá atrevida. Também os pecadores
con am em Deus, e vão dizendo, de maneira vã, dentro deles mesmos:
Ora, já que Deus é bom e misericordioso, nada temos que temer Dele;
continuemos pecando. Esta é precisamente aquela tola con ança de
que fala o Sábio nos Provérbios: O homem tolo con a, passa adiante e
prossegue no pecado.219 A con ança verdadeira e santa só se encontra
naqueles que, esperando em Deus, temem a si mesmos, e descon am
de suas forças. Se observam sua própria fraqueza, entram num justo
temor; se põem os olhos na bondade de Deus e em Suas promessas,
tomam grande ânimo; e juntando, deste modo, com a bela união, uma
viva fé com um santo temor, correm seguros no caminho da perfeição
cristã, como corre seguro um navio à desejada praia, que é impelido
pelo ar favorável na popa, quando está submerso na água com o
lastro. Tenha, pois, o Diretor, particular cuidado para que seus
penitentes não partam jamais separados dos santos afetos:
descon ança ou temor de si, e con ança em Deus, porque o temor
sem a esperança degenera em pusilanimidade, e a esperança sem o
temor em presunção e atrevimento. Onde estão entrelaçados estes dois
afetos, conduzem com segurança a alma ao porto da bem-aventurada
eternidade, e por isso são um dos mais belos sinais do espírito divino.

§. V

1. O quaro sinal é uma vontade dócil e fácil de submeter-se e ceder.


Eu disse no capítulo sexto que é sinal do bom espírito um
entendimento dócil. Aqui acrescento uma vontade exível, porque não
basta para a prova de um espírito reto o render-se à crença, se a
vontade não se alonga para agir segundo os ditames de uma reta
crença. Esta exibilidade, primeiramente, consiste numa certa
prontidão da vontade em render-se às inspirações e convocações de
Deus; virtude própria dos seguidores de Cristo, como Ele mesmo
falou, convocando-os de Sua própria boca.220 Disse Santo Agostinho
que quando o Divino Pai interiormente nos ensina, e com Sua graça
nos estimula a seguir as pegadas de Seu Filho, muda o coração de
pedra em coração de carne; isto é, torna-o exível, e desta forma faz
de seus predestinados vasos de misericórdia.221
2. Secundariamente, consiste numa certa facilidade em seguir os
conselhos dos outros, especialmente quando são os dos superiores,
que estão no lugar de Deus e representam Sua pessoa. A razão disso é
manifesta: porque, havendo-nos encarregado Deus, nas Sagradas
Letras, que obedeçamos à voz de nossos superiores como a Sua,222 e
que lhes prestemos esta obediência, ainda que se trate de senhores
temporais,223 e mesmo que sejam de perversos costumes, segue-se que,
vindo Deus trabalhar numa alma com luzes celestiais e santas moções,
deva-lhe imprimir uma certa brandura, com a qual a faça dócil à
obediência dos que presidem, e fácil a executar suas determinações e
conselhos. Tanto mais que, tendo o Senhor amado tanto esta virtude a
ponto de sujeitar-se, por amá-la, a uma morte infame e dolorosa cruz,
não pode deixar de imprimir um semelhante instinto naquela vontade
que toma para governar com suas divinas inspirações. Nada obsta que
os superiores sejam, talvez, ignorantes, ou apaixonados, ou
indiscretos; porque pertence à divina Providência suprir nisto o que
falta a Seus ministros, sempre que os súditos não faltem em dar-lhes a
devida sujeição e obediência, como observa muito bem São João
Clímaco.224
3. Desta santa exibilidade resulta na alma uma certa propensão
santa de revelar aos superiores espirituais todos os segredos do
próprio coração, e uma certa humilde sujeição, com a qual não só
executa suas ordens como ainda teme empreender alguma notável
obra sem seu conselho, o que é precisamente aquela nota de espírito
que Cassiano tanto atribui às pessoas devotas.225 Se o Diretor, pois,
encontrar em seus discípulos esta vontade dócil aos chamamentos de
Deus e à voz de quem está em seu lugar, com certa abertura sincera,
pode alegrar-se muito em seu coração, porque encontrou um grande
fundo de bom espírito, em quem poderá brevemente, e sem muito
trabalho pessoal, plantar toda a virtude.

§. VI

1. O quinto sinal é a retidão de intenção no agir. Jamais move Deus,


nem pode mover alguém, a fazer algo senão para ns que visam a Sua
divina glória, porque Deus, disse o Sábio, em todas as obras que faz
fora de Si, tem por m a Si mesmo.226 Ademais, é muito clara a
doutrina de Cristo: tais como são nossas operações, tais são os ns
que projetamos para levá-las à luz. Se o olhar de tua intenção, disse
Cristo, for simples ou puro, visando só a Deus, teus atos serão
resplandecentes, lúcidos e divinos. Mas se o olhar de tua intenção for
impuro, visando ns perversos ou ao menos defeituosos, tuas
operações serão obscuras e tenebrosas.227 E a isto quis aludir o Real
Profeta quando disse que toda a beleza de uma alma se deve tomar do
interior, ou seja, dos ns aos quais interiormente se move, pois destes
tomam todos os atos interiores e exteriores, ou o ser divinos ou
diabólicos. Advirta-se ao Diretor que esta é uma nota especialíssima
para o discernimento dos espíritos, porque uma mesma obra, por
causa dos diversos ns, muda de natureza; se se faz por vaidade, é
mundana; se por gosto e deleite, é carnal; se por ns turvos e
inquietos, é diabólica; e se por Deus, é divina. Daí há de inferir que se
uma pessoa busca habitualmente em suas ações somente a Deus, e
deseja apenas Seu gosto, Seu agrado e Sua glória, leva sempre diante
de si um grande sinal de espírito bom.

§. VII

1. A sexta nota é a paciência naquelas coisas que nos atormentam os


membros do corpo, tais como as dores, as penas e enfermidades,
naquelas que nos tocam a honra, como são as perseguições, as
calúnias e os desprezos, e também naquelas que nos a igem com a
perda da propriedade, dos parentes, dos amigos e dos demais que
amamos e estimamos. Certo é que o levar os padecimentos com paz, e
muito mais o desejá-los com ardor, é um grande sinal de bom espírito,
segundo o dito do Apóstolo São Tiago, para quem a paciência é uma
obra perfeita.228 E segundo a outra doutrina do Apóstolo, a paciência
nos é necessária para alcançar a eterna saúde.229 E se o Diretor desejar
saber a razão disso, vê-la-á aqui prontamente. A paciência, se não for
uma dissimulação dos ressentimentos do coração, nem uma mera
aparência de virtude, senão verdadeira virtude, radicada no íntimo da
alma, não pode nascer do espírito mundano que ama a honra e não
pode sofrer os ultrajes, nem do espírito carnal, que ama o corpo, e não
pode suportar as penas, nem do espírito diabólico, que nos destila
sempre o apego aos bens terrenos, e por conseguinte a impaciência por
qualquer falta deles, nem do espírito humano, que, coligado com o
amor próprio (se os dois já não forem um só), sempre se ressente
quando lhe sucedem coisas contrárias à natureza. Resta, pois, que só
pode provir do espírito divino, e não de outra causa. Acrescento, a
este propósito, que é também grande sinal do espírito reto e divino a
paciência, a resignação e a conformidade com a vontade divina nas
securas, desolações, trevas e tentações, falando ainda daquelas
extraordinárias que Deus permite normalmente a certas almas que
desejam se lançar bem alto na perfeição, porque as inquietudes, as
turbações e as impaciências que nascem destes esforços internos têm
sua origem no apego que tem a alma a determinadas comunicações
suaves, e a uma certa paz sensível que antes experimentou. Nem este
apego vai separado do amor próprio, confederado com o espírito
humano, que busca sempre o que lhe agrada, e não o que agrada a
Deus; nem serve trazer como desculpa destas iniqüidades e
intolerâncias internas achar que a alma está abandonada por Deus,
por não sentir a Sua presença, porque Deus, por Sua vez, não
abandona a alma que está entre as desolações, senão que só lhe retira
certa sensibilidade deleitável, a m de fazê-la mais forte e robusta no
espírito, com a conformidade e a paciência. Assim, não se pode
duvidar que uma tolerância quieta e pací ca em meio aos esforços da
secura seja sinal de bom espírito, tanto mais que o próprio Deus nos
exorta a tê-la.
2. São Cipriano230 demonstra, com belíssimos exemplos, que o
espírito sólido e robusto do cristão não se prova senão com a
tolerância nas adversidades. Um piloto, disse, não se conhece quando
o céu está sereno e o mar está sossegado com uma plácida calma,
senão quando o céu e o mar estão tempestuosos. Um soldado não
demonstra o seu valor debaixo da tenda estampada de vitórias, mas
quando, em campo aberto, combate entre mil espadas inimigas.
Glori car-se fora das contrariedades e contrastes é jactância de
pessoas delicadas; só as adversidades, sofridas com ânimo e valor, são
a prova da verdadeira virtude.231 Uma árvore, prossegue o Santo, que
está profundamente arraigada no solo, não se move ao ímpeto dos
ventos; um navio fortemente unido e bem composto não se abre aos
golpes das ondas tempestuosas. Assim, uma virtude bem formada da
divina graça, e altamente radicada na alma, não se move aos ventos
das tribulações, não se desata em impaciências, nem cai em desmaio
ou fraqueza entre as tempestades das perseguições. Sendo jogado o
grão na época, qualquer vento ligeiro o leva à palha, mas não os grãos
que têm substância, peso e consistências. Assim, ao soprar os ventos
das adversidades, sejam interiores ou exteriores, sabe-se quem, na
época do Senhor, é palha ligeira ou grão escolhido. Finalmente,
concluo com o exemplo de São Paulo, o qual, depois dos naufrágios,
depois de ser açoitado e depois de tantos e tão graves tormentos e
a ições, não dizia que havia sido maltratado, mas aperfeiçoado pelas
adversidades, e confessava que quanto maiores eram suas a ições,
tanto mais verdadeiras eram as provas de seu espírito.
3. Mas Tertuliano passa mais adiante e chega a dizer que apenas a
paciência extraordinária do Redentor, jamais vista em outro homem,
com que sofria intrepidamente tantos ultrajes, tantas contumélias e
tantas penas, podia bastar para que os mesmos fariseus conhecessem
que não era um puro homem, mas um Homem-Deus.232 Pois se a
paciência que havia em Cristo podia bastar para entender que era
Deus, a paciência que existe naqueles que O imitam no padecer
poderá também bastar para conhecer que neles está o verdadeiro
espírito de Deus.
4. Advirta-se, contudo, o Diretor, que esta paciência não se encontra
em todos num mesmo grau de perfeição. Os principiantes, ao primeiro
encontro com essas tribulações, sentem-nas, em geral, muito
vivamente. Os pro cientes, que têm as paixões mais domadas e mais
morti cado o amor próprio, sentem-nos menos; mas, sem embargo,
uns e outros se sujeitam à divina vontade e se acomodam à sua cruz.
Mas os perfeitos, que têm triunfado sobre suas desordenadas
inclinações, caminham ao encontro dessas adversidades com alegria, e
as abraçam com amor e com gozo, como os Apóstolos, que voltavam
gozosos do Concílio em que haviam recebido agravos e injúrias.233
Porém, em qualquer grau que se possua esta virtude, sempre é dom de
Deus, que com Sua graça a produz em nossas almas.

§. VIII

1. O sétimo sinal é a morti cação voluntária das inclinações


internas. Não se pode pôr em dúvida que seja isto um sólido caráter
do espírito divino, porque o próprio Redentor nos disse por Sua
boca.234 Veja-se aqui a divisa dos seguidores de Cristo e que têm seu
espírito: abnegar-se a si mesmo, contradizer a seus desejos e abater
suas paixões.235 Quem são os generosos soldados do Redentor, que
conquistam seu Reino celestial? Os morti cados, que fazem força e
violência a si mesmos. Para que um grão de trigo produza frutos,
necessário se faz que morra sepultado na terra; assim, para que o
homem produza frutos de vida eterna, convém que também morra
com o exercício de uma incessante morti cação.
2. E isto nos ensina as palavras que se seguem:
Aquele que tentar salvar a sua vida, perdê-la-á. Aquele que a perder, por minha
causa, reencontrá-la-á.236

Com isto não quer dizer que o Divino Mestre que, por ódio de nós
mesmos, devamos nos dar a morte por nossas próprias mãos, mas,
antes, que devamos dar a morte a nossos maus apetites e a nossas
perversas inclinações, fazendo-lhes guerra com uma incessante
abnegação. Isto, como bem observa São João Crisóstomo, é
propriamente aborrecer-se a si mesmo; porque assim como não
podemos focar o rosto, nem ainda ouvir a voz daqueles que
aborrecemos mortalmente – ao contrário, apartamos nossa vista deles
com enfado –, assim também, aborrecendo-nos a nós mesmos,
devemos retirar com violência o ânimo mal inclinado daquelas coisas
que não agradam a Deus: que é o mesmo que morti cá-lo fazendo-se
violência.237
3. Daí se infere divinamente Cornélio de Lápide, que a abnegação de
si mesmo é a base e o fundamento sobre o qual se sustenta toda a
fábrica da perfeição cristã; esta é a raiz de que nasce toda a virtude, e
esta é a fonte de onde sai toda a perfeição. E por isso quem deseja
chegar a ser perfeito na escola de Cristo, deve ter sempre diante dos
olhos esta doutrina da contínua morti cação, e com ela regular todas
as suas ações; e desta maneira virá a ser verdadeiro discípulo e el
imitador de Jesus Cristo.238 Tão verdadeiro é que o espírito da interior
morti cação é inseparável do espírito de Jesus Cristo.

§. IX

1. O oitavo sinal é a sinceridade, veracidade e simplicidade, virtudes


que costumam andar unidas. Deus é a primeira verdade, e por isso
não pode infundir nos corações em que reside senão espírito de
verdade e sinceridade. Ademais, o mesmo Deus declarou que Ele se
encontrava nas pessoas simples;239 isto é, ilumina aqueles
entendimentos que procedem sensivelmente, sem dubiedade, sem
cção e sem engano, como explica São Gregório.240 E mais
expressamente a nosso propósito, diz o mesmo Santo Doutor que a
sabedoria dos justos, em que formalmente consiste o verdadeiro
espírito do Senhor, tem por propriedade o não ngir jamais, senão
manifestar sinceramente os sentimentos do coração; amar sempre a
verdade, e fugir de toda a sombra de falsidade.241 Se a simplicidade,
pois, e a sinceridade, nascem não da natureza, mas da virtude, como
costuma acontecer nas pessoas de entendimento aberto, e de índole
perspicaz, são um grande sinal de bom espírito. Por isso se pode
também dizer deles que são aqueles homens pequenos aos olhos do
mundo, mas grandes aos olhos de Deus, aos quais revela o Senhor
seus segredos.242

§. X
1. A nona característica é a liberdade de espírito. Para isto é
necessária prova, porque o disse claramente São Paulo.243 Onde está a
liberdade de espírito, ali se encontra também o espírito do Senhor.
Existe a necessidade de explicar em que consiste esta liberdade de
espírito, que só Deus engendra em nossas almas. Por liberdade de
espírito alguns entendem como que uma certa soltura de consciência
(desapego) e um certo agir livre e franco, pouco conforme às leis da
razão e da fé; mas se enganam, porque esta não se deve chamar de
liberdade, mas de dissolução de espírito. Para entender o que é a
liberdade de espírito é necessário saber o que é servidão de espírito, já
que aquela é uma virtude que, de modo especial, recebe luz de seu
oposto. A servidão do espírito, pois, não é outra coisa que uma
sujeição voluntária da alma a algum vício, pelo qual a miserável se
deixa dominar. Explica-o admiravelmente Santo Ambrósio,
declarando aquelas palavras dos Salmos: Eu sou vosso; salvai-me.
Não pode, diz o Santo Doutor, um homem do mundo dizer a Deus:
eu, Senhor, sou teu, porque têm muitos senhores que o tiranizam.
Estando diante da luxúria, tal vício lhe diz: tu és meu, porque desejas
os prazeres do sentido. Vem a avareza e lhe diz: tu és meu, porque o
ouro e a prata a que vives apegado são o preço pelo qual tenho
comprado sua escravidão. Se é colocado diante do esplendor das
iguarias, dizem-lhe: tu és meu, porque a suntuosidade dos convites é o
preço pelo qual te entregaste a mim. Vem a ambição e lhe diz: és
inteiramente meu, e não sabes que te tenho colocado acima dos outros
para que me servisses a mim, que tenho dado a ti poderes sobre as
outras pessoas, para que estivesse sujeito a meu poder? E vêm os
demais vícios, e dizem todos: tu és meu. Finalmente, conclui o Santo:
Pois que escravo tão vil e miserável é este, a quem tantos pretendem para si, e
querem sujeitá-lo a seu domínio?244

2. Veja-se aqui declarada a servidão de espírito, e veja-se aqui


também explicada a liberdade de espírito, que consiste em ser livre do
demônio e dos vícios, dos quais é escravo quem deles se deixa
assenhorear. Mas é importante notar que esta liberdade de espírito
não é uma virtude invisível, senão que, antes, pode crescer em graus,
da menor para a maior perfeição. Pode alguém ser livre de vícios,
enquanto não consente em seus movimentos, e isto não excede o
ín mo grau. Pode ser livre também dos movimentos dos vícios, de
suas perversas inclinações, ao menos de maneira que as sente raras
vezes, as sente levantar ligeiramente, e com muita facilidade as
reprime, e este é um grau já superior. Pode ser livre de toda a xação e
apego às coisas terrenas e honestas, e este é um grau mais alto. Pode
ser também livre de todo o apego aos dons de Deus, e este é o grau
mais sublime da liberdade espiritual. O que possui esta virtude em
grau perfeito tem ânimo livre de todas as xações, solicitudes e
anseios, e está sempre disposto e pronto para conformar-se com a
divina vontade em tudo o que lhe suceda; pouco se alegra dos bens
terrenos, e pouco se entristece por sua falta, e se alguma vez sente
algum movimento de displicência, imediatamente se aquieta em Deus;
e entrando em si, onde as coisas estão bem compostas, logo se acalma.
Em suma, disto se veri ca a a rmação do Espírito Santo, que qualquer
coisa que aconteça ao homem justo não tem força para contristá-lo.245
Estes recebem saborosamente as consolações e as visitas do Senhor, e
sofrem com paz sua privação. Fazem suas orações, suas comunhões,
suas penitências e todos os demais exercícios espirituais; mas os
deixam com a mesma facilidade quando, ou a caridade, ou a
necessidade, ou a obediência o pedem. Em síntese, dissolvem os
grilhões de todo o apego, e por isso vivem, livres de toda a imperfeita
solicitude, numa plácida calma e numa doce serenidade. Bem-
aventurados os que chegam a este estágio, porque tem um caráter não
só do bem espírito, mas também de verdadeira santidade.

§. XI

1. A décima nota é o desejo de imitação de Cristo. Este é o caráter


mais claro do espírito divino, porque a rma São Paulo que não pode
alguém ter o espírito de Deus sem ter o espírito de Jesus Cristo.246 E a
razão é dada por Santo Anselmo, explicando as mesmas palavras do
Apóstolo, porque o espírito de Deus não é distinto do espírito de
Cristo, sendo um mesmo o espírito de Deus e de Seu divino Filho, e
por isso não nos pode mover para coisas distintas das que fez e nos
ensinou nosso amabilíssimo Redentor.247 Logo, nada nos pode incitar
à imitação das virtudes de Jesus Cristo e à obediência de Seu
ensinamento senão o espírito de Deus.

§. XII

1. O undécimo caráter é uma caridade mansa, benigna,


desinteressada, como a descreve São Paulo.248 Santo Agostinho
considera tão seguro um espírito cheio de sincera caridade, que chega
a dizer:
Amas com amor de caridade, e faz o que quiseres – não errarás. Ou fales, ou cales,
ou corrijas, faça tudo com interno amor; só pode ser bom tudo o que nasce da raiz
de uma íntima caridade.249

Bela expressão é esta, e, juntamente, bela prova a favor de um


espírito caritativo. Deixo outros sinais, porque estes podem bastar ao
Diretor para julgar retamente qualquer movimento interior ou
exterior do ânimo, e para dizer se traz de Deus sua origem.
CAPÍTULO IX
Marcas do espírito diabólico sobre os movimentos ou atos da
vontade, inteiramente opostas aos sinais do espírito de Deus

§. I

1. Muito serve, diz São Lourenço Justiniano,250 para conseguir a


eterna saúde, não ignorar as astúcias do inimigo infernal; mas é
preciso ter luz na mente para descobri-las. Explica-o com a analogia
de um cego, que vem para um singular combate com um inimigo que
traga luz clara e viva nos olhos. E como, disse ele, pode esperar o cego
alcançar vitória? E como poderá um soldado de Cristo vencer o
demônio, seu capital inimigo, que têm cem olhos para enganá-lo, se
seu divino Capitão não lhe aclara a vista interior de sua mente para
descobrir seus enganos? Mesmo aquele que tem boa vista tem muito o
que fazer para defender-se de seus enganos, como poderá, pois,
defender-se o que não tem luz para vê-los? Portanto, para que o leitor
não erre na conduta dos seus penitentes, se for Diretor das almas, e se
não for, para que não erre no governo de si mesmo, quero dar-lhe aqui
algumas luzes para conhecer as artes fraudulentas com que obra em
nossa vontade o demônio. No capítulo antecedente, dei algumas
chaves das moções divinas em nossa vontade; no presente, exporei
outras senhas absolutamente contrárias para conhecer as moções
diabólicas em nossa vontade mesma. Desta forma, postas umas diante
das outras, serão mais discerníveis, como o é o negro posto frente-a-
frente com o branco.

§. II

1. A primeira marca do espírito diabólico sobre os atos da vontade é


a inquietude, a turbação e o alvoroço, afetos de todo opostos à paz
que Deus comunica; porque, como diz o Crisóstomo, acima citado, se
o demônio nos tenta abertamente, desperta entre nós afeto de ódio, de
ira, de raiva, de inveja, paixões turbulentas e inquietas, ou desperta na
alma desejos de prazeres, de deleites, de riquezas, de honras, coisas
todas que atraem com uma bela aparência, mas que, não possuídas,
nos a igem, e, possuídas, nos inquietam de mil maneiras – como as
rosas, que nos arrebatam com a vista, mas se, colhidas com a mão,
nos mordem com seus espinhos. Por isso São Gregório, explicando
aquele dito de São Jó – das suas narinas jorra fumo –,251 disse que o
demônio, com o alento de suas sugestões, acende em nós o fogo dos
apetites, que jamais deixam sossegado o ânimo.252
2. Todavia, se o demônio vem disfarçadamente para nos enganar
com bons afetos, e com pensamentos aparentemente devotos, mesmo
que em princípio cause algum deleite, no m deixa sempre a alma
inquieta e turbada. Antes, um dos sinais que dão os Santos e mestres
da vida espiritual para conhecer se as aparições, ainda que tomem a
gura de Cristo e dos Santos, são diabólicas, é exatamente este: ver se,
no início, causam algum deleite sensível, e depois, ao m, deixam a
alma com agitação e turbação.253 Pode-se aplicar muito aos nossos
inimigos aquelas palavras do Real Profeta: suas palavras são mais
untuosas do que o óleo, porém, na verdade, espadas a adas.254 As
palavras e qualquer outro engano dos demônios entram em nossas
almas mais brandamente que o azeite; mas na realidade são dardos
que, ao m, transpassam-na com mil inquietudes, e a deixam triste e
dolorida. Estabeleça, pois, o Diretor, esta máxima segura de discrição:
espírito que inquieta, agita, perturba, turva e mete a alma em
angústia, é espírito do demônio.

§. III

1. A segunda marca do espírito diabólico é: ou uma manifesta


soberba, ou uma falsa humildade; mas nunca a verdadeira humildade
que Deus concede. Quando o demônio vem sem máscara, sendo o pai
da soberba, não pode levantar em nossos corações outros afetos que o
de vanglória, de inchaço e de complacências soberbas; nem pode
despertar em nós outros desejos que o de honras, de glórias, de cargos,
de preeminências e de dignidades.255
2. Antes, se alguma vez sucede que o inimigo se introduza nas coisas
espirituais, para iludir alguma pessoa incauta, logo se faz conhecer
pelo que ele é, infundindo espírito de vaidade e de engrandecimento,
com que se enche de vãs complacências, considera os outros como
nada, e a si mesma como muito. Se com isso consegue infundir em seu
coração este espírito perverso, entra depois em sua plena posse, e faz
dele o que quer. Assim ensina Jean Gerson, e o demonstra todos os
dias a experiência.256 Verdade é que, fazendo-se ver o demônio nesta
forma altaneira e vã, é menos perigoso, porque é fácil de conhecer-lhe
pelo que é.
3. Todavia, é mais temeroso quando vem mascarado, sob a
aparência de uma falsa humildade, porque, não sendo conhecido,
então o traidor encontra entrada. Isto sucede quando nos traz à
memória os pecados passados, e as imperfeições presentes, e nos faz
ver a perdição em que temos vivido, ou a miserável situação em que
ainda nos encontramos; mas age assim com uma luz maligna, que não
produz outro efeito que o alvoroçar a alma, revolvê-la, enchê-la de
a ições, de inquietudes, de amarguras, de turbações, de
pusilanimidade e enfraquecimento, e às vezes de profunda melancolia.
Entretanto, a alma incauta não se defende destes pensamentos,
porque, achando-se com seus pecados e faltas diante dos olhos num
baixo conceito sobre si, acredita que está cheia de humildade, quando
na realidade está cheia de um veneno infernal. Ouçamos sobre este
ponto Santa Teresa:
Porém, a humildade verdadeira, embora a alma se conheça por ruim e nos dê pena
ver o que somos e pensemos grandes encarecimentos da nossa maldade, tão grandes
como os que cam ditos e se sintam de verdade, não vem com alvoroço, nem
desassossega a alma, nem a escurece, nem traz secura. Antes, pelo contrário – pois é
tudo ao revés –, a regala com quietude, com suavidade, com luz. Pena que, por outra
parte, conforta por ver quão grande mercê lhe faz Deus em lhe dar aquela pena e
quão bem empregada é. Dói-lhe o que ofendeu a Deus e, por outra parte, a Sua
misericórdia a dilata. Tem luz para se confundir a si mesma e louva a Sua Majestade
porque tanto lhe sofreu. Nesta outra humildade, que insinua o demônio, não há luz
para nenhum bem; tudo lhe parece põe Deus a fogo e a sangue. Representa-lhe a
justiça e, embora tenha fé de que há misericórdia, porque o demônio não pode tanto
que a faça perder, é de maneira a não me consolar, antes, quando olha a tão grande
misericórdia, a ajuda a maior tormento, porque parece que estava obrigada a mais. É
uma invenção do demônio das mais penosas e subtis e dissimuladas que tenho
conhecido dele (...).257
4. Persuade-se, então, o Diretor que existem duas humildades: uma
santa que vem de Deus, e outra perversa que move o demônio. A
primeira está cheia de luz sobrenatural, com que conhece a alma
claramente suas culpas e suas misérias: confunde-se interiormente, e se
aniquila, mas com quietude; e sente pena, mas doce, e jamais perde a
esperança em Deus. Este é um bálsamo do paraíso. A segunda
humildade está cheia de uma luz infernal, que faz ver os pecados, mas
com certo tormento penoso, com turbação, com inquietude, com
desmaio e com descon ança na bondade de Deus. Esta é um veneno
do inferno, que se não dá a morte à alma, torna-a ao menos débil,
enferma e inábil para todo o bem. E aqui, para maior claridade desta
importante doutrina, advirta-se com cuidado o leitor que entre a
humildade divina e a diabólica passa esta diferença: aquela vem unida
com a generosidade, e está vai junto com a covardia. A primeira,
realmente humilha e talvez aniquila a alma, diante de seu nada e de
seus pecados; mas ao mesmo tempo a levanta com a con ança em
Deus, a conforta e corrobora; além disso, é pací ca, serena, quieta e
suave; com a qual a alma, não só espera o perdão por suas culpas,
senão que também cobra ânimo para reparar com a penitência e com
as boas obras suas quedas passadas e presentes; e de seu mesmo nada
toma maior con ança para fazer grandes coisas a serviço de Deus. A
segunda, ao contrário, com uma confusão turva e inquieta, com um
temor cheio de angústia e pesar, retira da alma toda a esperança; fá-la
vil e perecível, enche-a de descon ança, de enfraquecimento, de
covardia e de desmaio; em suma, retira-lhe todas as forças espirituais
para que não possa se mover, ou para mover-se com debilidade e
languidez às obras santas e virtuosas. Se acontecer ao Diretor
encontrar em algum de seus penitentes esta humildade perversa (como
certamente lhe sucederá, e não raras vezes, especialmente em
mulheres, que por natureza são tímidas e pusilânimes),258 precisa
abrir-lhes os olhos, e fazer entender o espírito diabólico de que estão
dominados, e reconduzir ao caminho verdadeiro com os meios que
logo proporei.

§. IV
1. O terceiro caráter é o desespero, ou a descon ança, ou a vã
segurança, mas não a verdadeira con ança em Deus. Sabe o demônio,
diz São João Crisóstomo, que a con ança é aquela preciosa corrente
que nos leva ao paraíso; porque com este santo afeto tomamos grande
ânimo e nos levantamos a Deus; por isso, depois de cometidos os
pecados, nos mete afetos e pensamentos mais pesados que o chumbo,
com os quais se esforça em levar-nos ao desespero, que é o maior de
todos os males.259
2. Mas por que vê que raras vezes consegue precipitar as almas dos
éis ao abismo, quase irreparável, do desespero – o que faz o maligno?
Procura fazê-las cair ao menos numa certa descon ança, com a qual,
se não desesperam, certamente não esperam, e se esforça com grande
fôlego para tê-las abatidas, a m de que, fazendo-as frágeis e
perecíveis paulatinamente, já não tenham mais vigor para fazer bem
algum. E o pior é que faz tudo isso o demônio com uma arte tão
maliciosa e velada, que chega a persuadi-las que é coisa justa e
razoável o car assim fechadas naquele abatimento de espírito; porque
depois de ter-lhes representado com aquela falsa humildade de que
temos falado – as fraquezas passadas, ou as faltas cotidianas –, sugere-
lhes outros pensamentos, que têm aparência de verdade; isto é, que é
grande a bondade de Deus, mas que elas se opõem com sua malícia às
obras da divina graça; que Deus está pronto a dar-lhes toda a ajuda,
mas que elas não a merecem; e nalmente, que todo o mal não vem de
Deus, senão deles. Com isso, convencidos destas e outras semelhantes
razões aparentes, mantém-se consternadas nos braços de sua
descon ança. Esta é uma das mais maliciosas astúcias com que o
inimigo infernal retarda o proveito espiritual a um grande número de
pessoas devotas, e especialmente às mulheres, que, sendo por natureza
tímidas, são fáceis em cair nestes desfalecimentos. Caídas uma vez
neste buraco, permanecem ali envilecidas, sem poder dar um passo no
caminho da perfeição. Rogo, portanto, aos Diretores, que velem com
muito cuidado os seus penitentes, para que não caiam jamais nesta
rede, e se alguma vez entrarem nela, advirta-lhes logo o engano. Diga-
lhes com toda a franqueza que o espírito de descon ança não é nem
pode ser o espírito de Deus, senão que sempre é espírito diabólico.
Ensina-lhes a confundir-se e humilhar-se com paz por suas culpas; mas
ao levantar-se depois a Deus com uma forte e viva esperança,
re etindo que a divina misericórdia excede, com in nito excesso, à
malícia e número de pecados. Sugira-lhes alguns atos que devem fazer
quando o demônio os assalta com descon ança e pusilanimidade,
dizendo a Deus, com São Paulo: Deus está pronto a perdoar-me, então
quem poderá condenar-me?260 Ou com Isaías: Deus, que quer dar-me
Sua graça, está próximo de mim, então quem poderá me ser contrário
com um tal defensor ao lado?261 Meu Deus está em minha ajuda;
quem poderá, pois, fulminar contra mim a sentença de condenação?
Animado com estas tão reconfortantes palavras, entre depois numa
grande esperança, e vai repetindo com Jó: Mesmo que me quisesse
morto, Senhor, eu, contudo, esperaria de vós a saúde. Tenho-vos feito
muitos agravos, é verdade, mas este de descon ar de vossa suma
bondade, não o farei jamais. Ainda que me visse na borda do inferno,
a ponto nele entrar, nem por isso deixaria de esperar em vós.
Finalmente, ordene-lhes que continuem a repetir estes ou outros atos
semelhantes de esperança, até que sintam o coração descansado. Além
disso, para fechar a porta às sugestões do inimigo, ajudará muito
impor-lhes, depois de haver cometido alguma falta ou pecado, que se
arrependam logo, e se humilhem diante de Deus, e depois se lancem
no seio da divina bondade, e aqui dilatem o coração com uma santa
con ança antes que venha o demônio a apertá-lo com seus vis
desfalecimentos. Feito isto, prossigam em servir a Deus com alegria,
com paz e com santa liberdade.
3. Mas é preciso advertir que tudo isto que dissemos sobre o espírito
do desespero e da descon ança acontece depois de feito o pecado,
como insinua também o citado Santo Doutor. Antes de pecar, mete o
inimigo outro espírito de todo diverso, ainda que não menos
pernicioso, que é o espírito de uma vã e temerária segurança que torna
o homem amigável com sua culpa. Representa-lhe em Deus uma
misericórdia quase estúpida e insensata, que se deixa ofender
impunimente, para que, enganado o pecador com essa estulta
persuasão, se desarme de todo o temor, e recupere o ânimo para
arrojar-se ao pecado. A estes deve o Diretor avisar do grande perigo a
que se expõem de ser abandonados pela divina misericórdia, se de sua
doçura tomam ocasião para ofendê-la. Deve dizer-lhes que a
misericórdia de Deus é como o mar que conduz ao porto seguro os
marinheiros, se estes se ajudam com as velas e os remos; mas se
quisessem car ociosos, e com sua folga dar ocasião ao naufrágio,
esperando que o mar trabalhasse sozinho – quem não vê que restariam
todos afogados? Assim é precisamente Deus, um mar de misericórdia e
um oceano de bondade. Se nós nos esforçamos, concentrando forças
para não cair, e nos condoendo por nossas culpas passadas, este mar
dulcíssimo nos conduzirá salvos ao porto da bem-aventurada
eternidade. Mas se nós não quisermos nos ajudar; se, antes,
desejarmos nos expor aos perigos da perdição, lisonjeando-nos de que
tudo será realizado pela divina misericórdia, então este mar
suavíssimo de bondade nos deixará incorrer num eterno naufrágio. E
para concluir em poucas palavras toda essa doutrina, digo que os
Diretores devem procurar que os penitentes esperem sempre na
bondade de Deus, depois de cometido o pecado, e temam sempre
antes de cometê-lo. Desta maneira, expulsarão o espírito diabólico de
desespero e de descon ança que surge depois da culpa, e o espírito de
uma estúpida garantia que a precede.

§. V

1. O quarto sinal é a dureza da vontade em render-se à obediência de


seus superiores. Temos um grande exemplo desta dureza no coração
do Faraó. Fez-lhe Deus entender, por meu de seu ministro Moisés, que
deixasse em liberdade o povo hebreu; e ele em nada se rendeu aos
mandamentos do ministro de Deus.262 Tenta Moisés abrandar aquele
coração duro com prodígios; mas ele não se dobra. Tenta amolecê-lo
com castigos, açoitando de mil modos o seu reino e a sua corte; mas
ele não se move com estes golpes tão fortes. Pareceu, pois, por um
momento, vencido pelo terror dos castigos, porque resolveu conceder
ao povo a desejada licença; só que imediatamente deu a conhecer que
estava mais duro que antes, porque depois da partida do povo foi
atrás dele com seu exército e o perseguiu até o Mar Vermelho; nem se
aquietou jamais, até que quedou alagado dentro daquelas ondas.
Parece que o coração humano não pode naturalmente ser capaz de
tanta dureza, se o demônio não tiver transmitido muito de seu espírito
perverso. Uma coisa semelhante acontece àqueles que estão
dominados do espírito diabólico; têm uma certa dureza de vontade
com que se opõem abertamente, ou pelo menos com muita di culdade
se rendem aos argumentos, aos conselhos, aos mandamentos e às
repreensões dos ministros de Deus, que, no temporal ou no espiritual,
em lugar de Deus os governam.
2. Nem se maravilhará disso o leitor se re etir o que disse Cornélio
de Lápide, interpretando aquelas palavras de São Paulo: que
compatibilidade pode haver entre Cristo e Belial?263 Ele ensina que a
palavra Belial, segundo expressão da língua santa, signi ca o
demônio, enquanto é o princípio e pai dos desobedientes, havendo
sido o primeiro que apostatou e sacudiu o jugo da obediência e
sujeição devida ao Altíssimo. E por isso os desobedientes, os
apóstatas, os rebeldes e contumazes são chamados lhos de Belial, é
dizer: lhos do diabo, pelo espírito renitente e rebelde que tem
recebido de seu pér do pai.264 E aqui se entenderá a razão pela qual
Samuel, brigando com o desobediente Saul, disse-lhe que o repugnar a
obediência é pecado quase igual à maldade da idolatria, porque é um
voltar as costas a Deus, que com seus mandamentos nos estimula à
obediência, e por seguir o interior instinto do demônio, que com seu
soberbo e contumaz espírito nos impele à desobediência.
3. Disto se segue que o espírito diabólico jamais nos inclina a revelar
sinceramente aos superiores ou pais espirituais os movimentos
interiores da nossa alma, porque, como disse o mesmo Cornélio, para
descobrir seus enganos, não há conselho mais saudável (se queremos
acreditar nos padres, nos Santos e na experiência mesma) do que
manifestar todos os movimentos do nosso coração a um homem
prudente, douto e piedoso, e especialmente ao confessor, e submeter-se
a seu conselho. Mas porque o demônio não quer ser agrado,
aborrece esta clareza de consciência; inspira no coração de seus
sequazes um certo horror a descobrir-se, e os proíbe com suas
sugestões.265
4. Cassiano disse ainda mais: que teme tanto o demônio este sincero
desvelamento, que só o conferir com os superiores as próprias
tentações é su ciente para que não nos moleste mais. E que não é
necessário mais que isso para que ele rompa a tela de seus enganos e
se retire de nós avergonhado e confuso.266 De si mesmo nos fala
Doroteu,267 em seu sermão, que no tempo de sua juventude era talvez
tentado a não se revelar ao abade João,268 seu Diretor, com o pretexto
de que já sabia a resposta que lhe havia de dar. Mas ele não se dava
por vencido, senão que, conhecendo a sugestão do demônio,
rechaçava-a com enfado, e correndo aos pés do santo veio para revelar
sinceramente os segredos de seu coração.269

5. E, na realidade, pode ser que o demônio, transformado em anjo


de luz, exorte talvez alguém enganosamente a fazer oração, a a igir o
corpo com ásperas penitências, a esconder os defeitos de outros, e
ainda a obedecer aos próprios superiores – como aconteceu a Santa
Catarina de Bolonha, a quem o demônio apareceu em forma de Jesus
Cristo, dando-lhe muitas vezes este são conselho, se bem que com
nalidade perversa, segundo a descrição que ela mesma faz em sua
obra.270 Mas não se acha que ele tenha exortado alguém, uma única
vez, a revelar-se inteiramente com lisura e candor a seus Diretores;
porque ele tem a propriedade dos traidores e dos ladrões: o que mais
temem é serem agrados. Fica, pois, concluído que a dureza de
vontade em obedecer, e a obstinação em não se mostrar aos Pais
espirituais, é manifestamente espírito diabólico.

§. VI

1. O quinto sinal é a má intenção no agir. Se o demônio tenta as


obras más, já não pode duvidar que incute na mente de quem age uma
intenção má: se procura corromper as obras que são, por si, boas,
assim o faz sugerindo algum perverso m, para que tenham uma bela
aparência de virtude, mas sejam viciosas na substância. Assim,
exercitando alguém em lisonjas, em orações, em atos de caridade e de
misericórdia, e em outras coisas semelhantes, desperta em seu coração
uma certa gana de parecer bom, com aquelas operações, aos olhos dos
outros, e adquirir estima e crédito de bondade, ou ao menos o faz ter
estima de si mesmo, e procura que de tais obras resulte-lhe uma
grande complacência, e um grande conceito de si. E deste modo lhe
engana miseravelmente, fazendo parecer virtude aquilo que é vício por
causa da má intenção. A isto quis aludir São Gregório explicando
aquelas palavras do São Jó, quando diz que a cartilagem parece osso,
mas não o é; assim, existem alguns atos viciosos que parecem retos e
virtuosos, mas pela perversidade da intenção não são tais. Debaixo de
semelhantes atos se esconde o inimigo para enganar-nos, fazendo
parecer virtude o que é verdadeira culpa, e digno de prêmio o que
talvez seja digno de eterno castigo.271
2. Em outra parte ensina o mesmo Santo Doutor que quando o
demônio não pode, com sua má intenção, botar a perder alguma obra
nossa, que é boa, porque Deus nos assiste com Sua graça, procura ao
menos que a corrompamos ou a viciemos depois de feita,
relembrando-a na mente com admiração, com vanglória e com
jactância. Assim, consegue que, além da falta presente, quemos, em
outra ocasião, privados da divina assistência por castigo da nossa
vaidade.272
3. Mas atente-se o Diretor que, tentando o inimigo os seus
penitentes a m de corromper as boas obras que fazem, sugerindo-lhes
ns torcidos ou de vaidade, ou de deleite, ou de algum vil interesse,
não lhes dê jamais por remédio contra tais tentações o deixar ou
interromper as ditas obras, porque isto não seria evitar, senão antes
aderir, às sugestões do demônio, que tem dois objetivos ao despertar
estas viciosas intenções: ou que se deixem as virtuosas, ou que se
façam as más. Ordene-lhes, pois, corrigir a intensão, e substituir os
ns baixos e defeituosos por outros mais nobres e perfeitos da glória e
gosto de Deus, ou ao menos da própria salvação e perfeição. Assim
agirá com espírito reto e com mérito, e fará que quem frustradas as
tramas do infernal inimigo.

§. VI

1. A sexta marca é a impaciência nos trabalhos. Este ponto não tem


necessidade de muita explicação, porque todos sabem que o demônio
não é capaz de empreender em nossos ânimos sentimentos de
paciência; antes, está todo atento a despertar afetos de ira e de
ressentimento. Se sucede que alguém é tocado na honra com alguma
afronta, ou perseguido com murmurações e calúnias, ele entra em sua
fantasia, desperta a memória dos agravos recebidos, in a os motivos,
e os aviva com uma luz infernal, de sorte que uma palha pareça uma
viga, e um grão de areia uma montanha. Depois se insinua no sentido
interior, e com a comoção dos humores e do sangue acende a cólera,
in amando-a, e levanta no ânimo uma negra obscuridade, que vai
ofuscar a razão. Após, turbada a razão, faz-lhe parecer justo todo o
ressentimento e lícita toda a exaltação; e impelindo-o interiormente,
concitando-o com os movimentos da ira já acesa, leva-o cegamente à
vingança, e talvez de fazer correr impetuosamente as feridas e o
derramamento de sangue. Veja-se aqui o caráter do espírito diabólico
no momento de certos trabalhos, que vão ferir o coração.
2. Vejamo-lo em Saul. Prostrado o gigante Golias, volta-se Davi
glorioso e triunfante, levando na mão a cabeça cortada de seu inimigo,
com troféu de tão ilustre vitória. Por onde passa vão aplaudindo as
mulheres, com alegres canções, a nobre façanha do generoso campeão,
repetindo em coro: Saul matou seus milhares, e Davi seus dez
milhares. Saul sente e se ofende com este canto. Toma esta ocasião o
demônio de investi-lo com seu turbulento espírito e entra nele.273
Altera a fantasia, fez-lhe parecer que todo o povo conspira com a
glória de Davi, e que já quer exaltá-lo ao trono de Israel. Levanta-lhe
depois no coração um ódio mortal à pessoa de Davi, e uma grande
inveja de sua glória. Agitado por este espírito diabólico, o infeliz Rei
passa a vibrar uma lança ao inocente jovem enquanto está
concentrado em cantar placidamente em seu real palácio, e intenta
matar com suas próprias mãos o mais valoroso guerreiro de seu reino
e o herói mais benemérito de sua coroa. Entretanto, Jônatas, seu lho,
horrorizado de tão grande barbaridade, detém o pai, procura retirar
de sua mente tantas sombras diabólicas e de seu coração tão
turbulentos afetos ao pôr diante dos seus olhos as proezas de Davi, a
saúde que deu a Israel, sua inocência e valor, e com sua doce
persuasão fez-lhe voltar a si, de maneira que, desterrado de si mesmo
pelo demônio, parece agora substituir totalmente aquele que estava
antes, e jura nunca mais tramar ardilosamente contra a vida do bom
Davi.274 Ocorre que, invadido pouco depois novamente pelo espírito
do demônio, volta a tomar suas suspeitas, suas manias, suas fúrias, e
vibra outra vez a lança contra Davi para matá-lo. E aqui se observa,
sem passar mais adiante, no espírito de Saul (que verdadeiramente era
diabólico) contra um inimigo inocente, quais são os sinais do espírito
do demônio contra um inimigo culpável.
3. Se os padecimentos de que a pessoa é assaltada forem dores ou
enfermidade corporais, perda de um bem, morte dos parentes mais
próximos e dos amigos mais estimados, ou outros males que nascem
de causas necessárias, muito mais o demônio, inimigo do sofrimento,
a estimulará à impaciência, aos lamentos, às queixas, ao furor e ao
desespero; e destes afetos inquietos se saberá que está movida pelo
espírito malvado. Disto também temos um exemplo ilustre nas
Sagradas Letras. Tanto Jó como sua mulher foram tocados pelo açoite
de Deus, porque a ambos foi comum a morte dolorosa dos lhos, a
destruição de suas coisas, a perda dos ganhos, a morte dos criados, e,
en m, os desastres e suma miséria que repentinamente apareceu.
Contudo, o Santo Jó, que possuía o espírito reto do Senhor, ao aviso
imprevisto de tantas e tão sofríveis novidades, armou-se de uma
paciência imbatível, inclinou a cabeça e se conformou com a vontade
de Deus.275 Ao contrário, a mulher, que deu entrada ao espírito
diabólico, não só não sofreu com paciência aqueles infortúnios, mas
começou a insultar com raiva infernal a mesma heroica paciência de
seu marido, repetindo-lhe na cara aquelas ímpias palavras: Bendigas a
Deus e morra. Observe o Diretor Espiritual, neste paralelo, os diversos
movimentos que fazem no coração humano o Espírito de Deus e o do
demônio nos momentos de padecimentos e calamidades.

§. VIII

1. O sétimo sinal é a desordem (desconcerto) das paixões. São


Gregório compara o demônio ao lobo, que, entrando na manada,
alvoroça todo o rebanho. Com a sua chegada todas as ovelhas se
põem em movimento e consternação; treme, perde-se, salta e foge.
Assim, o inimigo do gênero humano, saindo das cavernas do inferno,
qual lobo furioso, entre nas almas e as revoluciona inteiramente.
Comove as paixões, agita-as, desconcerta-as e as põem em tumulto. A
um in ama com a ira, a outro acende com a luxúria, àquele perfura
com a inveja, e a este incute a soberba; a uns estimula com a avareza,
a outros burla com as fraudes; e com esta rebelião das paixões,
consegue fazer grande estrago nas infelizes almas.276
2. Em outro lugar, explica o Santo este revolvimento das paixões
com que o demônio põe em desajuste e confusão as pobres almas, com
vários exemplos que temos na Sagrada Escritura. Na mente de um, diz
ele, insinua o pér do o fogo da soberba, e com a fumaça desta paixão
o cega, como fez com Eva, a quem instigou a desprezar as ordens do
Senhor. Solicita a alguns com estímulos de inveja, como fez com Caim,
a quem induziu, com as dores deste vício, a manchar suas mãos com
sangue de seu irmão. Acende os corações de alguns com as chamas da
luxúria, como o fez com Salomão, a quem tornou, com esta paixão,
idólatra de suas mulheres e de seus deuses. Conquista a outros com a
avareza, como ganhou a Acabe, que com a cobiça pela propriedade
alheia tornou-lhe culpado de dois excessos. O demônio, por m, sopra
em nossos corações com o alento pestífero de seu espírito, até o ponto
de in amar as paixões nocivas e compeli-los ao mal.277
3. Por isso, se observar o Diretor que seu discípulo é assaltado de
paixões turbulentas, que servem para ofuscar a razão, e tão
impetuosas que fazem violência à vontade a m de derrubá-la, pode
acreditar que ele está revestido do espírito diabólico. É verdade que
semelhantes paixões, muitas vezes têm a origem na natureza; mas
ordinariamente recebem vigor e aumento do demônio. A natureza
começa com o movimento mais manso; mas o inimigo, que sempre
vela pelo nosso dano, a atiça, a acende e a incita. Porque assim como
Deus está sempre à porta do nosso coração, tocando com suas
inspirações,278 assim o demônio, tal qual leão furioso, como diz São
Pedro, anda sempre rodeando a fortaleza de nosso coração, a m de
encontrar alguma abertura para insinuar-se e fazer estragos.279
Quando conhece depois que nele existe comoção de afetos
desordenados, entra atrevidamente, e com o fogo de suas sugestões o
in ama. Se a paixão, pois, se levantar subitamente, por motivos
ligeiros, com incomum violência, e de modo pouco conatural, terá
maior razão para acreditar que o demônio seja o autor, ou ao menos o
promotor.

§. IX.

1. O oitavo caráter é a duplicidade, a cção e a simulação. O pai da


mentira não pode engendrar em nossos ânimos aquela sinceridade,
veracidade e simplicidade que Deus comunica ao espírito de seus
servos. Seria então muito dessemelhante a si mesmo. É preciso, pois,
que incuta um espírito de duplicidade e mentira. A sabedoria deste
mundo, diz São Gregório, consiste em encobrir com máquinas
enganosas os afetos do coração, esconder com palavras arti ciosas os
próprios sentimentos e fazer com que o falso pareça verdadeiro, e o
verdadeiro, falso.280 Esta dubiedade (duplicidade) e cção malvada,
prossegue o Santo, estima-se tanto no mundo que é objeto de
admiração a quem não a tem; e é matéria de soberba e arrogância por
quem a possui. É verdade que o Santo Doutor atribui estes vícios ao
espírito mundano, e volta a repeti-lo mais abaixo. Contudo, isto prova
que também se devem atribuir ao espírito do demônio, porque estes
dois espíritos, como já dissemos, estão coligados para o prejuízo de
nossas almas. En m, espírito duplo e ngido, jamais é bom.

§. X

1. O nono sinal é a xação e o apego, bastante oposto à liberdade de


espírito. Não só procura o demônio que continuemos presos por afeto
aos bens terrenos (já que disto não se pode duvidar), senão que coloca
esforço para que tomemos apego às coisas espirituais. Por isso, vendo-
nos apartados do mundo e de suas futilidades, desperta talvez em nós,
nas orações, certas ternuras e consolações sensíveis, procura que nos
xemos nessas mais do que devíamos, que tomemos complacência,
que coloquemos nelas nosso afeto, e que voltemos à oração, não para
agradar a Deus, mas para nos agradar; não para buscar nosso
proveito, mas nossa satisfação. Disse bem Jean Gerson, que o
demônio, trans gurado em anjo de luz, apascenta às almas incautas
com certos manjares delicadíssimos, que não parecem carnais, senão
espirituais, pela semelhança que têm com aqueles manjares divinos,
que experimentam os escolhidos na mesa do Divino Pai.281 Nem tem
outro alvo o maligno, ao dar-lhes este pasto tão delicado, que os
lisonjear com aquele doce, para que não sigam adiante no caminho do
espírito. Porque, de semelhante apego nascem muitas imprudências e
indiscrições de espírito, pelas quais deixam alguns de cumprir as
obrigações de seu estado, de seu instituto e de seu emprego; ou faltam
à caridade, ou à obediência, por estar largamente e mais do que o
devido em oração. E, além disso, o mesmo Deus não prospera os
progressos destas almas débeis que se buscam a si mesmas, ao mesmo
tempo que deviam buscar só a Deus. Procure, pois, o Diretor ter a
almas livres e desprendidas de qualquer afeição; porque isto, seja para
com os deleites e consolos terrenos, seja para com os divinos, sempre é
defeituoso.

§. XI

1. A décima marca é a desatenção a Jesus Cristo, e à Sua imitação.


Para provar isto, basta a lembrança do grande desamor que se tem à
pessoa do Redentor por parte dos falsos contemplativos e dos hereges,
nos quais triunfa o espírito do demônio; aqueles chegam a proibir a
meditação e riscar da mente a Sua memória; e estes proíbem Seu culto
e veneração. Nem isto deve causar admiração: porque sendo o
demônio inimigo jurado de Cristo, sustenta máximas e afetos muito
contrários à Sua pessoa, à Sua vida e aos Seus ensinamentos; e os
instila nas almas daqueles em quem domina com seu espírito
malvado.282 Veja-se aí que as máximas do demônio são de todo
opostas às máximas do Redentor, e opostos têm de ser também os
instintos que ele desperta nos corações humanos. Se encontrar, pois, o
Diretor alguma pessoa desatenta à humanidade santíssima de Jesus, de
sua meditação e imitação, não con e em seu espírito, ainda que pareça
cheio de Deus, porque leva consigo um sinal muito claro de diabólica
ilusão.
§. XII

1. O undécimo sinal é a falsa caridade e o falso zelo. Diz tantas vezes


o citado São Gregório que o zelo falso está cheio de impaciência, de
raiva e de soberba; mas o zelo santo não é assim, que nasce da raiz da
caridade; este, embora mostre por fora algum ressentimento
necessário para a correção do delinqüente, retém, contudo, no interior,
toda a doçura e compaixão, e segue junto com a santa humildade,
pela qual tem por melhores aqueles mesmos que julga dignos de
correção.283 Agora, a primeira espécie de zelo iracundo, turbulento e
inquieto, que tem por pai a cólera e por mãe a soberba, é justamente o
que ingere o demônio no coração de seus seguidores; não para
emendar a culpa dos outros, mas apenas para turbar a paz e romper a
caridade fraterna. Por isso, se encontrar o Diretor, ou nas casas
privadas, ou nas comunidades religiosas, alguma pessoa que está
dominada deste zelo falso ou indiscreto – porque se in ama
excessivamente pelos defeitos dos outros, indo em busca deles pela
casa, reparando-os, provocando crises, murmurando de boca cheia
com seus domésticos, buscando rigorosa justiça, e por isso sendo
causa de muitas inquietações e turbações –, não lhe dê crédito, porque
o espírito do Senhor inclina a alma a mirar-se a si, e não a observar as
faltas de outros; pelo contrário: inclina a desculpá-las em seu coração,
e, não podendo desculpar, a dizê-las com paz a quem governa, com
ânimo de que se ponha algum reparo, e depois disto se esqueça, e só se
lembre delas para encomendar os culpados a Deus, em suas orações.

§. XIII

1. Vejamos agora, na prática, o que deve fazer o Diretor quando


encontrar em seus penitentes algumas dessas características
mencionadas. Em três coisas há de consistir a direção em semelhantes
casos. O primeiro, fazer-lhe entender bem a sugestão do demônio, de
maneira que se persuadam que tais ou quais espécies, tais ou quais
movimentos não são sugeridos da natureza ou inspirados por Deus,
senão movidos pelo inimigo de Deus, para que, conhecendo o
adversário que os assalta, armem prontamente a defesa. O segundo,
que se encomendem a Deus, e peçam-Lhe, de contínuo e de coração,
ajuda contra os assaltos de um inimigo tão atento e tão feroz; de outra
sorte, no primeiro ataque da sugestão cairão por terra; mas lhes há de
advertir, que não devem cessar jamais os rogos, mas perseverar neles
constantemente enquanto durar a batalha infernal. Fere a terra com a
lança, disse Eliseu a Joás, Rei de Israel, e ele a feriu só três vezes e
parou. Indignado, então o Profeta lhe disse: “que negligência é esta e
quão perniciosa à tua glória? Saibas, pois, que se tivésseis golpeado a
terra cinco, seis ou sete vezes, teríeis vencido tudo, e destruído a Síria,
tua inimiga; mas agora, com três golpes, somente a vencerás”.284
Desta maneira, aquele que prossegue em bater e tocar com rogos o
coração de Deus, consegue vitória ampla de seus inimigos; mas o que
se cansa consegue-a somente imperfeita e dividida. O terceiro, que
rechacem prontamente os assaltos do demônio feitos com alguns dos
pensamentos ou moções internas mencionadas, ou com desprezo ou
com atos contrários, segundo a diversa qualidade dos impulsos maus;
de outra maneira, sendo lentos, preguiçosos e débeis na resistência,
lhes sucederás car perdidos com muito prejuízo de seu espírito.285
Ensine, pois, o Diretor a seus discípulos esta prontidão em pisar a
cabeça da serpente infernal, com uma súbita resistência e com um vivo
recurso a Deus, sempre que ela se insinue em seus entendimentos, ou
em seus corações, por meio de seus nefandos estímulos.
CAPÍTULO X
Explicam-se alguns instintos (movimentos) de espíritos duvidosos ou
incertos (suspeitos)

§. I

1. Se todos os instintos e moções internas mostrassem claramente


aqueles sinais que declarei nos quatro capítulos precedentes, fácil seria
a qualquer um discernir o espírito, se divino ou se diabólico. Mas a
di culdade é que alguns movimentos do nosso ânimo não dão sinais
tão claros, a ponto de deixarem dúvida e suspeita fundadas se
procedem de Deus (fato que as tornariam louváveis e virtuosas), ou se
têm origem no demônio, o que as deixariam defeituosas ou más.
Existe um caminho, diz o Sábio, que parece bom, e, contudo, conduz
à perdição.286 Esta via enganosa se pode muito bem aplicar a certos
instintos que têm toda a aparência de bem, mas na realidade são
maus, porque são movidos ou pela natureza corrupta ou pelo
demônio invejoso de nossa saúde, levando a morte ao homem. Por
isso quero pôr aqui alguns daqueles espíritos que parecem suspeitos, e
dar algumas chaves com as quais possam os Diretores discerni-los.

§. II

1. O espírito que, depois de feita a eleição do estado, anseia outro


estado, deve-se ter por muito suspeito, porque o Apóstolo quer que
cada um se mantenha rme e constante em sua vocação.287 E
acrescenta Santo Efrém,288 que naquele estado a que temos sido
chamados, deixemos a âncora e atemos ao cabo o nosso barquinho, se
não queremos nos perder no mar lamacento desta vida.289 E por isso,
quando alguém se tem xado em algum estado, não deve aspirar a
outro, mesmo que pareça ou seja na realidade mais perfeito, senão que
deve procurar a sua perfeição naquele em que Deus o colocou; porque
assim como são muitas as mansões que existem na Casa do Eterno
Pai, segundo o dito de Cristo, também são muitos os caminhos que
conduzem àquelas celestiais mansões, tal como em nenhum tempo tem
faltado muitos que por estes diversos caminhos têm chegado
felizmente ao mesmo m de sua bem-aventurança; destarte,
caminhando retamente, poderemos também chegar lá. Sois casado?
Vive inocentemente em meio ao século, e sereis salvo. Sois eclesiástico?
Sedes exemplar no clero e sereis santo. Sois religioso? Observai com
exatidão aquele instituto de vida ativa, contemplativa ou mista em que
o Senhor o colocou, e sereis perfeito.
2. Assim procedia o Apóstolo com os novos cristãos da primitiva
Igreja. Caminha, dizia-lhes, retamente, segundo a forma da vocação
pela qual Deus os chamou. Vossa vocação requer humildade,
mansidão, paciência e caridade. Trilhais este caminho, e chegareis
seguros à pátria celestial.290 Assim fazia São Bernardo, que para
caminhar com retidão e segurança pelo caminho da perfeição colocava
sempre diante de si mesmo sua vocação. Daí se segue que certas
resoluções, ainda que santas à primeira vista, de abandonar a própria
vocação, para passar a outro estado (ou mais retirado, ou mais
austero, ou mais trabalhador, ou mais devoto), de ordinário devem
atribuir-se ou à inconstância da natureza ou à ilusão diabólica.
3. Foi dito de ordinário, porque temos exemplos de pessoas
santíssimas que de um estado passaram a outro em que se professava
maior perfeição, como fez Santo Antônio de Pádua.291 Mas é
importante, em semelhantes casos, examinar diligentemente se nesta
nova vocação existem aqueles sinais do bom espírito que temos
declarado nos capítulos antecedentes: se a pessoa é de si volúvel, se o
novo estado é proporcional às forças corporais de tal sujeito – já que
Deus, nas obras da graça, costuma acomodar-se também à natureza;
se está conforme suas forças espirituais, sem a qual não seria possível
que tal mudança fosse vantajosa ao espírito, e, ademais, se não se
pudesse esperar razoavelmente que tais forças depois passassem a
existir; se de uma tal mudança de estado pode nascer desconcertos e
inconveniências consideráveis, e outras coisas semelhantes, isto dará
luz ao Diretor para conhecer a vontade de Deus, e por conseguinte
também o divino instinto.
§. III

1. O espírito que é levado a coisas incomuns (fora do costume),


singulares e que não são próprias de seu estado, é grandemente
duvidoso. Assim, seria duvidoso o espírito de um religioso de vida
ativa ou mista que amasse demasiado a solidão, o retiro e a
contemplação. Duvidoso também o espírito de um religioso de vida
contemplativa que quisesse atender à saúde espiritual dos outros com
a pregação e demais obras, próprias da vida ativa. Duvidoso é o
espírito de uma casada que não quisesse acomodar-se a seus empregos,
mas que desejasse fazer vida de monja em sua casa, e de um casado
que quisesse viver como religioso no exterior. Duvidoso seria o
espírito daquele monge de claustro que, relativamente ao vestir, comer
e outras operações cotidianas, quisesse afastar-se do que prescrevem as
regras e os costumes de seu monastério. E isto por muitas razões:
primeiro, porque a divina Providência, tanto na ordem natural como
na sobrenatural, age sem violência, com muita suavidade, e por isso se
acomoda ao estado de cada um; nem costuma inspirar-nos coisas
alheias à nossa pro ssão; segundo, porque o demônio, sabendo que as
coisas novas e singulares, de ordinário, excitam admiração em quem
as vê e vaidade em quem as pratica, é muito amigo de sugeri-las aos
entendimentos menos humildes e pouco cautelosos, e de atraí-los a
essas coisas com aparência de uma rara virtude; terceiro, porque nossa
mesma natureza soberba inclina-se àquelas coisas que a distingue
entre os iguais, e a faz parecer singular. E por isso aos Santos tem
aborrecido sempre esta singularidade, e São Bento tem-na expulsado
de seus monastérios, com uma regra ou instrução particular,
prescrevendo a seus monges por oitavo grau de humildade o não fazer
coisa que discorde de suas regras e do exemplo de seus maiores.292 Por
isso, o Diretor não deve ordinariamente aprovar estas inclinações para
coisas singulares e incomuns.
2. Não obstante, não devemos correr logo a condenar ou reprovar
aqueles que têm o costume de praticá-las, porque devemos saber que
às vezes as têm praticado os Santos que tinham o espírito verdadeiro
do Senhor. Sabemos que São Simeão Estilita293 viveu por muitos anos
sobre o cume de uma coluna, exposto dia e noite ao sol, ventos,
chuvas, geadas e todas as intempéries do ar, num teor de vida muito
dessemelhante à vida dos outros monges. É certo que São Bernardo
professava vida contemplativa num lugar ermo e solitário, e, contudo,
saía às vezes do claustro e da solidão, e se empregava largamente entre
os tumultos do século em pregar aos povos, em tratar com os
príncipes eclesiásticos e negócios seculares de grande glória de Deus, e
ainda em promover guerras sagradas em benefício da Santa Igreja.
Quem não vê que intrometer-se no manejo de públicos ajustes com os
Sumos Pontí ces, o ser embaixadora dos Papas junto aos príncipes
para a expedição de grandes negócios, não são empregos
proporcionais ao sexo e estado de uma devota virgem? E, contudo,
nisto se empenhou Santa Catarina de Sena. Todos sabem que Santa
Maria Madalena de Pazzi,294 por cinco anos andava descalça, e que,
excetuados os domingos, jejuava a pão e água, não obstante que tais
rigores terem sido muito singulares em seu mosteiro. Assim, quero
inferir que, vendo alguma mulher, algum homem secular ou algum
religioso, que praticam coisas incomuns e de todo alheias a seu estado
ou instituto, não devemos deitar-lhes logo em cima uma censura de
espírito falso ou ilusório, mas devemos examinar a qualidade de seu
espírito; se é reto, se é grande, se é extraordinário; se nos impulsos que
sentem às coisas singulares podemos encontrar todos aqueles grandes
sinais de obediência e humildade; pois da obediência, como a pedra de
toque, serviram-se justamente aqueles antigos monges para descobrir
de que espírito estava movido São Simeão Estilita para fazer uma vida
tão particular sobre o cume de um penhasco. Enviaram-lhe dois
mensageiros, com a ordem de descê-lo logo da coluna, e voltasse a
viver em comunidade com os demais monges. Mas deram aos
mensageiros, ao mesmo tempo, a instrução de que se ele obedecesse
prontamente, o animassem a permanecer, parecendo-lhes que apenas
esta obediência podia ser argumento bastante para provar a retidão
daquele espírito. Se ele, no entanto, não se sujeitasse a tal ordem, que
o trouxessem pela força, julgando que apenas esta desobediência
podia bastar para reputá-lo por iludido.295 Mas o Santo, que era
guiado pelo Espírito do Senhor, ouvindo a voz de seus superiores, logo
se pôs de pé para descer daquela altura, e abandonou sua amada
coluna, merecendo, desta sorte, car ali e continuar sua penitentíssima
vida. Veja-se aí, então, um claro indício e um sinal claro para discernir
os espíritos particulares: pô-los à prova da obediência naquelas
mesmas coisas particulares a que se inclinam.
3. O outro caráter que devem ter estes espíritos particulares é uma
muito profunda e enraizada humildade, com a qual em nada se
comovam com os louvores e aplausos, que normalmente nascem das
coisas raras. A razão, a meu ver, é manifesta. O espírito que incita a
empreender coisas novas e não acostumadas, se é movido pelo
demônio ou pela própria natureza, inclina sempre a distinguir-se entre
os iguais, e a conseguir estima e aplausos. Se a pessoa, pois, não se
altera com os louvores nem se deixa apartar um cisco do fundo de sua
humildade, sinal é de que um tal espírito não é instigado pelo
demônio, senão inspirado por Deus, Pai dos humildes.
4. Necessário advertir ainda que quando Deus elege uma alma para
coisas que não são próprias de seu estado, ou que são pouco
conformes ao instituto de vida que foi abraçado, costuma dar sinais
especiais de sua vontade. Assim, Santa Catarina de Sena, havendo
chegado à presença de Gregório XI296 para tratar a reconciliação dos
orentinos com a Santa Igreja, manifestou ao Sumo Pontí ce os
pensamentos e desejos ocultos que tinha em seu coração, de voltar a
Roma, que a ninguém havia manifestado; e com isto deu o Senhor
claros sinais de que a Santa Virgem era inspirada por Deus para
empreender aquela expedição, ainda que incompatível com a sua
condição. Assim também, ocupando-se São Bernardo fora do claustro
com seculares em públicos ou privados negócios, fazia a cada passo
milagres com os quais autenticava o Senhor o seu espírito. Assim, à
Santa Maria Madalena de Pazzi se lhe inchavam as pernas caso
calçasse, tal como as outras religiosas, e se desvanecia todo inchaço
quando andava com os pés descalços. Se jejuava a pão e água, retinha
a comida que era assimilada com proveito, mas se tomava outros
mantimentos, logo os rejeitava com ímpeto. Concluo, pois, que se o
Diretor, além dos sinais do bom espírito, encontrar em seus discípulos
estes sinais manifestos da divina vontade, com mais razão poderá
aprovar aquelas operações a que se sente inspirado, mesmo que sejam
singulares. Mas, fora desses casos extraordinários, todo o cuidado do
Diretor deve ser para que seus penitentes caminhem sempre pelos
caminhos trilhados, que são os mais seguros e os mais compatíveis à
ordem suave da divina Providência; e por isso, se estes forem
religiosos, não lhes permita jamais sair dos limites de seu instituto; se
forem seculares, não lhes concederá coisas alheias ao seu estado,
lembrando-se sempre que o espírito amante das novidades, de lei e
ordinariamente, não é bom.

§. IV

1. O espírito que, no exercício das virtudes, anseia por coisas


extraordinárias, comumente é duvidoso. O que falei até agora foi do
espírito singular, que resolve fazer coisas fora do costume e impróprias
ao seu estado, mesmo que estas não sejam nem grandes nem heróicas.
Agora falo geralmente de todos aqueles que no exercício das virtudes
ambicionam o extraordinário, e digo que este espírito pode ser
inspirado por Deus, como de Deus foi movido Abraão a sacri car seu
amado lho, como no Novo Testamento algumas Santas Virgens
foram incitadas pelo Espírito Santo, a m de prevenir a violência dos
verdugos, e lançar-se espontaneamente ao fogo, e como foi inspirado
São Bento297 a revolver-se, sem roupa, nos espinhos, e São
Francisco298 a submergir-se na neve, como foram interiormente
estimulados um Simeão Salus299, um Filipe Neri300 e outros a fazer em
público ações ligeiras para serem tidos pelo povo como loucos e
desprezados como mentecaptos, e como outros têm sido movidos por
Deus para instituir novas ordens religiosas, e para introduzir na Igreja
de Deus novos modos de viver e outras coisas semelhantes. Mas pode
também este espírito ser insinuado pelo demônio, como costuma
ocorrer especialmente aos principiantes, que, não tendo adquirido
ainda uma virtude ordinária, pensam poder já exercitar os atos mais
ilustres e heróicos que se encontram na vida dos Santos. O demônio
não pretende outra coisa com isto do que metê-los em uma grande
presunção: porque se alguma vez logra induzi-los a alguma destas
ações extraordinárias, faz-lhes julgar depois que já têm adquirido a
virtude com perfeição, para que se comparem aos próprios Santos.
1. Isto suposto, estabeleça o Diretor esta máxima: que Deus, com
sua retíssima Providência, tem estabelecido um caminho ordinário e
comum a todos, pelo qual quer que sigamos até o céu, e é aquele pelo
qual têm caminhado nossos predecessores, e nos proíbe ultrapassar
seus limites. E se alguma vez ocorre que conduza alguém por outro
caminho incomum e não acostumado, não faz isto senão para pessoas
de grande virtude, destinadas já a uma eminente santidade. Depois, no
ato mesmo de movê-las às operações extraordinárias, concede-lhes luz
tão clara de sua vontade, que quase não podem duvidar dela. Além
disso, infunde-lhes um afeto fervoroso e e caz, com o qual quase as
arrebata com grande ânimo e segurança. Eu não digo que este não seja
um sinal que jamais possa falhar; estou apenas dizendo que quando o
Diretor encontra em alguma alma tudo isto, tem fundamento para
deixá-la fazer coisas grandes, porque provavelmente enfrentarão com
facilidade e proveito. Mas às pessoas débeis ou imperfeitas deve-lhes
inculcar o exercício das virtudes ordinárias, de que tem necessidade
para caminhar por seus passos à perfeição, e vedar-lhes certos atos
extraordinários, para os quais não estão ainda, por assim dizer,
maduras; muito mais que, como tenho dito, costumam ser sugeridos
pelo demônio, para fazê-las cair na vaidade e presunção. Precisa-se
advertir, contudo, duas coisas: a primeira, que às tais pessoas não se
proíbam certos simples desejos de coisas grandes, mas apenas se lhes
proíba o desejo e caz e a execução, dizendo-lhes que toda a sua
atenção deve ser canalizada na prática das virtudes correntes; a
segunda, que sempre se entende como exceção algum caso muito
extraordinário em que deseje o Senhor dar a um principiante impulso
e forças bastantes para fazer coisas desacostumadas, como o fez Santa
Rosa de Viterbo,301 a quem na idade infantil deu espírito e talento de
pregar ao povo, de converter hereges e de abater sua perfídia com
modos bem prodigiosos.

§. V

1. O espírito de grandes penitências exteriores pode ser duvidoso. É


certo que o espírito de penitência é espírito de Deus, porque sempre
está contido no coração dos Santos e grandes servos do Senhor. Mas é
certo também que este espírito está sujeito a ser adulterado pelo
demônio e pelo espírito de vaidade. Disse Cristo que alguns extenuam
ou enfraquecem seus rostos com jejuns, para parecer penitentes aos
olhos dos homens. Disse São Gregório que muitos a igem com
abstinências seus corpos com o m vão de alcançar aprovações e
reconhecimentos por semelhantes asperezas.
2. Outros ns têm também o demônio em persuadir sobre
desmedidas austeridades; agravar tanto a pessoa, que caia ao peso da
fadiga e penalidade, com o qual se veja obrigada a parar ou a
retroceder no caminho da perfeição. E por isso São Jerônimo reprova
esses excessos, especialmente na idade juvenil.302 Debilitar a cabeça
com a exagerada subtração de comida, com a qual a pessoa se faça
inábil para a oração, para o estudo e para as funções próprias de seu
estado. A este propósito, refere o mesmo São Jerônimo ter conhecido
pessoas de um e outro sexo, tão débeis de cabeça pela demasiada
abstinência, que estavam como que atônitas e insensatas, sem saber o
que fazer, nem o que decidir, feitas de todo ineptas para o divino
exercício.303
3. Jean Gerson, falando das tentações do demônio, põe, dentre
outras, os jejuns desmedidos, as peregrinações muito largas e
trabalhosas, as aplicações indiscretas, e, além dos péssimos efeitos que
mencionamos, informa outros não menos maus, que são o m pelo
qual estimula o inimigo a tais exorbitâncias.304 Assim, não se pode
duvidar que, se bem que o espírito de penitência é inspirado por Deus
quando é moderado, pode também ser sugerido pelo demônio quando
é indiscreto, não porque ame o inimigo a virtude da penitência, mas
porque quer os abusos e os danos corporais e espirituais que resultam
da imoderação – como disse São Bernardo, falando dos jejuns
praticados imprudentemente.305 Não quero deixar de mencionar, a
este propósito, o que conta o Pe. Miguel Godinez,306 em sua Teologia
Mística, de ter encontrado uma pessoa um tanto austera, outro tanto
luxuriosa, que unia uma suma penitência com uma suma
incontinência. Qualquer um vê que um espírito de penitência tão
corrompido não podia ser sugerido por outra fonte a não ser pelo
demônio, a m de que, contente com aquela penalidade corporal, se
submergisse mais livremente em suas indignidades.
4. Voltando agora para a prática, observe o Diretor nas pessoas que
se sentem movidas à maceração do seu corpo, se com a penitência do
corpo vai junto a do coração: e se com os jejuns, vigílias, cilícios e
disciplinas vai unido um arrependimento sincero das próprias culpas,
e, por conseguinte, uma humilhação proporcional a quem se conhece
réu, e se castiga como culpado. Note se seu discípulo ama mais
aquelas penitências que se fazem em segredo, e podem ocultar-se aos
olhos de todos, ou aquelas que se fazem a céu aberto, e não se podem
esconder dos outros; se manifestam a outro, além do seu pai
espiritual, a austeridade em que se exercita; se no uso de suas
penitências procede sem re exão, indiscreta e cegamente, ou, ao
contrário, com alguma luz de discrição; se as austeridades corporais
lhe servem de ajuda e de esporas para adiantar-se nas virtudes
internas. A partir de então poderá argüir qual é o espírito que move o
tal discípulo à penitência; se do espírito da compunção, ou da vaidade;
se do ódio santo de si mesmo, ou de um desordenado amor à sua
própria reputação; numa palavra: se de Deus ou do demônio.
5. Mas ainda quando encontre em seu discípulo espírito reto e santo,
procure que proceda com a devida moderação: porque, como disse
São Gregório, devemos portar-nos na penitência externa de modo que,
dando morte aos vícios, não matemos o corpo, nem o tornemos inepto
à oração e exercício das outras boas obras, por um desejo de perseguir
a um concidadão e a um companheiro inseparável que temos sempre
conosco, que é o nosso corpo.307 Por isso deverá prescrever uma taxa
justa de morti cações corporais, que sirvam para dar vigor ao espírito,
sem notável prejuízo do corpo. É preciso excetuar também aqui o caso
extraordinário de alguma pessoa de quem queira Deus uma penitência
superior às forças da humana natureza. Mas poderá conhecer muito
bem o Diretor, pelos sinais que temos dado, se a tal pessoa é movida
da divina graça a semelhantes excessos, e especialmente da veemência,
do ardor e da retidão dos impulsos que receber de Deus; e
especi camente de constatar se Deus lhe dá forças corporais para levar
tais rigores excessivos sem notável dano para a sua saúde.
§. VI

1. O espírito de consolações espirituais sensíveis é duvidoso. Se o


gosto (consolação) espiritual sensível é produto da graça, não é outra
coisa que uma doce impressão que faz no apetite sensitivo os atos
sobrenaturais e devotos de nossa vontade; não se deve desprezar nem
rechaçar nenhuma consolação desse tipo, porque é santa e proveitosa,
e desde que tomada com o devido desapego, serve muito para o
exercício das virtudes, para a perseverança na oração e para os
progressos da perfeição cristã. Mas o perigo é que nosso sentido
interior pode, por si mesmo, e independentemente da graça, comover-
se na presença de um objeto santo, e então a consolação tem uma
certa aparência de espiritualidade, mas essencialmente é um afeto da
natureza, que não deixa proveito algum. E o pior é que também o
demônio, com a comoção dos espíritos e dos humores, pode excitar
nos sentidos estes afetos tenros e doces, com grave prejuízo, ou ao
menos com perigo para a alma, que, acreditando-se cheia de devoção,
está na realidade cheia de ilusão. Esta doutrina é do místico e
experiente Ricardo de São Vitor, o qual nos adverte que é propriedade
do inimigo despertar na oração um doce afeto e uma aparente
devoção que nos faça prorromper também em lágrimas e suspiros;
mas com o m de nos engrandecer com vaidade e soberba, ou de
introduzir-nos em algum erro, ou ao menos com o m de que,
apascentando-nos largamente com aquelas comoções internas e
deleitáveis, esgotemos pouco a pouco as forças corporais e caiamos
em debilidade e fraqueza.308
2. Deve, então, observar o Diretor se com a tenra consolação do
sentido se acrescenta, no entendimento, um sério conhecimento das
verdades divinas, e na vontade um afeto sólido aos objetos santos e às
sólidas virtudes; se a pessoa devota, depois de suas doces orações, está
mais em si, é mais cautelosa em cair em uma falta, e mais solícita em
praticar os atos de virtude. Se isto suceder, pode com fundamento crer
que a consolação seja um efeito verdadeiro da graça, e um verdadeiro
dom de Deus. Mas se depois de nalizada a oração, feita com consolo
e doçura, se desvanece tudo, e a pessoa se faz, como antes, fácil em
incorrer nos mesmos defeitos, indisposta e lenta no exercício das
virtudes, e isto acontece assim sempre, serão muito suspeitas estas
consolações espirituais, e se poderá justamente temer que sejam ou
efeito da natureza, ou uma ilusão do inimigo, que vai apascentando
docemente com aquela isca falaz. Neste caso, o pai espiritual deve
fazer com que ela despreze todos os afetos sensíveis, e se aplique a
meditar as máximas e os objetos devotos à luz da fé, para conceber
com a vontade afetos sólidos de compunção, de humilhação, de
emenda, de rogos e súplicas e outros semelhantes, que são sempre
úteis e proveitosos. Sobrevindo depois as ditas consolações, esteja, sem
fazer caso algum delas, com a mente e coração xos em Deus ou em
outras verdades sólidas e proveitosas.

§. VII

1. O espírito de consolações e deleites espirituais perpetuamente


continuados e jamais interrompidos é muito mais suspeito, porque,
como dizem os Santos Padres, o espírito de Deus vai e vem; ora se
manifesta, ora se esconde, e nem age sempre na alma com um mesmo
teor. Assim nos ensina São Gregório, explicando as seguintes palavras
do Livro de Jó:

um sopro passou pelo meu rosto, e fez arrepiar o pelo de minha pele.309

O espírito não estaciona, mas transita, nos diz o Santo,


porque a luz celestial da nossa contemplação, que aparece no início, logo
desaparece por causa da nossa miséria. Também porque nesta vida, por mais que
nossa virtude seja pro ciente, ela ainda sente o estímulo da corrupção.310

Notem-se estas últimas palavras, em que diz o Santo Doutor que,


por mais que alguém, na presente vida, aproveite na virtude, não pode
durar sempre no mesmo estado de consolação ou contemplação,
porque de quando em quando se vê forçado a sentir as misérias de sua
natureza corrupta. O mesmo ensina São Bernardo, demonstrando,
com o feito dos discípulos que iam a Emaús, e com algumas palavras
de Cristo, que são mencionadas por São João, que o Divino Verbo ora
vem a nós, ora se aparta de nós;311 ora nos visita com Suas doçuras, e
ora se esconde para que O busquemos.312 Contudo, mais claramente
fala sobre este ponto Santa Teresa, dizendo que ela não teria por
segura uma alma que estivesse sempre em certa embriaguez e
suavidade de espírito, e num estado ou grau de doçura espiritual; ao
contrário, temeria muito que fosse ilusão diabólica; porque não é
possível que o espírito do Senhor tenha sempre nesta vida a alma num
estado próprio da outra vida, ou seja, num estado de gozos jamais
interrompidos. Veja-se aqui as suas palavras:
(...) porque poderia o demônio enganar, à volta dos gostos que Deus dá, se não
houvesse tentações, e fazer muito mais dano do que quando as há, e não ganhar
tanto a alma, pelo menos apartando todas as coisas que a hão de fazer merecer, e
deixando-a num embevecimento habitual. Porque, quando o embevecimento é
habitual em um ser, não o tenho por seguro nem me parece possível estar assim
sempre num mesmo ser o espírito do Senhor neste desterro.313

Advirta, entretanto, o Diretor, que esta doutrina exige exceção num


certo estado de união mística que a Santa chama de matrimonial,
porque, neste estado, diz ela, não padecem aridezes, a não ser por
muito raras e breves vezes; porque a alma sente quase sempre dentro
de si o seu Divino Esposo, numa paz e consolação quase contínua.
Mas, mesmo assim, esta consolação não é sempre de um mesmo teor,
às vezes crescendo em grandes delícias do espírito, e às vezes
diminuindo. Assim, mesmo neste estado feliz, existem as variedades.

§. VIII

1. As lágrimas, segundo o que antes mencionamos, são também


suspeitas, porque elas podem igualmente nascer de três diversas
fontes, quais sejam: a natureza, as ilusões do demônio, e a divina
graça. Nascem da natureza em certos corações brandos, os quais,
assim como rapidamente se comovem diante de objetos terrenos,
amorosos ou compassivos, assim naturalmente se enternecem com
relação ou consideração de semelhantes coisas espirituais e santas.
Esta ternura natural leva depois aos olhos aquele humor que destila
em lágrimas. Nascem do demônio quando o malvado abranda o
coração com arte maliciosa, até a efusão de lágrimas, para que a
pessoa, pecadora ou imperfeita, forme boa opinião de si, ou para que
os outros tenham dela boa estima, tudo dirigindo, ou para a sua
perdição ou ao engano de outros. Nascem da divina graça quando o
Espírito Santo in ama a vontade em santos desejos e afetos, e ao
reverberar daquele fogo se acende também o coração, que manifesta
depois, com doce pranto, seu ardor interno.
2. São Gregório disse que as lágrimas santas podem ter sua origem
de duas fontes: do temor da pena e do amor de Deus e dos bens
celestiais.314 Depois compara estas duas espécies de lágrimas aos dois
terrenos húmidos e férteis, um superior e outro inferior, que Caleb deu
à sua querida lha Axa.315 Disse ainda que as lágrimas de amor,
guradas no irrigar o terreno superior, são mais nobres e perfeitas, e
as lágrimas de temor, como representadas no irrigar o inferior, são
menos perfeitas. Além disso, as lágrimas que saem da fonte do amor –
diz Santa Teresa, aprendiz da própria experiência – são mais suaves
que as outras, e correm dos olhos com tanta doçura, que a pessoa,
inadvertida, quando percebe encontra-se depois banhada de tão bela
chuva.
3. Suposto, pois, que as lágrimas que na oração se derramam podem
derivar-se de diversos princípios, ora bons, ora maus e ora
indiferentes, que fará o Diretor para encontrar o manancial? Observe
se, chorando os olhos, se encontra o entendimento iluminado com a
inteligência das divinas verdades, e a vontade acesa com sólidos e
santos afetos, endereçados todos à honra e culto de Deus. Daí tome
luz para entender qual seja a sua qualidade, porque nos diz Santo
Inácio:
Chamo consolação quando na alma se produz alguma moção interior, pela qual ela
vem a se in amar no amor do seu Criador e Senhor e, conseqüentemente, quando a
nenhuma coisa criada sobre a face da terra, pode amar em si, senão no Criador de
todas elas. Do mesmo modo, quando derrama lágrimas que a movem ao amor do seu
Senhor, seja pela dor dos seus pecados ou por causa da Paixão de Cristo Nosso
Senhor, ou por outras coisas diretamente ordenadas ao serviço e louvor Dele.316

Note também se, enxugadas as lágrimas, sobra a vontade vigorosa, e


mais animada e disposta às coisas do divino serviço. A partir daí lhe
será fácil conhecer sua origem boa ou má.

§. IX
1. O espírito de revelações é sempre suspeito, se não reside em
pessoa de singular bondade, porque Deus não revela seus segredos
senão às almas queridas e amadas. O espírito de freqüentes êxtases317
e raptos318 é também suspeito (falo de raptos e êxtases perfeitos), se a
pessoa que recebe tão especiais favores não tem passado pela prova de
atrozes puri cações, e não tem chegado a uma grande perfeição,
porque Deus não se une tão estritamente com almas impuras.
Estigmas (chagas) nas mãos, nos pés e nas costas, e outros sinais
prodigiosos nos membros do corpo, se não acontecem em pessoas
heróicas, devem-se ter por muito duvidosos; porque semelhantes
coisas são verdadeiros testemunhos de santidade. Não faltam
exemplos de pessoas perversas que têm alcançado por arte diabólica
estas maravilhosas impressões em seus corpos, para aderir crédito de
santidade com semelhantes aparências. Em suma, quando se ofereçam
ao Diretor estes ou outros espíritos duvidosos ou incertos, acuda
sempre aos sinais do bom e mau espírito que expusemos nos capítulos
anteriores, porque, com eles, como pedra de toque, discernirão
facilmente se são ouro do paraíso ou escória vil do inferno. Advirta-se,
contudo, que, algumas vezes, com o espírito bom se ajunta o mau,
porque acontece que a um só tempo obrem numa mesma alma Deus e
o demônio, e por isso se podem reconhecer os sinais e marcas de
ambos. Neste caso, deve proceder, como se costuma dizer, com pés de
plumas (cautelosamente), examinando com muita diligência todos os
movimentos interiores, para separar o joio do trigo, e arrancar aquele
e cultivar bem este. Deve, sobretudo, encomendar-se muito, mas muito
mesmo, e de coração, a Deus, que não deixará de dar-lhe luz para não
errar.
CAPÍTULO XI
Expõem-se as diversas maneiras como o espírito do Senhor opera
nas almas

§. I.

1. Ainda que o espírito de Deus sempre mova ao que é verdadeiro,


ao que é honesto e ao que é santo, porém não move a todos ao
verdadeiro e honesto com igual perfeição, por causa das indisposições
que encontra nos sujeitos para receber as divinas in uências. Assim,
em alguns o espírito Divino obra mais no entendimento que na
vontade, e em outras age mais na vontade que no entendimento. Da
primeira classe são aqueles aos quais não falta a luz para conhecer as
verdades de nossa fé, e para entender todas as suas obrigações e os
modos com que devem efetuá-las; mas lhes falta na vontade um afeto
forte, que e cazmente os forcem à execução do que conhecem como
obrigatório. Destes fala claramente São Gregório.319 Da segunda
classe são aqueles aos quais não falta vontade para abraçar o bem,
encontrando-se cheios de devoção e de santo ardor; mas lhes falta luz
para entender os modos com que chegarão à execução de seus santos
desejos. Tal foi o célebre Cornélio, que estava todo in amado em
desejos por sua saúde, mas não sabia o que devia fazer para consegui-
la. Por isso foi enviado por um Anjo a São Pedro, para que fosse dele
instruído.320
2. Além das indisposições morais do sujeito, existem outras duas
razões pelas quais age Deus em nós tão diversamente com seus
impulsos. A primeira é a suave disposição de Sua divina Providência,
que acomoda Sua graça à natureza humana; e, encontrando-se em
pessoas cultas e literatas um melhor entendimento, começa por este a
obra de Sua perfeição, dando-lhes grande cópia de luz para entender
as verdades. Ao contrário, reconhecendo nas pessoas simples e devotas
melhor vontade, começa por aí a sua santi cação, in amando-as com
santos afetos. A segunda razão é nosso maior proveito, porque aqueles
que têm mais luz no entendimento que vigor na vontade, vêem com
clareza suas faltas e se humilham profundamente, e aqueles que têm
mais afeto na vontade que luz no entendimento, se vêem forçados a
buscar pais espirituais que as dirijam, a submeter-se em seu
magistério, e a depender em tudo de seus conselhos. Assim, uns e
outros caminham à perfeição pela senda segura de uma profunda
humildade. Finalmente, Deus confere a algumas almas luz para
conhecer a verdade, e uma forte e vigorosa moção de afetos para
executá-las. Estes são mais felizes que os outros, porque recebem com
plenitude o Espírito do Senhor, como disse São Bernardo.321

§. II

1. Outras vezes o espírito de Deus nos move ao bem em geral, mas


não nos mostra em particular o bem que temos de executar. Assim,
alguns são chamados à Religião, mas não conhecem qual seja o
instituto religioso que devem abraçar. Outros se sentem estimulados
de impulsos veementes para desprezar o mundo e suas inutilidades,
para empreender um teor de vida santa, para procurar com todas as
suas forças a saúde das almas e a glória de Deus, mas depois não vêem
os meios pelos quais hão de chagar ao término de seus desejos. O
primeiro, encomendar-se constantemente a Deus, e pedir-lhe luz para
conhecer a Sua vontade sobre as coisas particulares, repetindo com
freqüência e com fervor de espirito:

Ensinai-me a fazer a vossa vontade, pois sois o meu Deus.322 Senhor, mostrai-me
os vossos caminhos, e ensinai-me as vossas veredas.323

O segundo, recorrer a homens doutos, espirituais e discretos; abrir-


lhes o interior de seu ânimo, e reger-se por seu conselho, assegurando-
se de que Deus, por meio deles, os fará entender Sua vontade. São
Lourenço Justiniano chegou a dizer que as pessoas desta qualidade,
dando-nos conselho em semelhantes matérias, raramente podem
errar.324 E esta é pontualmente a razão pela qual, incitando-nos Deus
com Suas santas inspirações ao bem, não nos faz conhecer depois em
particular o bem que quer de nós, para que recorramos a Seus
ministros como a intérpretes de Sua vontade, e especialmente àqueles
que são dotados das nobres prerrogativas que elenca o citado Santo.
Assim, Jesus Cristo converteu com Sua voz e com Sua presença ao
Apóstolo dos povos, mas depois lhe enviou a Seu ministro para que
soubesse das coisas particulares que devia fazer para cumprir a Sua
vontade.325

§. III

1. Outras vezes o espírito de Deus move o desejo de alguma coisa,


mas não quer efetivamente sua execução, querendo tão somente a
vontade pronta para executá-la, e com ela se contenta. Deus manda
que Abraão ofereça em holocausto a seu querido lho. E logo vem a
dolorosa empresa: conduz seu lho ao cume solitário do monte
destinado ao grande sacrifício, amarra-o sobre uma pilha de lenha
onde deve ser consumido em honra ao Altíssimo. Todavia, no ato
mesmo de desembainhar a espada para dar o funesto golpe, detém-lhe
Deus o braço com uma severa proibição.326 Porque queria dele a
vontade, e não o efeito do sacrifício. Inspirou Deus a Davi para que
este edi casse, em Sua honra, um magní co templo; mas não para que
ele pusesse em execução esta obra pensada, mas para que tivesse o
mérito de um tão pio e devoto desejo. Por isso, declarando ele ao
Profeta Natan sua santa intenção,327 ouviu o Profeta responder, da
parte de Deus, que aquela obra estava reservada para seu lho
Salomão.328 O mesmo vemos acontecer com muitas almas boas. A
umas Deus põe no coração um desejo ardentíssimo do martírio, não
porque queira delas a morte, feridas ou sangue, mas tão-somente
porque quer delas o sacrifício de uma vontade pronta para morrer por
Sua glória. Talvez Deus comunique às pessoas idiotas329 grandes
desejos de converter povos e de reduzir nações inteiras à nossa santa
fé; às pessoas doentes dá uma grande vontade de jejuns, vigílias,
asperezas e penitências; em pessoas pobres desperta uma pia
inclinação a socorrer com esmolas aos pobres; e, contudo, é certo que
não pede delas estas grandes obras, para as quais são inteiramente
inábeis. Somente quer o consentimento de sua vontade, e se agrada
com isso, como de coisa muito merecida por elas, e se dispõem à
execução de outras obras mais proporcionadas às suas forças e estado.
2. Sucede também que, inspirando Deus alguma boa obra, não quer
inteiramente senão só em parte sua execução. Temos disto um claro
exemplo naquele possesso libertado pelo Redentor, que se ofereceu a
segui-Lo em companhia de seus discípulos; mas não aceitou Jesus
Cristo sua oferta, dizendo-lhe que voltasse para casa, e anunciasse aos
seus domésticos os benefícios que havia recebido de Deus – Quando
ele subia para a barca, veio o que tinha sido possesso e pediu-lhe
permissão de acompanha-lo. Jesus não o admitiu, mas disse-lhe: ‘Vai
para tua casa, para junto dos teus e anuncia-lhes tudo o que o Senhor
fez por ti, e como se compadeceu de ti’.330 Veja-se aqui que o
Redentor despertou no coração deste homem o desejo de dar-se por
seu seguidor, e, contudo, não aceitou sua servidão senão em parte;
quer dizer que não aceitou a servidão do corpo, mas só a do seu
coração; querendo que vivesse em sua casa com a fé que já havia
concebido de Sua Majestade, e segundo Seu divino ensinamento.
Quantas vezes nos sucede a nós mesmos? Deus dá a um secular casado
desejos de retirar-se a viver num claustro ou num local ermo, em santa
contemplação, não porque queira dele tanta solidão e tão contínua
oração, senão porque quer que abrace uma solidão e um estudo de
oração acomodado em tudo a seu estado. Acende Deus no coração de
uma pessoa espiritual vivas ânsias de penitência, não para que ela
destrua ou dilacere seu próprio corpo, mas para que o a ija com uma
discreta morti cação. O mesmo se há de dizer de outras semelhantes
inspirações. Faça, pois, o Diretor séria re exão sobre este ponto: não é
porque perceba no coração de seu penitente uma inspiração vestida
daqueles sinais que a tornam divina que logo deva se apressar em
conceder-lhe o intento, mas que peça primeiro a luz a Deus, e examine
as circunstâncias na qual se encontra a pessoa, e, segundo estas,
determine, podendo suceder que Deus queira dele somente o desejo,
ou que queria também o efeito – mas não inteiro e efetivado, como já
vimos.

§. IV

1. O espírito de Deus procede de modo plácido (sereno) com as


almas boas; entra com paz, com quietude e tranqüilidade (como diz de
maneira precisa Santo Inácio, uma gota de água que cai sem estrépito
numa esponja); supera as di culdades que lhes atravessam e lhes dá
vigor e ânimo para vencê-las. Em contrapartida, procede de modo
duro com as almas delinqüentes e pertinazes: perfura-as com o
remordimento, açoita-as com o temor da morte, do juízo de Deus e do
inferno, para que despertem da letargia de seus vícios; faz com que
não encontrem a paz com os deleites dos sentidos, entre as honras do
mundo, e entre o esplendor das riquezas, para que, convencidas de sua
própria experiência, caminhem para dentro de si mesmas.331
2. Ao contrário, o espírito demoníaco é turbulento e feroz com as
almas justas. Entra em seus corações com escrúpulos vãos e
insubsistentes, com turbações e angústias, à maneira de uma água
impetuosa que cai com grande ruído e estrondo sobre um penhasco.
Mostra-lhes um Deus implacável, uma virtude impraticável, o monte
da virtude cristã inacessível, para que, aterradas, retirem-se do
caminho de Jesus Cristo, ou pelo menos Lhe sigam com lentidão e
tédio. Por outro lado, com os pecadores é de todo condescendente,
concede-lhes a doçura de todo o prazer, apaga todo o remordimento
de consciência, com uma vã e temerária esperança que lhes destila em
seus corações, e por meio dela lhes imprime uma paz falsa e enganosa
que lhes torna fechados e adormecidos na culpa, sem princípio nem
sinal de reconhecimento. Este diverso modo de proceder nasce das
diversas disposições que Deus e o demônio encontram na alma.
Porque ambos, ao encontrarem algo contrário ao seu gênio, entram
com força para vencê-lo, e ao encontrarem algo conforme a sua
própria inclinação, entram com quietude e sem estrondo, como em
sua própria habitação – assim diz Santo Inácio de Loyola na regra que
dá em seu Discernimento dos Espíritos.332

§. V

1. O espírito de Deus se insinua diversamente nas almas boas, em


algumas com doçura, e em outras com fortaleza. O espírito do Senhor
trata algumas almas docemente; inspira-lhes pensamentos e afetos
devotos, mas com suavidade e ternura levanta-as à contemplação, que
é sempre doce; talvez lhes comunique também locuções e visões, que
são sempre agradáveis e deleitáveis. Mas mesmo assim não faltam a
tais almas tormentos e penas, especialmente em certos tempos, em que
as quer Deus puri car e provar. Apesar disso, o modo de proceder do
Espírito Santo com elas é muito suave e agradável. Isto é mais comum
(ordinário) nas mulheres, que pela debilidade de sua natureza
imediatamente afrouxariam no caminho da perfeição, se Deus as
arrebatasse assim com estes doces atrativos. Assim, a sagrada Esposa,
sabendo sua natural fraqueza, desejava ser arrebatada por seu Amado
com o bálsamo de suaves consolações.333 Em outras almas, o espírito
de Deus age mais com fortaleza que com doçura, comunica-lhes luzes
e conhecimentos da fé, e sentimentos sólidos com o quais as torna
fortes e robustas para vencer-se a si mesmas e trabalhar para a glória
divina. Se estas, sem a ajuda de espirituais consolos, agem
virtuosamente, tanto como as outras, merecem mais que elas, porque
devem fazer-se uma contínua violência, e seu obrar, tanto está mais
destituído de qualquer conforto quanto está mais limpo de todo amor
próprio, e é mais puro e perfeito.
2. Aqueles, diz São Bernardo, que tiveram em toda a sua vida
aspirado a gozar as divinas doçuras, e se lhes tiveram sido sempre
negadas, se pia e constantemente tiveram perseverado no bem, apenas
se verão livres das ataduras do corpo, ser-lhes-ão concedidas, em
maior abundância, aquelas doçuras de espírito que na presente vida se
lhes retiraram.334 Forme, pois, o Diretor justo conceito do espírito
daqueles que Deus lhe envia a seus pés: nem estime mais aquelas
almas que recebem mais contemplação, mais visões e mais gostos e
deleites espirituais, senão aquelas que são mais humildes, mais
morti cadas, mais obedientes, mais desapegadas, mais caridosas, e
sobretudo mais conformes com a divina vontade, porque na realidade
estas são em si mesmas mais perfeitas e mais agradáveis a Deus.
Deduza também que a perfeição está nas mãos de todos; porque o
espírito do Senhor age em todos ou com doçura, ou com fortaleza; ou
com luz clara, ou com luz obscura; ou manifestamente ou
ocultamente. Basta que correspondamos el e constantemente às Suas
divinas inspirações, para que sejamos perfeitos.

§. VI

É
1. É próprio somente do espírito de Deus entrar na alma, e com seus
doces atrativos mudá-la totalmente em seu amor, sem que haja
precedido causa alguma de semelhante mudança; quer dizer, sem que
na fantasia, no entendimento ou na vontade tenha procedido alguma
operação apta a causar aquela chama devota. E da mesma forma que
o dono entra em sua própria casa sem enviar antes um aviso, ao
contrário do que ocorre com um estranho – que toca a porta antes, dá
notícia de quem é, e pede entrada –, assim Deus, verdadeiro dono das
almas especialmente perfeitas, sobre as quais tem particular possessão,
entra às vezes nelas com a comoção de santos afetos, sem que o
entendimento e a vontade abram-Lhe a porta. Desta forma ensina
Santo Inácio em seus exercícios:
Só a Deus pertence consolar a alma sem causa precedente, pois só Ele tem direito
de entrar nela e sair quando quiser, movendo-a ao amor de Sua divina Majestade.
Digo sem causa precedente, isto é, sem nenhum aviso prévio ou conhecimento de
qualquer objeto, que dê origem àquela consolação.335

2. Mas se há de advertir que tudo isto costuma ocorrer em alguns


atos de contemplação passiva ou infusa, na qual Deus age na alma de
modo conatural a ela. A alma, unida ao corpo, trabalhando de modo
proporcionado a seu estado presente, jamais se in ama em afetos,
senão por meio de prévios conhecimentos e fantasmas, que,
representando-lhe o mérito dos objetos, deixam-na enamorada. Mas
se sucede que sem a precedente disposição de tais atos se in ame
subitamente a alma no amor de Deus, este é um modo de agir insólito
e extraordinário. Isto, por exemplo, acontece às vezes no recolhimento
interior e infuso, em que, como diz Santa Teresa, a alma, ainda que
vez ou outra se distraia, sente improvisadamente que se recolhem no
interior todas as potências, e se apresentam diante de Deus com
quietude e suavidade. Acontece em certas locuções, nas quais, estando
ocupada a pessoa nas coisas exteriores, sente no interior a voz de seu
Divino Esposo, que a transforma toda e comove. Acontece em outros
passos de contemplação, nos quais obra Deus como senhor despótico
da alma, e por meio de infusão de luz extraordinária, e talvez de
espécie,336 reclama-a para Si. Fora destes casos, dispõe Deus a alma
aos devotos afetos com modo conatural com Sua graça, por meio do
entendimento. Mas não creia o leitor que nestas mesmas
contemplações infusas se in ama a vontade sem ação do
entendimento. Age também o entendimento, mas no mesmo instante
que a vontade.
3. É importante advertir, com o mesmo Santo Inácio, que se bem
entrando Deus na alma como foi dito, não se pode ter-se por suspeitos
os efeitos que naquele instante produz, contudo, nos instantes
seguintes, em que prossegue a alma ardendo no divino fogo, pode ela
mesclar conceitos próprios às inteligências divinas, e pode também o
inimigo introduzir sua cizânia. Por isso deve a pessoa, nestes casos, ser
cauta em fazer resoluções, e muito menos chegar à execução, sem ter
feito primeiro um diligente exame e madura inquisição.337

§. VII

1. O espírito de Deus, às vezes, esconde-se da alma e a deixa árida e


ofuscada para seu maior bem. São Bernardo, nutrido com o doce leite
do divino espírito, descreve maravilhosamente suas dolorosas
mudanças. Diz que o espírito do Senhor ora se faz sentir na alma
amante e a consola, ora se esconde e a entristece. Desejado e rogado,
volta a infundir-se no coração com suavidade, mas logo se retira e a
deixa triste e desconsolada, ora vai e ora volta com amor variável.338
Depois acrescenta que a alma, enquanto está unida a este frágil corpo,
pode estar freqüentemente alegre e contente pela presença do Esposo,
mas não sempre, porque suas visitas a consolam, mas seus vários
afastamentos a entristecem e molestam.
2. Em outro sermão, mostra quão desejável é, para a alma devota,
experimentar a doçura do divino espírito, para correr com coração
aberto e com velocidade o caminho da perfeição, e para executar com
sumo deleite e suavidade o bem que antes fazia com muita amargura e
repugnância.339 Todavia, advirta-se, prossegue o Santo, que alcançar
isto é para poucos, e aqueles mesmos que chegam não acreditam que
vai durar para sempre, porque estes consolos de espírito não são
necessários para o exercício das virtudes. Muito mais se eles são ainda
noviços e imperfeitos na escola de Cristo. Sabem estes que, embora o
Redentor atraia os débeis e pequeninos com estas graças doces e
deleitáveis, mas que não as dá, senão que as empresta, ou seja, não as
concede para sempre, mas por um tempo determinado. Por isso, em
tempo de abundância, devem pensar em prover-se para o tempo de
carestia, e no tempo de ausência devem pensar na abundância, para
tomar alento e coragem para prosseguir a carreira iniciada da
perfeição. Veja-se aqui, leitor, de quantas maneiras declara São
Bernardo as propriedades que têm o espírito de Deus; por vezes,
manifesta-se às almas para consolá-las com afetos sensíveis e
agradáveis, por vezes se esconde, deixando-as secas e desconsoladas.
Não obstante, sempre é verdadeiro que o espírito do Senhor, tanto
manifesto quanto escondido, sempre trabalha nas almas boas: se está
manifesto, trabalha na parte racional, e também no sentido interior; se
está escondido, trabalha somente nas potências racionais, forti cando-
as, e deixa desolado o sentido.
3. Porém, o que mais se deve notar é que o espírito de Deus pratica
estas visitas e estas ausências não só com os principiantes que
começam a subir o monte da perfeição, senão também com os
avançados que estão mais próximos do mais alto cume. Àqueles se
esconde para que não se apeguem à doçura, mas que antes se
acostumem a exercitar-se nas virtudes com solidez de espírito, entre as
repugnâncias e contradições do sentido rebelde. E a estes últimos não
se deixa gostar (adorar), para que, com muita prosperidade, não se
levantem com a vaidade, e não caiam nos laços de alguma oculta
soberba. Para isto não quero trazer outro testemunho do que a
experiência de São Bernardo, já tantas vezes citado. Caído em
desolação, assim fala a seus monges:
Alguma soberba tem achado Deus em mim, pela qual, enjoado, se tem retirado.
Como se tem secado meu coração, se tem coalhado como leite, e, semelhante à terra
sem água, se tem ressecado e endurecido? Já não posso derramar uma lágrima de
compunção; tanta é a dureza a que me tenho reduzido. Já não encontro sabor nos
Salmos; a leitura devota já não me agrada; a oração não me deleita nem encontro
mais as habituais meditações. Para onde se têm ido aquela embriaguez de espírito,
aquela paz e aquele gozo no Espírito Santo, que inundavam meu coração?340

Enxergais aí uma viva imagem de uma alma perfeita, de quem se


esconde o espírito de Deus, se bem que, por outra parte, está cheia do
espírito Divino.
4. Isto suposto, já percebe o Diretor o modo com que tem de
governar as pessoas espirituais, tanto no momento em que o espírito
do Senhor se lhes faz sentir com Suas consolações, como no tempo em
que se lhes esconde para humilhá-las com trevas e dissoluções. No
primeiro caso, lhes há de dizer que nos dias bons, lembre-se do que foi
os maus, que estes gostos espirituais não durarão sempre, que não
acreditem ter adquirido a posse dos deleites de que gozam, como se
continuassem quase por direito hereditário – como diz em outra parte
o citado Santo –, porque em breve se trocará a luz em obscuridade, a
paz em tédios e os contentos em amargura. Isto serve para que a alma
passe desapegada de tais deleites sensíveis, já que ninguém se apega a
um bem que sabe não ser de nitivo (e sabe que haverá de faltar em
breve). Faltando-lhe depois, não se turbe nem se entristeça, porque
aquele que prevê os acontecimentos, ca menos ferido.341 Diga-lhes
que estas consolações se dão às pessoas fracas e de coração
pusilânime, para nutrir-se gulosamente com o doce, ao modo das
crianças, quando seguiram Cristo.342 Diga-lhes que se sirvam de
semelhantes consolos para correr mais rapidamente pelo caminho da
morti cação, e para estar mais preparadas para o exercício das
virtudes. Isto ajuda para que a alma não abuse dos dons de Deus,
senão que antes se sirva deles para os ns a que Deus os encaminha,
ou seja, para seu aproveitamento e para a glória do Senhor.
5. No segundo caso, diga à pessoa devota que pela ausência da graça
se encontra árida, que sem turbar-se nem inquietar-se num só ponto,
humilhe-se diante de Deus e a rme: a soberba se encontra em mim;
não só se reconheça refém da soberba, mas também de tantas paixões
que não sabe moderar bem, de tantos defeitos que comete a cada dia,
de tantos pecados nos quais acabou caindo no passado. É a estes
pecados que se deve atribuir a subtração das luzes, a secura dos afetos,
a frieza no orar, a insipidez no salmodiar e a ausência de gana no bem
agir. Confunda-se em si mesma com paz e quietude, sabendo-se digna
de tal tratamento, muito devido aos seus deméritos. Conforme-se com
o querer de Deus, que dessa maneira a morti ca para seu maior bem.
Persevere constante em seus devotos e virtuosos exercícios, apesar de
toda a contradição interna, e con e em que, procedendo desta forma,
fará maiores progressos na virtude entre as dissoluções mais penosas
do que entre os consolos mais saborosos e deleitantes.
6. Principalmente, procure insinuar no ânimo de seus discípulos
aquela lembrança com a qual São Bernardo tempera a referida
doutrina, isto é, que o homem espiritual deve proceder sempre com
humildade e com temor, seja quando o ar da graça sopra favorável,
seja quando dele se retira, e seja quando também volta favorável a
confortar com seus doces e suaves movimentos; porque disse que
provou com sua própria experiência que não tem meio mais e caz
para conseguir a abundância da divina graça, para conservá-la depois
de adquirida, e para recobrá-la depois de tê-la perdido, que estar
diante de Deus com humildade, circunspecto e temeroso.343 E a razão
de tudo é aquela que nos traz Santa Teresa, a saber: que Deus não se
deixa vencer senão pela humildade.
CAPÍTULO XII
Expõem-se as diversas astúcias com as quais o demônio, com seu
perverso espírito, engana as almas

§. I

1. Em contraposição aos modos amorosos com os quais o Espírito


Divino se insinua nas almas para sua saúde, acenarei para os modos
astutos e enganosos com os quais o demônio entra nelas com seu
maligno espírito para levá-las à perdição. Diz São Cipriano que o
inimigo infernal se comporta conosco como um capitão que com suas
armas sitia um castelo de forma bem apertada; dá voltas ao redor,
observando atentamente qual é a parte mais débil, qual a mais segura,
para por aí fazer o assalto e assegurar a vitória. Assim, o inimigo
sempre dá voltas ao redor de nossas almas; nota qual é a paixão mais
frágil e a inclinação mais conveniente para assaltá-la por aquela parte
e submetê-la a seu tirano domínio.344
2. Mas o que nos deve deixar mais preocupados e cautelosos é a
grande astúcia deste nosso inimigo, a quem, como diz São Leão,345
não se pode esconder debilidade alguma desta nossa interior fortaleza;
porque sabe o maligno precisamente quem está inclinado à ganância
das riquezas, aos deleites da gula, aos prazeres do sentido, à inveja, à
ira, à soberba. Sabe quem está dominado pela tristeza, pelo gozo, pelo
temor. Reconhece os hábitos, as inclinações, os afetos de cada um, e
por aquela parte em que vê alguma abertura, ou nos reconhece mais
inclinados pelo costume, move a bateria de suas sugestões para
conseguir de nossa vontade algum consentimento mal e alguma queda
de nossa fragilidade.346
3. São Gregório procede sobre este particular do mesmo modo, e
ainda descreve mais detalhadamente as astúcias de nossos adversários
em descobrir as debilidades das almas, e sua prontidão em dar-lhes
assalto por onde reconhecem mais fácil a conquista. Os demônios, diz
o Santo, observam qual é o humor que naturalmente predomina em
nossos corpos, e depois despertam aquelas paixões que mais se
entrechocam com tal temperamento, para que o estímulo da sugestão
seja mais enérgico, e mais fácil a queda. E porque ocorre que a alegria
tem muita a nidade com o prazer, tentam com a incontinência as
pessoas alegres. Porque sabem que a tristeza é muito amiga da ira,
instigam as pessoas melancólicas à raiva, ao ódio, à discórdia. Porque
não ignoram que o temor é inimigo do padecer, envolvem as pessoas
tímidas com a apreensão e temor dos males iminentes. Porque vêem
que certos espíritos orgulhosos se deixam levar facilmente pelo vento
da vaidade, procuram que o ar popular lhes sopre favorável. En m,
impelem com suas tentações até aquela parte em que nos vêem
propensos pelas inclinações da natureza.347
4. Esta última contraposição acaba de revelar claramente o quanto é
grande a astúcia dos demônios em tramar armadilhas às nossas almas;
porque eles, diz o Santo, não tentam aos luxuriosos com a esperança
de grandes prêmios, nem aos avaros com o amor aos prazeres, nem
aos abstinentes com o vício da gula, nem aos iracundos com a paixão
do temor, nem aos mansos com o ardor das brigas e contendas; ou
seja, percebem muito bem que por este caminho encontrariam repulsa
e não vitória. Apertam-lhe o cerco, e lhes fazem com suas tentações
por onde vêem as pessoas inclinadas por natureza a cair. Por isso São
Cipriano nos exorta, com palavras dignas de seu zelo pastoral, a que
estejamos sempre com as armas na mão, prontos, tal como generosos
soldados, para combater contra estes inimigos do inferno; e já que eles
estão sempre atentos para a nossa ruína, estejamos nós sempre
velando pela nossa defesa. E tanto maior deve ser nossa vigilância
quanto mais ocultos, mais traidores e enganosos sejam, de ordinário,
os dardos que eles lançam para fazer profundas feridas em nossas
almas.348
5. E aqui quero que façamos propositadamente uma re exão com
Santo Agostinho, sobre o que insinuei de passagem no capítulo IX, §
8, que de ordinário nós somos a causa das tentações com que o
demônio nos acomete; porque muitas vezes a natureza começa a nos
inclinar ao mal, com seus perversos movimentos; e se nós não
reprimimos aquele movimento, o inimigo infernal, que sempre anda
dando voltas ao redor do castelo da nossa alma, vendo-nos coligados
com ele naquele início de mal, in ama a paixão já comovida, nos
vence, nos domina e nos torna seu. Assim que nós somos os que
abrimos ao diabo a porta de nossas almas, para que tome delas posse.
Explica isso o Santo com vários exemplos. Encontra o demônio a
alguém que começa a desejar o prazer e isto é o bastante para que
entre nele, e acenda um fogo do inferno: a concupiscência lhe abriu a
porta. Encontra outro que teme em cumprir suas obrigações; entra o
inimigo, aumenta tal temor, e o estimula a fugir e retirar-se: o temor
foi a porta que lhe deu entrada. Encontra aquele que está enlaçado
por amor à sua propriedade; ele se instala e o incita a ganhá-la
injustamente: a ganância que o fez entrar. Pontualmente a isto que se
refere o Apóstolo, quando diz: guarda-os de dar ao diabo alguma
entrada, porque se ele entra na alma, e se faz dono dela, vós sois a
causa, e vós sois o demônio para vós mesmos.349 Façam aqui a
re exão aqueles que crêem que o demônio dorme, e atribuem todos os
desconcertos de nosso ânimo à nossa natureza corrompida e mal
inclinada. É verdade que comumente a natureza é quem dá o primeiro
passo; mas se a vontade é pouco cauta em resistir, o demônio
prossegue depois: aquela abre a porta com sua primeira negligência,
mas este entra depois para promover a perdição da pobre alma.
Portanto, é necessário que os Diretores tenham seus penitentes bem
advertidos sobre isto, para que, sabendo eles que têm a seu lado um
inimigo tão formidável, que, de ordinário, ou é autor ou é promotor
de todas as suas perversas afeições, estejam preparados para reprimir
integralmente aquele primeiro movimento mal, e vivam com cautela e
vigilância para a resistência.

§ II.

1. É comum os capitães praticarem com seus inimigos alguns


ngimentos, retirando-se deles para depois assaltá-los com maior
ímpeto e força. Esta astúcia, diz São Gregório, usam também conosco
nossos inimigos. Depois de ter-nos tentado, retiram-se e nos deixam
em paz, como se já tivessem abandonado as armas de suas tentações,
com o m perverso de assaltar-nos (surpreender-nos)
improvisadamente, e com maior energia quando menos pensamos e
quando nos encontramos mais distraídos, e então nos fazer cair mais
seguramente.350
2. Por isso o Diretor não deve fazer grande conceito de certas almas
tranqüilas, que quase jamais padecem alguma tentação, parecendo que
o demônio se esqueceu delas; porque estas, ao primeiro acontecimento
de alguma veemente sugestão, facilmente são vencidas, tal como um
soldado que, envelhecido e enfraquecido pelo enorme tempo de ócio,
com facilidade é vencido no primeiro combate; assim também
Aníbal,351 tendo sido antes, por largo tempo, invencível com todo o
poder dos romanos, debilitado depois com a quietude, ócio e delícias
de Cápua,352 acabou brutalmente aniquilado. Tema, pois, por tais
almas. Tenha-as desiludidas, lembrando-lhes que o inimigo, quando
menos se espera, virá dar-lhes o assalto, e que estejam sempre de
sobreaviso, e prevenidas para a defesa.
3. Às vezes também se utilizam os capitães de outros ardis, tanto
mais perigosos aos inimigos quanto mais disfarçados. Deixam que o
inimigo entre em seus estados, que faça algumas conquistas e talvez
também alguns progressos, mas com o m de capturá-los depois em
algum campo estreito, do qual não possa fugir, e ali fazer dele
carni cina, ou pelo menos com o m de estreitá-lo por todos os lados
com suas armas, de maneira que não haja saída. Assim o faz o
demônio com algumas boas almas: deixa-as trabalhar o bem sem as
inquietar em nada, permite-lhes algum avanço de espírito, e por vezes
as persuade maliciosamente, porque espera capturá-las depois no
momento de alguma grave sugestão e ganhá-las. Desta diabólica
astúcia nos deixou advertidos Santo Inácio.353
4. Jean Gerson vai além, e diz que o inimigo muitas vezes deixa que
alguma alma bem inclinada tudo faça com retidão, para que caia
numa só coisa, para a qual fortemente a incita, bastando-lhe entrar no
castelo da alma por uma só porta para cooptá-la. E acrescenta que
talvez tem o demônio escondida semelhante tentação até a morte.354
Por isso há de perceber o Diretor quão necessário é proceder sempre
com temor, enquanto não estivermos seguros de que no mesmo bem
que fazemos não se esconda alguma trama maligna de nossos
inimigos. E quanta razão não tinha o Apóstolo de nos convocar a agir
sempre com humilde temor nas coisas da nossa saúde eterna?355 Este
espírito tem de inspirar os corações de seus discípulos.

§. III.

1. Quando o demônio percebe que não pode vencer algumas almas –


nem com a arte, nem com o engodo – porque sabem escapar de suas
astúcias e se sustentar de pé, e rmes, ao ímpeto de suas tentações, usa
outro estratagema, porque procura que se exponham às ocasiões com
boa nalidade, mas indiscreto. Com estas, o enganador abre depois
uma brecha nos corações dessas almas, debilita-as, e por derradeiro as
conquista – ou fazendo-as cair violentamente, ou fazendo-as regredir
no caminho da perfeição, que tinha sido iniciado. Santa Teresa, depois
de ter falado no Livro da Vida sobre a oração infusa de quietude, de
embriaguez, de sono e de simples união, graus todos de altíssima
contemplação, diz que a alma que tem recebido de Deus tais favores
não se deve expor às ocasiões, porque ainda não está segura. Diz que
o demônio se vale daqueles mesmos favores para fazê-la
indiscretamente animada a meter-se em perigos, esperando arruiná-la
por meio deles; e acrescenta que isto lhe gerou grande dano. Vejam
aqui suas palavras:
Daí se deve entender (e note-se muito bem, por amor de Deus) que por mais que
chegue uma alma a receber do Senhor graças tão grandes na oração, nem por isso
deve ar-se de si mesma, porque pode cair; nem se deve de modo algum se meter em
ocasiões e perigos. Considere bem que importa muito, porque o engano que depois
pode aqui fazer o demônio (ainda que seja certo que a graça vem de Deus) é valer-se
o traidor da mesma graça naquilo que ele pode; e às pessoas que não estão muito
avançadas nas virtudes, nem morti cadas, nem desprendidas, importa muitíssimo,
porque não estão tão morti cadas que baste (como logo direi) para poder-se pôr nas
ocasiões e perigos, por grandes desejos e determinações que tenham. Mui excelente
doutrina é esta, não minha, senão ensinada por Deus (...). Este é o engando com que
tem a presa o demônio; porque como a alma se vê tão alegada de Deus, e vê a
diferença que existe do bem do céu e o da terra, e o amor que o Senhor lhe mostra,
nasce-lhe deste amor con ança e segurança de não cair daquilo que goza, parecendo-
lhe que já vê claramente o prêmio, e que não é mais possível que uma coisa, ainda
para a vida tão deleitável e suave, deixe-se por outra coisa tão vil e suja, como é o
deleite sensual; e com esta con ança retira-lhe o demônio o temor que deve ter de si
mesma, e, como digo, se põe aos perigos (...). Isto foi o que me arruinou; e por isto,
como por tudo o mais, existe a necessidade de um maestro e de pessoas
espirituais.356
Notem-se aquelas palavras, em que diz que esta doutrina não é sua,
mas ensinada por Deus. Volta a repetir o mesmo no Castelo Interior,
no qual, depois de haver falado daquelas almas que gozam da oração
infusa de recolhimento e quietude, conclui assim:
Uma coisa advirto muito a quem se encontra neste estado, e é: que se guarde
muitíssimo de meter-se em ocasiões de ofender a Deus; porque a alma não está aqui
bem crescida e forte (...). Já sei que neste caso há muito que temer; e conosco
algumas pessoas, das quais tenho muitíssima compaixão, tendo visto nelas o que
digo (...). Advirto tanto de que não se metam nas ocasiões, porque o demônio
trabalha e se gera muito mais em algumas destas almas que em outras, para as quais
o Senhor não faz semelhantes graças porque podem fazer-lhes grande dano.357

Tanta verdade é que a máquina mais forte que move o demônio


contra as pessoas espirituais é o en á-las nas ocasiões, é induzi-las
com aparência de bem a expor-se jubilosamente aos perigos; com
estas, o traidor se faz muito liberal, e abre o caminho para entrar em
seus corações. Mas se é tão poderosa esta máquina para debilitar os
espíritos mais elevados e mais gratos a Deus, quanto mais e caz será
para jogar por terra os espíritos frágeis, débeis e inconstantes?
Defenda, pois, o Diretor das ocasiões a seus lhos espirituais; e já que
o demônio, com belos pretextos, estuda tanto para induzi-los ao risco,
use de todo o esforço para tê-los muito longes dele, lembrando-os de
que toda a nossa segurança nesta vida consiste na circunspecção e na
cautela.
2. Usa também o demônio de outras astúcias com as pessoas
devotas, para levá-las à perdição. Talvez pare de tentá-las em matérias
graves, porque vê muito bem que estas pessoas, aterradas pela
deformidade de tais ações, logo desistiriam. Mas procura que não
façam caso de coisas pequenas, que as desprezem, e com facilidade as
transgridam. Assim, vai dando um grande espaço ao amor próprio,
vai afrouxando sua consciência, vai irritando suas paixões, e faz, com
isto, que o mesmo Deus, vendo-Se mal servido, já não lhes comunique
com tanta abundância as Suas ajudas. Ao m, assalta-as com alguma
grave tentação, e as faz submergir em alguma culpa mortal. Tudo isto
é doutrina de São Gregório, que, explicando aquelas palavras do livro
de Jó – Satanás retirou-se da presença do Senhor e feriu Jó com uma
lepra maligna, desde a planta dos pés até o alto da cabeça –,358 diz
que o demônio, tendo licença de Deus para molestar-nos com suas
tentações, começa pelas coisas pequenas, e passando destas às
grandes, chega a vencer nossas almas, e fazer um cruel estrago.359

§. V

1. Com outras pessoas espirituais pratica o maligno outras artes


iníquas, para retirá-las do divino serviço. A alguns, diz São Gregório,
que estão obrigados por seu instituto a atender à saúde corporal e
espiritual dos próximos, sugere que por salvar as almas de outros não
devem perder a sua, e que por curar as chagas alheias não devem
aumentar as próprias; desta sorte, os induz a afastar-se das obras de
caridade e de santo zelo. A outros, faz que se ocupem tão
desmedidamente em obras exteriores, em benefícios dos próximos,
que não lhes sobra tempo para pensar em si mesmos, cando seu
espírito, assim, sufocado e oprimido com o peso indiscreto das
ocupações. A uns, mete-lhes um fervor tão incorrigível, que os faz
incapazes de pedir conselho ou de recebê-lo, e muito menos de
moderar-se a si mesmos; e, à maneira de cavalos indomáveis, correm
sem freio pelo caminho da virtude, com grande perigo de virar para a
senda do vício e da perdição. Mas quem poderá um dia contar todas
as astúcias de um inimigo não menos malicioso que engenhoso, a
quem pode aplicar-se aquele dito – tu tens mil nomes, e mil formas de
danar –,360 pelo qual há mil maneiras de fazer-nos dano, mil artes
para nos enganar, e, o que é pior, que não pensa em oura coisa a não
ser nos arruinar? Basta dizer que Santo Antônio uma vez viu todo o
mundo repleto de laços, os quais outra coisa não signi cavam que os
enganos, as astúcias e fraudes que o demônio arma em todas as partes,
para fazer-nos cair e precipitar-nos no abismo de todos os males.

§. VI

1. Para não cair, pois, nos laços de um inimigo tão fraudulento, três
coisas o Diretor precisa inculcar em seus penitentes. A primeira, pedir
sempre a Deus a luz para conhecer suas tramas, e ajuda para saber
escapar delas. Um peregrino, que numa noite escura necessita parar
num país cheio de precipícios, não se arrisca a caminhar sem luz. Esta
noite é a presente vida, em que nos encontramos envoltos nas trevas
da ignorância. O país por onde temos de passar é este mundo, cheio
de precipícios que o demônio escondeu por todas as partes. Falta-nos
a luz para descobri-los. Que temos então de fazer para não
despencarmos a cada passo? Pedir a luz a Deus, repetindo
freqüentemente: Emite-me a tua luz e a tua verdade.361
2. A segunda, depois que o penitente, com o favor da divina luz,
descobrir as tramas do inimigo, exorte-o grandemente a não perder o
ânimo, nem descon ar, nem acovardar-se; mas, con ante no auxílio de
Deus, defenda-se com valor e combata com grande ânimo, porque, diz
Santo Inácio, o demônio tem a natureza e a propriedade das mulheres,
as quais, segundo a disposição que encontram nos homens, ora cam
muito tímidas, ora muito atrevidas. Façais que uma mulher trave uma
contenda com algum homem, e que lhe encontre temeroso, logo ela
toma um ânimo incomum, e chega a ser tanto mais atrevida quanto o
homem se mostra mais vil; mas, se o encontra audaz e resoluto, logo
diminui o ânimo, se assusta, se enche de temor e se retira. Justamente
isso é o que se passa com o demônio. Se, assaltando-nos, nos encontra
animados e fortes em rechaçá-lo, faz-se mais vil que uma tímida lebre,
e não volta tão cedo ao ataque, mas se nos primeiros combates e
acometimentos nos percebe pavorosos, descon ados e covardes, não
existirá besta mais furiosa que ele, nem cessa jamais de nos
molestar.362
3. O terceiro, inculque nele que revele ao confessor ou a outro
homem douto e espiritual todas as tentações, tanto as que são
patentes, quanto as que lhe parece disfarçadas, e, geralmente falando,
ter com ele uma total clareza e abertura, não podendo saber e nem
ainda quiçá suspeitar qual seja o laço no qual o quer prender o
demônio, e levá-lo atrás de si com um escravo. Diz o citado Santo que,
querendo o demônio ganhar uma alma, imita o costume de um louco
amante – que, desejando enganar a uma senhorita, lha de honestos
pais, ou a uma casada, que tem por marido um homem honrado, nada
procura tanto que aquela não revele ao pai, nem esta ao marido, os
discursos e tratos que passam entre eles, porque, descobrindo-se
alguma coisa dessas estreitas con anças, já desespera de poder
conseguir seu malvado intento. Assim o inimigo, querendo levar um
homem à perdição, põe todo seu esforço para que não manifeste aos
ministros de Deus suas sugestões, ingerindo-lhe no ânimo ou temor,
ou repugnância, ou vergonha, ou descon ança, e às vezes chegando
mesmo a fechar-lhe sicamente a boca. Se talvez sucede que o homem
comece a abrir-se e a manifestar suas tramas, enche-se de raiva, se
enfurece e desespera, porque, descoberto o enredo, já o vê
desvanecido.363 Recomende, pois, grandemente a seus discípulos o
descobrir-se – porque disso depende sua segurança.
CAPÍTULO XIII
Manifestam-se as ilusões com que o demônio engana as almas
incautas, começando neste capítulo pelas ilusões que acontecem na
oração

§. I

1. Entre as astúcias e as ilusões que trama o demônio em prejuízo


das almas, existe uma grande diferença. As astúcias são ardis e artes
malignas para induzir o homem ao mal, que ele sabe ser mal; mas as
ilusões são artes fraudulentas para levar o homem ao mal com
aparência de bem, e para apartá-lo do bem com aparência de mal. Ai
daqueles, diz Isaías, que ao mal chamam bem, e ao bem mal.364 Ai de
vós, que, enganados de falsas aparências, chamais de bem ao mal, e de
mal ao bem! São Gregório diz que devemos velar com sumo cuidado
para não nos deixar enganar pelo espírito da carne (o qual, como
temos visto, vai sempre unido ao espírito do demônio, como ministro
seu), quando nos representa as culpas com semblante de virtudes,
porque os tais pecados são mais graves e mais perigosos. E traz para
isto uma muito boa razão: se alguém erra, conhecendo sua culpa,
depois do erro se humilha, se recolhe, se confunde, e seu próprio erro
o incita ao arrependimento e à emenda. Mas se peca com a aparência
de bem, não só não se humilha depois de sua falta, senão que antes se
ensoberbece, se in ama, se levanta, e ao invés de corrigir-se, se afunda
em sua culpa, porque lhe parece ter agido virtuosamente.365 Agora,
pois, estas ilusões diabólicas podem acontecer, e ainda muitas vezes
acontecem, em tempo de oração; e podem suceder, e sucedem
freqüentemente, fora da oração, com relação à prática das virtudes e
dos vícios. Portanto, convém falar separadamente, para que cada um
seja cauteloso consigo e os Diretores com os outros. Do primeiro
falarei no presente capítulo, e do segundo no seguinte.

§. II

1. Desejando explicar o Apóstolo as ilusões com que engana o


demônio às almas mal advertidas, diz que o próprio Satanás se
trans gura em anjo de luz.366 Vejam aqui as aparências e as ilusões
com que o enganador faz parecer o falso por verdadeiro. E porque os
anjos do céu, enviados por Deus para consolar, para instruir ou para
animar a seus servos, e em alguns casos para manifestar-lhes também
as coisas futuras, costumam vir coroados de raios e resplendores
devidos a seu glorioso estado, também ele se cobre com manto de
luzes, e esconde com elas a sua fealdade, para parecer o que não é. E
porque os anjos expressam suas embaixadas com vozes claras, que ora
ressoam nos ouvidos do corpo, e ora no profundo do coração,
também ele nge semelhante modo de falar, e faz penetrar um
semelhante som aos ouvidos do corpo e do coração.
2. Assim o inimigo tentou enganar o santo ermitão Abraão367,
segundo a relação que nos faz Santo Efrém. Porque, encontrando-se o
Santo solitário recolhido em devota oração, veio de improviso
resplandecer toda a sua habitação com uma bela luz, que no meio da
noite formava um claro dia, e ouviu que lhe diziam estas palavras:
Feliz tu, Abraão, que não tens semelhante, porque cumpristes
inteiramente o meu querer.368 Mas Abraão, como quem tinha o
verdadeiro espírito do Senhor, entendeu logo quem era aquele que
vinha visitá-lo com pompa de tanta luz, e que lhe dava tão feliz
anúncio; e assim o tomou com desprezo, dizendo-lhe:
Andas longe de mim, espírito falaz e enganador. Eu não sou o que me predicas: sou
um miserável pecador; contudo, tenho em minha defesa Jesus Cristo, por cujo nome
te rejeito, cão infernal.369

3. Do grande Estilita370 nos fala Antônio, seu discípulo e biógrafo,


que um dia lhe apareceu o demônio rodeado de formosos
resplendores, sobre uma carruagem de fogo, e aproximando-se da
coluna onde levava uma vida celestial, afastado de todo o comércio
humano, disse:
O Senhor me enviou do paraíso, como seu mensageiro, para que te arrebate ao
céu, como arrebatei a Elias noutra ocasião, e numa semelhante carruagem o
transportei; sobe, pois, e vamos ao céu, onde os anjos, os Apóstolos, os mártires,
com Maria, Mão de Deus, esperam com ânsia tua chegada.371

À
Coisa maravilhosa! À chegada daquele falaz mensageiro não
conheceu o santo homem o engano: deu crédito ao embuste (quiçá o
permitiu Deus para nos fazer mais cautelosos). Levantou o pé para
subir naquela carruagem amejante. Mas o quê?! Persignando-se,
naquele ato, a frente e o peito com a santa Cruz, desapareceu a
carruagem, os cavalos e o mensageiro, e se desvaneceu de seus olhos,
naquele instante, a falsa luz. Um fato semelhante conta Paládio372
sobre São João Crisóstomo, que predisse com espírito profético uma
insigne vitória ao Imperador Teodósio.373 Porque se lhe apareceu
também o demônio em gura formosa, sobre uma carruagem muito
luminosa, prometendo-lhe elevá-lo às estrelas, se, dobrando seus
joelhos, o adorasse. Mas João, guiado de luz celestial, reconheceu o
engodo, e lhe respondeu: Eu adoro o Rei do Céu, mas tu não o és. A
esta repulsa desapareceu a visão e o maquinador da trama evadiu-se
confuso.
4. Algumas vezes se trans gura o inimigo infernal em outras formas.
Para enganar às almas recolhidas com Deus, toma a gura de algum
Santo ou Santa, e por vezes também toma o temerário a gura mesma
de Jesus Cristo, para dar credibilidade com aquela falsa aparência à
fealdade, e autenticar a mentira. Nesta forma se apresentou diante de
São Pacômio,374 dizendo: Eu sou Cristo, que venho a ti, meu el
servo, para visitar-te.375 Mas o Santo, não experimentando em si
aqueles efeitos de paz, de quietude e serenidade que costumam causar-
lhe as verdadeiras visões do Redentor, o rejeitou com indignação e
opróbrio, dizendo-lhe: Afasta-te de mim, diabo, porque sois maldito, e
tua visão. Então se foi o demônio, e deixando um horrível fedor, disse:
Havia-te conquistado com meu engano, se não o tivesse impedido o
Redentor com seu poderoso braço, mas nem por isso perco o ânimo;
jamais deixarei de fazer-te guerra feroz. De outro monge se conta, nas
vidas dos Padres, que ouvindo dizer o demônio, trans gurado na
forma do Redentor – eu sou Jesus Cristo –, fechou imediatamente os
olhos e disse: Eu não quero ver a Jesus Cristo nesta vida, mas basta-
me vê-Lo na outra vida.
5. Mas o que neste particular deve encher-nos de um justo e santo
temor é saber que o demônio, com estes seus enganos, não só tem
alucinado os olhos de homens santos, senão que os têm talvez cegado
totalmente. É digno de lágrimas o caso referido por Paládio376, sobre
Valente, monge de grande virtude. A este se lhe começou a aparecer o
demônio em forma de anjo muito resplandecente, e encontrando
crença no homem simples, voltava freqüentemente para enganá-lo
com estas lúcidas aparições. De modo que o infeliz, parecendo já que
estava introduzido entre os coros dos anjos, e admitido a tratar
familiarmente com eles, engrandeceu-se com soberba, como se já
tivesse chegado a ser um deles. Então o inimigo, vendo-lhe tão
disposto a receber os enganos, ganhou-lhe inteiramente com outra
forte ilusão. Pôs diante de seus olhos uma amplíssima procissão de mil
anjos, todos com tochas acessas e resplandecentes nas mãos. Ao m,
dela vinha um personagem de mãos formosas e decoroso aspecto, que
representava a pessoa de Cristo. Em sua chegada, um dos anjos que
estavam ao seu lado dirigiu-se ao monge e disse:
Valente, Cristo te ama tanto, que veio visitar-te acompanhado de tão nobre
comitiva; vai imediatamente ao seu encontro e adora-o profundamente.

Saiu prontamente o monge de sua cela, e prostrado com a boca na


terra, adorou o diabo. Naquele ato assenhorou-se tanto dele o espírito
da soberba, que, logo após, tendo entrado com os demais monges na
Igreja, começou a dizer, à maneira de um louco e desatinado:
Eu não necessito de comungar, porque hoje mesmo me visitou Jesus Cristo.

Os monges, ao ouvirem proposição tão ímpia, o ataram como a um


louco, e o encerraram num obscuro cárcere.377
6. Nem são menos lastimosas as quedas que conta Cassiano de
monges santos, pervertidos pelo demônio com falsas revelações e vãs
representações. Chora ele a ruína de um velho Eron, que, depois de
cinqüenta anos de vida gastos em solidão, afastado inclusive das
conversas e comércios dos monges, com tanta austeridade, a ponto de
ter o escrúpulo de se alimentar mesmo no dia da Páscoa com uma
mísera colher de lentilhas, e, ao m, tendo sido enganado pelo
demônio, pereceu infelizmente. Porque dando credibilidade ao anjo do
inferno, transformado em anjo do paraíso, lançou-se num
profundíssimo poço, con ando na palavra que lhe havia dado o
enganador, de que sairia ileso. E o pior foi que, retirado pelos monges
com grande trabalho, não quis persuadir-se nos três dias que
sobreviveu, que aquilo tinha sido uma ilusão, nem detestá-la, mesmo
experimentando em si próprio seus funestos efeitos. E assim, depois de
tantos anos de vida penitente, por m morreu impenitente. Lamenta-
se também a perdição daquele outro monge, que no retiro, na
penitência, no estudo da oração e das demais virtudes, havia-se
engrandecido acima dos outros monges que viviam com ela na
Mesopotâmia, e depois, iludido e enganado das revelações e visões
diabólicas, se circuncidou; abandonada a religião católica, passou-se à
superstição dos judeus. Outros semelhantes e lastimosos sucessos nos
conta este grave autor, os quais demonstram claramente quão longe
alguém deve pôr-se das revelações, locuções e visões, nas quais
freqüentemente se trans gura o anjo das trevas para enganar a quem
se mostra desejoso de semelhantes coisas, e quão diligentes devem ser
os Diretores, e quão cautelosos em examinar semelhantes coisas em
seus discípulos.

§. III

1. Burla também o demônio as pessoas espirituais de outros modos,


menos sensíveis e aparentes, mas não menos perigosos. Achando-se
alguém em oração, entra talvez no interior, abranda o coração com
afetos ternos, in ama-o com um falso ardor, e faz que prorrompa um
e úvio de lágrimas, para que assim acredite estar numa muito boa e
elevada oração, enquanto se encontra numa verdadeira ilusão. João
Taulero378 nos adverte observando que, assim como podem nascer
estes afetos da natureza, podem também ter sua origem do
demônio.379
2. Ricardo de São Vitor assinala os ns perversos que tem o demônio
em excitar tais afetos deleitosos e agradáveis, e aparentemente
devotos, no ânimo daquele que ora. O primeiro m é insinuar-se com
essas doçuras, para introduzir depois algum erro. O segundo,
envaidecê-lo com alguma vã complacência e estima de si mesmo. O
terceiro, debilitar pouco a pouco a natureza, e enfraquecê-la com o
território de tais afetos largamente continuados, pelo qual não possa
continuar depois na oração e noutras coisas referentes ao divino
serviço.380 Em outra parte, o mesmo Santo Doutor revela outros ns
malignos que tem o demônio em engendrar tais ilusões. Além da
debilitação da natureza, disse ele, tem por mira envolver com aquela
doce isca de afetos a pessoa incauta, para que, entregando-se a eles,
deixe outras obras de maior glória a Deus, ou para que, orgulhosa de
semelhantes sentimentos devotos, se repute com eles já perfeita, e
descuide da consecução da verdadeira perfeição.381 Tem razão este
grave Doutor de compadecer-se por serem tantos os que, pouco
práticos nos retos caminhos do Senhor e da natureza da graça divina,
crêem que estão cheios de consolo espiritual, quando estão cheios de
um deleite natural acerca dos objetos santos, causado, ou
naturalmente no terreno dos humores, ou maliciosamente pelo
demônio para enganá-los com aquela aparência de devoção.382 Por
isso disse muito bem o Sábio: Bem-aventurado aquele que sempre vive
com humilde temor.383 O que por muitas razões é verdadeiríssimo em
nosso caso. A primeira, porque o temor e a humildade nos fazem
cautelosos, cuidadosos e descon ados a respeito das operações que
sucedem em tempo de oração; fazem com que examinemos com
cuidado, para que venhamos a descobrir as tramas dos nossos
inimigos. A segunda, porque fazem com que não con emos em nós
mesmos, senão que sejamos transparentes a nossos pais espirituais e
aos homens doutos e iluminados por Deus, aos quais não é difícil o
desmascarar a mentira que vem tapada com a capa da verdade. A
terceira, porque não ocorre que uma alma humilde e temorosa que
enganada das falácias diabólicas, já que Deus permite ordinariamente
as ilusões por castigo da vaidade e soberba. Santa Catarina de
Bolonha384 confessa que por muitos meses foi iludida pelo demônio,
que se lhe aparecia disfarçado na imagem de um Cruci xo, e de Maria
Virgem, sem que ela naquele tempo descobrisse jamais o oculto
engano, com grande perigo de car enganada e pervertida, se Deus
não a tivesse protegido com Sua poderosa mão. E disse que Deus
permitiu tal fato em castigo por uma vã complacência sua.385
3. E aqui, antes de passar adiante, é importante re etir sobre uma
coisa, que por ser pouco observada por alguns, é-lhes ocasião de
engano. Não é menos ilusório o ter por favores divinos as obras do
demônio, que reputar por obras do demônio os favores de Deus. Este
último acontece a muitas pessoas certamente doutas, quando, devendo
dizer seu parecer a respeito de pessoas extraordinariamente
favorecidas por Deus, não se contentam com um juízo prudente,
fundando em boas razões, senão que excedem na sutileza, temem em
demasia, e ao m condenam como coisas diabólicas as obras mais
elevadas da divina graça. E não se tocam que, por demasiado temor de
ilusões, acabam iludidos. Neste erro caíram muitas vezes os
Apóstolos, quando ainda não tinham recebido do Espírito Santo o
dom infuso do discernimento. Diz São Lucas que, contando as santas
mulheres aos Apóstolos que tinham visto o Redentor ressuscitado, eles
tiveram aquelas visões por fantasiosas e delírios de mulheres.386
Naquele caso, a ilusão não foi das mulheres, mas dos Apóstolos,
porque, como bem nota o Fr. Luís de Ponte387, não menos é erro
chamar uma visão de delírio da imaginação que chamar um delírio de
imaginação a uma verdadeira visão.388 E também não se pode
desculpar de ilusão aquele que reputar como fantasma – é um
fantasma!389 – a presença real de Cristo, que caminhava sobre as
águas. O Pe. Mestre João de Ávila avança ainda mais para repreender
a certos Diretores muito incrédulos, e diz que ter por espírito
diabólico o espírito bom de Deus é uma grande blasfêmia, semelhante
àquela em que caíram os fariseus, atribuindo ao demônio as obras
maravilhosas do Salvador.
4. Por isso é imprescindível ter sempre diante dos olhos aquele
célebre ditado: nada em excesso; que todo o excesso é vicioso. O ser
demasiado fácil a dar crédito em graças extraordinárias é vício, mas
também é vício o ser demasiado difícil. Muitas almas existem que
estão enganadas pelo demônio ou por sua fantasia, mas se encontram
também outras que são favorecidas por Deus. Em nossos dias a mão
de Deus não está encolhida. E por isso é necessário ir pelo caminho do
meio: não ser crente, nem incrédulo. De outra sorte, cairemos nas
ilusões que tememos nos outros. O caminho do meio é, a meu ver,
examinar bem as coisas, e decidir sobre o fundamento de razões boas
e sólidas. Embora eu concorde também que em tais coisas
extraordinárias é necessário andar sempre com um passo atrás; mas
que seja, entretanto, um passo, e não mil.

§. IV

1. Isto pressuposto, já vejo que o leitor desejará ter alguma regra


para discernir os favores verdadeiros de Deus das ilusões aparentes do
demônio, a m de poder fazer um justo juízo, e assegurar-se, para si e
para os outros, a respeito de toda a ilusão. Mas esta é uma matéria de
tanta gravidade que exigiria um amplíssimo tratado, e não é possível
digeri-la num breve parágrafo de uma pequena obra. Todavia, não
quero deixar de dar alguns sinais que possam lançar luz aos Diretores
para conhecer quando vem Deus a favorecer as almas, ou o demônio a
enganá-las em suas orações.
2. Divido estas marcas em duas classes: existem aquelas que
acontecem no mesmo ato em que a alma recebe visões, revelações,
êxtases e outras semelhantes graças extraordinárias (já que em todas
elas os indícios são os mesmos); e existem aquelas que cam impressas
na alma, depois de recebidos os tais favores. Desejando Deus visitar
uma pessoa, com aparições externas ou com visões internas, com
revelações proféticas ou com locuções instrutivas, ou mesmo com
outros modos inabituais, no começo infunde um temor no ânimo, que
depois passa para quietude, paz, tranqüilidade, deleite e consolo de
espírito, como se apreende de muitas visões e revelações que se
encontram na Sagrada Escritura. Lê-se em Gênesis que, querendo
Deus falar a Abraão, sentiu-se o Santo Patriarca cheio de um santo
horror.390 Ao ouvir depois a voz de Deus, o temor transformou-se em
serenidade, e se encheu de consolo e regozijo, ao entender que seus
descendentes, depois de quatrocentos anos de peregrinação no Egito,
voltariam à terra de Canaã, seriam donos dela – e ao ouvir tantas
outras promessas. Representa Deus em sonhos a Jacó uma escada tão
alta que da terra chega a apoiar-se no céu, e o faz ver anjos que por
ela sobem e descem, e o mesmo Deus sentado no ápice da escada. A
esta visão Jacó teme, e exclama: quão terrível é este lugar! Depois se
enche de contentamento e júbilo: levanta ali uma pedra tal como um
altar, e ao pé dela faz seus votos.391 Lê-se em Jó que Elias, amigo do
grande profeta, numa visão noturna, estremeceu-se todo de horror, e
sentiu correr pelas veias um gelo frio; mas, imediatamente ouviu uma
voz agradável, tal qual um ar suave, que o colocou numa plácida
calma.392
3. Temos no Novo Testamento que o sacerdote Zacarias, ao ver o
anjo do Senhor junto ao altar em que havia de oferecer o incenso, à
tão improvisada aparição se turbou e foi surpreendido por um grande
temor.393 Mas de pronto a turbação mudou em grande
contentamento, ao ouvir o anjo assegurar que sua estéril consorte teria
um lho, e que seria o precursor do futuro Messias: Não temas,
Zacarias, porque foi ouvida a tua oração: Isabel, tua mulher, dar-te-á
um lho. Temos também que a Virgem Maria se turbou com a
chegada do Arcanjo São Gabriel. Mas o celestial mensageiro logo
dissipou toda a perturbação de seu coração – Não temas Maria – e o
feliz anúncio de ser escolhida por Mãe de Deus encheu-a de imenso
gozo: Eis que conceberás e darás à luz um lho, e lhe porás o nome de
Jesus.394 Igualmente, temos que a repentina aparição dos anjos aos
pastores no campo de Belém depositou neles um grande temor: Um
anjo do Senhor apareceu-lhes (...) e tiveram grande temor. Mas, logo
após este temor, aconteceu um grande gozo: Não temais, eis que vos
anuncio uma boa nova que será alegria para todo o povo.395
4. A razão de tudo isso é que para as visões, aparições, locuções e
outras comunicações sobrenaturais que se fazem passivamente a nós,
não concorre a pessoa com sua eleição e arbítrio, senão que Deus, por
meio de Seus anjos, opera-as em nós de improviso e com grande força,
de modo irremediável: somos então constrangidos a senti-las, mesmo
que não as queiramos. Daí que não pode menos que ressentir-se a
natureza, e se comover toda com alguma perturbação, diante de tais
impressões improvisadas e violentas; assim como também nos ocorre
naturalmente quando, visitados por alguma pessoa, geralmente nos
conturbamos com sua primeira chegada, repentina e inesperada. Mas
porque em ditas comunicações quem age é Deus, entra imediatamente
com uma graça extraordinária para iluminar a alma, para serená-la e
paci cá-la, e enchê-la toda de suavíssimos afetos.
5. Ao contrário, quando vem o demônio para enganar a alma com
os embustes de suas aparições, revelações e outras coisas semelhantes,
em princípio causa alegria e deleite, que degenera depois em
inquietude, turbação, amargura e descontento. Mas a consolação que
traz em sua primeira vinda é meramente sensível e super cial; limita-se
totalmente no apetite sensitivo e não penetra no íntimo do espírito,
onde ele não pode chegar imediatamente, nem fazer muita impressão.
Procede desta maneira para granjear-se credibilidade com alguma
alma, com aquela primeira aparência, e para alimentá-la com o doce
daquele deleite, a m de que o admita; mas Deus, que não permite ao
demônio obrar tão dissimuladamente a ponto de, ao m, não se poder
desvendar suas mentirosas operações, dispõe depois que deixe no nal
aqueles efeitos inquietos e turbulentos, que são próprios seus, pelos
quais pode advertir a alma sobre o autor da trama. Mas às vezes
sucede que o inimigo, em suas aparições, cause turbação desde o
princípio, como ocorreu a São Pacômio, na já referida visão, na qual,
sentindo-se o servo de Deus todo agitado e inquieto, disse ao
demônio: a vinda de Cristo é tranqüila; mas agora eu estou turbado
por vários pensamentos e paixões, e, maldizendo-o, o rejeitou. Mas
em tais casos a aparição é sempre turbulenta, no princípio, no
progresso e no m, e por isso dá mais claramente a conhecer o seu
autor.
6. As visões sobrenaturais e divinas mantêm suma decência, e mesmo
que sejam de objetos corpóreos, como de anjos em forma humana, de
Santos e Santas, ou da Virgem Maria, procedem sempre, assim nos
seus membros como em todos os demais, com características de
grande honestidade, e ainda costumam infundir no ânimo de quem os
vê um amor especialíssimo à santa pureza. Ao contrário, nas visões
que fabrica o demônio é comum que sempre haja alguma indecência,
ou ao menos alguma incoerência de coisa inconveniente ao
personagem que se representa. A mesma luz, diz Santa Teresa, que nas
verdadeiras visões é clara, viva e suave, nas falsas é pálida, apagada,
débil e obscura, porque não pode o demônio, em seu modo de agir,
prescindir de tudo o que ele é. São Boaventura diz que o malvado
algumas vezes desperta com estas visões afetos imundos. Ao menos, é
certo, que jamais desperta amor santo como aqueles personagens
celestiais, de cuja gura se reveste, mas apenas afetos naturais
sensíveis.
7. Deus, em Suas revelações, não só não diz coisa falsa, mas nem
mesmo coisas vãs ou inúteis, como o faz Seu inimigo, que excita nas
almas coisas curiosas e de nenhum proveito. Quando Deus fala, Suas
palavras se endereçam ao bem da alma com quem fala, ou para o
proveito de outros, e sempre para o aumento de Sua Glória. Quando
fala o demônio, trans gurado em anjo de luz, tem sempre na mira ou
a ruína daquele que engana ou a ruína de outros, porque, ainda que
algumas vezes diga coisas verdadeiras, boas e santas, só faz isto para
ganhar crédito e depois habilmente insinuar-se com suas fealdades.
Antes, ensina Santo Inácio, é costume do demônio, transformado em
anjo bom, favorecer os piedosos desejos das almas santas, e de
aprovar sua execução, mas com a intenção de levá-las posteriormente
a seus perversos ns.396 O exímio Doutor traz a razão intrínseca, e
discorre assim: é manifesto que o impulso a uma coisa pecaminosa por
sua natureza tem sua origem no demônio, e não o pode receber de
Deus. Mas se a coisa é por natureza honesta e virtuosa, não é certo
que seja inspirada por Deus, quando pode ser sugerida por seu
inimigo. A razão é clara: o mal jamais se pode fazer bem, mas o bem
se pode fazer o mal, e pode endereçar-se também a um mau m. Logo,
ainda que o impulso ao mal não possa advir do bom espírito, o
impulso ao bem pode originar-se do espírito mau, que perversamente
nos instiga ao bem.397 Veja, pois, o Diretor, quão grande perigo existe
em certas locuções extraordinárias, que ocorrem no momento da
oração, o quanto necessita de encomendar-se a Deus para que lhe dê
um reto discernimento, e quão cauteloso deve ser para não aprovar
tais coisas sem que concorram su cientes sinais para tomá-las por
verdadeiras. As heresias de Montano398 e também do grande
Tertuliano399 tiveram em grande parte sua origem nessas locuções
falsas, que sugeria o demônio a algumas mulheres iludidas, às quais
estes homens, ainda que doutos, deram demasiado crédito.
8. Passemos agora à segunda classe de sinais que se pode ter a
respeito destas comunicações extraordinárias, para formar reto juízo –
se são favores de Deus ou ilusões do diabo. São estes sinais os efeitos
que cam na alma de quem recebe semelhantes coisas. As visões e
revelações verdadeiras e todas as outras graças sobrenaturais que Deus
dá a Seus servos deixam sempre impressa uma profundíssima
humildade; porque Deus, ao mesmo tempo em que opera na alma
coisas incomuns, infunde-lhe, como dissemos acima, uma viva luz,
com a qual reconhece seu nada e vê suas misérias, e assim, não só
entende, mas chega a tocar com a mão, que aquele favor nada tem de
seu, senão que é um grande demérito e uma grande indignidade: por
isso, ao invés de envaidecer-se, confunde-se profundamente, e se
aniquila em seu coração. Daí se segue que as tais pessoas estão muito
longe de manifestar qualquer semelhante graça, e talvez cheguem a um
ponto tal que escolheriam antes a morte que a vergonha de ver
revelados os presentes com que Deus os favorece. Se eles são revelados
ao Diretor (como de fato devem fazer), são-no com repugnância,
porque impelidas pelo temor de ser enganadas.
9. Temos em Ezequiel que Deus se fez ver ao profeta no trono de Sua
glória, e ele, confuso com aquela gloriosa visão, prostrou-se com a
boca sobre a terra: E eis que a glória do Senhor lá estava, tal qual eu a
havia contemplado às margens do Cobar. E caí com a face em
terra.400 Nem se atreveu a levantar a cara, até que veio Deus para
levantá-lo daquele humilde abatimento: Mas o espírito do Senhor
entrou em mim para me pôr em pé. Assim nos dá Deus a entender que
jamais levanta as almas com a visão gloriosa sem primeiro prostrá-las,
e quase aniquilá-las com uma profunda humildade.
10. Mas não acontece o mesmo em certas visões ou locuções com
que o demônio pretende enganar às pessoas devotas; muito pelo
contrário: deixa sempre na alma um certa complacência de si mesma,
uma certa estima de ver-se favorecida por Deus, uma certa ganância
por espalhar tais favores, com o pretexto de aproveitar aos próximos,
e de dar glórias a Deus; uma grande facilidade, e mesmo um desejo
excessivo, de manifestar tais coisas ao confessor, e, no ato mesmo de
manifestá-las, nenhum rubor experimenta, tece longos discursos sobre
elas e jamais se sacia de falar, pelo gosto que tem de parecer alma
escolhida e privilegiada diante do olhos do Diretor.
11. Da humildade que as graças de Deus fomentam nas almas de
seus servos provêm que, embora se sintam seguros da luz celestial,
temem a si mesmos, e se sujeitam facilmente ao parecer de outros
quando se reprova seu espírito. Pelo contrário, a soberba que fomenta
nas pessoas iludidas as operações diabólicas fá-las pertinazes e
presunçosas, de modo que não é possível persuadi-las que estão
enganadas, especialmente se, voltando muitas vezes o demônio a
meter-lhes suas ilusões, acaba por tomar posse de seus espíritos. Por
isso, falando Deus a Ezequiel sobre os profetas que vêem só visões
disparatadas, e só fazem predições enganosas,401 diz que prosseguiam
obstinados a con rmar suas ilusões e sonhos, e a divulgá-las como
verdadeiras profecias. Em suma, diz bem Gerson que, desejando o
inimigo do gênero humano, transformado em anjo santo, enganar
alguém, primeiro abre o caminho com a soberba, e depois de tê-lo
enganado, aumenta tanto nele a altivez e a presunção que parece
haver-se tornado louco, e ainda demônio de si mesmo, enganando-se a
si com suas idéias soberbas.402
12. Os favores divinos deixam sempre a alma recolhida, muito
disposta a elevar-se com a mente a Deus, e a acender-se em desejos
pelos bens eternos; deixam um grande desapego aos bens terrenos,
porque a alma conhece por experiência que os deleites da terra não
são comparáveis com os consolos do céu; e assim como o que tem mel
na boca não sente a doçura de outros manjares, quem tem na alma o
néctar suavíssimo das divinas doçuras sente náusea pelas doçuras vis e
grosseiras dos sentidos. Ao contrário, as ilusões diabólicas, depois que
se acabam, deixam a alma árida, seca, fria, inquieta, indisposta para a
oração e toda a coisa boa; e se a miserável se sentir inclinada a algum
bem, será a um bem aparente, viciado ou pelo m ou pelo modo.
Porque, na realidade, de uma causa péssima não pode resultar um
efeito que seja absolutamente bom.
13. As graças extraordinárias que Deus outorga trazem grande
mansidão a quem as recebe, porque a grande suavidade que as
acompanha mitiga a aspereza do irascível, abrandando-a e aplacando-
a, de sorte que não se encontra depois fácil a car ressentido com atos
de indignação. E, com efeito, vemos com a experiência que as pessoas
que freqüentemente recebem de Deus tais favores e presentes
costumam comportar-se com muito agrado e brandura, mesmo com
os próximos que lhes são irritantes. São assim as ilusões dos nossos
inimigos, que fazem a pessoa áspera, fácil à cólera, pronta aos
ressentimentos, e ainda por vezes à vingança, encoberta por uma capa
de zelo. Temos disto um grande exemplo no livro terceiro dos Reis.
Josafá, Rei de Judá, e Acabe, Rei de Israel, coligados contra o Rei da
Síria, idealizavam declarar-lhe uma guerra cruel; mas quiseram
consultar antes o profeta Miquéias sobre o exército de batalha. Posto
em oração, Miquéias viu Deus sentado com grande majestade sobre
um elevado trono, ao redor do qual assistiam todos os personagens do
Céu. Ouviu a Deus que dizia: Quem será aquele que enganará a
Acabe, Rei de Israel, para que execute a expedição militar que
pretende, e sair perdido nela? Então se pôs um espírito do inferno
adiante, e disse: Eu o enganarei. Replicou o Senhor: E de que
maneira? Respondeu: entrarei na mente e no coração dos profetas, e
moverei suas línguas, para que predigam a falsidade. Disse Deus: pois
eu te permito e prevalecerá tua mentira.403 Justamente assim ocorreu,
porque congregados, à presença dos dois Reis, todos os profetas
falsos, juntamente com Miquéias, profeta verdadeiro e santo do
Senhor, aqueles profetizaram uma segura vitória, mas este se opôs, e
predisse uma verdadeira mortandade e estrago. Então, um daqueles
falsos profetas iludidos in amou-se tanto em ira contra Miquéias que
deu-lhe uma bofetada na presença de seu Rei Acabe, que, dando
crédito às ilusões de seus falsos profetas, acabou morto na batalha; e
depois de sua morte, foi dissipado o exército, como predisse Miquéias.
Viram quais são os efeitos que deixam na alma as profecias e locuções
do demônio? Ressentimentos, raiva e vingança disfarçadas com o falso
zelo.
14. E para não me alongar mais numa matéria da qual muito ainda
se teria para discorrer, apenas direi que as visões, revelações, êxtases e
outras graças extraordinárias, se são obras de Deus, e as recebe as
almas freqüentemente, mudam a natureza, e a divinizam; e assim a
pessoa parece de pronto modi cada inteiramente em outra. Mas se
tais revelações, visões e favores são ngimentos do demônio, e
admitidos freqüentemente pelas almas iludidas, mudam também a
natureza, e a tornam diabólica, pelos perversos hábitos que lhe
introduzem. Por isso, não me parece que seja coisa tão árdua, como
alguns acreditam, que o Diretor possa discernir as ilusões do demônio
daqueles favores verdadeiros de Deus, se ele é cauteloso, desperto,
diligente em examinar e humilde em pedir a Deus a luz do
discernimento: como, aliás, não é difícil a quem tem olhos e luz,
distinguir o branco do negro, o belo do bruto.

§. V.

1. Agora resta estabelecer o que nesta matéria é importante, quero


dizer, os meios com os quais o homem espiritual pode livrar-se em sua
oração das ditas ilusões. Proponho três que, praticados
constantemente, farão, em meu sentir, com que uma pessoa esteja
segura de não cair em semelhantes laços. O primeiro é nunca desejar
graças extraordinárias, porque, de uma parte, não são necessárias
para chegar à perfeição, ainda que eminente, e, por outra, não existe
coisa que tanto abra a porta às ilusões diabólicas como estes desejos,
mesmo que aparentemente devotos. Não quer outra coisa o demônio
que ver uma alma desejosa de ver objetos sobrenaturais, para que se
lhe ponha diante mascarado com a gura de Jesus Cristo, da Virgem
Maria ou de algum Santo do paraíso. Não busca outra coisa o
maligno senão que uma alma esteja muito ansiosa de saber por
caminhos incomuns e extraordinários o êxito de seus negócios, sejam
temporais, sejam espirituais, para que comece a fazer-lhe sentir sua
voz misteriosa, e oferecer-se como o maestro de muitas falsidades. A
razão disso todos podem enxergar: é que estas cobiças imprudentes
convidam nossos inimigos a deixar-se ver, porque lhes dão esperança
de encontrar um bom acolhimento.
2. Não quero dizer com isto que não tenhamos que procurar com
todo o esforço em crer sempre mais no conhecimento de Deus, e de
in amar-nos sempre mais de seu santo amor. Nem tampouco digo que
não temos que desejar aquela contemplação que consiste em atos de
fé, iluminados pelos Dons do Espírito Santo, especialmente da
sabedoria e do entendimento, por meio dos quais a alma, perdendo o
discurso, ca atônita diante das divinas grandezas e ao mesmo tempo
toda in amada nas chamas de um suavíssimo amor. Em tudo isto há
muito de favor, e nada de perigo, porque esta é aquela melhor parte
que Cristo tanto elogiou em Madalena, e com a qual defendeu-a da
acusação de sua irmã. Esta é aquela preciosíssima jóia pela qual os
Santos têm instituído famílias religiosas, com um teor de vida todo
acomodado para consegui-la. Falo só daqueles favores que tenho
identi cado em todo este capítulo, a saber: visões,404 revelações,405
profecias,406 locuções407 e também certas graças muito
extraordinárias de êxtases e raptos, aos quais igualmente acrescento
certos fenômenos sensíveis, sobrenaturais, que talvez se façam aos
sentidos, como os odores408 e sabores.409 É dessas graças que falo
quando a rmo que não convém deseja-las; mas, antes, suplicar bem a
Deus que não nos conduza por este caminho, porque de uma parte são
coisas perigosas em que o demônio facilmente se introduz, e por outra
não são necessárias para adquirir a perfeição – ao contrário, tais
desejos, por si mesmos pouco compatíveis com a santa humildade,
opõem-se à perfeição que tem a humildade como fundamento. Digo
mais ainda: eles são contrários aos mesmos favores aspirados, porque
Deus não costuma fazer esta sorte de graças a quem as deseja, mas a
quem está muito longe de cobiçá-las.
3. Para con rmar isto, quero trazer uma a rmação de Santa Teresa,
cuja autoridade para mim tem o peso de muitas razões. Depois de ter
declarado um certo grau de contemplação, o qual, por outra parte,
não é daqueles mais perigosos, como aqueles já mencionados, põe-se a
falar com suas monjas desta maneira:
Logo querereis, minhas lhas, procurar ter esta oração, e tendes razão; pois –
como disse – a alma não acaba de entender as mercês que ali lhe faz o Senhor e o
amor com que a vai achegando mais a Si. Depois responde à sua pergunta deste
modo: Depois de fazermos o mesmo que fazem os das moradas anteriores (ou seja, o
exercício da meditação e das virtudes sólidas, dos quais havia falado na referida
mansão), humildade, humildade! Por ela se deixa render o Senhor a tudo quanto
Dele queremos. E a primeira coisa em que vereis se a tendes é em não pensar que
mereceis estas mercês e gostos do Senhor, nem que os haveis de ter em vossa vida.
Depois prossegue a Santa con rmando seu documento com seu próprio exemplo: O
que com verdade posso dizer-vos é que quando eu não a tinha, nem a sabia ainda por
experiência, não pensava em prová-la toda a minha vida, e com razão; que bastante
contento teria sido para mim o saber entender, por conjecturas, que em alguma coisa
agradava a Deus.410

Bebam desta sólida doutrina as pessoas dadas à oração, e estarão


seguras de que o inimigo não virá a enganá-las com falsas aparências;
ou se alguma vez tentar semelhantes fraudes, evadir-se-á
envergonhado e confuso.
4. O segundo meio é manifestar ao próprio Diretor o modo de sua
oração, especialmente qualquer coisa extraordinária que saia do
caminho trilhado, por onde costumam caminhar as almas devotas que
atendem à oração. Sobre este ponto não me detenho, porque já falei
dele nos capítulos precedentes. Só digo que, se outras pessoas
precisam revelar-se a seu confessor, estas têm uma necessidade muito
precisa, porque se encontram num estado perigosíssimo. Bem
encaminhados, podem fazer grandes progressos na perfeição; mas se
forem mal dirigidos, podem cair em grandes precipícios. Por isso que
não devem con ar-se de nenhuma maneira em si mesmos.
5. O terceiro meio, a meu parecer o mais seguro de todos, é que,
recebendo alguém visões, locuções, profecias e outras coisas
semelhantes, tome os efeitos bons e santos, que cam impressos na
alma por meio de tais graças; mas daquilo que foi entendido ou visto
se esvazie, e nem pense, nem faça re exão sobre ele; mas prossiga
caminhando pela senda das virtudes, com a guia da fé, como os
demais cristãos. Para entender bem a utilidade e segurança deste meio,
convém saber que, comunicando Deus a uma alma visões de objetos
celestiais, ou locuções internas, com a qual instrui ou agracia, não
concede tais dons, como muito bem observa São João da Cruz, porque
seja necessário para tornar perfeito e santo o ver e o sentir – ao
mesmo tempo, um ato só de fé divina, mesmo que obscuro, é
praticável por todos, com a divina graça, e mais seguro que cem visões
e cem revelações privadas. Deus reparte tais favores porque por meio
deles quer deixar impresso na alma grandes incentivos às verdadeiras
virtudes. Deixa nela, por exemplo, um claro conhecimento de sua
própria miséria, junto com uma grande humilhação interior. Deixa
nela o desapego das coisas terrenas e o amor às celestiais. Deixa nela o
desejo de morti cações e tormentos. Deixa nela um amor a Deus e às
virtudes; e nela deixa outros semelhantes efeitos que, sem dúvida
alguma, são santíssimos, com os quais se corrobora sua natural
fraqueza e se anima à perfeição. Se Deus, diz o citado Santo, não
tivesse estes ns, jamais procederia com as almas por meio de visões e
locuções sensíveis, porque, abstraídos aqueles santos efeitos, esta
sobrenatural sensibilidade serviria melhor como obstáculo do que
como estímulo no progresso do espírito, que sempre vai mais livre e
seguro sob a conduta da fé somente. A pessoa, pois, a quem Deus se
comunica com palavras, com visitas e com outros modos sensíveis,
tenha esta regra: abrace os sentimentos santos que restem esculpidos
na alma, depois dos tais favores, e valha-se deles para o seu
aproveitamento espiritual; porém, daquilo que foi visto ou entendido
se esvazie completamente, prosseguindo em regular-se na oração e
fora dela, com a luz da fé, como se jamais tivesse experimentado os
ditos fenômenos extraordinários.
6. A respeito, refere-se o Pe. Luís de La Puente, em terceira pessoa,
sobre algo que aconteceu com ele mesmo, como atesta e comprova
Cachupin411, seu biógrafo. Um religioso se encontrava grandemente
angustiado, temendo se as locuções que sentia em sua oração
procediam do bom ou de mau espírito; Deus, querendo sossegar seu
espírito, disse-lhe: Que farias tu se, achando-te a ito de fome, te fosse
apresentado diante de um ramo cheio de fruta madura? Respondeu
ele: Colheria a fruta e deixaria o ramo. Replicou o Senhor: Pois assim
tens de proceder com as palavras que sentes ser ditas ao teu coração;
toma o incentivo que te deixam ao bem; serve-te para o exercício das
virtudes a que te sentes movido, que este é o fruto, e sem fazer caso do
que ouvistes, vive quieto. E, em verdade, este é o único modo de se
assegurar nesta matéria, porque se o que aparece ou fala é o demônio,
procedendo a pessoa desta forma, não o pode causa algum dano, e se
for Deus, resulta-lhe todo aquele proveito espiritual que Ele pretendia
extrair, e que é o m de semelhantes comunicações.
7. Indo agora à prática deste meio, tão importante ao bom regime de
tais almas, faça o Diretor assim. No caso em que se apresente a seus
pés alguma pessoa a quem suceda ver personagens do céu, ou de ouvir
vozes internas, ou experimentar outras coisas extraordinárias referidas
acima, se ele não pode assegurar-se prudentemente da qualidade de
seu espírito, ou porque comece então a receber ditas graças, ou porque
não dê aqueles sinais do bom espírito que expus no presente capítulo,
ordene-lhe desde o princípio, que o rechace inteiramente, que distraia
sua mente e seu coração de tais objetos, protestando não querer
admitir semelhantes coisas, e lhe imponha afastar-se positivamente
com o sinal da Cruz, com a aspersão de água benta e com a invocação
de Jesus, Maria e de seus Santos Protetores. Em tal caso, se for o
demônio que veio a iludir-te, rapidamente se retirará, não podendo
sofrer o soberbo espírito o ver-se constantemente desprezado. Mas se
for Deus, não só não se afastará, como multiplicará Seus favores,
porque não desagradam ao Senhor estas repulsas, feitas por ordem de
seus ministros, mas, antes, Se compraz de ver em Sua querida alma a
obediência e sujeição a seus Diretores; gosta de ver que se reputa
indigna de tais favores, e sobretudo, é-Lhe muito agradável o
desapego que mostra de tais dons, por si mesmos muito suaves e
compatíveis com o amor-próprio. Entretanto, vai observando o
Diretor atentamente os efeitos que nela produzem os tais favores. Se
reconhecê-los como divinos e santos, com todos aqueles sinais de
perfeição que acima dissemos, mude de regra: imponha-lhe que não
rechace mais as ditas visitas, mas que as receba com aquela profunda
humildade que convém, porque na realidade não é lícito recusar as
visitas do Redentor, de Sua Santíssima Mãe e dos outros Santos, e
prudentemente se pode e deve crer que não haja ilusão, porque, com
este desprezo, far-se-ia injúria a pessoas tão excelsas. Ordene-lhe,
contudo, que, passada a visão ou locução, tome o fruto e deixe o
ramo; aplique-se ao conteúdo e deixe a capa; quero dizer, abrace
aquele vivo sentimento de seu nada, que Deus deixou como sinal de
Sua vinda, e se trate assim nos próximos passos. Siga aquele instinto
de morti cação, aquele desprezo pelo mundo, aquele desejo da
perfeição, aquele amor das virtudes que sente arder no coração, e
aproveita-se disso para seu crescimento espiritual. Mas sobre o que
viu ou entendeu, não pense mais, esqueça totalmente, e proceda em
suas orações, não com aqueles objetos diante dos olhos, mas com a
luz da fé, e que ela lhe sirva de guia para suas obras. Assim não
poderá errar.
8. Este regulamento é dado como seguro por grandes Santos e
mestres espirituais. Vejam sobre isso Jean Gerson, que disse em poucas
palavras o que me foi preciso dizer em muitas, para maior luz e
clareza desta doutrina.412
9. São João da Cruz, na obra chamada Subida ao Monte Carmelo, a
cada passo apregoa este prático documento. Entre muitos textos,
escolho um que contêm toda a dita doutrina:
Resta, diz, pois, saber que a alma não tem que se xar naquela capa da gura e do
objeto que sobrenaturalmente se lhe põe diante, ou seja, próximo ao sentido exterior,
como são as locuções e palavras ao ouvido, aparições de Santos, resplendores
formosos e belos aos olhos, odores aos narizes, gostos e suavidades ao paladar, e
outros deleites no tato, que costumam proceder do espírito. Nem tampouco tem de
xar a qualquer visão do sentido interior, qual seja, a imaginação interna; recusando-
as e rechaçando-as todas, tem que xar somente os olhos naquele bom espírito que
causam, procurando conservá-lo no agir e nos praticar o que puramente é do serviço
de Deus, sem prestar atenção naquelas representações, nem desejar algum gosto
sensível. Fazendo-o assim, vem-se a colher daquelas coisas somente aquilo que Deus
pretende e quer; isto é, o espírito de devoção, porque não as concede para outro m
principal, e se vem a deixar aquilo que o mesmo Deus deixaria de dar, se se pudesse
receber no espírito sem aquilo que temos dito ser o exercício e apreensão do
sentido.413

Veja-se aqui o justo, verdadeiro e reto regramento para proteger-se,


no momento da oração, contra toda a ilusão diabólica e extrair das
divinas comunicações o devido fruto. E aqui re ita o Diretor um dos
cuidados que deve ter relativamente a estas almas favorecidas de Deus,
e quiçá a mais importante, que estejam todas desapegadas dos favores
que Dele recebem, e também daqueles gostos e daquelas consolações e
suavidades que a eles vão unidos, e que se mantenham indiferentes
com uma total desapropriação, amando igualmente a beleza da luz,
que a obscuridade das trevas, a doçura da divina presença, que a
amargura de sua ausência. Isto, por uma parte, é o mais di cultoso e o
mais duro que a tais almas pode acontecer, porque é mais fácil
despegar-se dos prazeres da terra, que são insípidos, que das delícias
do céu, que são saborosíssimas; mas, por outra parte, é o mais
importante, porque Deus não quer que as almas se apeguem a seus
dons, mas tão-somente a Ele e à Sua vontade, e que estejam sempre
dispostas a carem privadas deles quando Sua Majestade tiver por
bem não mais comunicá-los. Para persuadir-lhes a importância deste
desapego, não quero trazer outra razão que a seguinte, que para mim
é de muita e cácia. O citado São João da Cruz, na obra chamada
Noite Escura, distingue duas espécies de puri cações passivas que
Deus costuma usar com as almas que querem ser elevadas a uma
extraordinária perfeição, e às vezes também a uma alta contemplação.
A uma, chama de noite ou purgação dos sentidos, e consiste num
somatório de penas sumamente dolorosas aos sentidos interiores e
exteriores do corpo, e esta é certamente atroz. A outra, chama de
noite ou purgação do espírito, e consiste numa multidão de penas
espirituais, sumamente a itivas das potências espirituais da alma, e é
tão severa que o Santo a compara às penas do purgatório; e a rma
que quem passou por esta prova não vai àquele cárcere, ou se detém
por pouco tempo, porque já teve o purgatório no purgatório desta
vida; porque na realidade esta purgação se faz por meio de certas
contemplações penais, semelhantes de alguma maneira àquelas que
sofrem as almas do purgatório. Agora, um dos ns principais que
Deus tem, diz o Santo, em pôr a alma querida na penosíssima prisão
destas segundas puri cações é arrancar até a raiz todo o apego e
dependência adquiridos nos favores divinos que no passado recebera,
para dispô-la àquela união com o mesmo Deus, que os místicos
chamam matrimonial414, e é a mais alta que se concede aos mortais na
terra, e a mais semelhante à união beatí ca que se dá às almas
gloriosas no céu. Disso há de inferir o Diretor duas verdades muito
pertinentes ao nosso propósito. A primeira, o quanto desagrada a
Deus o apego e afeição, de que as pessoas espirituais se deixam
prender, a Seus dons, e com penas tão atrozes procura arrancá-las das
almas mais queridas e amadas. A segunda, quanto impedimento
causam à união com Deus, pois a alma está tanto mais disposta a unir-
se com Ele por amor, quanto menos tem de tais afeições; e para chegar
à união mais favorecida e perfeita é necessário que todas lhe sejam
arrancadas desde a raiz pela força de tremendas a ições. Assim sendo,
procure o Diretor mantê-las sempre despojadas de tais favores, com
total indiferença a tudo o que Deus queira fazer delas.
CAPÍTULO XIV
Das ilusões diabólicas que acontecem na prática das virtudes e dos
vícios

§. I

1. O Angélico Doutor, explicando aquelas palavras do Apóstolo –


pois, se o próprio Satanás se trans gura em Anjo de luz – diz que o
demônio se trans gura de dois modos para enganar as pobres almas.
Algumas vezes, visivelmente, e isto sucede quando se apresenta aos
olhos do corpo ou da mente, em forma ou de anjo, ou de Santo, ou do
Rei, ou da Rainha dos Santos; e destas ilusões visíveis e patentes aos
sentidos já falamos. Outras vezes se trans gura invisivelmente, e isto
acontece quando ele não aparece; mas faz parecer boas aquelas coisas
que por si mesmas são más, pervertendo a fantasia, para que aprenda
de modo torcido, e in amando a concupiscência, para que busque o
mal sinistramente apreendido. Estas segundas ilusões, de que agora
brevemente falaremos, são as piores, porque contém positivamente o
mal; e se deve temer as primeiras também, aliás, porque encontrando
entrada, conduzem às segundas.
2. Santo Agostinho, falando das tentações de nosso inimigo, diz que
o maligno ora nos assalta abertamente como um leão, e ora nos põe,
de maneira oculta, armadilhas, como um dragão. Quando o demônio
nos investe com tentações impuras, ou nos excita no coração ódios
mortais, e nos estimula à vergonha, ou nos molesta com a inveja dos
bens alheios, ou nalmente com o desejo de propriedade de terceiros,
nos incita ao furto, à rapinagem e às injustiças, então vem nos assaltar
como inimigo aberto, à maneira de um leão sedento por nosso sangue.
Mas quando o demônio nos assalta disfarçado com a capa de alguma
virtude, como o fez com Jefté, a quem, segundo a informação de São
João Crisóstomo, induziu a matar a sua própria lha, por motivo de
religião; e como o fez Saul, a quem induziu a transgredir o
mandamento de Samuel, com o pretexto de aplacar a Deus no
sacrifício, então vem com engano, semelhante a um grande insidioso.
Conclui depois o Santo Doutor: que este nosso grande adversário
precisa ser mais temido quando vem disfarçado para nos enganar do
que quando vem aberto para nos matar, porque cada um sabe
defender-se de um inimigo furioso que vai ceifar a sua vida; mas não é
assim com um inimigo fraudulento, que se lhe põe diante com
semblante amigo, porque, não conhecendo seus embustes, é fácil
permanecer enganado por ele.
3. Acrescenta São Gregório uma limitação que é importante notar.
Diz que estas espécies de tentações atenuadas, que procedem pela
ilusão, os demônios geralmente não as praticam com os homens do
mundo, senão com pessoas devotas e religiosas, e traz a razão. Aos
homens mundanos, tal como àqueles que amam o vício, o demônio
lhes põe diante dos olhos as mesmas obras viciosas, porque para eles
esta é uma boa isca para levá-los ao mal. Mas às pessoas espirituais,
que se aborrecem com os vícios e amam a virtude, propõe-lhes as
ações viciosas com a coloração da virtude, para induzi-las àquele mal
com aparência de bem, e para enganá-las com uma mentirosa
semelhança de santidade. Àqueles, como se fosse a seus domésticos e
familiares, se apresenta com a sua própria cara; mas a estas, assim
como a um estranho e inimigo seu, se lhes dá a ver encoberto com o
embrulho honesto da virtude, para ser acolhido por elas, e deste
modo, com diversas artimanhas, prender uns e outros em sua rede.
4. Não discorda dele São Bernardo, explicando aquelas palavras do
Salmo – Tu que habitas sob a proteção do Altíssimo (...) Tu não
temerás (...) o mal (demônio) que grassa ao meio-dia –, diz ali que por
demônio, que aparece ao meio-dia, entende-se aqueles espíritos
enganadores, que desejando perverter algum homem perfeito e santo,
se lhes aparecem resplandecentes, como raios de insignes virtudes;
quero dizer: que lhe representam algum mal por debaixo de alguma
espécie de grande e prefeito bem; sabendo que a isto tal alma aspira
com ânsia, espera, por meio de tais ilusões, que ao correr pelo
caminho da perfeição acabe por tropeçar e cair.415
5. Re ita o Diretor, então, com quanta cautela deve proceder o
homem espiritual em suas operações, para não car iludido; com
quanta diligência deva re etir sobre a matéria de suas ações, se é por
todas as partes virtuosa, ou em alguma viciosa; se o m de seu agir é
reto ou torcido, se é sincero ou pálido, se se mescla com suas obras
algumas paixões que dê ao defeito cor de virtude; e sobretudo veja
com quanto cuidado deve examinar suas ações depois de tê-las feito,
para que, encontrando sombra de engano, se desengane, abra os olhos
e seja cauteloso no futuro, porque, na realidade, as tais ilusões, se não
se arrancam no começo, crescendo depois, vêm a ser irremediáveis.
Cornélio a Lápide, explicando aquelas palavras dos Cânticos –
Apanhai-nos as raposas, essas pequenas raposas que devastam nossas
vinhas, pois nossas vinhas estão em or –416 diz que estas pequenas
raposas, destruidoras de vinhas, em cuja casa quer o Divino Esposo
que vá a Sua Esposa, são certas pequenas ilusões fraudulentas, que às
vezes o mundo e a carne nos põe na mente, mas no mais das vezes o
demônio, encoberto com o véu da virtude, faz-nos parecer o mal como
bem. Em busca destas raposas quer Deus que andemos sempre com
um diligente exame para descobri-las e matá-las, enquanto são
pequenas, porque, tornando-se grandes, destruirão a vinha de nossa
alma.417

§. II

1. Aqui seria necessário que eu descesse ao particular, e


indicasse quais são aquelas ilusões com que o demônio dá ao
vício a cor da virtude, e à virtude a sombra de vício. Mas
confesso a verdade, que não me animo empreender semelhante
assunto, porque são tantas quantos são os atos das virtudes e os
atos dos vícios. Jean Gerson a rma que o inimigo urde ilusões em
tudo o que pensamos, em tudo o que falamos e em tudo o que
fazemos, especialmente àqueles que particularmente se têm
dedicado ao divino serviço.418E assinala que o faz conosco à
maneira de um traidor que se nge amigo, e está sempre cortês ao
nosso lado, mas com o m de encontrar ocasião oportuna de
ferir-nos e matar-nos. Suposto, pois, que não é possível contar
todas as ilusões com que estuda o inimigo para corromper nossas
ações, insinuarei somente algumas que nos dêem luz para
conhecer as outras, e nos façam circunspectos para afastá-las.
2. Costuma o demônio encobrir, ora a ira, ora a inveja, com um ngido manto de
zelo, para que as pessoas piedosas, enganadas com aquela decorosa vista, desabafem
sua paixão, e crendo que procedem bem, trabalhem perversamente. Um lho, por
exemplo, ou um criado, um súdito religioso, comete alguma notável falta. Em tal caso,
sucederá que o pai, ou o senhor, ou o superior, se in ame interiormente, prorrompa em
excessiva raiva, e dê também exteriormente claros indícios de suas perturbações. Ele crê
que está movido por um zelo de correção, mas na verdade está agitado de ímpeto da
paixão desordenada. Ao contrário, São Gregório diz que a raiva destes é pior que a
paixão daqueles que sem motivo legítimo algum se deixam levar pela ira. E dá a razão:
porque estes conhecem que agem mal e podem refrear-se, enquanto aqueles, enganados
de um falso zelo, crêem que agem retamente, e por isso soltam as rédeas da paixão, e
multiplicam desmedidamente suas culpas.419
3. Outras vezes esconde o inimigo, debaixo do mesmo véu de zelo, o rosto pálido da
inveja. Um dos casos em que sucede isso é aquele que indica o Santo Doutor já citado.
A rma que existem alguns que fazem obras de pouca monta, isto é, pequenas, mas com
muita inocência e retidão de seu coração. Existem outros que fazem obras grandes aos
olhos dos homens, mas não aos olhos de Deus, porque se consomem de inveja ao ver o
bem que os outros fazem.420 A ilusão aqui está em que, reconhecendo estes, nas obras
dos outros, alguma falta ou inconveniente, parece-lhes que se doem, e se lhes opõem
pelo zelo de suas faltas; mas na realidade, esta contrariedade e amargura nasce de os ver
ou melhores, ou mais estimados que eles, o que é uma verdadeira inveja, se bem que
pálida, porque, como ensina o mesmo Santo, não podemos invejar senão aqueles a
quem reputamos, em alguma coisa, melhor que nós.421
4. Grande ilusão do demônio é encobrir o amor carnal com a aparência de amor
espiritual; esta ilusão não é tão rara nos incautos, diz São Boaventura.422 Começam
duas pessoas devotas de sexo diverso, e não raras vezes de um mesmo sexo, a amar-se
mutuamente, por aquela bondade que em uma reconhece a outra, e pelo exercício da
virtude e devoção que ambas professam. Entretanto, deixa o demônio, disse o citado
Santo, que o efeito e a con ança transborde os limites da solidariedade e discrição, e
então lhes põe, entre os dois, a máscara, fazendo-lhes parecer que o amor é espiritual
como antes, quando já chegou a ser carnal, e se encontram tão freqüentemente
envolvidos com ele, como os pássaros com a cávea, sem mais poder-se separar. Explica
isto o Santo, com aquelas palavras de São João.423 Todo homem ao princípio põe na
mesa o vinho mais raro; e, depois, quando os convidados estão já embriagados, põe o
inferior, porque, estando então confusa a razão, não podem distinguir a qualidade dos
licores. Assim, o inimigo, ao princípio, propõe um afeto honesto às pessoas tímidas; faz
que se embriaguem com ele, na imoderação das conversações, para que não conheçam
depois o amor ou vicioso, ou imperfeito, mas sempre perigoso, que está aceso em seus
corações. E para que as pessoas espirituais penetrem ainda melhor a dita ilusão, façam
uma re exão sobre as palavras que Cristo disse aos Apóstolos, quando estava para
ausentar-se deles, e voltar a Seu Eterno Pai: é expediente que Eu vá, porque de outra
sorte não os visitará o Espírito Santo Consolador. Os sagrados intérpretes perguntam:
por que a presença de Cristo teria sido impedimento, aos Apóstolos, para o
recebimento do Divino Espírito, que se lhes havia sido prometido? E respondem que o
obstáculo não provém de Cristo, mas sim do apego e afeição que tinham os Apóstolos à
Santíssima Humanidade de Cristo, porque, tratando familiarmente com Ele, e vendo
Sua grande amabilidade e Seu modo tão doce e agradável, deixaram-se xar e apegar
demais, com um certo afeto natural: e isto era um empecilho à pura caridade que o
Espírito Santo havia de in amar em seus corações. Pois bem: se o apego, ainda que
honestíssimo, à Humanidade Santíssima de Jesus Cristo era obstáculo à caridade
perfeita, quanto mais não resfriará a caridade para com Deus o amor natural sensível às
pessoas do mundo, que nutre em seu coração? E, esfriando a caridade, não se in amará
sempre mais este amor natural, até degenerar num afeto muito prejudicial e danoso?
5. Não contente o Será co Doutor com advertir às pessoas virtuosas de uma ilusão
tão perniciosa, passa a dar-lhes alguns indícios para diferenciar o amor carnal do amor
santo, para que, se o demônio lhes representar trans gurados um no outro, saibam
diferi-los e sejam cautelosas, para não cair em seus laços. Sete são os indícios que o
Santo propõe, os quais exporei brevemente. Primeiro, o amor santo se deleita dos
discursos espirituais, úteis e edi cantes; e o profano, de raciocínios vãos, ligeiros e
afetuosos, com os quais se manifesta ao objeto amado. Segundo, o amor espiritual
procede sempre com a modéstia nos olhos, e com a decência no trato; o carnal é livre
no mirar, e atrevido em suas atitudes e movimentos. Terceiro, o amor bom pouco pensa
no amigo quando está longe; e se pensa nele na oração, só o é para encomendar-lhe a
Deus; o mal ou não tão bom, pensa sempre, mesmo no momento da oração; e ainda
quando devia estar só com Deus, está com a pessoa amada, e não pode afastá-la de sua
mente, sinal claro de que tem penetrado muito em seu coração. Quarto, o amor santo,
sendo universal e desapaixonado, deseja que o bem que quer ao amigo se o queiram
também outras pessoas; o amor carnal está cheio de turbulentos zelos, e se entristece de
que outros amem à pessoa amada, que tratem com ela, que entrem em sua graça, pelo
temor que tem de perdê-la. Quinto, o amor virtuoso sofre algum desvio da pessoa que
ama, e não se ofende; o amor imperfeito e vicioso não lhe pode tolerar, dá por raivas e
repreensões dos benefícios feitos, em contendas, em rompimentos ou quebras, que se
chama disputa dos amantes, se bem que depois toda a guerra vem a dar numa liga mais
estreita, não podendo viver sem a pessoa amada. Sexto, o amor espiritual não é amigo
de dádivas, e aqui traz São Boaventura aquele dito de São Jerônimo: Nos presentes
frequentes, laços, cintos, (...) doces, e nas suaves cartas de amor, amor santo não há. Ao
contrário, o amor mundano é amicíssimo de granjear o afeto dos outros com dons, de
manifestá-los com bilhetes carinhosos, e de conservar os presentes, como testemunhos
de sua correspondência. Sétimo, o amor santo se inclina a revelar seus defeitos a quem
ama, porque, assim como os aborrece em si mesmo, assim os aborrece na pessoa
amada; ao contrário, o amor profano esconde-os, desculpa-os, defende-os, e bajula a
pessoa amada, porque todo o seu afeto e desejo não consiste em querer o seu
verdadeiro bem, senão em não perder sua correspondência. Tenha o leitor diante dos
olhos todas estes sinais, e estará seguro que por mais que estude o demônio para
enganá-lo com vãs aparências, não poderá te alucinar a ponto de não poder distinguir o
amor carnal pelo que ele é em si.
6. Depois de ter revelado o Doutor Será co as ilusões do inimigo, em fazer parecer
bom o mau afeto, e depois de ter-nos dado os indícios para discerni-las, mostra-nos
também os graus pelos quais um amor espiritual e devoto pode passar a ser carnal, e,
por m, também desonesto e abominável; e, o que em princípio foi ilusão, com os
progressos vai parar numa total perdição. Vejo quão importante é esta doutrina para
fazer circunspectas as pessoas que professam virtude e devoção; mas porque vejo
também quão escabrosa é, não quero entrar no trabalho de individualizá-la, apenas
contentar-me com mencionar as palavras do Santo:

Quantos, sob o desejo de um amor espiritual, começam a freqüentar as


mulheres devotas? Que pureza de intenção desde o começo! Era tudo caridade
e devoção. Veio depois longas discussões, algumas vezes a respeito de Deus, às
vezes em Seu afeto, lealdade e amor, olhares recíprocos; trocaram pequenos
presentes, em memória desta afeição. E isso já é uma mistura de bem e mal,
consolação espiritual e genuína afeição com divertimentos desnecessários,
imprudente familiaridade e preocupação inútil do coração ao objeto amado.
Depois dos atos com boa aparência, mas que são ruins, obra nalmente com
manifesta iniqüidade sucedendo o ato anterior, e nisso são como a fruta.424

Não me delongo mais numa matéria que jamais tem m, podendo bastar as poucas
ilusões referidas para dar luz, com o m de desvelar outras inumeráveis com que se
esforçam nossos inimigos para nos levar ao mal com a aparência de bem.
§. III
1. Mas não quero deixar passar em branco as outras espécies de ilusões com que se
esforçam os malignos espíritos para apartar-nos do bem, com o pretexto de mal; porque
não só costumam os enganadores vestir o vício com o belo hábito da virtude, para
sgar os incautos, senão também esconder o formoso rosto da virtude com as sombras
do vício, para que, no lugar de amá-la, aborreçam-se e fujam dela. Entre milhares de
ilusões desta sorte, escolho algumas que sirvam de exemplo e de regra às pessoas
espirituais.
2. Sabe o demônio o quanto conduz aos progressos do espírito a penitência corporal;
sabe com quanto ardor tem sido sempre praticada pelos Santos, como meio
importantíssimo para subir ao cume da perfeição. Que faz, então, o maligno? Veste-a
com o manto da indiscrição, para que aos olhos de algumas pessoas espirituais
apareçam muito feias, e assim não sejam abraçadas por elas, senão antes afastadas
como danosas. Faz-lhes parecer indiscreto todo o rigor que praticam com seu corpo;
faz-lhes parecer que uma pequena disciplina lhes retire todas as forças; que uma hora de
cilício lhes vai debilitar o estômago; que um jejum lhes vai enfraquecer de modo que
não possam exercitar seus próprios ministérios. Daí que começam a olhar a penitência
como uma virtude nociva e impeditiva de um bem maior; voltam-lhe as costas,
prosseguindo em tratar com delicadeza seu corpo. Não se disse aqui que se deva
praticar uma penitência imoderada, que seja de notável prejuízo à saúde corporal; esta é
certamente repreensível. Diz-se somente que não é tal uma penitência moderada e
proporcionada ao sujeito. Esta tem aquela sombra de indiscrição com que a pinta o
demônio; antes, devem-na praticar as pessoas piedosas, para que, enfraquecendo um
pouco o atrevimento do corpo, tome vigor o espírito para contradizer a seus impulsos
irracionais, e fazê-lo caminhar retamente pela senda da virtude. É também necessária
para dar alguma satisfação a Deus das culpas próprias, porque diz São Gregório que
Deus não pedirá contas daqueles deleites pecaminosos que a pessoa tiver sufocado em si
mesma com uma espontânea penitência.425 Ao contrário, prossegue o Santo, no dia do
juízo castigará Deus severamente àquele que tiver perdoado os erros de seu corpo,
tratando-o brandamente: Após esse exame rigoroso, Deus punirá severamente aquele
que agora se trata com muita indulgência. Noteis aqui, pois, em que consiste a ilusão
do demônio; na penitência justa, reta e proporcionada faz aparecer aquela indiscrição
que se encontra na penitência excessiva e exorbitante, para afastar totalmente a alma
desta importantíssima virtude. Abra, pois, os olhos quem deseje aproveitar, e não se
deixe enganar.
3. Mas quando esta ilusão não menos perigosa não tem efeito, urde o inimigo outra
diversa, mas não menos perigosa. São Gregório, falando do jejum, que é uma parte da
penitência, descobre esta fraude da serpente infernal. Procura, diz, que alguns
presentemente satisfaçam a sua gula, mas com ânimo e desejo de morti cá-la depois no
futuro com rigorosos jejuns. Desta maneira, tem-nos quietos e iludidos, porque a não
morti cação da gula sempre segue, e o jejum idealizado para o futuro jamais chega, e
assim nunca executam a devida penitência.426 Ao contrário, assinala o grande
Pontí ce, os homens santos, em vez de ser enganados, enganam eles mesmos ao
demônio e à sua própria carne, porque a igem no momento presente, e com grande
rigor, seu corpo, e aquietam as queixas da carne rebelde, com a promessa de alimentá-la
no futuro. Mas, não perdoando jamais as acostumadas asperezas, nem concedendo à
carne o alívio prometido, continuam no mesmo teor de penitência, e vão fazendo
grandes progressos na vida espiritual, e desta maneira santamente iludem os seus
enganadores.
4. Sabe o demônio que não existe coisa que mais sirva para a extirpação dos defeitos
e acréscimo das virtudes do que o devoto exercício de meditar as eternas verdades;
porque à luz destas descobre a alma a grandeza dos bens celestiais, e se enamora deles,
e despreza a vaidade dos bens terrenos. Reconhece a beleza da virtude, e se lhe
enamora; e a malícia do vício, e se lhe aborrece. E, sobretudo, entende o grande mérito
que tem Deus para ser amado, e se dedica inteiramente à Sua Majestade. Compreende
também o pér do que da falta deste santo exercício provém ao mundo cristão toda a
sua ruína espiritual, como disse Jeremias.427 Por isso o iníquo maquina sobre este
exercício suas ilusões. Pinta-o com as cores de uma prática inútil, ociosa e infrutífera,
para que as pessoas religiosas percam toda a estima por ele, e o abandonem. Então lhes
sugere o inimigo que um tal exercício não é para elas; que perdem inutilmente o tempo;
que, no lugar de honrar a Deus, desonram-No; que seria melhor empregar-se em atos de
caridade, em proveito dos próximos, e em atos de Religião em honra a Deus, e outras
coisas semelhantes. E o pior é que muitos dão créditos a semelhantes ilusões, julgando
para tanto danoso, ou ao menos inútil, este frutuosíssimo modo de orar, e se afastam
dele. Abra, pois, os olhos, qualquer um que, iludido por estas falsas aparências, tem
tido por má, ou ao menos por não tão boa, uma prática tão santa e tão proveitosa.
Re ita que a meditação, ainda que árida e combatida por pensamentos vãos, nada
perde do fruto e nada se diminui o mérito, se a pessoa for cuidadosa em rechaçar os
pensamentos, e constante em sofrer a moléstia dessa secura. Tenha presente a doutrina
que o já referido São Gregório nos dá em seus Morais. Diz o Santo que, enquanto nós,
sobre o altar da oração, fazemos a Deus sacrifício de nosso coração, frequentemente
ocorre que se movam em nossa mente pensamentos impertinentes para retirar-nos o
fruto de tão grato sacrifício; mas que se nós fôssemos diligentes em desejá-lo, o
sacrifício restará intacto, como restou intacto o sacrifício de Abraão, quando baixavam
do alto aves de rapina para devorar a vítima, porque ele estava pronto para expulsá-las.
5. Acrescento que estas mesmas orações áridas e secas, de que o inimigo toma ocasião
de caluniar o uso santíssimo de meditar para enganar às pessoas débeis, costuma ser de
ordinário mais frutuosas que as orações doces e saborosas, porque nelas se exercitam
mais as verdadeiras virtudes. Nelas se pratica a constância em remover as distrações; a
humildade em reconhecer a própria miséria e em reputar-se um indigno dos divinos
favores; a conformidade com o querer divino em sujeitar-se às suas disposições em coisa
tão difícil; a delidade em não se retirar da presença de Deus, quando parece que o
mesmo Deus se esconde da alma. E, por isso, às pessoas que persistem constantes em tal
exercícios, apesar de qualquer desolação, costuma comunicar o Senhor ajudas
poderosíssimas, ainda que menos patentes, em prêmio por sua fortaleza, com as quais
fazem grandes progressos no caminho da perfeição cristã. O persistir largamente na
consideração das coisas divinas, quando a meditação deleita, é coisa fácil, e à qual se
acomoda o mais débil principiante, é coisa bem compatível com o amor próprio; mas o
durar largo tempo constante quando a meditação é penosa, é coisa muito difícil, e
própria apenas das pessoas adiantadas, porque é coisa que muito repugna à natureza.
Se o leitor, pois, tiver incorrido alguma vez nesta ilusão, retira pela meditação essa
máscara feia com que o demônio o trans gurou, e verá quão grande bem é ela em si
mesma.
6. Sabe o demônio que o retiro, a solidão, o silêncio, a modéstia dos olhos, a
seriedade do rosto, e a compostura no porte, são todas virtudes criadas pelo espírito do
Senhor, e o fazem crescer até a última perfeição. O invejoso tem visto nos desertos, nos
lugares ermos, nos claustros, milhares de almas boas que por estes meios têm subido ao
cume mais sublime da santidade. E por isso desacredita tão belas virtudes, e para fazê-
las aborrecíveis às pessoas devotas, cobre-as com um véu negro de melancolia. Faz-lhes
parecer a vida retirada como uma vida triste, cheia de hipocondria; o silêncio, como
uma triste melancolia; a modéstia e circunspecção no porte exterior como uma prisão
de todas as potências, capaz de se tornar um tuberculoso, a m de que tais pessoas,
atemorizadas com tais aparências, entreguem-se ao palavrório, à exibilidade, e se
derramem em coisas exteriores, com grave prejuízo de seu espírito. Se o leitor tiver sido
enganado de semelhantes ilusões, basta que dê uma olhada nos Romualdos428 que se
vêem nos lugares ermos, tão cheios de júbilos nos corações que consolam com seus
raciocínios a quantos conversam com eles; aos Franciscos de Paula429, que saem dos
claustros ermos e solitários tão cheios de alegria, que enchem dela a quem os olha, e de
outros inumeráveis que encontraram na solidão, no silêncio e na morti cação dos
sentidos um paraíso de contento. E entenda que o demônio é um falsário, que adultera
a moeda mais preciosa, para que não tenha saída entre as pessoas espirituais.
7. O contentamento que resulta do falar, do rir, do conversar e da liberdade que se
concede aos olhos, à língua e aos demais sentidos, é contentamento que nasce dos
mesmos sentidos e neles acaba, sem poder penetrar no profundo da alma para contentá-
la. Ao contrário, a alegria que resulta do silêncio, do retiro e da morti cação dos
sentidos é alegria que nasce da abundância da divina graça, a qual, derramando-se toda
na alma, penetra-a profundamente, até o íntimo, para deixá-la plenamente farta e
contente. Disse Cristo a seus discípulos: deixo-vos a paz, a quietude, o contentamento;
mas não aquela paz que dá o mundo a seus sequazes, que é toda exterior, mas a que Eu
dou a meus servos, por meio de Minha graça, é a que resido dentro, no fundo do
espírito, para enchê-los de contentamento. Daí verá o leitor em que se fundam as
ilusões do demônio, quando representa a vida morti cada tão diferente do que é em si.
8. Semelhantes ilusões podem acontecer relativamente a todo o ato de virtude, ao
qual o inimigo dê a aparência de vício, assim como podem acontecer com todo o ato de
vício, ao qual o enganador dá a semelhança de virtude, como mostrei no parágrafo
antecedente. Aliás, assim ocorre de ordinário, porque, disse Cornélio de Lápide, sobre a
interpretação daquelas palavras dos provérbios – Quem declara justo o ímpio e
perverso o justo, ambos desagradam ao Senhor –430 que esta é a propriedade dos
demônios: perverter obstinadamente a natureza de todas as virtudes e de todos os
vícios, tal como se alguém pusesse na cara de um homem a forma de besta, e na cara de
uma besta a forma de homem. E tudo isto o forjam nossos perseguidores, para fazer
com que se enganem os homens espirituais, abraçando o vício como virtude, e fugindo
da virtude como se fosse vício, de forma como até agora falamos431. Não se maravilhe,
pois, o leitor, se Inocêncio III432, explicando o terceiro Salmo penitencial, chega a dizer
que não é possível exprimir a multidão de ilusões a que estão expostas nossas
almas.433
9. Que remédio, pois, haverá para tantos enganos que contra nós maquinam nossos
inimigos? Eu não encontro outro a não ser que, fora da doutrina e experiência que uma
pessoa possa ter adquirido com os sucessos próprios e alheios, se encomende a Deus
para que lhe dê a luz do discernimento, para distinguir o verdadeiro bem do verdadeiro
mal, como conclui o Doutor Angélico, na explicação acima referida, sobre o texto do
Apóstolo – Satanás se trans gura em anjo de luz: É, portanto, muito difícil para o
homem cuidar de si mesmo; então ele deve recorrer à ajuda de Deus.434
CAPÍTULO XV
Expõem-se brevemente as características do espírito humano
1. Depois de já ter declarado quais são as características do espírito
de Deus, e quais as marcas do espírito diabólico, quais os modos com
que Aquele age para levar suavemente as almas ao bem, e quais as
astúcias e ilusões que este trama para afastá-las do bem e conduzi-las
ao mal, resta tratar do terceiro espírito que reina em nós, que é o
humano. Fá-lo-ei agora, mas com suma brevidade, porque este
espírito, tomado por si só, não é tão e caz como o divino, nem tão
ardiloso como o diabólico; e, assim, não tem necessidade de tão exatas
advertências. Ademais, o fato de se ter conhecido a qualidade dos
referidos espíritos serve de muita luz para entender a índole deste
terceiro.
2. O espírito humano, ora se une ao divino, ora ao diabólico. Une-se
com o divino quando é movido por Deus para agir sobrenatural e
santamente, e então vem a ser divino. Une-se com o espírito diabólico
quando é movido pelo demônio para ações pecaminosas e perversas:
une-se também com seus ministros, quando é incitado pela carne aos
prazeres do sentido, ou estimulado pelo mundo para a conquista das
honras, das dignidades, das pompas, das riquezas e dos
engrandecimentos terrenos, e então vem a ser diabólico. Do espírito
humano, tomado neste sentido, temos falado bastante em todo o
desenvolvimento deste opúsculo, e por isso não é necessário
acrescentar mais. No presente capítulo falamos do espírito humano
enquanto é distinto do divino e do diabólico, quer dizer, enquanto se
considera segundo seus próprios movimentos; isto é, enquanto é um
impulso que nasce da natureza humana. Se o impulso tem sua origem
da luz natural, da reta razão, o espírito humano é bom, mas se é
derivado da natureza viciada do pecado original, como de ordinário
costuma ocorrer, então o espírito humano é mau.
3. Confesso que não é fácil discernir em alguns dos nossos
movimentos interiores se são excitados por nossa própria natureza, ou
movidos por Deus, ou instigados pelo demônio, pela enorme
semelhança que podem ter tantos movimentos, ora com os impulsos
de um e ora com os do outro espírito. Contudo, podem ser
encontrados alguns indícios e sinais prováveis, porque nossa natureza
contaminada, quando é deixada a si mesma, inclina-se de ordinário
àquelas coisas que são cômodas e correspondentes ao corpo vil, ou
seja, às suas comodidades, aos seus gostos, às suas vantagens e à sua
reputação, e se aborrece das coisas que a isto são contrárias. E estas
inclinações ou movimentos imperfeitos e defeituosos se chamam
pontualmente impulsos humanos, e, com outro nome, chamam-se
também amor próprio. Tomás de Kempis435 os descreve
maravilhosamente em seu livro de ouro Imitação de Cristo:
A natureza é astuta; a muitos atrai, enreda e engana, e não tem outra coisa em
mira senão a si mesma. (...) A natureza tem horror à morti cação, não quer ser
oprimida, nem vencida, nem sujeita, nem submeter-se voluntariamente a outrem. (...)
A natureza trabalha por seu próprio interesse e só atenta no lucro que de outrem lhe
pode advir. (...) A natureza gosta de receber honras e homenagens. (...) A natureza
teme a confusão e desprezo. (...) A natureza aprecia a ociosidade e o bem-estar do
corpo. (...) A natureza gosta de possuir coisas esquisitas e lindas e aborrece as vis e
grosseiras. (...) A natureza cuida dos bens temporais, alegra-se por um lucro
pequeno, entristece-se por um prejuízo e irrita-se com uma palavrinha injuriosa. (...)
A natureza é cobiçosa, antes quer receber do que dar; gosta de ter coisas próprias e
particulares. (...) A natureza inclina-se para as criaturas, para a própria carne, para
as vaidades e passatempos. (...) A natureza gosta de ter qualquer consolação exterior
com que deleite os sentidos. (...) A natureza tudo faz para seu próprio interesse e
proveito, nada sabe fazer de graça, mas espera sempre, pelo bem que faz, receber
outro tanto ou melhor em elogios ou favores e deseja que se faça grande caso de seus
efeitos e dons. (...) A natureza preza-se de muitos amigos e parentes, ufana-se de sua
posição elevada e linhagem ilustre, procura agradar aos poderosos, lisonjeia os ricos,
aplaude os seus iguais. (...) A natureza logo se queixa da penúria e do trabalho. (...)
A natureza atribui tudo a si, em seu proveito peleja e por a. (...) A natureza deseja
saber segredos e ouvir novidades, quer exibir-se em público e experimentar muitas
coisas pelos sentidos; deseja ser conhecida e fazer aquilo donde lhe resultem louvor e
admiração. (...).436

4. Para compreender que coisa seja o espírito humano, basta


entender só este texto, no qual se exprimem quase todos as suas
características e propriedades. Nem eu penso em fazer outra coisa que
explicá-lo com brevidade, rogando, porém, ao leitor, que tenha sempre
diante dos olhos o que antes disse, a saber: que por espírito humano
não entende aqui um impulso que venha de Deus por inspiração, ou
do demônio por tentação, ou do mundo por atração, ou da carne por
estímulo dos sentidos, mas se entende apenas como uma inclinação
imperfeita da natureza debilitada pela culpa original, a qual reina
também nas pessoas que abominam o demônio, o mundo e a carne, e
professam virtude e devoção. Agora, este espírito defeituoso, diz o
autor, busca sempre a si mesmo e a si mesmo tem por m de suas
operações, porque pouco lhe importa o gosto, o agrado e a glória de
Deus, e só se inclina à própria comodidade, à própria satisfação, à
própria utilidade e à própria estima. Busca sempre a própria
comodidade, e o vemos todos os dias em muitas pessoas espirituais
que, havendo abandonado as grandes comodidades e suavidades do
século, fazem-se depois escravas de algumas comodidades vis que
podem obter ou na habitação, ou no leito, ou na vestimenta;
abominam a fadiga e amam demasiadamente o repouso, com o
pretexto de conservar a saúde e as forças para o serviço de Deus, não
se apercebendo, por outro lado, como há de servir para a glória de
Deus uma saúde que, mantendo-se toda intacta e vigorosa,
enfraquece-se numa quase contínua ociosidade.
5. Busca a própria satisfação. Assim ocorre bem freqüentemente, que
quem renunciou às delícias do mundo e aos prazeres da carne,
impelido depois deste espírito culpável, vai atrás de gostinhos e
satisfações mesquinhas, derramando-se em discursos inúteis e vãos,
em novidades, em falatórios e em curiosidades sobre os fatos alheios,
fomentando amizades compatíveis com o seu gênio, procurando
divertimentos e passatempos, não em razão da glória de Deus, ou por
necessidade, mas pelo m imperfeito de seu próprio gosto.
6. Busca utilidade própria. Quisera Deus não acontecesse que
algumas pessoas dedicadas aos claustros ou aos altares, movidas deste
espírito próprio, buscassem em suas fadigas, em seus estudos e em
suas ações, mesmo que seja para o benefício do próximo, o lucro e
ganância temporais, e aqueles ofícios abraçassem com mais vontade,
dos quais estivessem aguardando extrair, não a maior utilidade para o
próximo e a maior glória de Deus, senão seu maior enriquecimento.
Daí se segue que recebem nesta vida a recompensa que lhes estava
preparada na outra, caso tivessem exercitado seus empreendimentos
movidos por outro espírito.
7. Busca de estima. Aqui não se fala daquela grande ambição que
reina no coração dos mundanos, de conseguir postos, honras e
dignidades, e de adquirir um grande nome sobre a terra, porque isto se
reduz ao espírito do mundo. Fala-se somente de uma certa coceira de
reputação, que freqüentemente se mistura nas boas obras das pessoas
espirituais, para contaminá-las. Assim, existem pregadores que
anunciam a palavra de Deus para a saúde dos povos; mas desejam,
juntamente com a saúde dos outros, seu próprio aplauso, como se
reconhece em seus sermões, compostos com arte mais para ganhar seu
crédito que para ganhar almas a Deus. Assim, existem teólogos que se
consomem no estudo dos sagrados livros para comunicar aos outros
as notícias das coisas divinas, mas querem ensinar esta doutrina nas
cátedras mais honoráveis. E, geralmente falando, podemos dizer que
este amor à própria estima é um verme que rói quase todas as obras
boas das pessoas espirituais imperfeitas; porque em tudo o que fazem,
buscam de ordinário a própria reputação. Convém concluir, então,
que se o espírito do demônio, do mundo e da carne é a condenação
daqueles que se fazem escravos do vício, o espírito humano é a ruína
daqueles que professam a virtude.
8. Disto se segue que as pessoas dominadas deste espírito imperfeito
abominam a morti cação e a morte, porque a natureza dominante
não quer se reprimida, abatida e submetida; numa palavra, não quer
matar a si mesma com os golpes da morti cação. Tais são os que se
eximem das penitências, com o pretexto da saúde; dissimulam o apego
que têm à sua comodidade, satisfação, ganância e vaidade, com algum
motivo virtuoso de caridade, ou de zelo, ou outro similar; e deste
modo se lisonjeiam de agir com perfeição e virtude, em que pese uma
contínua aderência às suas imperfeitas inclinações. Mostram, contudo,
nas ocasiões, que sua natureza não só não está morta, mas nem
mesmo abatida com o exercício da santa morti cação, porque,
atingidos com uma palavrinha injuriosa, logo se ressentem. Se lhes
retiram alguma comodidade, alguma satisfação ou algum lucro,
imediatamente enchem o mundo de queixas. E, com efeito, de
nenhuma coisa tem os tais mais necessidade do que a morti cação,
que tanto abominam, porque só ela pode abater as inclinações de sua
natureza, segundo as quais se têm acostumado a viver. E só ela pode
limitá-los a agir unicamente segundo o ditame da divina graça.
§. II
1. Mas o pior é que este espírito danoso muitas vezes se disfarça com
capa de virtude, e nos faz parecer, a nossos olhos, e aos olhos dos
outros, o que não somos: porque, diz Ricardo de São Vitor, a natureza
leva consigo uma certa disposição natural a alguma virtude, para a
qual encontra menos impedimentos, e menor repugnância que em
outras; e, ao contrário, tem também todo o homem determinada
inépcia e indisposição para alguma outra virtude, cujo exercício se
faça mais duro e difícil. Disso provém que muitas vezes uma certa
prontidão ao bom parece devoção; mas, na realidade, não o é, porque
nasce do impulso da natureza, propensa a esta ou àquela ação por si
mesma boa e virtuosa. Desta doutrina conclui Ricardo que os
pensamentos, as palavras, os afetos e as obras das pessoas, imperfeitas
de ordinário, procedem deste princípio natural e baixo, e por isso deve
atribuir-se ao espírito humano.437
2. Ponhamos isto bem claro, com alguns exemplos que ocorrem a
cada dia. Encontrareis algumas pessoas imperfeitas ou principiantes
no bem, que são piedosas para correr aqui e acolá na ajuda dos
semelhantes; são de todo geniosas para encontrar meios com os quais
ajudar-lhes, e todo mãos para pô-los em execução. Delas vós tereis
sem dúvida um retrato de caridade e zelo; mas se pudésseis penetrar
no íntimo dos seus corações, perceberíeis que aquelas operações tão
solícitas são mais efeitos da natureza do que da graça, pois nascem, ou
em todo, ou ao menos em grande parte, de um temperamento ardente
e inquieto, que não sabe viver sem agir e sem embriagar-se em mil
negócios. Encontrareis pessoa tão quieta e pací ca, que por mais
aborrecida que seja não se ressente; parece que não sabe car com
raiva. Tereis dela uma idéia de mansidão, mas se examinais
diligentemente esta sua quietude percebereis que não nasce da graça,
que a refreia e modera em suas contrariedades, senão de um natural
eumático, frio e pesado, que não sabe in amar-se, e por não se
incomodar, não se enoja. Freqüentemente sucederá encontrar pessoas
que em suas orações estão cheias de ternuras, e talvez também se
desmanchem em lágrimas. Vós acreditareis que chove sobre elas o
maná do céu pela mão dos anjos, mas se examinais aquelas lágrimas
com o peso do santuário, notareis que a graça tem nelas a menor
parte, porque são efeitos de um natural sanguíneo, terno e afetuoso,
que ao imaginar qualquer objeto compassivo e amoroso, naturalmente
se comove. Assim, ocorrer-vos-á encontrardes igualmente alguns tão
atentos em suas orações que passam a hora inteira quase sem
distrações de pensamentos. Pensareis que já chegaram num profundo e
habitual recolhimento, e quem sabe a uma alta contemplação; mas vos
enganareis, porque aquela tão grande atenção talvez não provenha de
luz celestial que xe a mente em algum objeto divino, mas da forte
imaginação, e de um temperamento profundamente melancólico e
xo, que tem cravado o entendimento naqueles objetos que medita.
3. O mesmo haveis de dizer daquele que em alguns dias sente um
extraordinário fervor, e uma consolação bastante espiritual pela qual
se acredita cheio de Deus; mas o pobre homem se engana, porque esta
sua grande consolação é obra da natureza. Sabe que lhe aconteceu
algo muito próspero, e a ele muito agradável, pelo qual, dilatando o
apetite sensitivo, se tem enchido de muita alegria e deleite naturais; a
isto se tem acrescentado um pequeno início de devoção, que tem dado
certa cor e tinta de espiritualidade; assim é que todo o seu fervor se
reduz a um certo natural regozijo, tingido de devoção. Quereis ver o
quanto isto é verdadeiro? Fazeis que lhe ocorra alguma coisa muito
desagradável, e vereis desvanecida de um só golpe toda a consolação
de espírito, diminuído o fervor, e em seu lugar grande di culdade e
trabalho para elevar a mente a Deus. Ah! Quão fácil é confundir os
impulsos que dá Deus, com os que dá a natureza, e tomar por espírito
divino nosso espírito humano! Quão pobres somos! Ficaremos
corados no tribunal de Deus quando virmos que as ações que
acreditávamos ser pura prata de virtudes sobrenaturais,
substancialmente nada mais eram que escória vil de atos naturais, ou,
quando muito, uma mescla baixa de virtude e de natureza, e que,
quem sabe, contribuía mais à natureza que à virtude, como disse o
profeta Isaías: Tua prata converteu-se em escória, teu vinho misturou-
se com água.438
§. III
1. Mas se o diretor não quer errar no juízo que forma das virtudes
de seu penitente, observe com cuidado o m que o move quando as
pratica. Se o motivo que o incita ao exercício das virtudes e o
acompanha no progresso das obras é sobrenatural, como, por
exemplo, o gosto e glória de Deus, a imitação de Jesus Cristo, a
consecução dos bens eternos, e outros semelhantes, se deve crer que
seja movido pelo espírito divino, e que seus atos sejam santos e
meritórios. Mas se é induzido a agir por inclinação da natureza, e de
uma boa índole de que Deus lhe tem dotado, e por motivos humanos,
ainda que razoáveis, se pode justamente temer que seja movido pelo
espírito humano, ou ao menos que este se introduza muito na prática
de suas virtudes. Observe, além disso, com que disposição ca a
pessoa no caso de, por obediência, ou por outras justas razões, seja
impedida no exercício daquelas boas obras às quais está mais
inclinada. Se ela sente em seu interior grande repugnância e
contradição em deixá-las, e, quem sabe, apesar da obediência ou de
outros motivos racionais quer prosseguir com elas, é sinal de que as
tais obras, em tudo, ou ao menos principalmente, procedem do
instinto da natureza, que ela não sabe refrear, ou refreia com muita
di culdade. Mas se as deixa com paz e desprendimento é sinal de que
procedem da graça de Deus, a qual é plácida, quieta e indiferente em
seus movimentos. Note ainda se a virtude mais amada de seu discípulo
vai desacompanhada de todas as outras virtudes que devem
acompanhá-la, para que aquela proceda com o devido decoro, quero
dizer, com a devida perfeição, porque, faltando de todo este
acompanhamento, caria suspeito seu espírito, sendo próprio da
divina graça o mover nossos corações para o bem com toda a
coerência e no momento devido.
§. IV
1. Prossegue no citado texto Ricardo de São Vitor, e diz que o
espírito humano se mistura também nas obras das pessoas
devotíssimas, que costumam regular todos os seus atos com muita
perfeição, e ainda que não tenha força este espírito bastardo de pôr
tudo a perder e corromper suas boas operações, costuma, no entanto,
fazer com que saiam menos perfeitas. Assim, se um homem espiritual
é por natureza colérico, sente em seus atos de zelo uma certa
amargura e alteração de natureza; sendo eumático, procede muito
frio e remisso em suas exortações e correções; se é melancólico,
mostra-se pouco benigno nos atos de caridade; se é alegre, inclina-se à
dissolução em seu agir, ainda que virtuoso. Em suma, assim como o
licor toma algo da qualidade do vaso dentro do qual está guardado,
também as virtudes recebem freqüentemente alguma imperfeita
qualidade da natureza daqueles que a exercitam. É necessário, pois,
conclui Ricardo, que cada um, por mais avançado que esteja na
perfeição, atenda a morti car as más inclinações da própria
natureza.439
Veja, pois, o Diretor que este é um espírito maliciosíssimo, que, sob
o pretexto de serviço a Deus, busca-se sempre a si mesmo e à sua
natural satisfação. É também um espírito sutilíssimo, que, como
azeite, insinua-se em todos os atos das virtudes. Grande
mortificação será preciso para abatê-lo e vencê-lo. São Bernardo
traz a este propósito aquele dito do Sábio, que quem vence a si
mesmo é digno de maior estima que quem conquista cidades e se
faz dono delas, porque para assenhorear-se das cidades basta aquela
fortaleza que nos dá a natureza, mas para fazer-se um vencedor de
si mesmo é necessária uma virtude superior à natureza, que nos
venha do alto.440 Procure, pois, o Diretor que seus discípulos
atendam incansavelmente a uma contínua mortificação de suas
imperfeitas inclinações, já que não existe outro modo para vencer a
este espírito inimigo que temos dentro de nós. Reflita que o maior
inimigo das pessoas adiantadas no espírito não é o demônio, não é
o mundo, não é a carne, porque estes três adversários, ou já foram
vencidos, ou são combatidos por elas com grande fortaleza. Seu
maior inimigo é o espírito humano, que está coligado com o amor
próprio, e este, como eu já disse, não se pode jamais vencer sem
uma incessante mortificação da própria vontade.
§. V
1. Mas descendo ao particular sobre o prático regulamento deste
espírito humano, digo que três coisas ele pode nos pedir: as contrárias
à lei de Deus, e manifestamente pecaminosas; as pouco conformes à
divina lei, e por isso defeituosas; e, nalmente, aquelas necessárias à
conservação da nossa natureza. Se pedir coisas ilícitas, ainda que seja
em matéria ligeira, é necessário opor-se a ele com toda a força,
contradizendo-o, e também a si mesmo generosamente. Se pedir coisas
imperfeitas, por exemplo, divertimentos, conversações, alívios
supér uos, ou seja, não necessários para a vida, para a saúde e para o
exercício da pro ssão, é necessário morti cá-lo segundo as leis da
perfeição. Sei que estas recreações são o manjar das pessoas que se
encontram débeis e enfermas no espírito, segundo o dito do Apóstolo
– o outro, que é fraco na fé, só come legumes441; porque, estando
estas privadas das consolações que causa a graça nas almas puras, vão
apascentando seus tédios com estes consolos terrenos, como diz
Ricardo, explicando o citado texto:
O homem retira seu alimento da natureza, o que nos faz sentir mais conforto,
nutrindo-nos com alimentos cheios de doçura. O homem também retira seu alimento
de outras fontes acidentais, porque as coisas que sucedem com prosperidade nos
confortam. Ocorre que esse não é o alimento espiritual com o qual Jesus Cristo
alimenta seus eleitos. No entanto, na maioria das vezes o alimento ofertado é
imperfeito, é o legume dos fracos, segundo a palavra de São Paulo: o fraco come
legumes. Porque isto suaviza e cura a alma que sofre da doença da apatia e fala de
graça.

Contudo, as pessoas que seriamente atendem à consecução da


perfeição devem privar-se destes inúteis alívios, para dispor-se a
receber de Deus maior abundância de graça e bênçãos celestiais.
2. Mas quando pedir coisas como alimentos, roupas, cama e
divertimentos, necessárias à conservação da vida ou da saúde, ou ao
bom êxito da pro ssão, ou coisa que deseje a obediência ou a
conveniência e reta razão, convém condescender então à sua petição,
tomando dos tais alívios o que for conforme à necessidade e exigência
da natureza. Mas é importante que a pessoa espiritual nestes casos
reti que sua intenção, e proteste a Deus que toma aquele manjar,
aquele repouso, aquela recreação, não para satisfazer à sua natural
inclinação, mas somente para fazer Sua Santa Vontade; não por gosto,
mas para agradar a Sua Majestade; então, condescendendo, quanto à
obra, ao instinto da natureza, não aquiesce quanto ao afeto; com este,
porém, contradiga sempre a sua satisfação, e busque só a vontade a
agrado de Deus. Desta maneira, o espírito humano, ainda que
contentado, não lhe será um impedimento ao progresso espiritual.
Vejo que estas coisas são difíceis de executar-se; mas, apesar disso,
disse São Bernardo que chegam a ser praticadas por aqueles que se
apóiam na con ança em Deus, e recorrem a Ele pela graça de
conhecer e vencer este espírito próprio.
3. Entretanto, lembre-se o Diretor do que dissemos noutra parte; a
saber: que, chegando a seus pés alguma alma de espírito
extraordinário, não acredite muito facilmente; porém, não seja, por
outro lado, demasiadamente difícil em acreditar, porque, caindo num
ou noutro extremo, errará em seus juízos, e não terá boa conduta. Vá
com os pés de chumbo442 pelo caminho do meio; observe-o por
inteiro, examine diligentemente as coisas, e decida depois sobre a
qualidade do espírito, segundo as razões que dissemos nas várias
partes deste livro. Este é o modo de atingir a verdade, ou ao menos de
não andar longe dela. Não se afeiçoe em demasia por seus penitentes
se quer formar reto juízo de seus espíritos; porque a vontade leva
consigo o entendimento, para julgar conforme suas inclinações. Não
saia em busca de penitentes, e especialmente daqueles que Deus
conduz por caminhos extraordinários, mas abrace com espírito de
caridade aqueles que Deus lhe enviar. Assim estará mais seguro de ser
assistido por Deus, e de não ser enganado pelo amor próprio. Não
tenha ciúmes se acaso seus penitentes aconselharem-se com outros
confessores, porque a isto são às vezes inspirados por Deus, querendo
deles, por outros meios, algum conselho oportuno, que não lhes sabe
dar seu próprio Diretor. Antes, se são algumas almas contemplativas,
deve o mesmo procurar que sejam examinadas por pessoas piedosas,
doutas e discretas, não desejando con ar em si em coisas tão árduas e
tão perigosas. Especialmente, tenha freqüente recurso a Deus,
lembrando-se de que a luz do bom discernimento há de vir Dele.
4. En m, advirto que não permita a seus penitentes a leitura dos
livros místicos e diretivos, se não forem de sã doutrina relativamente
às máximas especulativas, e de solidíssimo e seguríssimo regulamento
relativamente à prática, porque, de outra sorte, poderia acontecer que,
alicerçando-se em alguma fonte corrompida, ao invés de extrair a
restauração e melhoria de seu espírito, absorvessem o veneno de
alguma má doutrina, que lhes desse a morte; e por isso lhes há de
assinalar os livros que precisam ler, especialmente às mulheres, que
são fáceis de enamorar-se com coisas esplêndidas e luminosas, e de
sonhar depois em suas orações mil doces enredos. Antes, se as tais
pessoas de fato forem conduzidas por Deus pelos caminhos
extraordinários, de nenhum modo deve permitir-lhes a leitura de tais
livros; deve dizer-lhes que quer ser para elas o livro vivo, pelo qual,
através do que escutarem, entenderão a qualidade de seus espíritos (ao
contrário dos livros mortos, pelos quais isto é feito por meio dos
olhos, mas com menos segurança), e o modo prático de regulá-los. E
que desta maneira quer proteger-se, e a eles também, de todo o engano
e falácia. Assim, com o guia desta e de diversas outras doutrinas
práticas que foram oferecidas no decorrer deste opúsculo, o Diretor
terá sucesso, como espero, em conduzir muitas almas à perfeição, e
com isso dará grande glória a Deus com suas fadigas, e receberá, a seu
tempo, no Céu, uma copiosa recompensa.
NOTAS DE RODAPÉ
1 Sumo Pontí ce, Papa Paulo VI: Audiência Geral – 16 de junho de 1971.
2 Discurso do Papa Bento XVI aos representantes da comunidade da Renovação Carismática
Católica, 31 de outubro de 2008.
3 Pr 16, 25.
4 Pr 2.
5 Pe. Cornélio de Lápide, s.j., também lho de Santo Inácio de Loyola, foi um exegeta bíblico
altamente erudito e perspicaz. Seus comentários são utilizados por todos aqueles que se
preocupam em bem ler e aprofundar as Sagradas Letras. Muitos santos e doutos usaram
esses comentários iluminados. Conta-se dele uma passagem no mínimo curiosa: depois de
requerer seu ingresso na ordem dos jesuítas, o pedido foi negado por ser de estatura baixa.
Foi-lhe então proposto que, caso soubesse recitar a Sagrada Escritura inteira, seria
admitido. Tal fato ocorreu. Ele nasceu em Bocholt, ainda hoje existente na Alemanha, em
1567, e morreu em Roma, no ano de 1637 – NT.
6 Cornel. in praed. Text.
7 1Ts 5, 21.
8 São Bernardo de Claraval nasceu na França, em Fontaines, certamente no ano de ١٠٩٠,
vindo a falecer em ١١٥٣. Aos 20 anos decidiu entrar para a Ordem Cister. Mais tarde, foi
enviado por São Estevão de Harding para fundar o mosteiro de Claraval. De seus escritos,
todos impressionantes, a começar por aquele que é sempre citado pelo Pe. Scaramelli
(Tratado sobre o discernimento dos espíritos), podemos também destacar o Tratado da
consideração ao Papa Eugênio III, pouco falado, mas que, como nos disse o Papa Emérito
Bento XVI, segue sendo uma leitura para os Papas de todos os tempos (Maestros e místicas
medievales, Editorial Ciudad Nueva, Madri, p. 78). Foi declarado Doutro da Santa Igreja –
NT.
9 Bern. serm. 49 in Cant.
10 Discrição e discernimento aqui são usados, pelo Pe. Scaramelli, como sinônimos – NT.
11 Id. in Circumc. Domini, serm. 3
12 Nasceu no Egito, pelos ns do século III, e morreu em 356. Santo extraordinário, levou
uma vida ascética e retirada rigorosíssima, alimentando-se, no mais das vezes, com as
comidas que as pessoas lançavam para a sua caverna. Quebrou o preceito de solidão
quando então resolveu fundar um mosteiro. Ao que se sabe, o Imperador Constantino ia
sempre ter com ele vários conselhos – NT
13 Assim caram conhecidos os Padres ascetas e de rigorosa vida espiritual que viviam no
deserto, especialmente o deserto da Nítria, Egito. Ali conviveram com Santo Antônio
Abade, e eles o consideraram seu pai espiritual. Talvez não fosse demais a rmar que ali já
se tinha a prática da direção espiritual – NT.
14 Cassian. collat. 2, cap. 4.
15 Laur. Just. Inter. Con . c. II
16 S. Bern. serm. 2, in Circumc. Dom.
17 1Jo 4, 1.
18 Nascido em Tagaste, na província de Hipona, em África (no século IV, d.C.). Doutor da
Igreja, o Santo Padre Emérito, Bento XVI, chama-o de o maior Padre da Igreja latina: (…)
Santo Agostinho: homem de paixão e de fé, de grande inteligência e incansável solicitude
pastoral, este grande santo e doutor da Igreja é muito conhecido, pelo menos de fama,
também por quem ignora o cristianismo ou não tem familiaridade com ele, porque deixou
uma marca muito profunda na vida cultural do Ocidente e de todo o mundo. Pelo seu
singular relevo, Santo Agostinho teve uma in uência vastíssima, e poder-se-ia a rmar, por
um lado, que todas as estradas da literatura latina cristã levam a Hipona (hoje Annaba, à
beira-mar da Argélia), o lugar onde era Bispo e, por outro, que desta cidade da África
romana, da qual Agostinho foi Bispo de 395 até à morte em 430, se rami cam muitas
outras estradas do cristianismo sucessivo e da própria cultura ocidental (in Audiência geral,
09 de janeiro de 2008) – NT.
19 August. de Verb. Apost. serm. 32.
20 Gn 8, 1.
21 1 Rs 15, 5 (3º. Reis).
22 Famosa nas histórias dos povos orientais, consta na Sagrada Escritura. Ao que se sabe,
governou o Reino de Sabá, o mais poderoso da península arábica. Muito provavelmente
viveu no século X A/ C. – NT.
23 Lc 9, 55.
24 1Cor 2, 12.
25 1Jo 4, 1.
26 Bern. Serm. Sept. spirit.
27 Sl 114.
28 Zc 11, 3.
29 Sl 77, 5.
30 Cl 2, 18.
31 1Cor 2, 12.
32 1Cor 2, 11.
33 Zc 4, 1.
34 Bern. serm. de sept. Spir.
35 Assim é conhecido São Bernardo – cf. Carta enc. Doctor melli uus, do Sumo Pontí ce Pio
XII, sobre o VIII centenário da morte do Santo de Claraval, na qual recorda os principais
ensinamentos e os mais belos textos do último dos santos Padres, mas certamente não
inferior aos primeiros – NT.
36 Bern. in Cant., serm. 105.
37 Cassian. Collat. 1. cap. 19.
38 Quanto à sua natureza, é uma qualidade sobrenatural inerente à nossa alma que nos dá
uma participação física e formal – ainda que acidental e análoga – da natureza mesma de
Deus (Fr. Antoio Royo Marín, Teologia de la perfección Cristiana, Madrid: BAC, p. 115).
É o princípio formal da nossa vida sobrenatural, aplicada à alma. É também um dom do
Espírito Santo, em seu sentido próprio – NT.
39 Em sentido próprio, um dom do Espírito Santo. São três, as virtudes teologias: a Caridade,
a Fé e a Esperança. A virtude teologal e as virtudes morais constituem as espécies de
virtudes infusas. A graça santi cante é o elemento estático, e as virtudes infusas os
elementos dinâmicos. São sempre infundidas por Deus em nossa alma. Falando somente
das virtudes teologais, por de nição são hábitos operativos infundidos por Deus nas
potências da alma para dispô-las a agir segundo o ditame da razão iluminada pela fé (Fr.
Antonio Royo Marín, op. cit., p. 127) – NT.
40 As virtudes morais infusas (é bom acrescentar aqui o termo “infusas”, porque também
existem as virtudes morais adquiridas), segundo o Fr. A. Royo Marín, são hábitos que
dispõem as potências do homem para seguir o ditame da razão iluminada pela fé, com
relação aos meios que conduzem ao m sobrenatural (op. cit., p. 135) – NT.
41 Os dons do Espírito Santo possuem três sentidos: amplíssimo, amplo e próprio. Em
sentido próprio, os dons se subdividem em: graça santi cante, virtudes teologais e morais
infusas, e os sete dons do Espírito Santo. Estes últimos constituem um sentido ainda mais
próprio, porque são os dons strictu sensu e formalíssimos. Certamente o Fr. Scaramelli se
refere, neste particular, a eles, ou seja, aos sete dons. Segundo o Fr. Royo Marín, tais dons
são hábitos sobrenaturais infundidos por Deus nas potências da alma para receber e
secundar com facilidade as inspirações do próprio Espírito Santo ao modo divino e sobre-
humano (op. cit., p. 154) – NT.
42 Basicamente, estas Graças, chamadas de atuais, são aquelas que dispõem ou movem à
maneira de uma qualidade uida e transeunte com o m agir ou receber algo ordenado à
vida eterna (Fr. Royo Marín, op. cit., p. 183) – NT.
43 Ez 1, 12.
44 São Roberto Bellarmino, jesuíta, doutor e Príncipe da Santa Igreja, nascido em
Montepulciano, na Itália (século XVI). Avaliou alguns escritos de Galileu Galilei e, numa
epístola admirável, ensinou-nos lições irretocáveis sobre os verdadeiros limites do método
cientí co. Um dos homens mais injustiçados na história humana – NT.
45 Bellarm. de Gemit. columb. cap. 12.
46 O Fr. Scaramelli se refere a Haimon de Auxerre, teólogo do século IX. O lugar de seu
nascimento é incerto. Tornou-se bispo de Halberstadt, na Saxônia. Adotou uma vida
monástica, aceitando as regras de São Bento. Seus escritos, inclusive os comentários às
Epístolas de São Paulo, gozaram, e ainda gozam, de grande reputação – NT.
47 Haymon in Epist. ad Eph. cap. 6.
48 S. Thom. 1. part. quaest. 114 art. 1.
49 Santo Alberto Magno, dominicano, doutor da Santa Igreja. Considerado como doctor
universalis e doctor expertus. Viveu no século XIII, d. C. Nasceu no ducado da Baviera.
Ensinou a São Tomás de Aquino, na Universidade de Paris – NT.
50 Alguns teólogos antigos (Orígenes, São Gregório de Nisa e João Cassiano), e agora, como
nos atesta o Fr. Scaramelli, o próprio Santo Alberto Magno, defendiam a opinião de que,
ao lado do nosso anjo da guarda, existiria um demônio, desde o nascimento, para cada um
de nós, a m de nos incitar ao mal. Na escolástica isso atraiu homens como Pedro
Lombardo, e entre os escritores modernos, também defendiam tal ideia o prodigioso Pe.
Francisco Suárez. Como nos explica o Pe. Ludwig Ott, tal posição atenta contra o princípio
da bondade e misericórdia de Deus, além de não encontrar base probante na Revelação
Pública (Manual de teología dogmática, Barcelona, Editorial Herder, p. 204) – NT.
51 Realmente, é isso o que nos ensina a tradição tomista. O intelecto e a vontade, que são as
faculdades superiores do conhecimento, estão absolutamente fechadas para as imediatas
intervenções dos espíritos malignos. São redutos que só Deus pode acessar diretamente.
Mas nada impede, dada a união tão profunda entre a alma e o corpo, no ser humano, que
o demônio, afetando as faculdades sensitivas, às quais têm acesso direto, possa também
provocar, mas agora de modo indireto, certas confusões naquelas faculdades superiores –
NT.
52 Trata-se das chamadas espécies inteligíveis. O intelecto agente faz surgir, das
representações sensíveis, o universal, formando então as espécies inteligíveis do objeto
analisado. É justamente sobre estas últimas que se refere o Pe. Scaramelli, porque o
demônio não tem acesso direto ao nosso entendimento, mas às nossas faculdades sensitivas,
provocando nelas muitas representações sensíveis (fantasmas), falsas ou aparentes, capazes
de conduzir o intelecto ao erro, pela má formação de espécies inteligíveis – NT.
53 Como uma faculdade sensitiva que é, o espírito das trevas tem acesso direto a ela – NT.
54 S. Bern. de Sept. Spirit.
55 Bern. serm. de Sept. spir.
56 São Felipe Neri, nascido no século XVI, na Itália. O Papa Paulo V o beati cou no século
XVII, tendo sido canonizado em 26 de maio de 1622, pelo Papa Gregório XV. De sua alma
generosa, sabemos coisas extraordinárias: chegou ao terceiro grau do chamado “incêndio
de amor”, por exemplo, provocando queimaduras em suas roupas e até mesmo o
deslocamento de alguns ossos da costela para acomodar seu coração, que havia aumentado
de tamanho por ocasião de Pentecostes. Sabemos que seu amor era tão in amado pela
Graça Divina que os tremores de seu interior faziam-se sentir no exterior, em objetos
próximos, em sua cama, e há relatos que atestam que por vezes ocorriam até mesmo certos
abalos na própria residência onde moravam (cf. Monsenhor J. Ribet, La mystique divine
distingue des contrefaçons daboliques et des analogies humaines, vol. II, Paris: Librairie Ch.
Poussielgue, 1895, pp. 474-476) – NT.
57 1Cor 12, 10
58 Falar sobre as graças divinas é muito complexo. Mas aqui destacamos que, dentre suas
várias divisões, há uma feita pelo Doutor Angélico que ressalta o m a que se destinam: as
graças podem ser gratum faciens e gratis dada. As primeiras têm como m a união do
homem com Deus, restabelecendo a amizade sobrenatural com Deus, e dirigem-se então
mais propriamente ao aproveitamento daquele que as recebe. As segundas se destinam não
exatamente para a santi cação do agraciado, mas para o aproveitamento alheio, para a
utilidade espiritual do próximo (cf. Fr. A. Royo Marín, op. cit., p. 887) – NT.
59 S. Thom. 1. 2 quaest. 111. art. 4
60 Este grifo foi feito pelo próprio autor no texto – NT.
61 1Cor 14, 37.
62 O leitor então deve entender que, para o Pe. Scaramelli, existem no mínimo três graus, por
assim dizer, de graças que são infundidas para se obter três graus correspondentes de
discernimento dos espíritos. No primeiro, aquele que foi de nido por Santo Tomás de
Aquino, a pessoa recebe luz extraordinária altíssima, a ponto de não lhe ser necessário ter
contato com nenhum fato manifesto, ou já revelado. Apenas a presença física da pessoa faz
com que se possa saber quais os espíritos que a animam. No segundo tipo de discernimento
há também uma luz extraordinária do Espírito Santo, mas não tão intensa, e por isso
mesmo só capacita a pessoa para discernir os espíritos desde que o espectador fale algo ou
expresse alguma coisa. Então, sempre será necessária a manifestação para depois ocorrer o
discernimento. Segundo o Pe. Scaramelli, é justamente a este fenômeno que se referia São
Paulo. O terceiro tipo é aquele que se consegue, com as próprias forças, sem prescindir das
luzes, mas agora menos intensas ainda, do Espírito Santo, para desvendar as causas e os
espíritos por trás das ações e palavras daquele que fala ou age. O Pe. Scaramelli passará a
desenvolver este último tipo de discernimento em toda a obra que segue, porque seu intuito
é o de nos dar as regras seguras pelas quais, com o auxílio de uma luz, ainda que menos
intensa, do Espírito Santo, possamos chegar, por nossa própria indústria e força, a conhecer
quem nos move de verdade, ou quem move os dirigidos e penitentes que procuram a
direção espiritual ou a con ssão sacramental – NT.
63 Bern. in Cant. serm. 32
64 Gers. de Prob. Spir.
65 Príncipe da Igreja, teólogo e chanceler da Universidade de Paris, nascido na França, século
XIV. Contribuiu fortemente para remediar os intensos movimentos que começavam a
surgir contra o Papa Bento XIII dentro da própria Universidade de Paris, exigindo de todos
os alunos e mestres a mais estrita delidade papal – NT.
66 É o homem que discerne. Preferimos o termo original, que é “dell’ Uomo discreto”,
também traduzido ao pé da letra pela edição francesa e espanhola. – NT.
67 Frei Francisco Suárez, s.j., nascido na Espanha e falecido em Portugal, séculos XVI-XVII.
Considerado, junto com o Frei Francisco da Vitória, como um dos fundadores do Direito
Internacional. Mereceu o título de doutor exímio, tendo em vista o teor especulativo e
profundo de suas obras – NT.
68 Suar. De Grat. tom. I. part. I, Prov. 3. cap. 6, núm. 43.
69 É um título atribuído a Santo Tomás de Aquino – NT.
70 São Gregório Magno, Sumo Pontí ce da Santa Igreja, da Ordem de São Bento, viveu no
século VI. Logo após a sua morte, foi canonizado, tal a evidência de suas obras e virtudes.
Considerado um dos doutores da Santa Igreja – NT.
71 Greg. in Ezech. hom. I, Ricard. in Cant. part. 2. cap. 33. [Ricardo de São Vitor foi um
frade da Ordem dos Cônegos Regulares de Santo Agostinho que viveu no século XII. Foi
prior da Abadia de São Vitor, que pertencia aos agostinianos, em Paris. Foi discípulo de
Hugo de São Vitor. Deles, disse o Papa Bento XVI: Queridos amigos, autores como Hugo e
Ricardo de São Vitor elevam nossa alma à contemplação das realidades divinas (Maestros e
místicas medievales, Madrid, Editorial Ciudad Nova, 2011, p. 111) – NT.
72 S. Bernard. serm. 17. In Cant.
73 S. Gregor. Dial. lib. 4. cap. 48.
74 Gers. tract. de Prob. spirit.
75 Santa Teresa de Jesus, ou de Ávila, mística extraordinária, Doutora da Santa Igreja, viveu
no século XVI na Espanha. Sua vida foi escrita por seu confessor, o Pe. F. Ribera, cujo livro
é citado pelo Pe. Scaramelli na nota seguinte. Para uma noção introdutório à sua doutrina
mística, ver Pe. Royo Marín, Doctoras de la Iglesia, Madrid, BAC, 2012, pp. 09-85 – NT.
76 P. Ribera, vit. S. Ther. 1. 4. cap. 26.
77 Suar. loc. cit. núm. 44.
78 1Cor 14, 37.
79 1Cor 2, 15.
80 1Cor 2, 10.
81 1Cor 2, 14.
82 Doutor da Santa Igreja, também foi confessor e produziu a tradução da Sagrada Escritura
para o Latim, conhecida como Vulgata. Viveu no século IV, e teria nascido na província
romana chamada Dalmácia – NT.
83 Hieronym. in. cap. 3. Isai.
84 Freira carmelita que atingiu uma união mística elevadíssima. Viveu na Itália do século
XVI. Foi beati cada pelo Papa Urbano VIII e canonizada pelo Papa Clemente IX. Foi uma
das Santa estigmatizadas – cf. livro do médico dr. Imbert-Gourbeyre, La stigmatisation,
Grenoble, Editions Jérôme Millon, 1996, pp. 216 e segs. – NT.
85 Pertencente à Ordem Terceira dominicana, proclamada Doutora da Igreja. Nasceu na
Itália e ali viveu no século XIV. Teve importante participação no papado de Gregório XI.
Também possuidora dos estigmas, cf. dr. I.-Gourbeyre, op. cit., pp. 113 e segs. – NT.
86 Beato Fr. Raimundo de Cápua, o.p., confessor e diretor espiritual de Santa Catarina de
Sena. Viveu na Itália, mesma época de Santa Catarina de Sena. O Papa Leão XIII o
beati cou – NT.
87 Nasceu na Itália, século XVI. Tornou frade capuchinho. Apesar de sua singeleza cognitiva,
seu conhecimento de teologia era muito elevado, certamente pela ciência infusa. Não só:
por sua entrega generosa a Deus, pôde experimentar o fenômeno da levitação, comprovado
e visto por inúmeras pessoas de seu tempo, inclusive pelo Papa Urbano VIII e o príncipe
protestante João Frederico, duque de Brunswick, que não só se converteu ao catolicismo,
após ver com os próprios olhos a elevação, como se tornou frade franciscano – cf. Fr. A.
Royo Marín, op. cit. p. 949 – NT.
88 1Jo 4, 1.
89 1Ts 5, 21.
90 Mt 7, 15.
91 Suar. loc. cit. n. 40.
92 S. Thom. 1. 2. q. 76. a. 3.
93 Aug. I. de Perf. Just. cap. 6.
94 S. Joan. Chris. h. 44. in Matth [São João Crisóstomo nasceu em Antioquia e ali viveu no
século IV, vindo a falecer em outra região, chamada Comana Pôntica, durante seu exílio,
imposto pela imperatriz Eudóxia. Tornou-se Arcebispo de Constantinopla, e a Santa Igreja
o proclamou Doutor – NT].
95 Foi um discípulo de São Paulo, tornando-se Bispo de Atenas. Foi mártir da Fé. Nasceu e
viveu em Atenas no século I. Alguns livros místicos foram atribuídos a ele, mas
posteriormente, com alguns estudos, foi visto que a tese não se sustentava. Passaram a
atribuir tais livros a um autor bizantino, e por falta de um nome melhor, chamaram-no de
Pseudo-Dionísio Areopagita – NT.
96 Sb 9, 13.
97 Pr 16, 2.
98 Nascido no século XIV (1381) e falecido no século XV (1456). Foi Bispo de Veneza.
Pertenceu à Congregação dos Cônegos de São Jorge de Alga. Foi canonizado pelo Papa
Alexandre VIII – NT.
99 S. Laur. Just. serm. Pentec. sub. ne.
100 Ib. n. 6.
101 2. Paralip. 20. 12.
102 Grande místico e Doutor da Santa Igreja. Carmelitano, nasceu no século XVI, seus
escritos místicos ainda hoje exercem enorme in uência na vida espiritual da Santa Igreja –
NT.
103 Trident. ses. 6. c. 11 – realizado no século XVI, foi convocado pelo Papa Paulo III. O
momento era muito propício, porque os primeiros passos da reforma protestante estavam
sendo dados. Deixou-nos os fundamentos da nossa Santa Fé – NT.
104 Hugo de São Vitor de Instit. Novit. cap. 10 [Purpurado da Santa Igreja, pertencente à
ordem dos cônegos regrantes de Santo Agostinho, grande teólogo e místico do século XII.
Nascido sob a égide do Sacro Império Romano-Germânico, atuou ativamente na Abadia de
São Vitor, onde foi mestre e teve como aluno Ricardo de São Vitor – NT].
105 Os 4, 6.
106 Corn. 16.
107 August. lib. de cuant. anim. cap. 14.
108 Gers. de Prob. spir.
109 Ecle 31, 1-8.
110 S. Greg. Mor. 1. 5. Cap. 27.
111 Ricar. de S. Vic. de Prep. ad contempl. cap. 97.
112 Ecl 34, 9.
113 Jo 4, 6.
114 Pr 3, 5.
115 Jó 17, 10.
116 S. Greg. Mor. 13. cap. 14.
117 Malach. 3. 3.
118 Corn. Ibid.
119 S. Bernard. de Consider. lib. 4. In med.
120 São Bernardo se refere a ele no mesmo livro citado pelo Pe. Scaramelli na nota anterior,
livro 4, capítulo V, § 14. Certamente se refere a Gaufrido, bispo carnotense, que foi
enviado pelo Papa Inocêncio, como legado seu, a Aquitânia, para tentar desfazer alguns
problemas criados por Guilherme X, Duque de Aquitânia, por ocasião de uma disputa
papal entre o verdadeiro Papa, Inocêncio II, e o autodeclarado e antipapa Anacleto II. São
Bernardo de Claraval viajou com o referido bispo e, ao que se sabe, convence Guilherme a
aceitar a autoridade do Papa legítimo – NT.
121 Pe. Claude Lacroix, s.j., nasceu no século XVII e morreu no século XVIII. Sua obra mais
conhecida é justamente esta citada pelo Pe. Scaramelli, com 8 volumes, no original – NT.
122 Claud. Lacr. Theol. Mor. 1. 6. p. 2. núm. 1, 787.
123 Frei Ludovico Blosio, da Ordem de São Bento, nasceu na Bélgica, século XVI, ali se
tornando monge – NT.
124 Blos. Monil. spir.
125 Jl 2, 18.
126 1Ts 5, 19
127 Professor e Diretor do seminário de Duay. Nascido Gorcum, século XVII, Holanda
Meridional. De suas obras, as principais são indubitavelmente os comentários às Epístolas
de São Paulo, que constituem fontes tradicionais da exegese Bíblica – NT.
128 Estius in textu.
129 S. Thom. 2. 1. q. 74. art. 6. ad. 3.
130 Js 5, 13-14.
131 S. Gregor. Homil. 1. in Ezech.
132 Nascido no século IV, numa família católica de ascendência gálica. Tornou-se bispo de
Mediolano (hoje Milão), combatendo fortemente a heresia ariana. Foi declarado Doutor da
Santa Igreja – NT.
133 1Rs 17.
134 S. Ambr. 1. 1. de O c. c. 8.
135 Mt 7, 17-18.
136 S. Aug. in Psalm. 145.
137 Jr 15, 19.
138 Gers. de Prob. 1. pir.
139 Jo 14, 26.
140 Jo 16, 13.
141 1Pd 2, 21.
142 At 15, 28.
143 É dogma de fé que o Papa é infalível sempre que fala ex cathedra. Tal infalibilidade
compreende, objetivamente, a infalibilidade conciliar – NT.
144 Lc 22, 31.
145 Jr 23, 39.
146 1Jo 1, 5.
147 Jo 1, 9.
148 Jo 1, 9.
149 S. Aug. ib.
150 S. Agu. tr. 34. in Joan.
151 São as chamadas noites escuras do espírito, momentos de secura e aridez no
entendimento e na vontade. São João da Cruz as identi cou no caminho para a perfeição e
a elas dedicou importantes textos. Para o Pe. Juan Arintero, autoridade no assunto, é
necessário que, para a nossa união perfeita com Deus, não só nossas potências sensitivas
sejam purgadas (noite dos sentidos), mas também a puri cação das substâncias mesmas da
alma. São purgações enérgicas e terríveis, segundo o Pe. Arintero. Depois da morte efetiva,
uma alma não suportaria o esplendor de Deus, continua o nosso Padre, se não estivesse
totalmente puri cada – o que só se dá pela noite do espírito. As almas que morrem na
graça, mas não completamente puri cadas, passarão seu estágio no purgatório (cf.
Evolución Mística, Salamanca, Editorial San Esteban, pp. 304 e segs.) – NT.
152 Sl 38, 10.
153 Is 50, 5.
154 At 9, 6.
155 Ex 4, 11.
156 Ex 4. 10.
157 Jr 1, 5.
158 Is 6, 5.
159 2Cor 6, 14.
160 Joan. Chrysost. ad Rom. homil. 10. circ. nem.
161 2Cor 2, 12.
162 S. Aug. in Psalm. 90. 13.
163 1Cor 11, 14.
164 Pe. João Cassiano, o diaconato recebeu pelas mãos de São João Crisóstomo e foi
ordenado sacerdote pelo Papa Inocêncio I. Nasceu na região da Bulgária no século IV e
fundou a Abadia de São Vitor de Marselha. In uente escrito, especialmente com suas
Instituições e Colações – NT
165 S. Ansel. In 12. ad Cor. cap. 11 ad test. sup. cit.
166 Chysost. hom. 29. in 1. Epst. ad Cor.
167 Cyprian. de zelo et livore.
168 Frade da Ordem de São Bento, declarado Doutro pela Santa Igreja. Foi Cardeal e
conviveu com o Papa Leão IX. Nasceu na Itália e viveu no século XI – NT.
169 Jr 19.
170 Foi contemporâneo de São Pedro Damião, e se tornou Papa sob o nome Gregório VII.
Também foi um beneditino. Seu culto foi autorizado pela Igreja no século XVII. Nascido
na Itália, lutou fortemente para concretizar na Santa Igreja a chamada reforma gregoriana,
excomungou Henrique IV, retirando-a apenas quando este pediu perdão – que depois
mostrou-se atitude oportunista – NT.
171 Petr. Dam. lib. 2. Epist. 4. ad. Hildebr.
172 Jo 8, 43.
173 August. in text.
174 Jo 6, 69.
175 Jo 7, 46.
176 Cassian. Coll. 2. Cap. II.
177 Cassian. Coll. 2. Cap. 46.
178 Cassian. Coll. 1. Cap. 21.
179 Mt 23, 5.
180 Mt 6, 2.
181 Richard. in Cant. cap. 17.
182 S. Bern. serm. 18. in Cant.
183 Ct 5, 8.
184 S. Gregor. in citat. text.
185 Ricard. in Cant. cap. 17.
186 Mt 13, 25.
187 Frei Giovanni Bona, da ordem Cisterciense, foi criado Cardeal. Um homem muito erudito
e autor de uma obra com o mesmo título desta: Discernimento dos Espíritos. Nasceu na
Itália do século XVII. Foi um dos consultores do Santo Ofício, mais especi camente na
Congregação para o Índice de obras – NT.
188 Card. Bon. de Discr. spir. cap. 1.
189 Rm 15, 33. e Fl 4, 9.
190 Jo 14, 27.
191 Sl 104, 9.
192 Sl 75, 3.
193 Rm 1, 7.
194 Gl 5, 22.
195 Tg 3. 18.
196 S. Bern. de Grand. humil.
197 S. Bonav. in 6. praec. Relig. c. 110.
198 Jr 5, 19.
199 Is 57, 15.
200 Mt 11, 25.
201 S. Ther. in vita, cap. 22.
202 Gers. de dist. vis. sig. 4.
203 Conhecido também por Antíoco de São Sabas, ou Antíoco de Palestina, nasceu na Ásia
Menor no século VII, vivendo uma vida de ascetismo rigoroso. Tornou-se monge no
mosteiro de São Sabas. Escreveu a conhecida Pandectas da Sagrada Escritura, com
homilias, das quais se utiliza o Pe. Scaramelli – NT.
204 Ab. Antioc. hom. 105.
205 1Cor 2, 12.
206 S. Aug. in Psalm. 85.
207 S. Ther. in vita, cap. 10.
208 Mt 21, 22.
209 Mt 9, 22.
210 Mt 17, 19.
211 Dn 3, 40.
212 Sl 90, 14.
213 Mt 9, 22.
214 Mt 9, 29.
215 Mt 9, 2.
216 Mt 15, 28.
217 Mt 8, 10-13.
218 Mc 10, 52.
219 Pr 14, 16.
220 Joann. 6. 45.
221 S. August. de praedet. Sanct. cap. 8.
222 Luc. 10. 16.
223 Ephes. 6. 5.
224 S. Joann. Clim. gr. 26 [Monge do século VI. Uma vida asceta profunda, viveu em
isolamento. Foi abade do Mosteiro Sinai – NT].
225 Cass. Collat. 2. c. 10.
226 Pr 16, 4.
227 Mt 6, 22-23.
228 Tg 1, 4.
229 Hb 10, 36.
230 São Cipriano, nascido em Cartago, século III, região romana da África, ao norte. Um
mártir da Santa Igreja – NT.
231 S. Cypr. lib. Moral.
232 Tertul. lib. 6. de Poent. c. 3.
233 At 5, 41.
234 Mt 16, 24.
235 Mt 11, 12.
236 Mt 10, 39.
237 S. Crys. in test. Joan.
238 Corn. á Lap. in text. cit. Joan.
239 Pr 3, 32.
240 S. Greg. Past. p. 3. Adm. 3.
241 S. Greg. Mor. lib. 10. c. 16.
242 Mt 11, 23.
243 2Cor 10, 17.
244 S. Ambr. in Psal. 118 serm. 12.
245 Pr 12, 21.
246 Rm 8, 8.
247 S. Anselm. in text. citat.
248 1Cor 13, 4.
249 S. August. in Epist. 1. S. Joan. trac. 7.
250 S. Laur. Just. de Inter. constit. cap. 11.
251 Jó 41, 12.
252 S. Greg. 33. Moral. cap. 28.
253 P. Alv. de Paz, tom. 3. lib. 5. §. 5. Cap. 9.
254 Sl 54, 22.
255 S. Greg. lib. 34. Moral. cap. 16.
256 Gerson. in centiloq. de Impul. dec.
257 Santa Teresa, em sua vida, cap. 30.
258 A expressão usada pelo Pe. G. B. Scaramelli, no original, é: pusillanime. Decidimos
manter o termo para não corrermos o risco de falsear o pensamento do autor, e também
porque o contexto deixa claro, per si, o que nosso frade quis signi car com tal palavra –
NT.
259 S. Crysost. ad Theod. lapsum.
260 Rm 8, 34.
261 Is 50, 8-9.
262 Ex 5.
263 2Cor 6, 15.
264 Corn. á Lap. in text. cit.
265 Corn. Lap. In 2. Epíst. ad Cor. 11. 14.
266 Cass. col. 2. c. 10.
267 São Doroteu de Gaza, monge e abade católico do século VI, no mosteiro de São Seridão,
próximo a Gaza. Tornou-se monge por in uência do Abade João, seu diretor – NT.
268 Diretor de São Doroteu de Gaza, e Abade do mosteiro de São Seridão – NT.
269 Dorot. serm. 5.
270 B. Catal. Bol. in lib. de sept. armis.
271 S. Greg. lib. 23. Moral. c. 17.
272 S. Greg. Moral. lib. 7. ep. 12.
273 1Sm 18, 7.
274 1Sam 24, 6.
275 Jó 1, 21.
276 S. Greg. hom. 14. in Evang.
277 S. Greg. 43. Mor. c. 40.
278 Ap 3, 20.
279 1Pd 5, 8.
280 S. Greg. Mor. lib. 10. c. 16.
281 Gers. in centiloq. de impul. dec. 9.
282 S. Greg. Mor. 1. 34. cap. ult. Sl 87. Is 14, 13. Fl 2, 3. Is 14, 14. Jo 12, 26.
283 S. Greg. hom. 34.
284 1Rs 13, 19.
285 August. in Psalm. 103. con. 4.
286 Pr 11, 12.
287 1Cor 7. 20.
288 Santo do século IV, nascido na Turquia. Um dos doutores da Igreja, assim declarado pelo
Papa Bento XV, em 1920 – NT.
289 S. Eprhen. ad. hort. 4. tom. 2.
290 Ef 4, 1.
291 Nascido em Lisboa, no século XII. É considerado o primeiro franciscano a receber o
título de Doutor da Igreja – NT.
292 S. Bened. Regul. cap. 7.
293 São Simeão Estilita, nascido no século IV na Síria. Levou uma vida asceta muito rigorosa.
Na coluna ao redor da qual o Santo viveu hoje está construída uma basílica – NT.
294 Religiosa carmelita italiana, nascida no século VI. Extraordinária mística, com as marcas
do Senhor. Canonizada pelo Papa Clemente IX – NT.
295 Bolland. in vita S. Sim. Stel. 5. Jan. ex Metaph. Cap. 4.
296 O nome do Sumo Pontí ce era Pierre-Roger de Beaufort, nascido na França no século
XIV. Marcado por transferir a sede papal para a Santa Sé – NT.
297 São Bento, fundador da Ordem dos Beneditinos, nascido na Itália e Abade em Monte
Cassino. A ele São Gregório Magno dedicou uma biogra a, já traduzida para a nossa
língua pela Editora Subiaco, em Juiz de Fora – NT.
298 Trata-se do será co São Francisco de Assis. Fundador da ordem franciscana, nasceu e
viveu na Itália. Um santo também extraordinário, que recebeu as marcas do Senhor – NT.
299 São Simeão Salus, monge e eremita, nascido no século VI, na Síria (Edessa). Ficou
conhecido como o santo louco – NT.
300 São Felipe Neri, nascido em Florença, século XVI. Santo extraordinário, foi canonizado
pelo Papa Gregório XV – NT.
301 Virgem da Terceira Ordem Franciscana, nascida em Viterbo no século XIII, e canonizada
pelo Papa Calisto III – NT.
302 S. Hyeron. Epist. ad. Letram.
303 S. Hyer. Epist. ad Demetr.
304 Joan. Gers. tr. de divers. tent. diab. sub. init.
305 S. Bern. serm. 24. de divers.
306 Pe. Miguel Godinez, s.j., exímio escrito de mística e ascética, trazendo à luz o livro
chamado Prática da Teologia Mística. Nasceu no Reino da Irlanda, século XVI. Enviado
como missionário ao México, na época Nova Espanha – NT.
307 S. Greg. Moral. lib. 30. cap. 14.
308 Ricardo de São Vitor cap. 17, in Cant.
309 Jó 4, 15.
310 S. Gregr. Moral. lib. 5, cap. 23. in ne.
311 Lc 24.
312 S. Bernard. in Cant. serm. 74. Jo 14, 28. Jo 16, 27.
313 S. Ther. Cast. mans. 4. cap. 1.
314 S. Greg. Dialgo. lib. 3. Cap. 34.
315 Jos. 15. 19.
316 S. Ignat. Exercit. Spirit. in Regul. ad modus anim. dignos. reg. 3. [Tradução obtida em
Exercícios de Santo Inácio de Loyola – Com práticas e meditações apropriadas para oito
dias de retiro pelo Pe. Alexandrino Monteiro, S.I., II Edição, Editora Vozes, 1959, pp. 324-
325. Assim também no restante das notas – NT].
317 Diz-nos o Doutor Angélico: Êxtase indica simplesmente um sair de si mesmo, fazendo
com que alguém se coloque fora de sua ordem (Suma Teológica, 2-2, q. 175, a. 2). Ver Pe.
J. Arintero, op. cit., p. 339, especialmente nota nº. 31 – NT.
318 Ainda segundo Santo Tomás de Aquino: Rapto implica certa violência (cf. Suma Teol., 2-
2, q. 175, a. 2), e nisso se difere do êxtase – NT.
319 S. Greg. in Evang. hom. 31.
320 S. Bern. serm. 1. Pent.
321 San Bern. serm. 1 Pent.
322 Sl 142, 10.
323 Sl 24, 4.
324 S. Laurt. Justin. lib. de Obed. cap. 26.
325 At 9, 10.
326 Gn 22, 12.
327 2Rs 7, 2.
328 2Rs 7, 13.
329 No original: persone idiota.
330 Mc 5, 18-19.
331 Sl 71, 1.
332 S. Ignat. de Discr. reg. 7.
333 Ct 1, 4.
334 S. Bern. serm. 3. de Circumcis.
335 S. Ignat. de Discr. spirit. Reg. 2.
336 O Pe. Scaramelli faz novamente uso da expressão espécie, e novamente no seu signi cado
tomista, que já se explicou em nota anterior – NT.
337 S. Ign. de Disc. spir. Reg. 8.
338 S. Bern. serm. 32. in Cant.
339 Id. serm. 3. in Circume. Dom.
340 S. Bern. serm. 54. in Cant.
341 S. Greg. hom. 35. in Evang.
342 S. Bernard. in Circumcis. Dom., serm. 3.
343 Id. cod. serm. 54.
344 S. Cypr. lib. de Coelo, et. livor. sub init.
345 Trata-se de São Leão I, Magno, Pontí ce Máximo e Doutro da Santa Igreja, nasceu na
Toscana, século V – NT.
346 S. Leon, serm. 7. de Nativ.
347 S. Greg. Moral. cap. 12.
348 S. Cyprian. loc. sup. citat.
349 S. August. serm. 20. de divers. cap. 11.
350 S. Gregor. 3. Mor. cap. 16.
351 Condecorado e estrategista, general e estadista cartaginês, nascido no século III, a. C. Por
seu descuido, foi derrotado no m da Segunda Guerra Púnica, após ter conquistado a
região de Cápua, referida pelo Pe. Scaramelli – NT.
352 Região italiana, palco da Primeira Guerra de Cápua e onde o general Aníbal cou em
pleno inverno durante a Segunda Guerra Púnica, enquanto Roma se encontrava
perfeitamente desprotegida – NT.
353 S. Ignat. Exerc. Reg. 4. disc. spir.
354 Gerson. tract. de divers. tent. diab. sub init.
355 Fl 2, 12.
356 S. Ther. in vita, cap. 10.
357 S. Ther. en el cast. int. mans. 4, c. 3.
358 Jó 2, 7.
359 S. Greg. 3. Moral. cap. 16.
360 Cf. Virgílio, Eneida, canto VII, 337-338. Assim é como Virgílio se refere a Alecto, seu
personagem – NT.
361 Sl 43, 3.
362 S. Ign. de disc. spir. reg. 12.
363 S. Ignat. de disc. spir. reg. 13.
364 Is 5, 20.
365 S. Greg. hom. 5. in Ezech. sub. init.
366 2. Cor. 11. 14.
367 Santo Abraão Kidunaia nasceu na Mesopotâmia do século III, dedicando-se inteiramente
à penitência, oração e contemplação – NT.
368 S. Ephr. in vit. S. Abra.
369 S. Ephr. ibid.
370 São Simeão Estilita, aqui já referenciado – NT.
371 Anton. in vit. S. Sim. Stel.
372 Paládio da Galácia, bispo, nascido na região da Anatólia, século IV. Discípulo de São
João Crisóstomo, de quem escreveu a vida – NT.
373 Teodósio I, imperador bizantino, nascido no século IV na Hispânia (hoje Península
Ibérica). Com a sua morte, o Império Romano se dividiu – NT.
374 Fundador da vida monástica cenobita, nasceu no século III, no Egito – NT.
375 Dion. in vita S. Pacom.
376 O mesmo Paládio de Galácia – NT.
377 Pallad. in Laus. c. 31.
378 Fr. Johannes Tauler, o.p, nascido no século XIV, em Estrasburgo. Foi um excelente mestre
em mística e ascética – NT.
379 Tauler. instit. cap. 18.
380 Ricard. a S. Vict. in Can. cap. 17.
381 Id. in Cant. cap. 6.
382 Id. in Cant. cap. 33.
383 Pr 28, 14.
384 Freira italiana, da Ordem Terceira Franciscana, nascida em Bolonha, século XV. Foi por
algum tempo iludida pelo espírito iníquo, que lhe aparecia inescrupulosamente sob a gura
de Nosso Senhor pedindo-lhe penitências superiores às suas forças físicas – NT.
385 S. Catar. Bolon. lib. 1. de sept. armis.
386 Lc 24, 11.
387 Frei Luís de la Puente, s.j, nasceu na Espanha do século XVI. Sabe-se que foi aluno do Pe.
F. Suárez. Foi um excelente escritor de ascética e mística – NT.
388 P. Lud. á Ponte. part. 5. Medit. in 6. punt. 1.
389 Mt 14, 26.
390 Gn 15, 12.
391 Gn 28, 17.
392 Jó 4, 12.
393 Lc 1, 12-13.
394 Lc 1, 29.
395 Lc 2, 9.
396 S. Ignat. de discr. spirit. reg. 4.
397 Suar. tom. 4. de Relig. lib. 9. cap. 5. num. 35.
398 Foi um religioso da Ásia Menor, do século II. Seu nome serviu de palco para uma seita
herética chamada montanismo. Montano se dizia sempre in uenciado por um espírito
profético. Certamente tais experiências tinham uma origem demoníaca – NT.
399 Nascido em Cartago, região da África, no século II. Simpatizou com os preceitos
pregados por este espírito misterioso que soprava em Montano – NT.
400 Ez 3, 23.
401 Ez. 13. 6 – NT.
402 Joan. Gers. in centil. de impuls. decad. 9
403 1Rs 22, 19-22.
404 São percepções sobrenaturais de um objeto naturalmente invisível para o homem (cf.
de nição do Pe. A. Royo Marín, op. cit., p. 908) – NT.
405 É a manifestação sobrenatural de uma verdade oculta ou de um segredo divino feito por
Deus para o bem geral da Igreja ou para a utilidade particular do agraciado (cf. Pe. Royo
Marín, op. cit., p. 915) – NT.
406 Normalmente, são espécies do gênero revelação. Ocorre quando uma revelação faz
referência a eventos futuros (cf. Pe. Royo Marín, op. cit., p. 916) – NT.
407 São percepções sobrenaturais ao sentido da audição. Diferenciam-se das visões porque
nelas os objetos percebidos são fórmulas que enunciam a rmações ou desejos (cf. Pe. Royo
Marín, op. cit., p. 913) – NT.
408 Fenômeno místico extraordinário conhecido também como perfumes sobrenaturais
(osmogenesia), que consiste num certo perfume de incomum suavidade e fragrância que por
vezes exala o cadáver dos Santos e dos sepulcros onde repousam as suas relíquias (cf. Pe.
Royo Marín, op. cit., p. 954) – NT.
409 Fenômeno extraordinário que atinge o sentido do gosto. Consiste numa suavidade no
paladar, doçuras sobrenaturais, especialmente se o objeto a ser ingerido for o Santíssimo
Sacramento do Altar. São licores balsâmicos a preencher o paladar (cf. Mons. J. Ribet, op.
cit., p. 616) – NT.
410 S. Ther. no Cast. inter. mans. 4. cap. 2.
411 Pe. Francisco Cachupin, s.j, nasceu no nal do século XVI, e escreveu sobre a vida do Pe.
Luís de La Puente numa obra que se tornou referência, chamada Vida, y virtudes del
Venerable Padre Luis de la Puente de la Compañia de Iesus, natural de la ciudad de
Valladolid – NT.
412 Jean Gers. Tract. de dist. ver vis. seg. 1.
413 S. Juan de la Cruz. Sub. ao Mont. lib. 2. cap. 1. 7.
414 Segundo o Pe. R. Garrigou-Lagrange, a união de nossa alma com Deus pode se dar
quatro modos: união simples, união mística árida, união extática e união transformante.
Nesta última ocorre o chamado matrimônio espirituaI, porque a alma, já livre dos apegos
mundanos e demais vícios, entrega-se inteiramente às moções do Espírito Santo,
completamente unida a seu esposo celestial, que é Nosso Senhor Jesus Cristo, para a Glória
de Deus Pai Todo-poderoso. Para isso, passa pelas puri cações passivas necessárias,
especialmente a purgação passiva – que São João da Cruz chama de noite escura dos
sentidos (cf. Las tres idades de la vida interior, v. II, Madird, Ediciones Palabra, 2003, pp.
1.113 e segs.) – NT.
415 S. Bern. in Psalm. Qui habitat. Serm. 6.
416 Ct 2, 15.
417 Corn. in cit. text.
418 Jean Gers. tr. de div. tent. diab.
419 S. Greg. Part. part. 3, admonit. 16.
420 Idem. Mar. cap. 31.
421 Id. eod. cap.
422 S. Boav. de Proces. Relig. proc. 6. cap. 15.
423 Id. eod. cap.
424 S. Bonav. In 3. Profectu Relig. c. 12.
425 S. Greg. Mor. lib. 4. cap. 16.
426 S. Greg. in 1. Reg. cap. 11.
427 Jr XII, 11.
428 São Romualdo de Ravena, fundador da Ordem dos Camaldulenses. Nascido no século X,
na província itálica de Ravena – NT.
429 São Francisco de Paula, fundador da Ordem dos Mínimos. Eremita, nascido no século
XV – NT.
430 Pr 17, 15.
431 Corn. á Lap. in cit. tex.
432 Lottario dei Conti di Segni, Papa Inocêncio III, nascido na Itália, século XII. Ao que se
sabe, teria aprovado a Ordem Franciscana, porque foi contemporâneo de São Francisco de
Assis – NT.
433 Inn. III. in expos. Psalm. 3. ex. Poenit.
434 S. Thom., lect. 4, in II Corinth., XI, 14.
435 Frei Beato Tomás de Kempis, cônego regular de Santo Agostinho, no Mosteiro de Santa
Ana. Nascido no século XIV, na região oeste da Alemanha, foi-lhe atribuída a autoria da
in uente e tão necessária Imitação de Cristo – NT.
436 Thom. Kemp. De Imit. Chrysti. lib. III, cap. 54.
437 Ricard. in Cant. cap. 18.
438 Is 1, 22.
439 Ricard. in Cant. cap. 18.
440 S. Bernard. in Cant. serm. 85.
441 Rm XIV, 2.
442 No original: piè di piombo. Obviamente, é uma expressão italiana que exprime a idéia de
andar com cautela, precaução – NT.

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