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Povo, cultura e

religião

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Povo, cultura e
religião

Guilherme Cantieri Bordonal


Wilson Sanches
Thiago Rodrigo da Silva
Edison Lucas Fabricio

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© 2014 by Editora e Distribuidora Educacional S.A.

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Revisão: Christiane Gradvohl Colas
Diagramação: Casa de Ideias

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Sanches, Wilson
S194p   Povo, cultura e religião / Wilson Sanches, Thiago
Rodrigo da Silva, Edison Lucas Fabricio, Guilherme
Cantieri Bordonal. – Londrina: Editora e Distribuidora
Educacional S.A., 2014.
192 p.

ISBN 978-85-68075-40-1

1. Conceito 2. Fenômeno. I. Silva, Thiago Rodrigo da. II.


Fabricio, Edison Lucas. III. Bordonal, Guilherme Cantieri.
IV. Título.

CDD 291

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Sumário

Unidade 1 — Definindo conceitos..................................1


Seção 1  Povo.......................................................................................3
Seção 2  Cultura.................................................................................10
Seção 3  Religião................................................................................15
Seção 4  Fundamentos da religião......................................................20
4.1 Modernidade e religião.......................................................................24
4.2 Símbolos religiosos.............................................................................26

Unidade 2 — O fenômeno religioso.............................41


Seção 1  O politeísmo, o monoteísmo e as implicações
civilizacionais na compreensão do tempo histórico............44
Seção 2  A explicação agostiniana para a natureza e seus reflexos
culturais...............................................................................56
Seção 3  O sincretismo religioso e o ecumenismo.............................73

Unidade 3 — As religiões monoteístas..........................89


Seção 1  Judaísmo..............................................................................91
Seção 2  Cristianismo.......................................................................107
Seção 3  Islamismo..........................................................................127

Unidade 4 — Religiões orientais.................................143


Seção 1  Hinduísmo.........................................................................146
Seção 2  Budismo.............................................................................157
Seção 3  Taoísmo.............................................................................165
Seção 4  Xintoísmo..........................................................................170

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Apresentação

Vivemos em um mundo extremamente complexo interligado por redes de


comunicação cada vez mais avançadas que nos conectam instantaneamente
a todos os cantos do planeta; sistemas de transportes que podem nos levar
em algumas horas aos cantos mais longínquos do globo. Por conta disso,
temos contatos cada vez mais frequentes com diferentes povos, diferentes
formas de viver e concepções das mais diversas sobre a origem do mundo
e qual será o seu fim. Portanto, o tempo presente exige que cada um de nós
conheçamos aquilo que é a alteridade.
Conhecer o outro não é apenas um exercício de curiosidade, mas uma
necessidade atual em virtude das características da nossa sociedade que é
cada vez mais conectada; além disso, o conhecimento do outro leva a uma
reflexão sobre quem nós somos. De fato, o pensamento antropológico já
afirmou com todas as letras que o conhecimento do outro leva ao conheci-
mento de nós mesmos, e quando somos cegos em relação aos outros somos
míopes em relação a nós mesmos, nossas formas de vida e nossos hábitos,
nossas crenças.
Neste livro, caro leitor, queremos oferecer uma visão ampla sobre três
temas de extrema importância para conhecermos nós mesmos e o outro bus-
cando uma explicação histórica e conceitual sobre “povo, cultura e religião”.
Este conhecimento histórico e conceitual pode nos auxiliar a perceber, com
um maior senso crítico, por que cada povo desenvolveu sua própria cultura
e hábito, bem como suas vidas religiosas.
Para obtermos tal compreensão o livro foi estruturado da seguinte maneira:
A Unidade 1 tem por objetivo estabelecer alguns conceitos básicos para a
discussão do tema proposto pela disciplina; assim, nesta unidade, a principal
preocupação é definir o termo “povo” bem como sua origem, definir o termo
“cultural” e o que é religião e como eles se interligam.

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Na Unidade 2 refletiremos juntos sobre “o fenômeno religioso”, ou seja,


qual a influência da religião na organização da nossa vida em sociedade. Para
compreender tal influência discutiremos o politeísmo e o monoteísmo e a
influência agostiniana na concepção de religião que o ocidente desenvolveu.
A Unidade 3 faz uma abordagem sobre as três principais religiões mono-
teístas. Esta unidade se preocupará em apontar características essências do
Judaísmo, do Cristianismo e do Islamismo. Essas religiões possuem uma história
complexa e longa, porém o objetivo da unidade não será contemplar todos os
assuntos referentes a estas religiões, mas fornecer uma visão ampla e conceitual
sobre as bases destas religiões..
A Unidade 4 tem por objetivo apresentar alguns aspectos das religiões
orientais; especificamente, discutiremos os principais aspectos do Hinduísmo,
Budismo, Taoísmo e Xintoísmo. Nesta unidade teremos oportunidade de perce-
ber os distanciamentos e as aproximações das estruturas religiosas do ocidente
e do oriente.
Caro leitores, deixo aqui um convite para iniciarmos o estudo sobre este
tema que interessa a todos nós: “Povo, Cultura e Religião”. Vivemos em uma
sociedade que desenvolveu historicamente as concepções do que é povo, de-
senvolveu seus hábitos culturais e suas estruturas religiosas, além disso vivemos
em mundo de intenso contato com o outro, com aquele que é diferente de
nós, conhecer o outro e as razões da alteridade é quase um dever inerente à
vida presente
Bons estudos!
Prof. Wilson Sanches

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Unidade 1
Definindo
conceitos
Wilson Sanches
Guilherme Cantieri Bordonal

Objetivos de aprendizagem: Nesta primeira unidade, faremos o


estudo conceitual dos três termos que dão título à nossa disciplina
Povo, cultura e religião. Ela é fundamental e será o alicerce para as
demais unidades que estudaremos. É bom lembrar que a definição
conceitual para qualquer assunto que se for estudar é prerrequisito
para o desenvolvimento do trabalho. Na metodologia adotada neste
trabalho. Entendemos que a religião é a grande força estruturante
das civilizações, portanto, fique muito atento ao desenvolvimento
desses conceitos.

Seção 1: Povo
Nesta seção analisaremos os aspectos que estruturam
a formação dos diferentes povos.

Seção 2: Cultura
Apresentaremos a cultura como o resultado das pre-
missas fornecidas pelas religiões. O estudo da cultura
está muito presente nas pesquisas historiográficas,
pois, com a modernidade, o multiculturalismo ga-
nhou muita força e é tema de muitos debates.

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Seção 3: Religião
Nesta seção trabalharemos com a religião, que se
apresenta para nós como o principal elemento na
formação dos povos e das culturas.

Seção 4: Fundamentos da religião


Nesta seção poderemos aprofundar os aspectos
estruturais das religiões, mostrando de que maneira
cada religião se apresenta.

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D e f i n i n d o c o n c e i t o s  3

Introdução ao estudo
Estamos diante de uma grande tarefa: debater elementos que estão pre-
sentes no nosso cotidiano e que fazem parte de nós de maneira intrínseca,
ou seja, debater questões sobre povo, cultura e religião. Trata-se da junção de
três termos dotados de grande potência discursiva. Eles carregam um amplo
universo de valores, fornecendo inúmeras possibilidades de interpretações.
Não são simples palavras; são monumentos construídos no decorrer do tempo.
Dotados de amplitude, há de se ter sagacidade para percorrer esses caminhos
tortuosos que já foram explorados por outros historiadores, pois foram muitos
os discursos que buscaram legitimidade fazendo uso de práticas exercidas nos
territórios do “Povo”, da “Cultura” e da “Religião”.
Os três termos são usados com frequência nos debates historiográficos e,
muitas vezes, de maneira automática, são lançados sem que se faça uma análise
pormenorizada deles. São termos que estão no uso corrente do nosso ofício.
Não se pretende, com essa disciplina, encerrar o debate sobre as implicações
que envolvem esses temas, mas simplesmente proporcionar uma análise crítica
de como esses termos foram construídos na História do Ocidente e de como
exercem uma força muito grande na constituição do pensamento moderno e
pós-moderno. A junção desses conceitos pode fornecer a caracterização que
se tem do homem no mundo contemporâneo. A análise desse processo possi-
bilitará a compreensão da formação do Humanismo — como a possibilidade
da formação de homens exemplares.

Seção 1  Povo
Você já ouviu falar que “a voz do povo é a voz de Deus”? Este ditado po-
pular apareceu com Tito Lívio, no original em latim “vox populi, vox Dei”. O
ditado subsistiu aos anos, mas e a ideia de povo? Será que continua a mesma?
Quando você ouve alguém falar que “tal povo é assim...”, ou “determinado
povo deixou sua marca na história” ou, ainda, “que povo sem cultura”, quais são
as coisas que vêm à sua mente? Para responder a estas questões discutiremos,
nesta seção, a definição de povo. Mas não é uma coisa simples definir “povo”?
De maneira alguma! Nossa preocupação e fazer a definição de povo de forma
que esta definição possa servir de ferramentas necessárias e introdutórias para
desenvolvermos as discussões no decorrer das demais unidades.

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A palavra “povo” tem origem no latim: populus. Podemos afirmar que


a definição desse conceito é a de que “povo” é uma união de indivíduos
que compartilham entre si crenças, práticas e símbolos, estabelecendo um
sentimento de unidade e de identidade social. Contudo, essas experiências
compartilhadas não criam barreiras rígidas e fixas. Logo, os povos podem
sofrer transformações de acordo com os períodos históricos e com o próprio
contato entre povos diferentes. É papel fundamental da História analisar essas
mudanças para entender as relações e os movimentos internos e externos de
diferentes sociedades.

Questões para reflexão


Será que nossa identidade social é constituída apenas pelos símbolos
nacionais ou há outros elementos que influenciam nesta construção?

Nessa perspectiva, as pluralidades de cada indivíduo são suprimidas para


formar um panorama geral que dê possibilidade para estudar os diferentes
povos. Seria totalmente impossível levar em consideração a representação de
todos os indivíduos que formam uma sociedade levando em conta suas parti-
cularidades, suas vicissitudes e suas representações. Desse modo, procura-se
analisar os aspectos comuns que são compartilhados em um determinado grupo,
sabendo que este é um procedimento arbitrário e redutor, o que, no entanto,
possibilita a prática historiográfica. É importante ressaltar que algumas correntes
historiográficas, como a micro-história, muito utilizada por Carlo Ginzburg,
procuram selecionar um indivíduo de uma sociedade e, partindo desses as-
pectos, encontrar os elementos civilizacionais que moldam uma civilização.

Atividades de aprendizagem
Leia atentamente o texto:
Em diversas partes do planeta existem nações reivindicando a formação
de um território (Estado próprio), pois elas habitam países em que a na-
ção predominante é outra. Esses grupos, compostos por indivíduos que
apresentam características históricas, religiosas, culturais, valores sociais,

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entre outros elementos em comum, solicitam a criação de um país que


será definido e delimitado por e a partir de relações de poder, sendo
estabelecida uma unidade administrativa autônoma e reconhecida pela
comunidade internacional. Entre as principais nações nessa situação estão:
Curdos:
Com mais de 26 milhões de pessoas, os curdos são a maior nação sem
território do mundo. Esses indivíduos habitam a Armênia, Azerbaijão, Irã,
Iraque, Síria e Turquia. Essa nação, vítima de perseguições e massacres,
reivindica a criação do Curdistão, entre o norte do Iraque, oeste da Turquia
e noroeste do Irã.
Palestinos:
Essa grande nação é composta por mais de sete milhões de pessoas
que estão situadas no Oriente Médio. Os palestinos lutam pela formação
de um território autônomo e a reincorporação de áreas ocupadas pelos
israelenses. A Organização para Libertação da Palestina (OLP) é o principal
grupo na busca pela criação de um Estado próprio.
Tibetanos:
Os tibetanos ocupam o centro-leste do continente asiático, um ter-
ritório dominado pelo governo chinês, que oprime de forma violenta o
movimento de autonomia dessa nação. Os mais de seis milhões de tibe-
tanos, de tradição budista, não aceitam a ocupação da China e solicitam
a criação de um país.
Caxemires:
A região da Caxemira é dominada pela Índia, Paquistão e China, além
de abrigar duas nações: muçulmanos (quatro milhões) e hindus (um mi-
lhão). A maioria dos habitantes (muçulmanos) deseja que o território seja
anexado ao Paquistão, porém há grande oposição por parte dos hinduístas.
Fonte: Disponível em: <http://www.mundoeducacao.com/geografia/
nacoes-sem-territorio.htm>
Com base no texto e na discussão que fizemos durante esta seção,
construa um texto discursivo argumentativo, com no mínimo dois argu-
mentos, sobre os elementos que permitem que estes “povos desterrados”
ainda possam continuar a ser chamados de povo.
O texto deve ter no mínimo 10 e no máximo 15 linhas.

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Para saber mais


No livro O queijo e os vermes, Carlo Ginzburg analisou o processo de julgamento de Menocchio
e, partindo dessa fonte documental, procurou perceber as características que compunham o
imaginário e as estruturas sociais do período histórico da temporalidade destacada.

O sociólogo alemão Norbert Elias (1897-1990) possui vários estudos que


podem auxiliar o estudo da história. Ao fornecer as bases sociológicas que
formou o povo alemão, em seu livro Os alemães ele definiu o conceito “povo”
de uma maneira muito ampla:
Mas não é só o nome de um país que pode ter funções
desta espécie — toda uma gama de símbolos verbais,
entre eles, termos como “Pátria”, “Mãe Pátria” ou “Povo”,
podem também tê-las. Até onde nos é dado apurar, os
termos “nação” e “nacional” tornaram-se os mais gerais
e mais amplamente usados símbolos desse gênero. Basta
apenas perguntar o que distingue o termo “nação” de
outros, como “país” ou “Estado”, para perceber a dife-
rença. Os próprios dados sociais a que esses termos se
referem são em grande parte idênticos. Quanto aos fatos,
descontados os desenvolvimentos locais ou regionais,
expressões como “uma nação”, “um povo” ou “o povo de
um país”, “os membros de um Estado”, são quase sempre
sinônimos (ELIAS, 1997, p. 139-140).

Atividades de aprendizagem
A criação do Estado foi fundamental, segundo Elias (1997), para a
formação do povo alemão. E, no caso do Brasil, nós nos constituímos
enquanto povo a partir da formação do Estado, ou foram outros os
elementos importantes para a formação do povo brasileiro? Construa
um texto argumentativo sobre a formação do povo brasileiro. O texto
deverá ter no máximo 15 e no mínimo 10 linhas.
Utilize o texto a seguir (uma entrevista de Darcy Ribeiro) como
material de apoio:
Meu livro mostra por que caminhos e como nós viemos, criando
aquilo que eu chamo de Nova Roma. Roma com boa justificação...

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Roma por quê? A grande presença no futuro da romanidade, dos neo-


latinos, é a nossa presença. Isso é o Brasil, uma Roma melhor porque
mestiça, lavada em sangue negro, em sangue índio, sofrida e tropical.
Com as vantagens imensas de um mundo enorme que não tem inverno
e onde tudo é verde e lindo, e a vida é muito mais bela... E é uma
gente que acompanha esse ambiente com uma alegria de viver que
não se vê em outra parte. Esse país tropical, mestiço, orgulhoso de sua
mestiçagem... Isso é que me levou muito tempo. Entender como isso
se fez... Havia muita bibliografia sobre aspectos particulares, mas não
uma visão de conjunto. Deixa eu contar pra vocês como é que isso se
fez? (ALÔ ESCOLA, 2014).

Devemos estar atentos ao fato de que a formação da Alemanha está direta-


mente relacionada à criação do Estado alemão. Logo, vemos de que forma Elias
relaciona os conceitos de “povo” com “Estado”. Na perspectiva de Norbert Elias,
há uma proximidade muito grande entre os símbolos nacionais criados com o
entendimento que se pode ter de um Povo. É muito interessante observar esse
posicionamento de Elias (1997) porque estabelece essa mesma proximidade dos
conceitos de povo, cultura e religião. As dificuldades encontradas para separar
o que é um povo do que é uma nação também podem ser encontradas para
analisar separadamente os três conceitos-chave dessa disciplina. No mesmo
caminho interpretativo de Elias (1997), temos Nicola Abbagnano, que no seu
Dicionário de filosofia faz a seguinte definição de povo: “Comunidade humana
caracterizada pela vontade dos indivíduos que a compõem de viver sob a mesma
ordenação jurídica” (ABBAGNANO, 2007, p. 916).
Se para Abbagnano (2007) um povo deve viver e compartilhar uma
mesma ordenação jurídica, subentende-se que também deve compartilhar
algum poder superior — como, por exemplo, um Estado — que atribua um
regimento para as suas práticas. Contudo, o que é fundamental e que deve
ser destacado nas duas perspectivas apresentadas é o fato de que um Povo é
criado pela ação humana. A partir do momento que se adota esse parâmetro
para definir este conceito podemos utilizar das ferramentas metodológicas
oferecidas pela historiografia para entender melhor o processo de formação
de cada povo.

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Não podemos nos esquecer, no entanto, que em civilizações da Antiguidade,


como na Mesopotâmia e na Grécia Antiga, sociedades nas quais havia uma
fragmentação política, o que mantinha a unidade desses povos era a língua e
a religião. Portanto, nem sempre o Estado é o elemento unificador dos povos.

Questões para reflexão


Qual o peso da religião para a concepção de povo ainda hoje?

No entanto, gostaríamos de apresentar outra possibilidade de análise para


a formação dos povos. Destacamos as interpretações feitas pelas concepções
hegelianas. Segundo Hegel, as práticas de um povo devem ser compreen-
didas como expressões de forças metafísicas. Logo, deveríamos conhecer
as expressões religiosas dos povos, pois ali estariam demonstradas todas
as engrenagens que regiam as práticas daqueles indivíduos. Hegel (1993)
cria a expressão Volksgeist — “Espírito de um povo” — justamente para
demonstrar a força que esse espírito metafísico possuía nas suas conclusões
filosóficas e históricas. Isso parece um pouco confuso? Vamos tentar desatar
esses nós. Veja o esforço realizado por Robert Hartman para tentar explicar
o pensamento de Hegel:
Se a História, como ele sustenta, é o autodesenvolvimento
do Espírito, a realização da Ideia divina, de um plano
cósmico, então o homem histórico deve ser um em que se
concentram as potencialidades de seu tempo, a situação
histórica. Mas ele é apenas uma fase no grande processo
mundial, ligados aos estados individuais. Ao final do
processo histórico, quando o Espírito já se realizou com-
pletamente, há um Estado global de Razão universal, de
toda humanidade (HARTMAN, 2004, p. 14).

Para saber mais


A palavra “metafísica” é de origem grega e significa “para além da física”. Andronico de Rodes,
ao organizar a obra de Aristóteles, observou que havia um livro intitulado Física, e depois
outro; ao outro deu-se o nome de Metafísica. No entanto, estudos neoplatônicos vão com-
preender a metafísica como “sobrenatural”; este é o sentido que utilizamos a expressão
metafísica.

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Desse modo, para Hegel, o Espírito que rege os movimentos históricos — e,


consequentemente, a formação das civilizações — possui um plano cósmico.
Essa perspectiva apresentada por Hegel foi muito influente nas concepções
acerca das Teorias da História.

Para saber mais


O livro A razão na história: uma introdução geral à filosofia da história, de Hegel, oferece-
-se como uma excelente oportunidade para compreendermos como os pensadores da moder-
nidade acreditavam na capacidade racional do homem. Esse livro, além de deixar profundas
marcas na Teoria da História, é também uma boa fonte para entendermos o imaginário do
homem moderno.

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Seção 2  Cultura
Você tem cultura? Qual povo é mais culto? São perguntas que para alguns
podem parecer estranhas, mas para outros são extremamente normais. Mas
afinal, o que você responderia? Quando falamos de cultura, sobre do que
estamos falando? Falamos de algum tipo de refinamento, de conhecimento,
de comportamento? Poderíamos falar sobre a cultura do brasileiro de uma
maneira geral ou teríamos que falar de cultura em termos particulares, uma
cultura para cada região do país, ou ainda uma cultura para cada município,
ou teríamos cidades cada vez mais complexas que em seu interior há um
grande número de culturas diferentes? Afinal o que é este emaranhado de
coisas, gestos, conhecimentos, valores que chamamos de cultura e como ele
altera a nossa vida cotidiana?
Essas várias questões mostram a complexidade que o tema CULTURA pode
assumir em um debate. Aqui; temos que nos preocupar em pensar a cultura
como um termo sociológico, um termo muito caro a todas as ciências sociais
que tornam o nosso objeto de estudo muito interessante. Mas vários cuidados
são necessários para lidarmos com esse termo.
O termo cultura nem sempre foi utilizado da mesma maneira pelas socie-
dades, e nem sempre foi utilizado da mesma maneira pelas Ciências Sociais.
Por isso, faremos uma recuperação das suas diversas acepções.
O termo “cultura” deriva da palavra latina colere. A partir dos séculos XVIII
e XIX, ele ganhou conotações diferentes daquelas empregadas pelos romanos
da Antiguidade. Até então, esse termo era usado para se referir ao cuidado de
plantas, de animais e ao trato agrário; “cultura” era a arte de se cultivar algo
ligado à natureza. Entretanto, na Alemanha do século XVIII, este conceito passa
a ganhar vínculos com a educação, criando a expectativa de que o homem
era capaz de ser aprimorado. Na Alemanha setecentista, a cultura começou
a ser o território para a formação (Bildung) e melhoramento do homem. Esse
empreendimento feito pelos alemães será fundamental para todos os desdo-
bramentos culturais que aconteceram nos demais séculos da história alemã.
O estudo desses termos não pode ser feito de maneira fixa, mas procurando
sempre visualizar os movimentos ocorridos nos diferentes processos históricos.
Do século XVIII para o século XIX, há uma grande mudança no significado do
termo “cultura”. No século XVIII, ele era usado para marcar uma distância
dos valores burgueses dos valores da política e, assim, adquiria um status de

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elegância e inteligência. Havia um embate muito grande entre a burguesia e


a aristocracia na Alemanha. Mesmo com uma situação financeira invejável,
haviam balizas de valores muito rígidas que separavam burgueses e aristocra-
tas. A formação de novos valores e a produção de uma história cultural foi
incentivada pela burguesia para marcar as diferenças entre as classes sociais.

Para saber mais


Outra ciência social que estudou o termo cultura foi a antropologia social. Para conhecer mais
sobre esta ciência, sugerimos o Livro Aprender antropologia, de François Laplantine, lançado
pela Editora Brasiliense.

Já no século XIX, a cultura é utilizada como elemento unificador do Estado


alemão prestes a ser construído. Nesse instante, a cultura deixou de ser um
elemento da vaidade burguesa e passou a ser utilizada como uma potente força
política, capaz de estabelecer a tardia unificação de uma Alemanha ainda frag-
mentada. Nesse momento, a cultura foi fundamental para formar elos de iden-
tidade para o povo alemão, como salienta Elias (1997, p. 130, grifo do autor):

Questões para reflexão


Qual é o peso da cultura para a unidade de um país que apresenta uma
diversidade cultural enorme?

Crenças semelhantes foram inicialmente associadas ao


termo alemão Kultur, por exemplo, quando era usado
no sentido da cultivação ou educação de seres humanos
de modo a realizarem plenamente todo o seu potencial.
Mas em fins do século XIX e começo do atual, quando o
termo “cultura” foi cada vez mais usado na acepção de
“cultura nacional”, as conotações humanistas e morais,
numa etapa inicial de sua carreira, passaram a segundo
plano e finalmente desapareceram.

Aqui também pode-se observar como os estudos de povo, cultura e religião


não podem ser realizados separadamente, pois são complementares, sendo
muito difícil separá-los dentro de uma pesquisa. Assim como Elias (1997) e

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Abbagnano (2007) deram ao conceito de povo uma forte conotação política, o


mesmo pode ser feito com o conceito de cultura, principalmente na Alemanha
do século XIX. O uso feito desse termo para fins políticos — a unificação da
Alemanha — desconsidera a cultura como território da formação e educação e
da construção de valores humanísticos para abrigar valores de unidade nacio-
nais tão necessários naquele momento. A unificação feita com ferro e sangue
teve como base valores culturais compartilhados. Devemos salientar, portanto,
que a ideia de fazer uso da cultura com conotações políticas, ou seja, criar
um ambiente cultural partindo de necessidades e das premissas do Estado, é
um fenômeno moderno. Esse fenômeno, como veremos adiante, será muito
criticado por estudiosos tradicionalistas, que interpretaram essas modificações
como doenças civilizacionais do espírito moderno.
Como podemos ver, o termo cultura assume diversos significados, mas qual
é o sentido que devemos atribuir ao termo cultura para uma disciplina que se
propõe a articular este termo com os termos “povo” e “religião”? Não pode-
mos partir simplesmente do significado geral que se dá para a cultura como
um amontoado de práticas dos povos: língua, artesanato, roupas, alimentação,
práticas religiosas, relações familiares, entre outras. Claro que tudo isso é muito
importante e a História deve se preocupar com esses objetos de estudo; no
entanto, devemos dar prioridade para o significado atribuído à cultura na mo-
dernidade e a influência que isso teve na constituição do pensamento moderno,
que resultou na concepção que temos hoje de educação, formação, civilização
e da própria ideia de homem. A cultura passa a ser uma estufa para a criação
e o melhoramento de homens. Esse é um dos momentos em que se coloca o
projeto do humanismo em prática.

Questões para reflexão


Como a cultura pode influenciar no melhoramento dos homens?

Sendo assim, podemos estabelecer duas interpretações distintas para o termo


“cultura”. Primeiro, podemos entendê-la como um processo de formação indi-
vidual, no qual o sujeito é preparado e educado para acumular determinadas
informações que ampliam a sua visão de mundo. Em um segundo momento,
também podemos entender a cultura como um sentido coletivo, no qual essas

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marcas de individualização são colocadas de lado para darem lugar ao sentido


coletivo de um povo. O caso da Alemanha é interessante de ser destacado
porque podemos visualizar muito bem como ocorreu essa passagem de uma
conotação para outra (Figura 1.1). O sentido da cultura como educação no sé-
culo XVIII deu lugar ao sentido de cultura como força política e representante
de uma nação no século XIX.

Para saber mais


Um filme bem interessante para discutir a questão cultura é o Enigma de Kaspar House. O
diretor Werner Herzog conta a história de um jovem que foi trancado a vida inteira em um
cativeiro e, quando sai, precisa aprender a viver em sociedade.

Figura 1.1  Mudança da concepção de Bildung do século XVIII para o século XIX

FORMAÇÃO
(BILDUNG)

SÉCULO XVIII SÉCULO XIX


FORMAÇÃO FORMAÇÃO
CULTURA POLÍTICA

Fonte: Do autor (2012).

A partir do momento em que se deu prioridade para uma educação que


ligasse o povo alemão ao Estado, não fornecendo elementos de formação hu-
manista para que se pudesse apreender a realidade, lançaram-se as bases para
as acepções totalitárias do século XX, na qual deterioraram a individualidade
da consciência que se tem de si para ver-se representado pelo Estado na per-
sonificação do Führer.
Não podemos esquecer de salientar que atualmente a cultura é usada pelos
institutos educacionais no Brasil para a formação de estudantes para a atuação

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no mercado de trabalho, ou seja, o que pauta a formação cultural, em boa


medida, são as necessidades exigidas pelo mercado de trabalho.
A formação da Cultura ocidental está diretamente relacionada com a tradi-
ção judaico-cristã. Boa parte das referências para os mais variados campos do
conhecimento partem das premissas fornecidas por essa tradição. No entanto,
para realizarmos um estudo e uma compreensão mais profunda de outras
religiões­e culturas, é necessário sair de uma postura etnocêntrica — etno-
centrismo é a postura em que o nosso próprio grupo é tomado como centro
de tudo e todos os outros são pensados e sentidos através dos nossos valores,
nossos modelos, nossas definições do que é a existência — e que façamos um
esforço de tentar interpretar o mundo não com os valores que possuímos, mas
com as concepções do objeto que estamos pesquisando. O que queremos di-
zer com isso? Queremos afirmar que, para você entender o islã, o hinduísmo
ou qualquer outra cultura, é importante que você tente pensar com os meios
oferecidos pela tradição que está estudando. Há uma definição para este tipo
de atitude: relativismo. O relativismo pode ser definido como a atitude ou
doutrina que afirma que as verdades (morais, religiosas, políticas, científicas
etc.) variam conforme a época, o lugar, o grupo social e os indivíduos. Ou
seja, você quer entender o islã? Procure pensar como um muçulmano. Você
quer entender um budista? Procure pensar como ele. Sem esse movimento,
acabamos transferindo os valores da nossa cultura para interpretar as demais, o
que acaba provocando graves erros de interpretação. A comparação de povos,
religiões e culturas é um exercício que requer muito da nossa atenção.

Atividades de aprendizagem
Até que ponto podemos perceber a ligação da produção artística nacional —
filmes, peças de teatro, projetos musicais, espetáculos de dança etc. — com os
incentivos dados pelo Estado? Faça uma pesquisa em sua região e verifique
os incentivos dados localmente para as artes.

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D e f i n i n d o c o n c e i t o s  15

Seção 3  Religião
“Religião não se discute!” Você já deve ter ouvido este dito popular várias
vezes, no entanto, ele não encerra uma verdade. Por que religião não se discute?
Porque estamos falando da fé de cada um, e isso é um assunto particular. Mas
será que é tão particular assim? Vejamos: uma religião possui um corpo social,
portanto, nós podemos investigar e discutir, do ponto de vista acadêmico. A
questão fundamental aqui é perceber que a discussão da religião tem em vista
articular este conceito com os conceitos de povo e religião. Aqui não discuti-
remos a fé, esta, sim, privada, mas a religião enquanto organismo social capaz
de ser conhecido pelo intelecto humano.
O conceito de “religião” pode ser entendido como um conjunto de cren-
ças compartilhado entre um determinado grupo social que mantém relações
com alguma ordem metafísica. Todo estudo direcionado para uma religião
deve levar em consideração o concreto e o abstrato da prática estudada. É
impossível estabelecer qualquer discurso acerca do estudo das religiões antes
de fazer dois movimentos: primeiramente, um estudo sobre os aspectos sociais
em que a religião surgiu e os movimentos que ela exerceu dentro do contexto
estudado. Depois de feito isso, levar em consideração os próprios elementos
que constituem o conjunto de crenças dessa religião.

Questões para reflexão


Qual o significado da expressão “o homem criou Deus à sua imagem
e semelhança”, de Friedrich Nietzsche?

Você percebeu que nosso intuito é estudar aquilo que é objetivo na religião,
ou seja, seu contexto histórico e o conjunto de crenças que possui?
Há de se ter, portanto, certa sagacidade para analisar as características das
crenças — práticas ligadas à metafísica — e as características das técnicas —
práticas ligadas ao real — que constituem cada religião, como salienta Abbag-
nano (2007, p. 997-998):
Além disso, na definição proposta, convém sublinhar a
diferença entre crença na garantia sobrenatural e as téc-
nicas que permitem obter ou conservar tal garantia. Por

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técnicas entendem-se todos os atos ou práticas de culto:


oração, sacrifício, ritual, cerimônia, serviço divino ou
serviço social. A crença na garantia sobrenatural é a ati-
tude religiosa fundamental, podendo ser simplesmente
interior e pessoal (religiosidade individual); ao contrário,
as técnicas destinadas a obter e conservar essa garantia
constituem o lado objetivo e público da religião, seu
aspecto institucional.

Há várias religiões, e por isso convido você


à seguinte reflexão: quantas vezes você viu
Para saber mais uma prática religiosa diferente daquilo em
Indicamos a leitura do livro O que que você acredita e você achou ela estranha?
é religião, da Coleção Primeiros Mesmo que não se concorde, que não se acre-
Passos (editora Brasiliense), de au- dite ou até por mais irracionais que possam
toria de Rubem Alves.
parecer certas religiões, se é que podemos
afirmar isso, deve-se ter muito cuidado para
não fazer um simples julgamento do que parece estranho e distante. Esse não
é o papel a ser assumido pelo historiador, mas é parte integrante de seu ofício
procurar diferentes maneiras de abordar os objetos de estudo, não para fazer da
história um tribunal, mas para criar diferentes entendimentos acerca do outro.
O discurso historiográfico possui a característica de delimitar fronteiras que
se unem e se separam, podendo construir um respeito mútuo pelo diferente.
Parte do conhecimento construído de si mesmo pode ser encontrada quando
se entende melhor as práticas do outro.
Mesmo com todas as separações conceituais de crenças, práticas e dou-
trinas, é possível visualizar uma unidade imanente, ou seja, que é própria a
todas as religiões, a qual apresenta-se inserida na crença na transcendência.
A ideia que se pode ter sobre essa transcendência irá variar de acordo com as
religiões, com os grupos sociais e com os períodos estudados; no entanto, ela
sempre se faz presente. Mas, afinal de contas, o que significa transcendência?
A transcendência é tudo aquilo que está para além do real, que extrapola as
limitações do meio físico e que pode ser legitimada pelo conjunto de crenças
compartilhadas. Todavia, essas crenças buscam legitimidade no âmbito social,
como salienta Abbagnano (2007, p. 1002):
Ultrapassados os limites de controle dos acontecimen-
tos por meio de técnicas racionais — limites, ademais,
bastante estreitos —, o homem reivindica liberdade de
fé e entrega-se a crenças libertadoras ou consoladoras, a

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técnicas que lhe prometam salvação infalível. Obtendo


ou não o cumprimento dessas promessas, a função dessas
técnicas é bem clara: dar esperança e coragem, dar-lhe
segurança nas suas relações com os outros homens e
com o mundo.

Muitos historiadores pensam que é fundamental saber que o estudo das


religiões não pode ser feito buscando unidades fixas e uma coerência linear.
Para eles, esse é um território que se dá no movimento, na mudança e nos
novos significados dados aos valores. Nessa perspectiva, não se pode exigir
do cristianismo, do judaísmo, do islamismo ou de qualquer outra religião a
equidade para com as práticas e o mesmo entendimento que as fundaram, visto
que toda religião deve ser estudada na relação com as necessidades sociais, as
quais têm a característica de mudarem constantemente. O estudo das religiões
se dá em um território movediço.

Questões para reflexão


Como estudar a religião com autonomia, uma vez que ela permeia
várias instâncias de nossas vidas?

No entanto, para os estudiosos do tradicionalismo, o movimento que de-


vemos fazer é justamente o contrário. O importante é buscar no estudo das
religiões as estruturas de permanência que transcendem o tempo histórico. Essas
são as características que fundaram e fazem com que as religiões permaneçam
sólidas apesar de todas as variações sociais.

Para saber mais


No Brasil há várias instituições de ensino superior que mantêm núcleos de estudo de religião.
Destacamos a revista científica Estudos de Religião (Universidade Metodista) e o Núcleo de
Estudos da Religião da UFRGS.

Mas a história não pode se contentar em estudar somente os aspectos me-


tafísicos, ou sobrenaturais, da religião. Ela sempre exerceu um papel político
muito forte desde a Antiguidade, moldando o imaginário, legitimando práticas
econômicas e sendo força motriz de muitas guerras. Essa ligação entre a política

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e a religião ainda pode ser notada na contemporaneidade: com certeza você


já acompanhou os noticiários sobre os longos conflitos na região da Palestina.
Em algum momento você já se deparou com as discussões acerca da aprovação
das células-tronco embrionárias para pesquisa que recebe críticas dos líderes
católicos e protestantes? Como estudar a relação das religiões com as novas
formas de mídia? É possível estabelecer limites e diferenças entre o discurso
científico e o discurso religioso? Qual desses territórios deve ter resoluções so-
bre questões éticas? Todos esses questionamentos podem ser entendidos como
objetos do campo historiográfico.

Questões para reflexão


Quais são os prós e os contras da religião para o avanço da ciência?

Atividades de aprendizagem
Leia atentamente o texto a seguir:
O Estado Laico e a Democracia
A Constituição brasileira de 1824 estabelecia em seu artigo 5º: “A Religião
Catholica Apostolica Romana continuará a ser a Religião do Império. Todas
as outras Religiões serão permitidas com seu culto doméstico, ou particular
em casas para isso destinadas, sem forma alguma exterior do Templo”.
A atual Constituição não repete tal disposição, nem institui qualquer
outra religião como sendo a oficial do Estado. Ademais estabeleceu em
seu artigo 19, I, o seguinte: “É vedado à União, aos Estados, ao Distrito
Federal e aos Municípios: I — estabelecer cultos religiosos ou igrejas,
subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles
ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada,
na forma da lei, a colaboração de interesse público.”
Com base nesta disposição, o Estado brasileiro foi caracterizado como
laico, palavra que, conforme o dicionário Aurélio, é sinônimo de leigo
e antônimo de clérigo (sacerdote católico), pessoa que faz parte da pró-
pria estrutura da Igreja. Neste conceito, Estado leigo se difere de Estado

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religioso, no qual a religião faz parte da própria constituição do Estado.


São exemplos de Estados religiosos o Vaticano, os Estados islâmicos e as
vizinhas Argentina e Bolívia, em cujas constituições dispõem, respectiva-
mente: “Art. 2. El Gobierno Federal sostiene el culto Católico Apostólico
Romano” — “Art. 3. Religion Oficial — El Estado reconoce y sostiene la
religion Católica Apostólica y Romana. Garantiza el ejercício público de
todo otro culto. Las relaciones con la Iglesia Católica se regirán mediante
concordados y acuerdos entre el Estado Boliviano y la Santa Sede.”
Atualmente, o termo Estado laico vem sendo utilizado no Brasil como
fundamento para a insurgência contra a instituição de feriados nacionais
para comemorações de datas religiosas, a instituição de monumentos com
conotação religiosa em logradouros públicos e contra o uso de símbolos
religiosos em repartições públicas. Até mesmo a expressão “sob a proteção
de Deus”, constante no preâmbulo da Constituição da República, vem
sendo alvo de questionamentos.
É importante ressaltar que o conceito de Estado laico não deve se con-
fundir com Estado ateu, tendo em vista que o ateísmo e seus assemelhados
também se incluem no direito à liberdade religiosa. É o direito de não ter
uma religião, conforme disse Pontes de Miranda: “liberdade de crença
compreende a liberdade de ter uma crença e a de não ter uma crença”
(Comentários à Constituição de 1967).
Assim sendo, confundir Estado laico com Estado ateu é privilegiar esta
crença (ou não crença) em detrimento das demais, o que afronta a Carta
Magna (PEREIRA, 2001).
Utilizando o fragmento anterior e seus conhecimentos sobre o assunto
elabore um texto dissertativo-argumentativo sobre o Estado laico no Brasil.
O texto deverá ter entre 10 e 15 linhas.

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Seção 4  Fundamentos da religião


Geralmente as religiões nascem por uma inspiração sobrenatural, não é
verdade? Não é alguém que senta e começa a pensar em como deveria ser uma
religião; o elemento fundamental da religião é a ideia de revelação. Apesar de
todas as religiões serem baseadas na revelação, é possível perceber certas es-
truturas comuns a todas elas. Vamos tentar compreender nesta seção, portanto,
o que fundamenta as diversas religiões.
Além de estudarmos os conceitos principais do monoteísmo, temos que
enfatizar sua importância para a formação da concepção que formamos de
temporalidade. A ideia judaico-cristã de tempo trouxe a linearidade temporal
como baliza para a estrutura de tempo.
O processo de formação das religiões passa por algumas fases. Primei-
ramente, conseguimos visualizar em todas as religiões a existência de uma
revelação da ordem metafísica. Ou seja, em determinado momento histórico,
a ordem do transcendente atua no tempo histórico e deixa sua marca. Perce-
bemos, também, que essas revelações se somam a determinados eventos his-
tóricos. Estes, por sua vez, são fatores que moldam as práticas posteriores das
religiões. Os ritos religiosos são oportunidades dadas pelas religiões para que
os fiéis, ao praticarem o rito, relembrem e experimentem os principais eventos
que formaram sua religião. A permanência desses eventos na história forma
o que chamamos de tradição. São justamente as “tradições” que possuem a
potência de formarem civilizações.

Questões para reflexão


Se religião e tradição são diferentes, por que há uma preocupação em
todas as religiões em manter uma determinada tradição?

Então, neste momento, que tal pensarmos sobre a diferença entre os termos
“religião” e “tradição”? Para auxiliar nossa análise, leremos um pequeno frag-
mento do texto A renovação do interesse pela tradição, de Whitaal N. Perry
(2008, p. 15):
A Religião, tomada com o actual sentido da palavra não
pode ser considerada como o equivalente de Tradição,

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pois a prática ritual da Religião é um acto específico


produzido num local e num instante específico com a
exclusão de outros actos, locais e instantes, não deixando
nada fora de si própria; adicionalmente, grande parte do
que é considerado Religião pode ainda ser encontrado
no mundo, enquanto a Tradição no seu sentido integral
e vivo dificilmente sobrevive. Assim pode soar paradoxal
afirmar, como agora o fazemos, que a Tradição tem origem
na Religião. Reduzido a uma fórmula tem-se: a Religião
é a Revelação de Deus ao homem, e a Tradição as suas
aplicações e extensão total a todos os domínios.

Para fazermos a definição do uso que estamos dando ao termo “tradição”,


citaremos um trecho do artigo Compreender a palavra “Tradição”, de Ali
Lakhani (2007, p. 1):
Os termos “Tradição” e “Modernidade”, tal como usado
por tradicionalistas com Seyyed Hossein Nasr, não são
derivativos da diferenciação convencional entre os ter-
mos “tradicional” e “moderno”, apesar do uso particular
que dão a estes termos tenha como premissa a estrutura
metafísica descrita atrás. Isto pode ser confuso. Para Nasr,
“Modernidade” é “aquilo que está separado do Trans-
cendente, dos princípios imutáveis que, na realidade,
governam todas as coisas e que são dados a conhecer
ao homem através da revelação no seu sentido mais uni-
versal”, enquanto que “Tradição”, por contraste, designa
esses mesmos princípios imutáveis, a sophia perennis ou
sabedoria primordial, os quais estão fundados no Trans-
cendente. De acordo com essa definição, Modernidade
não é necessariamente um sinônimo de contemporâneo
(ou focado no futuro), nem Tradição é sinónimo de con-
tinuidade histórica (ou focado no passado). Tradição é,
nesse sentido, meta-história: a sua única relação com
o passado reside na ligação de uma particular tradição
religiosa à sua fonte original, ou seja, à revelação que a
autentica, a escrita que a fundou e as suas formas de ado-
ração, transmitidas através do ambiente protector de uma
tradição particular. Mas esta relação entre uma tradição
particular e as suas origens históricas é, de certa forma,
acidental. A relação entre Tradição e Revelação trans-
cende a história. A Revelação, “no seu sentido mais uni-
versal”, não é um acontecimento histórico: está baseada
no eterno presente e é contínua. A sua autenticação não
pode ser reduzida à nossa capacidade para a colocar em
qualquer momento da história, mas sim, garantida pela

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sua capacidade de ressoar como verdade no interior do


santuário do Coração, cuja faculdade de discernimento
é o Intelecto suprarracional.

A citação colocada é muito importante. Ela apresenta uma epistemolo-


gia que apresenta vários pontos que merecem uma atenção redobrada. Vamos
enumerá-los para facilitar nossa explanação:
1. Primeiramente, Ali Lakhani realizou uma distinção entre os termos
“Tradição” e “Modernidade”. Desde já, é importante que saibamos
que o uso feito por ele desses conceitos está baseado na concepção da
“escola” de estudos da religião chamada Filosofia Perene. Essa escola
apresenta como principais pensadores René Guénon, Frithjof Schuon
e Ananda Coomaraswamy. Alguns estudiosos gostam de chamá-los de
tradicionalistas. Portanto, na distinção entre “tradição” e “modernidade”
não encontramos nenhuma preocupação com a delimitação temporal.
Essa é uma distinção epistemológica. Eles não são simples adjetivos.
“Tradição” é entendido aqui como aquilo que pertence, provém e é
fruto direto da manifestação do transcendente, do plano divino, eterno e
perfeito. Para esses autores, somente essa realidade é capaz de produzir
uma cultura permanente, sólida e com durabilidade temporal. Logo, a
“modernidade” é tratada com aquilo que não é fruto ou resultado das
ações transcendentais. É aquilo que mantém um contato somente com
o efêmero, passageiro e imperfeito. Novamente, a “, Modernidade” não
é tratada aqui como um período histórico, mas como uma maneira de
se interpretarem os eventos existentes.
2. Para esses autores, o que possibilita a transmissão dessas tradições são
as práticas religiosas, que mantêm um contato direto com a ordem
transcendente que as moldam eternamente. Logo, a tradição não se liga
ou se limita ao passado, pois ela é atualizada eternamente no presente,
transcendendo, assim, o tempo.
Para explicar com exatidão o significado do termo “sabedoria perene”,
recorreremos a um dos maiores estudiosos do tema, Frithjof Schuon, (2008,
p. 33, grifos do autor). Nesse parágrafo do texto “A filosofia perene”, ele
sintetiza rapidamente o significado da sophia perene, expressão análoga à
sabedoria perene:
O termo philosophia perennis, corretamente utilizado
desde a Renascença e ao qual os neoescolásticos deram

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D e f i n i n d o c o n c e i t o s  23

bastante uso, significa a totalidade das verdades primor-


diais e universais — e, por essa razão, dos axiomas meta-
físicos — cuja formulação não pertence a nenhum sistema
em particular. Da mesma forma poderíamos referir-nos a
uma religio perennis, designando-se através deste termo
a essência de todas as religiões; isso significa a essência
de todas as formas de adoração, de todas as formas de
oração, e de todos os sistemas de moralidade, tal como
a sophia perennis é a essência de todos os dogmas e de
todas as expressões de sabedoria. Preferimos o termo
sophia em relação ao de philosophia, pela simples razão
que o segundo termo é menos directo e porque invoca
associações com um sistema de ideias totalmente profano
e demasiadas vezes aberrante.

Novamente, vamos enumerar alguns pontos que achamos de máxima im-


portância no texto anterior para facilitar nossa explanação:
1. Schuon nos mostra, então, que o termo filosofia perene é usado desde o
Renascimento. Esse termo significa a totalidade das verdades universais.
Devemos observar, portanto, que a filosofia perene não está relacionada
ou delimitada a nenhuma temporalidade ou historicidade, mas ela
transcende, está além das limitações temporais. Sendo assim, existe a
possibilidade de diferentes culturas expressarem as mesmas verdades
independentemente das formas e estilos que usarão para fazer isso.
2. Quando Schuon fala da religio perennis, ele se refere a uma perspectiva
apresentada em seu livro Unidade transcendente das religiões. Nesse
estudo, Schuon nos fornece a perspectiva de que apesar das diferenças
históricas, morais, rituais, sacerdotais, simbólicas das religiões, existe
uma unidade que as transcende, visto que todas elas nos remetem ao
mesmo objeto a ser apreendido: o transcendente.
3. Por fim, Schuon faz uma distinção entre os termos “filosofia perene”
e “filosofia”. Para ele, a filosofia perene é fruto das revelações trans-
cendentais que podem ser experimentadas e conhecidas nas religiões
tradicionais. Portanto, ela não é uma criação humana, não pertence ao
plano temporal. Logo, ela pode ser somente apreendida pelo homem.
No caso, o termo filosofia é entendido como o tipo de conhecimento
produzido pelo homem. Para Schuon, esse tipo de conhecimento não
possui o mesmo valor da filosofia perene, pois não possui a substancia-
lidade do transcendente.

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O estudo desses assuntos em História é realmente fascinante. Nós podemos


encontrar perspectivas que se chocam frontalmente. Parte do ofício do histo-
riador está em saber considerar esses enfrentamentos.

4.1 Modernidade e religião


O filósofo alemão do século XIX, Friedrich Nietzsche, via a modernidade
como um grande atraso para o desenvolvimento do espírito humano. Para ele,
a modernidade começara com Sócrates, pois a partir do momento que ele in-
fluenciou o Ocidente na busca pela verdade e na capacidade do conhecimento
do homem para resolver as tensões existenciais, o Ocidente declinou, pois
perdeu a capacidade tensional expressada nas tragédias gregas. Para Nietzsche,
a modernidade era um resultado dos movimentos empreendidos por Sócrates e
deveria ser transvalorada. Nietzsche acreditava que a permanência dos valores
transcendentais estavam muito presentes na modernidade.
Agora vejam que interessante. René Guénon é considerado um grande
crítico da modernidade. Mas, para este importante autor da Filosofia Perene,
a modernidade carece justamente dos elementos metafísicos. Portanto, nós
temos dois autores: Nietzsche e Guénon. Para o primeiro, a modernidade
está fundamentada em valores metafísicos. Para o segundo, ela carece jus-
tamente desses valores. Leia o trecho do livro A crise do mundo moderno e
confira as críticas contundentes que esse metafísico lançou nos alicerces da
modernidade:
Parece que o poder financeiro domina a política toda,
que a concorrência comercial exerce uma influência
preponderante sobre as relações entre os povos. [...].
Por aí se pode ainda, mais uma vez, constatar o efeito
duma dessas sugestões, às quais atrás fazíamos alusão,
sugestões que agem tanto melhor quanto correspondem
às tendências da mentalidade geral. E o efeito desta su-
gestão é que os meios econômicos acabam por determinar
realmente quase tudo o que se produz no domínio social.
Sem dúvida, a massa sempre foi levada de um modo ou
outro e poder-se-ia dizer que seu papel histórico consiste
sobretudo em se deixar levar, pois representa somente
um elemento passivo, uma ‘matéria’ no sentido aristoté-
lico; hoje porém basta, para conduzi-la, dispor de meios
puramente materiais, desta vez no sentido comum da
palavra, o que bem mostra o grau de envelhecimento de
nossa época. Ao mesmo tempo se faz crer a esta massa

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que ela não é conduzida, que ela age espontaneamente


governando-se a si mesma. O fato de que ela assim o
crê, permite entrever até que ponto pode chegar a sua
ininteligência (GUÉNON, 1927, p. 81).

1. A crítica realizada por Guénon à modernidade é muito pesada. Para


ele, a modernidade é regida simplesmente pelos fatores econômicos.
A riqueza material é a única fonte de distinção social existente na mo-
dernidade. Isso é uma marca da ausência do contato e experiência de
relação com o transcendente que, segundo ele, determina diretamente o
caráter de nossa época. Portanto, tem-se aqui a perspectiva de que para
a formação dos valores morais, civilizacionais e éticos é necessário que
se tenha uma ligação com a tradição, com a religião e com a revelação.
As simples transações comerciais não são capazes de fornecer as bases
culturais para a formação das civilizações. Por isso, a modernidade para
Guénon está em crise.
2. Conseguimos perceber claramente a crítica dirigida ao materialismo
histórico. Devemos ressaltar que Karl Marx nunca usou a expressão
“materialismo histórico”. Ele falou em “materialismo dialético” — não
vamos entrar nas implicações conceituais desse termo. O materialismo
histórico é considerado a tradição de produção intelectual que utiliza
como referências as premissas metodológicas do pensamento de Karl
Marx. Para esse autor, as relações econômicas eram as responsáveis
pela delimitação dos demais aspectos da sociedade. Logo, para um
pesquisador entender a religião, a cultura e a formação das civilizações
era necessário compreender as estruturas econômicas que regiam a
sociedade, pois as demais instâncias eram reflexos da economia. Esse
tipo de análise representa para Guénon um erro grave, pois não leva
em consideração os aspectos metafísicos que são os verdadeiros fun-
dadores de civilizações.
3. Na parte final da citação, vemos a preocupação de Guénon sobre os
efeitos das premissas materialistas na condução das massas, que mesmo
sendo conduzidas pelos elementos de puerilidade, ainda possuem a sen-
sação de serem elas as condutoras dos processos históricos. Os governos
democráticos da modernidade seriam um exemplo dessa degradação
do espírito humano.

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Questões para reflexão


Você concorda com a posição apresentada por Frithjof Schuon sobre
a unidade transcendente das religiões?

Schuon interpretou a modernidade na mesma direção de Guénon:


A humanidade vive normalmente num símbolo, que é
uma indicação rumo ao Céu, uma abertura para o infinito.
A ciência moderna transpassou as fronteiras protetoras
deste símbolo e com isso destruiu o próprio símbolo
(SCHUON, 2006, p. 43).

Para saber mais


Uma discussão interessante sobre modernidade e religião está no artigo: “O discurso religioso
na modernidade liquida: Polissemia e autoritarismo no neopentecostalismo brasileiro contem-
porâneo”. Disponível em: <http://www3.est.edu.br/nepp/revista/019/ano08n2_07.pdf>.

4.2 Símbolos religiosos


Antes de entrarmos na explicação sobre a importância dos símbolos para
as religiões, vamos propor um questionamento que acreditamos ser pertinente:
mas, afinal, quais são os critérios usados para sabermos se uma prática faz
parte ou não de uma religião? Como separar o que é e o que não é religião?
Fique tranquilo! Existem alguns parâmetros. Por mais divergentes e distantes
que possam parecer as religiões, elas apresentam pontos de contato que nos
permitem colocá-las num mesmo grupo. Podemos enumerá-los:
1. Toda religião se apresenta como uma expressão universal do transcen-
dente. Ou seja, toda religião se oferece ao ser humano como uma pos-
sibilidade de religá-lo ao plano transcendental. De alguma maneira o
homem se separou da ordem perfeita que o criou e o ambiente religioso
é o território, o caminho, o veículo oferecido pelo plano divino para
religar o homem a ele.

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2. Toda religião se afirma como necessária. Seria muito estranho nós es-
cutarmos um sacerdote ou um praticante de uma religião dizer que as
práticas que moldam a sua fé são feitas gratuitamente e não apresentam
nenhum valor significativo.
3. As religiões afirmam a capacidade do transcendente em mudar o ho-
mem e ao mesmo tempo a impossibilidade do homem em alterar o
transcendente. Tornando mais claro: Deus pode modificar o homem,
mas o homem não pode modificar Deus!
4. As religiões sempre oferecem uma resposta para algumas dúvidas inte-
lectuais do homem, como: O que é o bem? O que nos espera depois
da morte? O que é a Justiça?
5. Toda religião possui uma simbologia capaz de religar o finito ao infinito.
Essas são as características básicas que formam as religiões. Para compre-
endermos as religiões, é muito importante que se tenha a distinção entre o
infinito e o finito. Muito dos erros cometidos pelos estudiosos das religiões
está vinculado à incapacidade de perceber a diferença entre essas duas ordens.
Vamos entendê-las?
O infinito é a ordem não criada. Ele é o próprio absoluto, ou seja, não está
condicionado a nada. Ele não tem começo, meio e fim. Ele é sempre presente,
logo, não está sujeito às determinações temporais. O plano finito é a ordem
criada, faz parte de uma série de existências relativas. Tudo o que existe no
plano finito está numa relação de dependência com outros elementos também
finitos. Para que ele exista é necessário que outras coisas também existam e
possibilitem sua existência.
É bom que saibamos que é uma impossibilidade a ordem finita compreen-
der a ordem infinita em sua totalidade. Sendo assim, como o homem — que
pertence à ordem finita — é capaz de saber algo sobre Deus — que é a própria
ordem infinita? Para realizar essa transição, esse contato, as religiões fazem uso
dos símbolos. Os símbolos usados pelas religiões funcionam como pontes de
ligação entre o transcendente e o imanente. Por isso, é de fundamental impor-
tância compreendê-los para que se saiba do que as religiões estão falando. Mas,
afinal, por que as religiões possuem símbolos e práticas muitas vezes diferentes
e contraditórios entre si?
Para tentar responder a esse questionamento, vamos recorrer ao uso de uma
metáfora para exemplificar melhor nossa explicação: imagine que você precisa

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realizar uma viagem da cidade de São Paulo para a cidade do Rio de Janeiro.
Sabemos que podemos realizar esse trajeto de várias maneiras diferentes. De
carro, de bicicleta, de avião, de helicóptero, de ônibus ou até mesmo a pé. Cada
meio de realizar o trajeto apresenta algumas vantagens e desvantagens. Uns
podem preferir a privacidade de viajar com seu próprio carro, outros gostariam
de ganhar tempo e preferem o avião, algumas pessoas têm medo de avião,
enfim, as possibilidades são inúmeras. O fato essencial é: todos eles sairão de
São Paulo e chegarão ao Rio de Janeiro. A teoria defendida por Frithjof Schuon
se assemelha com a metáfora apresentada. Todas as religiões se apresentam
como caminhos que religam o homem ao absoluto. Logo, todas elas, apesar
de suas divergências e diferenças, nos remetem ao mesmo plano.
Se todas as religiões, dentro da perspectiva de Schuon, nos levam ao mesmo
local, podemos então pegar alguns aspectos do cristianismo que achamos
pertinentes e misturar com doutrinas budistas
e algumas práticas islâmicas, ou seja, fazermos
Para saber mais um “mix” das religiões? Isso para Schuon seria
Livro emblemático da antropologia um grande erro. Assim como é impossível ir-
é a obra de James George Frazer mos de carro e helicóptero ao mesmo tempo
intitulado O Ramo de ouro (1982).
de São Paulo ao Rio de Janeiro, também é
O autor aborda uma enorme diver-
impossível chegarmos ao absoluto fragmen-
sidade de mitos, lendas e relatos
de magia e religião, dos mais dife- tando as religiões. Elas são formas integrais e
rentes povos do mundo, deba- perfeitas dadas pelo transcendente para religar
tendo a questão principal do “deus o homem à ordem superior. Muitas vezes, a
imolado”. historiografia desconsidera esses aspectos.
Outro importante fator que merece nossa
atenção nas estruturas das religiões é a diferença entre esoterismo e exoterismo.
Vamos defini-los?
Esoterismo são as práticas internas das religiões direcionadas somente a
um grupo de iniciados. Exoterismo são as práticas exteriores realizadas pelas
religiões, como explica René Guénon:
De todas as doutrinas tradicionais, a do Islão é talvez
aquela onde a distinção entre as suas duas partes comple-
mentares — as quais podemos designar por exoterismo e
esoterismo — é mais acentuada. Estas são, de acordo com
a terminologia árabe, as-chari’ah (com o significado literal
de a “grande estrada”), comum a todos, e al-haqiqah (a
“verdade” interior), reservada à elite, não por virtude de
qualquer decisão arbitrária, mas devido à própria natureza

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das coisas, pois nem todos possuem a aptidão ou as “qua-


lificações” necessárias para alcançar este conhecimento.
As duas são frequentemente comparadas, de forma a ex-
primirem o seu respectivo carácter “exterior” e “interior”,
à casca e ao caroço, à pele exterior de um fruto e à sua
polpa (al-qshir wa’l-lubb), ou ainda, à sua circunferência
e ao seu centro (GUÉNON, 2009, p. 109).

Fique ligado!
Nesta unidade você aprendeu que:
A palavra “povo” tem origem no latim: populus. Ela pode ter por definição:
união de indivíduos que compartilham entre si crenças, práticas e símbolos
estabelecendo um sentimento de unidade e de identidade social.
Norbert Elias e Nicola Abbagnano nos ajudam, com seus estudos, a
perceber uma moderna definição de povo.
Que o termo “cultura” possui duas interpretações distintas. Primeira-
mente, podemos entendê-la como um processo de formação individual,
no qual o sujeito é preparado e educado para acumular determinadas
informações que ampliam a sua visão de mundo. Em um segundo mo-
mento, também podemos entender a cultura como um sentido coletivo,
no qual essas marcas de individualização são colocadas de lado para
darem lugar ao sentido coletivo de um povo.
O termo “religião” pode ser entendido como um conjunto de crenças
compartilhado entre um determinado grupo social que mantém relações
com alguma ordem metafísica.
O processo de formação das religiões passa por algumas fases. Todas
as religiões possuem uma revelação da ordem metafísica. Essas revela-
ções se somam a determinados eventos históricos. Estes, por sua vez,
são fatores que moldam as práticas posteriores das religiões. Os ritos
religiosos são oportunidades dadas pelas religiões para que os fiéis,
ao praticarem o rito, relembrem e experimentem os principais eventos
que formaram sua religião. A permanência desses eventos na história
forma o que chamamos de tradição. São justamente as “tradições” que
possuem a potência de formarem civilizações.

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Para concluir o estudo da unidade


De antemão, é bom ressaltarmos que é possível encontrar outras de-
finições para os termos que trabalhamos nesta primeira unidade. Não
se preocupe! Saiba que isso é bom e que o conhecimento se faz jus-
tamente nessas tensões que encontramos entre diferentes perspectivas.
Fique ciente de que com quantos mais pontos de vista conflitantes você
tiver contato, maiores serão as possibilidades de entendimento sobre o
assunto estudado.
Seguem algumas indicações de leituras para continuar os estudos
sobre o tema:
Massa e poder, de Elias Canetti. Neste livro o autor conseguiu retratar
alguns motivos que levam à formação do fenômeno das massas na História
contemporânea.
Hitler e os alemães, de Eric Voegelin. Livro recentemente editado no
Brasil e que faz uma análise precisa do problema intelectivo da Alemanha,
que aderiu passivamente ao nazismo.
Os alemães, de Norbert Elias. O livro aborda os elementos culturais,
sociais e políticos que contribuíram para a formação da Alemanha no
século XIX.
Considerações extemporâneas, de Friedrich Nietzsche. Extremamente
polêmicas, essas considerações colocam a atenção sobre os problemas
culturais europeus do século XVIII e XIX. Elas estão dividas em quatro tex-
tos diferentes que abordam questões diferentes sobre a modernidade. Sem
dúvida, a mais importante, para os historiadores é a “Segunda Considera-
ção Extemporânea: Da Utilidade e Desvantagem da História para a vida.
Filosofias da Índia, de Heinrich Zimmer. Uma ótima introdução para
os alunos que desejarem conhecer um pouco mais sobre a cultura e a
religião indiana.
O jardim das aflições, de Olavo de Carvalho. Nesse livro há uma
viagem pela história das ideias desde Epicuro até a produção intelectual
no Brasil atual. Os diagnósticos de Olavo de Carvalho são arrasadores e
preocupantes.

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O imbecil coletivo, de Olavo de Carvalho. Neste livro, o autor des-


creve a precariedade do pensamento brasileiro. Baseando-se em artigos
de revistas, jornais, discursos oficiais e cenas do cotidiano, Olavo expõe
o problema civilizacional do Brasil.
As religiões políticas, de Eric Voegelin. Leitura fundamental para
aqueles que desejam entender a relação entre política e religião na
Antiguidade.
Eutífron, de Platão. Belíssimo diálogo em que Sócrates se propõe a
entender a religiosidade.

Atividades de aprendizagem da unidade


1. No limiar do século XX, às vésperas da Primeira Guerra Mundial,
o historiador francês Ernest Lavisse fornecia as instruções para o
ensino da História aos jovens de seu tempo, das quais reproduz-se
o trecho seguinte:
Ao ensino histórico incumbe o dever glorioso de
fazer amar e de fazer compreender a pátria, todos
os nossos heróis do passado, mesmo envoltos em
lendas. Se o estudante não leva consigo a viva
lembrança de nossas glórias nacionais, se não sabe
que nossos ancestrais combateram por mil campos
de batalha por nobres causas, se não aprendeu o
que custou o sangue e o esforço para constituir a
unidade da pátria e retirar, em seguida, do caos de
nossas instituições envelhecidas, as leis sagradas
que nos fizeram livres, se não se torna um cidadão
compenetrado de seus deveres e um soldado que
ama sua bandeira, o professor perdeu seu tempo.

Com o auxílio das ideias defendidas pelo historiador Lavisse e os


estudos realizados na disciplina de Povo, cultura e religião julgue os
itens que se seguem e assinale a alternativa que apresenta a relação
correta entre a pesquisa historiográfica e a cultura.

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a) A História é escrita pelos pesquisadores e deve ser ensinada pelos


mestres com o compromisso de quem pesquisa e ensina as grandes
questões de seu tempo, sendo assim, não podemos estabelecer
nenhuma relação significativa entre o estudo da história e sua
influência na cultura.
b) A visão excessivamente patriótica do autor expõe concepções
que, no alvorecer do século XX, entendiam que o historiador tinha
como função glorificar a nação, o Estado e as instituições, o que
demonstra a separação entre história e cultura.
c) O “ensino histórico”, no contexto do Brasil contemporâneo, deve
ser, sobretudo, um instrumento de combate para fazer que as ar-
mas intelectuais estejam a favor da unidade da pátria e do amor
de cada cidadão pela sua bandeira promovendo a guerra cultural
necessária para justificar o estudo da história.
d) O estudo da história está diretamente relacionado com as questões
culturais, pois, como vimos, dependendo da epistemologia da cor-
rente historiográfica podem-se produzir ou alterar determinados
tipos de cultura.
e) A revolução metodológica no ensino da História tornou-a, no fim
do século XX, completamente racional e neutra, sem qualquer
possibilidade de interferência da ideologia na teoria cultural con-
temporânea; logo, história e cultura são territórios de pesquisa e
atuação distintos.
2. Leia o texto a seguir e responda à questão proposta pelo exercício:
Eu era garotão ainda quando a Força Expedicioná-
ria Brasileira chegou à Itália. Passaram na minha
cidade, porque foram de Salerno para Siena. Fazia
parte do batalhão um cidadão italiano, que veio para
cá pequenino e depois se naturalizou. O pai deste
soldado tinha deixado uma filha pequena na Itália
com um irmão que não conseguia ter filho nenhum.
Então o rapaz sabia que tinha uma irmã em Paola,
que ele não conhecia e que era criada por um tio.
Pediu consentimento para os oficiais e chegou em

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Paola, chegou lá para conhecer a irmã. Não sabia


nem falar italiano, só falava português. Ninguém
entendia nada. Aí procuraram o meu pai, que falava
bem o português e meu pai serviu de intérprete para
ele poder conhecer a irmã (Depoimento de Vicenzo
Figlino) (GOMES, 1999, p. 35).

Uma das formas que o historiador utiliza para estudar uma época é
recolher depoimentos de pessoas que viveram experiências no pas-
sado. O depoimento anterior pode estar identificado por um tipo de
memória ligado a um contexto histórico. Observamos por esse de-
poimento o contato direto entre dois povos: o brasileiro e o italiano.
Sobre a relação do estudo da História com o estudo das relações de
formação dos povos assinale a alternativa correta:
a) A História pode utilizar-se dos aspectos sociais para produzir
pesquisas que estudem a formação e relação de diferentes povos.
b) A História é sempre oficial, sendo assim, torna-se impossível re-
lacionarmos num estudo povo e história.
c) A História nunca é oficial, o que impossibilita o estudo da forma-
ção dos povos pela história.
d) A História é fruto do social e de acordo com o que vimos no tre-
cho citado, é somente uma construção discursiva da cidadania
italiana.
e) A História apresenta-se como uma excelente ferramenta de estudo
para a formação e integração de diferentes povos.
3. Leia o texto a seguir e responda à questão proposta:
Em 1992, por ocasião dos 500 anos de viagem de
Colombo, houve intenso e extenso debate nas Amé-
ricas e na Europa sobre o vocabulário adequado para
descrever a chegada dos europeus ao continente.
Uma crítica devastadora foi então feita ao uso da
palavra descobrimento, por representar um insupor-
tável etnocentrismo europeu. [...] Sete anos depois,
o Brasil entra na febre dos 500 anos. No entanto, nas
celebrações oficiais e oficiosas, nas reportagens da
mídia, nas exposições, nos seminários acadêmicos,
a terminologia empregada para descrever a chegada

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dos portugueses às nossas praias é uma só. Com uma


ou outra exceção, em geral vinda de algum chato in-
conveniente, celebra-se o descobrimento do Brasil.
[...] O genocídio que a palavra encobre seria fenô-
meno exclusivamente espanhol, fruto da truculência
dos conquistadores. Em nosso caso, as relações com
os nativos teriam sido amigáveis. Nada melhor para
exprimir esta visão do que a consagração da carta
de Caminha, como certidão de nascimento do país.
[...] O mesmo empreendimento colonizador que
dizimou em três séculos 3 milhões de nativos foi
também responsável pela importação, nos mesmos
três séculos, de 3 milhões de escravos africanos,
cuja sorte não foi melhor. Se as palavras não são
para encobrir as coisas, só há uma expressão para
descrever o que se passou desde 1500: conquista
com genocídio de índios, seguida de colonização
com escravidão africana. Daí viemos, em cima disso
foram construídos os alicerces de nossa sociedade.
Descobrir o Brasil de hoje é tirar o véu que o des-
cobrimento lança sobre este lado inescapável de
nossa herança (CARVALHO, 1999, p. 1).

A partir do texto, analise as afirmações seguintes sobre a discussão


que envolve a temática relativa aos 500 anos do Descobrimento
do Brasil.
I. A chegada dos portugueses no Brasil foi um importante evento his-
tórico que proporcionou um encontro de duas culturas diferentes.
II. É possível afirmar que o Descobrimento em si não merecia ne-
nhuma comemoração festiva, pois o episódio foi, na verdade, um
evento cultural sem relação com a História.
III. O “encobrimento” da história brasileira consistiria fundamental-
mente em apresentar o Descobrimento e a colonização como um
processo político sem relações com a História

Quais estão correta(s)?


a) Apenas I.
b) Apenas I e II.
c) Apenas I e III.

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d) Apenas II e III.
e) I, II e III.
4. O Sermão da Montanha é visto aqui como o texto que melhor ex-
prime o cerne da mensagem do Novo Testamento e como uma síntese
perfeita da tradição cristã. Pode-se ler toda a Bíblia, do Gênesis ao
Apocalipse, mas dificilmente se encontrará algo que supere a sabe-
doria do Sermão. O texto concentra o maior número de doutrinas
e conselhos espirituais perenes e universais de toda a Escritura. Boa
parte de tudo aquilo que o leitor da Bíblia dela se recorda deriva do
Sermão. Ninguém menos que Santo Agostinho (2002) chamou-o “re-
gra perfeita” da vida virtuosa. Fonte de instruções espirituais e morais,
o Sermão da Montanha é encarado como a quintessência mesma do
Cristianismo.

Com base no texto e em seus conhecimentos assinale a alternativa


que melhor define a Filosofia Perene.
a) A Filosofia Perene não está relacionada ou delimitada a nenhuma
temporalidade ou historicidade, mas ela transcende, está além das
limitações temporais.
b) Na Filosofia Perene não existe a possibilidade de diferentes cul-
turas expressarem as mesmas verdades independentemente das
formas e estilos que usarão para fazer isso.
c) A Filosofia Perene está relacionada ou delimitada a uma tempo-
ralidade ou historicidade, ela não transcende, nem vai além das
limitações temporais.
d) A possibilidade de diferentes culturas expressarem as mesmas
verdades independentemente das formas e estilos que usarão é
negada pelos estudiosos da Filosofia Perene.
e) A Filosofia Perene não consegue perceber os elementos universais,
sobretudo no caso religioso, uma vez que as mensagens religiosas
não têm caráter universal.

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5. Ao se pensar em povo, cultura e religião, há alguns conceitos que


são básicos, leia atentamente as duas colunas a seguir:

Conceito Definição
I. Povo a) Um processo de formação individual, no qual o sujeito
II. Cultura é preparado e educado para acumular determinadas in-
III. Religião formações que ampliam a sua visão de mundo, o termo
IV. Tradição pode adquirir um sentido coletivo, no qual essas marcas
V. Modernidade de individualização são colocadas de lado.
b) Comunidade humana caracterizada pela vontade dos
indivíduos que a compõem de viver sob a mesma orde-
nação jurídica.
c) Conjunto de crenças compartilhado entre um determi-
nado grupo social que mantém relações com alguma
ordem metafísica.
d) “Aquilo que está separado do transcendente, dos prin-
cípios imutáveis que, na realidade, governam todas as
coisas e que são dados a conhecer ao homem através da
revelação no seu sentido mais universal”.
e) Designa esses mesmos princípios imutáveis, a sophia pe-
rennis ou sabedoria primordial, os quais estão fundados
no transcendente.

Segundo o campo de estudos que abordamos nesta unidade assinale


a alternativa que faz a correspondência correta entre as duas colunas:
a) I — a; II — b; III — c; IV — d; V — e
b) I — b; II — a; III — c; IV — e; V — d
c) I — c; II — b; III — d; IV — e; V — a
d) I — d; II — e; III — a; IV — b; V — c
e) I — e; II — a; III — b; IV — c; V — d

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SCHAFER, Murray. A afinação do mundo. São Paulo: Edunesp, 2001.

Povo cultura religiao_book.indb 39 6/19/14 4:08 PM


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SCHUON, Frithjof. A filosofia perene. Revista Sabedoria Perene, set. 2008. Disponível em:
<http://sabedoriaperene.blogspot.com.br/>. Acesso em: mar. 2013.
SCHUON, Frithjof. Para compreender o Islã. Rio de Janeiro: Nova Era, 2006.
TERTULIANO. Apologia. 2013. Disponível em: <http://www.ibpan.com.br/site/images/stories/
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VAINFAS, Ronaldo. Casamento, amor e desejo no ocidente cristão. São Paulo: Ática, 1986.
VEYNE, Paul. História da vida privada: do império romano ao ano mil. São Paulo, 1992, v. 1.
WARNIER, Jean-Pierre. A mundialização da cultura. Bauru: Edusc, 2000. p. 103-104.
ZAGORIN, Perez. Historiografia e pós-modernismo: reconsiderações. Trad. Aline Lorena
Tolosa. Topoi, Rio de Janeiro, p. 137-152, mar. 2001.

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Unidade 2
O fenômeno
religioso
Thiago Rodrigo da Silva

Objetivos de aprendizagem: Fornecer elementos para que o leitor


entenda a religião enquanto fenômeno que influencia a organiza-
ção social. Também entenderemos a importância do pensamento
agostiniano e os limites apontados pelo cartesianismo, além do sin-
cretismo religioso e do ecumenismo da sociedade contemporânea.

Seção 1: O politeísmo, o monoteísmo e


as implicações civilizacionais na
compreensão do tempo histórico
Nesta seção iremos definir as semelhanças entre
as diversas religiões, além das diferenças entre as
concepções de tempo histórico das doutrinas mo-
noteístas e politeístas.

Seção 2: A explicação agostiniana para a natureza


e seus reflexos culturais
A intenção nesta seção é compreender que grande
parte das noções que temos em relação a definições
básicas sobre a fé cristã foi formulada pelo filósofo
patrístico Santo Agostinho. Também analisaremos
como as transformações no pensamento, simboliza-
das pelo cartesianismo, modificaram o pensamento
ocidental nos últimos séculos.

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Seção 3: O sincretismo religioso e o ecumenismo
Nesta última seção abordaremos como o sin-
cretismo é parte da cultura brasileira e também
ocidental, assim como analisaremos as buscas
das igrejas cristãs pelo diálogo ecumênico na
contemporaneidade.

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O f e n ô m e n o r e l i g i o s o  43

Introdução ao estudo
A religião é um dos temas polêmicos da humanidade. Pois a mesma é consi-
derada de diversas formas pelos mais diferentes indivíduos. Alguns consideram
a religião uma simples forma da legitimação da exploração humana, como
apontava o pensamento marxista. Para Marx ou para muitos dos intelectuais que
eram ligados ao seu sistema de pensamento, a religião era um dos aparelhos da
ideologia do Estado, e que servia para manter a classe trabalhadora subordinada
aos interesses dos burgueses (ALTHUSSER, 1981). Uma máxima marxista conhe-
cida é a da religião como o “ópio do povo”, isto é, como uma droga a acalmar
as massas. Outros vislumbravam na religião sentimentos infantis, como para o
positivismo de Auguste Comte (SELL, 2001). Segundo este intelectual, três seriam
os estágios do desenvolvimento humano: o metafísico (religioso), o filosófico e
o científico, correspondendo à infância, adolescência e maturidade da espécie
humana. Todavia, mesmo com estes e outros intelectuais, como Nietzsche e
Freud, que apontavam na religião um tema menor, os estudos sobre as questões
religiosas se fazem presentes no campo das ciências humanas.
A importância do estudo das religiões se justifica pela relevância que os
valores propostos pelas diferentes formas de fé têm nas atitudes dos indivíduos
e das sociedades. Em nome de Deus pessoas agem com ações de solidariedade
e bondade, entregando-se a causas nobres e ações humanitárias. Todavia, em
nome do mesmo Deus, no presente e no passado, muitas guerras são legitimadas
por discursos religiosos, como as cruzadas medievais ou as contemporâneas
Guerras Contra o Terror (CARDOSO et al., 2004, p. 77). Todavia, independen-
temente das polêmicas a respeito da religião ser um bem ou mal aos homens,
compreender os comportamentos individuais advindos de crenças religiosas é
importante para entendermos diversos eventos históricos.
A compreensão acadêmica dos fenômenos religiosos é uma das importan-
tes questões levantadas pelas ciências humanas, com diferentes respostas e
metodologias ao estudo. Pois, em grande parte, podemos compreender que as
mais diferentes culturas humanas possuem aspectos religiosos. Como se trata
de uma dimensão das vivências humanas, a religião se pauta como um dos
temas clássicos das ciências humanas e sociais.
Até o século XIX, praticamente apenas os teólogos se preocupavam com o
estudo da questão religiosa. Porém, com o desenvolvimento das ciências hu-

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manas, a fé deixou de ser um primado da teologia, para se tornar uma questão


científica. Todavia, a maior parcela dos estudiosos das questões religiosas de-
senvolveu metodologias diferentes, por vezes até conflitantes, mas que tinham
na religião um importante tema para a compreensão do ser humano e da so-
ciedade. Para um historiador, sociólogo, antropólogo ou cientista da religião,
mais importante que diagnosticar qual seria a crença verdadeira, ou então,
afirmar ou provar que na verdade Deus não existe, é compreender como os
valores religiosos influenciaram a humanidade de formas variadas nos campos
da política, da economia e dos costumes.
Existem várias tendências interpretativas, dentro das ciências humanas, que
apontam uma das diversas possibilidades de compreensão das sensibilidades
religiosas em toda a sociedade. A fenomenologia, o funcionalismo, o mate-
rialismo dialético e o relativismo nos indicam possibilidades de compreensão
dos fenômenos religiosos.
Podemos observar cinco grandes religiões mundiais. O cristianismo e o
islamismo (de base judaica), o hinduísmo, o budismo e o confucionismo.
Porém, não são apenas estas religiões que as ciências humanas procuram es-
tudar. Temos também os estudos relativos a pequenos grupos, como os rituais
das tribos amazônicas e dos aborígenes australianos. Como veremos, o estudo
do fenômeno religioso e das influências religiosas na cultura ocidental, em
especial dos intelectuais cristãos, como Santo Agostinho, são de fundamental
importância para uma melhor compreensão da história da humanidade.

Seção 1  O politeísmo, o monoteísmo e as


implicações civilizacionais na
compreensão do tempo histórico
A palavra religião, em sua origem etimológica, é proveniente do latim e
significa religar. Isto é, ligar o que estava “des-ligado”, sem contato. No caso,
reativar o contato da humanidade com o criador, ou criadores, do universo.
Por vezes, a religiões são consideradas uma nova ânima (vida, alma) para um
corpo e mente “des-animado”, sem sentido à vida. Atualmente, temos uma
pluralidade e diversidade de ritos religiosos, desde as novas igrejas protestantes
pentecostais, até os ritos satanistas, ou mesmo pessoas que dizem acreditar
em Deus, mas não ter religião. Portanto, analisar o fenômeno religioso pode

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O f e n ô m e n o r e l i g i o s o  45

ser compreendido como as mais diferentes sociedades e civilizações buscam


responder a pergunta: o que é Deus?
O “deus” seria, para as mais diferentes culturas, o ser ou entidade que teve
a capacidade de criar o planeta Terra, o céu, as estrelas e tudo o que existe no
mundo. Portanto, a primeira característica que possibilita uma definição do que
é deus seria pensá-lo como um criador, ou os criadores do mundo. Porém, qual
a relação do criador com suas criaturas? Isto é, como deus se relaciona a natu-
reza e com os seres humanos? Teria ele abandonado a humanidade, deixando
aos guias espirituais a tarefa de conduzir os homens em suas existências? Ou
seria ele um deus onipresente, onipotente e onisciente, isto é, um deus que
tudo sabe tudo ouve tudo vê?
Neste sentido, as mais diferentes concepções sobre como deus seria tam-
bém se relacionam a pensar como se relacionar com ele. Pois, para aqueles
que pensam em deus como um senhor vingativo ou com poderes de punir os
homens, deus é uma figura que merece temor ou profundo respeito e obediên-
cia. Porém, para aqueles que pensam deus como alguém amoroso e caritativo,
ele é uma espécie de ser que deve ser cultuado através de ações de amor e
solidariedade. Se deus é onipotente, onipresente e onisciente, temos como
nos relacionar diretamente com ele. Porém, se deus está distante, devemos nos
relacionar com seus intercessores, sejam santos ou orixás.
As relações dos indivíduos com deus são múltiplas. Porém, as formas de
se relacionar com deus, em geral, são mediadas por diversos símbolos. Deste
modo, podemos compreender que a vida humana, por vezes, possuiu modos
de explicação de sua própria existência, que são representadas com objetos
de valor sentimental profundo para aqueles que possuem crenças religiosas.
O terço, a Bíblia, o Alcorão, a Torah, o Talmude, a estrela de David, as guias
dos orixás, a cruz, a lua crescente, todos estes símbolos representam diferentes
modos de indivíduos se relacionarem com Deus.
Assim, as possibilidades de compreensão das religiões são múltiplas, tão
múltiplas quanto a variedade de expressões religiosas em diferentes sociedades
humanas. Porém, algumas características das manifestações das religiões, nas
mais diferentes culturas, se apresentam de modo semelhante. Como a presença
de sacerdotes, milagres, profetas, rituais e delimitações de crenças. Estas regu-
laridades das presenças de funções religiosas e seus respectivos personagens
nos permitem compreender o fenômeno religioso (WEBER, 2004).

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46  P O V O , C U LT U R A E R E L I G I Ã O

Uma das questões básicas para a compreensão social dos ritos religiosos
são as diversas funções socais que os mesmos desempenham. A possibilidade
de legitimar as hierarquias sociais, ao mesmo tempo explicar os fenômenos
naturais e possibilitar uma forma dos homens e mulheres lidarem com a morte.
O fim da vida, por vezes, é um dos elementos que mais se envolvem com as
religiões. Temos as religiões que acreditam em reencarnação e diversas formas
de contatos dos vivos com os mortos, e também uma total negação da possi-
bilidade de contato com os mortos.
Uma das primeiras classificações que se podem utilizar como possibilidade
de compreensão do fenômeno religioso é a diferenciação entre o politeísmo e
o monoteísmo. Uma visão eurocêntrica e ocidentalizada da história das reli­
giões, presente em alguns clássicos da antropologia e sociologia que estudaram
o tema, apresenta o politeísmo de um modo inferior ao monoteísmo. Isto é, a
crença em vários deuses como uma posição de inferioridade à crença em um
único Deus. Ou pior, o monoteísmo como uma “evolução do politeísmo”. Po-
rém, como observaremos, em todos os tempos, crenças politeístas e monoteístas
conviveram. Mesmo entre as crenças que se afirmam monoteístas, por vezes, a
crença em um único deus é sociologicamente profundamente questionada. Um
exemplo de questionamento foi realizado pelo intelectual alemão Max Weber,
um pioneiro estudioso acadêmico das religiões, que no capítulo “Sociologia da
Religião” do livro Economia e Sociedade, afirmou:
Rigorosamente “monoteístas são, no fundo, apenas o ju-
daísmo e o islamismo. A concepção do ser ou dos seres
divinos, tanto no hinduísmo como no cristianismo, repre-
senta um disfarce teológico importante e peculiar — o da
salvação pela encarnação de um Deus — se opunha ao
monoteísmo restrito (WEBER, 2004, p. 289).

Neste sentido, podemos compreender que até mesmo o eurocentrismo


cristão, exposto em alguns pensadores, não se sustenta, o cristianismo pode
(segundo a ótica exposta pelo sociólogo das religiões) possuir aspectos
politeístas.
Outro posicionamento presente e que revela preconceitos ocidentalizados
ou eurocêntricos é a diferenciação entre magia e religião. A diferença seria a
de que a religião tem como pressuposto uma adoração, isto é, uma relação
de submissão entre o fiel e Deus, enquanto a “magia” seria caracterizada
por uma relação de barganha entre o fiel e Deus. Assim, não teríamos, nos
cultos africanos, por exemplo, uma religião. Mas sim, uma forma de “magia”.

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O f e n ô m e n o r e l i g i o s o  47

Pois, nas religiões africanas temos a presença das oferendas, como uma
das formas de se conquistar as benesses dos deuses. O que se pode afirmar
é que tanto as religiões europeias quanto as religiões africanas possuem
especificidades, mas ambas podem com justiça ser consideradas religiões,
porque têm a mesma função primordial de religar os homens a deus. O que
podemos dizer é que a compreensão de deus difere nas religiões monoteístas
daquelas politeístas.
O politeísmo é (como definição de  senso comum) a crença em vários
deuses. E, em grande parte, se relaciona a uma simbologia mental em relação
à natureza. Isto é, para o pensamento ocidental existe uma diferença entre o
mundo real e o mundo das ideias, e uma igual diferenciação entre o que é
tipicamente humano e o que é pertencente à natureza. Porém, em algumas
tribos na América do Sul, ou nas religiões orientais, da qual o hinduísmo é um
exemplo, a relação dos homens com a natureza é de total integração. Isto ocorre
porque as religiões politeístas tendem, nas suas mais variadas manifestações,
a apresentar uma visão circular do tempo.
Por tempo circular, podemos compreender uma noção de que a vida
ou as coisas não têm fim. Isto é, tudo se renova e volta a ser. Em relação à
vida ela sempre volta a existir. Portanto, um corpo que deixa de ter vida irá
voltar um dia a se reencarnar e nascer, para dar curso a uma nova existên-
cia. Por vezes, algumas religiões acreditam que os seres humanos apenas
reencarnam como seres humanos. Outras acreditam que os seres humanos
podem reencarnar como animais ou mesmo como plantas. Os indígenas
das terras baixas sul-americanas, por exemplo, acreditam que todos os seres
vivos são apenas uma mesma forma de vida, com funções, com “roupagens”
diferentes. Por isso, é comum vermos uma mulher indígena amamentando
um animalzinho, como um filhote de anta ou um veadinho. Tal percepção
da natureza é de profunda relação com os mitos que formam as ideias re-
ligiosas destes grupos sociais.
Portanto, podemos compreender que o politeísmo, além de ser uma crença
em vários deuses, se relaciona também com uma noção de tempo histórico e a
um tipo específico de relação com a natureza e a sociedade. Pois, em grande
parte das culturas politeístas, existem deuses específicos que se relacionam aos
aspectos naturais ou sociais. Alguns exemplos podem nos esclarecer esta ques-
tão: diferentes culturas possuem deuses do mar: Yam, para os fenícios, Poseidon,
para os gregos, ou Iemanjá, para o candomblé. Também as funções sociais ou

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realizações humanas, como a guerra, possuem seus deuses, como Ares, para
os gregos, Marte para os romanos e Ogum, para os ritos afro-brasileiros. A este
conjunto de deuses ao qual se presta culto chamamos panteão.
O monoteísmo, por sua vez, é, para o senso comum, uma das formas de
religião que acredita em um único Deus. A primeira religião monoteísta da
História foi o zoroastrismo, um culto religioso elaborado por Zoroastro, um
líder religioso do Império Persa. Também no Egito Antigo, tivemos uma tenta-
tiva de monoteísmo com Ammenófis IV, que tentou programar o culto ao “deus
Sol” Akenaton, mas não prosperou. Entretanto, das religiões monoteístas da
Antiguidade, a mais lembrada é o monoteísmo de “Jeová”, o “Deus de Israel’”.
O monoteísmo também pode ser vinculado a um personagem histórico
específico: Abraão. Pois, a religião judaica surge com um chamado que
Jeová fez a Abraão, na localidade de Harã, onde Abrão se encontrava após
acompanhar seu pai Terá na saída da cidade de Ur dos caldeus para Harã
(Gênesis, Capítulos 11 e 12). Abraão teve uma promessa, que seria pai de
uma numerosa nação, que seria composta por sua esposa, Sara. Porém,
Abraão também teve um filho com a escrava egípcia Agar. Sara foi mãe de
Isaque, que gerou o povo judeu. Por sua vez, Agar gerou Ismael, que gerou
o povo islâmico.
O monoteísmo tem como principal modificação cultural, se o compararmos
com o politeísmo, a compreensão em relação ao tempo. Pois, para os politeístas
é considerado circular, e passou a ser considerado linear. Isto é, ao invés de
considerar que tudo retorna a ser vida, de outra forma, através de reencarnações,
o monoteísmo tende a considerar que o tempo tem início meio e fim, cujo final
será a eternidade, quando o tempo não mais existirá.
As religiões podem ser divididas de diversos modos, sendo cinco as prin-
cipais religiões mundiais: o islamismo e o cristianismo (de base judaica), o
budismo, o confucionismo e o hinduísmo (religiões orientais). O carisma de
uma liderança e os acólitos (os seguidores) são as principais características das
maiores religiões mundiais. Dentre estas, as de base judaica são tipicamente
monoteístas, e as orientais, tipicamente politeístas. As religiões, independente
de serem expressões das sensibilidades humanas, expressam através do poli-
teísmo e do monoteísmo, possuem algumas características comuns, como a
presença de sacerdotes, milagres, profetas, rituais e delimitações de crenças
(WEBER, 2004).

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O f e n ô m e n o r e l i g i o s o  49

Para saber mais


A religião é um dos principais temas de estudo das universidades brasileiras. Em muitas institui-
ções existem grupos de pesquisa sobre a temática. Em relação aos estudos acadêmicos sobre
as temáticas religiosas, podemos citar a Associação Brasileira de História das Religiões, veja o
site: <http://www.abhr.org.br/>.

A primeira questão que caracteriza a religião como um fenômeno social


é a presença de sacerdotes. Nas mais variadas formas de expressão religiosa,
a presença sacerdotal é uma constante, com diversos nomes: pajé, rabi,
padre, pastor, reverendo. A função do sacerdote é ser um elo entre deus e
a comunidade. O poder do sacerdote é altamente simbólico, pois o mesmo
é o conselheiro dos demais personagens das sociedades, desde as elites
dirigentes até aos membros das comunidades humanas que executam as
mais humildes funções sociais e econômicas. As religiões tendem a pensar
o sacerdote como o portador de um carisma específico, em geral ligado às
cosmologias que fundam as distintas crenças. No cotidiano, esta função é
materializada em práticas ritualísticas, como o ato de benzer ou interceder
para com deus, possibilitando tanto a cura de males físicos quanto outros
milagres (WEBER, 2004).
O milagre é uma das funções fundamentais das religiões. Algo que a mão
humana ainda não toca, que os olhos humanos não veem, mas que resolve
problemas de um modo mágico, o milagre auxilia a compreensão do fenômeno
religioso. Pois, na atualidade, algumas instituições religiosas, como o catoli-
cismo romano, buscam provar a existência de Deus ou mesmo a constatação da
beatitude de algum candidato a santo através da comprovação de um milagre.
No Antigo Testamento bíblico, é comum a presença de diversos atos mágicos ou
milagrosos, como a abertura das águas do Mar Vermelho. Assim como também
no Novo Testamento, a vida de Jesus, como narrada no evangelho de Lucas,
também se relaciona a uma grande presença de milagres. O Alcorão, em suas
suratas, também relata a presença de eventos mágicos, como a visita realizada
a Maria pelo anjo Gabriel.
O prestígio social do sacerdote é também pensado como uma rotinização
do carisma do fundador de uma religião. Tal preceito é constante em culturas
religiosas como o cristianismo, o budismo, o confucionismo, e o islamismo.

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Pois Jesus, Buda, Confúcio e Maomé possuíam um carisma especial, que os


possibilitava ter acólitos, isto é, seguidores. Portanto, os seguidores destas
religiões, celebram a memória destes líderes. Estes líderes são caracterizados
pelo conceito sociológico de profetas. Os profetas são homens dotados de um
carisma especial, e foram chamados por deus para realizar uma missão especial
no planeta Terra. Sua função maior é ser uma voz de repúdio aos caminhos
tomados pela humanidade, buscando iluminar os homens a um caminho dis-
tinto de vida. A partir deste momento, os homens e mulheres que seguirem os
preceitos morais pregados pelos profetas terão as bênçãos divinas.
A questão moral é o principal tema dos profetas. A palavra moral, do latim
mores, significa costumes, hábitos cotidianos. A palavra ética, por sua vez,
seria uma reflexão sobre os costumes. Por isso, os profetas, em geral, pregam
uma nova moral, baseada em novos valores éticos. A profecia, por sua vez,
não se relaciona apenas a questões dos hábitos corriqueiros, mas também se
relaciona aos assuntos relativos ao futuro de toda a humanidade. O fim da
história para os cristãos, por exemplo, se relaciona sobremaneira ao retorno
de Jesus para a Terra.
O profeta é um revolucionário, porém, incompreendido por todos. Apenas
algumas pessoas, que receberam um chamado religioso especial, possuem
a possibilidade de compreender a maior parte dos preceitos dos profetas.
Estes são considerados sacerdotes, cujo principal poder é conduzir os rituais
da religião.
O ritual, em geral, serve para lembrar o carisma dos fundadores das religiões
em ligação subjetiva com os indivíduos. Os principais rituais que simbolizam
as passagens de distintas fases da existência, como os ritos de nascimento, de
procriação e morte, são vinculados a símbolos religiosos nos quais a existên-
cia humana é pensada como um elo divino. O batismo infantil, a primeira
comunhão e a extrema unção entre os católicos, ou a apresentação no templo
e o bar-mitzvá, rito no qual o menino judeu é considerado adulto, podem ser
considerados exemplos de ritos de passagem. Neles, um novo status social é
proporcionado ao indivíduo. Este novo status possibilita ao mesmo uma nova
forma de ser, pois o ritual confere um poder ao indivíduo em relação ao meio
social. A possibilidade de ter relações sexuais, nos casos dos rituais de casa-
mento, ou a possibilidade de frequentar locais de “adultos” no caso dos ritos
relacionados às faixas etárias, são exemplos da importância que determinados
ritos possuem no interior do corpo social.

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O f e n ô m e n o r e l i g i o s o  51

Para saber mais


Uma indicação para aprofundar seu conhecimento em relação às religiões mundiais é a Revista
Brasileira de História das Religiões <http://www.dhi.uem.br/gtreligiao/>.

A delimitação das crenças é uma das principais funções das instituições


que lidam com o sagrado. Pois apenas o modo correto deve ser levado em
consideração na hora de nos relacionarmos com deus. Das disputas entre as
diversas formas de lidar com deus, temos os vários grupos de fé. Entre os cristãos,
por exemplo, existem católicos, protestantes e ortodoxos. Entre muçulmanos,
existem os sunitas, os xiitas e os sufis. Todas estas divisões se expressam pelos
rituais distintos, como também pelas diversas formas de lidar com as questões
pessoais que envolvem o sagrado. Um exemplo é o casamento. Para os ca-
tólicos, trata-se de um sacramento, e, portanto, é indissolúvel. No caso dos
protestantes trata-se de um acordo entre pares, e por isso, o divórcio pode ser
aceito. Esta questão exemplifica, no cotidiano dos lares, como as delimitações
de crenças envolvem os indivíduos. Contudo, as delimitações de crenças tam-
bém se relacionam a questões políticas e sociais maiores. Um grande exemplo
sobre este fato ocorreu na Idade Média, quando da institucionalização do Tri-
bunal do Santo Ofício da Inquisição, na qual judeus e mulheres acusadas de
bruxaria eram exemplarmente punidos. Isto é, aqueles que pensavam ou tinham
práticas que não condiziam com as delimitações das crenças religiosas eram
exemplarmente punidos, sendo muitos mortos apenas por seus pensamentos
heterodoxos em relação aos dogmas da fé.
Como podemos observar, os reflexos das religiões não se relacionam apenas
às vidas dos indivíduos. Também as sociedades são influenciadas pelas ideias
religiosas, e muitos dos preceitos religiosos se relacionam com questões econô-
micas e políticas. As implicações civilizacionais das religiões é um dos temas
clássicos da sociologia da religião. Werner Sombart, historiador alemão do
século XIX, relacionava o desenvolvimento do capitalismo aos judeus. Por sua
vez, Max Weber afirmava que foi a ética protestante o espírito do capitalismo.
Na Idade Média, o lucro, isto é, a usura, era considerada um pecado para a
igreja católica. Porém, para os judeus, em suas leis e rituais, não havia a com-
preensão de que emprestar dinheiro a juros era uma atividade errada para com
Deus. Assim, muitos dos principais banqueiros da Europa no final do período

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medieval eram judeus. Após a Reforma Protestante, o lucro, por exemplo, não
foi considerado pecaminoso pelos reformadores Lutero e Calvino.

Questões para reflexão


No Brasil, as diversas religiões e igrejas buscam formas de representa-
tividade política formal, que se materializam no fato de termos muitos
políticos que recebem votos e fazem proselitismo político defendendo
valores religiosos. Neste sentido, podemos refletir: a religião e a política
podem ser tratadas de igual maneira? É correto votar em um candidato
porque ele possui a mesma fé, frequentando a mesma igreja, templo
ou terreiro?

Um dos dados que revelam a amplitude social das religiões está simboli-
zado nas bandeiras de alguns países que possuem símbolos religiosos (Figuras
2.1 a 2.3).

Figura 2.1  Bandeira de Israel possui a estrela de David, símbolo da religião judaica

Fonte: Globe Turner/Shutterstock Dorling Kindersley (2014).

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Figura 2.2  A bandeira da Turquia possui a Lua Crescente, um símbolo islâmico

Fonte: dovla982/Shutterstock (2014).

Figura 2.3  A bandeira inglesa possui uma cruz, símbolo cristão associado a São
Jorge

Fonte: Prawit Siriwong/Shutterstock (2014).

Não é apenas devido às bandeiras nacionais que podemos medir a impor-


tância da religião. Ainda hoje, ela se relaciona a fenômenos sociais, como o
ataque às Torres Gêmeas pelos radicais islâmicos ou a guerra contra o terror,
uma reação a tal iniciativa. Na sociedade na qual vivemos que é a Ocidental,
o cristianismo é uma das principais fontes a influenciar o pensamento. Em es-

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54  P O V O , C U LT U R A E R E L I G I Ã O

pecial graças à patrística, movimento intelectual cristão que buscara realizar


uma síntese entre as doutrinas de Jesus com a filosofia platônica. Dentre os
vários teólogos da patrística, quem mais se destacou foi Aurélio Agostinho, um
dos principais formuladores das doutrinas cristãs.

Atividades de aprendizagem
1. Um dos preconceitos ocidentais na análise acadêmica (sócio-antro-
pológica) das religiões universais é considerar o monoteísmo como
uma evolução do politeísmo. Em relação a esta problemática, analise
as sentenças a seguir relacionadas e assinale com um “X” a alternativa
correta.
(  ) Considerar o politeísmo e o monoteísmo como iguais é um mero
relativismo cultural sem fundamento, pois os povos politeístas, na
maior parcela do tempo histórico, foram dominados por povos
monoteístas.
(  ) Considerar o politeísmo e o monoteísmo como iguais é ter
uma compreensão ampla da história universal, não reduzindo
a história da humanidade à história europeia, haja vista que
a maior parcela das religiões orientais e africanas apresentam
características politeístas.
(  ) Considerar o politeísmo e monoteísmo como iguais é assumir
uma postura marxista cultural, haja vista que para o marxismo a
religião é “o ópio do povo”, uma mera legitimação da exploração
das classes dominantes sobre as dominadas. Independente ser
a expressão religiosa ser monoteísta ou politeísta sua função é a
mesma: legitimar a exploração.
(  ) Considerar a religião politeísta como inferior, e a religião mono-
teísta como mais desenvolvida é ter uma ampla visão da história
universal. Isto porque observamos, ao longo da história, uma
dominação do homem branco europeu sobre os demais povos.
2. Segundo Max Weber, judaísmo e islamismo podem ser consideradas
religiões monoteístas de maneira rigorosa, excluindo desta classifica-

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ção o cristianismo. Por que a religião que teve Jesus como fundador
não foi considerada monoteísta por este sociólogo das religiões?
(  ) Para Max Weber, o cristianismo não é restritamente monoteísta
pela encarnação de Jesus, o que formou a teologia da trindade
(pai, filho e espírito santo).
(  ) Para Max Weber, o cristianismo não é monoteísta devido à in-
terseção dos santos, presente no catolicismo romano.
(  ) Para Max Weber, o cristianismo não é monoteísta devido à
teologia mariana desenvolvida pela Igreja Católica Ortodoxa
Bizantina, em especial pelos Concílios de Niceia.
(  ) Para Max Weber, o cristianismo não é uma religião revelada, mas
sim se classifica nos ritos animistas, como uma forma de magia,
devido a rituais, como expresso na consubstanciação luterana.

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Seção 2  A explicação agostiniana para a


natureza e seus reflexos culturais
Santo Agostinho (Figura 2.4) é um dos principais nomes que produziram
reflexões fundamentais para a cultura ocidental. Ao mesmo tempo, sua
produção teológica era de forte cunho pessoal, o que nos faz relacionar
aspectos de sua biografia ao seu pensamento. Uma medida da importância
do pensamento agostiniano está no fato de ele ter sido um dos principais
intelectuais do cristianismo no ocidente. Suas ideias influenciaram tanto
o catolicismo (Ordem de Santo Agostinho) como o protestantismo (Lutero
e Calvino). Por isso, seu pensamento é importante para compreendermos
o posicionamento das igrejas cristãs em relação aos temas polêmicos que
envolvem a vida humana. A trindade, a parousia (retorno de Cristo) e a
questão dos antípodas (forma da terra) se relacionam ao pensamento agos-
tiniano (GILSON, 2006).
Agostinho foi um homem que viveu em um tempo da história em que pôde
ser espectador das profundas transformações do fim do Império Romano. Nesse
sentido, o seu pensamento pode ser compreendido como uma síntese entre
o legado da cultura clássica greco-romana miscigenada ao pensamento e às
tradições judaico-cristãs. Nascido em 13 de novembro de 354 na cidade de
Tagaste, que pertencia à Numídia, uma província romana localizada na África
do Norte, adveio de uma família que pode ser classificada como pertencente
à camada média na estratificação social. Seu pai Patrício era um africano ro-
manizado, pequeno proprietário de terras e decurião, que permitiu se batizar
apenas nas vésperas da morte. Sua mãe, Mônica, era uma crente fiel que muito
rezou pela conversão do seu filho (POSSÍDIO, 1997).
Os planos de Patrício eram tornar Agostinho um retórico. E foi como pro-
fessor de gramática a forma como o filho se sustentou após a morte do pai.
Todavia, a vida de Agostinho foi extremamente atribulada nos primeiros anos
de vida adulta. Como relata em As confissões, foi um homem com conduta
fortemente mundana, pouco afeito aos ideais elevados do cristianismo.
Nesse período do seu viver, Agostinho foi adepto de uma seita importante
no início do cristianismo: o maniqueísmo. Por maniqueísmo podemos
compreender uma doutrina que acreditava na existência de um sumo bem
e de um sumo mal. Os maniqueístas não conseguiam compreender como

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um Deus que é só amor poderia ter também sido o criador do mal. A este
problema ontológico, após convertido, Agostinho respondeu com sua visão
sobre o mal, comparando o bem à presença de luz, o mal à sombra, e Deus
a uma totalidade que englobaria tanto a luminosidade quanto a escuridão.
Estas e outras questões de seu pensamento após convertido são verdadeiros
paradigmas da teologia ocidental. Porém, trata-se de uma conversão tardia
e difícil.
A conversão de um filho rebelde às palavras eternas do senhor Jesus eram
os pedidos das orações de Mônica, segundo muitos biógrafos. Orações que
foram atendidas, porém aos olhos humanos muito tarde: apenas aos 32 anos
de idade, quando Agostinho, após uma noite de profundo vazio existencial,
leu as sagradas escrituras após uma cantilena de uma criança que dizia: toma
e lê (AGOSTINHO, 1984).
A sua conversão também contou com um amplo apoio dado pelo bispo
Ambrósio de Milão, que demonstrou a Agostinho a superioridade da doutrina
cristã sobre as demais correntes filosóficas que à época o seduziram, como o
neoplatonismo de Plotino e o maniqueísmo do Bispo Fausto. O maniqueísmo
foi uma seita inventada no interior do Império Romano nos primeiros séculos
da era cristã que dizia existirem duas forças, representadas pelo sumo bem e
pelo sumo mal. Uma doutrina de pensamento rejeitada por Agostinho. Porém,
o platonismo foi uma influência constante, mesmo após a sua conversão ao
cristianismo. Em especial o platônico Plotino, um intelectual que buscou apro-
fundar as perspectivas de Platão sobre as especulações da filosofia, foi grande
influência sobre a teologia agostiniana.

Para saber mais


A Ordem de Santo Agostinho é uma das principais divulgadoras dos ideais agostinianos na
sociedade contemporânea. Com uma visita ao site da ordem pode-se compreender como os
freis agostinianos compreendem a espiritualidade proposta por este grande pensador da socie-
dade ocidental. Acesse: <http://www.osa.org.br/osa/>.

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Figura 2.4  Santo Agostinho

Fonte: Renata Sedmakova/Shutterstock (2014).

Convertido tardiamente, Agostinho abandonou a península itálica para


se dedicar à religião cristã no norte africano. Nesta região do globo, tornou-se
bispo da cidade de Hipona. Também neste local, ele escreveu grande parte da
sua obra intelectual, composta de diversos livros que compõem diversos temas
caros às doutrinas cristãs. Seus principais livros foram A Cidade de Deus, no
qual defendeu a validade da doutrina cristã frente aos seus detratores, que
apontavam a proliferação do cristianismo como uma das principais causas do
declínio romano. As confissões, livro no qual relata seu processo de conversão
e aponta uma definição de tempo histórico de um modo linear. Por fim, Da
Trindade é um dos livros importantes deste intelectual cristão, pois aprofundou
temas anteriormente levantados pelos chamados “pais capadócios”, os teólo-
gos Gregório de Nissa, Gregório de Nazianzo e Basílio, que desenvolveram
a temática da trindade (pai, filho, espírito santo), antes do bispo de Hipona.
Após a sua conversão, seus principais opositores intelectuais foram os
donatistas e os pelagianos. Os donatistas eram os seguidores de Donato, um
ideólogo cristão que questionava o aumento dos bens materiais da Eclésia.
Das controvérsias teológicas surgiram diversos escritos, nos quais Agostinho
mostra por vezes uma face intolerante. Todavia, sempre é bom lembrarmos que
o cristão não é um relativista cultural, mas sim o portador de uma verdade,
e se compreende como alguém que tem o dever de espalhar esta verdade (o

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evangelho) a toda tribo, nação e raça, como apontam os escritos dos Atos dos
Apóstolos e as cartas de Paulo (OLSON, 2001).
Os pelagianos, por sua vez, seguiam os ditames intelectuais de Pelágio, autor
que a história da teologia cristã classificou como herético. Pelágio foi um líder
da teologia cristã, que afirmava uma doutrina próxima ao ideal de justificação
pelas obras. Por isso, Agostinho de Hipona aponta uma posição radicalmente
contrária, apontando a justificação pela fé. Por justificação se compreende a
ideia cristã na qual o ser humano é considerado membro de um mundo de
pecado, originário de Adão e Eva, quando comeram a fruta da árvore proibida
e assim introduziram o pecado no mundo. Portanto, a ação redentora de Cristo,
possibilita a redenção daqueles que forem obedientes aos seus ensinamentos.
A paruosia, isto é, o retorno de Jesus Cristo para a Terra, é outro tema polêmico
no qual as ideias agostinianas não se sustentam em uma relação direta com as sagra-
das escrituras, mas sim em uma relação com a filosofia grega. Pois, para os judeus,
não existia uma separação entre imanente e transcendente, isto é, ente o corpo e a
alma. Agostinho se utiliza deste pensamento grego para se opor aos milenaristas,
que observam no breve retorno de Jesus a solução para os problemas humanos.

Questões para reflexão


Uma das reflexões que os historiadores contemporâneos realizam
é sobre a relação entre o indivíduo e a sociedade. Assim, podemos
pensar: as reflexões de Santo Agostinho eram o fruto de seu talento
individual ou o reflexo do pensamento de dos cristãos de seu tempo,
do qual Agostinho foi o porta-voz?

Para o historiador inglês Edward Gibbon (2012) a ideia de um breve retorno


de Jesus Cristo existia entre os cristãos que viviam sob o domínio do Império
Romano. Esta ideia está baseada em algumas passagens do Santo Evangelho
(João 10: 1-3 e também Mateus 24), no qual em distintos séculos os cristãos se
pautam para ter a esperança do breve retorno de Jesus para restaurar a criação.
Ao longo dos séculos muitos intelectuais cristãos e membros de movimentos
considerados “messiânicos” apontavam o retorno de Jesus como motivação
para as suas ações. Em relação aos movimentos, podemos citar os Cátaros, os
as contemporâneas Guerras de Canudos e do Contestado, onde tal percepção

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da fé foi brutalmente combatida com força militar. Em relação aos intelectuais,


podemos nos lembrar das ideias de Joaquim de Fiori, considerado heréticas no
século XII, ou mesmo as ideias dos jesuítas Antônio Vieira (autor de História do
Futuro e Manoel Lacunza (padre chileno que escreveu o livro El breve retorno
de Jesus en sua gloria y majestad) podem ser considerados exemplos de homens
que tiveram suas interpretações históricas contrárias as ideias agostinianas e
por isso perseguidos pela Inquisição.
As ideias agostinianas se mantiveram como inspiração teológica por toda
a Idade Média. Muitos dos intelectuais cristãos do ocidente se mantiveram
inspirados nos escritos agostinianos. Mesmo em correntes intelectuais que se
opõem a muitos dos pressupostos analíticos de Agostinho, como no tomismo,
a influência agostiniana se manteve. Podemos observar isto nas várias citações
que Tomás de Aquino fez de textos agostinianos na Suma Teológica.
Muito da teologia cristã medieval era de explícita influência agostiniana.
Isidoro de Sevilha foi um dos que acreditavam na importância do pensamento
do bispo de Hipona para a melhor compreensão das coisas divinas. Existe uma
máxima, atribuída a Isidoro de Sevilha, e que se relaciona à perspectiva da
importância do pensamento de Agostinho. Tinha Isidoro uma biblioteca com
todos os livros agostinianos, e na entrada, uma frase na qual dizia: “quem
afirmar que leu tudo isto é mentiroso”. Isto é, a obra de Agostinho é muito vasta,
e dizer que alguém a compreende por completo não é uma expressão de ver-
dade. Outro personagem importante do catolicismo medieval a enaltecer a
importância de Santo Agostinho foi São Domingos. A influência dos escritos
agostinianos para Domingos era tão grande, a ponto de os irmãos pregadores,
ordem fundada por Domingos, utilizarem a regra de vida comum elaborada
por Agostinho de Hipona (LIERRARD, 1982).
O agostianismo político foi a principal tese
política elaborada na Alta Escolástica (doutrina
Para saber mais teológica da segunda parte da Idade Média),
Para um aprofundamento no co- e se refere à política formulada por Egídio Ro-
nhecimento sobre o pensamento mano, um ex-aluno de São Tomás de Aquino e
agostiniano, é interessante ler o que foi o principal teólogo da Ordem de Santo
livro escrito por Etienne Gilson, im- Agostinho no período final da Idade Média. Em
portante intelectual católico fran-
especial, Egídio Romano formulou a tese dos
cês, autor de Introdução ao
dois gládios, pela qual justificava o poder pa-
estudo de Santo Agostinho.
pal. Isto é, Egídio afirmava que o papa era um

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sucessor de Pedro, que por sua vez era um discípulo de Cristo. Jesus era, segundo
a Carta aos Hebreus, um sacerdote da Ordem de Melquisedeque, personagem
bíblico do Antigo Testamento. Este obscuro personagem bíblico é descrito como
Rei de Salém e Sacerdote do Deus Altíssimo. Neste sentido, para os agostinia-
nos, o papa era tanto sacerdote quanto rei. Por isso, o Vaticano poderia ter as
prerrogativas de um reino, como um banco, um exército, cobrar impostos e ter
a honra social dos chefes de Estado, como declarar a guerra (ROMANO, 1989).
Mesmo entre os que questionaram o poder papal, há cinco séculos, o prestígio
agostiniano se manteve. Martinho Lutero e João Calvino, aos escritos agostinianos
recorreram como uma possibilidade de reflexão para a configuração dos ideais
que até o presente pautam as igrejas protestantes de todo o mundo: a infalibilidade
bíblica, o sacerdócio de todos os crentes e a salvação pela fé. Os dois principais
nomes da Reforma possuíam uma profunda relação com as ideias agostinianas.
Martinho Lutero (Figura 2.5), homem que em 31 de outubro de 1517 foi o res-
ponsável pela corajosa atitude de expor suas 95 teses na capela de Wittenberg,
cujo teor criticava o catolicismo medieval, foi por muitos anos monge da Ordem
de Santo Agostinho. Nas Institutas da Religião Cristã, João Calvino se apresenta
suas influências das ideias do Bispo de Hipona, ao citar várias vezes Agostinho
como uma autoridade teológica a sedimentar seus pensamentos no seu principal
livro teológico, as Institutas da Religião Cristã (OLSON, 2001).

Figura 2.5  Martinho Lutero, pintura de Lucas Cranach

Fonte: Georgios Kollidas/Shutterstock (2014).

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Mesmo com o advento da Idade Moderna, que em termos religiosos foi


simbolizado pela ação da Reforma Protestante, as ideias de Agostinho ainda
faziam eco nos corações e mentes. Uma máxima que explica o posiciona-
mento agostiniano seria a de que e é necessário crer para compreender. Isto
é, que a fé deve sempre ser a base do pensamento de um cristão quando o
mesmo se põe a refletir sobre quaisquer pontos da vida humana ou da natu-
reza, criada pelo verbo divino. A total entrega a Deus, proposta por Agostinho
e reinterpretada pelos dois principais nomes da chamada Reforma Magisterial,
por vezes é denominada de monergismo. Conceito teológico que representa
uma ideia de que tudo provém de Deus e deve ser por Ele guiado. Outro
grupo da reforma protestante pode ser chamado de Revolta Radical. Grupo
o qual se opunha aos ideais do bispo de Hipona, e que teve como principal
nome o anabatista alemão Thomaz Munzer (OLSON, 2001).
A relação entre o pensamento de Agostinho e as ideias cristãs dos reforma-
dores, porém, eram limitadas pela “Palavra de Deus”. Para os reformadores,
as teses da infalibilidade bíblica eram superiores a qualquer tradição humana.
Porém, é interessante destacar as palavras de Lutero, que utiliza do próprio
Agostinho para enaltecer a infalibilidade bíblica. No escrito luterano Como
reconhecer a Igreja Verdadeira, para defender a tese de infalibilidade bíblica,
afirmou Martinho Lutero: “Santo Agostinho diz: A igreja é gerada, sustentada,
nutrida e fortalecida pela palavra de Deus” (LUTERO, 2001).
Assim, podemos compreender que os seguidores da Reforma eram entusiastas
das ideias agostinianas, porém, jamais as colocaram acima da Bíblia, algo presente
na tradição do catolicismo medieval e que foi reafirmado com o Concílio de Trento.
Pois, para o catolicismo, tanto a revelação quanto a tradição são fontes de fé.
Mesmo em Trento terem sido reafirmadas teses tomistas, muitas reflexões
do Doutor Angélico sobre as questões centrais da teologia contidas na Suma
Teológica foram inspiradas em Agostinho. Como já afirmado, depois de Aristó-
teles, o autor mais citado por São Tomás de Aquino foi justamente Agostinho,
mais citado até mesmo que as sagradas escrituras.
Porém, será no mesmo período da história em que o homem redescobre a
palavra de Deus através de ensinamentos de homens como Lutero, Calvino,
Zuínglio e Meno Simons, período em que a fé católica também se renovou
graças às ações de Santo Inácio de Loyola, que as teses agostinianas sobre a
explicação da natureza começam a ser refutadas.
A forma do cosmo foi uma polêmica constante para o pensamento me-
dieval. Uma simbiose entre o legado do pensamento aristotélico, somado às

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passagens das sagradas escrituras, era utilizada como discurso legitimador dos
mais diversos posicionamentos acadêmicos. Dois referenciais da Antiguidade
eram utilizados para se afirmar a forma geográfica terrestre: Crates de Malo (160
a.C.) e Aristóteles (384-322 a.C.). O primeiro sistema de pensamento afirmava
que a terra era formada por quatro ilhas. A vastidão oceânica impossibilitaria o
contato entre elas. A inspiração aristotélica foi presente em João de Sacroboso,
que dividia o mundo em duas regiões: a do éter e a dos elementos. A região dos
elementos se dividia em quatro partes. A Terra era o centro do mundo, situada
no centro de todas as coisas. Todavia, as duas maiores autoridades medievais
em relação à vida humana ser presente em todos os pontos da Terra eram os
teólogos patrísticos Lactâncio e Agostinho (RANDLES, 1994).
Agostinho teve uma grande importância para a formulação de diversas ideias
em relação aos distintos aspectos da compreensão da natureza. A observação
e o conhecimento humano sobre o processo de funcionamento dos distintos
aspectos da vida natural é um dos mistérios que envolvem a humanidade nos
seus milênios de vida sobre a Terra. Mistério que aguça a curiosidade de muitos
indivíduos a tentar observar o processo de funcionamento da natureza. Outra
curiosidade milenar é a geografia. O que existe no mundo além do que nossas
vistas alcançam... A astronomia também se configura como uma das curiosi-
dades principais dos seres humanos.
Vivemos em um tempo na história humana em que convivemos com uma
avalanche de informações científicas. Porém, não temos estas informações
nos séculos iniciais do cristianismo constantiniano. Assim, não temos como
julgar o pensamento agostiniano do ponto de vista de uma evolução científica
que ocorreu mil anos após. Porém, podemos raciocinar sobre sua afirmação,
exposta em A Cidade de Deus:
Quanto à fábula dos antípodas, quer dizer, de homens cujos
pés pisam o reverso de nossas pegadas na parte oposta da
terra, onde o Sol nasce, quando se oculta de nossos olhos,
não há razão que nos obrigue a dar-lhe crédito. Tal opinião
não se funda em testemunhos históricos, mas em meras con-
jecturas e raciocínios aparentes, baseados em estar a terra
suspensa na redondeza do céu e o mundo estar ocupando o
mesmo lugar, ínfimo e médio (AGOSTINHO, 1984, p. 231).

A existência dos antípodas, isto é, a ideia de que haveria vida fora dos limi-
tes do mar Mediterrâneo, foi considerada uma fábula pelo intelectual cristão.
Portanto, o posicionamento de Agostinho de Hipona em relação aos antípodas

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é considerar a existência de outros continentes mera fábula. Mesmo se tratando


de um dado verdadeiro, alguns intelectuais que ousassem, durante o período
medieval, afirmar que a Terra fosse redonda ou mesmo que existissem outros
continentes ainda não explorados poderiam ser considerados hereges.
Mais de mil anos tiveram de se passar para que estes escritos agostinianos
fossem refutados. Tal refutação foi realizada teoricamente e empiricamente. Do
ponto de vista teórico, houve uma importante participação dos intelectuais Nicolau
Copérnico e Galileu Galilei. Ambos buscaram demonstrar que o Sol era o centro
do universo e que a Terra gravitava em torno dele. Porém, a prova empírica de que
o planeta é redondo ocorreu com uma primeira viagem de circunavegação. Uma
volta ao globo terrestre foi efetuada pelos marujos comandados pelos navegadores
espanhóis Fernão de Magalhães e Sebastião del Cano, almirante que substituiu
Fernão de Magalhães após seu falecimento durante a aventura.
Todavia, é importante termos em mente que tanto Nicolau Copérnico quanto
Galileu Galilei acreditavam que as sagradas escrituras afirmavam que a Terra
era um planeta de formas planas. A ciência que foi desenvolvida nos anos da
Idade Moderna não se opunha à fé, como por vezes alguns possam pensar. Mas
sim, se relaciona às questões teológicas. A refutação dos antípodas se deu em
duas vertentes, uma acadêmica, outra na prática náutica. Porém, em ambas, o
pressuposto teológico se mantém. Pois, tanto Galileu quanto Copérnico apon-
taram argumentos bíblicos para afirmar a esfericidade da Terra.
Em pelo menos duas passagens bíblicas, a forma do planeta é considerada
esférica. Neste sentido, porém, temos de tomar algumas cautelas hermenêu-
ticas. Pois, os escritores bíblicos, nas passagens que iremos citar, não estavam
preocupados com questões astronômicas. Apenas contemplando a majestade
e soberania de Deus, o criador de todo o universo segundo suas crenças. Nes-
tas passagens, o pensamento de Agostinho pode ser também questionado. O
profeta Isaías afirmou:
Ele é o que está assentado sobre a redondeza da terra,
cujos moradores são como gafanhotos; é ele quem es-
tende os céus como cortina e os desenrola como tenda
para neles habitar; é ele quem reduz a nada os príncipes
e torna nulidade os juízes da terra (Isaías, 40: 22-23).

Nesta passagem bíblica, podemos aferir que Deus está assentado sobre a
redondeza da Terra. Isto nos indica que as sagradas escrituras afirmam ser nosso
planeta de formas arredondadas. Também admirando as maravilhas da glória

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de Deus, Jó fez a peremptória afirmação: “Traçou um círculo à superfície das


águas, até os confins da luz e das trevas” (Jó, 26: 10).
Nesta passagem, temos também uma indicação de que Jó considera a Terra
redonda, pois afirma que o criador traçou um círculo à superfície das águas,
numa referência a formas arredondadas a compreensão das águas que circun-
dam o planeta. Um Deus que suspendeu a terra na abismo, afirmou Jó, como
hoje o conhecimento produzido a partir do século XVI afirma, e uma afirmação
que está contrária à da Cidade de Deus.
Os problemas que os cientistas tiveram com o Tribunal do Santo Ofício
podem indicar uma falsa ideia de que eles não acreditavam em Deus ou não
fossem cristãos. O que não se apresenta como verdade, pois tentaram estabe-
lecer parâmetros bíblicos para as suas descobertas. Assim, também podemos
compreender que, mesmo com um prestígio contínuo de Santo Agostinho como
teólogo, a Idade Moderna foi o tempo no qual sua explicação sobre a natureza
caiu em descrédito.
Porém, a evolução da ciência, que faz certas ideias medievais caírem
em descrédito, se relaciona ao contato dos cristãos europeus com os novos
povos descobertos pelas expedições ibéricas. Um dos dados interessantes a
respeito da influência do pensamento agostiniano se refere à forma esférica
do planeta Terra. Podemos observar que muitos dos mitos geográficos exis-
tentes na era das Grandes Navegações, em especial sobre a forma de nosso
planeta ser plana, e da existência de abismos que impedem a passagem pelo
mar se devem muito mais às influências da Cidade de Deus, obra máxima
da produção teológica de Agostinho, do que das sagradas escrituras, como
muitos procuram defender.
Muitos dos mitos existentes no mundo medieval em relação aos demais
povos não cristãos tiveram na Cidade de Deus sua base. Sobre os antípodas,
isto é, sobre a ideia que existiriam outros seres humanos que estariam pisando
do lado oposto da Terra a qual pisamos no momento em que lemos este texto.
Outros mitos, como a existência de abismos no oceano, que impediriam a
navegação rumo às Índias, por vezes relacionadas à Bíblia, referem-se aos
escritos agostinianos. Pois, mesmo não sendo a Bíblia um livro preocupado
com geologia, mas sim com soteriologia (isto é, com a salvação do homem
pecador), existem algumas passagens, como as expressas nos livros de Jó e
Isaías que afirmam que Deus está assentado sobre a redondeza da Terra. Neste
sentido, iremos compreender que no século XVI, muito da autoridade dos

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pensadores cristãos estava mais relacionada aos escritos do bispo de Hipona


que às passagens bíblicas.
As terras desconhecidas dos europeus desde a Antiguidade eram a inspiração
para a construção de imaginários sobre as populações que viviam nestas partes
do globo, denominadas genericamente antípodas. Um tema comum na Idade
Média era o mito da viagem marítima de São Brandão. Outros criticavam ou
reafirmavam a interpretação geográfica ofertada por Ptolomeu. Este geógrafo
grego criou uma forma de representação cartográfica do mundo na qual não se
configurava a presença de partes da África e da Ásia, além de ignorar a América.
Já no século IV, havia teóricos que questionavam as determinações ptolomai-
cas. A vida nas regiões quentes do globo era dúvida perene. Pois afirmavam
os detentores do saber estabelecido não existir a possibilidade de vida nestes
lugares devido a uma profunda elevação das temperaturas (RANDLES, 1994).
Na ausência de conhecimento empírico sobre a vida humana fora dos limites
da cristandade latina, da cristandade bizantina e dos califados maometanos,
a imaginação da humanidade da Europa Ocidental foi fértil em tecer imagens
fantasiosas sobre tipos humanos não descendentes de Adão. Tipos antropoides
sem pescoço, como os cinocéfalos, monóculos, ciclopes, arimaspos, com a
cabeça no peito ou nas costas eram tidos como verdadeiros. Nas cátedras uni-
versitárias medievais, tais conhecimentos eram transmitidos por eruditos aos
seus aprendizes. Em grande parte, este conhecimento era escudado na Cidade
de Deus agostiniana (DIAS, 1982).
No outono medieval, outro fator aguçou a curiosidade dos letrados a respeito
dos antípodas e terras remotas: as viagens de Marco Polo. Nascido na Península
Itálica, Marco Polo foi uma influência primordial na sistematização de afirma-
ções que tinham o estatuto de verdade nas viagens de descoberta. Pois Cristóvão
Colombo, o “Descobridor da América”, acreditava não ter descoberto um novo
continente, mas sim estar pisando na ilha de Cipango, citada por Marco Polo.
Uma das principais formas de representação em suporte papel das rotas
náuticas eram as Cartas Portulanos, uma forma de representação cartográfica
típica da navegação do Mar Mediterrâneo Medieval. Todavia, os paralelos ainda
não eram conhecidos. A formulação dos mapas não possuía a precisão matemá-
tica que alcançaria nos séculos posteriores. Alguns conhecimentos (atualmente
considerados fundamentais) que auxiliam a confecção das cartas náuticas não
eram conhecidos: a função logarítmica, a longitude, além da representação
em perspectiva. Esta é uma técnica que permite a ideia de tridimensionalidade

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(altura, largura e profundidade) em um suporte bidimensional (altura e largura).


A pouca precisão geométrica possibilitou a presença do fantástico e do imagi-
nário na cartografia dos séculos XV e XVI (HOLANDA, 1994).
Alguns mitos e lendas auxiliaram a fomentar a expansão marítima. Entre
as motivações dos navegadores espanhóis, portugueses e franceses que se lan-
çaram na aventura ultramarina, podemos citar a busca pelo Jardim do Éden.
O paraíso no qual Deus criou a natureza e o homem foi um dos motivos ale-
gados por navegadores ao içar as velas. Alguns mitos sociais estabeleciam a
possibilidade de ser provável a presença do paraíso em algum lugar remoto.
Os navegadores, ao alcançarem as costas americanas, na qual a presença de
homens e mulheres vivendo em um contato com a natureza, nus, atinaram
para a possibilidade de ser este o local do qual surgiram os primeiros homens
esculpidos em barro pelo criador.
Como já afirmado, a negação teológica agostiniana dos antípodas teve como
consequência um despertar de fantasias a respeito das terras ignotas. Assim, a
mentalidade mágica se fez presente nas reflexões a respeito das navegações. E
também se materializou nos relatos dos navegadores a respeito das terras con-
quistadas. Cristóvão Colombo observou nas terras do novo mundo a presença
de figuras humanas com um só olho, além de sereias e pérolas e ouro que
nasciam em árvores. Outras explicações envoltas em um universo de magia
se faziam presentes nos relatos de viagem, em especial devido à qualidade
da vida nas praias e a péssima forma de vida a bordo. Enquanto nos navios a
água era racionada, assim como a comida, a fartura de “uma terra em que se
plantando tudo dá”, como sugere a carta de Pero Vaz de Caminha, era uma
realidade inconteste.
Algumas histórias das navegações espanholas revelam este caráter mítico.
Por exemplo, o desbravador da Flórida, Ponce de León, estava a buscar a fonte
da juventude, na qual os indígenas se banhavam e conseguiam viver mais de
cem anos. O clima da terra também era um dos indícios que aqui seria uma
porta do paraíso. Quando chegou próximo a foz do rio Orinoco, Vicente Pinzón
se negou a subir o leito do rio, por acreditar que ali seria uma das entradas de
um dos quatro rios que formavam o Éden. Estas lendas e mitos sociais tiveram
uma incomensurável importância no processo de expansão da cristandade ibé-
rica. Nela, a presença de alquimistas, que buscavam criar a “pedra filosofal” e
o “elixir de longa vida”, somados a astrólogos e bruxos, acabaram por formar
uma das bases especulativas que possibilitaram o desenvolvimento do astrolá-

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68  P O V O , C U LT U R A E R E L I G I Ã O

bio, sextante, bússola e demais instrumentos necessários para a navegação de


longo curso (HOLANDA, 1994).
Este contato dos europeus com novas terras e com um novo continente,
a América, nos indicam que os modelos explicativos não mais eram válidos.
Porém, no século XVI, novos métodos para explicar o mundo ainda não tinham
chegado a sua plenitude, apesar dos estudos realizados por diversos intelectuais.
Foi graças a um oficial da intendência (administração) do exército francês, que
na infância estudou com padres jesuítas e no final da vida foi um dos membros
da corte da realeza sueca, que a ciência ganhou um grande impulso como ten-
tativa de substituir a teologia como forma de explicação da natureza. O nome
do distinto oficial era René Descartes (Figura 2.6), e sua principal obra foi
O discurso do método. Ao publicar O discurso do método, temos o início de
uma tradição no pensamento ocidental, denominada cartesianismo. Por este
método, se considera mais importante a metodologia pela qual as verdades são
alcançadas, que as premissas no qual o pensamento é pautado.
A ciência, deste modo, pode ser considerada uma forma de pesquisar a na-
tureza. Pois o mais importante são as dúvidas, as perguntas, e não as respostas.
Existe uma máxima de Descartes que apresenta uma relação em que é afirmado:
quando duvido existo, quando existo penso, quando penso, logo existo. Isto
é, mais importante que termos grandes certezas nas quais pautar nosso viver,
as dúvidas que somos capazes de ter e as perguntas que somos capazes de
formular podem dar profundas contribuições para a sociedade.
Outra importância de Descartes para a vida intelectual do ocidente foi
seu apego à matemática. Pois, como disciplina do conhecimento humano, a
matemática foi em grande parte desenvolvida pelos árabes na Idade Média. A
contribuição de Descartes ocorreu em alguns ramos matemáticos. Atribui-se a
ele a invenção do plano cartesiano, composto de dois eixos, as abscissas e as
ordenadas. Plano este que possibilitou, por sua vez, uma melhor representação
cartográfica do mundo.

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O f e n ô m e n o r e l i g i o s o  69

Figura 2.6  Pintura de René Descartes feita por Ian Rees

Fonte: Georgios Kollidas/Shutterstock (2014).

Outro nome importante para o desenvolvimento das ciências na Idade


Moderna foi o físico inglês Sir Isaac Newton. Suas leis sobre a física deram
grande contribuição para o desenvolvimento científico humano, em especial
ao conseguir estabelecer medidas sobre o tempo e velocidade dos corpos. Uma
das lendas sobre suas descobertas diz que ao estar embaixo de uma árvore,
e após uma maçã cair em sua cabeça, teve ele o despertar para descobrir a
gravidade, que é a tendência dos corpos serem atraídos para a Terra, a uma
velocidade de aceleração de 10m/s².
Porém, é interessante que os homens de ciência durante a chamada Idade
Moderna continuam sendo homens de fé. Isto é, não temos um abandono da
fé, e em seu lugar o desenvolvimento de uma ciência neutra e preocupada
com a verdade. Tal fato só ocorreu no século XIX. Até o século XVIII, homens
de fé também são homens de ciência. Por exemplo, os dois cientistas citados
tinham fé e a expunham publicamente. René Descartes buscou se utilizar de
Santo Agostinho para provar a existência de Deus. Por sua vez, Isaac Newton

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70  P O V O , C U LT U R A E R E L I G I Ã O

escreveu uma obra na qual apresentou um estudo sobre As Profecias de Daniel


e do Apocalipse. Mesmo no século XX, homens expoentes das ciências, como
Einstein e o brasileiro César Lattes, apontavam crer em Deus.

Para saber mais


Algumas instituições de pesquisa apresentam sites com informações importantes sobre as questões
relativas às Grandes Navegações e à Cartografia. Uma delas é o LECH — Laboratório de Estudos
em Cartografia Histórica, cujo site é o que segue: <http://www.mapashistoricos.usp.br/>.
Ao contemplarmos os mapas disponíveis no site e elaborados antes da invenção do plano car-
tesiano, pode-se observar como a religião era um lume a guiar os homens ao tentar compreender
a forma do planeta Terra, e que, após Descartes, a precisão científica dos mapas aumenta, sendo
a observação mais importante que os valores religiosos.

Todavia, temos, no século XIX, uma separação entre ciência e fé. Pois foi
o tempo no qual as verdades bíblicas foram duramente questionadas por inte-
lectuais materialistas. A Bíblia foi um livro duramente questionado nos últimos
séculos no Ocidente. Freud, Marx e Nietzsche são vozes citadas por intelectuais
universitários que na atualidade os utilizam como autoridades para questionar
as verdades bíblicas. Porém, o maior intelectual citado contra a Bíblia é Charles
Darwin. Autor do livro A origem das espécies, este autor é utilizado como voz que
corrobora a ideia de que a Bíblia é apenas um relato mítico, pois a verdade é que
o homem não foi feito das mãos de Deus, mas de um longo processo evolutivo,
no qual todos os primatas teriam descendido de um ancestral comum. Como
nota interessante, a formação universitária de Darwin foi a teologia.
Estes questionamentos científicos à Bíblia causaram grande polêmica no meio
cristão, tanto católico quanto protestante. As polêmicas darwinistas, marxistas e
freudianas geraram algumas reações. Uma das primeiras foi a denominada teolo-
gia liberal, que buscava casar os descobrimentos científicos com a religião cristã.
Antes mesmo dos questionamentos das ciências da natureza à Bíblia, as
reflexões dos teólogos protestantes ao livro sagrado já tinham passado por um
elevado grau de sofisticação. Este grau de sofisticação teve como um dos mar-
cos o desenvolvimento do método hermenêutico por Friedrich Schleiermacher,
teólogo pietista alemão que buscou elaborar uma tentativa de método científico
para interpretar as sagradas escrituras. Os teólogos liberais, inspirados também
em Kant, em livros como A religião nos limites da simples razão, buscaram
casar as verdades científicas com as verdades da fé. Assim como para muitos

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O f e n ô m e n o r e l i g i o s o  71

cientistas, para os teólogos liberais a Bíblia não é um livro científico. Pois, a


linguagem nela utilizada não tem como pressuposto a utilização de um método
no sentido cartesiano, mas sim ser uma revelação das verdades divinas, podendo
ser suas histórias apenas fábulas edificantes (BERGER: 1985).
Por sua vez, a teologia liberal teve duas principais críticas, uma nos Estados
Unidos da América e outra na Europa. Entre os teólogos norte-americanos se
desenvolveu o fundamentalismo, que buscava afirmar os princípios criacionis-
tas. Na Europa se desenvolveu a chamada teologia dialética ou neo-ortodoxa.
Elaborada por Karl Barth, buscava ser uma volta à Bíblia como principal fun-
damento de qualquer teologia cristã.
No campo católico, as reações teológicas aos questionamentos modernos
foram expostas na filosofia neotomista. Tendo como principais formuladores
Jacques Maritain e Étienne Gilson, tratou-se de uma tentativa de aplicação das
verdades reveladas pela soma teológica de São Tomás como uma espécie de
modernidade alternativa ao mundo. Posteriormente desenvolveu-se a teologia
da libertação, tanto no campo católico quanto no protestante. Uma forma de
pensamento cristão que tentou estabelecer uma teologia social (LIERRARD, 1982).
No campo religioso católico, podemos também pontuar o Concílio Vati-
cano I, que teve como principal líder o para Leão XIII, como uma das possi-
bilidades de adequação da Igreja Católica Apostólica Romana aos ditames da
história mundial após as grandes transformações apontadas pelas revoluções
do século XVIII, como a Revolução Industrial e a Revolução Francesa.
Com o que expusemos até aqui, pretendeu-se elencar alguns dados sobre as
transformações do modo de pensar da sociedade judaico-cristã ocidental. Pois,
se até o século XVIII, consideravam-se as verdades reveladas como principal
modo de explicar a natureza, podemos observar, após Descartes, que até mesmo
a disciplina de conhecimento mais próxima às ideias de revelação. A teologia
se pauta na perspectiva da utilização de métodos científicos (hermenêuticos)
na interpretação das sagradas escrituras.
Todavia, no mundo contemporâneo, não apenas as ciências são um desafio
para as religiões, como também o relacionamento entre as próprias denomina-
ções de fé se apresentam como desafiadoras. Fatos demonstrados no sincretismo
e no ecumenismo e nas tentativas de diálogos inter-religiosos.

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Atividades de aprendizagem
1. A importância do pensamento religioso extrapola os limites cons-
critos dos seguidores de determinadas crenças. Em relação à cultura
ocidental, um pensador a extrapolar os limites cronológicos de seu
tempo foi Santo Agostinho. Em relação ao seu pensamento, responda
as duas questões relacionadas a seguir.
Sobre a importância de Santo Agostinho para a formulação do pen-
samento ocidental, assinale a alternativa correta.
(  ) Santo Agostinho foi o formulador principal da teologia da liber-
tação, sendo seu livro principal de título Igreja carisma e poder.
(  ) Santo Agostinho foi o formulador principal da teologia patrística,
sendo suas obras principais Da trindade, As confissões e A cidade
de Deus.
(  ) Santo Agostinho foi um teólogo do século XVII, autor de obras
importantes para o cristianismo reformado, em especial o magistral
livro As institutas da religião cristã.
(  ) Santo Agostinho foi um dos principais teólogos do pensamento
ocidental, em especial pela sua influência árabe.
2. Sobre a importância de Agostinho para a compreensão ocidental dos
fenômenos da natureza, assinale a alternativa correta.
(  ) Santo Agostinho afirmava que a Terra não era o centro do universo.
(  ) Santo Agostinho afirmava que não existiam antípodas.
(  ) Santo Agostinho afirmava que a Terra era fruto do evolucionismo.
(  ) Santo Agostinho afirmava que os antípodas eram verdadeiros.

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Seção 3  O sincretismo religioso e o


ecumenismo
O sincretismo religioso são as misturas de crenças entre religiões distintas.
Por sua vez, o ecumenismo é a tentativa de união entre as religiões cristãs. E o
diálogo inter-religioso são as tentativas de contato entre as diferentes crenças
monoteístas e politeístas existentes ao redor do planeta.
O sincretismo é um tema clássico do estudo das religiões. Isto porque as
tradições religiosas ocidentais são em grande parte fruto do sincretismo entre
posicionamentos sociais e políticos antagônicos. Um primeiro sincretismo
ocorre na institucionalização do cristianismo como doutrina oficial romana.
Pois o Império Romano era uma instituição que perseguia sobremaneira aos
cristãos. Todavia, a partir do século IV, o cristianismo se torna uma religião per-
mitida, e posteriormente a religião oficial do Império Romano. Neste período,
o cristianismo se tornou católico, palavra cuja raiz latina significa universal.
No interior das relações nas quais observamos o cristianismo se tornando uma
“religião de Estado” temos uma possibilidade de compreender um primeiro
fenômeno de sincretismo.
O mitraísmo era uma das principais religiões romanas. Sendo que o seu
principal culto era ao Sol, considerado pelos mitraístas um deus. Os cristãos,
por sua vez, acreditam nas palavras e doutrinas desenvolvidas por Jesus. Tanto
mitraístas quanto cristãos acabaram sendo alvo da política desenvolvida pelo
imperador Constantino, que sincretizou os cultos cristãos aos cultos mitraístas,
sendo o culto a Cristo sincretizado ao culto ao sol (PETIT, 1989, p. 175-190).
Posteriormente, o culto cristão, com Teodósio, se transformou na doutrina oficial
do Império Romano, sendo muitas das antigas virtudes pagãs, transformadas em
valores espirituais cristãos. Na Península Ibérica, alguns templos de culto aos
deuses dos celtas se transformaram em Igrejas Cristãs Visigóticas, um exemplo
da possibilidade de compreendermos o sincretismo religioso.
O sincretismo, em relação ao catolicismo romano, também se relaciona à
possibilidade de compreensão da vida religiosa nas Américas de colonização
ibérica, isto é, nos territórios do chamado “Novo Mundo”. Pois antigos locais
de devoção a deuses incas e astecas se transformaram em locais de devoção a
Santa Maria. Alguns exemplos que podemos recordar é o templo a Quetzaco-
alt, transformado em catedral de Nossa Senhora de Guadalupe. Assim como

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também os deuses dos escravos africanos, que compulsoriamente se dirigiram


para o Brasil Colonial, como Iemanjá, a deusa das águas, cujo culto era proi-
bido, e com isto, relacionada pelos escravos a Nossa Senhora dos Navegantes
(BOFF, 1987).
A ação de sincretismo religioso na América Portuguesa também ocorreu
com o denominado criptojudaísmo. Isto é, as nações ibéricas converteram os
seus judeus à força, se transformando em cristãos-novos. Muitos dos cristãos-
-novos acabavam, por gerações, praticando um judaísmo escondido, longe dos
olhos da Igreja, mantendo uma noção do judaísmo como a religião de “casa”
e o catolicismo, a religião da “rua” (NOVISNKY, 1984).
As relações entre as religiões nem sempre são sincréticas. Por muitas vezes,
a intolerância é uma das formas do contato entre as diferentes religiões. Muitos
são os exemplos históricos, como nas cruzadas, ou nas guerras de religião entre
católicos e protestantes após o surgimento do movimento religioso liderado
por Lutero e Calvino. A intolerância também foi um marco nas relações entre
as religiões no século XX. Pois, durante o nazismo, muitas pessoas que profes-
savam uma fé diferente do catolicismo e do luteranismo foram perseguidas na
Alemanha de Hitler. Testemunhas de Jeová e judeus, por exemplo, foram bar-
baramente mortos nos campos de concentração. Assim, podemos compreender
que as diversas expressões de intolerância são uma das marcas da humanidade.
Porém, a história também apresenta diversos exemplos de uma relação de
tolerância entre as religiões. Um dos exemplos é a Espanha Medieval, que sob
o domínio dos muçulmanos era chamada de Al-Andaluz e que politicamente
era organizada no Califado de Córdoba, é um exemplo de convívio pacífico
entre as religiões monoteístas universais. Os judeus, cristãos e muçulmanos
dividiam um mesmo espaço geográfico sem a presença de violência entre os
grupos. Todavia, com o processo de reconquista cristã, iniciado após as cruza-
das, os ventos de tolerância se tornaram ecos de um passado distante. Sendo
o ano de 1492 um marco, pois no mesmo ano em que Colombo zarpa as suas
caravelas rumo à América, os mouros são expulsos de Granada e os judeus
foram expulsos da Espanha. Nos últimos anos, o governo espanhol, visando
à equiparação, concede a cidadania aos descendentes de judeus que foram
expulsos no século XV.
Durante vários séculos após a Reforma Protestante, as religiões cristãs tive-
ram como principal relação as disputas, tanto do ponto de vista militar quanto
teológico. Com os acordos diplomáticos do século XVII, denominado Pax de

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Westsfália, foi instituído um princípio jurídico-teológico marcado pela má-


xima latina cuius regio eius religio, que quer dizer, a religião do rei é a religião
dos súditos. Todavia, temos uma nova forma de pensar as religiões a partir do
Iluminismo. Pois alguns pensadores começam a demonstrar, através de seus
escritos, como a briga devido a questões religiosas não faz nenhum sentido,
sendo uma atitude ignóbil.
Dentre os principais nomes de pensadores que refletiram sobre a questão,
está o de Voltaire, que escreveu um livro chamado Tratado da tolerância, no
qual narrava a história de uma briga familiar devido ao fato de os cônjuges não
professarem a mesma religião, sendo um católico e outro protestante.
Também no século XVIII temos o início da utilização do termo ecume-
nismo. A palavra ecumenismo é oriunda do grego, oikouméne, que quer dizer
“casa comum”. O filósofo alemão Joerg W. Leibiniz foi o primeiro a utilizar a
expressão no sentido de um convívio pacífico e comum entre católicos e pro-
testantes. Sendo luterano e amigo fraterno de católicos romanos, o intelectual
se portava como um crítico mordaz da violência como principal maneira de
mediar as relações entre as distintas igrejas cristãs. Pois tanto católicos quanto
protestantes vivem na mesma casa comum de toda a humanidade, o planeta
Terra (CUNHA, 2010, p. 8).
O ecumenismo, na sociedade ocidental, foi em grande parte motivado pelas
reflexões de membros das igrejas protestantes, em suas pregações missioná-
rias na África e na Ásia. O imperialismo foi o grande financiador das missões
religiosas. Porém, por vezes, as ações dos missionários entravam em choque
com interesses explicitamente econômicos dos Estados Nacionais que as finan-
ciavam. Uma questão interessante é que, se a teologia liberal foi uma resposta
aos dilemas da racionalidade instrumental e científica, o ecumenismo, isto é, a
união das igrejas no processo de evangelização, foi uma resposta às dificuldades
vividas pelos religiosos na prática de anúncio das boas-novas cristãs em terras
distantes. Pois, uma observação se tornou clara para os membros das igrejas:
Jesus é o mesmo, independentemente das diferenças denominacionais.
Em 1910, na cidade de Edimburgo, a capital da Escócia, ocorreu a primeira
Conferência Missionária Internacional. Esta, por ser composta por membros
de diferentes denominações cristãs, foi um primeiro momento de reunião e
discussão de temas comuns entre os missionários, possibilitando um fecundo
diálogo entre as membrasias das distintas igrejas protestantes. A passagem
bíblica que inspirou o encontro foi João, capítulo 17 versículo 21: “[...] que

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eles sejam um para que o mundo creia”. Um dos frutos deste encontro foi o
objetivo de fundar uma instituição internacional que pudesse representar as
igrejas cristãs em seus objetivos comuns. Assim, em 1948, surgiu o CMI — Con-
selho Mundial de Igrejas, em um congresso na cidade holandesa de Amsterdã.
Contando com 147 igrejas de todo o mundo cristão protestante e ortodoxo,
este conselho possibilitou uma melhor representatividade das igrejas ante os
desafios do cristianismo no pós-guerra (CUNHA, 2010).
Em relação à participação católica romana na promoção do ecumenismo,
a mesma se comportou, a princípio, como uma opositora. O papa Pio XI pu-
blicou, em 1928 a encíclica Mortalium ânimos, na qual reafirmava que a
única igreja verdadeira era a Católica Apostólica Romana. O posicionamento
da Igreja Romana foi alterado com o pontificado de João XXIII que criou o
Secretariado Romano para a Unidade dos Cristãos, buscando diálogo com as
igrejas cristãs católicas ortodoxas e protestantes.
Na encíclica Pacem in terris, afirmou Sua Santidade:
As linhas doutrinais aqui traçadas brota da própria na-
tureza das coisas e, o mais das vezes, tecem `esfera do
direito natural. A aplicação delas oferece, por conse-
guinte, aos católicos vasto campo de colaboração, tanto
com cristãos separados desta sé apostólica, como com
pessoas sem nenhuma fé cristã, nas quais, no entanto,
está presente a luz da razão e operante honradez natural
(JOÃO XXIII, 2004, p. 77-78).

Um dos maiores exemplos do moderno ecumenismo ocorreu nos anos


1960, quando se realizou o Concílio Ecumênico Vaticano II. Conclamado pelo
carismático papa João XXIII, o concílio foi uma das principais transformações
do catolicismo romano. Pois, grande parte da liturgia católica foi modificada
com o incentivo da leitura bíblica e com as missas sendo celebradas nas línguas
nacionais, tendo o latim caído em desuso nas celebrações. Porém, um dos dados
mais interessantes do concílio foi o convite realizado pelo papa aos teólogos
protestantes, para que os mesmos fossem ouvidos e suas opiniões respeitadas.
Grandes pensadores do mundo protestante, como Karl Barth, participaram,
sendo uma das reclamações dos tradicionalistas católicos ao Vaticano II, a
acusação por eles formulada de que o catolicismo estava se “protestantizando”
(COMBY, 1989).
No Brasil, o ecumenismo foi uma possibilidade concreta nos movimentos
de juventude e na ação social das igrejas nos anos 1950. Todavia, o golpe

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militar de 1964, o qual as altas cúpulas das igrejas cristãs abertamente apoia-
ram e grande parte dos jovens rechaçou, esfriou as relações que levariam ao
maior ecumenismo. Com o declínio da ditadura militar, e quando as hierar-
quias eclesiásticas passaram a criticar de forma explícita as torturas que uma
parcela da população estava sofrendo, as
relações ecumênicas entre os cristãos passa-
ram a ser maiores. Um grande símbolo do ecu- Para saber mais
menismo no Brasil ocorreu em um culto
Uma das principais instituições ca-
ecumênico realizado na catedral da Sé, em São tólicas a pesquisar a história da
Paulo, na qual o cardeal D. Paulo Evaristo Arns, igreja e a pautar suas análises em
o reverendo presbiteriano Jaime Wright e o uma perspectiva ecumênica é o
rabino Henri Sobel, oraram e rezaram pelas Cehila, Comissão de estudos da
almas do operário Manoel Fiel Filho e do História da Igreja na América La-
jornalista Wladimir Herzog, torturados até a tina. Sua homepage é <http://
www.cehila.org/>
morte nos porões dos quartéis da repressão
política em São Paulo.
O ecumenismo também foi um mote das teologias de libertação na América
Latina, com o Cehila. O Centro de História da Igreja na América Latina e no
Caribe, com a presença de historiadores eclesiásticos abertos ao diálogo, como
Riolando Azzi e Oscar Beozo. Todavia, as denominações protestantes históricas
(com exceção da igreja luterana) se retiraram desta instituição. A reclamação
dos metodistas se revela pelo fato de os católicos considerarem as igrejas pro-
testantes como seitas. Um importante nome da teologia da libertação formulada
pelos protestantes no Brasil, o reverendo Rubem Alves foi excluído pelo frei
Betto dos debates da teologia da libertação, acusando o pastor presbiteriano em
questão de ser conivente com o imperialismo por ter feito sua tese nos Estados
Unidos. Esta relação de desconfiança mútua prova que os conservadores cató-
licos tinham errado seu diagnóstico, de uma protestantização do catolicismo,
pois as relações entre a teologia protestante e a católica na América Latina não
se mostrou possível.

Para saber mais


Uma das principais instituições que colabora para o desenvolvimento das ações de ecume-
nismo entre as igrejas cristãs é o Conic. Conselho Nacional das Igrejas Cristãs. Entidade que
possibilita um diálogo entre diferentes confissões religiosas cristãs Brasileiras. O site do Conic é:
<http://www.conic.org.br>.

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78  P O V O , C U LT U R A E R E L I G I Ã O

Estas tensões entre os teólogos não geraram maiores repercussões entre os


membros das igrejas. Todavia, as ações de intolerância católica em relação ao
protestantismo no Brasil nada mais são que uma triste tradição que se originou
nos tempos da colonização portuguesa. Mesmo após da Constituição Republi-
cana de 1891 garantir um Estado laico e liberdade de culto aos não católicos, era
comum no Brasil fanáticos católicos apedrejarem templos cristãos não católicos,
centros espíritas kardecistas e terreiros de umbanda. Este tipo de problema não
mais existe, graças à ação do Conic, o Conselho Nacional das Igrejas Cristãs
(Figura 2.7). Criado em 1982 de um amplo diálogo entre igrejas protestantes,
hoje conta também com a participação da Igreja Ortodoxa e da Igreja Católica.
Não apenas no Brasil estas relações institucionais entre ortodoxos e cristãos do
ocidente são cordiais. A relação entre católicos e luteranos, assim como entre
católicos romanos e católicos ortodoxos, é de fortes laços, tendo o Patriarca
de Constantinopla participado da celebração em honra à investidura do sul-
-americano Bergólio como papa Francisco.

Figura 2.7  Brasão do Conic

Fonte: Divulgação/CONIC (2014).

As demonstrações de intolerância comuns dos católicos no Brasil dos prin-


cípios da República, das últimas décadas, estão hoje com o vetor invertido. Pois
é presente entre as igrejas protestantes pentecostais. Estas relações de violência
chegaram ao ponto de terreiros de candomblé e umbanda serem apedrejados
por evangélicos. Um símbolo da intolerância religiosa dos protestantes ocor-
reu na televisão, quando um pastor chutou uma imagem de Nossa Senhora

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O f e n ô m e n o r e l i g i o s o  79

da Imaculada Conceição Aparecida venerada como padroeira do Brasil pelos


católicos romanos, em um programa televisivo.
Estas expressões violentas de radicalismos praticados por alguns fanáticos
e líderes religiosos são em geral rechaçadas pela maioria da população. Pois,
temos no Brasil uma tradição de convívio e sincretismo entre as crenças, o
que possibilita um tipo de pensamento que se materializa em expressões que
afirmam que “Deus é um só” ou “Deus é igual para todos”. Estas expressões sin-
tetizam um tipo de relação com o sagrado, na qual a sociedade brasileira se per-
cebe sincrética, híbrida, e enxerga nesta característica um valor civilizacional.
A relação entre o Estado Brasileiro e as igrejas cristãs é a de uma comunhão
de interesses. Comunhão esta que possibilita uma participação política de
igrejas, em especial as neopentecostais e a Renovação Carismática católica,
que possuem bancadas na Câmara dos Deputados, sendo mais tradicional a
bancada evangélica, caracterizada por posturas conservadoras em relação às
questões morais. Tal força política das igrejas cristãs em parte é explicada pela
ação das igrejas na promoção da assistência social aos excluídos sociais. Um
exemplo é a Pastoral da Criança, liderada pela médica pediatra Zilda Arns, e
que teve papel fundamental em diminuir os altos índices de mortalidade infantil
por subnutrição crônica em diversos estados brasileiros. Em contrapartida, o
Estado isenta as igrejas de contribuir com impostos, além de não possibilitar
leis que desagradam às lideranças religiosas. Em especial, a questão do aborto
e a obrigatoriedade do ensino religioso nas escolas públicas.
As constituições republicanas brasileiras, desde a primeira promulgada em
1891, até a última, considerada uma constituição cidadã, datada de 1988,
garante que o Estado é laico, isto é, oficialmente sem religião. Todavia, o cato-
licismo, por ser a religião professada pela maioria dos brasileiros, goza de um
status diferenciado, em geral demonstrado no fato de festividades exclusivas
católicas serem feriados nacionais, como é o caso do Carnaval (preparação
para a Quaresma), do dia de Nossa Senhora Aparecida, em 12 de outubro, e
na comemoração do Corpus Christi. Tais prerrogativas, que não se adequam
a um estado laico, mantêm-se devido à importância da tradição católica para
a sociedade brasileira. Como uma nação majoritariamente cristã, o Natal é
feriado nacional, assim como nos principais países do ocidente.
A relação dos Estados Nacionais com as religiões é variada, assim como são
diversas as crenças. Existem países teocráticos. Um exemplo na América Latina
é a Argentina, onde as igrejas protestantes são respeitadas, mas para o cargo

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80  P O V O , C U LT U R A E R E L I G I Ã O

máximo da nação, a Presidência da República, é obrigatória a filiação indivi-


dual dos candidatos ao catolicismo romano. Em alguns países árabes, como
no caso do Irã após a Revolução Islâmica liderada pelo aiatolá Komehini, se
afirma como um Estado Islâmico. Assim, as outras religiões são apenas tolera-
das como indicam o Alcorão, livro sagrado que afirma que os judeus e cristãos
devem ser respeitados. Existem também os Estados que se afirmam ateus. Em
especial, esta é a situação dos países socialistas, como exemplos máximos a
Rússia nos tempos da União Soviética e atual China, na qual o proselitismo
religioso é limitado e perseguido.
Em relação ao posicionamento cristão sobre as guerras mundiais, muitas
foram as vozes de repúdio a tais atos de profunda barbárie. Em especial, pelo
movimento ecumênico, como uma instituição denominada Aliança Mundial
para a Promoção da Amizade Internacional através das Igrejas. Todavia, tam-
bém podemos lembrar que muitos sacerdotes católicos e protestantes atuaram
como os capelães de tropas, abençoando as armas de destruição utilizadas
pelos soldados nas guerras do século XX.

Questões para reflexão


As religiões, em muitos locais do mundo, foram uma das principais
motivadoras das guerras e da intolerância entre os homens. Da per-
seguição romana aos cristãos, passando pelas cruzadas medievais e
chegando até aos conflitos da Segunda Guerra Mundial e do ataque
às Torres Gêmeas, a religião é pomo de discórdias. Neste sentido, não
seria uma incoerência um deus de amor motivar ações de violência? 

Esta ambiguidade também pode ser encontrada no modo como as diversas


pessoas e instituições cristãs lidam com o tema do ecumenismo. Algumas das
igrejas veem com bons olhos e apoiam as iniciativas ecumênicas, vendo nelas
a concretização do ideal de que deve haver apenas um rebanho, um só pastor,
uma fé e um criador. Outras denominações em geral ligadas às seitas batistas
norte-americanas se opõem ao movimento. Afirmam os opositores do ecume-
nismo que este seria um movimento que está profetizado no apocalipse como
os responsáveis pelo culto ao Anticristo.

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O f e n ô m e n o r e l i g i o s o  81

Independentemente das polêmicas, não existe apenas o ecumenismo como


mediação das relações entre as diferentes religiões. Pois existe o chamado diá-
logo inter-religioso, que se refere à relação entre o cristianismo, o judaísmo, o
islamismo e as religiões orientais. Tal perspectiva perpassa outras questões que
não apenas teológicas como também questões políticas e civilizacionais. O
diálogo inter-religioso é um dos maiores desafios contemporâneos. Isso porque
a intolerância ainda é um dos pontos desafiantes da humanidade no século XXI.

Atividades de aprendizagem
1. Os conceitos possuem uma grande importância para uma compre-
ensão científica do mundo que nos rodeia. As ciências da religião, a
história das religiões, a antropologia e a sociologia religiosa buscam
aprimorar seus arsenais conceituais para melhor explicar o fenômeno
religioso. Assim compreendendo, analise as sentenças a seguir, e
assinale a alternativa correta:
O que podemos compreender por ecumenismo?
(  ) Uma tentativa de congregação e união entre as diferentes deno-
minações da religião cristã.
(  ) Uma tentativa de congregação de diferentes crenças humanas
e de diferentes povos.
(  ) Uma expressão máxima das disputas religiosas entre as distintas
religiões monoteístas.
(  ) Uma forma de mediação das disputas entre os diferentes pontos
de vista entre as religiões de matriz africana e indígena com a
Igreja Católica.
2. Qual é a diferença entre ecumenismo e o diálogo inter-religioso?
(  ) Ecumenismo é restrito ao cristianismo, e o diálogo inter-religioso
envolve outras crenças, como umbandistas, judeus e muçulmanos.
(  ) Ecumenismo se refere às perspectivas da igreja católica, e o
diálogo inter-religioso ocorre entre os membros das religiões
protestantes, com destaque para as seitas batistas de origem
norte-americana.

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82  P O V O , C U LT U R A E R E L I G I Ã O

(  ) O diálogo inter-religioso é uma forma de expressão política da


união entre as igrejas, e o ecumenismo se refere as questões
tipicamente teológicas.
(  ) Não existe diferença entre ecumenismo e diálogo inter-religioso,
comprovando-se tal diferenciação em mera formalidade semân-
tica ou ortográfica.

Fique ligado!
A compreensão do fenômeno religioso é de incomensurável importância
para o estudo da história e das demais ciências humanas. Assim, temos
uma possibilidade de melhor compreensão de diversas ações dos indi-
víduos ao longo dos tempos. Pois muitas ações são baseadas em valores
religiosos.
Na primeira seção o acadêmico pode observar a tipologia das religiões.
Isto é, temos basicamente duas grandes formas de expressão do sentimento
religioso: o monoteísmo e o politeísmo. Pode-se também observar que o
mundo possui cinco grandes religiões mundiais, cada uma com sua his-
tória e dilemas internos. São elas o cristianismo e o islamismo (de base
judaica), além do confucionismo, do hinduísmo e do budismo.
Na segunda seção acompanhamos a importância do pensamento de
Santo Agostinho para a compreensão do pensamento do homem ociden-
tal. Podemos também compreender que, a partir do século XIX, a com-
preensão agostiniana de Deus continua prestigiada na cultura ocidental.
Porém, sua compreensão sobre a natureza é refutada com a descoberta
de vida nos antípodas, o que abre margem para modelos científicos para
a explicação do universo, na qual O discurso do método, de René Des-
cartes, é paradigmático.
Por fim, na terceira seção, podemos contemplar a diferença entre laici-
dade, o sincretismo, o ecumenismo e o diálogo inter-religioso. A laicidade
é um tipo de relação entre a religião e o estado. O sincretismo é a simbiose

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O f e n ô m e n o r e l i g i o s o  83

entre religiões diferentes. O ecumenismo é a busca de entendimento en-


tre as diferentes religiões cristãs. E o diálogo interreligioso é um tipo de
relação entre religiões distintas, como os muçulmanos, judeus, cristãos,
budistas, confucionistas e hinduístas.

Para concluir o estudo da unidade


Na presente unidade, tivemos a oportunidade de estudar o fenômeno re-
ligioso, com destaque para as questões concernentes à cultura ocidental.
Observamos que a religião está presente nas mais distintas culturas huma-
nas, e que as diferenças éticas por vezes se somam às diferentes formas de
sensibilidade religiosa. Tivemos também a oportunidade de contemplar
que para os cientistas humanos a religião não é analisada como fazem os
teólogos, buscando as verdades da fé, mas sim pensando a função social
desempenhada pela religião no corpo social.
Observamos que diversos tipos de religião, como a monoteísta e a
politeísta, conviveram ao longo da história universal. Outra questão-chave
para a compreensão do fenômeno religioso é compreender corretamente
os conceitos utilizados, como sincretismo, ecumenismo e laicidade.
Um dos caminhos para os que pretendem aprofundar seus estudos
em questões ligadas a temáticas relacionadas à história das religiões é a
leitura de autores clássicos que buscaram compreender a função social
da fé, como Durkheim, nas formas elementares da vida religiosa, e Max
Weber, em A ética protestante e o espírito do capitalismo. Outros autores
que pensaram estas temáticas foram o romeno Mirceia Eliade, no livro O
sagrado e o profano, além do argelino Pierre Bourdieu, no livro A econo-
mia das trocas simbólicas. O sociólogo das religiões Peter Berger, autor de
O dossel sagrado, também se configuram como referências fundamentais.
O estudo do fenômeno religioso se configura como um dos mais
importantes estudos dentro das ciências humanas, haja vista a constante
legitimação religiosa para diversos conflitos internacionais. Espera-se que
o aprofundamento dos estudos possa levar a uma maior tolerância entre
os diferentes pontos de vista com respeito às coisas da fé.

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Atividades de aprendizagem da unidade


1. A análise comparativa das religiões monoteístas e politeístas afirma
ser a principal diferença a crença em um único ou em vários deu-
ses. Todavia, temos questões decorrentes desta crença fundamental,
como a noção temporal. Assim compreendendo, pergunta-se: qual
é diferença na concepção de tempo das religiões politeístas e das
religiões monoteístas?
2. Quais foram as reações religiosas às teorias darwinistas e evolucionis-
tas presentes no século XIX nos campos cristãos católico e protestante?
3. A relação entre o poder político e as diversas expressões das sensibi-
lidades religiosas variaram conforme os tempos. Na Idade Moderna,
as monarquias nacionais possuíram um tipo específico de relação
entre a religião e a política, marcadas pela Pax de Westsfália. O que
afirmava tal acordo?
4. Na contemporaneidade, temos diversas formas de relação entre o
estado e as entidades políticas. Desde países teocráticos, como no
Oriente Médio, como países laicos, como ocorre em grande parte dos
países ocidentais. O que podemos compreender por Estado laico?
5. Dentre os termos utilizados para a compreensão da religiosidade
brasileira, um dos mais populares é o sincretismo religioso. Por isso,
pergunta-se: o que é sincretismo?

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O f e n ô m e n o r e l i g i o s o  85

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Unidade 3
As religiões
monoteístas
Edison Lucas Fabricio

Objetivos de aprendizagem:
Compreender a formação histórica do judaísmo.
Conhecer a história do povo judeu e o papel da religião na sua
trajetória histórica.
Conhecer as principais doutrinas e divisões do judaísmo.
Analisar o contexto de surgimento do cristianismo.
Debater a formação da ortodoxia cristã.
Analisar os diversos cismas da cristandade, os processos de reforma
e expansão pelo mundo.
Conhecer o contexto de surgimento do islamismo.
Compreender a ascensão do profeta Maomé e seu papel na for-
mulação da doutrina islâmica.
Compreender o cotidiano islâmico, sua rotina de oração, os pilares
de sua fé e os princípios da observância.

  Seção 1: Judaísmo
Aborda os contextos histórico e cultural da religião
hebraica e sua influência sobre as demais religiões,
bem como sobre a história da humanidade.

  Seção 2: Cristianismo
Relata a evolução do cristianismo ao longo da histó-
ria, suas diferentes nuances e características.

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  Seção 3: Islamismo
Apresenta o islamismo, sua formação e importante
representação diante do contexto religioso.

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A s r e l i g i õ e s m o n o t e í s t a s  91

Introdução ao estudo
Caro(a) acadêmico(a), nesta unidade vamos estudar a história das três prin-
cipais religiões monoteístas: judaísmo, cristianismo e islamismo. Nas páginas
seguintes você encontrará uma narrativa sucinta e breve do assunto, pois tais
religiões existem há milênios e está longe de nossos objetivos esgotar tais dis-
cussões e abordagens.
Veremos que o judaísmo, embora seja atualmente a religião minoritária no
mundo, já foi a mais antiga tradição religiosa monoteísta, sendo fornecedora de
vários elementos para o cristianismo e para o islamismo. Desta forma, veremos
como se deu o processo de formação do judaísmo, seus líderes, a doutrina, a
formação do cânon e as divisões que o judaísmo sofreu ao longo de sua história.
Nesta unidade também buscaremos situar a formação histórica do cristia-
nismo, e como uma simples seita judaica, como era visto na época, se transfor-
mou na maior religião do mundo. Veremos como a longa história do cristianismo
foi marcada por perseguições em seu início e como posteriormente se afirmou
como religião de Estado, como formou seu corpo doutrinário, a importância
dos concílios neste processo e como se fragmentou em várias denominações
a partir dos cismas, especialmente a partir da Reforma Protestante.
Por último, veremos como se formou a religião monoteísta mais jovem, o
islamismo. Buscaremos compreender o papel do profeta Maomé na formação da
doutrina islâmica, como ocorreu a expansão do islã pelo mundo, o surgimento
e fragmentação de diversas facções após a morte do profeta Maomé. Também
buscaremos compreender como é o cotidiano da vida religiosa muçulmana,
os pilares de sua fé e os princípios de observância.

Seção 1  Judaísmo
Nesta seção estudaremos a história do judaísmo, hoje uma religião
minoritária no mundo, mas de grande importância e influência na própria
formação do cristianismo e islamismo. O judaísmo, também chamado de
uma das “religiões do livro”, é a mais antiga tradição religiosa monoteísta.
Nesta seção veremos como seu o processo de formação do judaísmo, seus
líderes, a doutrina, a formação do cânon e as divisões que o judaísmo sofreu
ao longo de sua história.

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92  P O V O , C U LT U R A E R E L I G I Ã O

É importante pontuarmos inicialmente a questão das fontes da história do


judaísmo. A principal fonte aqui é a Bíblia Hebraica. Todavia, não há consenso
entre os historiadores sobre a veracidade ou confiabilidade dos textos bíblicos
e a historicidade dos relatos nela presentes. Até praticamente os anos de 1980
todo o relato bíblico, desde o livro de Gênesis até os Profetas, era tido como
confiável (BRIGHT, 2003). Todavia, estudos mais atuais, baseados em evidências
arqueológicas e na crítica literária, têm questionado tal consenso, mas ainda
atribuem um grande valor ao relato bíblico, como podemos atestar na posição
de Eliade e Couliano: “A utilização da Bíblia como fonte histórica foi muitas
vezes questionada. Pode-se, porém, estimar que pelo menos uma parte das
narrativas bíblicas tem base histórica” (1999, p. 217).
A segunda fonte mais importante para a história do judaísmo, e conse-
quentemente de Israel, é o livro História dos hebreus de Flávio Josefo. Este
historiador nasceu em Jerusalém no ano 30 ou 31 da era cristã e faleceu no
ano 100. Descendente de uma família de sacerdotes, Josefo teria tido uma
sólida educação na Torá e na cultura romana. Na sua obra é possível notar
as várias referências às diversas seitas da época: saduceus, fariseus, essênios,
zelotas e sicários. Aos zelotas Josefo teria atribuído a responsabilidade pela
invasão e destruição do templo de Jerusalém no ano 70, realizada por Tito,
filho do imperador Vespasiano. Josefo chegou a ser governador da Galileia e
próximo do imperador romano. Suas obras principais são: A guerra dos judeus,
Antiguidades judaicas e Autobiografia (JOSEFO, 2005).
Mas vamos à história dos hebreus. Segundo a tradição bíblica, a história do
povo hebreu teria começado com Abraão. Deus o teria ordenado que saísse
de sua terra, a Mesopotâmia, e do meio de seus parentes, pois ele seria pai de
uma grande nação. Abraão teria viajado e se estabelecido em muitos lugares,
inclusive no Egito. Abraão teria se casado com Sarah, uma mulher estéril (BÍ-
BLIA SAGRADA, 2002, p. 30)
O primeiro filho de Abraão foi concebido por uma escrava de nome Ha-
gar e se chamou Ismael. A história bíblica relata que em seguida a mulher de
Abraão, Sarah, foi alvo de um milagre e gerou um filho de nome Isaque. Este,
por sua vez, casou-se com uma mulher de nome Rebeca e teve um filho que
se chamou Jacó, que em uma luta com um anjo teve seu nome mudado para
Israel (BÍBLIA SAGRADA, 2002, p. 47).
Jacó foi pai de doze filhos, que deram origem às chamadas doze tribos
de Israel. Segundo a história bíblica, um dos filhos mais novos de Jacó, José,

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A s r e l i g i õ e s m o n o t e í s t a s  93

invejado por seus irmãos, foi vendido como escravo para o Egito sem o co-
nhecimento do seu pai. No Egito teria se tornado um importante governador.
Grandes dificuldades econômicas fizeram com que os filhos de Jacó fossem ao
Egito para comprar alimentos e estes reconheceram José. Houve uma reconci-
liação de José com seus irmãos e seu pai, que passaram a residir no Egito. Com
o passar dos anos a situação política do Egito mudou e os descendentes de
José, na época conhecidos como hebreus, passam a ser tratados como escravos
(BÍBLIA SAGRADA, 2002, p. 69).
O relato bíblico mencionado, ainda que não possa ser realmente compro-
vado, é plausível. José é um personagem histórico passível de existência. Há
muitos paralelos entre os costumes relatados no livro de Gênesis e os docu-
mentos egípcios. E é possível aferir que não seria impossível um não egípcio
chegar ao posto de governador (grão-vizir) no período dominado pelos hicsos,
povo vindo da Ásia. O mesmo se pode dizer da escravidão dos hebreus no
Egito. Fontes egípcias comprovam a utilização de escravos (hapirus/hebreus)
em construções no delta do Nilo por Ramsés II. Ainda em relação à presença
de hebreus no Egito e sua saída, há o testemunho da “Estela de Merneptah”,
registro escrito do faraó que sucedeu Ramsés II, que atesta a presença israelita
na Palestina no século XIII a.C., o que nos possibilita pensarmos o êxodo ocor-
rendo próximo ao ano de 1250 a.C.

Questões para reflexão


Você já parou para refletir sobre a importância das fontes para a escrita
da História? Hoje já relativizamos o caráter das fontes históricas, pode-
-se fazer história sem fontes escritas, com uma entrevista de história
oral, por exemplo. Mas nem sempre foi assim, durante muito tempo a
história era a história dos registros escritos. Você já pensou o quanto
perdemos ignorando a oralidade? Veja, por exemplo, o caso das reli-
giões sem um código escrito.

A história bíblica relata que na época em que os hebreus eram escraviza-


dos surgiu um líder, Moisés, de origem hebraica, mas filho adotivo da filha do
faraó. A história dos hebreus geralmente tem como ponto inicial a libertação
do Egito, a passagem pelo Mar Vermelho e pelo deserto e a chegada à terra

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prometida. Os hebreus passam por várias situações belicosas com os povos que
já habitavam a região da Palestina, com destaque para os filisteus. Vejamos o
que dizem Eliade e Couliano sobre este período.
O povo judeu surge na história depois do ano 2000
a.C.[...] Segundo a Bíblia, os ancestrais de Israel che-
garam ao Egito como homens livres, mas depois foram
escravizados. Milhares saíram de lá em cerca de 1260
a.C., acompanhando o profeta Moisés, cujo nome é de
origem egípcia. Instalaram-se em Canaã e lá formaram
doze tri­bos (ELIADE; COULIANO, 1999, p. 215).

Embora a Bíblia relate que a terra foi tomada por meio de vários conflitos
bélicos, não há concordância entre os historiadores neste ponto. Todavia, há
concordância em relação ao surgimento de uma monarquia entre as tribos.
Uma primeira forma de governo teria sido a dos juízes, anciões sábios que
mediavam os conflitos e julgavam as causas do povo. Mas por volta de 1050,
teria sido nomeado o primeiro rei de Israel, Saul, para unir o povo no combate
aos filisteus. Após a morte de Saul, Davi foi designado rei.
O reinado de Davi foi um dos mais importantes para a história dos judeus,
ele se tornou um símbolo do judaísmo. Davi conquistou muitas vitórias sobre
os povos adversários e transformou Jerusalém em centro religioso, dando um
lugar definitivo para a Arca da Aliança, símbolo máximo da presença divina
no culto judaico.
A sucessão do trono de Davi, após sua morte, foi realizada com Salomão
(c. 961-922 a.C.). O reinado de Salomão, segundo a tradição bíblica, foi
um dos mais esplendorosos da História. No seu governo foi construído
finalmente um suntuoso templo para a Arca da Aliança. Depois da morte
de Salomão, o Es­tado dividiu-se em reino do Norte (Israel) e reino do Sul
(Judeia). Em 722 a.C., Israel foi invadido e conquistado pelo Império Assírio.
Em 587 a.C., seria a vez do reino do sul, isto é, Judeia, o im­perador babilônico
Nabucodonosor invadiu com seu exército Jerusalém, destruiu a cidade, seu
templo, saqueou suas riquezas e levou o povo cativo. O povo judeu levado
cativo para a Babilônia permaneceu por cerca de 70 anos no exílio. O fim do
exílio ocorreu quando Ciro, rei da Pérsia conquistou o Império Babilônico em
539 a.C. e gradativamente permitiu o retorno dos judeus, a reconstrução dos
muros de Jerusalém e a construção do segundo templo.

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A s r e l i g i õ e s m o n o t e í s t a s  95

Para saber mais


Aqui vai uma dica de site. Para conhecer um pouco mais da história de Israel, de arqueologia
bíblica, de línguas antigas e das mais recentes publicações na área, acesse o site do professor
Airton José da Silva, biblista, especialista em Antigo Testamento e professor da PUC-Campinas.
Disponível em: <http://www.airtonjo.com>.

A partir do ano de 359 a.C., o contexto político começa a sofrer alterações


na Palestina. Filipe II, e depois seu filho, Alexandre, o Grande, rei da Macedônia
começam a expandir o Império Macedônico pela Grécia, Ásia, Egito e Oriente.
Em 334 a.C., Alexandre, depois de dominar toda a Grécia, conquista a Ásia Me-
nor e toda a Palestina, que fazia parte da V satrapia do Império Persa, é anexada
ao novo império sem resistências. Durante o governo macedônico a situação
do judaísmo permaneceu inalterada, havia o governo do sumo sacerdote e
a comunidade se reunia junto ao templo sob a Torá. Alexandre morreria em
323 a.C. na Babilônia, acometido por malária. Depois da morte de Alexandre,
que não deixou herdeiros, a Palestina é disputada por seus generais, são duas
décadas de exércitos cruzando a Palestina.
Neste período a Judeia passou a ser controlada pelos Ptolomeus, que de
Alexandria, governavam o Egito e a Palestina. A partir de 198 a.C., a Judeia
passou a pertencer ao Império do Selêucida. Em 175 a.C. Selêuco IV é assassi-
nado e a sucessão é feita por o seu irmão Antíoco IV Epífanes (175-164 a.C.).
O governo de Antíoco IV é um dos mais prejudiciais às práticas do judaísmo.
Ele “[...] toma medidas helenizantes como forma de consolidar o seu poder.
Concede o status de pólis a várias cidades, promove a adoração de Zeus e
reivindica para si prerrogativas divinas” (BRIGHT, 2003, p. 570).
Estes episódios são narrados com detalhes no livro de Macabeus. Vejamos.
Voltando no ano cento e quarenta e três, após ter ven-
cido o Egito, Antíoco atacou Israel e Jerusalém com um
poderoso exército. Depois de entrar no Templo com toda
a arrogância, Antíoco levou o altar de ouro, o candelabro
com todos os acessórios, a mesa dos pães oferecidos a
Deus, as vasilhas para as libações, as taças, os incensórios
de ouro, a cortina, as coroas e as placas de ouro que orna-
vam a fachada do Templo. Saqueou tudo. Levou também a
prata, o ouro, os objetos de valor e até as riquezas escon-
didas que conseguiu encontrar. [...] Em todo o Israel, em

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96  P O V O , C U LT U R A E R E L I G I Ã O

todos os lugares, houve uma grande lamentação: Chefes


e anciãos gemeram, rapazes e raparigas perderam o seu
vigor, e murchou a beleza das mulheres. Todo o recém-
-casado entoou um cântico fúnebre e a esposa ficou de
luto no seu quarto de casal. A terra tremeu por causa
dos seus habitantes, e toda a família de Jacó se cobriu
de vergonha. [...]Além disso, através de mensageiros, o
rei mandou a Jerusalém e às cidades de Judá um docu-
mento com várias ordens: Tinham que adotar a legislação
estrangeira; proibia oferecer holocaustos, sacrifícios e
libações no Templo e também guardar os sábados e fes-
tas; mandava contaminar o santuário e objetos sagrados,
construindo altares, templos e oratórios para os ídolos,
e imolar porcos e outros animais impuros; ordenava que
não circuncidassem os filhos e que se profanassem a si
próprios com todo o tipo de impurezas e abominações,
esquecendo a Lei e mudando todos os costumes. Quem
não obedecia à ordem do rei, incorria em pena de morte
(1Mc 1,21-50) (BÍBLIA SAGRADA, 2002, p. 577).

Todas as medidas helenizantes de Antíoco IV levaram o povo judeu à re-


belião, que também ficou conhecida “Revolta dos Macabeus”, liderada pelos
irmãos Macabeus. O Templo de Jerusalém foi ocupado e purificado em 164 a. C.

Questões para reflexão


Como vimos anteriormente, para os judeus há objetos sagrados e estes
não podem ser profanados por pessoas impuras. Você já pensou que
pode existir algo de comum em todas as religiões? Por muito tempo
os historiadores se debruçaram sobre essa questão. Seria a noção de
divindade uma noção presente em todas as religiões? E a noção de
mistério ou sobrenatural, estaria presente em todas as religiões? E a
separação entre sagrado e profano?

No ano de 140 a.C., Simão, o último macabeu, foi aclamado Sumo Sacer-
dote e governador, já sob o domínio do Império Romano. Neste período já havia
vários grupos políticos contrários à dominação romana, entre eles, os zelotas ou
sicários. No ano 66 da era cristã iniciou-se uma revolta popular liderada pelos
zelotas contra os romanos. A Judeia foi tomada pelos exércitos de Vespasiano e
seu filho Tito, futuros imperadores romanos. Jerusalém foi saqueada e teve seu

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A s r e l i g i õ e s m o n o t e í s t a s  97

templo queimado pelo general Tito. O episódio da destruição do templo oca-


sionou o início da diáspora judaica pelo mundo. Este movimento se acentuou
quando em 133 eclodiu uma nova revolta sob a liderança do messias Bar Ko-
chba. A repressão a esta revolta devastou a Judeia e praticamente a despovoou.
A prática do judaísmo foi proibida, mas a proibição vigorou por pouco tempo.
Somente no fim do século IV, quando o cristianismo se tornou a re­ligião oficial
do Império Romano, os judeus perderam seus privilégios e foram eliminados
dos empregos públicos, prática que vigorou em todos os estados cristãos até
praticamente o século XVIII.
Somente no final do século XIX tomou corpo a ideia de se construir um
lar judaico na Palestina, embora as comunidades judaicas da Palestina nunca
tivessem realmente sido extintas. Esse movimento que preconizava a construção
de um lar judaico ficou conhecido como sionismo. No entanto, o sionismo não
é produto do acaso. O sionismo é consequência do profundo antissemitismo
europeu. Os constantes massacres de comunidades inteiras de judeus e a in-
competência de uma política de integração foram os principais responsáveis
pelo ideário de uma volta a Sião. O sionismo não teve sucesso num primeiro
momento, muitos judeus acreditavam na integração, outros preferiam a imi-
gração individual. No entanto a situação se agravou quando o antissemitismo
virou política oficial do estado nazista. O nazismo foi a principal tra­gédia do
povo judeu, calcula-se em seis milhões as vítimas judias do holocausto, entre
1937 e 1944.
Depois dessa breve exposição sobre a história da formação do judaísmo,
passamos agora para as principais características e elementos que compõem
esta religião. O judaísmo é uma das religiões mais tradicionais e antigas da
história da humanidade. O judaísmo também é conhecido como religião mo-
saica, pois suas origens remetem a Moisés, um dos primeiros líderes do povo
judeu. Já a palavra judeu é derivada da palavra Judá, uma das tribos de Israel,
posteriormente um reino independente, mas com o decorrer dos anos todos os
hebreus passaram a se identificar como judeus. Portanto, o judaísmo, religião
dos judeus, levou bastante tempo para ser estruturado recebendo este nome
só posteriormente. A história do judaísmo se confunde com a própria história
do povo hebreu. O judaísmo, como as demais religiões monoteístas, acredita
em um só deus. Segundo a tradição bíblica, Deus teria feito um pacto com o
povo judeu e o tornado o “povo eleito”, por isso o povo lhe deve fidelidade e
obediência.

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98  P O V O , C U LT U R A E R E L I G I Ã O

O livro sagrado dos judeus equivale ao antigo testamento da Bíblia cristã,


porém disposta de maneira distinta. A bíblia hebraica é chamada de Tanack,
abreviação Torahnebi’imweketuvim, ou seja, três grupos de livros: a Torá,
o Nebi’im e o Ketuvim, ou a Lei (também conhecido como Pentateuco), os
Profetas e os Escritos. A parte mais antiga é o Pentateuco, datado do século
X a.C.; as partes mais recentes dos Ketuvim datam apenas do século II a.C.
O Pentateuco é constituído por Gênesis (Bereshit), Êxodo (Shemot), Levítico
(Vayikra), Números (Be-Midbar) e Deutero­nômio (Devarim). Segundo Eliade
e Couliano:
A Torá foi constituída a partir de quatro textos de épocas
diferentes: J ou Javista, que utiliza o nome de JHVH para
Deus (século X a.C.); E ou Elohista, que utiliza o nome
Elohim (plu­ral) para Deus (século VIII a.C); D, que está
na base da redação de uma parte do Deuteronômio (622
a.C.); e P, redigida por um grupo de sa­cerdotes, que está
na base do Levítico e de certas partes de outros textos. A
diversidade das fontes também implica a diversidade das
concepções de Deus e dos mitos de fundação do cosmo
e do homem (1999, p. 217).

Os profetas (Nebi’im) são compostos pelos livros de Josué, Juízes, 1 e 2


Samuel, 1 e 2 Reis, Isaías, Jeremias, Ezequiel, Oseias, Joel, Amós, Obadias,
Jonas, Miqueias, Naum, Habacuque, Sofonias, Ageu, Malaquias e Zacarias. Já
os Escritos (Ketuvim), também conhecidos como livros de sabedoria, são textos
variados que datam de épocas diversas, como os Salmos (150 hinos e ora­ções),
os Provérbios, Jó, Cântico dos Cânticos, Rute, Lamentações, Eclesiástico, Ester,
Daniel, Esdras, Neemias, 1 e 2 Crônicas.
Como vimos, a formação da Bíblia Hebraica ocorreu paulatinamente,
somente a Torá foi constituída num intervalo de quase 10 séculos. Você deve
estar se perguntando: mas então tivemos a versão definitiva do livro sagrado
dos judeus? Pois bem, a primeira coletânea completa é a cha­mada Septuaginta
(versão grega dos Setenta, fala-se miticamente em 70 anciãos tradutores). Esta
versão teria sido concluída no século II a.C. Todavia, a Septuaginta contém
textos chamados “Apócrifos”, ou seja, não reconhecidos como inspirados por
Deus e, portanto, não fazem parte do cânon da Bíblia Hebraica. Essa tradução
para o grego teria sido a base da versão em latim de São Jerônimo, conhecida
como Vulgata Latina.

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A s r e l i g i õ e s m o n o t e í s t a s  99

Para saber mais


Você sabia que há estudos sobre o judaísmo no Brasil desde 1969? Não deixe de conhecer o
site do Centro de Estudos Judaicos da USP, vinculado ao Departamento de Letras Orientais.
Acesse o site: <http://cej.fflch.usp.br/>

Todavia, a literatura judaica mais extensa é constituída pelo Mishnah, a Tos-


sefta, os dois Talmudes (de Jerusalém e da Babilônia) e a Misdrash. O Mishnah
foi con­cluído por volta do ano 200 e contém 63 tratados sobre a tradição oral
judaica, especialmente de questões agrícolas, festas, jejuns, casamento, divór-
cio, direito civil e penal, idolatria, os sacrifícios rituais e as regras de pureza. A
Tossefta é uma espécie de complemento jurídico da Mishnah, mas mais extenso.
Os Talmudes reúnem discussões e ensinamentos sobre a Mishnah elaborados
nas academias da Palestina e da Babilônia. O Talmude palestino foi concluído
no início do século V e o Talmude babilônico, muito mais prestigiado que o
palestino, foi concluído por volta do ano 500. A Misdrash é uma espécie de
exegese da Bíblia, tem um sentido prescritivo e contém histórias de persona-
gens bíblicos com lições morais a ser observadas. A Misdrash foi constituída
ao longo de vários séculos na Palestina (AZRIA, 2000, p. 69)
Vejamos, a partir desse ponto, os ritos e celebrações da religião judaica.
O judaísmo é uma religião que envolve todos os aspectos da vida do judeu,
desde seu nascimento até sua morte. Assim que o menino judeu completa
oito dias de vida ele passa por um ritual chamado “pacto da circuncisão” ou
“brit milá”, que consiste na remoção do prepúcio do pênis, geralmente pelo
pai do menino. A circuncisão é um dos sinais da aliança de Deus com seu
povo e por isso também é exigida de todo convertido ao judaísmo, mesmo se
já adulto. A cerimônia “bar mitzvá” (que quer dizer “filho do mandamento”)
marca a maioridade religiosa. O ritual ocorre no primeiro sábado após seu 13o
aniversário. Nesse dia, o menino vai à sinagoga para ler publicamente partes
da Torá, em hebraico, e receber a bênção paterna. Essa leitura é cantada pelo
menino com a ajuda de um “Yad”, um marcador de prata em formato de mão,
que evita que o texto sagrado seja tocado e sujo durante a leitura. Durante todo
o ano que antecede a cerimônia, o menino deve ter aulas com rabinos para
aprender as leis e os costumes do judaísmo. Cerimônia parecida, chamada
de “bat mitzvá”, é realizada em algumas comunidades para as meninas ao
completarem 12 anos.

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100  P O V O , C U LT U R A E R E L I G I Ã O

Questões para reflexão


A cerimônia do “bar mitzvá”, além de ser um ritual religioso também
cumpre o papel de um ritual de passagem. Os rituais de passagem estão
presentes em muitas culturas, eles marcam a passagem, por exemplo,
da infância para a adolescência, para a juventude, a vida adulta. Você
já parou para pensar nestes rituais de passagem em nossa cultura? Estão
eles associados à religião?

Para os judeus, o casamento é uma instituição divina. Apesar de haver casa-


mentos mistos atualmente, é costume que os judeus casem entre si. O casamento
geralmente é realizado em uma sinagoga, mas debaixo de um toldo chamado de
hupá. Normalmente é um rabino que celebra o casamento e lê em voz alta as
bênçãos e as exportações para o casal. Logo depois, os noivos colocam as alianças
compartilham o mesmo copo de vinho, representando a partilha que haverá no
casamento. Em seguida, é lido e entregue para a noiva o Ketubá, uma espécie de
contrato de casamento. O casal novamente bebe vinho e o noivo quebra o copo
com o pé, para lembrar a destruição dos dois templos de Jerusalém.
Os funerais são realizados pelos judeus a partir de uma limpeza ritual e do
envolvimento do corpo em uma mortalha de linho branco. Esses rituais fune-
rários variam de acordo com os locais e a ortodoxia do fiel. A cremação entre
judeus não é permitida. O homem geralmente é enterrado com seu xale de
oração. O luto da família se prolonga por trinta dias sendo a primeira semana
o período mais severo, quando geralmente não se sai de casa.
As orações são parte importante do cotidiano judaico. A mais importante das
orações era a “Shema”, pois se trata da profissão de fé do monoteísmo judaico.
Essa oração está registrada no livro de Deuterônomio e é reproduzida a seguir.
Ouve, Israel, o Senhor nosso Deus é o único Senhor.
Amarás, pois, o Senhor teu Deus de todo o teu coração,
e de toda a tua alma, e de todas as tuas forças. E estas
palavras, que hoje te ordeno, estarão no teu coração;
E as ensinarás a teus filhos e delas falarás assentado
em tua casa, e andando pelo caminho, e deitando-te e
levantando-te. Também as atarás por sinal na tua mão
(tefilim), e te serão por frontais entre os teus olhos. E as
escreverás nos umbrais (mezuzot) de tua casa, e nas tuas
portas (BÍBLIA SAGRADA, 2002, p. 202).

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A s r e l i g i õ e s m o n o t e í s t a s  101

Você deve estar se perguntando o que significa “tefilim” e “mezuzot”. A se-


guir, você passará a entender melhor. Nas orações os judeus usam caixinhas de
couro chamadas “tefilim”, que contêm pedaços de pergaminhos com palavras
da Shema e são usadas no braço esquerdo ou na testa do judeu, como símbolo
daquilo que ele não deve esquecer (testa) e daquilo que deve guiar sua ação
(braço). Outro instrumento importante para as orações ou mesmo para o uso
cotidiano é o “kippa”, uma espécie de gorro utilizado para demonstrar respeito
a Deus. Geralmente é utilizado na sinagoga quando os textos sagrados são es-
tudados nas cerimônias. Já o “mezuzot” é uma pequena caixa fixada sobre a
porta da casa de um judeu. Dentro deste estojo é colocado um pequeno rolo de
pergaminho com trechos da Torá. Segundo a tradição os judeus levam os dedos
aos lábios e depois ao “mezuzot” sempre que saem ou entram na casa. O nome
de Deus (ou seja, YHWH) é muito sagrado e os judeus não ousam pronunciá-lo.
Passemos agora para as festas do judaísmo. De início é importante termos
em mente que o calendário judaico é diferente do calendário ocidental (gre-
goriano); os meses no judaísmo têm outro nome e a cronologia também difere
da cronologia ocidental: em 4 de setembro de 2013 os judeus iniciaram o
ano 5774. O judaísmo tem várias festas e vamos discorrer aqui sobre as mais
importantes.
As festas mais importantes são o Ano Novo (Rosh Hashanah), a Expiação
(Yom Kippur), a festa dos Tabernáculos (Sucote), a Dedicatória (Hanukká),
Purim, Páscoa e Pentecostes (Shavu’ot). O Rosh Hashanah (significa cabeça
do ano) ocorre no primeiro dia do mês de Tishri (próximo a setembro) e é
apenas a primeira solenidade de uma série que compreende o Kippur (10
de Tishri) e Sucote (15 a 22 de Tishri) no final do ano agrícola. No Rosh
Hashanah, festa de ano novo, os fiéis reúnem-se ao som do shofar, instru-
mento feito de chifre de carneiro, junto à água e celebram o rito chamado
tashlik (“atirar”), cujo objetivo é a libertação do pecado, “atirado” para o
fundo da água. À noite, co­mem beterrabas (silqa’, “expulsar”), alho-porro
(karate, “extirpa­dos”), tâmaras (temarim, “exterminados”). O Rosh Hashanah
é um período de reflexão e renovação espiritual, cada judeu deve fazer
uma autoanálise e buscar o arrependimento, meditando em suas ações e
em como melhorá-las.
As cerimônias do Yom Kip­pur (Dia da Expiação) têm um caráter purificador,
ou seja, buscam libertar da culpa do pecado, começam com um jejum noturno
e lamentações fúnebres. Antigamente, a cerimônia terminava com o envio de

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102  P O V O , C U LT U R A E R E L I G I Ã O

um bode expiatório ao deserto, animal para o qual eram transferidos os pecados


do povo. O Yom Kippur é a cerimônia mais pessoal e relevante para os judeus,
inicia-se logo após o Rosh Hashanah, com um período de 10 dias de jejum e
finalizado com a expiação (Kippur)
Ainda no final do mês de Tishri, ocorre a festa dos Sucotes, ou dos Taberná-
culos, uma comemoração pela colheita. Esta é uma festa agrícola cujo objetivo
é agradecer a Deus pela produção agrícola, pela libertação da escravidão no
Egito e lembrar o costume de erigir tendas no deserto. A festa dura 7 dias e é
realizada logo após o Kippur (dia do perdão/expiação).
Segundo Eliade e Couliano, há várias correspondências entre as culturas do
Oriente próximo, e isso pode ser observado nas festas judaicas, muito próximas
das festividades babilônicas, dos filisteus ou cananeus. O costume de celebrar
o ciclo agrícola não é exclusividade judaica.
Outro tipo de transformação é a que sofreu a festa de
Purim, ou seja, da “sorte”, cujo nome representa uma
alusão às adivinhações anuais comuns aos povos do
Oriente Próximo. Ela celebra a heroí­na bíblica Ester, que
salvou o povo de um massacre (Ester 13,6), em 13 de Adar
(ELIADE; COULIANO, 1999, p. 220).

A festa do Purim (Festival das Sortes) é comemorada em fevereiro ou março.


Nesta festa a história do livro de Ester é lida de um rolo manuscrito na sinagoga.
A mensagem central da festa é que Deus, e não o destino ou a sorte (Purim) é
que determina a história.
No mês de Nissã (março ou abril), ocorre uma das mais importantes festas
para os judeus, a Pessach (Páscoa, “passar por cima”). Essa celebração come-
mora a saída do Egito. Na história bíblica, a saída ou libertação de Israel do
Egito foi precedida por 10 pragas, sendo que a última foi a morte dos primo-
gênitos. Todos os primogênitos das casas que não tivessem a marca do sangue
de um cordeiro em seus umbrais seriam mortos. Todavia, na casa dos hebreus,
onde havia a marca, o anjo “passou”, preservou-os da morte. A festa da Páscoa
também é marcada pelo consumo de pães ázimos, isto é, sem fermento, como
símbolo da pressa dos hebreus em sair do Egito.
Logo após a Pessach, inicia-se um período de sete semanas de luto. Tragédias
como o assassinato de milhares de judeus durante as Cruzadas e as vítimas do
Holocausto (Shoah) são lembrados na data instituída pelo governo de Israel
como o “Dia do Holocausto”. Cinquenta dias após a Pessach, também ocorre a

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A s r e l i g i õ e s m o n o t e í s t a s  103

Festa das Semanas, também conhecida como Pentecostes (Shavuot). Além dela,
ainda existem a Hanukká (Dedicatória) ou Festa da Inauguração, que relembra a
consagração do templo em 165 a.C., após as guerras dos Macabeus; há também
a Yom Ha’Atzmaut (Festa do Dia da Independência) e a Simchat Torá (“alegrar-
-se com a Torá”), que marca a conclusão do ciclo anual de leituras da Torá.

Atividades de aprendizagem
o longo de sua história, o judaísmo desenvolveu uma série de cele-
A
brações. As chamadas festas judaicas são expressões da cultura e da
religiosidade do povo. Elabore um pequeno texto sobre a festa “Pessach”
(Páscoa).

É importante termos a consciência de que a diáspora judaica ocasionou a


diversificação do judaísmo. Nesse sentido, um dos fatores mais importantes
foi o próprio exílio babilônico, ocorrido em 586 a.C. e descrito nas páginas
anteriores. O fim do exílio não significou a volta da totalidade dos judeus
para a Palestina, já que muitos judeus escolheram permanecer no reino persa.
O ambiente intelectual e econômico permitiu à Babilônia se tornar um dos
maiores centros do judaísmo até o século XI, capaz inclusive produzir o mais
importante Talmude.
O judaísmo oriental ainda teve na cidade de Alexandria um de seus maiores
centros. Como vimos anteriormente, foi nessa cidade que se originou a primeira
versão da Bíblia Hebraica, a Septuaginta. Segundo a historiadora Régine Azria:
Esse núcleo oriental perdura até o limiar do milênio,
depois de ter conhecido sucessivamente as dominações
babilônicas, persa, selêucida, parta, romana, sassanida,
bizantina, depois árabe. Sua influência intelectual reli-
giosa estende-se e mantém-se sobre o conjunto do povo
judeu durante mais de 1.500 anos (de 586 a.C. a 1099).
Mas, ele não resiste nem a queda califado de Bagdá, no
início do século onze nem à chegada dos cruzados, em
1099, os quais começam a perseguir e massacrar judeus
e árabes da terra Santa assim que a conquistam (AZRIA,
2000, p. 69).

É neste período, do exílio da Babilônia em diante, que o judaísmo irá se


diversificar. É o que veremos a seguir. No momento em que o judaísmo orien-

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104  P O V O , C U LT U R A E R E L I G I Ã O

tal entrava em declí­nio, o judaísmo ocidental estava ainda no início de sua


história. Os judeus migraram por toda a Europa desde a Antiguidade, desde
o sul até o norte. Inicialmente eles se estabeleceram no sul da França, Itália,
Espanha, Alemanha e mais tarde na Inglaterra, Polônia e Rússia. Tratados com
tolerância pela sociedade medieval, os judeus apa­rentemente se integraram
com sucesso. A partir do século VIII, a Europa Ocidental passa por mudanças
políticas. Os muçulmanos conquistam a Península Ibérica enquanto Carlos
Magno estabelece o Império Romano-Germânico, que compreende a França,
a Alemanha e o norte da Itália. Esses dois blocos provocaram a divisão dos
judeus entre sefarditas e asquenazitas.
O estabelecimento dos muçulmanos na Espanha (em hebreu, sefarad) em
711 acabou com o poder visigodo na região e também com perseguições que
eles infligiam aos judeus. Estes acolhem bem os novos mandatários e vivem
“uma idade de ouro” até o século XII. O judaísmo espanhol se estabeleceu num
[...] clima de tolerância e de liberdade de pensamento,
excepcional para a épo­ca. É também, e sobretudo, porque
esse clima tor­nará possível, pela primeira vez, o encon-
tro e as trocas entre intelectuais judeus, muçulmanos e
cristãos. [...] esse período permanece gravado na memó-
ria coletiva como um período de progresso e de intensa
efervescência intelectual. A poesia judaica lhe deve suas
mais belas peças e sua literatura religiosa algumas de suas
mais belas obras. Entre outros, os nomes dos filósofos ne-
oplatânicos Ibn Gabirol e do moralista Ba’hiaIbn Pakuda,
do poeta Judah Halevi e do codificador da Bíblia, filósofo
e médico Maimonide, lado a lado daqueles de Avicena e
Averroes (muçulmanos). Como seus homólogos cristãos
e muçulma­n os, os judeus letrados da época aspiram à
síntese entre culturas religiosa e secular, entre filosofia,
ciência e religião (AZRIA, 2000, p. 70).

A partir do século XII o cenário político se altera novamente na Península


Ibérica, inicia-se o tempo da Reconquista pelos príncipes cristãos. O declínio
do judaísmo sefardita inicia-se no século XIII e degrada-se principalmente no
século XIV. A reconquista dos territórios provocou uma onda de intolerância
e violência, principalmente a partir de 1492, quando os árabes são expulsos
de Granada.
A violência contra os judeus propaga-se por todos os
países e faz milhares de vítimas. Mulheres e crianças
judias são massacra­d as, casas judias são saqueadas,

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A s r e l i g i õ e s m o n o t e í s t a s  105

quarteirões ju­d eus são queimados, as sinagogas, trans-


formadas em igrejas. Crianças e adultos são batizados
à for­ça. [...] Segundo algumas estima­tivas, um terço dos
judeus é massacrado, outro convertido e o terço restante
teve de fugir ou se es­c onder. [...] Os “cristãos-novos”
acabam por for­mar um grupo à parte no seio da sociedade
espa­nhola, em razão da suspeição que os envolve. Nem
cristãos nem judeus, eles são suspeitos, frequentemente
com razão, de “judaizar” em segre­d o e de propagar a
heresia. Efetivamente, são nu­merosos os “marranos”, isto
é, convertidos que continuam a praticar secretamente
sua religião. Caberá à Inquisição identificá-los e puni-los
(AZRIA, 2000, p. 72).

O judaísmo asquenazita é a designação do judaísmo alemão (ashkenaze


= Alemanha), embora seja mais amplo e não fique restrito à Alemanha. Essa
manifestação do judaísmo abarcou inicialmente as populações judias de
Champagne, do Vale do Reno e a partir do século XI as populações da Boêmia,
Morávia, Polônia, Lituânia. Estes judeus asquena­zitas desde o início da Idade
Média dedicavam-se ao artesanato, à agricultura e, sobretudo, ao comércio.
Com as Cruzadas, iniciaram-se as primeiras perseguições. Em muitos lu-
gares, os judeus não podiam circular sem um salvo-conduto, mesmo sendo
comerciantes, não podiam dormir ou fixar residência em algumas cidades.
Assim como o judaísmo teve sua idade de ouro na Espanha, teve também um
período muito importante na Polônia. Nos territórios poloneses e lituanos, os
judeus foram bem recebidos pelas autoridades, em grande medida devido à
escassez de pessoas para povoar os imensos vazios demográficos. “Durante
certo tempo, eles podem até mesmo cunhar moeda. É então que o mundo
asquenazita atinge seu mais alto nível de desenvolvimento demográfico e
cultural” (AZRIA, 2000, p. 75).
Nos territórios da Polônia e da Lituânia, as comunidades judaicas gozaram
de grande autonomia até praticamente o século XVII, quando novamente a onda
de perseguições se estabeleceu. O declínio do judaísmo asquenazita estava
iniciado e a partir de 1795 começaria a diáspora asquenazita, sendo que a
maior concentração de judeus seria no território russo. Essa diáspora também
promove o aparecimento de judeus na América, Europa Ocidental e Palestina.
Próximo ao início da II Guerra Mun­dial, os judeus asquenazita formam 90%
do judaísmo mundial. Mas vejamos em que consiste o judaísmo asquenazita,
quais suas especificidades.

Povo cultura religiao_book.indb 105 6/19/14 4:09 PM


106  P O V O , C U LT U R A E R E L I G I Ã O

É nas comu­nidades asquenazitas que o judaísmo rabínico


co­nhece sua expressão mais acabada, que a codifi­cação
da lei religiosa é empreendida da maneira mais sistemá-
tica, que o comentário talmúdico é elevado ao seu nível
mais alto de pura especulação e reflexão intelectual. Mas,
por mais parado­xal que isso possa parecer, é também no
seio des­se judaísmo austero que nascem os movimentos
místicos judeus mais fervorosos, dito de outra for­ma, de
expressão religiosa aparentemente mais distante do rigor
talmúdico (AZRIA, 2000, p. 77).

Devido às inúmeras perseguições na Europa, os judeus emigraram para as


mais diversas partes do mundo. Paralelamente à diáspora, começa a germinar
a ideia de uma volta a Sião, o Sionismo. Judeus de todas as partes do mundo se
unem para viabilizar o retorno à Terra Santa. Esse processo chegou ao seu auge
com a criação do Estado de Israel, em 1948, quando as milhares de vítimas
do Holocausto clamavam à opinião pública mundial um fim para o destino
errante do povo judeu.

Atividades de aprendizagem
pós os diversos conflitos que ocorreram durante governo romano de
A
ocupação na Palestina, inicia-se a chamada diáspora judaica. Os judeus
se espalham por diversas partes do mundo e criam expressões muito
peculiares do judaísmo, sendo o judaísmo sefardita e o asquenazita os
exemplos mais interessantes. Escreva um breve texto descrevendo seu
contexto de surgimento e suas características.

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A s r e l i g i õ e s m o n o t e í s t a s  107

Seção 2  Cristianismo
O cristianismo é atualmente a maior religião em número de seguidores no
mundo. Todavia, nem sempre foi assim, o cristianismo começou como uma prá-
tica religiosa marginal e até perseguida no Império Romano, quer por judeus ou
mesmo por romanos. O passar dos séculos fez do cristianismo uma das religiões
mais poderosas do mundo, mas também fez com que, aos poucos, surgissem
as dissidências, os cismas e as rupturas, dando origem a outras denominações
cristãs. Nas páginas seguintes veremos como essa história se constituiu.
Iniciemos pela história de Jesus Cristo. Nas fontes históricas de seu tempo,
quase nenhuma informação é dada sobre Jesus, a tal ponto que nos meios
acadêmicos, durante algum tempo, chegou-se a duvidar de sua real existência,
considerando-o um mito. Atualmente, essa ideia foi rejeitada e os textos de
Flávio Josefo, Suetônio, Tácito e Plínio, o Jovem, contribuíram, ainda que de
forma esparsa, para atestar a existência de Cristo.
As maiores informações que temos a respeito da vida de Jesus e de sua breve
atuação são descritas nos Evangelhos. Sabemos que ele foi um profeta judeu de
Nazaré, na região da Galileia, Palestina. Ele teria nascido no início da era que
levou seu nome e crucificado na primavera do ano 33. O Jesus dos Evangelhos
é filho de Maria, esposa de um carpinteiro chamado José.
Jesus nasceu em Nazaré. O ano de nascimento não pode
mais ser determinado com exatidão. [os evangelhos de]
Mateus e Lucas concordam sobre o fato de que Jesus
nasceu quando Herodes, o Grande, ainda vivia. Esse
rei faleceu em 41. As demais informa­ções contidas nas
narrativas de infância (censo em Lc, estrela em Mt) nada
acrescentam para a cronologia. Lucas confunde vários
eventos históricos entre si. A estrela pode remontar, é
verdade, a fenômenos celestes reais, mas na narrativa de
Mt é símbolo para a condução divina, i. e., sua órbita
não é passí­vel de ser explorada astronomicamente (BULL,
2009, p. 187).

No relato bíblico ainda há poucas referências sobre a infância, adolescên-


cia e juventude de Jesus. Sabemos que ele foi apresentado no templo, como
qualquer judeu, logo após seu nascimento. Quando tinha doze anos, teria ido
para uma festa em Jerusalém e teria sido esquecido por seus pais, que ao vol-
tarem para buscá-lo encontram-no debatendo com os doutores da lei judaica.

Povo cultura religiao_book.indb 107 6/19/14 4:09 PM


108  P O V O , C U LT U R A E R E L I G I Ã O

As próximas referências são aos seus trinta anos de idade. Nessa época, Jesus foi
ser batizado por João Batista e começou seu ministério de pregação e milagres.
Os pais de Jesus eram Maria e José. Permanece incerto
se José realmen­te era descendente de Davi. Jesus tinha
ainda quatro irmãos e (pelo menos) duas irmãs (cf. Mc 6.3;
lCo9.5; Jo 2.12; 7.1-9). José era “carpinteiro”. Esse ofício
foi também aprendido por Jesus (Mc 6.3). Sendo que a de-
signação da profissão deve ser — como costumeiramente
na antiguidade — tomada em sentido abrangente. Hoje
falar-se-ia preferencialmente de um “construtor artesão”.
Segundo Lc 3.23, Jesus tinha cerca de 30 anos quando
deu início à sua atividade pública. Essa informação sobre
a idade geralmente é considerada confiável, pois combina
com o provável ano da morte e com a suposição de que
Jesus tenha exercido atividade pública por mais ou me-
nos só um ano. É provável que Jesus tenha se associado
inicialmente a João Batista. Apontam para isso o seu
batismo e a notícia transmitida em João de que entre os
discípulos de Jesus encontravam-se antigos discípulos de
João (Jo 1.37). É possível que inicialmen­te também Jesus
tenha praticado o batismo de arrependimento (cf. Jo 3.22,
26) (BULL, 2009, p. 188).

Segundo o relato bíblico, o ministério de Jesus foi breve. Nesses anos, Jesus
fez muitos milagres, manteve relações com pessoas marginalizadas, pessoas
consideradas impuras, como os leprosos, não aceitas pelo judaísmo, os sama-
ritanos e até com os zelotes, um grupo político judeu que insurgia-se contra a
ocupação romana da Palestina. A atividade de Jesus concentrou-se na região da
Galileia. É pouco provável que Jesus atuasse em território não judaico. Por suas
parábolas, que empregavam ilustrações rurais e do mundo dos pequenos agricul-
tores e pescadores, podemos inferir que ele não atuou em cidades helenísticas.
Nos evangelhos, reiteradamente é relatado que Jesus pre-
gou e curou em sinagogas. Essa imagem de sua atuação
provavelmente não é histórica, pois não está comprovada,
nem arqueológica nem epigraficamente, a existência de
sinagogas no tempo de Jesus na Galileia. Os evangelistas
retroprojetaram aqui as condições do seu tempo para o
tempo de Jesus. Jesus deve ter atuado, sobre­tudo, em
casas privadas e ao ar livre (BULL, 2009, p. 188).

Ao que tudo indica, Jesus era solteiro e renunciou a bens materiais. Na re-
gião onde atuava, conseguiu reunir um grupo de adeptos que compartilhavam
esse ideal de vida itinerante. Existe uma controvérsia se esse círculo de adeptos

Povo cultura religiao_book.indb 108 6/19/14 4:09 PM


A s r e l i g i õ e s m o n o t e í s t a s  109

de fato era de doze discípulos ou se o seguimento destes doze foi uma leitura
posterior, feita pelos evangelistas a fim de simbolizar que a mensagem cristã
era para todo Israel, simbolizado no conjunto das 12 tribos.
Esse aspecto itinerante e carismático do movimento de Jesus tem sido
enfatizado nos estudos sociológicos. Gerd Theissen é um dos estudiosos que
tem buscado caracterizar esses movimentos religiosos descritos na Bíblia à
partir de categorias sociológicas. Vejamos como ele descreve o movimento
de Jesus.
Jesus não fundou primordialmente comunidades locais, e
sim suscitou um movimento de carismáticos andarilhos.
As figuras marcantes dos primórdios do cristianismo foram
apóstolos, profetas e discípulos itinerantes, que andavam
de uma localidade a outra, podendo contar ali com o
apoio de pequenos grupos de simpatizantes. Tais grupos
de simpatizantes permaneciam no quadro organizativo
do judaísmo. Encarnavam menos claramente o novo do
cristianismo primitivo, pois estavam vinculados às velhas
estruturas por múltiplos laços e obrigações. Portadores do
que mais tarde veio a ser o cristianismo autônomo eram,
porém, carismáticos itinerantes apátridas (THEISSEN,
1989, p. 16).

Segundo o relato bíblico, Jesus não buscava atrair a simpatia da classe


sacerdotal de seu tempo; pelo contrário, não raro atraía sua ira. Tal situação
chegou ao ponto de as autoridades religiosas judaicas pedirem sua prisão e
sua condenação pela justiça romana. Os motivos de sua prisão não são claros.
Por um lado, parece ser a acusação de blasfêmia, por outro, a acusação de
sedição. Depois de um breve julgamento, judeus e romanos concordaram que
a sentença de Jesus deveria ser a morte por crucificação.
Jesus foi crucificado no 14 de Nissã do ano 30 d.C., ime-
diatamente antes da festa da páscoa. Essa datação, que
segue a data proposta por João, é aceita por um amplo
consenso na pesquisa. Aponta para a historicidade dessa
infor­mação, entre outras coisas, o fato de que os romanos
evitavam, por considera­ções de cunho político, a prática
de execuções em dias de grandes festas. Jus­tamente na Ju-
deia, constantemente em efervescência, tal ação poderia
trans­formar-se rapidamente na faísca no barril de pólvora.
A sentença de morte foi dada pelo prefeito Pôncio Pilatos,
ao qual cabia o julgamento de penas capitais na Judeia,
administrada pela força de ocupa­ção. Provavelmente Je-
sus foi acusado pelo sinédrio como insurreto político. Isso

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110  P O V O , C U LT U R A E R E L I G I Ã O

é o que indica a epígrafe da cruz “Rei dos judeus” (Mc


15.26), não usual e por isso provavelmente histórica. [...]
Não está claro a que fato punitivo segundo o direito judeu
deveu-se a acusação do sinédrio contra Jesus. É provável
que se tenha visto nele um falso profeta (cf. Dt 13.1-6;
18.9-22). Muita coisa sugere, no entanto, que não houve
nenhum processo formal contra Jesus diante do sinédrio,
uma vez que o interro­gatório descrito em Mc 14.53-65
é contrário a todos os princípios processuais judaicos. O
motivo do procedimento das autoridades judaicas contra
Jesus é, ao contrário, relativamente fácil de reconhecer.
Com sua pregação, em especial com a crítica ao tem-
plo, Jesus abalou os privilégios da aristocracia local. Em
seu esforço por desfazer-se desse importuno pregador
itinerante galileu, ela prova­velmente podia estar segura
de angariar a simpatia de grande parte da população de
Jerusalém, já que muitas vezes sua existência dependia
do templo (BULL, 2009, p. 189).

Uma das questões mais importantes do cristianismo é saber quem foi Jesus.
À primeira vista, essa pergunta parece banal. Os discípulos acreditavam que
ele era o Messias, ou seja, alguém ungido ou consagrado, em grego christos.
Mas tem sido difícil determinar como Jesus lidava com a própria imagem. Em
muitas passagens, ele utiliza o título de “Filho do Homem” como referência
ao cumprimento de profecias do Antigo Testamento. Todavia, não há dúvidas
que ele agia como “Filho de Deus”, que veio para conduzir os pecadores ao
arrependimento e ao reino de Deus. Nos evangelhos, nas passagens que tra-
tam da crucificação, temos a imagem de Jesus como “Jesus de Nazaré Rei dos
Judeus”, inscrição colocada sobre sua cruz. O significado dessa inscrição é
complexo: pode apontar para um escárnio dos romanos em relação à crença
de Jesus ser um messias e, ao mesmo tempo, um líder político do povo judeu,
embora grande parte da sociedade judaica, especialmente os líderes religiosos,
não compactuasse com essa ideia. Para os discípulos, Jesus é o filho de Deus e
nem a morte conseguiu detê-lo; ele ressuscitou depois de três dias. Para grande
parte da população judaica, Jesus era apenas mais um profeta de uma nova seita
judaica. Será o apóstolo Paulo que colocará a ressurreição de Jesus no centro
de seus escritos e fará com que o cristianismo deixe de ser apenas mais uma
seita judaica para se tornar uma nova religião. Como veremos adiante, Paulo
foi fundamental nos primeiros anos da igreja cristã.

Povo cultura religiao_book.indb 110 6/19/14 4:09 PM


A s r e l i g i õ e s m o n o t e í s t a s  111

Para saber mais


No Brasil existe uma associação de pesquisadores em História das Religiões. A ABHR (Associação
Brasileira de História das Religiões) é formada por centenas de pesquisadores brasileiros, realiza
anualmente encontros com especialistas em diversas regiões do Brasil e publica vários livros nas
áreas de estudos das religiões. Não deixe de conhecer, acesse: <http://www.abhr.org.br/>.

Passemos a partir de agora para a caracterização do chamado cristianismo


primitivo. “O termo ‘cristianismo primitivo’ ou ‘antigo cristianismo’ costuma
designar, na pesquisa, o cristianismo até por volta de 120/130 d.C.” (BULL,
2009, p. 202). Não há consenso se a atividade de Jesus deve ser incluída neste
recorte temporal do cristianismo primitivo. Por outro lado, é importante notar
que o cristianismo só passou a existir depois da páscoa, uma vez que o episó-
dio da ressurreição, segundo o relato bíblico, é fundamental para a existência
da igreja cristã.
As fontes desse primeiro cristianismo são escassas. Temos os relatos do
Novo Testamento, particularmente o livro de Atos e as cartas do apóstolo Paulo.
As fontes não-cristãs silenciam quase por completo
quando indagadas sobre essa fase antiga do cristianismo.
Notícias curtas sobre eventos isolados encontram-se em
Flávio Josefo. Tácito e Suetônio. Uma importante fonte
é a troca de correspondência entre Plínio. o Moço, e o
imperador Trajano, que possibilita visualizar a difusão do
cristianismo no Ponto e na Bitínia (norte da Ásia Menor)
no início do século II d.C. com as correspondentes me-
didas con­trárias romanas (BULL, 2009, p. 203).

Como dissemos, a comunidade cristã de Jerusalém surgiu logo após a morte


de Jesus. Segundo o relato bíblico, o apóstolo Pedro teve um papel destacado
na organização da primeira comunidade em Jerusalém. Além de Pedro, os
apóstolos João e Tiago (irmão de Jesus) teriam sido os líderes da igreja em Je-
rusalém. Esta comunidade primitiva teria iniciado a pregação da ressurreição
de Jesus entre seus compatriotas judeus e no início seria composta apenas por
judeus-cristãos, mas com passar do tempo começou a crescer um grupo de
“helenistas”, ou seja judeus de fala grega.
Os “helenistas”constituíam, ao que tudo indica, um
círculo organizado autonomamente na comunidade pri-
mitiva, em analogia a associações sinagogais campone-

Povo cultura religiao_book.indb 111 6/19/14 4:09 PM


112  P O V O , C U LT U R A E R E L I G I Ã O

sas. Também o conflito entre hebreus e helenistas, que


Lucas minimiza conscientemente, e a perseguição que
viti­m ou Estêvão e que levou à expulsão dos helenistas
de Jerusalém mostram que o referido grupo trilhava ca-
minhos próprios. A consequência histórica da expulsão
dos helenistas foi a difusão do cristianismo fora da Judeia
e Galileia. [o livro de] Atos cita exemplarmente Samaria
e as cidades da planície costeira (BULL, 2009, p. 205).

Os conflitos entre cristãos helenistas e judeus levou ao surgimento de cen-


tros cristãos distantes da Judeia e Galileia. Um desses centros é encontrado na
cidade de Antioquia, na Síria, na época uma importante metrópole do Império
Romano. Nessa cidade, a missão conduzida pelos helenistas acolheu um con-
siderável número de “gentios” simpatizantes do monoteísmo. “Gentios” era a
denominação dada aos não judeus, na maioria das vezes, gregos e romanos.
Assim, em Antioquia surgiu uma comunidade cristã autônoma em relação ao
judaísmo. Foi entre estes cristãos que as questões referentes à obediência à
Torá judaica, especialmente do rito da circuncisão e da alimentação de animais
considerados impuros, ficou mais candente.

Atividades de aprendizagem
urante certo tempo o cristianismo foi confundido como apenas mais
D
uma seita judaica. Entre os próprios seguidores de Jesus não havia clareza
da relação com o judaísmo. Escreva um pequeno texto sobre as disputas
ocorridas no interior da igreja sobre a herança judaica e como o cristia-
nismo se emancipou do judaísmo.

Dois dos líderes da comunidade de Antioquia, Paulo e Barnabé, entendiam


que os “gentios” não deveriam observar os ritos da circuncisão. Essa concep-
ção do evangelho, anunciada principalmente por Paulo, foi veementemente
combatida por outros judeus-cristãos, especialmente os apóstolos de Jerusalém.
Para a solução do conflito, por volta de 48/49 d.C., Bar-
nabé e Paulo, os líderes da missão aos gentios, rumaram
para Jerusalém com o incircunciso Tito. Esse encontro
com a liderança da comunidade primitiva geralmente é
designado de “Concílio dos Apóstolos”. Sobre o anda-
mento e os resultados do encontro [...] com um aperto
de mão foi acordado que as autoridades de Jerusalém,

Povo cultura religiao_book.indb 112 6/19/14 4:09 PM


A s r e l i g i õ e s m o n o t e í s t a s  113

ou seja Pedro, entendiam ser sua a tarefa entre os judeus,


enquanto as autoridades antioquenas, ou seja Paulo, te-
riam sido vocacionadas para a missão entre os gentios.
[...] Em At 15.23-29, provavelmente Lucas transmite como
resultado aparente do Concílio Apostólico o compromisso
a que se chegou mais tarde (o “decreto apostólico”). Dos
cristãos gentílicos pede-se o cumprimento das exigências
mínimas extraídas de [livro] Levítico 17, que possibilitam
a judeus-cristãos a comunhão de mesa com eles. Para
Paulo, contudo, dessa forma estava questio­nada a essên-
cia do seu evangelho liberto da lei. Por não ter conseguido
fazer valer seu ponto de vista em Antioquia, ele parte
agora para a missão autônoma (BULL, 2009, p. 207).

Paulo foi um dos personagens centrais do cristianismo primitivo. Como vere-


mos adiante, o cânon cristão deve muito aos escritos de Paulo. Vamos conhecê-lo
um pouco mais a partir deste ponto. Paulo certamente é uma das personagens
mais complexas do cristianismo primitivo, seu primeiro nome era Saulo de Tarso
(sua cidade natal), até que em uma experiência mística (cristofania), quando teve
uma visão de Jesus ressuscitado, converteu-se ao cristianismo e teve seu nome
mudado para Paulo. Antes de sua conversão, Saulo perseguia os cristãos. Inclusive
a sua experiência de conversão, que ocorreu na estrada de Damasco, foi numa
ocasião em que se dirigia para prender cristãos. Saulo teve uma sólida formação
no judaísmo, fazia parte dos fariseus, um grupo marcado pelo rigor da prática
judaica e politicamente representativo. Além disso, Saulo teve também uma sólida
formação clássica, tinha a cidadania romana e era profundo conhecedor da cul-
tura e filosofia greco-romanas. A atividade missionária de Paulo começou alguns
anos após sua conversão e consistiu no alargamento das fronteiras do cristianismo
para além do judaísmo, através da pregação aos não judeus, conhecidos como
gentios, inicialmente na Arábia e depois em Antioquia.

Atividades de aprendizagem
m dos problemas mais pontuais da história do cristianismo é lidar com
U
o chamado Jesus histórico. Durante certo tempo, Jesus chegou a ser
considerado um mito. Descreva quais os problemas que os historiadores
enfrentam para debater a questão da historicidade de Jesus.

Povo cultura religiao_book.indb 113 6/19/14 4:09 PM


114  P O V O , C U LT U R A E R E L I G I Ã O

Enquanto os apóstolos Pedro e Tiago, com a igreja-mãe de Jerusalém, conti-


nuam entendendo que o cristianismo deve permanecer ligado ao judaísmo, por
isso exigem a prática da circuncisão dos convertidos e as prescrições da Tora,
Paulo, com suas atividades missionárias nas igrejas da Ásia Menor e Grécia,
emancipa o cristianismo do judaísmo, mostrando a superioridade da mensagem
cristã às exigências do antigo pacto entre Deus e os judeus. A escrita de Paulo,
em grego, atingia um número cada vez maior de pessoas. Numa de suas últi-
mas viagens missionárias, para em Cesareia, onde fica preso durante dois anos.
Pede para ser conduzido diante do próprio imperador, direito conferido por sua
cidadania romana, o que ocorre por volta do ano 60. Preso em Roma, por apro-
ximadamente dois anos, Paulo é executado sob o reinado do imperador Nero.
Em sua missão, Paulo concentra-se nas metrópoles e nos
centros pro­vinciais. Nesses locais, ele atua até que as comu-
nidades surgidas apresentem condições de existência própria.
Às vezes, ele se demora por mais tempo numa localidade,
utilizando-a, parcialmente, como ponto de apoio (Corinto,
Éfeso). Dessa maneira, surge rapidamente uma rede de co-
munidades, que, por sua vez, agora estão em condições de
atuar no entorno. O contato com as comuni­dades é mantido
por Paulo por meio de cartas e de seus colaboradores. As
próprias comunidades também mandam mensageiros para
Paulo, que passam a ficar com ele parcialmente por mais
tempo, dando-lhe apoio (BULL, 2009, p. 209).

No âmbito das comunidades cristãs, segundo o relato bíblico, começou-se a


criar uma estrutura organizacional nova, muito distinta do judaísmo. Os cargos
existentes eram chamados de ministérios, havia apósto­los, profetas, mestres,
conforme a Carta aos Coríntios (Cap. 12:28) e bispos e diáconos, conforme a
Carta aos Filipenses (Cap. 1.1). A escolha desses líderes eclesiais ocorria de
forma carismática, ou seja, segundo o relato bíblico, era o Espírito que capa-
citava alguns membros para assumir essas tarefas na comunidade.
Sabemos pouco sobre o desenvolvimento depois da exe-
cução de Paulo em Roma (aprox. 60 d.C.). [...] No ano
de 62 d.C., Tiago, o irmão do Senhor, é apedrejado. [...]
As fontes cristãs da época entre aprox. 70 a 130 d.C.
mostram a ima­g em de um cristianismo teologicamente
diversificado, que se expande, sobre­tudo, na Ásia Menor,
Síria e Grécia. A Itália central e o Egito constituem-se
como novos centros. Alguns escritos do Novo Testamento
sugerem o surgimento de “escolas” teológicas. A escola
paulina provavelmente tinha seu centro em Éfeso. As
comunidades joaninas formam uma linha de desenvolvi-

Povo cultura religiao_book.indb 114 6/19/14 4:09 PM


A s r e l i g i õ e s m o n o t e í s t a s  115

mento pró­pria, que, geograficamente, com probabilidade


também deve ser localizada na província da Ásia. Marcos
e Mateus remetem à Síria, que se desenvolve em centro
de um cristianismo cunhado por tradições judaico-cristãs
(BULL, 2009, p. 211).

Vejamos, a partir deste momento, como surgiu o livro sagrado do cristia-


nismo, a Bíblia Sagrada. A Bíblia é dividida em Novo e Velho Testamento. A
palavra testamento significa aliança. Portanto, para os cristãos, o Novo Testa-
mento significa uma nova aliança de Deus com a humanidade, pois a aliança
do povo judeu teria sido rompida com a desobediência. Mas a seleção dos
livros do Novo Testamento não foi um ponto pacífico.
O cânon cristão levou cerca de quatro séculos para
constituir-se. Consiste nos 27 livros chamados Novo
Testamento (em oposição ao Tanakh judaico ou Antigo
Testamento): quatro Evangelhos (Marcos, Mateus, Lucas
e João), os Atos dos Apóstolos (atribuídos ao redator do
Evangelho segundo Lucas, que seria discípulo do apóstolo
Paulo), as epístolas dos Apóstolos (catorze atribuídas a
Paulo, uma a Tiago, duas a Pedro, três a João e uma a
Judas) e, finalmente, o Apocalipse (Revelação) atribuído
a João. Em toda essa literatura, o Antigo Testamento fre-
quentemente é interpretado de forma alegórica, como
profecia da vinda do messias Jesus Cristo. A bem da ver-
dade, sua inclusão no cânon cristão chocou-se inicialmente
com a resistência do teólogo Marcião de Sinope (c. 80-155).
O problema foi reconsiderado mais tarde por Martinho Lutero
(1527 e 1537) (ELIADE; COULIANO, 1999, p. 101).

O debate sobre a autenticidade dos livros durou cerca de quinhentos anos.


As cartas do apóstolo Paulo são as mais antigas do cânon cristão, datadas de
cerca de 50 ou 60 da era cristã. Segundo Eliade e Couliano, “[...] muitas das
outras epístolas canônicas só foram compostas durante a primeira metade do
século II, quando seus pretensos autores já não eram mais vivos” (1999, p. 101).

Questões para reflexão


Você já pensou que muitas religiões passam muitos anos para constituir
sua ortodoxia ou corpo de doutrinas, baseada em livros reconhecidos?
Mas qual o valor dos livros chamados apócrifos? Será que eles têm
valor como fonte histórica?

Povo cultura religiao_book.indb 115 6/19/14 4:09 PM


116  P O V O , C U LT U R A E R E L I G I Ã O

É importante notar que as primeiras comunidades cristãs eram marcadas


pela oralidade, não que desconhecessem ou ignorassem a cultura escrita, pelo
contrário. Todavia, as formas do registro escrito não tinham as facilidades do
nosso tempo. Por isso, podemos afirmar que a história de Jesus contida nos
evangelhos é um esforço por manter uma memória antes preservada apenas na
tradição oral das comunidades. Por essa razão, os evangelhos foram escritos
tardiamente. Os evangelhos chamados sinópticos (Mateus, Marcos e Lucas)
foram redigidos entre 70 e 80 da era cristã. Mais tardio ainda é o evangelho de
João, escrito por volta do ano 100 e com várias referências à filosofia grega. Por
exemplo, ao colocar Cristo como o Logos (verbo, palavra) de Deus, o escritor
inevitavelmente estabelece parentesco com a filosofia platônica. Por outro lado,
há uma forte rejeição ao mundo social, uma visão muito negativa, tal como na
distinção entre mundo das coisas e mundo das ideias de Platão.
Deste ponto em diante, passamos a falar sobre a ortodoxia cristã, ou seja,
sobre como a doutrina cristã foi definida. Esse processo durou próximo de três
séculos e resultou da dissociação das grandes escolas de pensamento da época,
a filosofia platônica e o judaísmo.
O primeiro intelectual que ajuda a ortodoxia a definir-
-se por oposição a seus adversários é Marcião de Sinope
(c. 80-155), [...].Primeiro biblicista da história, Marcião
conclui ser impossível que o Novo e o Antigo Testamentos
preguem o mesmo Deus. Assim, acentua ainda mais a dis-
tância existente entre judaísmo e cristianismo, encetada
por Paulo. Mas derrota de Marcião e da igreja marcionista
mostra que a ortodoxia não pretende renunciar à herança
bíblica, que serve de prefiguração da salvação iniciada
pelo sacrifício de Jesus Cristo, mas também como legi-
timação do surgimento e da missão histórica de Jesus.
Retirai o Antigo Testamento, parece estar dizendo a igreja,
e o homem Jesus desaparecerá (ELIADE; COULIANO,
1999, p. 104).

Ao manter certa distância da tradição judaica, o cristianismo caminhava


para a singularização, porém restava a discussão da herança platônica. A he-
rança platônica se fez presente a partir de uma corrente de pensamento cha-
mada de “Gnosticismo” (gnose = conhecimento). O gnosticismo foi o segundo
grande adversário do cristianismo; era um complexo sistema filosófico e reli-
gioso que implicava um desejo de conhecimento dos segredos do universo.
Para os gnósticos, a salvação religiosa ocorre pela aquisição do conhecimento

Povo cultura religiao_book.indb 116 6/19/14 4:09 PM


A s r e l i g i õ e s m o n o t e í s t a s  117

e não pelo sacrifício de Jesus, como advogavam os cristãos. O conhecimento


seria a única salvação. Essa corrente de pensamento transformava o Deus do
Antigo Testamento em um demiurgo, tal como no sistema platônico. No gnos-
ticismo, Jesus foi a pessoa que trouxe a gnosis para este mundo. Muitos apo-
logistas cristãos dos primeiros séculos combateram o gnosticismo, principal-
mente Irineu de Lyon, escritor da obra Contra Heresias, Clemente de Alexandria
e Hipólito de Roma. No entanto, não devemos acreditar que o repúdio ao
gnosticismo era unânime. Segundo Eliade e Couliano, o padre mais importante
do terceiro século, Orígenes (c. 185-254), flertou com o gnosticismo. “Como
platônico, Orígenes acredita na preexistência das almas, mas sua doutrina não
se confunde com a metensomatose platônica ou hindu” (1999, p. 106).
Dentre os pais da Igreja também ganha destaque Santo Agostinho. Agos-
tinho fora durante muito tempo adepto do maniqueísmo, mas ao converter-
-se ao cristianismo torna-se a figura mais importante do século IV. Agostinho
era um pródigo orador africano, da cidade
de Hipona, Argélia, abraçou o cristianismo
Para saber mais
em 387 e tornou-se padre em sua cidade em
391. Dois anos depois, escreveria uma de A Associação Nacional de História
(ANPUH) tem diversos grupos de
suas obras mais importantes, Confissões, uma
trabalho denominados GTs. Um
quase autobiografia, onde relata sua experiên-
destes grupos é o GT história das
cia e adverte aqueles que levavam uma vida religiões e das religiosidades, que
pecaminosa. Neste contexto já se assistia à publica a Revista Brasileira de
derrocada do Império Romano, e Agostinho História das Religiões. Não deixe
escreve (413-427) sua obra mais importante, de conhecer, acesse: <http://www.
a Cidade de Deus, onde postula a total inde- dhi.uem.br/gtreligiao/index.html>.

pendência da Igreja em relação a qualquer


sistema político.
Vejamos agora como a ortodoxia cristã oficializou-se através dos concílios.
Para entendermos a história do cristianismo, é imprescindível que compreen-
damos a importância dos concílios, pois eles foram os momentos de definição
doutrinária e também lugar da origem dos cismas que deram origem a outras
igrejas cristãs. O primeiro concílio ocorreu em Niceia (Ásia Menor), entre 19
de junho e 25 de agosto de 325, e foi convocado pelo imperador Constantino.
Nesse concílio, a chamada heresia do arianismo é condenada e a divindade
plena de Cristo é afirmada. Nesse concílio, houve a participação de 318 bispos.
O segundo concílio ocorreu em Constantinopla, no ano de 381, e foi
convocado pelo imperador Teodósio. Nesse concílio foi discutido e definido

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o dogma da Trindade, segundo o qual as três pessoas da trindade são iguais


em divindade, não havendo uma inferioridade do Espírito Santo em relação às
outras pessoas, como acreditavam alguns. No dogma da trindade, Pai, Filho e
Espírito Santo são Deus, mas não existem três deuses, apenas um, formado de
três pessoas, distintas e com propriedades e funções diferentes. Além destes
três primeiros concílios houve ainda mais quatro concílios ecumênicos: Éfeso
(431); Calcedônia (451); Segundo Concílio de Constantinopla (553); Terceiro
Concílio de Constantinopla (680) e Segundo Concílio de Niceia (787).
Após esses concílios, iniciaram-se os cismas: em 1054 ocorreu o Cisma do
Oriente (1054), que separou definitivamente a Igreja Católica da Ortodoxa. O
Concílio de Trento (1545-63) já aconteceu após a separação dos protestantes.
Cabe destacar ainda, no século XIX, o concílio Vaticano I (1869-79) que de-
clarou a primazia e a infalibilidade do papa, criando um ambiente tenso com
as outras confissões religiosas e com os Estados que aos poucos se tornavam
laicos. O último grande concílio católico foi o Vaticano II (1962-65), e foi
marcado pela conciliação e busca da unidade ecumênica.
Convocado pelo pontífice João XXIII, com a participação
de mais de 2.000 bispos e superiores de ordens religiosas,
o concílio atenuou o centralismo pontifical, aboliu a litur-
gia latina, substituindo-a por liturgias nas línguas locais, e
reconheceu o valor dos métodos de estudo histórico das
matérias religiosas (ELIADE; COULIANO, 1999, p. 120).

Voltemos a partir deste ponto à história do cristianismo para entendermos


suas divisões atuais. É importante nos determos aqui sobre o momento em que
o cristianismo deixa de ser apenas mais uma seita no seio do judaísmo e passa
a construir sua estrutura religiosa, sua hierarquia e seu sistema administrativo.
Até os anos de 130 e 140, nos deparamos com um cristianismo bastante co-
munitário e pouco hierarquizado, onde o carisma tinha um lugar fundamental
na escolha da liderança cristã, era pelo carisma que se definiam o apóstolo, o
mestre, o diácono, o evangelista. A partir desse período, ocorreriam grandes
mudanças e o nascimento do que viria a ser chamado de episcopado monár-
quico. Vejamos como Martin Dreher narra este processo.
Até o ano de 140, há uma imagem bastante heterogênea
no que tange à lide­rança na comunidade cristã. Também
houve acentuadas diferenças entre uma comu­n idade
e outra. Parece que já na era apostólica aqueles que
presidiam a comunida­d e, os proistámenoi, se dividiam
em epískopoi (supervisores) e diákonoi (executores). Em

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A s r e l i g i õ e s m o n o t e í s t a s  119

Roma, os epískopoi eram eleitos entre os presbyteroi


(anciãos). Estes presbiteros eram pessoas honradas dentro
da comunidade e que se assentavam em semicírculo, em
lugares de honra, de frente para a comunidade, quando
esta estava reunida para o culto. Mais tarde, um dos
epískopoi assumiu as principais funções deste ministé­
rio. A evolução final levou a que, finalmente, o título
epískopos (bispo) fosse reservado apenas a ele. [...]Por
volta de 130 já encontramos este episcopado monárquico
na Síria e, pouco depois, na Ásia Menor, como podemos
deduzir das cartas de Inácio de Antioquia. Em Roma, o
episcopado monárquico apareceu sob Pio (140-154).
(DREHER, 1993, p. 26-27).

A compreensão deste episcopado monárquico é fundamental para entender-


mos as relações entre Igreja e império neste contexto dos primeiros 400 anos
do cristianismo. No início da era cristã houve um convívio pacífico entre as
autoridades políticas (o imperador) e os cristãos, que cumpriam com todas as
obrigações civis, inclusive o serviço militar, contudo se negavam prestar culto
ao imperador. É nesse contexto, que começam a surgir as primeiras persegui-
ções (DREHER, 1993, p. 51).
Ao que tudo indica, Nero teria sido o primeiro a perseguir os cristãos. No
ano de 64, dez bairros da cidade de Roma foram destruídos pelo fogo, restando
apenas quatro. Logo após o incêndio, iniciou-se a reconstrução da cidade e
muitos perceberam que as plantas já estavam prontas, provavelmente antes do
incêndio. Logo a acusação recaiu sobre o imperador.
Não se sabe quem alertou Nero quanto aos cristãos. A ele
não importou transformar essas pessoas em responsáveis
pelo incêndio. Depois de processos estúpidos, os cristãos
foram mortos de maneira bestial.Foram crucificados,
transformados em tochas vivas, costurados dentro de pe-
les de animais e atirados às feras (DREHER, 1993, p. 52).

A situação dos cristãos no Império Romano começou a mudar a partir


do governo do imperador Diocleciano (284-305), depois de quase quatro
séculos, em que oscilavam perseguições e tolerâncias. Diocleciano enten-
dia que para manter o império seria necessário dividi-lo entre o Ocidente
e Oriente. Para isso, nomeou um homem de sua confiança, Domiciano.
Assim, enquanto Diocleciano governava o Oriente, Maximiano governava
o Ocidente. Esta divisão foi fundamental para a história do cristianismo,
pois foi neste contexto que apareceu o imperador Constantino, no Império

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120  P O V O , C U LT U R A E R E L I G I Ã O

do Oriente. É com Constantino que nasce a cristandade e um período de


paz entre a Igreja e o império.
Constantino não só propiciou paz à Igreja; presenteou-a,
deu-lhe igualdade em relação a outros cultos e concedeu
inúmeros privilégios a seu clero. Ele, que era leigo, que
não pertencia à Igreja, que até o fim de seu governo foi
pontifexmaxi­mus, sumo sacerdote de todos os cultos ro-
manos, e que foi batizado apenas em seu leito de morte,
teve, mesmo assim, grande influência sobre a Igreja,
levando-a inclu­sive a formular definitivamente sua dou-
trina. Suas intenções eram políticas. Ele que­ria fazer da
Igreja o poder espiritual sobre o qual podia repousar o
Império. Por seu turno, a Igreja não queria ser uma seita,
mas uma instituição que pudesse agir em todo o mundo.
Aqui um auxiliou o outro. A essa tentativa de estabelecer
um univer­so cristão designamos de “Era Constantiniana”.
O regime instituído denominamos de “Cristandade”
(DREHER, 1993, p. 60).

A avaliação do governo de Constantino tem sido bastante contraditória.


De um lado há aqueles que entendem que Constantino foi quem colocou fim
à Antiguidade e ao paganismo, ao colocar o cristianismo como a religião do
império. Por outro lado, há aqueles que entendem a ação de Constantino como
deletéria para a história do Cristianismo, pois teria estatizado a igreja. Como
vimos, o episcopado monárquico já tinha surgido antes de Constantino, mas
certamente ele teve um papel fundamental no aprofundamento dessa igreja
organizada de forma monárquica.
A “Era Constantiniana” é criticada até hoje. Não pode­
mos deixar essa crítica simplesmente de lado. Não po-
demos esquecer as consequências negativas que trouxe,
ao atrelar a Igreja ao Estado, criando o modelo da “Cris-
tandade”. Criou-se a Igreja que estava aí para justificar
as ações do governante. [...] Constantino sancionou o
episcopado monárquico, dando-lhe rega­l ias no Império
(DREHER, 1993, p. 66).

O Império Romano sob Constantino já se encontrava dividido e não demorou


muito para que ocorresse a invasão e queda da parte ocidental. A partir de 476
somente o Império Romano do Oriente subsistia. No Ocidente, invasões, saques
e violência vigoraram por muitos séculos. É neste contexto que os mosteiros se
tornam os poucos refúgios contra a violência. Com Bento de Núrsia (c. 480-543)
aparece a primeira ordem monástica, junto ao mosteiro de Monte Cassino surge

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a ordem dos beneditinos. Estes espaços dos mosteiros, dedicados à vida ascética,
também eram os poucos lugares onde se cultivava a vida intelectual.

Questões para reflexão


Constantino, ao adotar a religião cristã como religião de Estado, inau-
gurou uma questão que ainda hoje preocupa: quais os limites nas re-
lações entre Estado e religião? Deve o Estado ser laico? Até que ponto
é saudável ou prejudicial a ingerência das igrejas ou religiões sobre as
decisões do Estado?

A partir do século VI, grande parte dos territórios cristãos são conquistados
pelos muçulmanos. Somente no século XI a Península Ibérica será paulatina-
mente reconquistada. A retomada de Toledo pelos cristãos provoca grande
euforia nos meios intelectuais católicos. A cultura árabe fascinava a todos os
monges que ali chegavam. É realizado um
[...] lento e monumental trabalho de transpor a cultura
árabe e, através dela, a Antiguidade greco-romana para
o latim. [...] a tradução para o latim de mais de setenta
obras de medicina, ciência e filosofia em árabe. Por meio
da atividade dos tradutores, a Europa cristã descobre e
adota a filosofia de que se tornará o fundamento da nova
filosofia escolástica, propagada principalmente por Al-
berto Magno (1193-1280) e Tomás de Aquino (1225-1274)
(ELIADE; COULIANO, 1999, p. 110).

Voltemos por um momento à questão dos cismas no cristianismo. O primeiro


grande cisma ocorreu em 451, quando não houve consenso sobre as “naturezas
de Cristo” no Concílio de Calcedônia. Surgiram as igrejas cóptica, do Egito
e Abissínia, e as “jaconitas” da Síria e da Armênia. O segundo grande cisma
ocorreu em 1054, quando o representante do papa excomungou o patriarca de
Constantinopla, que por sua vez amaldiçoou o papa. Os motivos eram tanto
políticos quanto doutrinários, surgiam as igrejas orientais (grega, russa, polo-
nesa, sérvia, romena, búlgara e outras), também conhecidas como ortodoxas.
O ambiente de cisma persistiu no século XII. Um dos movimentos que
causou grande impacto na Igreja foi liderado por Pedro Valdo, na França. Ele
apregoava a tradução da Bíblia em um dialeto local (languedoc), a renúncia de

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122  P O V O , C U LT U R A E R E L I G I Ã O

bens materiais, a crítica ao sacerdócio católico, às indulgências e ao purgatório.


Tais ideias também eram partilhadas pelos albigenses, um grupo de dissidentes
da cidade de Albi, que rejeitavam as doutrinas da Trindade, do nascimento
virginal de Cristo e do purgatório. É neste contexto que surge a inquisição. “O
instrumento da Inquisição Papal será criado durante a cruzada albigense (1231)
e confiado à ordem dos Irmãos Pregadores, mais conhecida pelo nome ordem
dominicana, devido ao nome de seu fundador (1216) Domingos Guzmán”
(ELIADE; COULIANO, 1999, p. 112).
As heresias sempre foram um problema para a ortodoxia cristã. Ao longo
dos séculos, vários problemas doutrinários foram contornados com os concí-
lios, que por vezes excluíam os hereges das comunidades cristãs. No século XII
aumentou o número de dissidentes e críticos da igreja; nesse contexto, surgiu
a Inquisição, como instrumento papal para combater as heresias. Vejamos em
detalhe como a Inquisição funcionava.
Antes de começar a agir em alguma cidade, a Inquisição
se fazia anun­ciar. A população era obrigada a se apresen-
tar. Quem não se apresentasse já era suspeito. Ninguém
mais podia deixar a localidade. Anunciava-se tempo de
graça de 15 a 30 dias; quem não a usasse, estando sob
suspeita de heresia, era chama­d o pela Inquisição. [...]
Preso o acusado, que tinha seus bens embargados e
era isolado do mundo, de imediato ele era considerado
culpado. Jogado no cárcere, era mantido acorren­tado,
negando-se-lhe os sacramentos. As provas para sua con-
denação eram conse­guidas por confissão, ou através de
testemunho de quaisquer pessoas, de escritos anônimos,
de denúncias. Até os parentes mais próximos eram cha-
mados a serem testemunhas. Quem não se apresentasse
era considerado cúmplice. Excluía-se qualquer advogado.
Caso os testemunhos apresentados não levassem a uma
confissão, usava-se a tortura, [...] Durante a mesma, o
torturado era seguidas vezes aspergido com água benta.
Geralmente, a primeira tortura consistia em apertar os
dedos numa prensa até que o sangue esguichasse e os
ossos se esmigalhassem. O acusado também podia ser
sentado sobre uma cadeira de ferro, com pregos expostos
e encandecida. Para que os torturadores não ouvissem
os berros dos torturados, enfiavam-se panos nas bocas
das vítimas. No final, o corpo do torturado não passava
de massa sangrenta. Seguidamente, o torturado era per-
guntado se estava disposto a confessar e [...] confessava
qualquer coisa que os inquisidores desejassem ouvir.

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A s r e l i g i õ e s m o n o t e í s t a s  123

Após a confissão, vinha a sentença. O condenado podia


ter a alma salva em consequência de sua confissão peni-
tente, mas seu corpo não podia ser poupa­do do castigo
temporal. O mais frequente era o açoitamento. A cada
domingo, o penitente tinha que se apresentar, na missa,
ao sacerdote, que o açoitava na presença da congrega-
ção. Outro castigo consistia em peregrinações feitas a pé
e que, muitas vezes, conduziam à Terra Santa. Os bens
dos hereges eram confisca­dos, seus filhos deserdados e
considerados desonrados por três gerações. Os bens con-
fiscados eram destinados à manutenção da Inquisição. No
caso de hereges impenitentes, só se conhecia um castigo:
a morte na fogueira. [...] Nem mesmo os mortos foram
poupados: restos mortais de hereges foram desenterrados
e queimados. Com a queimação buscava-se evitar a res-
surreição do herege no dia do Juízo Final. [...]
As queimações eram um espetáculo circense. Junto ao
templo era feita uma pregação. Ato contínuo, sem a pre-
sença de funcionários eclesiais, seguia a exe­cução. Após
admoestar, uma vez mais, o condenado a se arrepender,
um represen­tante da autoridade civil mandava que a fo-
gueira fosse acesa. Enquanto o con­denado gritava de dor, a
multidão cantava, [...] Terminada a queimação, a cinza era
espalhada aos quatro ventos (DREHER, 1994, p. 114-115)

Todos os movimentos descritos, valdenses e albigenses, apontavam para a


necessidade de reforma da Igreja, uma tentativa de voltar aos ideais originais
de pobreza, da tradução da Bíblia na língua do povo, do combate à corrupção
clerical, entre outros. Nesse grupo de reformadores estão John Huss e John
Wycliff. Wycliff (1330-84) era padre e professor de teologia em Oxford, suas
críticas à Igreja diziam respeito à corrupção nas ordens religiosas, ao poder
temporal da Igreja e à negligência da Igreja em relação ao ensino bíblico
aos leigos, empenhou grande parte de sua vida na tarefa de traduzir a Bíblia
para o inglês. Foi a primeira tradução da Bíblia para um idioma diferente do
latim. Wycliff morreu naturalmente, mas a mesma sorte não teve John Huss.
Huss (1369-1415) era sacerdote católico, reitor da Universidade de Praga e
admirador do trabalho de Wycliff. Todavia, suas críticas ao papado e à venda
de indulgências o levaram à excomunhão e à condenação como herege, com
pena de ser queimado vivo no ano de 1415.

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124  P O V O , C U LT U R A E R E L I G I Ã O

Para saber mais


A Inquisição foi uma página horrível da história da cristandade. Mas é muito importante que a
compreendamos. A dica de filme sobre este tema é O nome da rosa, baseado no livro homô-
nimo de Umberto Eco. O filme foi dirigido por Jean-Jacques Annaud e lançado em 1986 tornando-
-se um clássico do cinema, não deixe de assistir.

Na Idade Média surgiu a noção de penitência, na prática de imposição


de uma pena por um pecado pelo sacerdote ao fiel. Ao lado da penitência
desenvolveu-se a noção de indulgência. O sacerdote seria o responsável pela
administração do perdão através do sacramento da confissão. No início, através
da penitência era concedido o perdão ou o indulto (absolvição) ao pecador,
ou seja, era concedida a indulgência mediante orações e jejum. Com o passar
do tempo essa dádiva passou a ser concedida em troca de pagamento em di-
nheiro. A venda de indulgências foi a principal crítica daqueles que tentavam
reformar a Igreja e principalmente dos reformadores do século XVI.
No início do século XVI ocorreu o maior cisma da história do cristianismo.
Ele deu origem às grandes ramificações do cristianismo, rompendo com a uni-
dade do catolicismo na Europa. A parte sul da Europa permaneceu católica, mas
o restante foi dividido em três grandes expressões da Reforma: a parte luterana
(Alemanha e países escandinavos), a parte calvinista (Suíça, Escócia, Países-
-Baixos, e alguns territórios franceses) e a parte anglicana (Inglaterra). Com o
passar dos anos essas divisões da Reforma ainda se fragmentaram em centenas
denomina­ções cristãs; como exemplos podemos citar as igrejas Presbiteriana,
Metodista, Batista, entre outras.
A primeira expressão da Reforma veio por intermédio de Martinho Lu-
tero, um monge agostiniano. Lutero (1483-1546) era professor de teologia
em Witten­berg, na Alemanha, e em suas leituras de Santo Agostinho e prin-
cipalmente das cartas do apóstolo Paulo notou a ineficácia da mediação da
Igreja entre Deus e o fiel, e afirmou que somente a fé poderia justificar o
cristão, sem a mediação de nenhuma instituição. Para Lutero, o homem era
irremediavelmente pecador e carente da graça divina. Esse foi o marco inicial
da Reforma, dia 31 de outubro de 1517, quando Lutero afixou suas 95 teses
na porta da igreja de Wittenberg. As teses foram chamadas inicialmente de

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Disputa para escla­recer o poder das indulgências; aqui, podemos perceber


um dos grandes motivos do movimento.
As teses de Lutero podem ser definidas em três grandes princípios: sola fide,
sola gratia e sola scriptura (só a fé, só a graça e só a escritura). Para Lutero, a
salvação do ser humano advém da fé e não por intermédio de um sacerdote ou
por penitências, o perdão divino também era algo gratuito, fruto da graça de
Deus e não da concessão de um bispo, sacerdote ou papa. Nesta mesma linha
de raciocínio, entendia que somente as escrituras sagradas podem ser fonte de
verdade, não há concílios ou autoridades eclesiásticas acima das escrituras.
A Reforma ocorreu em um contexto cul-
tural bastante favorável, era o século do Re-
Para saber mais nascimento, de uma volta às bases antigas
da civilização e do surgimento da imprensa,
A reforma luterana foi brilhante-
que favoreceu sobremaneira a difusão do
mente representada no filme Lu-
tero. O filme foi dirigido por Eric conhecimento e principalmente a tradução
Till e lançado em 2003. Hoje está para o alemão da Bíblia, realizada por Lutero.
disponível em locadoras e em sites Finalmente Lutero foi proibido de pregar em
da Internet. Não deixe de assistir. 1520 e finalmente excomungado pelo papa
em 1521.
O ponto de partida da Reforma foi a Alemanha de Lutero e logo se es-
palhou por toda a Europa, mudando sensivelmente suas características em
alguns lugares. Na Suíça, o sacerdote católico Ulrich Zwinglio (1484-1531)
deu início ao movimento reformista, pregando contra as indul­gências. Por
causa da perseguição João Calvino fugiu da França e abrigou-se na cidade
da Basileia, dando origem a uma das expressões mais fortes da reforma,
o calvinismo, que se espalhou pela França, Países-Baixos, Holanda e Es-
cócia, através de John Knox, que fundou a Igreja Presbiteriana da Escócia,
seguindo os princípios do calvinismo e influenciando de forma decisiva os
futuros imigrantes da América do Norte. Na Inglaterra, os movimentos de
reforma remontam a John Wycliffe, como vimos anteriormente. Contudo,
o surgimento de uma expressão religiosa reformada, separada da Igreja
Católica, surgiu apenas sob Henrique VIII (1534), que se autonomeou chefe
da Igreja recém-separada de Roma, a Igreja Anglicana, fortemente atrelada
ao Estado inglês.

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126  P O V O , C U LT U R A E R E L I G I Ã O

A resposta católica ao movimento reformista ocorreu com a chamada


Contrarreforma, que teve no Concílio de Trento sua expressão maior. É nesse
contexto que surgiu a Companhia de Jesus, ou Ordem dos Jesuítas, fundada em
1534 por Inácio de LoyoIa, cujo papel será reconquistar os fiéis para a Igreja,
seja na Europa ou no resto do mundo, através das inúmeras missões, que po-
demos localizar desde o Canadá, passando pela América do Sul, Índia, Japão
e China. Esta expansão da Igreja Católica é narrada por Eliade e Couliano:
A expansão territorial europeia leva grande número de
povos à evangelização. Pela concordata entre o papa e os
reis da Espanha e de Portugal, o cristianismo estabelece-se
firmemente na América do Sul, acompanhando as conquis-
tas de Cortés (México) e de Pizarro (Peru). Os jesuítas, ao
lado dos dominicanos e dos franciscanos, empregarão o
melhor de suas energias na atividade missionária. Ordem
nova e dinâmica, sua intenção é estabelecer o modelo
europeu nas sociedades indígenas, criando uma elite local
escolarizada. A massa da população, principalmente no
Brasil, subtraída pelos jesuítas à morte certa que espera os
trabalhadores nas fazendas e em outros empreendimentos
europeus, é evangelizada nas reservas submetidas a um
regime rigoroso de comunismo religioso. Do ponto de
vista dos interesses dos colonizadores, a experiência dos
jesuítas estava indo longe demais. A ordem será expulsa
da América Latina em 1767. Pouco depois (1808), a pró-
pria Igreja colonial chegava ao fim, quando os Estados se
libertam da tutela europeia. As missões da África, tanto
protestantes quanto católicas, só se desenvolvem a partir
da primeira metade do século XIX com grande sucesso. A
penetração do cristianismo na Ásia mostra-se mais difícil.
À China chegam missionários em várias ocasiões (635,
1294, c. 1600), mas só conseguem implantar-se solida-
mente depois das guerras do ópio (1840-42). A missão de
Francisco Xavier no Japão (1549) teve mais sucesso e, ao
findar o século já havia lá trezentos mil cristãos (ELIADE;
COULIANO, 1999, p. 117-118).

Embora dividida, a religião cristã subsiste no mundo como a maior de todas


as religiões em número de praticantes. Nestes dois mil anos de existência, se
expandiu e se diversificou. Hoje são inúmeras ramificações e dissidências de
dissidências. Seria um erro acreditar que o cristianismo forma uma unidade,
nem mesmo as maiores igrejas, a católica e a luterana, têm essa unidade. São
muitos grupos e subgrupos que formam a diversidade das confissões religiosas.

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A s r e l i g i õ e s m o n o t e í s t a s  127

Seção 3  Islamismo
Nesta última seção da unidade, veremos um pouco da história do islã, uma
das “religiões do livro” mais jovem. Nosso objetivo é compreender como se
formou esta religião monoteísta, e a partir de qual contexto histórico. Dessa
forma, buscaremos compreender o papel do profeta Maomé na formação da
doutrina islâmica, como ocorreu a expansão do islã pelo mundo, o surgimento
e fragmentação de diversas facções após a morte do profeta Maomé. Também
buscaremos compreender como é o cotidiano da vida religiosa muçulmana,
os pilares de sua fé e os princípios de observância.
A palavra islã deriva de “aslama”, que significa “submeter-se” ou “sub-
missão (a Deus)”, já a palavra muslim (muçulma­no), significa “aquele que
se submete a Deus”. Entre as religiões monoteístas, o islã é uma das mais
importantes e a segunda em número de fiéis. Atualmente, está presente em
todos os continentes. Todavia, predomina no Oriente Médio, nas regiões da
Turquia e arredores, no norte da Índia, região da Caxemira, onde se localiza
o Paquistão, e ainda no sul da Ásia, Indonésia, e nas regiões norte e leste da
África, com relevância para países como Egito, Argélia, Tunísia, Marrocos,
e outros. O islamismo também possui um grande número de adeptos nos
Estados Unidos e na Europa. No Oriente Médio ele é minoritário somente
em Israel. Embora existam muçulmanos não árabes, o islamismo tem uma
relação muito estreita com a cultura árabe, seu lugar de origem. Acredita-se
que exista mais de um bilhão de muçulmanos no mundo e que o islamismo
seja a religião que mais cresce atualmente.
A região da Arábia será o local de nascimento do islã, no século VII. Antes
do surgimento do islã, o território era marcado pelo politeísmo, influenciado
principalmente pelo judaísmo, cristianismo, pelas religiões greco-romanas, e a
religião astral que cultuava Vênus, o Sol e a Lua. Nesse contexto, acreditava-se
na existência de espíritos onipresentes, que poderiam ser ma­lignos ou benignos,
chamados “djins”. Alá (Deus) era cultuado junto às grandes deusas árabes. Meca
era uma reconhecida cidade comercial e um grande centro religioso. Nesse
período, as celebrações, peregrinações e jejuns eram as principais práticas
religiosas. “No século VI d.C., Meca (Makka), com seu santuário da Caaba em
torno do famo­so meteorito negro, já era o centro religioso da Arábia Central e
uma importante cidade comercial” (ELIADE; COULIANO, 1999, p. 192).

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128  P O V O , C U LT U R A E R E L I G I Ã O

Maomé foi o líder religioso que alterou tal estado de coisas; seu aparecimento
e sua atividade diminuem o politeísmo e fazem surgir a religião monoteísta que
mais cresce no mundo. Vejamos um pouco de vida a partir deste momento.
Maomé é oriundo de uma família de comerciantes de Meca (família dos Hashi-
mitas, tribo dos Curaixitas), tendo nascido próximo ao ano 570. Empobrecido
depois da morte dos pais e avós, Maomé também se tornou comerciante. Quando
tinha 25 anos, casou-se com sua empregadora, na época uma mulher viúva e
rica, com idade de quarenta anos, chamada Cadija. Foi por volta do ano de 610
que Maomé começou a ter visões e revelações, quando realizava suas orações
em cavernas próximas à cidade de Meca. A atividade comercial de Maomé o
colocou em contato com as várias caravanas que cruzavam o deserto da Ará-
bia e traziam consigo crenças religiosas monoteístas. Certamente Maomé teve
influência desses povos monoteístas e, cada vez mais satisfeito com a situação
religiosa de Meca, passou a pregar o monoteísmo. Segundo a tradição, Maomé
teria recebido as revelações contidas no Alcorão do anjo Gabriel. No início,
houve sangrentos conflitos entre Meca de Medina, cidade para onde foi Maomé.
Segundo a tradição, o arcanjo Gabriel apareceu-lhe e
mos­trou-lhe um livro, convidando-o a ler (Iqra’!,“Lê!”).
Maomé descul­pou-se várias vezes por não saber ler, mas
o anjo insistiu e o profeta ou apóstolo (ras­ul) de Deus
conseguiu ler sem dificuldade. Deus re­velou-lhe, como
aos profetas de Israel, a incomparável grandeza divina
e a pequenez dos mortais em geral e dos habitantes de
Meca em particular. Durante certo tempo, Maomé só
falou sobre suas revela­ções e sobre sua missão profética
às pessoas de sua intimidade, mas o círculo de fiéis foi
ficando cada vez maior e a frequência às reu­niões cada
vez mais constante. Ao fim de três anos, Maomé come-
çou a pregar publicamente sua mensagem monoteísta,
encontrando mais oposição que aprovação, de tal sorte
que os membros de seu clã tive­ram de dar-lhe proteção
(ELIADE; COULIANO, 1999, p. 192).

Nos anos que se seguiram, Maomé teve várias revelações, que mais tarde iriam
constituir o Alcorão. Nesses primeiros anos de formação da doutrina islâmica,
Maomé conquistou muitos adeptos, mas também muitos adversários. Maomé
foi acusado de charlatanismo e de ser disseminador de mentiras; sua vida corria
perigo e ele teve que fugir de Meca para Medina, onde encontrou abrigo junto
aos líderes do clã desta cidade, onde inclusive havia grande número de judeus.

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A s r e l i g i õ e s m o n o t e í s t a s  129

Para Medina, começaram a afluir seus adeptos no ano de 622. Esse acon-
tecimento ficou conhecido como
[...] Hijra, “Emigração” (Hégira), marca o início da era
islâmica. Mas a transposição para os anos da era cristã
não é feita simplesmente pela adição de 622 ao ano da
Hégira, pois o calendário religioso islâmico é lunar e só
tem tre­zentos e cinquenta e quatro dias. Nos dez anos que
passou exilado em Medina, Maomé continuou a receber
revelações. Ao lado de suas palavras e ações (Hadíth), que
também fazem parte da tradição), essas revelações, fixadas
por escri­to, constituem o conjunto do código da vida muçul-
mana. Durante esse período, o governo da vida religiosa de
seus partidários conti­nuou ocupando Maomé, que também
empreendeu numerosas expe­dições punitivas contra seus
inimigos de Medina e em especial de Meca, cujas caravanas
ele tomava de assalto. Essas ações levaram a uma guerra
entre as duas cidades, durante a qual foram entabuladas
conversações com vistas à conversão dos habitantes de
Meca. Fi­nalmente, Maomé e seu exército ocuparam Meca,
que se tornou o centro de orientação para a prece (qiblah)
e lugar de peregrinação (hadj) de todos os muçulmanos.
Depois de transformar o islamismo numa força temível,
Maomé morreu em Medina, em 632, sem deixar herdeiro
masculino (ELIADE; COULIANO, 1999, p. 192).

A discussão sobre a sucessão de Maomé começou ainda em seu velório.


Enquanto os parentes mais próximos, especialmente seu primo e genro Ali e
seu tio Abbas, velavam o corpo sem vida, outros partidários já discutiam quem
deveria ser seu sucessor califa (Khalifah, “se­guidor”). Logo ao amanhecer, os
seguidores de Maomé decidiram que o primeiro sucessor seria Abu-Bakr, so-
gro de Maomé, seu companheiro na “emigração” (Hégira) em Medina, o qual
também dirigia, na ausência de Maomé, as orações em comum.
O período de sucessão de Maomé inicia também o processo expansionista
do islã através de três califas: Abu-Barkr, Omar e Otmã. Abu-Bakr estabeleceu
de forma definitiva o poderio muçulmano na Península Arábica, seu califado
durou dois anos e ele foi sucedido por Omar (634-644), que dominou a Síria e
parte do Egito e Mesopotâmia. O sucessor de Omar foi Otmã (644-656), do clã
dos omíadas de Meca, ligados à facção sunita, ou seja, seguidores da Sunna,
espécie de biografia de Maomé. Foi Otmã que dominou a Pérsia e ampliou
ainda mais os domínios do islã.

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130  P O V O , C U LT U R A E R E L I G I Ã O

Atividades de aprendizagem
O islã é a segunda maior religião monoteísta do mundo e a religião que
mais cresce atualmente, com adeptos em todos os continentes. Mas o iní-
cio da religião muçulmana foi bastante complexo, com muitas resistências.
Elabore um pequeno texto falando do contexto histórico em que surgiu o
islamismo e do papel do profeta Maomé neste processo.

Data dessa época o início das disputas entre sunitas e xiitas, sendo os su-
nitas os grupo majoritário e os xiitas o minoritário. Após a morte de Maomé,
em 632, Ali, genro do profeta, casado com sua filha Fátima, reivindicava a
posição de califa. A maioria da comunidade muçulmana não achou prudente
Ali ser o sucessor, pois era muito jovem e inexperiente para a importância da
função. Os partidários de Ali, os xiitas (“partidários”, de shiat ‘Ali, “partido de
Ali”), que entendiam que somente Ali era o legítimo sucessor de Maomé. Os
xiitas não reconheciam os três primeiros califas que governaram após a morte
de Maomé, pois entendiam ser ilegítimos. Para os xiitas “o califa não deve ser
apenas curaixita, mas também hashimita e fatímida, ou seja, não apenas da
tribo do profeta, mas também de sua família e filho legítimo do casamento de
Fátima com Talib” (ELIADE; COULIANO, 1999, p. 196).

Questões para reflexão


Embora a maioria das religiões pregue uma mensagem de paz e har-
monia, muitas acabam produzindo os maiores conflitos. É o caso de
conflitos entre sunitas e xiitas, muçulmanos e judeus na Palestina,
católicos e protestantes na Irlanda. Na sua opinião, todas as religiões
podem gerar conflitos ou somente aquelas que produzem fundamen-
talismos e intolerância?

No ano de 656, Otmã é morto por um grupo de xiitas. Ali não renega o
assassinato e é eleito califa. Mesmo com a forte resistência do clã dos omíadas,

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A s r e l i g i õ e s m o n o t e í s t a s  131

Ali consegue se manter no poder e estabelecer a independência dos califados


de Medina e Damasco. Pouco tempo depois, o próprio Ali acabou sendo as-
sassinado por um grupo, os carijitas, que não coadunava com suas posições
políticas. É importante relatar a existência desse terceiro grupo no interior do
nascente islamismo, o grupo dos carijitas.
Os carijitas, puritanos do islamismo, não se preocupavam
com o estabelecimento de linhagens dinásticas. Que­riam
que a dignidade do califado fosse eletiva e coubesse ao
muçulma­no mais devoto, sem distinção de tribo ou de
raça: se merecedor, até mesmo um escravo etíope teria
mais direitos ao califado que um curaixita. Essa doutrina
era repudiada, também por outras caracterís­ticas, pela
maioria dos muçulmanos, para os quais perder a qua-
lidade de membros da comunidade (ummah) dos fiéis
era tão grave, se não mais, quanto uma excomunhão na
cristandade medieval. Ora, ao contrário dos puritanos
cristãos ulteriores, os puritanos muçulmanos sustentavam
que a fé não basta, que há necessidade de obras para
ter-se certeza da seriedade de um fiel. Por conseguinte,
um muçulmano que pecasse deixava de fazer parte da
assembleia dos fiéis. Esse res­p eitável zelo pela pureza
moral combinava-se, nos carijitas, com es­crúpulo de res-
tabelecer a verdade histórica; eles afirmavam, portanto,
que o Corão não é totalmente revelado. [...] Ali voltou-se
contra os carijitas que, afastando-se de Moawia, assas­
sinaram Ali em 661 (ELIADE; COULIANO, 1999, p. 196).

Após a morte de Maomé, a expansão territorial do islã foi avassaladora. Os


quatro primeiros califas, em menos de 30 anos (632-661), já tinham conquis-
tado todo o Oriente Próximo, do Irã ao Egito. Damasco foi dominada em 635;
Jerusalém, Antioquia e Basra, em 638. Entre 637 e 650, ocorreu a conquista
da Pérsia e entre 639 e 642 o domínio do Egito. Entre 661 a 750, o clã dos
omíadas de Damasco avançou a conquista territorial para o leste, chegando
até o Afeganistão, e para o oeste, atingindo as regiões do norte da África e da
Península, levando o limite do domínio muçulmano até os Pireneus.
O avanço muçulmano foi freado em Poitiers, na França (732). No Oriente,
as disputas internas continuavam; em 750 os últimos omíadas são destronados
pelo abássidas de Bagdá, e acabam se refugiando em Al-Andalus, na Península
Ibérica. É nessa região que floresceu o esplêndido califado de Córdoba. Em
1085 os príncipes cristãos reconquistaram Toledo dos muçulmanos, era o ínicio
da decadência do poderio muçulmano. A Espanha foi ocupada pelas dinastias

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132  P O V O , C U LT U R A E R E L I G I Ã O

muçulmanas dos Almorávidas (1090-1145) e dos Almôadas (1157-1223), mas


aos poucos foi retomando sua soberania, expulsando paulatinamente os árabes,
até que finalmente, em 1492, caía a última resistência muçulmana, o emirado
de Granada. No Oriente, o domínio islâmico ainda foi vigoroso por muitos
séculos, sendo o Império Otomano a maior expressão a partir de 1301, ano de
sua fundação, e principalmente a partir de 1453, quando ocorreu a conquista
de Constantinopla.
Vejamos a partir de agora mais detalhes sobre as características do isla-
mismo. São três as fontes doutrinárias do Islamismo: o Alcorão (revelações
recebidas do anjo Gabriel), o Hadith ou Sunnah (escrito biográfico do profeta
Maomé), e a shariah, que é a lei canônica que orienta toda a vida social, reli-
giosa e política do muçulmano.
O credo dos muçulmanos é declarado na shariah: “não há nenhum deus
senão Alá, e Maomé é o seu mensageiro”. Os muçulmanos acreditam e prati-
cam as instruções do Alcorão, o livro sagrado, cujas palavras foram transmitidas
pelo anjo Gabriel ao profeta Maomé, que seria o último de uma sucessão de
profetas bíblicos. A palavra Alcorão, ou simplesmente Corão, quer dizer “ler,
declamar”. Segundo Eliade e Couliano:
Trata-se, se preferirmos, de um novo “Novo Testamento”,
que não contradiz mas confirma e supera a Bíblia dos
judeus e dos cristãos. [...] O texto completo do Corão
foi constituído sob os primeiros califas e suas variantes
foram suprimidas. É composto por 114 capítulos chama-
dos surahs, que contêm um número variável de versos
chamados ãyãts. Os capítulos não estão dispostos em
ordem cronológica ou tópica, mas na ordem inversa à sua
extensão, de tal forma que a maior parte das primeiras
revelações poéticas de Meca encontra-se no fim da co-
leção, enquanto as surahs mais longas estão no começo.
Cada surah tem um título e todas, com exceção de uma,
começam com o verso chamado Basmallah: “Em nome
de Deus, o clemente, o misericordioso” (1999, p. 192).

O Alcorão fala da grandeza de Alá e da importância de a ele obedecer. No


Corão também existem preceitos para a família e para a comunidade. No isla-
mismo não há distinção entre religião e política, fé e moral, tudo é baseado na
sagrada escritura muçulmana. “Maomé não fez distinção entre a lei religiosa
e a secular. Em cada país muçulmano a aplicação da shariah depende do grau
de secularização do próprio Estado. A shariah é aplicada a todos os setores da

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A s r e l i g i õ e s m o n o t e í s t a s  133

vida, inclusive às relações de família, ao direito de sucessão, aos impostos”


(ELIADE; COULIANO, 1999, p. 205).
Além do Corão, a Sunnah (tradição do
Profeta) também é muito respeitada pelos
muçulmanos, ela é uma espécie de biografia Para saber mais
do profeta Maomé. A Sunnah ou Hadith é um Na Universidade de São Paulo
resumo dos atos e ensinamentos de Maomé. existe o Centro de Estudos Árabes,
O surgimento do Corão cumpriu com o obje- com uma vasta gama de pesquisas,
traduções e publicações. Não deixe
tivo inicial de Maomé, que era introduzir os
de conhecer, acesse: <http://
árabes na comunidade dos “povos do livro”,
letrasorientais.fflch.usp.br/
respectivamente os monoteísmos judaico e arabe>.
cristão. Os dois grandes temas do Corão são
o monoteísmo e a grandeza de Deus e sua
relação com o destino da humanidade.
Existem muitas relações entre o Corão, a Bíblia Hebraica e Novo Testamento
cristão. Nas diversas suratas do Alcorão, personagens como Abraão, Noé e
Adão são mencionados muitas vezes. O mesmo se pode dizer de Ismael, José,
Moisés, Saul, Davi, Salomão, Elias, Jó e Jonas. Quanto aos personagens do Novo
Testamento, são mencionados Zacarias, João Batista, Jesus e Maria.
Os muçulmanos acreditam no Juízo Final. Segundo o Corão, no dia do
Juízo Final, aqueles que já morreram serão ressuscitados para o julgamento.
Os que tiverem julgamento positivo irão para o paraíso e os condenados, para
o inferno por toda a eternidade. Os muçulmanos acreditam em espíritos maus
que podem assumir várias formas de praticar a maldade. Os anjos bons são
mensageiros de Alá missão obedientes. Assim como o judaísmo, o islamismo
possui algumas regras na alimentação. Existem instruções sobre o que pode
ser ingerido e rituais sobre o abate de animais.
Como descrevemos, a fé muçulmana é bastante complexa, mas podemos
sintetizar em cinco princípios. O primeiro diz respeito ao monoteísmo, a crença
num Deus único, Alá (Surata 23; 116, 117); o segundo diz respeito à crença
na existência de anjos (Surata 2;177); o terceiro, na sucessão de profetas, Adão
teria sido o primeiro e Jesus um dos mais importantes, no entanto Maomé te-
ria sido o último e mais relevante profeta (Surata 4; 136; 33; 40); o quarto na
crença juízo final (Surata 15; 35; 36); e o quinto na onisciência e presciência
de Alá e a consequente predeterminação de todos os fatos da História; sobre
este último item não há consenso nas diversas seitas islâmicas (Surata 9; 51).

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134  P O V O , C U LT U R A E R E L I G I Ã O

A tradição islâmica recomenda a generosidade e a veracidade de seus fiéis.


São cinco também os chamados princípios da observância. Primeiro, todo
muçulmano deve fazer as preces diárias, ou seja, repetir o credo “Não há deus
senão Alá; Maomé é o mensageiro de Alá” (Surata 33; 40); orar cinco vezes ao
dia voltado para a direção da cidade de Meca (Surata 2; 144); fazer pelo menos
uma vez na vida uma peregrinação a Meca, sendo dispensados desta obser-
vância apenas os doentes e pobres (Surata 3; 97); praticar a caridade na forma
de esmolas (Surata 24; 56); e realizar o jejum do Ramadã (Surata 2; 183-185)
Vejamos agora como Eliade e Couliano descrevem o culto muçulmano.
A fórmula do culto público muçul­mano foi fixada no fim do
século VII. Cada muçulmano tem de pro­nunciar as cinco
orações diárias, anunciadas pelo adhan (convoca­ção) en-
toado pelo muezin do alto do minarete (manarah). Não é
necessário que o muçulmano esteja na mesquita. Onde quer
que este­ja deve primeiro praticar as abluções rituais (wudu)
e depois voltar-­se para a direção de Meca (qiblah), recitar
frases do Corão, como a shahadah (o credo muçulmano) e
o takbir (Allahuakbar, Deus é grande), e prosternar-se duas
ou mais vezes (rakaat) (ELIADE; COULIANO, 1999, p. 194).

Durante os cultos realizados na mesquita, são recitados os 99 nomes su-


blimes de Alá. Durante a semana os muçulmanos oram cinco vezes ao dia
voltados para Meca. Na sexta-feira eles vão até a mesquita para realizar uma
celebração, que é conduzida por um Imã, que é o líder religioso da comuni-
dade. Esse líder tem grande conhecimento do Alcorão, conduz as orações e
celebra casamentos. Além do imã, existe, ainda, o khatib (substituto do califa
ou governador), encarregado pelo sermão pronunciado aos fiéis.
Os muçulmanos podem orar de várias formas: em pé, curvados, ou pros-
trados, com os dedos nos joelhos, a mão e a testa tocando o chão. O lugar
onde o culto é prestado é amesquita, um lugar comunitário e educativo. Suas
formas podem ser variadas, conforme o local do mundo onde se encontram,
mas existem duas características obrigatórias em todas as mesquitas. Para não
distrair os fiéis, há poucos adornos em seu interior, algumas possuem azulejos
com partes do Alcorão. Dentro da mesquita a área principal é a de oração. Há
um local separado para a oração das mulheres. Na sala de orações, existe um
nicho especial chamado de mihrab que aponta para a direção de Meca. Na parte
externa da mesquita existem duas torres chamadas de minaretes. Estas torres
servem para chamar os fiéis para a oração. Durante a oração, os muçulmanos
devem estar limpos, por isto há na mesquita lugares para a higiene pessoal. As

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A s r e l i g i õ e s m o n o t e í s t a s  135

mesquitas não possuem altares, pois as celebrações não têm caráter sacrificial,
como nas igrejas cristãs; também não há lugares onde são depositados os livros
sagrados, como nas sinagogas judaicas. A mesquita deve ser simples e possuir
apenas o mihrabe o púlpito ou tribuna, de onde se pronuncia o sermão. Todavia,
as mesquitas são lugares sagrados e não raro podem ser utilizadas para abrigar
um túmulo de um mestre ou mesmo relíquias do profeta Maomé.
As orações podem ser feitas em qualquer lugar, desde que o fiel esteja
orientado para a cidade de Meca. Por esse motivo, os muçulmanos possuem
seus tapetes de oração, quase sempre existe uma bússola no tapete que serve
de orientação para que o fiel descubra a direção de Meca. O local de oração
deve estar limpo, por isso os muçulmanos tiram os sapatos antes do ritual.
O papel de Maomé foi fundamental também para as estruturas sociais em
que o islamismo foi implantado. A tradição islâmica preza pela justiça social,
a usura é proibida e as relações familiares passam a ser regulamentadas pelo
Alcorão, as relações entre os pais e os filhos, entre os cônjuges. A condição das
mulheres melhora sob o islamismo, elas passam a ter direito sobre a metade
da herança recebida pelos homens. Por outro lado, há que se reconhecer a
permanência do patriarcado no islã. No Alcorão é fixado em quatro o número
de mulheres permitidas, mas a recomendação é de apenas uma.

Questões para reflexão


O casamento no islã é uma das coisas que mais causam estranheza no Oci-
dente, acostumado com a monogamia. Todavia, se levarmos em conta a his-
tória, veremos que muitas culturas do Oriente Médio tinham esse costume,
de um homem ter várias esposas, a cultura judaica por exemplo. À medida
que muitas dessas religiões foram sentindo o avanço da secularização, os
costumes foram mudados. Na sua opinião, por que o islã continua com
este costume, por sua dificuldade em secularizar-se ou a nossa dificuldade
de compreensão é apenas decorrente de nosso preconceito etnocêntrico?

Passemos agora ao calendário religioso islâmico. A primeira observação a ser


feita é que se trata de um calendário lunar, e que possui trezentos e cinquenta
e quatro dias. Portanto, as celebrações são variáveis conforme a estação.
O mês do Ramadã é especialmente importante. Durante o
dia, jejua-se e cultivam-se as obras religiosas. No fim do

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136  P O V O , C U LT U R A E R E L I G I Ã O

Ramadã, ocorre a comemoração da Noite do Poder, Layla-


tal-Qadr, quando Maomé recebeu a primeira revelação.
Durante essa noite, abrem-se as fron­teiras entre o mundo
angélico e este mundo (ELIADE; COULIANO, 1999, p. 203).

Outro mês que tem grande relevância para os muçulmanos é Dhu AL Hijjaah
o
(12 ), pois neste mês ocorrem tradicionalmente as peregrinações até Meca.
Nesta celebração os fiéis buscam chegar até a Caaba (pedra negra no centro de
Meca) e andar em torno dela. Além disso, buscam visitar os túmulos de Agar
e Ismael e o poço de Zamzam, neste ritual percorrem a distância entre dois
túmulos em memória de Agar em busca de água. Segundo a tradição, Ismael,
filho de Abraão, teria se tornado o pai de todos os árabes quando Abraão e
Sara (sua esposa) resolvem abandonar Agar (escrava e concubina de Abraão) no
deserto. Segundo a tradição, através de um milagre Ismael foi salvo e ganhou
a promessa de ser pai de um grande povo.
O islamismo xiita tem suas próprias festas, sendo a mais impor­tante a Ashura
(10 do mês Muharram), comemoração que lembra o martírio de Hussein.
Hussein era neto de Maomé e foi morto pelas mãos de Yiazid, juntamente
com inúmeras crianças e mulheres que foram massacradas. Yiazid era filho de
Muawya, que já havia combatido Ali, genro de Maomé e pai de Hussein. Nos
dias de luto em memória de Hussein são entoadas canções e representações
dramáticas do conflito. Muitas vezes tais celebrações acabam em conflitos
sanguinários e em procissões de flagelantes, embora o autoflagelo seja proibido
no Alcorão. Os xiitas ainda costumam comemorar os aniversários dos Imãs,
o aniversário de Ali (genro de Maomé) e o aniversário de Maomé, no mês de
Rajab (7o mês). O aniversário de Maomé é celebrado por todos os muçulmanos.

Atividades de aprendizagem
Na atualidade, não é raro ouvirmos nos noticiários manchetes sobre
conflitos entre xiitas e sunitas. Deduzimos que são grupos antagônicos.
A partir de seus estudos nesta unidade sobre o islamismo, disserte sobre
o surgimento das diferenças entre xiitas e sunitas.

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A s r e l i g i õ e s m o n o t e í s t a s  137

Fique ligado!
Nesta unidade estudamos sobre:
A formação histórica do judaísmo, iniciando pela trajetória histó-
rica do povo judeu.
O papel da religião na vida do povo judeu, nas festas, no cotidiano
familiar.
Conhecemos as principais doutrinas e divisões do judaísmo depois
da diáspora.
Analisamos o contexto de surgimento do cristianismo e sua eman-
cipação do judaísmo.
Debatemos como se deu a formação da ortodoxia cristã através
dos concílios.
Analisamos o surgimento da Inquisição e os principais cismas da
cristandade, com destaque para a Reforma Protestante.
Conhecemos também o contexto histórico de surgimento do isla-
mismo marcado pelo politeísmo.
Compreendemos a ascensão do profeta Maomé e seu papel na
formulação da doutrina islâmica, através do Alcorão.
Compreendemos o cotidiano islâmico, sua rotina de oração, os
pilares de sua fé e os princípios da observância.

Para concluir o estudo da unidade


Caros acadêmicos, esperamos que esta breve jornada através dos estudos
sobre as religiões monoteístas tenha despertado seu interesse em continuar
e aprofundar suas pesquisas. O Brasil é um país de grande diversidade
religiosa e necessita de pesquisadores. Olhe com atenção para as dicas
de sites e revistas especializadas que mencionamos ao longo do texto e
acesse para aprofundar suas pesquisas.

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138  P O V O , C U LT U R A E R E L I G I Ã O

Atividades de aprendizagem da unidade


1. A Reforma Protestante foi o movimento mais radical no interior do
cristianismo. Embora já houvesse cismas anteriores, a Reforma foi o
mais amplo movimento de fragmentação da unidade cristã. Leia as
sentenças a seguir e associe os itens.
I. Martinho Lutero.
II. João Calvino.
III. Henrique VIII.
(  ) Foi o criador da Igreja Anglicana. Após o rompimento com Roma,
Henrique VIII confiscou os bens da Igreja Católica na Inglaterra
e criou uma nova igreja, muito atrelada ao Estado inglês.
(  ) Foi o principal reformador do século XVI, sua ação de críticas
às indulgências provocaram sua excomunhão do clero católico.
Consequentemente rompeu com Roma e foi acolhido pelos
príncipes alemães, dando origem à primeira igreja reformada,
exemplo para as outras que surgiriam.
(  ) Foi um dos maiores teólogos do século XVI, teve que fugir da
perseguição religiosa na França e se abrigar em Genebra, na
Suíça, onde fundou uma das maiores expressões da Reforma,
que influenciou países como a Holanda, Escócia e o que viriam
a ser os Estados Unidos.
Agora assinale a alternativa correta.
(  )  I — II — III.
(  )  II — III — I.
(  )  III — I — II.
(  )  I — III — II.
2. O islã é uma das religiões que mais cresce no mundo atualmente, em-
bora seja a mais jovem das religiões monoteístas. Confundida muitas
vezes com extremismo e fundamentalismo, o islã é muitas vezes mal
interpretado e simplificado. Todavia, é uma religião complexa, com

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A s r e l i g i õ e s m o n o t e í s t a s  139

muitos princípios éticos e morais. Leia com atenção as sentenças a


seguir e assinale verdadeiro (V) ou falso (F).
(  ) A tradição e doutrina islâmica estão codificadas em três princi-
pais escritos, que são a base do modo de viver do muçulmano:
o Alcorão, o Hadith ou Sunnah e a shariah.
(  ) O islã ensina que seus fiéis devem agir com veracidade e genero-
sidade, sendo imprescindível a observância de cinco elementos:
realização de cinco orações diárias; orar voltado para Meca;
peregrinar a Meca pelo menos uma vez na vida; praticar a cari-
dade na forma de esmolas; e jejuar durante o mês de Ramadã.
(  ) O islã, por sua relação com a cultura árabe, não conseguiu
se expandir por outras regiões do mundo. Diferentemente da
religião judaica, aberta e universalista, o islã ficou restrito aos
limites do Oriente Médio.
(  ) O islamismo, ao contrário do judaísmo e do cristianismo, não
acredita na doutrina da ressurreição dos mortos e no dia do Juízo
Final. Para o islã, não há vida após a morte. Tudo se resolve nesta
existência, sem existirem realidades futuras, paraíso ou inferno.
Assinale a alternativa correta.
(  ) V — F — V — F.
(  ) V — F — F — F.
(  ) V — V — V — F.
(  ) V — V — F — F.
3. O judaísmo é uma das mais antigas religiões monoteístas do mundo.
Todavia, o cânon da Bíblia Hebraica levou muitos anos para ser
completado. Não havia consenso sobre quais livros deveriam fazer
parte das Sagradas Escrituras e quais deveriam ser excluídos. Leia as
sentenças a seguir sobre os livros que formam a base doutrinária do
judaísmo e assinale a alternativa correta.
I. A bíblia hebraica é conhecida como Tanack e agrupa três grupos
de livros, a Torá (Pentateuco),o Nebiim (Profetas) e o Ketuvim
(escritos de sabedoria). Este conjunto de textos levou 10 séculos
para constituir-se.

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140  P O V O , C U LT U R A E R E L I G I Ã O

II. A versão definitiva da Bíblia Hebraica ficou conhecida como


Septuaginta ou versão grega dos setenta, número fictício de
anciãos que traduziram a Tanack para a língua grega no século
II a.C.
III. A parte mais extensa da literatura religiosa judaica é constituí­da
pelo Mishnah, a Tossefta, os dois Talmudes e a Misdrash. O
conjunto desses escritos diz respeito às leis orais, regras morais,
preceitos para a vida cotidiana e para os rituais.
IV. Os Talmudes são discussões e ensinamentos sobre as leis orais do
judaísmo. Existem dois Talmudes reconhecidos pelos judeus. Ambos
foram elaborados nas chamadas Eras de Ouro, um no século X, pelo
judaísmo sefardita espanhol e outro no século XVIII pelo judaísmo
asquenazita na Polônia.
Assinale a alternativa correta.
(  )  Somente a afirmativa IV está correta.
(  )  As afirmativas II e III estão corretas.
(  )  As afirmativas I, II e III estão corretas.
(  )  Somente a afirmativa I está correta.
4. A partir do século II d.C. foi introduzido o episcopado monárquico na
igreja cristã. Aos poucos os bispos ganharam grande poder e autori-
dade. Depois da conversão de Constantino, no século IV, a Igreja se
tornou uma das instituições mais poderosas, inclusive politicamente.
A partir do século XIII, esta força política se materializou num instru-
mento perverso, conhecido como Inquisição.
Leia as sentenças a seguir e assinale a alternativa correta.
(  ) A Inquisição foi criada para combater as chamadas heresias,
ou seja, ideias e doutrinas que iam contra a ortodoxia católica.
Ela foi criada durante a Reforma e confiada aos franciscanos,
responsáveis por identificar e punir os hereges.
(  ) A Inquisição foi um instrumento de punição dos hereges.
Quando chegava a uma cidade todos eram convocados para
se apresentar. Aquele que não se apresentasse era suspeito.
Depois de preso tinha seus bens penhorados, mas mesmo se

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A s r e l i g i õ e s m o n o t e í s t a s  141

condenado e queimado tinha os bens devolvidos para a família,


pois o objetivo não era o confisco de bens, mas a purificação
da comunidade em que estava o herege.
(  ) A Inquisição era um espetáculo horrendo. Muitas vezes a
confissão de heresia era extorquida mediante torturas. Após
a confissão, o condenado tinha que cumprir a pena, embora
a alma estivesse absolvida, o corpo deveria pagar. Os castigos
eram executados pelo poder temporal. Geralmente os hereges
morriam em fogueiras, em espetáculos públicos.
5. Os concílios foram o instrumento utilizado pela cristandade para
fundamentar sua ortodoxia. Houve muitos concílios na história do
cristianismo. As sentenças a seguir dizem respeito aos diversos concí-
lios realizados nestes dois milênios de cristianismo; leia com atenção
e assinale a alternativa correta.
I. Historicamente, o concílio de Jerusalém é considerado o primeiro.
Nele foram discutidas diversas questões, mas a questão primordial
era se os cristãos convertidos deveriam observar os preceitos da
Torá. Os cristãos judeus de Jerusalém entendiam que sim, já os
cristãos de Antioquia, sob a liderança de Paulo entendiam que o
sacrifício de Jesus tinha libertado os cristãos da obrigação da lei.
II. Ao longo dos primeiros concílios, ocorridos nas cidades de Niceia
(325), Constantinopla (381), Éfeso (431) e Calcedônia (451) é que
se formula o credo cristão, a doutrina da Trindade e o problema
das naturezas divina e humana de Cristo.
III. Um dos concílios mais importantes da Igreja Católica foi o
Concilio Vaticano II, ocorrido entre 1962 e 1965. Este concílio
colocou como prioridade o diálogo ecumênico, principalmente
entre católicos e ortodoxos, judeus e muçulmanos.
(  ) Somente a afirmativa I está correta.
(  ) As afirmativas II e III estão corretas.
(  ) Todas as afirmativas estão corretas.
(  ) Somente a afirmativa II está correta.

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142  P O V O , C U LT U R A E R E L I G I Ã O

Referências
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CROSSAN, J. D. O Jesus histórico: a vida de um camponês judeu do Mediterrâneo. Rio de
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DREHER, M. N. A Igreja no Império Romano. São Leopoldo: Sinodal, 1993.
DREHER, M. N. A crise e a renovação da Igreja no período da Reforma. São Leopoldo:
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DREHER, M. N. A Igreja no mundo medieval. 2. ed. São Leopoldo: Sinodal, 1996.
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JOSEFO, Flávio. História dos hebreus. Obra Completa. 9. ed. Rio de Janeiro: CPAD, 2005.
THIESSEN, Gerd. Sociologia do movimento de Jesus. Petrópolis: Vozes, 1989.
THEISSEN, G.; MERZ, A. O Jesus histórico: um manual. São Paulo: Loyola, 2002.
VERMES, G. Jesus, o judeu: uma leitura dos evangelhos, feita por um historiador. São Paulo:
Loyola, 1990.

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Unidade 4
Religiões
orientais
Guilherme Cantieri Bordonal

Objetivos de aprendizagem: Compreender os principais aspectos


estruturantes — históricos e metafísicos — que moldam as prá-
ticas religiosas orientais — Índia, China e Japão. Vamos perceber
de que maneira as estruturas religiosas orientais forneceram as
bases civilizacionais desses povos. Estudaremos os pontos de con-
tato possíveis entre o Oriente e o Ocidente, assim como as difi-
culdades que os ocidentais possuem para entender a mentalidade
oriental. Esses estudos ajudarão a construir uma sensibilidade para
com o “outro”, o “diferente”. É importante ressaltar que a prática
historiográfica para o entendimento de Povo, Cultura e Religião
é determinante para a compreensão e elaboração de perspectivas
sobre as civilizações que estudamos.

  Seção 1: Hinduísmo
Nesta seção, estudaremos os principais aspectos do
hinduísmo. Você já ouviu falar nessa religião? Está
lembrado de algum livro, filme ou novela que abor-
dou alguns aspectos dessa tradição? Saiba que ela
é uma das práticas religiosas mais antigas da huma-
nidade e que ainda é muito praticada na Índia. No
mundo ocidental ela não se faz tão presente, mas
no Oriente se apresenta como a principal base da
estrutura civilizacional. Vamos conhecê-la?

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  Seção 2: Budismo
Nesta seção, trabalharemos os principais pontos
que estruturam as diferentes práticas do budismo.
Perceba que todas as religiões apresentam um nú-
cleo estruturante e diferentes práticas desse centro.
Com o budismo não é diferente. Por mais que as
escolas búdicas possam parecer contraditórias, é
possível encontrar um eixo norteador entre elas.
Vamos conferir?

  Seção 3: Taoismo
Nesta seção, veremos de que maneira nasceu o
taoísmo. Você verá que essa religião apresenta
características muito diferentes das práticas semí-
ticas — judaísmo, cristianismo e islamismo. Mesmo
assim, é possível encontrarmos pontos de contato
entre essas diferenças, principalmente nos aspectos
da vida espiritual.

  Seção 4: Xintoísmo
Nesta última seção da nossa unidade, veremos al-
guns aspectos sobre o xintoísmo. Você verá que,
assim como o taoísmo, o xintoísmo é também muito
diferente das tradições semíticas. Trata-se de uma
religião que possui uma ligação muito forte com a
natureza e nos fornece ensinamentos muito ricos
sobre o homem. Vamos estudá-la?

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R e l i g i õ e s o r i e n t a i s  145

Introdução ao estudo
Olá, caro(a) aluno(a). Nesta unidade estudaremos os principais aspectos de
algumas religiões orientais: hinduísmo, budismo, taoísmo e xintoísmo. Veremos
quais são os pontos centrais dessas religiões e de que maneira elas respondem
a determinadas perguntas fundamentais. Cada religião apresenta suas especi-
ficidades e não conseguiremos esgotá-las, mas daremos um panorama geral
para que você entenda como elas interpretam o homem, o mundo e o plano
metafísico. Vamos iniciar um caminho, e você poderá completá-lo no decorrer
de sua formação.
Antes de começarmos a exposição dos conteúdos selecionados, acreditamos
que é necessário esclarecer alguns pontos. Com isso, pretendemos facilitar
nosso acesso ao conteúdo das demais seções. A principal dificuldade que
encontramos para estudarmos as tradições orientais é conseguir compreen-
der a mentalidade do homem oriental. De que maneira as tradições orientais
entendem seus objetos? Em suas análises predominam aspectos qualitativos
ou quantitativos? É possível traduzirmos com precisão os termos empregados
pelas línguas orientais? Sem esses entendimentos, torna-se impossível o estudo
do Oriente.
Não são poucos os exemplos de estudiosos acadêmicos que se aventura-
ram nessas veredas e produziram perspectivas contraditórias. Vemos que seus
estudos falam muito mais sobre o Ocidente do que sobre o Oriente, visto que
expressam somente análises imprecisas dos ocidentais acerca dos orientais.
Logo, entendemos que esses estudos não podem nos servir de base. René
Guénon apontou um posicionamento fundamental que devemos ter para en-
tendermos outras religiões:
Este é o único modo de estudar as doutrinas que pode ser
aproveitável; para compreendê-las, é preciso, por assim
dizer, estudá-las “de dentro”, enquanto os orientalistas
sempre se limitaram a considerá-las “de fora” (GUÉNON,
2009, p. 40).

Portanto, o estudioso precisa estar atento e saber que para se compreender uma
religião é necessário observá-la pelas premissas fornecidas por ela. Não podemos
utilizar um método que seja totalmente contrário aos fundamentos da tradição
estudada. O que fazer diante desse quadro? Não é possível desenvolvermos nosso
estudo? Acalme-se, apesar das dificuldades nem tudo está perdido! No século XX,

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146  P O V O , C U LT U R A E R E L I G I Ã O

tivemos o surgimento do metafísico francês René Guénon. Sua obra apresenta


uma característica ímpar: com ela foi possível para o homem ocidental entender
de que maneira o oriental pensa. Por ser um grande estudioso de todas as tradi-
ções, Guénon possuía a capacidade de descrever para o Ocidente os símbolos, os
conhecimentos e as relações entre diferentes culturas. Contudo, esse autor sempre
apresentava as barreiras que deveríamos transpor para estabelecermos esse diá-
logo. No seu livro Introdução geral sobre as doutrinas hindus, temos 130 páginas
iniciais que apresentam todas as dificuldades, os preconceitos, as imprecisões, os
erros, as diferenças metodológicas, interpretativas entre esses dois mundos. Há uma
preocupação em explicar termos — religião, filosofia, ciência, razão, esoterismo,
símbolo etc. — que são usados nas duas culturas, mas possuem compreensões
divergentes. Mas o que queremos dizer quando usamos o termo Oriente?
Poderíamos dizer, para uma primeira aproximação, talvez um pouco su-
mária, que o Oriente, para nós, é essencialmente a Ásia, e que o Ocidente é
essencialmente a Europa (GUÉNON, 2009, p. 10).
A Europa é entendida nesse sentido como toda produção realizada por
esse continente. Dessa forma, a tradição americana está inserida nesse mesmo
contexto. Acreditamos que demos o primeiro passo: tomamos consciência de
que somos diferentes. No segundo momento, podemos perceber no que somos
diferentes e de que modo o estudo da história dessas religiões pode nos auxiliar
no contato aberto e franco entre diferentes culturas.
Nossa unidade está dividida em quatro seções. Na primeira seção estuda-
remos as principais características do hinduísmo. Logo após essa breve apre-
sentação do hinduísmo, veremos na segunda seção como o budismo partiu
de alguns preceitos dessa religião para introduzir uma nova prática religiosa
no Oriente. Na terceira seção sairemos da Índia e iremos para a China estudar
a formação do taoísmo. Para finalizar nossa unidade, estudaremos na última
seção os principais fundamentos do xintoísmo. Vamos começar?

Seção 1  Hinduísmo
Nesta primeira seção, nós estudaremos os conceitos básicos da tradição
hindu. A tradição hindu se apresenta como originária de povos vindos do
noroeste da Índia há cerca de 2.500 anos a.C. As escrituras sagradas hindus
são os Vedas. Eles foram ouvidos por sete sábios diferentes. Estão divididos em
dois modos:

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R e l i g i õ e s o r i e n t a i s  147

Shruti: são os ensinamentos que foram ouvidos pelos sábios.


Smriti: são os ensinamentos que foram lembrados pelos sábios.
Veja de que modo podemos encontrar uma unidade no pensamento hindu. Por
mais separadas que possam nos parecer suas práticas, elas apresentam um centro
comum, visto que todos os seus ensinamentos estão fundamentados nos Veda:
A doutrina única a que aludimos constitui essencialmente o
Veda, ou seja, a Ciência sagrada e tradicional por excelên-
cia, pois esse é exatamente o sentido próprio desse termo: é
o princípio e o fundamento comum a todos os ramos mais
ou menos secundários e derivados, os quais constituem
estas diferentes concepções que alguns consideram como
sistemas rivais e opostos (GUÉNON, 2013, p. 10).

Podemos perceber no fragmento que Guénon se preocupou em apontar


com clareza a centralidade do Veda. O próprio pensamento de Guénon segue
uma base rígida nas escrituras sagradas. A intenção de seus escritos é apresentar
os elementos estruturantes das religiões sem distorcê-las. Na citação a seguir,
René Guénon nos mostra como a elaboração de suas obras procura ser fiel aos
ensinamentos das doutrinas tradicionais:
Em muitas ocasiões, em nossas obras precedentes, anun-
ciamos nossa intenção do proceder a uma série de estu-
dos nos quais poderíamos, segundo o caso, seja expor
diretamente certos aspectos das doutrinas metafísicas do
Oriente, seja adaptar essas mesmas doutrinas do modo
que nos parecesse mais inteligível e mais aproveitável,
embora permanecendo sempre estritamente fiéis ao seu
espírito (GUÉNON, 2013, p. 3).

Sabemos que o hinduísmo é a religião mais antiga praticada até os dias de


hoje. Portanto, o estudo dessa prática é fundamental para compreendermos os
elementos civilizacionais que moldam as tradições orientais. Para iniciarmos
com bastante precisão nosso percurso, vamos realizar uma definição do termo
central da nossa seção. Afinal, caro aluno, o que é “hindu”? Acreditamos que
você já tenha ouvido alguma vez essa palavra. Mas você sabe o real significado
dela? Já visualizou alguma imagem sagrada hindu e que lhe pareceu um pouco
estranha? Vamos conferir? Para respondermos esse questionamento vamos ana-
lisar um pequeno trecho de René Guénon sobre esse ponto:
A conclusão de tudo isso poder ser formulada da seguinte
maneira: são hindus todos os que aderem a uma mesma
tradição, com a condição que sejam, bem entendido, devi-

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148  P O V O , C U LT U R A E R E L I G I Ã O

damente qualificados para poder aderir real e efetivamente


a ela, e não de um modo simplesmente exterior e ilusório
(GUÉNON, 2009, p. 115-116).

Desse modo, entendemos que o hindu é aquele que está inserido numa
determinada tradição e que respeita e responde aos seus preceitos de maneira
obediente e adequada. Não se trata, portanto, de uma mera hereditariedade,
de uma adesão gratuita ou de um comportamento social. Para ser hindu é ne-
cessário participar de modo efetivo de uma tradição.

Para saber mais


Zimmer expõe algumas práticas dos hindus:
Originalmente, o panteão védico — com sua hoste de deuses
— representava o Universo onde se projetavam as experiências e
ideias do homem sobre si mesmo. As características humanas do
nascimento, crescimento e morte, e o processo de geração, eram
projetados sobre o acontecer cósmico. As luzes do céu, os aspec-
tos variados das nuvens e das tempestades, das florestas, das
cadeias de montanhas e do curso dos rios, as propriedades do
solo e os mistérios do mundo subterrâneo eram entendidos e
tratados com referência às vidas e relação dos deuses, os quais
por sua vez refletiam o mundo humano (ZIMMER, 2003, p. 244).

No trecho selecionado, veremos a dificuldade de tentarmos facilitar a trans-


missão dos conteúdos hindus adotando o método de simplificação ou unidade
de seus ensinamentos:
Quanto a apresentar uma exposição de conjunto, isso é
uma coisa impossível: ou seria um trabalho interminável,
ou teria que ser colocado de uma forma tão sintética que
seria perfeitamente incompreensível aos espíritos ociden-
tais (GUÉNON, 2013, p. 3-4).

Essa dificuldade não é encontrada somente nas religiões orientais. Imagine


adotar a simplificação para apresentarmos a filosofia de Aristóteles, Platão ou São
Tomás de Aquino. A redução de conteúdos tão densos e volumosos em pequenas
porções resumidas facilita o primeiro contato, mas pode promover distorções.
Portanto, o historiador deve se manter atento aos perigos desse método.

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R e l i g i õ e s o r i e n t a i s  149

O primeiro aspecto determinante para compreendermos a tradição hindu é


entendermos a sua antropovisão, ou seja, o modo pelo qual os hindus inserem
o homem em sua cosmologia. Portanto, entendemos que o hinduísmo apre-
senta uma resposta para uma dúvida intelectual do homem. Ele não se limita a
isso, mas está diretamente relacionado com isso. As práticas religiosas hindus
ligam esses dois pontos. Contudo, é preciso que se faça uma distinção prévia
das tradições orientais para com os ensinamentos ocidentais. Muitas vezes
fazemos algumas precipitações ao pensarmos que os conceitos de “religião”,
“metafísica”, “tradição” são iguais aos utilizados pelos orientais. Leia a citação
a seguir e pense um pouco sobre isso:
[...] a tradição hindu, sem ser de maneira alguma de na-
tureza religiosa, poderia, no entanto, implicar uma orga-
nização mais ou menos análoga; mas não se trata disso, a
despeito das suposições gratuitas que alguns fizeram a este
respeito, porque não compreendiam como a unidade podia
ser realizada efetivamente apenas pela potência inerente
à própria doutrina tradicional. Isto é bem diferente, com
efeito, de tudo o que existe no Ocidente, e, no entanto, é
assim: a unidade hindu, já insistimos nisso, é uma unidade
de ordem pura e exclusivamente tradicional, que não ne-
cessita, para se manter, de nenhuma forma de organização
mais ou menos exterior, nem do apoio de outra autoridade
que a da própria doutrina (GUÉNON, 2009, p. 115).

René Guénon faz uma separação entre o que é tradição metafísica e o que
é religião. Os ensinamentos apreendidos pela tradição hindu não se limitam a
uma prática religiosa ou às determinações sociais, visto que tratam de ensina-
mentos que transcendem a ordem imanente. Essa antropovisão é a base para
quase todos os aspectos presentes na civilização hindu. Podemos afirmar que o
hinduísmo possui um núcleo. Essa centralidade oferece uma resposta para uma
pergunta fundamental: “Quem sou eu”? O grande pesquisador das tradições
orientais, Heinrich Zimmer, nos apresentou uma análise muito precisa no tre-
cho selecionado: “A principal finalidade do pensamento indiano é desvendar
e integrar na consciência o que as forças da vida recusaram e ocultaram, não
é explorar e descrever o mundo visível” (ZIMMER, 2003, p. 20).
Entendemos, desse modo, que o ponto central do hinduísmo está na tentativa
de estabelecer uma ligação (re-ligação) direta da consciência individual que foi
perdida com o absoluto — que é o próprio fundamento dessa individualidade.
O mundo sensível não é tido como importante, mas a consciência individual

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150  P O V O , C U LT U R A E R E L I G I Ã O

é o grande ponto de ligação entre o mundo físico e o mundo metafísico. Por


isso, muitas vezes o oriental não entende a veracidade do homem moderno
ocidental pelo trabalho, pelo acúmulo de bens materiais e pelo suposto pro-
gresso. O oriental interpreta o crescimento da ordem material como um atraso
existencial para homem, na medida em que para obter isso ele se afasta da
preocupação de encontrar sua própria essência.

Questões para reflexão


Quais são as principais dificuldades que o homem ocidental encontra
para compreender as práticas religiosas do Oriente? Será que ainda
possuímos preconceitos que impedem o diálogo franco com essas
diferentes formas de pensamento? Pense nisso!

Mas, afinal, quem sou eu? Como o hinduísmo pode responder esse ques-
tionamento? A resposta hindu para essa pergunta é simples, rápida e precisa,
mas ao mesmo tempo muito complexa: “Você é o absoluto”! Contudo, nós não
conhecemos a nossa própria natureza. A realidade de nosso ser está encoberta.
É preciso retirar esse véu para o “despertar” pleno de nossa consciência. Para
se tornar um ser humano em determinado momento você teve que esquecer
que era o próprio absoluto. É preciso retomar essa consciência para se religar
ao absoluto. O hinduísmo afirma que em algum momento você se percebeu
como ser e não poderá esquecer essa percepção. O hinduísmo apresenta uma
preocupação em retomar a consciência dessa individualidade perdida, como
nos mostra Zimmer:
A filosofia indiana, por milhares de anos, tem-se esfor-
çado em conhecer este Eu adamantino e efetivar seu
conhecimento na vida humana. E esta permanente inquie-
tação é responsável pela suprema e contínua renovação
da imperturbabilidade que penetra as terríveis histórias
do mundo oriental [...] (ZIMMER, 2003, p. 20-21).

Vimos anteriormente, que o conhecimento produzido na tentativa de res-


ponder à pergunta “quem sou eu?”, além de atender uma necessidade inte-
lectual, fornecer as bases para a constituição da vida humana por muitos anos
na tradição hindu. Mas além da realidade substancial do eu o hinduísmo nos
apresenta outras formas de existência. Vamos conhecê-las?

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R e l i g i õ e s o r i e n t a i s  151

Existem quatro tipos diferentes de natureza existentes na tradição hindu:


Absoluto: trata-se de algo não definido em palavras, visto que não tem
princípio nem fim, é a ordem não criada.
Rupa: é o termo utilizado para se referir a todas as formas sensíveis que
possuem princípio e fim, portanto, trata dos elementos presentes no mundo.
Consciência individual: capacidade exercida pelo homem que possui
princípio e não possui fim. Esse é o ponto que deve ser atingido para o
homem atingir seu estado de libertação.
Avídia: é a ignorância. Ela possui uma natureza misteriosa. Não tem
princípio, mas tem um fim. Trata-se do grande mal presente no homem
e o estado de iluminação só será possível se o homem superar esses ele-
mentos escuros de sua alma.
Você pode, então, se perguntar: “O que eu posso fazer para obter esse
conhecimento da minha individualidade e me religar ao absoluto — funda-
mento de meu ser? Devo tornar-me um praticante do hinduísmo?” Acredito
que não seja o melhor caminho, visto que o hinduísmo não é uma prática
aberta para todos os homens. Ele está restrito a um grupo que recebeu essa
tradição. Existe uma série de dificuldades que não permitem que um sujeito
que não nasceu e é um herdeiro direto dessa tradição se torne um praticante
do hinduísmo. Talvez tenhamos um pouco de dificuldade de compreendermos
isso, visto que fomos formados em uma cultura de matriz cristã que se apre-
senta como uma religião aberta a qualquer pessoa que queira praticá-la. Isso
é outra dificuldade para realizarmos um estudo preciso dessas tradições, pois,
como vamos compreendê-las “de dentro”, como nos recomendou Guénon, se
não podemos entrar e praticar essas religiões? Isso é possível com o estudo das
religiões comparadas e autores com Guénon, Frithjof Schuon, Titus Burckhardt,
Martin Lings e Ananda Coomaraswamy são indicados para esse caminho, pois
conseguiram realizar a ponte de comunicação entre o Oriente e o Ocidente
sem trazer distorções teóricas para ambos os lados.
Para compreendermos melhor essa cosmovisão hindu, vamos analisar um
pequeno trecho do livro Introdução geral ao estudo das doutrinas hindus de
René Guénon:
Na Índia, estamos em presença de uma tradição pura-
mente metafísica na sua essência, à qual vêm se acrescen-
tar, como tantas dependências e prolongamentos, diversas
aplicações, seja em certos ramos secundários da própria
doutrina, como aquele que se liga à cosmologia, por exem-

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152  P O V O , C U LT U R A E R E L I G I Ã O

plo, seja na ordem social, que é, aliás, estritamente deter-


minada pela correspondência analógica estabelecida entre
as respectivas formas da existência cósmica e da existência
humana (GUÉNON, 2009, p. 55).

O primeiro ponto que chama nossa atenção na citação é a ligação entre a tra-
dição e a metafísica. Guénon se preocupou em deixar claro para nós que o centro
da civilização hindu está na relação com a metafísica. Isso pode ser um pouco
complicado de se entender para um ocidental, pois a religião tornou-se um dos
aspectos sociais e não o princípio ordenador de todo corpo social e existencial
do Ocidente. Contudo, no Oriente hindu, os parâmetros metafísicos fornecem as
bases de interpretação da existência cósmica e social dos indivíduos. Sendo assim,
todas as relações sociais na vida de um praticante do hinduísmo são pautadas por
parâmetros dados por sua prática religiosa. E de que modo esses ensinamentos
são transmitidos na tradição hindu? Basicamente possuímos duas grandes fontes:
as escrituras sagradas e a transmissão oral. Vamos conhecê-las um pouco mais?
As palavras contidas nas escrituras sagradas, assim como as demais expres-
sões formais adequadas, são símbolos de transmissão desses conhecimentos
milenares. Os símbolos são elementos presentes em todas as tradições religiosas.
As escrituras sagradas do hinduísmo são os Vedas. Eles são a reunião de quatro
livros que fornecem a base da metafísica hindu:
O nome Veda, cujo sentido próprio acabamos de indi-
car, é aplicado de um modo geral a todos os escritos
fundamentais da tradição hindu; sabe-se aliás, que esses
escritos são divididos em quatro compilações que trazem
os nomes respectivos de Rig-Veda, Yajur-Veda, Sâma-Veda
e Atharva-Veda (GUÉNON, 2009, p. 119).

Reconhecemos que a historiografia ainda possui algumas dificuldades para


trabalhar com as escrituras sagradas que fundamentam as religiões. Talvez, a
primeira dificuldade esteja em aceitar a ideia apresentada pelas religiões de
que suas escrituras possuem origem na revelação direta do absoluto. E qual é a
origem dos Vedas? São produtos da literatura humana ou da revelação divina?
Eis por que a origem do Veda é chamada apaurusheya, isto é, “não humana”:
[...] as circunstâncias históricas, tanto quanto outras
contingências, não exercem nenhuma influência sobre o
fundamento da doutrina, que tem um carácter imutável e
puramente intemporal, e é, alias evidente que a inspira-
ção de que acabamos de falar pode ocorrer em qualquer
época (GUÉNON, 2009, p. 120-121).

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R e l i g i õ e s o r i e n t a i s  153

O texto selecionado anteriormente nos mostra como é interpretarmos uma


religião “de dentro”. Se a tradição de transmissão de uma doutrina afirma que
ela possui um caráter metafísico, o método empregado pelo historiador deve
levar isso em conta. Quando o historiador negligencia esse fato e passa a sub-
meter o objeto estudado às necessidades de seu método, provoca uma distorção
em sua análise. Além da tradição escrita temos também a tradição oral:
Na Índia antiga cada ramo do saber estava associado a
uma arte altamente especializada e a um modo de vida,
consoante com este. O saber não devia apenas ser colhido
nos livros, palestras, conversas e debates, mas dominado
por meio da aprendizagem ao lado de um mestre compe-
tente. Era necessário que o discípulo, dócil à autoridade
do guru, se entregasse a ele de todo coração, sendo pré-
-requisitos básicos a obediência (susrusa) e a fé absoluta
(sraddha) (ZIMMER, 2003, p. 50).

O homem moderno ocidental carrega um apreço muito grande pela neces-


sidade de transmissão de conteúdos pela escrita. Esse é um forte contraste que
encontramos entre o Oriente e o Ocidente. A iniciação realizada por um mestre
é uma prática comum no Oriente. Nessa relação, o aprendiz fica anos ao lado de
seu guru acompanhando suas atividades diárias e recebendo seus ensinamentos:
Ao mesmo tempo, é esta também a explicação da ligação
profunda e indefectível que une o discípulo ao mestre,
não somente na Índia, mas em todo o Oriente, cujo aná-
logo no Ocidente moderno se procuraria em vão; a função
do instrutor é verdadeiramente, com efeito, uma “paterni-
dade espiritual”, e é por isso que o ato ritual e simbólico
pelo qual ela começa é um “segundo nascimento” para
aquele que é admitido a receber o ensinamento por uma
transmissão regular (GUÉNON, 2009, p. 192).

Mas o Oriente não mantém apreço somente pelas escrituras. Outros ele-
mentos fazem parte e dão um significado especial para suas práticas. Você se
arrisca em dizer quais são elas, caro aluno? Vamos conferir? Além das escrituras,
temos também o uso de símbolos que auxiliam essa prática:
Na Índia, em particular, uma imagem simbólica que re-
presenta um ou outro dos “atributos divinos” chamada
Pratika, não é absolutamente um “ídolo”, já que nunca
foi tomada por outra coisa além do que é realmente, um
suporte de meditação e um meio auxiliar de realização,
cada um podendo aliás, se ligar de preferências aos sím-

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154  P O V O , C U LT U R A E R E L I G I Ã O

bolos que estejam mais conformes às suas disposições


pessoais (GUÉNON, 2009, p. 149).

Além dos Vedas, temos também as Upanishads que se apresentam com a


base sólida do Vedânta:
Nunca é demais insistir sobre o fato de que são os Upa-
nishads que representam aqui a tradição primordial e
fundamental, e que, por conseguinte, são eles que consti-
tuem o Vedânta em sua essência; resulta daí que, em caso
de dúvida sobre a interpretação da doutrina, é sempre à
autoridade dos Upanishads que se recorre como última
instância (GUÉNON, 2013, p. 13).

As Upanishads são um conjunto de escritos que abordam temas espirituais,


filosóficos e técnicas de meditação:
Os fecundos filósofos do período da Upanishads, que exami-
naram o problema do átman, foram os primeiros intelectuais
e livres pensadores de seu tempo. Foram além da concepção
tradicional que os sacerdotes tinham a cerca do cosmo. Entre-
tanto, fizeram-no sem dissolvê-la ou criticá-la, pois a esfera
que investigavam não era a mesma que a monopolizada pelos
sacerdotes. Viraram as costas ao universo externo — o do-
mínio interpretado dos mitos e controlados pelos complexos
ritos de sacrifício — porque estavam descobrindo algo mais
interessante. Haviam-se deparado com o mundo interior,
o universo interno do próprio homem e, inserido neste , o
mistério do Eu. Tal atitude levou-os para muito longe das nu-
merosas deidades antropomórficas que eram os governadores
legítimos, tanto do macrocosmo como das funções sensoriais
do organismo microcósmico (ZIMMER, 2005, p. 258).

Mas qual é a finalidade dessas escrituras, ensinamentos e práticas? O hin-


duísmo nos apresenta quatro metas fundamentais para a vida:
Artha — composto pelos bens materiais.
Kama — formado pelo conjunto dos prazeres.
Dharma — transmissão da doutrina espiritual.
Moksa — estado de libertação espiritual.
No hinduísmo, possuímos um elemento religioso que molda todo quadro
social. As castas são ordens que dividem socialmente as sociedades indianas:
“[...] a casta, que os Hindus designam indiferentemente por uma ou outra das
duas palavras jâti e varna, é uma função social determinada pela natureza
própria de cada ser humano” (GUÉNON, 2009, p. 142).

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R e l i g i õ e s o r i e n t a i s  155

O sistema de castas hindu está dividido em quatro grupos:


Brâmanes (cabeça) — são responsáveis pelas atividades intelectuais e
religiosas da sociedade. São os mestres espirituais, sacerdotes, escritos e
intelectuais.
Xátrias (braços) — são os homens responsáveis pela administração das
ordens sociais e militares da sociedade. São os gestores de instituições
públicas, policiais, militares e governantes.
Vaixas (pernas) — são os homens responsáveis por toda produção material
da sociedade. São os empresários, agricultores e produtores de maneira geral.
Sudras (pés) — são simples trabalhadores que devem servir às demais castas.
Párias — são os menos favorecidos na sociedade e não possuem nenhum
privilégio, pois são excluídos socialmente.
É muito importante que saibamos a diferença existente entre uma sociedade
organizada por castas e uma sociedade organizada em classes. Na sociedade de
castas, não há mobilidade social, ou seja, ao nascer em determinada casta, o indiví-
duo permanecerá nela por toda a vida. A sociedade de classes permite a mobilidade
social, pois sempre se tem a possibilidade de migrar de uma classe para outra.

Questões para reflexão


De que maneira o estudo da história pode auxiliar na compreensão
de práticas religiosas tão diferentes? O historiador deve desempenhar
o papel de tentar compreender diferentes perspectivas e propor um
diálogo aberto entre elas?

Atividades de aprendizagem
1. Sabemos que, das comunidades primitivas às contemporâneas, as
práticas religiosas são fenômenos estruturantes das civilizações
que integram o universo cultural e simbólico das comunidades. De
acordo com o que estudamos e com seus conhecimentos históricos,
responda: é possível relacionar a crença religiosa e a vida cotidiana,
concretizada por meio de símbolos?

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156  P O V O , C U LT U R A E R E L I G I Ã O

2. Após ler o fragmento selecionado, assinale a alternativa a seguir que


apresenta informações corretas sobre o hinduísmo:
A filosofia hindu ortodoxa surgiu da antiga religião
ária dos Veda. Originalmente, o panteão védico —
com sua hoste de deuses — representava o Universo
onde se projetavam as experiências e ideias do ho-
mem sobre si mesmo. As características humanas
do nascimento, crescimento e morte, e o processo
de geração, eram projetados sobre o acontecer
cósmico. As luzes do céu, os aspectos variados das
nuvens e das tempestades, das florestas, das cadeias
de montanhas e do curso dos rios, as propriedades
do solo e os mistérios do mundo subterrâneo eram
entendidos e tratados com referência às vidas e
relação dos deuses, os quais por sua vez refletiam
o mundo humano. Estes deuses eram super-homens
dotados de poderes cósmicos, e podiam ser convida-
dos a participar de uma festa por meio de oblações.
Eram invocados, adulados, apaziguados e agradados
(ZIMMER, 2005, p. 244).

a) A maneira mais correta de estudarmos as religiões orientais é


transportar os conceitos e os valores ocidentais para interpretarmos
essas civilizações de maneira correta e precisa.
b) O historiador deve estar atento ao analisar civilizações orientais e
antigas para não promover distorções teóricas e conceituais sobre
os povos estudados.
c) O estudo das civilizações orientais é muito simples, visto que o
hinduísmo, por exemplo, sempre manteve um contato muito pró-
ximo com as tradições intelectuais europeias e isso facilita nossa
comunicação.
d) O hinduísmo é uma religião que nasceu como uma ramificação
do budismo praticado entre monges eremitas do Nepal.
e) O hinduísmo é tão antigo que podemos considerá-lo como a mãe
de todas as religiões.

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R e l i g i õ e s o r i e n t a i s  157

Seção 2  Budismo
O budismo é considerado uma religião ou uma filosofia muito peculiar. Essa
prática nasceu com os ensinamentos de Siddhartha Gautama. Para compreendê-la
um pouco melhor, é preciso que saibamos um pouco mais da vida do Buda. Ele
nasceu por volta VI e IV a.C. no continente indiano. Logo ao nascer, seu pai, um
poderoso rei, recebeu a visita de um importante astrólogo que descreveu dois ca-
minhos possíveis para a vida do recém-nascido: ou se tornaria um grande rei como
seu pai, ou se tornaria um homem de vida espiritual exemplar. Para ele se tornar
um rei, era necessário que não conhecesse as dores e o sofrimento do mundo.

Para saber mais


O filósofo e historiador Ananda Coomaraswamy (1877-1947) é um dos principais autores sobre
as religiões orientais. É considerado junto com René Guénon e Frithjof Schuon um importante
autor perenealista. Suas obras Hinduísmo e budismo e mitos hindus e budistas são funda-
mentais para a compreensão das práticas religiosas orientais.

Sendo assim, seu pai cuidou de sua criação com muita atenção, não dei-
xando que saísse das muralhas do castelo e recebesse notícias desagradáveis.
Tudo era ordenado de modo que o menino não tomasse contato com os males
do mundo. Cuidou de sua educação até atingir a idade adulta. Os servos do
castelo eram treinados e selecionados para servirem de maneira adequada às
necessidades do príncipe.
Por volta dos trinta anos, Siddhartha resolveu realizar pequenas incursões
para fora do castelo. Seu pai cuidou de preparar as redondezas para que ele
não tomasse contato com os males. Mas, mesmo assim, isso não foi possível.
Algumas passagens marcaram profundamente a vida dele. Nessas breves saídas
encontrou um velho, um doente, um morto e um monge mendicante. A figura de
um velho era uma novidade, visto que, no interior do castelo, ele tomou contato
somente com pessoas belas e jovens. O doente despertou sua percepção para a
fragilidade humana. A morte foi talvez o momento mais chocante. Esses encon-
tros colocaram o jovem príncipe num estado de meditação profundo. Ao pensar
nesses encontros, ele se questionava: de que valeria a vida se existem a velhice,
a doença e a morte? Todos os bens que possuía eram efêmeros, finitos e passa-
geiros? O verdadeiro sentido da vida deveria estar na apreensão de algo eterno.

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158  P O V O , C U LT U R A E R E L I G I Ã O

Resolveu fugir do castelo. Encontrou uma comunidade de monges hindus


e passou a se submeter às mais drásticas formas de privações, jejuns e exercí-
cios de ascese espiritual. Depois de um bom tempo, percebeu que não havia
atingido um estado espiritual avançado. Meditando um pouco mais, encontrou
um ponto de equilíbrio: o grande segredo não estava nas extremidades, nas
atitudes radicais, nem nos prazeres do mundo, nem na negação do mundo,
mas no equilíbrio e no encontro entre ambas as coisas: materiais e metafísicas.

Questões para reflexão


Quais foram os motivos que levaram as gerações das décadas de 1960
e 1970 a buscarem inspirações nas práticas religiosas orientais?

O grande estudioso do budismo, Ananda Coomaraswamy, nos ofereceu uma


descrição muito sagaz do processo de evolução espiritual desenvolvido pelo Buda:
Penetrando em planos de contemplação cada vez mais
profundos, o Bodhisatta obteve sucessivamente o conhe-
cimento de suas vidas anteriores, a Sagacidade divina,
a compreensão das origens pelas causas, e finalmente,
pela madrugada, a plena Iluminação, o Grande Despertar
(maha-sambodhi) que buscava. Já não é mais um Bodhi-
satta; tornou-se um Buda, um “Desperto”. Um Buda não
mais participa de uma categoria; não pode ser comparada
com qualquer outro ser; não é mais chamado por um
nome [...] (COOMARASWAMY, 1961, p. 18-19).

Portanto, o jovem príncipe, ao negar sua origem familiar e buscar a elevação


espiritual, encontrou seu estado de iluminação. Ao atingir esse grau, o Buda
tornou-se um ser completo e impossível de ser comparado a outro ser na ordem
da existência material. Depois de realizar esse caminho, o Buda sentiu a ne-
cessidade de transmitir para um pequeno grupo de seguidores os ensinamentos
que obteve, mesmo sabendo da dificuldade em expressar suas apreensões:
Desse modo, o Buddha foi persuadido a ensinar seu cami-
nho. Surgiram discípulos, uma ordem tomou corpo e a tradi-
ção budista passou a existir. Não obstante, desde o princípio
e devido à natureza do problema, a doutrina destinava-se
apenas àqueles preparados para ouvir; não tinha por meta
interferir quer na vida e nos hábitos do povo, quer no curso
da civilização (ZIMMER, 2003, p. 337).

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R e l i g i õ e s o r i e n t a i s  159

O ponto central do praticante do budismo está na busca desse estado de


contemplação do absoluto. O budismo possui em sua essência quatro nobres
verdades, que apesar das diferentes correntes budistas, todas concordam com
esse centro doutrinal*:
Sofrimento Iluminação
Desejo Método

Para saber mais


O mesmo problema ao estudar o hinduísmo, também é notado nas pesquisas do budismo:
Querer dar uma ideia adequada do conteúdo da doutrina budista
nos seus primórdios é uma tarefa que apresenta dificuldades in-
superáveis. Esta Lei Eterna (dharmmasanantanaakalika), que não
era de modo algum uma criação de Buda por raciocínio, mas à
qual ele se identificava, uma Lei ensinada por seus predecessores
no passado remoto e que seria ainda ensinada por seus sucessores
no futuro, o próprio Buda a declara profunda e difícil de compre-
ender por ouvintes que tenham outra mentalidade e uma outra
formação de espírito (COOMARASWAMY, 1961, p. 31).

Questões para reflexão


Sabemos que as tradições judaico-cristãs influenciaram diretamente a
prática historiográfica no Ocidente. É possível utilizarmos as práticas
religiosas budistas para elaborarmos um método historiográfico? A
cosmologia budista pode nos auxiliar nessa tentativa? Quais seriam
os resultados?

É interessante observarmos que a princípio o budismo não possui as mesmas


restrições do hinduísmo. Como vimos anteriormente o hinduísmo utiliza o sis-
tema de castas para regular quem são os praticantes dessa religião. Portanto, no

* “Desde a época em que Buda era vivo se tinham formulado muitas questões de disciplina, e as deci-
sões do Mestre foram os fundamentos da regra (vinaya) da vida do monge-mendicante no que concer-
ne à habitação, às roupas, à alimentação, à conduta, à manutenção, à admissão e à expulsão. Tomada
em seu conjunto, a comunidade contava com relativamente poucos mestres graduados (asekho) e um
bem maior de discípulos noviços (sekko)” (COOMARASWAMY, 1961, p. 26-27).

Povo cultura religiao_book.indb 159 6/19/14 4:09 PM


160  P O V O , C U LT U R A E R E L I G I Ã O

hinduísmo não é possível o processo de conversão, ou seja, alguém que nasceu


fora da tradição indiana não consegue praticar oficialmente o hinduísmo. O
budismo nasceu no contexto social dominado pelo hinduísmo, mas não fez
uso do sistema de castas. Logo, qualquer pessoa pode se tornar um praticante
do budismo, mas ao analisarmos com um pouco mais de atenção vemos que
essa questão não é tão simples:
O budismo é a única mensagem religiosa e filosófica da
Índia que se difundiu para além das fronteiras de sua origem.
Conquistando a Ásia ao norte e ao leste, tornou-se naquelas
vastas regiões, o credo das massas e moldou a civilização
durante séculos. Este fato tende a ocultar que, em sua essên-
cia, o budismo destina-se a uma minoria de privilegiados. A
doutrina filosófica que alicerça manifestações populares tão
numerosas e fascinantes não é o tipo de ensinamento que se
poderia esperar ver prontamente acessível a todos. Dentre
as muitas respostas que têm sido oferecidas há milênios,
nos quatro cantos do mundo, para soluções aos enigmas
da vida, a do budismo deve ser considerada como a mais
inflexível, obscura e paradoxal (ZIMMER, 2003, p. 336).

Portanto, segundo Zimmer, ao olharmos a rápida expansão do budismo*,


temos a impressão de que ele é destinado a todas as pessoas. Mas, como vimos
na citação, o budismo é uma doutrina espiritual destinada a uma minoria de
privilegiados. Zimmer reconhece a existência de prática exotérica comparti-
lhada por um grande número de pessoas, mas somente alguns seriam capazes
de apreender o núcleo verdadeiro do ensinamento de Buda. Nas religiões
orientais e também no islamismo admitimos a existência de duas expressões
da religião: as práticas exotéricas e as esotéricas. As práticas exotéricas se re-
ferem aos ritos, ensinamentos e práticas exteriores e compartilhados por todos
os praticantes da religião. As práticas esotéricas são conhecimentos, exercícios
espirituais adotados por pequenos grupos pertencentes a cadeias iniciáticas
que não estão abertas ao conhecimento de todos. Não podemos nos esquecer
de que, para se tornar um praticante efetivo de uma religião, é necessário que
se conheça a simbologia básica daquela prática. Sem isso, não conseguimos
acessar os ensinamentos e compartilhar do significado transmitido. Mas será

* “Entretanto o número dos discípulos tinha crescido consideravelmente: eram diversos grupos de monges-
-mendicantes (Bhikhu) ou de Exilados (Prabbajita) que daí por diante em lugar de errarem continu-
amente, residiam geralmente nos conventos oferecidos à Comunidade por ricos zeladores leigos”
(COOMARASWAMY, 1961, p. 26).

Povo cultura religiao_book.indb 160 6/19/14 4:09 PM


R e l i g i õ e s o r i e n t a i s  161

que esses ensinamentos são tão complexos como Zimmer nos descreve? Seria
um pouco de exagero?
Para entendermos um pouco mais esse ponto obscuro e central do budismo
vamos analisar um pequeno trecho de um livro de um dos principais mestres
espirituais budistas do século XX. Seu nome é Daisetsu Suzuki, e em seu livro
Viver o zen ele nos contou uma pequena história da tradição budista sobre
a busca da iluminação espiritual. Suzuki é um dos grandes responsáveis por
tentar explicar as tradições budistas para o mundo ocidental. Portanto, para nós,
historiadores, suas obras se apresentam como uma excelente porta de entrada
para a compreensão do budismo. Leia-a a seguir:
Um monje jardinero se acercó al maestro expressando
su deseo de ser iluminado por el zen y el maestro le
respondió: “Vuelve cuando no haya nadie alrededor y
entonces te responderé”. Al día seguiente advirtió que no
había nadie cerca y volvió a implorar leal maestro que
le revellara el secreto. El maestro respondió entonces:
“Acercate más” y, cuando el obediente monje lo hizo, el
maestro le susurró al oído: “El zen es algo que no puede
expresarse con palavras” (SUZUKI, 2009, p. 22)*.

O “zen”, do qual trata o trecho, é o princípio ordenador do cosmos. Apesar


de não poder ser expresso em palavras tentamos criar uma aproximação para
termos uma ideia de seu entendimento. A prática da meditação, da conduta
correta de acordo com os preceitos do budismo e as orações constantes é capaz
de ativar a percepção do homem na apreensão do Tao. Logo, o Tao não é para
ser transmitido, pois se trata de uma realidade inabarcável pela inteligência e
pela linguagem humana.

Para saber mais


Daisetsu Teitaro Suzuki (1870-1966) foi um importante pesquisador das religiões orientais.
Ainda temos um pouco de dificuldade de encontrarmos suas obras traduzidas para o português.
Você pode tomar contato com elas no inglês e no espanhol. Não deixe de conferir.

* Nossa tradução: Um monge jardineiro se aproximou do mestre expressando seu desejo de ser ilumi-
nado pelo zen e o mestre lhe respondeu: “Volte quando não houver nada em volta e então lhe res-
ponderei”. No dia seguinte advertiu que não havia nada por perto e voltou a implorar ao mestre para
revelar-lhe o segredo. O mestre respondeu então: “Aproxime-se mais” e, quando o obediente monge
fez isso, o mestre sussurrou ao ouvido: “O zen é algo que não pode expressar-se com palavras”.

Povo cultura religiao_book.indb 161 6/19/14 4:09 PM


162  P O V O , C U LT U R A E R E L I G I Ã O

O budismo possui três grandes joias ensinadas em sua tradição:


Buda — iluminado. Ele representa o ponto máximo de elevação espiritual
da prática budista, sendo, portanto, o modelo de conduta, prática espiri-
tual e guia para o homem atingir a elevação de seu espírito. Na tentativa
de traçarmos um paralelo com o cristianismo, podemos relacionar a
iluminação budista com a salvação ou a santidade cristã.
Dharma — ensinamentos. É o conjunto de transmissões — em sua maioria
oral — dos antigos praticantes do budismo que receberam conhecimentos
que remetem ao próprio Buda. Temos, no entanto, a reunião de alguns
escritos de autores que tentaram compilar a transmissão dos ensinamentos
budistas.
Sangha — comunidade. É o agrupamento de monges ou a própria comu-
nidade leiga praticante do budismo. A Sangha possuiu uma simbologia
importante, visto que, desde sua fundação, o budismo foi praticado na
comunidade de monges que receberam os conhecimentos diretos do Buda.
Para alcançar a iluminação, o praticante do budismo precisa se pautar pelo
Nobre Caminho Óctuplo. Observe que esse caminho perpassa pelos caminhos
mais imanentes da vida humana e também pelos aspectos mais sensíveis e
abstratos:
Concepção — trata-se da compreensão correta das quatro nobres ver-
dades e do desejo de que outras pessoas também tomem posse desse
entendimento.
Pensamento — trata-se de querer praticar o bem e se manter afastado das
intenções prejudiciais.
Palavras — expressar a verdade e se manter afastado das falas imprecisas
e mentirosas.
Conduta — entendida também como ação. É a prática da caridade,
generosidade.
Meio de vida — é a tentativa de buscar um meio de vida correto e ade-
quado às práticas budistas como o respeito ao próprio corpo e ao próximo.
Esforço — trata-se da autodisciplina necessária para a conduta correta.
Atenção — desenvolver a atenção para as ações do corpo, da fala e da mente.
Meditação — é o caminho para a contemplação e iluminação.
Um dos grandes autores que conseguiu traduzir as expressões e práticas
budistas do Oriente para o Ocidente foi o monge trapista Thomas Merton. Ele

Povo cultura religiao_book.indb 162 6/19/14 4:09 PM


R e l i g i õ e s o r i e n t a i s  163

produziu muito livros que expressam essa conexão. A leitura atenta de sua
obra se apresenta para nós como uma excelente oportunidade para compreen­
dermos o budismo.

Para saber mais


Leia a seguir:
A essência do budismo pode ser compreendida mais rápida e
adequadamente se nos aprofundarmos nas principais metáforas
— por meio das quais nossa intuição é estimulada — em vez de
realizarmos um estudo sistemático das sofisticadas superestruturas
e detalhes minuciosos dos ensinamentos desenvolvidos [...]. Entrar
no veículo budista — a barca da disciplina — significa começar a
cruzar o rio da vida, desde a margem da experiência com,um de
não iluminação, da ignorância espiritual (avídia), do desejo (Kama)
e da morte (Mara), até a longínqua margem da sabedoria trans-
cendental (vídia), que é a liberação (moksa) desta escravidão geral
(ZIMMER, 2003, p. 343).

Atividades de aprendizagem
1. Leia o texto e as alternativas a seguir e assinale aquela que apresenta
informações corretas sobre a prática do budismo:
Entretanto o número dos discípulos tinha crescido
consideravelmente: eram diversos grupos de mon-
ges-mendicantes (Bhikhu) ou de Exilados (Prabbajita)
que daí por diante em lugar de errarem continua­
mente, residiam geralmente nos conventos ofe-
recidos à Comunidade por ricos zeladores leigos
(COOMARASWAMY, 1961, p. 26).

a) Historicamente o budismo não apresenta grande importância,


visto que a maior parte de seu ensinamento pertence à transmissão
oral, e sabemos que a prática historiográfica deve se manter fiel
aos documentos escritos.

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164  P O V O , C U LT U R A E R E L I G I Ã O

b) O budismo é considerado uma ramificação das antigas tradições


da religião hindu.
c) Buda é um simples personagem literário que povoou o imaginá-
rio das grandes tradições religiosas na Índia por volta do século
II a.C., portanto, deve ser objeto da literatura e não da prática
historiográfica.
d) A grande dificuldade encontrada para estudarmos os textos do
budismo é a língua em que foram escritos, esse fato justifica a total
falta de interesse da academia ocidental em estudar essa religião.
e) O budismo tornou-se muito popular devido à clareza de sua mensa-
gem e da facilidade em se chegar ao estado de iluminação de Buda.
2. Leia o trecho a seguir e responda à questão proposta:
Desde a época em que Buda era vivo se tinham formu-
lado muitas questões de disciplina, e as decisões do
Mestre foram os fundamentos da regra (vinaya) da vida do
monge-mendicante no que concerne à habitação, às rou-
pas, à alimentação, à conduta, à manutenção, à admissão
e à expulsão. Tomada em seu conjunto, a comunidade
contava com relativamente poucos mestres graduados
(asekho) e um bem maior de discípulos noviços (sekko)
(COOMARASWAMY, 1961, p. 26-27).

Baseando-se no trecho selecionado e nos conteúdos estudados nesta


seção, elabore um breve relato dos principais eventos históricos da
vida de Buda, segundo a tradição budista.

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R e l i g i õ e s o r i e n t a i s  165

Seção 3  Taoísmo
Esta prática religiosa apresenta como fundamento a vida em harmonia
com o Tao. A palavra “Tao” significa o caminho, a via ou o princípio de tudo
o que existe. Cabe, portanto, ao praticante do taoísmo entrar em contato com
essa força e tomar posse de sua natureza própria. Não conseguimos localizar
historicamente o nascimento do taoísmo, visto que, segundo sua própria tradi-
ção, o taoísmo está fundamentado em conhecimentos imemoriáveis que foram
transmitidos oralmente por muitas tradições.

Para saber mais


O livro A grande tríade de René Guénon é um excelente estudo sobre o taoísmo. Nessa obra
você poderá entender alguns aspectos da simbologia dessa prática. Isso auxiliará você na com-
preensão de como o taoísmo interpreta o homem, o mundo e Deus.

Questões para reflexão


De que maneira os longos anos de regime comunista na China afeta-
ram tradições milenares daquela cultura, como o taoísmo? A religião é
capaz de possuir uma força que supere as dificuldades impostas pelas
adversidades sociais?

Os criadores dessa tradição não são importantes, pois eles simplesmente


expressaram algo que já estava dado na natureza e que, portanto, não era obra
do homem. Mesmo com esse problema para encontrarmos o ponto de origem
do taoísmo, temos em sua tradição um importante praticante chamado Lao-Tsé:
Lao-Tsé é tido como o “pai” do taoísmo, assim como
Hermes é o “pai” do hermetismo. O que se aceita usual­
mente como “taoísmo” não vem a ser exatamente, ou
unicamente, o conteúdo do Tao-Te-King. Entende-se por
este termo um animismo chamânico e uma magia tradi-
cional, pré-histórico, que não abandona nunca nenhum
povo, constituindo-se no potencial de crença religiosa
básica que se torna mais evidente em épocas de dissolu-
ção da civilização. Quando a civilização se recristaliza
numa nova fase, o animismo volta a segundo plano, bem

Povo cultura religiao_book.indb 165 6/19/14 4:09 PM


166  P O V O , C U LT U R A E R E L I G I Ã O

ou mal compreendido pela nova forma religiosa, o novo


arquétipo espiritual dominante (LIMA, 2009, p. 9).

Vimos, portanto, que o conteúdo expressado por Lao-Tsé é apreendido por


qualquer tradição, pois trata de elementos comuns da ordem natural. O conheci-
mento do taoísmo não se limita ao Tao-Te-King, mas devemos concentrar nossa
atenção nele, visto que é uma das únicas fontes antigas que possuímos dessa
tradição. Assim como as demais tradições orientais, muitos ensinamentos do
taoísmo são transmitidos oralmente na relação entre o mestre e o discípulo. Na
citação, temos um novo termo para nós: “Tao-Te-King”. Mas, afinal, caro aluno,
o que é isso? Na citação a seguir temos uma resposta precisa para essa questão:
O Tao-Te-King é um livro que condena as palavras supérfluas.
Assim sendo, condena qualquer introdução longa. A “medi-
tação” precedente condensa o que julgamos ser mais impor-
tante dizer em torno do “Velho Sábio” (que é o significado
do nome “Lao-Tsé”, em chinês). Por outro lado, é grande o
desconhecimento da China pelo público brasileiro em geral,
especialmente dos aspectos esotéricos da história daquela
região do planeta e daquele povo que geraram a China e os
chineses da história exotérica (LIMA, 2009, p. 11).

A citação nos apresenta mais um elemento que chama nossa atenção. Existe
no taoísmo a prática exotérica, que por definição, está vinculada às práticas
populares, públicas, festivas e abertas aos praticantes de maneira geral. Mas
não podemos nos esquecer de que o taoísmo possui também uma camada mais
profunda em suas práticas. O esoterismo é fundamental para a manutenção
de muitos conhecimentos milenares da tradição chinesa. Contudo, o contato
com esses temas torna-se um pouco complicado para o pesquisador que não
possui uma ligação direta com algum mestre espiritual taoista.

Para saber mais


Leia um trecho do Tao-Te-King e veja como essa escritura tenta descrever o Tao de modo muito
sensível, apontando para a dificuldade em descrevê-lo:
O Tao é como um recipiente oco
Quanto mais produz, mais difícil é de esgotar
Parece o manancial de todas as coisas
E em suas profundezas permanece inalterado,
Eternamente (LAO-TSÉ, 2009, p. 25).

Povo cultura religiao_book.indb 166 6/19/14 4:09 PM


R e l i g i õ e s o r i e n t a i s  167

Realmente, precisamos reconhecer que ao tomarmos contato com o Tao-Te-


-King ficamos surpresos com sua capacidade de síntese. Estamos acostumados
com o Velho Testamento e o Novo Testamento, que são longas escrituras sagra-
das. O escrito taoista é composto de poucas páginas de poemas curtos e diretos
repleto de linguagem simbólica capaz de indicar muitas camadas de significado.
Perceba que o nome “Lao-Tsé” não é um nome próprio, mas apenas um ape-
lido de algum praticante dessa religião. No entanto, enfatizamos que isso não
é um problema para um taoista, visto que sua doutrina não está vinculada a
uma pessoa, um autor ou sábio, mas a um conhecimento presente na realidade:
A pessoa de Lao-Tsé não é importante, nem a época em
que viveu, pois seu ensinamento é totalmente atemporal.
A permanência de sua obra, continuidade de uma sabe-
doria que não é de sua autoria, mas imemorial (apenas
meditada e interpretada por ele), coloca-o numa corrente
de “guru” de todas as épocas, profetas, e super-homens.
Jamais quis aparecer, e o mais notável sobre ele, na pouca
informação histórica que dele nos resta, é o seu desapa-
recimento! Diz a história esotérica que, tendo realizado
o Tao, sumiu, a matéria reabsorvida no espírito; a Obra
cumprida, desvanecer-se... (LIMA, 2009, p. 9).

Na citação em seguida poderemos observar como o Tao-Te-King nos oferece


alguns caminhos para o homem se religar ao absoluto:
Conserva o Vazio Absoluto
E a Paz Perfeita permanecerá
Todas as coisas têm uma mesma origem
E dela as contemplamos a retornar
Todas as coisas emanam, florescentes
E cada uma delas retorna à sua origem
Regressar ao seu princípio é repousar
Repousar é encontrar novo destino
O regresso ao destino se chama eternidade
O que conhece o eterno, se chama iluminado
O que desconhece o eterno encontra a miséria
Quem conhece a eternidade, tudo possui
Quem é justo com os demais, é soberano
Quem é soberano, é semelhante ao Supremo
O Supremo é o caminho do Tao
Alcançando o Tao, terá vida eterna
E ainda que seu corpo morra, nunca perecerá (LAO-TSÉ,
2009, p. 49).

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168  P O V O , C U LT U R A E R E L I G I Ã O

A questão da autoria de um ensinamento, um pensamento, uma obra es-


crita ou obra de arte é uma necessidade moderna. Até mesmo no Ocidente,
temos obras das mais variadas formas cuja autoria não conseguimos identificar
precisamente, mas nem por isso elas perderam seu valor universal. Portanto,
o Tao-Te-King é um dos escritos fundamentais da doutrina taoista, visto que
foi uma das primeiras tentativas de organizar as várias doutrinas transmitidas
por muitos séculos da cultura oriental. Mas qual é o ensinamento básico desse
livro? Quais assuntos ele aborda?
Ainda segundo o Tao-Te-King, há três grandes forças no Universo: a Terra, o
Céu e a “ponte” entre os dois, o Homem. Daí a importância, em várias civili-
zações, inclusive a chinesa, do rei-sacerdote, ou pontífice (isto é, o artífice das
pontes): a harmonia entre o Céu e a Terra era garantida pelo terceiro elemento,
o humano, regulado entre eles (LIMA, 2009, p. 13).
Não podemos esquecer que quase todas as tradições religiosas possuem
a mesma interpretação: o homem é o ser capaz de ligar o finito ao infinito.
Um breve contato com o Tao-Te-King nos indica também a transmissão desse
conhecimento. Encontramos esse entendimento até mesmo no platonismo.
Obviamente que cada tradição, cultura ou religião expressa esse conhecimento
de uma forma, mas conseguimos localizá-lo em todas as tradições.

Para saber mais


Um importante autor francês sobre a civilização antiga chinesa foi Marcel Granet (1884-1940).
Destacamos as obras O pensamento chinês, A civilização chinesa e A religião dos chineses
como importantes estudos para compreendermos o taoísmo. No entanto, advertimos ao leitor
que essas obras apresentam uma visão um pouco preconceituosa do Ocidente para o Oriente.
Mesmo assim, esses estudos fornecem boas informações das tradições orientais.

Questões para reflexão


Quais são as principais dificuldades que o homem ocidental possui
para a compreensão e o diálogo com as tradições orientais? Esse
intercâmbio pode ser frutífero para ambas as partes?

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R e l i g i õ e s o r i e n t a i s  169

Atividades de aprendizagem
1. Leia o texto a seguir e assinale a alternativa correta sobre o taoísmo:
Lao-Tsé é tido como o “pai” do taoísmo, assim como
Hermes é o “pai” do hermetismo. O que se aceita
usualmente como “taoísmo” não vem a ser exata-
mente, ou unicamente, o conteúdo do Tao-Te-King.
Entende-se por este termo um animismo xamânico
e uma magia tradicional, pré-histórico, que não
abandona nunca nenhum povo, constituindo-se no
potencial de crença religiosa básica que se torna
mais evidente em épocas de dissolução da civiliza-
ção. Quando a civilização se recristaliza numa nova
fase, o animismo volta a segundo plano, bem ou mal
compreendido pela nova forma religiosa, o novo
arquétipo espiritual dominante (LIMA, 2009, p. 9).

a) É uma religião de fácil entendimento, pois apresenta um pequeno


livro escrito que trata das relações comerciais dos chineses.
b) Podemos afirmar que a expansão comercial da China nas últimas
décadas se deve ao uso restrito e atento que eles fizeram dos
ensinamentos contidos na filosofia de Lao-Tsé.
c) O taoísmo é uma religião praticada na China que teve como
grande transmissor Lao-Tsé.
d) O taoísmo foi incentivado pelo governo comunista, visto que, no
período da revolução cultural, Lao-Tsé foi o ministro da cultura
no governo chinês.
e) Uma das grandes dificuldades que encontramos para estudar
o taoísmo é o fato de se tratar de uma religião que não é mais
praticada.
2. De acordo com os conteúdos apresentados nesta seção, obser-vamos que
o taoísmo se apresenta como uma das principais tra-dições religiosas da
China. Produza um pequeno texto sobre as principais características do
taoísmo e as estruturas apresentadas no Tao-Te-King.

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170  P O V O , C U LT U R A E R E L I G I Ã O

Seção 4  Xintoísmo
O xintoísmo é uma prática religiosa que nasceu e é praticada majorita-
riamente no Japão. Apresenta como fundamento básico o culto a Kami — ao
espírito, à essência, à natureza e a divindade. Trata-se de espíritos ligados às
forças da natureza como a água, o fogo, o vento, a terra, a montanha e outros
elementos naturais. Os Kami também podem se referir aos espíritos de homens
exemplares da tradição japonesa. O entendimento desses aspectos do xintoísmo
fornece bons estudos para o historiador compreender a dicotomia dessa socie-
dade que tanto cultua a natureza e que ao mesmo tempo nos últimos séculos
experimentou um avanço tecnológico e industrial muito grande.
Os ensinamentos contidos no xintoísmo estão vinculados à sabedoria
de tempos remotos que foram transmitidos oralmente e que, assim como o
taoís­mo e o hinduísmo, não conseguimos encontrar uma data de sua fundação.
Por se tratarem de religiões que se apresentam como ligadas às estruturas da
natureza, o fato de não encontrarmos autores, ou portadores dessa doutrina
não promove nenhum demérito. Essa é uma característica que você deve ter
percebido, caro aluno, que encontramos em todas as tradições orientais que
estudamos em nossa unidade. Muitas vezes, o método do historiador tende a
desprezar esses elementos, pois prefere manter sua atenção em documentos
datados, carimbados, com autores definidos de biografia precisa. Contudo,
podemos entender que o estudo dessas religiões de características tão próprias
se apresenta como um desafio instigante para reelaborarmos nossos métodos,
pesquisas e domínios do campo historiográfico.
Durante sua história, a prática do xintoísmo foi um pouco prejudicada no
Japão, principalmente depois do século VI d.C., com a expansão do budismo.
Muitas vezes, é bom salientarmos, encontramos concepções doutrinais muito
parecidas entre esses dois campos religiosos. Durante a relação entre essas duas
religiões tivemos uma alternância entre período de paz e de disputas acirradas.
É comum encontrarmos no Japão a celebração de festas xintoístas quando
uma criança nasce e a celebração fúnebre baseada no budismo exercida pelo
mesmo praticante. O que para nós pode parecer uma contradição, para eles é
um simples aspecto de uma mesma verdade contemplada.
A palavra “Shinto” significa essencialmente “Caminho dos deuses”. Isso
indica que essa é uma religião que se apresenta como uma via de acesso a uma

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R e l i g i õ e s o r i e n t a i s  171

espiritualidade. Alguns estudiosos estabelecem uma relação desses termos


com o Tao e afirmam que essencialmente possuem o mesmo significado. O
xintoísmo não é considerado como uma religião desde suas primeiras práticas,
pois se tratava de rituais, ensinamentos e métodos dispersos sem uma unidade
de práticas definidas. Somente com alguns escritos fundamentais do século
VII d.C. é que o xintoísmo passou a existir com certa identidade. Esses escritos
falavam sobre as colheitas, as famílias e a natureza do Japão. Muitos praticantes
do xintoísmo no Japão são adeptos de outras religiões como o taoísmo, o bu-
dismo e confucionismo. Isso torna um pouco difícil a tentativa de contabilizar
a quantidade exata de praticantes dessa religião, mas, mesmo assim, podemos
perceber sua extrema importância na cultura japonesa. Alguns pesquisadores
apontam um caráter politeísta na prática xintoísta. Contudo, devemos salientar
que essa é uma questão muito complexa de ser resolvida. Apesar de admitirmos
a existência de muitas divindades distintas e adoradas pela tradição japonesa,
podemos observar que elas são ligadas e fundamentadas por um princípio único
e ordenador, o que pode nos apontar também para uma prática monoteísta.

Para saber mais


Um dos principais livros da tradição do xintoísmo é o Kojiki, também conhecido como
Furukotofumi. Nele, temos a história do Japão antigo, de suas lendas, folclore e suas his-
tórias tradicionais. O livro foi escrito em chinês, mas possui algumas expressões em japonês.
Ainda não encontramos traduções adequadas no Brasil desses escritos, o que dificulta
nossos estudos.

As festas comemoradas pelo xintoísmo estão ligadas às estações do ano,


à natureza e são celebradas nos templos sagrados dotados de grande beleza.
Observe que encontramos essas práticas em muitas tradições antigas. Esse é
um elemento que contribui para a perspectiva que entende o xintoísmo como
uma reunião de práticas tribais japonesas.
O xintoísmo é considerado também uma religião de Estado, portanto, nas
principais festividades temos feriados nacionais. A principal divindade xintoísta
é Amaterasu, considerada a deusa do Sol. Conta-nos a tradição que foi essa
deusa que transmitiu todos os conhecimentos aos japoneses sobre a produção
do arroz — alimento básico da cultura nipônica. Mais uma vez, observamos
que a presença do simbolismo do Sol é uma constante em quase todas as tra-
dições religiosas.

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172  P O V O , C U LT U R A E R E L I G I Ã O

Questões para reflexão


É possível mantermos a integridade de tradições milenares como o
xintoísmo em contextos modernos? Nas últimas décadas o Japão passou
por um rápido processo de industrialização, urbanização e formação
do capitalismo. O xintoísmo conseguiu resistir a todas essas mudanças?

As orações da tradição xintoísta servem para ligar o homem ao Kami. Aliás,


por mais diferentes que as doutrinas e práticas religiosas possam parecer, sempre
encontramos elementos de unidade entre elas. A prática da oração é um deles,
visto que em todas as tradições religiosas identificamos esse elemento como
parte integrante e fundamental de seus ensinamentos. Essas orações são pedidos
de graça, agradecimentos, culto aos elementos da natureza. O homem deve se-
guir o michi que é entendido como o curso da natureza. Esse caminho coloca o
homem diante da pureza e o retira do pecado. Essas orações são realizadas nos
templos ou nas casas. Devemos destacar que os templos xintoístas são dotados
de grande beleza. Uma rápida pesquisa na Internet poderá confirmar o que
dizemos. No Brasil, temos alguns templos xintoístas que são abertos à visitação.
Os sacerdotes xintoístas são chamados de kannushi. Eles são considerados
uma ponte entre os Kami e os homens. Não praticam o celibato e podem se
casar. São, assim, escolhidos pelos fiéis para organizarem as funções sacerdo-
tais e rituais no templo — essa função também é exercida pelas mulheres. Sua
prática não é marcada pelo discurso, pregação ou pela tentativa de converter
outras pessoas ao xintoísmo. Talvez isso explique o motivo de o xintoísmo per-
manecer muito restrito ao Japão, não encontrando uma prática significativa em
outras nações. A mulher também desempenha o papel de mico. Essa função
é exercida por mulheres virgens que auxiliam os sacerdotes e podem desem-
penhar essa função por cinco a dez anos. Os santuários xintoístas podem ser
locais, particulares ou nacionais.

Para saber mais


O livro Nihonshoki ou Yamatobumi é o segundo escrito mais antigo da história do Japão. Foi
apresentado oficialmente no século VIII pelo príncipe Tonerinomiko. Além de serem importantes
fontes da tradição xintoísta, se apresentam como uma excelente documentação de pesquisa
para o historiador.

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Questões para reflexão


É possível estabelecermos algum paralelo entre o xintoísmo e as
tradições semíticas? Quando o xintoísta utiliza o termo “natureza”,
podemos ter o mesmo entendimento que a modernidade ofereceu a
esse conceito?

Atividades de aprendizagem
1. Sabemos que o xintoísmo é uma importante prática religiosa e filosó-
fica da tradição japonesa. Dentre as alternativas a seguir, qual delas
apresenta informações precisas sobre a prática do xintoísmo:
a) O xintoísmo é uma religião muito praticada por ateus no Ocidente,
visto que, para praticá-la não se faz necessário acreditar em nada
metafísico, bastando acreditar nos componentes físicos e químicos
dos seres como afirma a tradição milenar japonesa.
b) O xintoísmo exerceu forte influência sobre as tradições monote-
ístas — judaísmo, cristianismo e islamismo — fornecendo-lhes
um conceito preciso de organização e exploração dos recursos
naturais de maneira eficaz.
c) O xintoísmo é uma religião que nasceu no Japão e apresenta uma
ligação muito forte na observação de elementos da natureza e na
adoração dos Kami.
d) Depois dos ataques de Hiroshima e Nagazaki, a religião xintoísta
perdeu sua eficácia, visto que, muito japoneses ficaram desilu-
didos com sua religião e para não perder essa prática o governo
japonês transformou-a em uma obrigatoriedade estatal.
e) Podemos entender o xintoísmo como uma ramificação do hinduís­mo,
pois, as duas religiões seguem os mesmos livros sagrados.
2. Sabemos que as tradições religiosas se apresentam como um propício
campo de pesquisa para o historiador. Sendo assim, podemos afirmar
que o xintoísmo é:

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a) Uma religião que liga o homem aos aspectos materiais da vida,


isso nos faz entender por que os japoneses se deram tão bem nos
processos capitalistas da Revolução Industrial.
b) Uma religião que promove a desigualdade social no Oriente, pois
tem como fundamento da divisão da sociedade em ricos, pobres
e miseráveis, baseando-se na observação dos elementos naturais.
c) Uma filosofia de vida aberta a todas as interpretações, isto é, faci-
lita seu estudo, pois como não possui uma doutrina fixa, podemos
interpretá-la de qualquer forma.
d) Uma religião ligada à natureza e ao culto de Kami.
e) Uma religião muito praticada no sul do Brasil, pois foi trazida pelos
imigrantes japoneses do século XIX e XX e praticada rapidamente
por italianos, espanhóis e alemães.

Fique ligado!
Nesta unidade, desenvolvemos importantes conceitos sobre as práticas
das religiões orientais. Primeiro, vimos com René Guénon apontamentos
que indicavam algumas dificuldades conceituais e metodológicas para
iniciarmos com segurança nosso estudo. Vimos como o hinduísmo é uma
prática complexa com escritos tradicionais que nos reportam a conhe-
cimentos imemoriáveis que se mantêm no tempo. Esses conhecimentos
são práticas religiosas que regulamentam as estruturas sociais da Índia. O
budismo foi colocado como uma prática de ascese espiritual iniciada por
Buda que encontrou rapidamente uma série de seguidores. Vimos como o
budismo saiu da Índia e influenciou de maneira direta a tradição religiosa
no Japão. Analisamos, também, os preceitos básicos do taoísmo e a sua
importância para a formação cultural da China. Por fim, vimos como a
prática do xintoísmo procura ligar o homem aos elementos fundamentais
da natureza e assim colocá-lo diante das forças que constituem o universo.

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R e l i g i õ e s o r i e n t a i s  175

Para concluir o estudo da unidade


Ao realizar uma pesquisa sobre os povos orientais não se esqueça de
estar atento às nossas diferenças. Acreditamos que depois dos autores
que trabalhamos nesta unidade esse aspecto foi facilitado, pois eles nos
mostraram vários pontos que não podemos esquecer e distorcer ao estu-
darmos essas antigas tradições. Essas religiões ainda estão muito distantes
da nossa cultura, e para estabelecermos um contato mais próximo e pro-
dutivo entendemos que o primeiro passo que precisamos dar seja o de
conhecer melhor as práticas religiosas e a cosmovisão apresentada por
elas. Apesar das aparentes diferenças que apontamos entre as tradições
orientais e consequentemente com a nossa tradição, conseguimos encon-
trar um ponto semelhante entre todas as práticas religiosas: a tentativa ou
a proposta de ligar o homem ao absoluto. Para realizar isso, cada religião
faz uso de símbolos próprios e adota práticas que se afirmam como ne-
cessárias, mas podemos afirmar que o ponto de chegada será sempre o
mesmo. Esse é um aspecto muitas vezes negligenciado pelos estudiosos
das doutrinas orientais.

Atividades de aprendizagem da unidade


1. O estudo das religiões está diretamente relacionado com a compreen-
são de Povo e de Cultura. Considerando as abordagens que estudamos
sobre a temática “religiões orientais”, assinale a alternativa correta:
a) O taoísmo, o xintoísmo, o hinduísmo e o budismo são religiões
originárias do Oriente que marcam profundamente a cosmovisão
e as estruturas civilizacionais desses povos.
b) O judaísmo, o cristianismo e o islamismo são religiões chamadas
de politeístas por cultuarem um único Deus. As três têm origem
na Índia e possuem uma forte ligação com o culto dos elementos
naturais.
c) O ateísmo é uma postura filosófica que consiste na adoração
de deuses hindus. Surgiu na Antiguidade greco-romana e ganhou

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força no século XVIII na Índia, com a difusão das teorias hindus,


budistas, taoistas e xintoístas que pregavam o culto aos elementos
físicos e químicos da natureza.
d) Podemos encontrar, no Brasil, atualmente, seguidores do hinduís­mo
e do budismo em todas as classes sociais. Desde o período co-
lonial, os brasileiros mantêm contato com essas religiões, que
passaram por períodos de maior aceitação e outros de rejeição
social.
e) A Torá, a Bíblia e o Alcorão são, respectivamente, os livros sagrados
dos seguidores do hinduísmo, do budismo e do taoísmo.
2. De acordo com os conhecimentos obtidos na unidade de religiões
orientais, qual é o significado que podemos atribuir para a palavra
“Buda”?
a) O crucificado — aquele que morreu em nome dos nossos pecados.
b) O estigmatizado — aquele que recebeu dos deuses uma marca
de sua santidade.
c) O furtado — aquele que era portador de uma riqueza.
d) O iluminado — aquele que atingiu o estado de plenitude espiritual.
e) O desprezado — aquele que não foi escutado por ninguém.
3. Leia o fragmento a seguir e assinale a alternativa correta: “Este é o
único modo de estudar as doutrinas que pode ser aproveitável; para
compreendê-las, é preciso, por assim dizer, estudá-las ‘de dentro’,
enquanto os orientalistas sempre se limitaram a considerá-las “de
fora” (GUÉNON, 2009, p. 40).
a) O trecho aponta para a necessidade de nos afastar dos aspectos
metafísicos das religiões para compreendermos melhor suas
práticas.
b) O trecho mostra a preocupação de René Guénon ao afirmar que
o único conhecimento válido sobre as religiões é o produzido de
dentro da Academia.
c) O trecho mostra a preocupação de René Guénon ao afirmar que
o único conhecimento válido sobre as religiões é o produzido de
fora da Academia.

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R e l i g i õ e s o r i e n t a i s  177

d) Podemos perceber a preocupação de Guénon em nos mostrar que


toda religião de ser estudada pelos aspectos internos que ele nos
oferece.
e) O trecho selecionado nos apresenta a falta de contato adequado
dos orientais para compreender o pensamento moderno europeu.
4. Leia o trecho do fragmento a seguir e assinale a resposta correta sobre
o budismo:
Um monge jardineiro se aproximou do mestre ex-
pressando seu desejo de ser iluminado pelo zen e
o mestre lhe respondeu: “Volte quando não houver
nada em volta e então lhe responderei”. No dia se-
guinte advertiu que não havia nada por perto e vol-
tou a implorar ao mestre para revelar-lhe o segredo.
O mestre respondeu então: “Aproxime-se mais”
e, quando o obediente monge fez isso, o mestre
sussurrou ao ouvido: “O zen é algo que não pode
expressar-se com palavras” (SUZUKI, 2009, p. 22).

a) Podemos afirmar que o budismo é uma religião que é impossível de


ser praticada, pois não podemos entender no que eles acreditam.
b) Podemos admitir que muitos conhecimentos do budismo não
podem ser transmitidos oralmente, pois devem ser apreendidos
de modo intuitivo pelo praticante.
c) Buda foi o único mestre do budismo, pois depois dele nenhum guru
foi capaz de atingir a iluminação e entender a mensagem zen.
d) O zen é composto por uma linha doutrinal escrita muito simples
de ser compreendida.
e) As transmissões dos conteúdos escritos por Buda foram perdidas, o
que tornou impossível de sabermos o que é o zen, como descreveu
a citação acima.
5. Leia o trecho a seguir e assinale a alternativa que nos fornece informa-
ções corretas sobre a prática do hinduísmo na Índia:
Na Índia antiga cada ramo do saber estava associado
a uma arte altamente especializada e a um modo de
vida, consoante com este. O saber não devia apenas ser
colhido nos livros, palestras, conversas e debates, mas
dominado por meio da aprendizagem ao lado de um mes-

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178  P O V O , C U LT U R A E R E L I G I Ã O

tre competente. Era necessário que o discípulo, dócil à


autoridade do guru, se entregasse a ele de todo coração,
sendo pré-requisitos básicos a obediência (susrusa) e a
fé absoluta (sraddha) (ZIMMER, 2003, p. 50).

a) Para realizarmos a prática correta dos aspectos esotéricos e exoté-


ricos do hinduísmo é preciso que façamos uma leitura cautelosa
dos escritos sagrados e obtenhamos os ensinamentos diretos de
um guru espiritual ao qual devemos respeito e obediência.
b) O hinduísmo deve ser praticado de modo individual, lendo as
escrituras sagradas e encontrando sua própria interpretação delas.
c) O hinduísmo dever ser praticado com a ajuda de um guru espiri-
tual que faça uma desconstrução dos ensinamentos das escrituras
tradicionais.
d) A grande dificuldade em praticarmos o hinduísmo é conseguirmos
dinheiro para pagarmos os altos custos cobrados pelos sábios hin-
dus, que fizeram de sua religião uma forma de obterem riqueza.
e) O hinduísmo é a religião mais praticada no mundo devido à
facilidade que encontramos na transmissão de seus princípios re-
alizados por mestres sempre dispostos a ensinar qualquer pessoa
que apareça.

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Referências
COOMARASWAMY, Ananda. O pensamento vivo de Buda. São Paulo: Livraria Martins Editora,
1961.
GUÉNON, René. Introdução geral ao estudo das doutrinas hindus. São Paulo: IRGET, 2009.
GUÉNON, René. O homem e seu devir segundo o Vedanta. São Paulo: IRGET, 2013.
LAO-TSÉ. Tao-Te-King: O livro do sentido da vida. São Paulo: Hemus, 2009.
LIMA, Norberto de Paula. Apresentação. In: LAO-TSÉ. Tao-Te-King. São Paulo: Hemus, 2009.
SUZUKI, Daisetsu T. Vivirel Zen. Barcelona: Kairós, 2009.
ZIMMER, Heinrich. Filosofias da Índia. São Paulo: Palas Athena, 2003.

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