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Revista FAMECOS: mídia, cultura e

tecnologia
ISSN: 1415-0549
revistadafamecos@pucrs.br
Pontifícia Universidade Católica do Rio
Grande do Sul
Brasil

Morin, Edgar
Para além do Iluminismo
Revista FAMECOS: mídia, cultura e tecnologia, núm. 26, abril, 2005, pp. 24-28
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul
Porto Alegre, Brasil

Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=495550182003

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CULTURA E SOCIEDADE

Para além do
Iluminismo* DEPOIS DA EXPLOSÃO DO RENASCIMENTO, o sé-
culo das Luzes foi um momento capital na
RESUMO história do pensamento europeu. A grande
O artigo defende uma superação complexa do Iluminismo. dialógica aberta após a Renascença, ou
Revê a trajetória da razão e do progresso, do Renascimento seja, a relação, ao mesmo tempo, antagôni-
aos dias de hoje. Fala sobre a ascensão da racionalidade ca e complementar entre fé e dúvida, razão
soberana do século XVIII; o mito da razão iluminista. Passa e religião, teve o seu ponto central em Pas-
pelo triunfo e pela crise do Iluminismo e diz que a Revolução cal, homem de fé e de dúvida. Essa grande
Francesa retoma herança do Século das Luzes. No transcor- dialógica, no século do Iluminismo, foi
rer do tempo, razão e progresso transformam-se, geram po- marcada pela preponderância (talvez hege-
sitivas ambivalências no entanto, ainda não ultrapassam o monia) da razão.
reducionismo e a fragmentação do real. É certo que o Renascimento, aconteci-
mento histórico que possibilitou a ressur-
ABSTRACT reição da filosofia não mais como serva da
Morin’s text calls for a complex overcoming of Illuminism, religião, restabeleceu e retomou o tema da
showing the shortcomings of its rationalism, its reductionist autonomia da razão oriunda dos gregos e
views and its fragmentation of the real permitiu, com Galileu, Descartes e Bacon, o
desabrochar da ciência baseada em proce-
PALAVRAS-CHAVE (KEY WORDS) dimentos empírico-racionais. Esse desen-
- Complexidade (Complexity) volvimento da ciência levou a conhecer se-
- Iluminismo (Illuminism) parando os objetos do conhecimento uns
- Razão (Rationalism) dos outros e do sujeito que conhece. Em
suma, eliminando a complexidade.
Essa razão, que já se manifestava nas
ciências, tornar-se-á soberana ao longo do
século XVIII francês. Nessa época, a racio-
nalidade vai desenvolver-se como razão
construtiva das teorias e como razão crítica.
Os mitos e as religiões serão objetos dessa
racionalidade crítica, mas essa crítica será,
de certa maneira, cega, pois não perceberá
o conteúdo humano existente em cada mito
e em cada religião. De qualquer modo, essa
racionalidade construirá as suas teorias, es-
pecialmente as científicas, e a idéia de um
universo totalmente acessível ao racional,
assim como a concepção de uma humani-
dade guiada pela Razão.
Assim, a Razão soberana converte-se
ela mesma em razão providencial e em
mito quase religioso, alcançando até mes-
mo um momento transitório de verdadeira
deificação com a instituição por Robespier-
Edgar Morin re do culto à “Deusa” Razão. Nessa pers-
Filósofo, antropossociólogo. Pesquisador emérito do pectiva, a ciência torna-se a produtora do
Centro Nacional de Pesquisa Científica (CNRS), França autêntico conhecimento, ou seja, da verda-

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de. Trata-se de uma época de grande de- ho e de melhoria. A questão passa a ser
senvolvimento das ciências físicas, quími- esta: o que se perde quando se obtém um
cas e biológicas. Impõe-se então a idéia de progresso, um progresso técnico, um pro-
que o universo seria totalmente inteligível gresso material, um progresso urbanístico?
(inteligibilidade absoluta expressa pelo de- Problema, efetivamente, de enorme atuali-
mônio de Laplace, que imaginou um ser dade em nossa crise de civilização.
dotado de faculdades mentais superiores A Revolução Francesa apoiou-se si-
capaz de conhecer não apenas todos os multaneamente no triunfo e na crise do Ilu-
acontecimentos do passado, mas também minismo. No triunfo, graças à mensagem
todos os acontecimentos do futuro). de emancipação de 1789; na crise, pelo ter-
A Razão guia a humanidade na dire- ror, esse culto da razão. Falar disso faz pen-
ção do progresso e assim o Progresso tor- sar em Alejo Carpentier, que, no seu mag-
na-se a lei inexorável da história. Essa no- nífico romance O Século das Luzes, observou
ção de lei inexorável foi formulada por que o Iluminismo chegou às Antilhas junto
Condorcet. O futuro ganha a aura de radio- com a guilhotina.
so, e o próprio humanismo avança com Quanto ao romantismo, pode-se dizer
base em dois aspectos: 1) Deus estando su- que ele é o jorro daquilo que foi rejeitado
plantado considera-se o homem como su- pelo Iluminismo. O espírito de comunida-
jeito do universo e que, por isso mesmo, de, a relação mística com a natureza, as vir-
deve dominá-lo (Descartes, Buffon e Marx tudes do fenômeno religioso, enfim, coisas
estabelecem como missão da ciência o con- que realmente aparecem como uma espécie
trole da natureza); 2) todos os seres huma- de reabilitação da Idade Média. Trata-se
nos têm a mesma dignidade. Seja quem for também de um sentimento muito profundo
merece o mesmo respeito. Essa teoria com- da natureza comportando a beleza do no-
porta a liberdade e a emancipação. O ano de turno (Edward Young escreveu As Noites na
1789, com a expressão dos direitos do Ho- metade do século XVIII). Dá-se a valoriza-
mem proclamados pela Revolução France- ção da paixão em detrimento da razão.
sa cheia de tantas promessas, pode ser real- Mas o romantismo tardio, ou melhor,
mente descrito, de acordo com Hegel, o romantismo dos românticos que envelhe-
como “um esplêndido nascer do sol”. ceram como Victor Hugo ou Lamartine, ou
Já com Rousseau o tema da afetivida- o romantismo dos jovens da segunda meta-
de (da sensibilidade) passa a opor-se à ra- de do século XIX, como Rimbaud, carrega
zão e indica que sozinha a razão tem um a mensagem das Luzes e, de toda maneira,
caráter abstrato e quase inumano. Rous- trabalha pelo progresso humano inscrito na
seau revela do seu jeito o aspecto de abs- emancipação dos oprimidos.
tração existente na ruptura entre o humano O socialismo, sobretudo o pensamen-
e o natural e dá à natureza uma importân- to de Karl Marx, vai recuperar a idéia de
cia quase matricial, maternal. Voltaire, sar- progresso, que deixará de ser visto como
casticamente, dizia que Rousseau queria uma progressão linear para ser compreen-
“nos fazer andar de quatro patas”. Para dido como o resultado do conflito e da luta
Rousseau a civilização acarreta a degrada- de classes, o que permitiria à classe explo-
ção humana. Assim, concebe o mito do ho- rada e majoritária, o proletariado, não ape-
mem natural que pressupõe não a existência nas libertar-se, mas também criar a socieda-
de uma espécie de Jardim do Éden, mas po- de sem classes; em paralelo, o desenvolvi-
tencialidades humanas inibidas pelas civili- mento das forças produtivas levaria ao tri-
zações, reprimidas por nossas sociedades. unfo da tecnologia e da abundância. A re-
Disso resulta um questionamento do volução socialista universal seria o meio, a
progresso, que não é mais considerado so- etapa, pela qual o progresso atingiria os
mente como uma fonte permanente de gan- seus fins. Assim como o mito e a religião

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contaminaram a concepção de Razão do reviravolta. A ciência é certamente capaz
fim do século XVIII, pode-se dizer também de elucidação, mas, ao mesmo tempo, pro-
que a religião infiltrou-se profundamente voca cegueira na medida em que ainda não
na promessa marxista, pois, de algum consegue revolucionar-se a ponto de ultra-
modo, a realização do novo mundo apre- passar o reducionismo e a fragmentação do
senta-se como um verdadeiro messianis- real impostos pelo fechamento disciplinar.
mo. O Messias seria o proletariado indus- Ela é incapaz de fornecer visões de conjun-
trial; o apocalipse, a revolução; a boa nova, to. Mas podemos esperar de fato que uma
o triunfo da sociedade sem classes. nova ciência se desenvolva, regenerando a
Podemos ver também, na seqüência que se faz hoje.
da Revolução Francesa, que a visão laica Da mesma forma, pode-se pensar que
republicana (sem aderir à concepção revo- a tecnologia produtora de máquinas obe-
lucionária) do fim do século XIX e do co- decendo a uma lógica puramente mecânica
meço do século XX retoma a herança do – lógica, de resto, que os tecnocratas e os
Iluminismo. Os professores, especialmente, econocratas aplicaram à totalidade das so-
são os portadores dessa mensagem em ciedades – produzirá, transformando-se,
oposição aos párocos das aldeias e dos po- máquinas melhores, mais sensíveis às com-
voados. Essa mensagem laica diz o seguinte: plexidades. Pode-se imaginar também que
o progresso é impulsionado pelo desenvol- a economia não está condenada à lei neoli-
vimento da razão, da ciência, da educação. beral da competição e comporta outras
Evidentemente a razão só poderia le- possibilidades como o comércio igualitá-
var ao progresso, sendo que a ciência e rio, a economia solidária ou simplesmente
educação só poderiam produzir benefíci- a economia cidadã.
os... Todas essas evidências, ou todas essas De qualquer maneira, o progresso
soluções, são vistas hoje como problemáti- como certeza está morto. Pode-se até mes-
cas e mostram-se terrivelmente obscureci- mo afirmar que estamos diante de uma
das: vemos que cada um desses termos su- grande incerteza. Há uma possibilidade de
postamente benéficos revela agora ambiva- progresso, mas o progresso sempre precisa
lências, uma mescla de bem e de mal. A ser redimensionado, regenerado. Assim,
ciência concebeu a bomba atômica e gerou por exemplo, a tortura, que desaparecera
Hiroshima e Nagasaki. Criou a possibilida- da Europa no século XIX, retornou em to-
de de produzir morte em massa. No campo dos os países europeus no século XX. Ve-
da biologia, é capaz de produzir manipula- mos, hoje, sobretudo a aliança de duas bar-
ções genéticas utilizáveis para o melhor ou báries: a velha barbárie da guerra que, com
para o pior. O mesmo acontece com as tec- as guerras de religião, guerras étnicas,
nologias. guerras nacionais, guerras civis, volta com
As forças científicas/técnicas/econô- força trazendo tudo o que ela comporta de
micas descontroladas arrastam os seres hu- ódio, desprezo, destruição e mortes; e a
manos para degradações irreversíveis, co- barbárie tecnicista, barbárie abstrata do cal-
meçando pela destruição da biosfera cujas culismo que ignora o humano do ser hu-
conseqüências extremamente nefastas ain- mano, ou seja, sua vida, seus sentimentos,
da serão sentidas pela humanidade. seus impulsos, seus sofrimentos.
Digamos que hoje o quadrimotor Tudo isso nos remete à idéia de que
constituído por ciência, técnica, economia e precisamos superar o Iluminismo.
lucro, supostamente produtor de progres- Temos de buscar um para além das
so, impulsiona a nave espacial Terra, mas Luzes. Quando digo “superar”, refiro-me
não há piloto. A nave sofre uma dupla ao sentido hegeliano de aufheben, que signi-
ameaça mortal: a morte da biosfera e a mor- fica integrar aquilo que é superado, inte-
te nuclear. Trata-se de uma extraordinária grar aquilo que existe de válido no pro-

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gresso, mas com algo mais. O que é esse so com o princípio da termodinâmica. Te-
para além do Iluminismo? mos de compreender que o universo é
Significa, antes de tudo, que se deve complexo e sempre comportará para nossa
superar, reexaminado-a, a razão como raci- mente incerteza e contradição. Devemos
onalidade abstrata; superar o primado do compreender que “é obscura a própria fonte
calculismo e da lógica abstrata. Devemos de onde nasce a luz”, como dizia João da
livrar-nos da razão fragmentada, tomar Cruz.
consciência das doenças da razão, superar Precisamos compreender que o im-
a razão instrumental de que fala Adorno, a previsível e o improvável acontecem com
serviço das piores influências assassinas. freqüência. Temos de superar o progresso
Temos até mesmo de superar a idéia de determinista, o progresso em tudo necessá-
razão pura, pois não existe razão pura, não rio, ou seja, na concepção da vida, na con-
há racionalidade sem afetividade. Precisa- cepção da história, na concepção do univer-
mos de uma dialógica entre racionalidade so. Dois exemplos mostram como o impre-
e afetividade, uma razão mesclada com o visto acontece: nas Guerras Médicas, quan-
afetivo, uma racionalidade aberta. do a pequena Atenas conseguiu duas vezes
Precisamos fortalecer essa corrente conter o gigantesco império persa; na Segun-
minoritária no mundo europeu ou ociden- da Guerra Mundial, diante de Moscou, no
tal, da racionalidade autocrítica, que de fim de 1941, quando um inverno inesperada-
Montaigne a Levi-Strauss reconhece os mente precoce bloqueou o exército nazista.
seus limites e comporta a autocrítica do Precisamos abandonar a idéia abstrata
Ocidente. Em outras palavras, precisamos do humano contida no humanismo. Idéia
de uma racionalidade complexa que en- abstrata por reduzir o humano a homo sapi-
frente as contradições e a incerteza sem afo- ens, a homo faber, a homo economicus. O ser
gá-las ou desintegrá-las. Isso significa uma humano também é demens, faber e mithologi-
revolução epistemológica, uma revolução cus, economicus e ludens, prosaico e poético,
no conhecimento. Temos de tentar, de re- natural e metanatural. Precisamos saber
pudiar a inteligência cega que só vê frag- que o universalismo se tornou concreto na
mentos separados, incapaz de ligar as par- era planetária em que se pode descobrir
tes e o todo, o elemento e o seu contexto, que todos os seres humanos têm não ape-
incapaz de conceber a era planetária e de nas uma comunidade de origem, mas tam-
compreender o problema ecológico. Pode- bém uma comunidade natural na diversi-
se dizer que a tragédia ecológica que já co- dade, assim como uma comunidade de
meçou é a primeira catástrofe provocada destino. O humanismo abstrato, então,
pela carência fundamental do nosso modo pode tornar-se concreto.
de conhecimento e pelo desconhecimento O progresso depende também, de
que ele comporta. agora em diante, da consciência humana. O
Portanto, estamos vivendo a decadên- progresso conquistado deve incessante-
cia da concepção luminosa da racionalida- mente regenerar-se, atualizar-se. A possibi-
de (ou seja, da concepção que comporta lidade de progresso existe no que Marx
uma luz ofuscante e dissipa as sombras chamava de “homem genérico”, nas poten-
com idéias claras e distintas, presa à lógica cialidades inibidas por nossas sociedades,
do determinismo) que, por si mesma, igno- pela especialização, pela divisão do traba-
ra a desordem e o acaso. Precisamos conce- lho, pela esclerose... Essa idéia, existente
ber uma realidade complexa, feita de um em Rousseau, é extremamente importante
coquetel sempre mutante de ordem, desor- em Marx. Em nossas sociedades, somente
dem e organização. Devemos saber que há os poetas, os artistas, os inventores – como
um princípio de organização, mas também seres desviantes – são capazes de ser cria-
um princípio de desorganização no univer- dores e de gerar alguma coisa. Ora, vive-

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mos um momento em que se esboça a pos-
sibilidade de tentar reformar alguma coisa,
ir para além do Iluminismo, integrando-o.
Devemos conjugar quatro vias que até
agora estiveram separadas. A primeira via
é a reforma da organização social, que não
pode ser abandonada nem ser a única via
do progresso. A segunda é da reforma pela
educação, que deve acontecer em profundi-
dade para ajudar na evolução das mentes e
dos espíritos. A terceira via é uma reforma
de vida. A quarta via é a reforma ética pro-
priamente dita.
Precisamos conceber que se há pro-
gresso verdadeiro, há possibilidade de me-
tamorfose.
Se houver uma sociedade-mundo, ela
será o resultado de uma metamorfose, pois
será uma sociedade de novo tipo e não
uma gigantesca reprodução dos nossos Es-
tados nacionais atuais. Isso é certamente
improvável, mas durante toda a minha
vida acreditei no improvável e, às vezes,
minha esperança foi atendida. Nossa espe-
rança é uma chama dentro da noite: não há
luz ofuscante; só há fachos de luz dentro da
noite .

Nota

* Texto inédito cedido pelo autor à Revista


Famecos. Tradução de Juremir Machado da
Silva

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