Você está na página 1de 155

Secretaria da Modernização Administrativa

e dos Recursos Humanos – SMARH


Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul - APERS

RESISTÊNCIA EM ARQUIVO
Memória e História da Ditadura
Governado do Estado do Rio Grande do Sul
Governo José Ivo Sartori

Secretaria da Modernização Administrativa e dos Recursos Humanos


Secretário Eduardo Oliveira

Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul


Diretora Débora Flores

Coordenação do Projeto Blog Resistência em Arquivo


Nôva Marques Brando

Equipe do Projeto e Autores dos Textos


Cíntia Brogni Oliveira – Estagiária APERS/Graduanda História
Clarissa Sommer Alves – Técnica em Assuntos Culturais APERS/Historiadora
Gabriel Amorim Chaves – Estagiário APERS/Graduando História
Guilherme Tortelli – Estagiário APERS/Graduando História
Nôva Marques Brando – Técnica em Assuntos Culturais APERS/Historiadora
Vanessa Menezes – Historiadora APERS

Organizadores da Coletânea
Nôva Marques Brando
Bianca da Silva Machado – Estagiária APERS/Graduanda História

Capa
Nôva Marques Brando

Diagramação
Nôva Marques Brando
Bianca da Silva Machado

Revisão
Angelita Santos da Silva – Técnica em Assuntos Culturais APERS/Letras

R585r Rio Grande do Sul. Secretaria de Recursos Humanos e Modernização


Administrativa. Departamento de Arquivo Público.
Resistência em arquivo : memória e história da ditadura : coletânea de posts
do blog temático resistência em arquivo [recurso eletrônico] /
Organização de Nôva Marques Brando e Bianca da Silva Machado. –
Documento eletrônico. – Porto Alegre : APERS, 2015.
154 p. : il.

Modo de acesso: World Wide Web:


<https://arquivopublicors.wordpress.com/publicacoes>.
ISBN: 978-85-64859-07-4
Demais autores: Cíntia Brogni Oliveira, Clarissa Sommer Alves,
Gabriel Amorim Chaves, Guilherme Tortelli, Nôva Marques Brando,
Vanessa Menezes.

1. Ditadura militar – Brasil - História. 2. Memória. 3. Direitos humanos. I.


Brando, Nôva Marques, org. II. Machado, Bianca da Silva, org. III. Arquivo
Público do Estado do Rio Grande do Sul IV.t.

CDU – 981:321.64
Catalogação elaborada pela Biblioteca da Secretaria da Administração e dos Recursos
Humanos/SARH, com dados fornecidos pelo(a) autor(a). Bibliotecária responsável: Adriana
Arruda Flores, CRB10-1285.

As imagens e os vídeos que compõem a coletânea estão disponíveis para o público na internet e são aqui
utilizados com objetivos educativos, sem qualquer finalidade lucrativa.
Sumário
Introdução 6

1. Ditadura, Democracia e Direitos Humanos: um debate atual 8


1.1 Capitalismo e Direitos Humanos 9
1.2 Ditadura, Democracia e Direitos Humanos no Brasil 11

2. A Guerra Fria e o Anticomunismo: o contexto Pré Golpe Militar de 1964 13


2.1 O golpe no Brasil não foi um fato isolado: conjuntura nacional e a bipolarização do mundo 14
2.2 O Trabalhismo no Brasil no Pré-Golpe de 1964 16
2.3 Campanha da Legalidade 17
2.4 Movimento da Legalidade – História em Quadrinhos Legalidade 19
2.5 Resistência no Pé: Samba da Legalidade 20
2.6 Reformas de Base, uma proposta que antecedeu o Golpe Militar 21
2.7 Os Centros Populares de Cultura no período Pré Golpe de 1964 23
2.8 O Movimento de Educação Popular no contexto do Pré Golpe de 1964 25
2.9 Resistência em Cordel: Ligas Camponesas e os Centros de Cultura 27
2.10 Cabra Marcado pra Morrer – Indicação de Filme 29
2.11 O espectro anticomunista ronda o Brasil – no contexto do Pré Golpe de 1964 30
2.12 O anticomunismo no cinema e na televisão – produções norte-americanas no Brasil 32

3. O Golpe Militar e Implantação da Ditadura Civil-militar Brasileira 33


3.1 Golpe de 1964: lá se vão 50 anos! 34
3.2 A Imprensa, o Golpe e a Ditadura 36
3.3 A Operação Limpeza – Primeiro Período após o Golpe de 1964 38
3.4 Ditadura e Censura 39
3.5 Censura – Pequeno Mapa do Tempo de Belchior 41

4. A Ditadura Civil-militar: Os anos que antecederam o Ato Institucional N°5 42


4.1 Organizações Partidárias 43
4.2 As Organizações Clandestinas na resistência à Ditadura Civil-militar – da história para o cinema 44
4.3 A Rádio Nacional e a Aliança de Libertação Nacional 47
4.4 Pelos Muros da Ditadura – Ações de Resistência 48
4.5 A MPB e a censura 50
4.6 É proibido proibir, diz a Tropicália no Festival da Canção! 51
4.7 Os Reis Robertos, a Jovem Guarda e a Explosão da Bomba 53
4.8 Cinema Novo – Cinema do Povo 55
4.9 Cinema Novo, por Gil e Caetano 58

5. A Ditadura Civil-militar: os anos de chumbo 59


5.1 Ufanismo e Milagre Econômico em tempos de Chumbo 60
5.2 Combate nas Trevas de Jacob Gorender – Indicação de Leitura sobre a Resistência Armada à Ditadura 63
5.3 Resistência Armada à Ditadura – Caparaó 66
5.4 Anos de Chumbo – O Sequestro do Cônsul Norte-Americano 67
5.5 Entrevista com o Cônsul que sofreu tentativa de sequestro 69

xx
5.6 Futebol em tempos de Ditadura, Correio do Povo e a Copa de 1970 70
5.7 Memórias do Chumbo – O Futebol nos Tempos do Condor 71
5.8 Indicação de Filme: Pra Frente Brasil (1982) 72
5.9 E a Revolução Meu Irmão? 73
5.10 Burlando a Censura: Julinho de Adelaide na Obra de Chico Buarque 74
5.10 Indicação de Filme: O ano em que meus pais saíram de férias (2006) 75
5.12 45 Anos do AI-5 76
5.13 APERS? Presente, professor! – Os anos de chumbo da Ditadura e a Luta Armada no Rio Grande do Sul 77

6. A Ditadura Civil-militar do lado de lá da Fronteira: o mundo dos exílios 78


6.1 Exílio e Ditaduras no Cone Sul 79
6.2 Nômades, sedentários e metamorfoses: trajetórias de vidas no exílio e Ditaduras no Cone Sul 81
6.3 Ditadura no Paraguai: Doutrina de Segurança Nacional, Terrorismo de Estado e participação na Operação
Condor 84
6.4 O Golpe de 1966 na Argentina 86
6.5 O 11 de Setembro, um atentado à democracia 88
6.6 Ditadura no Chile e Futebol 90
6.7 Indicação de Filme : Em Teu Nome (2009) 92
6.8 Indicação de Filme: Estado de Sítio (1972) 93

7. Ditaduras latinoamericanas: conexões Repressivas e Redes de Solidariedade 94


7.1 Conexão Repressiva – O Voo raso do Condor 95
7.2 Operação Condor – A Repressão Unida 97
7.3 Documentário “(A.H.F) Condor” 99
7.4 Resistência nas Fronteiras 100
7.5 A Igreja Católica na Resistência 101
7.6 APERS? Presente, professor! – Conexões Repressivas e redes de Solidariedade: repressão e resistência no
Cone Sul 102

8. Esquemas Repressivos e Tortura 103


8.1 Marcas do Terror da Ditadura 104
8.2 Tortura – Nunca Mais! 106
8.3 Indicação de documentário : Relato de uma Tortura (1971) 107
8.4 Relato de Sobrevivência – Nilce Azevedo Cardoso 108
8.5 Sem Vestígios: Como se faz um torturador? 109
8.6 Galeano e Os Filhos dos Dias 110
8.7 Zuzu Angel – A arte significando e ressignificando histórias 111
8.8 Retratos da Ausência 112
8.9 APERS? Presente, professor! – Esquemas Repressivos e Tortura 113

9. O Fim da Ditadura e o Processo de Redemocratização 114


9.1 O Fim da Ditadura e o Início do Processo de Redemocratização 115
9.2 A Luta pela Anistia e os Novos Movimentos Sociais 117
9.3 Assembleia Constituinte de 1987-88 119
9.4 Histórias inventadas e Histórias vividas – Algumas sugestões de leituras de romances ambientados no
cenário e no contexto da Ditadura 120
9.5 APERS? Presente, professor! – O Fim da Ditadura: Anistia e Abertura Política 122

10. Redemocratização: permanências, rupturas, o antigo e o novo 123


10.1 Eleições Diretas 124
10.2 O Novo Movimento Sindical 126
10.3 Novos Partidos Políticos 128
10.4 Feminismo 129
10.5 Movimentos Sociais Diversos em Não Calo, grito: memória visual da ditadura civil-
militar no Rio Grande do Sul 131
10.6 O Movimento dos Trabalhadores Sem Terra 134
10.7 APERS? Presente, professor! – O Processo de Redemocratização: Rupturas e
Permanências 136

11. Justiça de Transição: tardia e incompleta 137


11.1 Justiça de Transição 138
11.2 Comissão Especial de Indenização: o papel deste acervo junto às Comissões
Nacional e Estadual da Verdade 141
11.3 Justiça de Transição e Direito à Memória – Identificação e Ressignificação dos
Espaços de Tortura e Resistência 143
11.4 Espaços de Memória na América Latina 145
11.5 APERS? Presente, professor! – Democracia e Justiça de Transição 147

12. Memória, Verdade e Justiça 148


12.1 Há 50 anos do Golpe – tempo de reflexões, produção intelectual e debates políticos 149
12.2 APERS? Presente, professor! - A Luta por Memória, Verdade e Justiça 151
12.3 Portal Memórias da Ditadura 152
12.4 Comissões da Verdade encerram seus trabalhos. Quais serão os impactos? A
história continua! Portal Memórias da Ditadura 153

13. Considerações 154


Introdução

Em 1919, a revolucionária Rosa Luxemburgo foi assassinada em Berlim.


Ela foi arrebentada a coronhadas de fuzil pelos assassinos, e depois jogada nas águas de um canal.
No caminho, perdeu um sapato.
Alguém recolheu esse sapato, jogado no barro.
Rosa queria um mundo onde a justiça não fosse sacrificada em nome da liberdade, nem a liberdade
sacrificada em nome da justiça.
Todos os dias, alguém recolhe essa bandeira.
Jogada no barro, como o sapato.

O Sapato – Eduardo Galeano

Especialmente no ano de 2014, quando se completaram 50 anos do Golpe Militar e


da implantação de uma Ditadura Civil-militar que durou mais de 21 anos no Brasil, pudemos
vivenciar uma série de discussões a respeito da identificação, da preservação e do acesso aos
arquivos produzidos pela repressão e pela resistência à ditadura. Da mesma forma,
acompanhamos a disseminação de espaços nos quais os usos destes documentos eram
reivindicados como suporte à luta por memória, verdade e justiça.
Para o Arquivo Público do RS (APERS), o ano de 2014 não foi muito diferente. Além
dos trabalhos realizados com o Acervo da Comissão Especial de Indenização, composto por
processos administrativos de indenização aos ex-presos políticos do período, como a
elaboração do Catálogo Resistência em Arquivo e a oferta realizada pelo Programa de
Educação Patrimonial UFRGS/APERS da Oficina de Educação Patrimonial Resistência em
Arquivo: patrimônio, ditadura e direitos humanos, outras frentes foram ocupadas pela
instituição. Uma delas foi a construção e a alimentação de um blog temático chamado de
Resistência em Arquivo: Memória e História da Ditadura.
Com o objetivo de complementar as atividades pedagógicas desenvolvidas na Oficina
Resistência em Arquivo, pensou-se em mais uma ação educativa, nesse caso virtual, que
pudesse contribuir, a partir de diversos conteúdos, com a abordagem da temática da ditadura
e dos direitos humanos, nas escolas ou em outros espaços destinados ao ensino-
aprendizagem.
Foram mais de doze meses de produção de matérias para essa mídia, sob a
responsabilidade de uma equipe formada por três historiadoras e três estagiários de história,
que agora compõem essa coletânea. Organizada em quinze capítulos, o leitor encontrará aqui
um apanhado geral dos 21 anos de ditadura, seja por meio de textos contextualizadores, seja
por meio de textos pontuais sobre diferentes temas.

6
No primeiro capítulo, Ditadura, Democracia e Direitos Humanos: um debate atual,
foram elaboradas algumas reflexões conceituais a respeito da impossibilidade, das
possibilidades e dos limites de um sistema político no qual fosse pleno o respeito aos direitos
humanos. No capítulo dois, A Guerra Fria e o Anticomunismo: o contexto Pré Golpe Militar
de 1964, os textos trazem reflexões sobre a conjuntura política e social que antecedeu o
Golpe de 1964. No capítulo três, O Golpe Militar e Implantação da Ditadura Civil-militar
Brasileira, há onteúdos que dizem respeito ao Golpe em si. Depois, no quarto capítulo, A
Ditadura Civil-militar: Os anos que antecederam o Ato Institucional N°5, foram levantados
inúmeros aspectos e situações vivenciadas nos anos que antecederam o Ato institucional Nº
5, que fechou por completo o regime e que iniciou os Anos de Chumbo, tema abordado no
capítulo cinco, A Ditadura Civil-militar: os anos de chumbo. A coletânea de postagens
divulgadas no Blog também passa pelas discussões a respeito do exílio no capítulo seis, A
Ditadura Civil-militar do lado de lá da Fronteira: o mundo dos exílios. Na sequência,
matérias importantes foram construídas sobre a interligação entre as ditaduras latino-
americanas, naquilo que diz respeito à repressão e à resistência, e serão encontradas no
capítulo sete, Ditaduras latinoamericanas: conexões Repressivas e Redes de Solidariedade.
No capítulo oito, Esquemas Repressivos e Tortura, a equipe trabalhou com assuntos ligados
aos aparatos repressivos, institucionais e clandestinos, e a tortura – que somente foi admitida
como prática pelo Estado brasileiro no relatório final dos trabalhos realizados pela Comissão
Nacional da Verdade, apresentado em dezembro de 2014.
A partir do nono capítulo, O Fim da Ditadura e o Processo de Redemocratização,
estão organizadas postagens produzidas sobre o período final da Ditadura e sobre a transição
para a democracia. Da mesma forma, passamos pelo capítulo dez, Redemocratização:
permanências, rupturas, o antigo e o novo, e pelo onze, Justiça de Transição: tardia e
incompleta. Por fim, no capítulo doze, Memória, Verdade e Justiça, agrupamos conteúdos
que foram produzidos em torno de lutas e ações, estatais ou não, pelo resgate de memórias,
pela reconstrução da história do período e pela reivindicação de justiça.
Em todas as ações desenvolvidas naquele ano, incluindo a construção do Blog
Resistência em Arquivo, o Arquivo Público buscou selar seu compromisso pela demanda
social impressa na noção de Memória, Verdade e Justiça como um direito daqueles que,
como Rosa Luxemburgo, perderam seus sapatos em defesa de uma sociedade mais justa.
Continuamos recolhendo aquela bandeira.

Nôva Brando
Historiadora, Arquivo Público do Rio Grande do Sul

7
Ditadura, Democracia e
Direitos Humanos: um debate atual
Capitalismo e Direitos Humanos

(...) Os direitos humanos não nos obrigarão a abençoar as


‘alegrias’ do capitalismo liberal do qual eles participam
ativamente. Não há Estado (dito) democrático que não
esteja totalmente comprometido nesta fabricação da
miséria humana. (Deleuze).

O presente material tem por objetivo


realizar uma singela reflexão acerca do debate
que envolve os temas Ditadura, Democracia e
Direitos Humanos. Antes de abordarmos o
tema da ditadura, achamos necessário uma
prévia discussão na qual fosse contemplada a
ligação existente entre a bandeira dos direitos
humanos e o capitalismo.
Cabe ressaltar que não temos a intenção
de produzir um texto denso do ponto de vista
de referenciais teóricos, embora eles sempre
existam. No entanto, isso não nos
descompromete de tentarmos escrevê-lo de
forma coerente com o trabalho que o Arquivo
vem realizando sobre a temática e com as reflexões que os profissionais envolvidos com tais
ações têm proposto.
Pois bem, achamos que esse também não seria o espaço para fazer uma longa
divagação acerca da história do surgimento e das mudanças de concepção atribuídas ao que
hoje chamamos de Direitos Humanos. Cabe ressaltar que isso exigiria um longo debate
histórico, filosófico e um mergulho na filosofia do direito. O mais significativo para nós, nesse
momento, é que o caminho para a discussão seja aberto pela assertiva de que os Direitos
Humanos, apesar de ser tema antigo na história dos homens, ganhou um sentido particular
construído dentro dos marcos de um modo capitalista de organização da vida em sociedade.
Certamente, e não temos muito como fugir disso, herdamos a noção de defesa dos direitos
humanos das lutas da burguesia europeia, travadas ainda durante o período da Revolução
Francesa. Essa luta, caracterizada pelos princípios de individualidade e de universalidade, está
profundamente ligada às ideias de propriedade privada como direito natural e inalienável, de
onde os demais direitos devem decorrer. Nesse sentido, a universalidade dos direitos ficou
subjugada à experiência individual burguesa. O modo de vida burguês passou a determinar o
significado de sujeito, a essência do que é humano. Conforme o Grupo Tortura Nunca Mais,
têm-se, a partir daí, “um determinado rosto para os direitos humanos desde a primeira
declaração produzida no bojo da luta realizada em 1789 até a de 1948, Declaração universal
dos Direitos Humanos, promulgada pela Organização das Nações Unidas”, no período Pós-
Segunda Guerra Mundial.
Desde então e com as inúmeras transformações levadas a cabo pelo capitalismo,
também foram os Direitos Humanos sendo moldados, apesar de manter-se sobre ele essa
lógica argumentativa de base – permanecemos com a noção de um tipo de ser humano
bastante semelhante àquela inventada pela burguesia, que pretende preservar essa forma

9
de estar e de organizar as relações sociais, das quais o direito privado e o direito público se
fazem em posições binárias.
Nesse sentido, podemos propor uma reflexão acerca da necessidade, ou não, de
mantermos os princípios do individualismo e da universalidade para levantarmos a bandeira
dos Direitos Humanos? Se colocarmos em xeque esses princípios, podemos fazê-lo sem
desestabilizar a lógica do estado burguês que o construiu?
Se aceitarmos a premissa da inserção da defesa dos Direitos Humanos dentro da
engrenagem capitalista, aceitaremos também os limites impostos a eles no que diz respeito
ao seu alcance e às suas possibilidades de transformação, uma vez que alguns princípios, para
a manutenção da lógica capitalista, não podem ser rompidos, como o direito à propriedade
privada e ao lucro crescente.
No entanto, se por um lado realizamos a crítica em relação aos limites existentes na
defesa dos Direitos Humanos, em uma sociedade gerida por um sistema que mantém a fome
e a miséria de muitos em nome da riqueza de alguns, que se reproduz a partir das
desigualdades sociais, da guerra e da exploração desenfreada da natureza em nome das taxas
de crescimento a curto prazo; por outro, deparamo-nos com uma necessária e intransigente
defesa deles, justamente por vivermos em uma sociedade que não garante a todos e todas
nem mesmo o mínimo de direitos e por nos depararmos com um conjunto de críticas
lançadas por setores conservadores da sociedade que os abominam. Alicerçados na ideia da
violência, urbana e rural, e naquilo que dela possa comprometer os direitos individuais como
a propriedade privada, um conjunto organizado da sociedade, bem como parte do senso
comum das pessoas que se sentem ameaçadas por uma construída sensação de permanente
medo, lança sobre a bandeira dos DH a insígnia de que alguns humanos não merecem
direitos – coincidência, são justamente os humanos que não se enquadram nos pressupostos
burgueses de indivíduo. Não podemos, portanto, nesse caminho, negar que tais direitos
foram forjados nas lutas populares, que propiciaram também um aumento da participação de
pessoas e de grupos na vida política do país.
Sabendo de todos os limites, de muitos avanços e contradições, cabe a nós,
defensores de uma nova ordem social, decidirmos o que faremos com a pauta dos Direitos
Humanos. Cabe a nós recolhermos dela seus aspectos progressistas que auxiliem na luta pela
igualdade e, ao mesmo tempo, pela defesa do direito à diferença. Cabe a nós refutarmos
radicalmente a leitura conservadora daqueles que reconhecem somente seus próprios
direitos. Cabe a nós ressaltarmos seus limites dentro de uma ordem com princípios que
asseguram a competição e a desigualdade, inviabilizando a plena realização do sonho de uma
sociedade em que todos tenham uma vida digna e feliz. Cabe a nós defendermos a luta por
sua expansão para além desses limites, para além de uma ética perversa, conforme nos
atenta Slavoj Zizek, que cinicamente tenta neutralizar a bandeira dos direitos humanos.
Enfim, por agora, cabe a cada um substituir a noção de indivíduo pela noção de
individuação que nos permita a luta pelos direitos humanos na perspectiva de um humano
não previamente definido, mas por um humano unificado apenas pelo compromisso com a
vida, com as diferentes manifestações da vida humana, com o direito a diferentes modos de
estar no mundo e de construí-lo.
Texto de apoio:

Paradoxo dos Direitos humanos no Capitalismo


Contemporâneo da autora Ivete Manetzeder Keil,
antropóloga e professora do PPGEdu Básica da
Universidade do vale dos Sinos/Unisinos.
Direitos humanos no Brasil e o Grupo Tortura nunca
Mais/RJ dos autores Cecília Coimbra, Eduardo Passos e
Regina Benevides de Barros, professores da universidade
federal Fluminense/UFF.

10
Ditadura, Democracia e Direitos Humanos no Brasil

A água se aprende pela sede; [...]


A paz pela luta que se teve;
Por compas In Memoriam, o amor -
Os passaros, pela neve.
(Emily Dickinson)

Depois de abrirmos os debates com discussões a respeito das relações entre o


capitalismo, a democracia e os direitos humanos, chegou a hora de falarmos sobre a relação
entre a Ditadura Brasileira e a pauta dos Direitos Humanos. Para isso, optamos por fazer
alguns recortes do texto “Direitos Humanos no Brasil e o Grupo Tortura Nunca Mais/RJ”,
escrito pelos professores da UFF, Célia Coimbra, Eduardo Passos e Regina Benevides de
Barros. Esperamos que essa seleção de texto possa contribuir para a compreensão do
surgimento da bandeira dos Direitos Humanos no Brasil, que se deu concomitantemente à
resistência e à luta contra um regime autoritário. A democracia foi o resultado da luta
naquele momento, cabe a nós pensarmos naquilo que queremos fazer com ela, na
perspectiva de viabilizar, de fato, a soberania do direito pleno de estar no mundo, luta de
muitos daqueles que lutaram durante o período.
No Brasil, a luta pelos direitos humanos
emergiu com mais força nos movimentos contra a
Ditadura Civil-militar instaurada pelo golpe militar
em 1964. Em especial, essa luta se efetivou, na
segunda metade dos anos 70, através dos
movimentos sociais em confronto com o governo
militar e o período repressivo por ele instaurado.
Estes movimentos, a um só tempo de resistência à
ditadura e de luta em defesa dos direitos humanos,
politizaram o cotidiano nos locais de trabalho e
moradia, inventando outras formas de fazer
política.“Novos personagens entraram em cena”
como “novos sujeitos políticos” que, no cotidiano, lutavam por melhores condições de vida,
trabalho, salário, moradia, alimentação, educação, saúde e pela democratização da
sociedade. Emergiram, desses novos movimentos sociais, dessas novas práticas, outras
maneiras de construir a política dos direitos humanos. Vários grupos surgiram resistindo às
violências cometidas e lutando contra a impunidade vigente. Ainda hoje, tais grupos
persistem na disposição de resistir considerando as condições concretas de existência
daqueles que continuam sendo marginalizados.
Os anos 80, no Brasil, apesar dos ecos dos novos movimentos sociais,
caracterizou-se pela vitória do conservadorismo. Em 1979 foi sancionada a Lei da Anistia,
bastante limitada e estreita, deixando muitos opositores políticos de fora e criando uma
estranha figura jurídica denominada “crimes conexos” que pretendeu dar anistia aos
torturadores. A economia sofreu quedas sem precedentes e a recessão tornou-se um fato.
Daí, a grande participação que, ao longo de 1983 e 1984 teve a “Campanha das Diretas Já”
pelas eleições democráticas para presidente da República. A ditadura não mais se
sustentava. Entretanto, apesar da enorme mobilização da sociedade, as eleições
continuaram indiretas. Mais uma vez, em nossa história, o pacto entre as elites se fez e
garantiu-se, como pretendiam os militares, uma transição “lenta, gradual e segura”.
Mantinha-se o poder em mãos conservadoras preservando-se a impunidade e
esquecendo-se de toda nossa história

11
recente. Somente em 1989, ocorreu a primeira eleição direta para Presidente da República
após o golpe de 1964.
Nesses anos 80, assistiu-se a uma competente campanha, principalmente nos
meios de comunicação de massa, que sutilmente associava o aumento da criminalidade ao
fim da ditadura militar. A violência tornou-se o tema nacional preferido pela mídia, pelos
políticos e pelas elites, em especial, nos estados do Rio de Janeiro e São Paulo. Com as
eleições para governadores, em 1983, a vitória da oposição nesses dois estados trouxe ao
debate, ainda que timidamente, o tema dos direitos humanos. Nesse mesmo momento,
veicula-se fortemente, através dos meios de comunicação de massa, a questão do aumento
da violência nesses dois estados que vem acompanhada de campanhas defendendo o auto-
armamento da população, os linchamentos, o policiamento ostensivo e fardado nas ruas. A
abertura dos debates acerca dos direitos humanos no início da década de 80 é, assim,
acompanhada por um discurso conservador e, paradoxalmente, contra os direitos humanos.
Não é difícil entrever nesses discursos contra os direitos humanos e sobre a insegurança
gerada pelo aumento da criminalidade um diagnóstico de que tudo está mudando para pior,
de que “os pobres querem direitos” e “que se quer dar direitos até para bandidos”.
Foi nesse contexto que surgiu, em
1985, no Rio de Janeiro, o Grupo Tortura
Nunca Mais, o primeiro de muitos outros
que, ao longo da década de 90, aparecem
em alguns estados brasileiros, como: São
Paulo, Pernambuco, Minas Gerais, Bahia,
Alagoas, Paraná. Falar desse movimento,
fundado por ex-presos políticos, familiares
de mortos e desaparecidos políticos e
cidadãos que se indignam com a prática
cotidiana e banalizada da tortura, é falar de
questões que continuam sendo colocadas
para “debaixo do tapete” por diferentes governos civis, “eleitos” nas urnas. É falar do
comprometimento e conivência com a ditadura militar.
É preciso lembrar que, naquele passado recente, o opositor político foi sequestrado,
torturado, isolado, assassinado, desaparecido e enterrado como indigente, perpetuando-se
assim, a tortura sobre seus familiares e amigos. Hoje, as mesmas práticas são aplicadas aos
pobres em geral, aos excluídos, aos também chamados “perigosos”. O seu extermínio tem
sido plenamente justificado como uma “limpeza social”, aplaudido pelas elites e por muitos
segmentos médios de nossa sociedade. Como nos “anos de chumbo”, nesses tempos
neoliberais, o “inimigo interno” deve ser não somente calado, mas exterminado.
Pois, se naqueles anos 60, a juventude brasileira em suas experiências de combate
ao instituído teve que se confrontar com a reação de um regime autoritário, que lhe impôs a
tortura, a morte, a clandestinidade ou o silêncio, a luta pelos Direitos Humanos hoje continua
entre nós como a defesa das diferentes manifestações da vida humana. Afirmar esta outra
história, outras subjetividades e os direitos humanos como direitos que a todos implicam é o
que pretendemos.

Leitura completa:
Direitos Humanos no Brasil e o Grupo Tortura Nunca
Mais/RJ dos autores Cecília Coimbra, Eduardo Passos e
Regina Benevides de Barros, professores da
Universidade Federal Fluminense/UFF.

12
A Guerra Fria e o Anticomunismo:
o contexto Pré Golpe Militar de 1964
O golpe no Brasil não foi um fato isolado: conjuntura
nacional e a bipolarização do mundo

No estudos anteriores, abordamos discussões teóricas e conceituais, e ações atuais


relacionadas à ditadura civil militar no Brasil, demonstrando o quanto esse período ainda
deixa marcas em nossa sociedade, o quanto o tema está em voga e o quanto ainda deve ser
debatido para construirmos uma sociedade mais justa e democrática.
A partir deste momento, passamos a compartilhar com você temáticas que nos
aproximarão dessa história de forma cronológica, buscando contribuir para o conhecimento
do processo histórico que se desdobrou desde a década de 1960 e que, em diversos
aspectos, se estende até os dias de hoje, sempre tentando indicar outras fontes de
informação a respeito. Pensando nessa perspectiva, dedicamos este texto a seguinte
reflexão: já que os processos históricos nunca estão isolados, como a análise da conjuntura
nacional e mundial ajuda a entender as motivações para o golpe civil militar em 1964? O que
ocorria no Brasil e no mundo naquele período?
O golpe no Brasil está amplamente
relacionado ao contexto da Guerra Fria e da
bipolarização do mundo entre dois projetos de
sociedade antagônicos: o capitalismo e o socialismo.
Podemos afirmar que as disputas político ideológicas
em torno desses dois projetos vinham se
construindo há pelo menos um século, tornando-se
mais efetivas a partir da Revolução Russa de 1917,
quando um grande território unificou-se na União
das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), que
passou a liderar o bloco de países socialista, em oposição ao bloco de países capitalistas
liderado pelos Estados Unidos (EUA). Ambos os lados passaram a disputar países para sua
esfera de influência política, econômica e cultural, em uma disputa que não poderia ter
mediações, já que os modelos de sociedade defendidos por cada um dos blocos eram
estruturalmente diferentes. Para os capitalistas, a organização da sociedade e da produção
deveria estar pautada na propriedade privada e na livre regulação do mercado, em que cada
indivíduo pudesse adquirir bens e concorrer em busca de lucro e de qualidade de vida, de
acordo com suas possibilidades. Já para os socialistas soviéticos, o Estado deveria ser o
proprietário dos meios de produção, como fábricas e terras, e regular o sistema financeiro e
de crédito, tendo como papel fundamental a distribuição igualitária de riquezas entre os
cidadãos.
Porém, foi após o final da II Guerra
Mundial que a divisão do mundo em blocos
tornou-se premente, seja pela demonstração de
poder bélico levada a cabo pelos EUA com a
explosão das bombas atômicas em Hiroshima e
Nagasaki, em 1945, seja pelo lançamento oficial,
em 1947, da Doutrina Truman no Congresso
norte-americano – um forte plano de combate à
expansão do comunismo no mundo – ou ainda
pela divisão da Alemanha, em 1949, passando a
ter um lado alinhado aos socialistas, chamada de Alemanha Oriental, e outro aos
capitalistas, Alemanha Ocidental.

14
A partir do final da década de 1940, o mundo passou a viver em tensão constante
com o perigo de uma nova guerra mundial, ainda que fosse muito improvável, já que ambas
as potências em disputa passaram a dominar a tecnologia nuclear,e tinham bombas capazes
de eliminar a vida humana da Terra. Por isso, o conflito ficou conhecido como “Guerra Fria”,
pois era uma guerra que não se travava entre trincheiras e explosivos, mas especialmente
no campo da propaganda ideológica, da pressão econômica e da influência cultural.
Entretanto, a inviabilidade de uma guerra mundial não excluiu a existência de conflitos
armados. Ao contrário, as disputas entre os blocos fomentaram diversas guerras e crises
locais, como a Guerra da Indochina, a Guerra do Vietnã e a Guerra da Coreia.
Desde que os EUA se constituíram enquanto grande potência mundial, no limiar do
século XX, realizaram esforços para manter a América Latina sob sua influência e controle.
Sendo o Brasil o maior país da região, com grande potencial econômico e muitas riquezas
naturais, obviamente sofreria pressões para manter-se alinhado ao bloco capitalista. A
Revolução Cubana de 1959, que transformou a ilha em mais um país socialista vinculado à
URSS, estimulou intensamente o medo do “perigo vermelho” na América, fazendo com que
as intervenções norte-americanas e a doutrinação anticomunista fossem potencializadas. E
é nesse quadro internacional que muitas lutas populares tomaram fôlego no Brasil do início
dos anos 1960, com a organização dos trabalhadores do campo em Ligas Camponesas, com
maior participação popular em sindicatos e outros espaços de organização política, com o
crescimento do Partido Trabalhista (PTB) e acirramento das lutas por reformas sociais que
favorecessem o povo pobre.
Conhecendo a conjuntura nacional e internacional daquele contexto, torna-se mais
fácil compreender os diversos fatores que levaram ao golpe civil militar naquele ano, e quais
interesses estavam em jogo. Torna-se mais evidente, por exemplo, a conexão entre os
golpes nos demais países latino-americanos, em especial no Cone Sul, realizados em
sequência após o golpe brasileiro, com premissas e interesses parecidos. Explicita-se
também o caráter econômico do golpe, realizado para defender o status quo e evitar
mudanças mais profundas que pudessem interferir nos interesses dos grupos dominantes
em nossa sociedade.

15
O Trabalhismo no Brasil no Pré-Golpe de 1964

Tendo início com Getúlio Vargas, após o Estado Novo, em meio à polarização
ideológica no mundo entre o capitalismo e o comunismo soviético, o Trabalhismo acabava
sendo uma alternativa de representação àqueles que não se identificavam nem com um
modelo de sociedade nem com outro, refletindo sua ideologia no Partido Trabalhista
Brasileiro (PTB), criado por Getúlio Vargas e Alexandre Marcondes Filho, seu Ministro do
Trabalho, em 1945. Podemos dizer que as ideias trabalhistas tiveram o auge de sua
radicalidade expressa na figura de Leonel Brizola, então Governador do Rio Grande do Sul
entre 1959 e 1963, pouco antes do golpe civil militar.
O Trabalhismo se colocou na posição de responder a demandas da população,
principalmente dos trabalhadores, assegurando direitos até hoje garantidos, como férias e
13º salário, por exemplo, tendo suas bandeiras muitas vezes identificadas com as “Reformas
de Base” - tema que falaremos semana que vem. Porém, é importante termos o
entendimento de que o Trabalhismo não buscava uma mudança estrutural do sistema
capitalista, sendo até hoje lembrado como uma ideologia política de esquerda moderada.
Abaixo, indicamos dois vídeos que expressam um pouco do que foi esse movimento.
Produzido em 1962 pelo CineJornal da Agência Nacional, falam sobre Os avanços do Estado
do Rio Grande do Sul no Governo de Leonel Brizola, principalmente no que tange a reforma
agrária, educação e infraestrutura. Acesse o primeiro vídeo na página Zappiens: O Exemplo
da Terra – Reforma Agrária no governo de Leonel Brizola.

16
Campanha da Legalidade

A Campanha da Legalidade foi um movimento liderado pelo governador do Rio Grande


do Sul, Leonel Brizola, e tinha o objetivo de garantir a posse de João Goulart como Presidente
da República após a renúncia de Jânio Quadros, candidato da União Democrática Nacional
(UDN), que iniciou seu mandato em 31 de janeiro de 1961. Durante os poucos meses de
gestão, Jânio Quadros adotou uma política econômica e externa que não agradou aqueles
que o apoiavam, inclusive setores das Forças Armadas e alguns seguimentos sociais e, desta
forma, renunciou em 25 de agosto de 1961. Neste dia, João Goulart (Jango) estava em visita à
China.
A posse de Jango, vice-presidente eleito
pelo Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), não teve
aceitação por parte dos ministros militares,
grupos políticos conservadores e pelas classes
dominantes. Segundo estes, mesmo legítima, a
posse de Jango colocaria em risco a segurança
nacional, pois sua figura representava a ameaça
de instalação do regime comunista no Brasil. O
político Carlos Lacerda, líder da UDN, era figura
de destaque deste grupo. Foi então que Leonel
Brizola iniciou um movimento de resistência,
Chamado de Campanha da Legalidade, que defendia a manutenção da ordem jurídica, ou
seja, a posse de Jango.
Brizola instaurou a rede da legalidade onde, através da Rádio Guaíba, num estúdio
montado nos porões do Palácio Piratini, ele se comunicava e mobilizava a população gaúcha.
Em pouco tempo, os discursos a favor da legalidade alcançaram o estado de Santa Catarina,
através da Rádio Clube Blumenau, e o estado de Goiás, através da Rádio Brasil Central
instalada no Palácio das Esmeraldas em Goiânia. Ao todo a rede da legalidade alcançou mais
de cem emissoras em todo o país.
O clima se tornava a cada dia mais tenso.
O Ministério da Guerra ordenou que a unidade
localizada na cidade de Canoas bombardeasse o
Palácio Piratini. Porém, os militares comandados
por Machado Lopes colocaram-se contrários a
esta medida devido às graves consequências que
esta manobra traria, visto que havia uma grande
concentração de pessoas em frente ao Palácio. A
partir deste momento, Machado Lopes e outros
comandantes militares manifestaram seu apoio
aos legalistas e ingressaram na Campanha. Foram
doze dias de resistência e tensão onde a Brigada
Militar, mobilizada por Brizola, se posicionou
frente ao Palácio Piratini para defendê-lo.

No início de setembro de 1961, foi aprovada a Emenda Constitucional Nº 4, que


alterou o regime de governo brasileiro para parlamentarismo. Esta normativa impedia que
João Goulart tivesse plenos poderes, que se limitavam aos de um chefe de estado e não de
governo.

17
Desta forma, os militares aceitaram que Jango ocupasse o cargo de Presidente da
República, tomando posse em 07 de setembro de 1961.
Recentemente os porões do Palácio Piratini foram revitalizados e o local de onde Brizola
transmitia seus discursos recebeu o nome de Memorial da Legalidade. É possível agendar visitas
guiadas no Palácio onde o Memorial é parte do roteiro.

18
Movimento da Legalidade – História em Quadrinhos Legalidade

No andamento do estudo, abordamos o período pré golpe, reformas de base,


movimento da legalidade, resistência democrática. Pensando nisso, disponibilizamos uma
cópia da revista Legalidade em Quadrinhos para você curtir um pouco da história desse
movimento que é referência de resistência na política brasileira.
A revista Legalidade em Quadrinhos retrata os principais acontecimentos da
Legalidade, movimento liderado por Brizola, com uma linguagem voltada aos jovens
estudantes do Ensino Fundamental e Médio. Professores podem usar em sala de aula como
material de auxílio para suas aulas.

19
Resistência no Pé: Samba da Legalidade

Ainda dialogando com nosso tema, trazemos uma video montagem produzido por
um de nossos estagiários, Gabriel Chaves Amorim. O vídeo foi montado a partir de imagens
de época retiradas do acervo da TV TUPI. As imagens mostram a movimentação civil e militar
do movimento da Legalidade. No final do vídeo, João Goulart dá sua primeira entrevista ao
voltar para o Brasil, vindo de uma viagem ao Oriente. A trilha sonora, também conhecida na
voz de Nara Leão, é um samba de Zé Kéti e Carlos Lyra, que, nos anos seguintes, se
destacariam como compositores engajados.

Dentro da legalidade
Dentro da honestidade
Ninguém tira meu direito
Quando querem anarquia
Elimino a teimosia
Mostrando todo o defeito
Se o samba está errado
Não posso ficar calado
Consertando a melodia
Se a letra o tratamento
Não estiver no português
Com toda diplomacia
Peço desculpas ao freguês
Conserto tudo outra vez

Eu não sou politiqueiro


Meu negócio é um pandeiro
Dentro da legalidade
Sou poeta popular
Dentro da honestidade
Ninguém pode me calar

20
Reformas de Base, uma proposta que antecedeu o Golpe Militar

No andamento do nosso estudo, tratamos sobre a conjuntura nacional e a


bipolarização do mundo no período Pré-golpe de 1964. Dentro dessa conjuntura, falamos de
algumas questões que envolvem o trabalhismo, enquanto proposta política de governo no
Brasil. Nesta semana, vamos centrar nossas discussões em torno de uma das pautas do
trabalhismo nos anos sessenta: as Reformas de Base que antecederam o Golpe.
Em 1960, João Goulart ganhou as eleições para vice-presidente, representando o
Partido Trabalhista Brasileiro na Casa Civil, durante o governo do presidente Jânio Quadros.
Também no início da década, vemos na cena política brasileira, o fortalecimento dos
movimento sociais, tanto urbanos quanto rurais, tantos aqueles que exigiam melhores
condições de trabalho nas fábricas, nas cidades, quantos aqueles que defendiam o direito à
terra. Muitas foram as greves realizadas nesse período.
Especificamente no sul do Brasil, Leonel
Brizola, então governador do estado do Rio
Grande do Sul, articulou trabalhadores em torno
do que ficou conhecido como Grupo dos Onze –
grupo que reunia onze companheiros, como em
um time de futebol. Esses grupos, dentre outras
possíveis atribuições, estavam organizados em
torno da defesa das reformas de base e,
sobretudo, da reforma agrária. Nesse período,
assim como o grupo dos onze, vários grupos se
organizaram em torno das bandeiras das
reformas: estudantes, trabalhadores, ativistas, enfim, vários setores da sociedade que se
uniram para pedir por reformas bancária, fiscal, urbana, administrativa, agrária e
universitária. De forma mais ampla, defendiam uma maior intervenção do Estado, com
adoção de medidas nacionalistas, por meio de encampações e nacionalizações, além do
controle de remessas de lucros para as empresas estrangeiras.
Com a renúncia do presidente Jânio Quadros,
Jango assumiu a presidência do país, garantida pelo
Movimento da Legalidade, sob a égide de um
sistema parlamentarista. Somente em 1963, após
ocorrência de um plebiscito que decidiu pelo
retorno do presidencialismo, Goulart retomou seu
papel de direito – chefe de estado e de governo. A
partir de então, há um forte e central retorno das
Reformas de Base à pauta do governo. A partir daí e
depois do esgotamento das negociações com
setores e partidos mais conservadores, o governo
de João Goulart começou a traçar uma linha de ações ofensivas para implantação das
medidas de reforma, procurando apoio em vários setores sociais.
O ano de 1964 foi de radicalização tanto para os propósitos progressistas de Jango
quanto pela oposição conservadora que encontrava nos projetos do governo, aproximações
com as propostas comunistas – lembremos da bipolarização do mundo.
No dia 14 de março do mesmo ano, João Goulart discursou na Central do Brasil,
estação de transportes central na cidade do Rio de Janeiro, que contou com a presença de
mais de 150.000 pessoas. Foi nesse momento que Jango declarou a necessidade de mudar a

21
Constituição para realizar a reforma agrária com plenitude, além disso, anunciou que
encamparia as refinarias de petróleo particulares e desapropriaria terras às margens de
estradas e de açudes.

Muitos interpretam que, a partir desse discurso, as articulações dos partidos e dos
setores conservadores da sociedade e das forças armadas começaram a planejar a derrubada
de Jango do poder, que acabou sendo materializada no Golpe de 1° de abril de 1964. Nesse
sentido, e de forma bastante coincidente, muitos pesquisadores defendem que a defesa das
reformas de base foi o estopim para a efetivação do Golpe e da implementação de uma
Ditadura no país.
Sejam quais forem as interpretações sobre as Reformas, não há dúvida de que representavam
bandeiras progressistas, que respondiam às necessidades reais de um país que pretendia se
desenvolver a partir de pilares mais sólidos, assentados na justiça social. Não há dúvidas
também de que o Golpe de 1964 e a Ditadura que se segui estancaram esses planos –
estancaram projetos similares em toda a América Latina.

Saiba mais!!!!

Em Mensagem enviada ao Congresso Nacional, João Goulart expõe de forma organizada os


motivos e os meios pelo qual o Partido Trabalhista Brasileiro buscava as Reformas de Base.

22
Os Centros Populares de Cultura no período Pré Golpe de 1964

Em meio às turbulências vividas na primeira metade dos anos 1960,


tinha-se a impressão de que as tendências de esquerda estavam se
fortalecendo na área cultural. O Centro Popular de Cultura (CPC) da
União Nacional dos Estudantes (UNE) encenava peças de teatro que
faziam agitação e propaganda em favor da luta apelas reformas de base
e satirizavam o “imperialismo” e seus “aliados internos”. (KONDER, L.
História das ideias socialistas no Brasil).

Além das movimentações políticas, econômicas e sociais que envolveram o país e o


mundo na segunda metade do século XX, como acompanhamos anteriormente, também de
muita arte viveu o Brasil nos anos 1960. No mesmo período de intensas mobilizações em
torno da Legalidade e da garantia da posse do presidente João Goulart, ao mesmo tempo em
que grupos sociais se organizavam para reivindicar reformas estruturais no país, artistas e
intelectuais de esquerda construíram o Centro Popular de Cultura (CPC), com o objetivo de
criar e de divulgar uma “arte popular revolucionária”.
Associada à União Nacional dos
estudantes (UNE), os CPCs surgiram na cidade do
Rio de Janeiro, em 1961, e posteriormente foram
se espalhando para outras cidades do país.
Reuniram artistas de diversas áreas – como teatro,
música, cinema, literatura – que acreditavam no
caráter coletivo e didático da arte e no
engajamento social e político dos artistas.
Segundo Kornis, o núcleo formador do
Centro foi constituído pelo dramaturgo Odulvado
Viana Filho, pelo cineasta Leon Hirszman e pelo sociólogo Carlos Estevam Martins. Os princípios
do projeto foram expostos no “Anteprojeto do Manifesto do Centro Popular de Cultura”,
redigido e divulgado no ano de 1962. Apesar de não termos encontrado
disponível o manifesto na íntegra, as referências
utilizadas para a construção dessa postagem nos
remontam a uma compreensão de que a arte do povo
seria “de ingênua consciência”, sem outra função senão
“a de satisfazer as necessidades lúdicas e de
ornamento”. Segundo os integrantes, o CPC, nesse caso,
“pretendia tirá-las da alienação e da submissão”,
partindo da leitura de que as manifestações culturais
deveriam ser compreendidas “sob a luz de suas relações
com a base material” e nunca como “uma ilha
incomunicável e independente dos processos materiais.
Em outras palavras, defendiam que a “arte só irá onde o povo consiga acompanhá-la, entendê-la
e servir-se dela”.
O CPC travava uma importante batalha na qual acreditava
estar ao lado do povo a arte comprometida em debater os problemas
reais das gentes reais do país. Para o grupo, o diálogo com o cotidiano,
com as culturas populares, com as lutas do povo e suas múltiplas
manifestações deveria ser o ponto de partida e o de chegada das
criações artísticas – para ele, a chegada estaria caracterizada pela
transformação da inicial “ingênua consciência”, daí o caráter engajado
da concepção no combate à opressão e à exploração.

23
No período de sua breve existência, entre
o início dos anos 1960 e o Golpe Militar em 1964, o
CPC promoveu a encenação de peças de teatro em
portas de fábricas, nos sindicatos e nas ruas de
várias cidades e em áreas rurais do Brasil.
Segundo Kornis, o teatro da UNE, com a
apresentação da peça Os Azeredos mais os
Benevides, de Oduvaldo Viana Filho, foi inaugurado
às vésperas da derrubada do presidente João
Goulart pelos militares, em 31 de março de 1964.
Nos primeiros dias de abril, a sede da UNE foi
incendiada e todos os CPCs foram fechados.
No entanto, apesar do fechamento do CPC,
da prisão ou do exílio de artistas e intelectuais
ligados ao Centro, não há dúvidas de que suas
propostas influenciaram as diversas manifestações artísticas das décadas posteriores. A
possibilidade de vincular a arte às questões políticas vividas por nossa sociedade, nos diversos
períodos históricos posteriores, contribuiu para a valorização da cultura popular brasileira nas
suas variadas produções.

Curiosidades!!!
Entre dezembro de 1961 e dezembro de 1962, o CPC produziu as peças Eles não usam
black-tie, de Guarnieri, e A Vez da Recusa, de Carlos Estevam; o filme Cinco Vezes
Favela, composto por cinco episódios, com as direções de Joaquim Pedro de Andrade, de
Marco Faria, Cacá Diegues, Miguel Borges e Leon Hirszman. Publicou a coleção Cadernos
do Povo e a série Violão de Rua, das quais participam Moacir Félix, Geir Campos e
Ferreira Gullar.
Promoveu também a venda de livros a preços populares e foi pioneiro na realização de
filmes autofinanciados; a edição da coleção Cadernos Brasileiros e a Revista Civilização
Brasileira, editadas por Ênio Silveira, e a História Nova, organizada por Nelson Werneck
Sodré; cursos de teatro, cinema, artes visuais, filosofia e a UNE-Volante, um grupo
itinerante que realizava excursões pelas capitais do país para contatos com as bases
universitárias, operárias e camponesas; oficinas de literatura de cordel que contaram com
a participação de Félix de Athayde e de Ferreira Gullar; o projeto do teatro de rua, de
Carlos Vereza e João das Neves, assim como o teatro camponês de Joel Barcelos, que
pretendiam levar a arte ao povo nos locais de trabalho, moradia e nos locais de lazer;
feiras de livros acompanhadas de shows de música, para os quais convidaram os "sambistas
do morro", então desconhecidos do público, como Zé Kéti, Nelson Cavaquinho e Cartola,
e Vinícius de Morais, autor do Hino da UNE; aulas de teatro, com a adesão de Paulo
Francis; e, por fim, atividades ligadas à artes plásticas, com Júlio Vieira, Eurico Abreu e
Carlos Scliar.

Referência:
- Centro Popular de Cultura – Wikipedia.
- Mônica Almeida Kornis, Centro Popular de Cultura (Publicado no portal
da Fundação Getúlio Vargas).
- KONDER, L. História das ideias socialistas no Brasil. São Paulo: Expressão
Popular, 2003.
Para saber mais...
- Livro de Manoel T. Berlinck, Centro Popular de Cultura da UNE,
disponível em PDF.
- Carla Michele Ramos. O papel dos artistas e intelectuais do Centro
Popular de Cultura (1961-1964) na construção de uma nova sociedade.

24
Movimento de Educação Popular no contexto do Pré Golpe de 1964

Agora que temos conhecimento sobre a história da criação e dos trabalhos


desenvolvidos pelos Centros Populares de Cultura (CPC), no contexto do Pré Golpe e da
repressão sofrida por eles já no início da Ditadura Militar, vamos discutir um pouco sobre os
movimentos de alfabetização de adultos surgidos na segunda metade do século XX.
Nos anos de 1960, o Brasil contava com uma imensidão de jovens e de adultos
analfabetos. A constituição de 1946, ainda em vigor na época, proibia o analfabeto de votar,
negando a ele participação importante na vida política do país e privando-lhe do exercício de
uma plena cidadania. Nesse contexto, a alfabetização popular passou a ser entendida como
um instrumento de luta política e de valorização da cultura popular. Movimentos e iniciativas
voltadas para a alfabetização de adultos começaram a surgir dentro de uma concepção de
transformação da realidade social.
Dentre essas iniciativas, encontramos
desde o Movimento de Cultura Popular (MCP)
de Recife, em Pernambuco, a Campanha de Pé
no Chão também se aprende a Ler em Natal, no
Rio Grande do Norte, o Movimento de Educação
de Base (MEB ligado à Igreja Católica, os Centros
Populares de Cultura (CPC's) até a política de
educação popular do governo João Goulart,
liderada e organizada pelo educador Paulo Freire
por meio do Plano Nacional de Alfabetização
(PNA).
No entanto, já no Governo Goulart,
período de intensa luta política, as intenções
de modificar as estruturas da sociedade
brasileira estavam em disputa entre setores
sociais antagônicos. Movimentos sociais, cada
vez mais organizados, reivindicavam soluções
para as profundas desigualdades sociais no
país. Todo esse cenário foi percebido pelos
setores conservadores, assim como foi
percebido no método Paulo Freire,
incorporado como política pública do Governo Federal, uma ameaça ao status quo vigente.
Nesse momento, tais iniciativas de alfabetização passaram a ser vistas como ameaças reais
às sólidas estruturas de uma sociedade desigual.
Já, logo após o Golpe, muitos dos militantes e dos coordenadores que participavam
dos projetos foram presos e perseguidos. Para a população, os militares pretendiam provar
o quão subversiva eram aquelas práticas educacionais. Os trabalhos foram interrompidos de
forma autoritária e os locais destinados aos projetos foram fechados. Ao combate ao
analfabetismo foi delegado um espaço meramente técnico, dentro da nova política
implementada pela Ditadura. Para ela, a alfabetização não deveria ter relação com a política
e muito menos deveria ser coordenada por grupos de esquerda. Segundo Teixeira, “numa
época em que o debate político estava suspenso para as classes populares, um método de
alfabetização baseado justamente na discussão política, não se encaixava no modelo
educacional preconizado pelo regime militar”. Dessa forma, grandes iniciativas

25
de educadores, de movimentos sociais e de
projetos políticos que se propuseram, nos anos
60, a resolver o problema do analfabetismo no
Brasil, alfabetizando adultos a partir de discussões
da sua própria condição e realidades sociais
tiveram fim.
Para aprofundarmos mais o assunto,
vamos sugerir a leitura de um artigo do professor
da Universidade Federal do Triângulo Mineiro,
Wagner da Silva Teixeira, intitulado Quando
ensinar a ler virou subversão: a ditadura e o
combate ao combate do analfabetismo. Esse
texto é uma parte da tese de doutorado,
“Educação em Tempos de Luta: História dos
movimentos de educação e cultura popular (1958-
1964)”, na qual o pesquisador centra sua análise
no porquê e no quanto as forças repressivas
atuaram contra uma das mais ricas e fecundas
experiências de alfabetização de adultos no país.
Confira aqui o artigo na integra!

26
Resistência em Cordel: Ligas Camponesas e os Centros de Cultura

Verificamos que, no início da década de 1960, surgiram muitas iniciativas, em


diálogo com a cultura popular, em torno da alfabetização de adultos e da criação cultural.
Tais movimentos ampliaram a possibilidade da escrita e da expressão dos modos de vida e
da arte criados pelo povo. E daí chegamos ao cordel, escrito a partir da cultura oral que é
passada de geração em geração pelas famílias nordestinas.
Os cordéis contam de tudo, do dia a
dia, dos amores, das aventuras, inclusive de
política e perseguição. As ligas camponesas
utilizavam muito a literatura de cordel para
conscientizar os trabalhadores do campo de
seus direitos.
E esse cordel que compartilharemos
hoje, A história de João Pedro Teixeira, de
sua esposa Elisabete e da Liga Camponesa
de Sapé-PB, conta um pouco a história
trabalhada no filme que também indicamos
nesta semana.

Francisco Diniz
A Cultura do Cordel
Eu vou contar uma história
Que no Nordeste ocorreu,
Nas terras da Paraíba
Foi onde se sucedeu
A luta de um povo pobre
E de um líder que morreu.
No ano 59, (1959)
Na cidade de Sapé,
No solo paraibano,
Terra de gente de fé,
Surgiu uma Liga Camponesa,
Preste atenção, se puder:
Foi João Pedro Teixeira
O idealizador,
Que sonhava com um mundo
Onde reinasse o amor
Com fartura e justiça
Para o trabalhador.
[…]
[…]
Assim a referida Liga
No Nordeste era a maior,
Cerca de 7 mil sócios,
Ninguém se sentia só
E como organização
Não podia ser melhor.

27
Cordel de denúncia
Isso para o latifúndio
Incomodava demais,
Que usou de violência
Explícita e contumaz
Roubando o trabalhador
Sua vida ou sua paz.
Jamais João Pedro Teixeira
Veio a se intimidar,
Enfrentou as ameaças,
Nunca se deixou levar
Por quem queria comprá-lo
Pra ele poder calar.
Ele pregava também
A desapropriação
Das terras, pra que o
humilde
Saísse da submissão
Que era aquela vida
Quase uma escravidão.
O poder reagiu logo
Sem dó e sem piedade,
Mandou matar João Pedro,
Ação de grande ruindade,
Exterminando um homem
Que só falava em bondade.
[…]
No dia desse protesto
Curiosidades!!!! Uma equipe lá chegou,
Grupo Cultura da UNE
A literatura de cordel, uma Que um filme idealizou,
expressão genuinamente Cabra Marcado Pra
popular, criada por gente Morrer,
humilde nos sertões e cidades Assim a turma o chamou.
da Paraíba e de outros Em janeiro, 64 (1964)
estados do Nordeste, é O filme ia ser rodado,
chamado de cordel porque Mas devido a um conflito,
muitas vezes seus autores Onde seria gravado,
expõem os trabalhos Quem foi João Pedro.
literários em varais (cordas, 11 pessoas morreram.
cordéis) a céu aberto.
O lugar foi ocupado…

Deseja saber como


continua essa história?
clique aqui e veja na
íntegra o cordel!!!

28
Indicação de Filme: Cabra Marcado pra Morrer (1984)

Dando sequência à temática


anterior, indicamos o filme Cabra
marcado para morrer que começou a
ser produzido na "época de ouro" dos
centros de cultura.
Esse filme conta a história de
como João Pedro Teixeira e sua esposa
Elisabete estavam inseridos na
articulação da Liga Camponesa de Sapé
na Paraíba. Ele contextualiza a luta do
povo pelos direitos sociais, pelo acesso
à terra e à participação política. Essa
indicação é para conhecermos melhor
a realidade das resistências no sertão brasileiro, retratado pela lente dos Centros de
Cultura, inicialmente.
Dirigido pelo reconhecido e conturbado Eduardo Coutinho e
produzido pelo Centro Popular de Cultura (CPC) e Movimento de
Cultura Popular de Pernambuco (MPC), teve sua filmagem
interrompida pelo golpe militar de 1964, que pôs fim aos trabalhos
de produção de toda a equipe, colaboradores que, em sua
maioria, foram perseguidos depois da tentativa de rodar um filme
sobre a história da luta contra o latifúndio.
"Cabra Marcado para morrer", que teve a narração de
Ferreira Gullar, começou a ser rodado em 1962, mas somente foi
lançado em 1984, com o fim da Ditadura.

Curiosidade!!!!
Você sabia que Cabra Marcado
para Morrer foi ganhador de
inúmeros prêmios nacionais e
internacionais ?
Vejamos: Prêmio Gaivota de Ouro
(1984, RJ); Prêmio Tucano (1984,
RJ); Melhor Documentário no
Festival de Havana (1984, Havana
– CU); Grande Prêmio no Festival
de Troia (1985 – PT); Prêmio
Especial do Júri no Festival de
Salsa (IT); Grande Prêmio no
Festival de Cine Realidade (1985,
Paris – FR); Prêmio no Festival
Georges Pompidou (1985 – FR);
Prêmio do Júri Evangélico, Crítica
Internacional, Associação
Internacional dos Cinemas de
Arte e Fórum de Cinema Jovem
no Festival de Berlim (1985,
Berlim); Prêmio Air France (1985);
e Golfinho de Ouro do Cinema do
Governo do Estado do Rio de
Janeiro.

29
O espectro anticomunista ronda o Brasil – no contexto do Pré Golpe de 1964

Este trecho tem como objetivo encerrarmos a unidade que se propôs discutir o contexto
do Pré Golpe no Brasil. Como fechamento da temática, achamos que não teríamos outro assunto
melhor para trabalhar e para reforçar do que o anticomunismo, como uma espécie de ideologia
que perpassou por todas os outros textos, seja pela pela aproximação dos ideários comunistas aos
fatos que aconteceram, seja pela acusação de que determinadas propostas políticas ou atividades
estariam ligadas ao ideário comunista.
Pensemos um pouco no contexto da bipolarização do mundo,
na qual as propostas do trabalhismo no Brasil sofreram inúmeras
acusações de aproximação com as políticas levadas a cabo pelos
partidos comunistas na URSS e em Cuba. Por exemplo, muitos viam nas
reformas de base propostas pelo governo e no próprio governo de
Goulart, em um contexto de divisão do mundo em áreas de influência,
uma tentativa de transformar o Brasil em um país comunista – por isso
também a necessária Campanha da Legalidade para garantir a posse do
presidente Jango. Pensemos também no quanto as atividades
propostas e desenvolvidas pelos Centros de Cultura Popular e pelo
Movimento de Educação Popular foram tomadas como subversivas, de
caráter comunista, assim que Golpe implantou uma Ditadura no país.
Com isso, não queremos descartar que essa leitura de mundo,
essa forma de fazer política, de governar e de se viver em um país,
uma sociedade organizada nos moldes do comunismo, não estivesse
presente nos acontecimentos como algo real. Se por um lado
sabemos que as bandeiras trabalhistas, como as reformas de base, em
muito se distanciaram dos projetos levados a cabo pelos partidos
comunistas em diversos países, por outro lado, podemos afirmar que
na história dos Centros Populares de Cultura e do Movimento de
Educação Popular, respeitando sua heterogeneidade, estavam
presentes propostas ligadas às bandeiras comunistas.
Queremos dizer com isso que independentemente de a ideia
comunista ter se apresentado de forma real em muitas práticas e em
muitos projetos políticos no Brasil, por outro lado, foi criado no
período Pré Golpe, além de uma deturpação das propostas
comunistas, um sentimento de aversão e de medo na população, valendo-se para isso de
discurso e de práticas que chamaremos de anticomunistas.
Segundo Patto Sá Motta, a atuação de forças anticomunistas
ao longo da história do Brasil foi orquestrada tanto por grupos
conservadores quanto por alas progressistas durante os períodos de
colapso institucional da democracia em nosso país. E o que seria
esse anticomunismo entendido de forma mais orgânica?
Para compreendermos o andamento do nosso estudo,
podemos dizer que o anticomunismo seria um conjunto de ideias, de
correntes e tendências intelectuais que possuíam em comum a
negação dos princípios e ideais do comunismo e a oposição a todo
governo ou organização que desse suporte teórico ou prático a essa
ideologia - os anticomunistas identificam no comunismo uma
ameaça à propriedade privada e ao capitalismo

30
No Brasil e em muitos países da segunda metade do século XX, forças e projetos políticos
anticomunistas levaram a cabo golpes militares e a implementação de ditaduras. Foi o que
aconteceu por aqui em 1964, sob a égide de intensa propaganda, militares e civis prenderam,
torturaram e desapareceram diversos militantes da esquerda, pois identificavam neles e nos seus
projetos ameaças à ordem e à paz brasileiras.
Aqui no APERS, encontramos processos de
indenização de muitos ex-presos políticos que eram
comunistas ou que foram acusados de serem comunistas
pelo Estado. Um deles é de Eloy Martins. Militante
comunista desde a Era Vargas, Eloy, por continuar
defendendo seus ideais comunistas, mesmo após ter sido
seu partido colocado na ilegalidade, teve de se afastar da
família e viver na clandestinidade. Adotou falsa identidade
para poder trabalhar e continuar divulgando a política de seu
partido, o PCB. Não escapou da repressão, foi preso e
torturado pela ditadura militar.
A história de Eloy é um dos muitos casos dessa
repressão. Para além da ilegalidade do Partido Comunista e
da repressão sofrida por seus militantes de forma direta pelo
aparato policial, muitas outras estratégias foram utilizadas
como forma de colocar tais ideais na marginalidade. Em
outras palavras, para que a repressão aos militantes e às
ideias comunistas fossem bem-sucedidas, o
Estado necessitava do apoio popular e, para isso, não exitou em lançar mão de uma
intensa propaganda anticomunista, que tinha como objetivo insuflar a população de sentimentos
de medo e de desprezo por essa bandeira política. Boa parte delas imbuída de nacionalismo,
chamava o apoio da população para que o país não fosse invadido pelo “monstro” do comunismo.
Para isso, os militares e os civis no poder também contaram com uma parte significativa da Igreja
católica, que denunciava os “supostos” ateísmo e menosprezo pela instituição família defendidos
pela ideologia comunista.
Segundo Oliveira, em sua resenha sobre a obra de Sá Motta, foi a interação das doutrinas
católicas, nacionalistas e liberais que subsidiaram a cruzada anticomunista brasileira durante a
Ditadura, com a construção de imagens que caracterizavam o comunismo como "perigo
vermelho".
Por outro lado, transformar o mundo rumo à fraternidade universal, onde os trabalhadores
não tivessem suas vidas cerradas por fronteiras nacionais e economias burguesas, de fato, eram
projetos comunistas, os quais foram os reais motivos de preocupação dos grupos anticomunistas.
No sentido de agregar o real e o imaginário, Sá Motta descreve: “a ocorrência de manipulações foi
um elemento constante na história do anticomunismo brasileiro. O terror anticomunista foi
artificialmente insuflado, visando a obtenção de ganhos políticos, eleitorais e até pecuniários.
Porém, isto não altera o fato de que muitos grupos e indivíduos anticomunistas agiam movidos
por convicções ideológicas e não de forma oportunista".
Dessa forma, encerramos o texto de hoje com o anticomunismo abrindo caminhos para o
Golpe Militar de 1964, seja pela real ameaça ou pelo imaginário construído que havia no
comunismo do Brasil do Pré Golpe.
Bibliografia:
A ideologia anticomunista no Brasil de Marcus Robertos de Oliveira.
Anticomunismo na Enciclopédia Pública.
O Anticomunismo nas Forças Armadas de Celso Castro
Leitura recomendada:
SÁ MOTTA, Rodrigo Patto. 2002. Em guarda contra o perigo vermelho: o anticomunismo
no Brasil (1917-1964). São Paulo: Perspectiva.

31
O anticomunismo no cinema e na televisão – produções norte-americanas no Brasi

Para nos auxiliar na compreensão da ação


anticomunista, utilizaremos como complementação algumas
produções cinematográficas. Para tal, indicamos alguns
filmes/desenhos produzidos nos Estados Unidos no contexto
da Guerra Fria, no qual este país e a URSS travaram uma
guerra por meio da tecnologia, da cultura e da ideologia.
Nesse contexto, o avanço tecnológico e a difusão ideológica
eram as armas principais dessa guerra e serviam como
termômetro do desempenho dos dois países.
Falemos, então, do Brasil dos anos Pré Golpe, em meio a
essa guerra entre duas potências, que foi “influenciado”
pelos EUA a tomar uma posição na Guerra Fria e que se
utilizou de produções norte-americana para disseminar a
ideologia anticomunista entre a população.
Dentre essas produções,
podemos encontrar
vários filmes
que, como pano de fundo ideológico, difundem a ideia do
“monstro vermelho”, na tentativa de afastar as pessoas dos
ideais comunistas. Fica, portanto, evidente em muitos filmes
a distorção e a manipulação de informações, de ideias e de
projetos políticos com a intenção de construir um
imaginário anticomunista em meio a população.
Sobre esse assunto, indicamos dois filmes, baseados
nessa conjuntura, que são ótimos para serem trabalhados
em sala de aula. Confere ai!

X-men: A primeira classe – Produzido por Matthew Vaughn em


2011, o filme se passa na década de 1960, e conta a história de
Charles e Erik, então diretores da escola de mutantes. É um típico
filme, que tenta mexer com o imaginário e que mostra a falta de
conhecimento histórico das pessoas, pois coloca a origem dos
personagens como pano de fundo para um ser do “bem” e o outro
do “mau”.
Assista aqui o Trailer do filme!

Duck and Cover – Produzido um 1951 pela defesa civil


dos Estados Unidos, esse filme/propaganda afirmava
que uma guerra nuclear poderia ocorrer a qualquer
momento, sem aviso. Focado no público infantil, a
animação foi produzida logo após os testes nucleares
da antiga URSS.
Assista aqui essa animação!

32
O Golpe Militar e Implantação da
Ditadura Civil-militar Brasileira
Golpe de 1964: lá se vão 50 anos!

2014. Ano dos cinquenta anos do golpe civil-militar de 1964. Nesse ano, muitas
pessoas, organizações, estudantes, educadores, instituições rememoraram e
(des)comemoram essa data sombria, que marcou o início do período de 21 anos de ditadura
em nosso país. Com certeza, precisamos debater muito o tema para informar e formar tanto
aqueles que cresceram durante a ditadura e por ela foram "moldados" por meio das escolas,
da mídia, da repressão, das propagandas institucionais e das políticas psicossociais que
objetivavam paralisar e amedrontar nossa sociedade, quanto os mais jovens, que são filhos
de uma geração amordaçada, que nasceram e viveram em meio às mensagens individualistas
do neoliberalismo e que muito pouco ou quase nada ouviram falar de golpe, ditadura,
censura, mortos ou desaparecimentos, porque em nossa transição política, optou-se por
calar.
A partir das discussões que temos feito,
você deve ter acompanhado que o golpe,
enquanto fato histórico, não representa um
momento isolado na trajetória brasileira. O golpe
não ocorreu apenas pelo interesse dos militares
– isolados do restante da sociedade – em ocupar
o poder e combater o "perigo comunista", assim
como eles não foram conduzidos ao poder nos
braços da maioria do povo, como algumas
vezes os setores militares reacionários querem
fazer parecer. O golpe no Brasil estava conectado com a realidade da Guerra Fria, com a busca
de hegemonia na América Latina por parte do Estados Unidos, que comandava o bloco
capitalista, e com os interesses da elite econômica e política do Brasil, que pretendia frear o
processo de organização crescente dos trabalhadores no campo e nas cidades, que desde o
começo dos anos de 1960 lutavam mais e mais por seus direitos e por uma sociedade mais
equânime. Neste sentido, certamente os militares foram apoiados por parte do
empresariado, da imprensa, da classe média, por latifundiários e por setores conservadores
da Igreja.
Para compreender melhor os fatos transcorridos entre
a madrugada de 31 de março de 1964 – quando militares
marcharam em Minas Gerais e no Rio de Janeiro contra o
governo de Jango – e os meses que se passaram logo após o
golpe, com repressão e combate ao "inimigo interno"
comunista, intervenções no parlamento, em sindicatos, partidos
políticos, organizações estudantis, e com a invenção de um
arcabouço legal imposto pelos militares para prestar-lhes falsa
legitimidade no poder, gostaríamos de indicar a leitura do texto
O golpe de 1964 e a instauração do regime militar, do site do
CPDOC /Fundação Getúlio Vargas.
Com o objetivo de elucidar melhor o contexto de golpe e o
interesse dos Estados Unidos na questão, gostaríamos de
destacar também a existência de gravações feitas por escutas
instaladas na Casa Branca pelo próprio presidente John

34
Kennedy, que comprovam que os EUA planejavam uma intervenção militar no Brasil. Essas
gravações foram liberadas pela John F. Kennedy Presidential Library e agora podem ser
amplamente acessadas pelo site Arquivos da Ditadura de Elio Gaspari, no qual o jornalista
disponibiliza um acervo com cerca de 15 mil documentos que serviram de base para a edição e
a reedição de seus livros sobre a ditadura militar no Brasil.
Em 07 de outubro de 1963, Kennedy se
reuniu com Lincon Gordon na Casa Branca para
tratar da "ameaça comunista" no Vietnã e nos
países da América. Gordon exerceu a função de
embaixador dos Estados Unidos no Brasil, de
1961 a 1966, articulando forte oposição ao
presidente João Goulart. Kennedy temia que as
Reformas de Base defendidas pelo governo
Jango fossem implementadas, aumentando,
então, a base esquerdista do governo e
aprofundando as lutas sociais no país, que poderiam conduzir a uma saída socialista. Nesse dia,
o embaixador já afirmava a Kennedy que o golpe militar poderia ser uma opção para resolver a
crise política brasileira, com o qual o presidente concordava. Para acessar a gravação, clique
aqui.
O documentário "O dia que durou 21 anos", de Camilo
Tavares e Flávio Tavares, lançado em 2013, também é uma
excelente fonte de informações a respeito do golpe de 1964 e seu
contexto. Produzido com documentos secretos e gravações
originais da época, mostra a relação dos EUA com o golpe, sua
articulação em apoio aos militares brasileiros, fornecendo um rico
panorama desde a crise política estabelecida com a renúncia de
Jânio Quadros, em 1961, até o sequestro do embaixador norte-
americano Charles Elbrick, em 1969, cinco anos após o golpe. Vale
a pena conferir!
Enfim, acreditamos que somente assim - com muita troca de
informações e reflexão crítica - conseguiremos dar fim a
muitas heranças da ditadura em nosso país, como o entulho
autoritário e a defasagem na educação, na participação política e
no exercício da cidadania.

35
A Imprensa, o Golpe e a Ditadura

Quando falamos em mídia, falamos da mídia impressa (jornais, tabloides e revistas),


mídia falada (rádio e música) e televisiva (TV e Cinema). Se pensarmos no contexto da década de
1960 os principais meios de comunicação ainda eram o jornal e o rádio. O rádio, com suas ondas
longas e curtas, era a mídia mais transmitida e de longo alcance. Os jornais representavam
posições contrárias ou favoráveis ao governo e relatavam também o dia a dia. A influência da mídia
na sociedade era, e é, visível, exercida sobre nossos modos de vestir, falar, se relacionar, pensar e
agir no mundo.
A chegada do aparelho televisor foi uma novidade para o Brasil da década de 1950, que a
partir de então, passou lentamente a conhecer uma vida regulada pela televisão e suas
publicidades. Nos anos de 1960, a opção pelo cinema ainda era muito mais barata, se comparada
ao valor para aquisição de um televisor, além de ser uma mídia excelente para um país com alto
índice de analfabetismo, se comparado ao jornal impresso. Nesse sentido, os Cinejornais
produzidos pela Agência Nacional (criada por Getúlio Vargas e regulada pelos governos que o
sucederam) se transformaram em um eficiente mecanismo de marketing político e difusão das
ideias do governo, ao serem transmitidos de forma obrigatória antes das sessões de cinema longa-
metragem no país. O Partido Trabalhista Brasileiro utilizou muito o Cinejornal para propagar seu
plano de governo e as Reformas de Base, como já vimos em postagens anteriores.
Com o golpe civil militar de 1964, as mídias viram cerceada a liberdade de imprensa. A
lógica da bipolaridade invade o universo da comunicação no Brasil, ficando de um lado as mídias
que apoiavam o Golpe, tinham guarida legal e muitas vezes apoio econômico para operar, e de
outro, as mídias que eram contrárias à ditadura. A censura perseguia de forma implacável os jornais
que eram contrários ao regime militar, como o Última Hora, que chegou a ser fechado. Por outro
lado, jornais como A Folha da Tarde, que apoiaram o golpe e tinham até mesmo policiais
escrevendo e trabalhando na redação, cresceram muito no período. Como afirma João Amado em
artigo para o Observatório da Imprensa, “A maior parte da grande imprensa participou do
movimento que derrubou o Presidente João Goulart e foi, sem dúvida, um dos vetores de
divulgação do fantasma do comunismo, que foi utilizado como uma das justificativas para
derrubada do governo”. A resistência na imprensa ficou muitas vezes a cargo da imprensa
alternativa, geralmente vinculada à organizações de esquerda e a núcleos de intelectuais que se
uniam no intendo de expressar a oposição ao regime. São exemplos jornais como O Pasquim,
Coojornal, Opinião, Em Tempo, Movimento e Novos Rumos.
A grande maioria dos jornais de grande circulação apoiou o
golpe em 1964, e boa parte deles seguiu apoiando o regime.
Porém, alguns mudaram sua linha editorial e, depois de algum
tempo, passaram a fazer críticas aos militares no poder, como foi
o caso do jornal Correio da Manhã. Além disso, muitas mídias de
porte eram editorialmente alinhadas à ditadura, mas possuíam
em suas fileiras jornalistas engajados, que em determinados
momentos conseguiram publicar conteúdos de crítica ao regime.
A partir desse panorama, indicamos esta semana um vídeo que retrata o primeiro aniversário da
“Revolução” (golpe) de 1964, reportagem do Cine Jornal exibido em vários cinemas pelo Brasil.

36
Indicamos também as bases de dados para muitos vídeos, para que
você possa pesquisar mais sobre a imprensa brasileira! O primeiro
site é da Cinemateca Brasileira, base que conserva em formato
digital as reportagens e filmagens da TV Tupi, das décadas de 1950 a
1980. O outro site é uma base de dados do Arquivo Nacional, onde
você pode pesquisar sobre o Cine Jornal e os informativos da
Agência Nacional. Utilize verbetes relacionados ao contexto da
época, como “revolução”; “subversivos”; “Dops”; “censura”, para
pesquisar sobre temas relacionados a esse assunto.

Veja ainda:

Você sabia que a Rede Globo de Televisão nasceu no


ano de 1965 e que hoje assume que apoiou a ditadura?
Confira clicando aqui.

Canal 100 e a Construção do Imaginário: artigo sobre os


cinejornais no contexto da Ditadura. Confirma clicando
aqui.

37
A Operação Limpeza – Primeiro Período após o Golpe de 1964

Até o momento, estudamos algumas informações que julgamos relevantes para a


compreensão do 31 de março de 1964.
No andamento do nosso estudo, trabalharemos um pouquinho sobre o período que
seguiu imediatamente o Golpe, que, por parte da historiografia sobre a Ditadura Militar, ficou
conhecido como Operação Limpeza e foi legalmente justificado pelos primeiros Atos
Institucionais.
Poucos dias após o Golpe, começaram as perseguições aos apoiadores do governo
deposto. O primeiro Ato Institucional (AI-1) convocou eleições indiretas para presidente,
destinando a ele grande poder de decisões sobre o destino do país. O Comando Supremo da
Revolução, também instituído pelo AI-1, tinha o poder de cassar mandatos de políticos eleitos e
de suspender os direitos políticos de qualquer cidadão e as garantias de estabilidade de
funcionários públicos federais, estaduais e municipais – cujas demissões ficaram conhecidas
como expurgos. Também estavam previstas a abertura de inquéritos para apurar “crimes contra
o Estado” e a limitação do poder do judiciário. Logo na sequência, foi eleito presidente, pelo
Congresso Nacional, o general Castello Branco, conforme Rodeghero, Guazzelli e Diestmann.
Vários deputados, sobretudo da base do presidente Jango, perderam seus mandatos –
prática que seguiria nos próximos anos de bipartidarismo. Suplentes de deputados, prefeitos e
vereadores também foram atingidos. Em 1965, após as eleições diretas para governador que
resultaram em vitória para partidos de oposição ao regime, foi instituído o segundo Ato
Institucional, no qual estavam previstas eleições indiretas para os governadores de estado. Em
seguida, surgiram a ARENA e o MDB, únicos partidos cuja existência passou a ser autorizada.
Foram utilizados amplamente Inquéritos Policiais Militares para processar cidadãos por
crimes contra a segurança nacional – e ser contra ela, naquele momento, significava ser contra a
ditadura e manifestar publicamente essa ideia. Desse processo, muitos casos resultaram em
prisão.
Muitas pessoas foram atingidas nesse primeiro período, após a implementação da
ditadura. Muitas pessoas foram presas e torturadas já nesse momento, muitas perderam seus
empregos, muitas foram processadas, muitos representantes políticos foram obrigados a deixar
seu mandato, muitos foram perseguidos. E a ditadura estava apenas no começo.
Indicação de Leitura:

Para saber mais a respeito desse período e dessas questões,


indicamos a leitura, que serviu como base para essa postagem,
do capítulo Prisões, cassações, expurgos e IPMS, do livro Não
Calo, Grito: memória visual da ditadura civil-militar no Rio
Grande do Sul, de autoria de Carla Simone Rodeghero, Dante
Guimaraens Guazzelli e Gabriel Diestmann, publicado em 2013
pela Tomo Editora. Nele, vocês encontrarão muitas outras
imagens, além das que selecionamos para esse texto.
A obra teve como uma de suas intenções, recuperar imagens que, sobre os diferentes períodos da
Ditadura, resultaram do próprio período histórico aqui no Rio Grande do Sul. Vale muito a pena conhecer,
é um livro de leitura agradável e de impressionantes imagens. Para os professores, a publicação é uma
grande fonte de possibilidades de trabalho pedagógico.

38
Ditadura e Censura

Um dos principais mecanismos utilizados pela Ditadura Civil Militar no Brasil, para buscar
legitimidade, esconder os graves crimes cometidos pelo regime e, ao mesmo tempo, disseminar
uma cultura de medo entre a população, foi a censura aplicada nos meios de comunicação, nas
expressões artísticas e nas produções intelectuais.
A censura tinha o poder de vetar e invalidar trechos e estrofes de textos musicais, roteiros
de teatro, filmes, transmissões de rádio e de televisão. Seus órgãos funcionavam a partir do
trabalho de servidores públicos, admitidos por meio de concurso para a Polícia Federal. O agente
censor deveria ter noções de tiro, comunicação social, cultura brasileira, fiscalização e legislação
censória, enfim, deveria ser formado e doutrinado para atuar como um agente de inteligência a
favor do regime ditatorial, a partir das premissas da Doutrina de Segurança Nacional. Segundo o
edital para formação o profissional de censor federal, também disponível no site Censura Musical,
deveria realizar o exame prévio de qualquer programação relativa aos espetáculos de diversões
públicas, inclusive texto de canto ou recitações destinadas à gravação de discos, incluindo anúncios
e propagandas de espetáculos.
Em 1967, a Lei nº 5.250
regulamentou o controle da
censura, que foi uma prática
efetiva desde o golpe de 1964.
Já em 1970, o Decreto-Lei nº
1.077 instituiu a censura
prévia, realizada a partir de
equipes de censores
instaladas de forma
permanente nos veículos de
informação, ou a partir da
obrigatoriedade de enviar os
conteúdos que se pretendia
publicar ao Departamento de
Censura e Diversões Públicas
do Departamento de Polícia
Federal, junto ao Ministério da Justiça. Eram examinados previamente conteúdos de espetáculos,
textos e letras de músicas, filmes, peças de teatro, anúncios, propagandas, livros.
Constantemente eram realizadas "batidas", para apreensão de material subversivo em
bibliotecas e livrarias.
A ex-censora Odete Lanziotti, que atuou como técnica de censura entre os anos de
1966 e 1980, ano em que se aposentou pela Polícia Federal, declara em entrevista ao site
Censura Musical que eram mais visados artistas já conhecidos pelo perfil "subversivo", como
Chico Buarque, Geraldo Vandré, Milton Nascimento. Havia censores destinados a analisar
especialmente a obra de tais compositores. Comenta também que muitas vezes os artistas
usavam subterfúgios ou duplo sentido para tentar enganar os censores, além de codinomes,
cacofonias (uma ou duas palavras cujo som forma uma outra palavra) e mensagens

39
subliminares. Analisava-se não apenas o conteúdo político, mas também moral das produções,
atentando-se para críticas ao governo e para a moral e os bons costumes.
É importante lembrar que, além da censura oficial aplicada no dia a dia, tal lógica de
repressão e vigilância foi criando uma cultura de "patrulha ideológica", que se expressava na
autocensura – por precaução e medo. Aliada à cooptação dos donos das grandes mídias pelo
regime, e à utilização dos meios de comunicação para despertar o ufanismo entre o povo,
desenhou-se uma realidade em que se tornava muito difícil driblar os tentáculos da Ditadura.
Em entrevista, o radialista Mascarenhas de Morais conta como era conviver com a censura.
Afirma que havia ouvintes que ligavam dizendo para não tocar determinada música pois "não
era bom", e que "Em São Paulo existia uma facção horrível chamada Família Tradição e
Propriedade, que fazia patrulha ideológica. Parecia que todo mundo tinha o suor da censura,
pois tudo que você fazia era pecado. Na Rádio Nacional, fiz muito programa com um censor
dizendo a carta que eu deveria ler."
Se por um lado a censura buscava acabar com a livre expressão de intelectuais, artistas,
jornalistas, controlando a sociedade política e moralmente, por outro, o período foi de grande
riqueza cultural, de busca por alternativas e múltiplas formas de resistência em um cenário em
que a imprensa alternativa cumpriu importante papel, assim como muitos artistas que seguiram
lutando para burlar a censura e que produziam desde o exterior, muitas vezes do exílio,
criticando e denunciando a realidade vivenciada no Brasil.
Se você gostou do tema e deseja saber mais, consulte entrevistas e documentos oficiais
dos órgãos de censura, encontrados no Arquivo Nacional e no Arquivo Público do Estado de São
Paulo no site Censura Musical!

40
Censura – Pequeno Mapa do Tempo de Belchior

Tomando como proposta discussões acerca da censura durante a Ditadura Civil Militar no
Brasil, apresentamos a música Pequeno Mapa do Tempo, de Belchior (Antônio Carlos Gomes
Belchior Fontenelle Fernades). Belchior estudou piano e música coral, sendo também
programador da rádio de sua cidade natal. Em 1962, mudou-se para Fortaleza onde estudou
Filosofia e Humanidades. Começou a estudar Medicina, mas abandonou o curso no quarto ano,
em 1971, para dedicar-se à carreira artística, tornando-se um dos grandes nomes da Música
Popular Brasileira (MPB).
Apresentamos também o processo de censura
da canção, que só foi lançada muitos anos depois de ter
sido escrita, com o fim da Ditadura. Pequeno Mapa do
Tempo foi interditada pela "Divisão de Censura e
Diversões Públicas", tendo diversas estrofes
consideradas "proibidas". Os censores afirmam, no
parecer assinado em 29 de março de 1977, que a
música contém mensagens de protesto político, que
questionam a realidade socioeconômica e política do
país. No documento assinado por dois censores,
observa-se que outras canções de Belchior também são
vetadas, todas por apresentarem "conteúdo de insatisfação e crítica ao regime vigente".
Pequeno Mapa do Tempo
Belchior

Eu tenho medo e medo está por fora Eu tenho medo um Rio, um Porto Alegre,/
O medo anda por dentro do teu coração um Recife
Eu tenho medo de que chegue a hora Eu tenho medo Paraíba, medo Paranapá
Em que eu precise entrar no avião Eu tenho medo Estrela do Norte, paixão,/
morte é certeza
Eu tenho medo de abrir a porta Medo Fortaleza, medo Ceará
Que dá pro sertão da minha solidão
Apertar o botão: cidade morta Medo, medo./ medo, medo, medo, medo
Placa torta indicando a contramão
Faca de ponta e meu punhal que corta Eu tenho medo e já aconteceu
E o fantasma escondido no porão Eu tenho medo e inda está por vir
Morre o meu medo e isto não é segredo
Medo, medo./ medo, medo, medo, medo
Eu mando buscar outro lá no Piauí
Eu tenho medo que Belo Horizonte Medo, o meu boi morreu,/
Eu tenho medo que Minas Gerais o que será de mim?
Eu tenho medo que Natal, Vitória Manda buscar outro, maninha, no Piauí
Eu tenho medo Goiânia, Goiás

Eu tenho medo Salvador, Bahia


Eu tenho medo Belém do Pará
Eu tenho medo pai, filho, Espírito Santo, São Paulo
Eu tenho medo eu tenho C eu digo A

41
A Ditadura Civil-militar:
Os anos que antecederam o
Ato Institucional N°5
Organizações Partidárias

Nesta seção, falaremos sobre Organizações Partidárias, mas, para


isso, será necessário entender um pouco do período que antecedeu o
Golpe Militar e os Atos Institucionais que limparam a política da ação de
determinados partidos, criando o sistema Bipartidarista (Apenas dois
partidos). Para isso, indicamos também a leitura do livro “O Trabalhismo
de Brizola, de Moniz Bandeira”, escrito a partir de entrevistas que o autor
fez com um dos fundadores do PTB, o então exilado Leonel de Moura
Brizola. O livro fala não só da criação do PTB-RS como também de sua
relação com os outros partidos, tanto em âmbito local quanto nacional. O
livro mostra como foi o início do primeiro diretório do PTB-RS onde Brizola
e outros partidários percorriam as ruas em busca de novos associados e
militantes. Essa nova maneira de se organizar, deu ao PTB uma carga diversificada de
parlamentares que defendiam o trabalhismo como solução política.
Antes do Golpe Militar, aqueles que queriam se organizar, politicamente,
encontrariam os seguintes partidos: PSD (Partido Social Democrata), antigo partido de Getúlio
Vargas; PTB (Partido Trabalhista Brasileiro), criado para ser um apêndice do PSD, acaba
conquistando autonomia com militantes vindo do meio sindical e direto das frentes de trabalho
e praças públicas; UDN (União Democrática Nacional), partido mais conservador que agremiava
a elite comercial, agrária, bancária e militar.
O Partido Trabalhista Brasileiro apresentava uma nova abordagem de formação de
base, ou seja, um novo modo de agregar pessoas que quisessem se filiar ao partido. Seus
dirigentes procuravam nos sindicatos, nas fábricas, nos comércios e até mesmo em praça
pública, já que os outros partidos permaneciam mais conservadores, fechados para a população
e para os trabalhadores em geral, mantendo uma postura crítica em relação aos sindicatos.
Leonel Brizola, junto a estudantes, pensadores, trabalhadores urbanos e rurais, foi um dos
fundadores do PTB, que queria trazer de volta, em uma forma renovada, a política de Vargas.
Na década de 1950 o PTB foi embalado pelo movimento Queremista que gritava
“Queremos Getúlio”, mostrando que a população queria Vargas de volta. O PSD, tampouco a
UDN, não aceitava bem a ideia de agremiar os trabalhadores da cidade e do campo em seus
diretórios, fazendo portando um papel de oposição frente à política Petebista e uma militância
anti-Varguista. Em 1961, foi a vez do Movimento da Legalidade garantir o mandato de João
Goulart, do PTB. A resistência obtém sucesso com o apoio das massas, e em 1963 o povo
aprova novamente o sistema Presidencialista dando a João Goulart mais poderes, com os quais
governaria por pouco mais de um ano.
O Golpe iniciado no dia 1º de Abril de 1964, conhecido entre os militares como
“Revolução de 64”, golpeia com armas a presidência da república, tirando João Goulart da
presidência e iniciando uma limpeza. No dia 10 de abril, foi divulgada a primeira lista dos
cassados, 102 nomes foram incluídos, sendo 41 de deputados federais. Clique aqui para
acessar.
Com o General Castello Branco na presidência, foi imposto o Ato Complementar 4, de
20 de novembro de 1965, que estabeleceu o sistema bipartidarista. Desta maneira, apenas dois
partidos políticos poderiam existir: a Aliança Renovadora Nacional (Arena) e o Movimento
Democrático Brasileiro (MDB). Este sistema de partidos vigorou durante 12 anos, até 1979.
Assim, foram extintos UDN, PSD, PTB, PSB, PSP, entre outros.

43
As Organizações Clandestinas na resistência à Ditadura Civil-militar –
da história para o cinema

Desde o inicio de abril, no Blog Resistência, os


leitores têm encontrado postagens que dizem respeito ao
período que vai do início da Ditadura até o AI-5. Na
primeira semana do mês, a postagem intitulada
“Estratégias de Resistência – as organizações partidárias”
pretendeu contextualizar as lutas partidárias do primeiro
período pós-golpe de 1964, no qual foi instaurado o
Bipartidarismo por meio do outorgamento do Ato
Institucional Número Dois (AI-2).
Esse Ato Institucional determinou a extinção de todos os partidos políticos existentes,
estabelecendo um sistema bipartidário, no qual de um lado formou-se a Aliança renovadora
nacional (ARENA), que representava os setores aliados ao projeto da Ditadura, e de outro, o
Movimento Democrático Brasileiro (MDB), que reunia uma parcela da oposição ao regime.
Dessa forma, centenas de mandatos de representantes parlamentares eleitos pelos partidos
extintos foram cassados, assim como diversos partidos foram colocados na ilegalidade.
Nesse contexto, tivemos no MDB, único espaço de luta institucional, a representação
de pautas de lutas contrárias à Ditadura, embora de forma bastante controlada por uma falsa
legalidade do regime. Enquanto setores e militantes de outros partidos colocados na
ilegalidade se agregavam ao Movimento Democrático Brasileiro, muitos optaram pela
militância clandestina, seguindo na organização dos trabalhadores rumo à derrubada da
Ditadura – nesse caso, encontramos o Partido Comunista Brasileiro (PCB) e Ação Popular (AP)
como bons exemplos.
Em 1968, as possibilidades, ainda que
controladas, de enfrentamento ao poder por
meio da ocupação do espaço parlamentar
foram encerradas após a instauração do Ato
Institucional Número Cinco (AI-5), que atribuiu
ao regime poderes absolutos, recesso do
Congresso Nacional, subordinação do Poder
Judiciário, intervenção em estados e
municípios, suspensão de direitos políticos e
do habeas corpus nos casos de crimes
políticos, cassação de mandatos, proibição de
manifestações políticas, cerceamento das práticas sindicais, recrudescimento da censura.
Daí por diante, qualquer luta, manifestação ou pauta de enfrentamento à Ditadura foram
proibidas e rigorosamente combatidas tanto pelo aparato “legal” construído pelos militares
quanto pelas ações institucionais “ilegais” praticadas nos porões dos órgãos de repressão.
Nesse cenário, a alternativa política e a de sobrevivência possíveis aos militantes
de esquerda, que pretendiam permanecer organizados, foi a clandestinidade. Foi com o
objetivo de combater a ditadura, de denunciar todo o tipo de violência cometida e, para
muitas das organizações, de dar início à construção de uma organização social diferente da
capitalista que as organizações clandestinas atuaram no Brasil.

44
Analisando em retrospectiva, sabemos que na clandestinidade atuaram tanto militantes
e organizações, que pretenderam organizar a resistência em torno de pautas democráticas e de
ações não violentas, quanto organizações que optaram pela luta armada, como única forma
possível de combate a um sistema que havia fechado todas as portas para o enfrentamento
institucional ou de mobilização pacífica da sociedade. Ambos foram violentamente reprimidos,
presos, torturados, banidos, exilados. Muitos foram assassinados e desaparecidos, sobretudo
aqueles que formaram as fileiras da luta armada.
Dentre as organizações de resistência não armada, encontramos o Partido Comunista
Brasileiro, que acreditou que o melhor caminho para a resistência e para a revolução seria o
caminho pacífico, na construção da conscientização dos trabalhadores por meio da luta e da
ampliação das liberdades democráticas e de reformas estruturais. Nesse sentido, recusou o
foquismo e a luta armada e, por consequência, perdeu muito de seus militantes para outras
tendências, como também perdeu muitos militantes devido à repressão do Estado. Outros,
como seu militante histórico Luis Carlos Prestes, conseguiram sobreviver. Para saber um pouco
mais sobre o PCB e sobre a história de vida e militância de Prestes, recomendamos o
filme/documentário O Velho – A História de Luiz Carlos Prestes.

Entre as organizações clandestinas que optaram pela luta armada ou que se construíram
já a partir da ideia de ação direta contra a Ditadura, encontramos a Ação Libertadora Nacional
(ALN), a Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) e o Partido Comunista do Brasil (PCdoB). Ainda
dentro das organizações clandestinas que optaram pela luta armada, havia diferentes leituras
como a forma de atuação para a derrubada da ditadura e para a construção de um novo
modelo de sociedade.

45
No caso da ALN, uma das organizações mais
estruturadas, a compreensão era de que o
caminho para o fim da Ditadura passava pela
Guerrilha Urbana. Seus militantes participaram
de ações como expropriações bancárias, de
carros-fortes, de trens pagadores, além de
sequestros de diplomatas que eram trocados
pela liberdade de militantes presos. Um de
seus mais conhecidos militantes, um
comunista histórico, foi Carlos Marighella,
morto em uma emboscada no ano de 1969.
Para saber um pouco mais dessa organização e
da vida e militância de Marighella,
recomendamos o filme Marighella.

Para a VPR, também foram as ações de expropriação e participação em sequestros de


diplomatas as efetivamente executadas por seus militantes. Dentre eles encontramos Carlos
Lamarca, desertor do Exército Brasileiro no ano de 1969, foi comandante da VPR, cuja
organização se assentava no foquismo
revolucionário como forma de derrubar a Ditadura.
Foi condenado como traidor e desertor, sendo
considerado um dos principais inimigos do regime
(assim como Marighella). Perseguido por mais de
dois anos, foi assassinado em 1971, no estado da
Bahia. Sobre a VPR e a vida e militância de Carlos
Lamarca, indicamos o filme Lamarca.
Um pouco diferente das organizações
anteriores foi a compreensão do PCdoB sobre a
estratégia de luta rumo ao fim da ditadura e da construção de uma sociedade comunista. Com
influência da Revolução Chinesa e da Cubana, defendia a guerrilha rural como forma de
impulsionar a luta. Do campo para a cidade, onde se juntariam aos operários, era o lema de
seus militantes que atuaram na Guerrilha do Araguaia, por exemplo. Essa Guerrilha
ocorreu na região amazônica, próximo ao rio
Araguaia, no final da década de 1960 até a
primeira metade da década de 1970. A grande
maioria dos seus militantes, estudantes
universitários e profissionais liberais, foi morta
em combate na selva ou executada após prisão
realizada pelos militares, sendo que mais de
cinquenta deles ainda são considerados
desaparecidos políticos nos dias de hoje. Para
saber mais sobre a Guerrilha, indicamos o filme
Araguaya- Conspiração do Silêncio.

Para saber mais sobre as lutas clandestinas, indicamos a


leitura de Clandestino e revolucionários, texto de Auxiliadora
de Almeida Cunha Arantes, publicado originalmente no site
da Carta Capital em uma série denominada “Especial 50 anos
do Golpe”.

46
A Rádio Nacional e a Aliança de Libertação Nacional

Continuando com a proposta de abordar o tema "estratégias de resistência em


organizações clandestinas" indicamos o videoclipe abaixo: Racionais Mc's - Mil faces de um
homem leal - Marighella (Clipe Oficial 2012).

"Às oito e meia da manhã de 15 de agosto de 1969, um destacamento de doze


guerrilheiros da ALN (Ação Libertadora Nacional) invadiu a estação transmissora da Rádio
Nacional em Piraporinha, perto de Diadema (Grande São Paulo). Dominados os
funcionários, um dos invasores interrompeu a ligação com o estúdio e ligou ao
transmissor de ondas curtas uma gravação. Com o fundo musical do Hino da Internacional
Comunista e do Hino Nacional, a gravação anunciou o nome da Carlos Marighella e
reproduziu o manifesto lido por ele. Na meia hora em que a estação esteve sob controle
da ALN, deu tempo para repetir a gravação. No mesmo dia 15, o jornal paulistano Diário
da Noite lançou uma segunda edição com o texto integral do manifesto de Marighella
captado pela radioescuta. "

Saiba mais em Documento Revelados.

47
Pelos Muros da Ditadura – Ações de Resistência

Nesta seção falaremos sobre as


organizações clandestinas e suas estratégias de
resistência durante a Ditadura. Para tal,
traremos alguns aspectos das ações
empreendidas por elas.
Como verificamos em estudos anteriores, a
repressão era ferrenha contra as
manifestações da esquerda. Para os que
tinham recursos financeiros uma opção foi o
refúgio em países com mais liberdade de
expressão e de organização. Ainda assim, a
resistência foi a opção de muitos militantes que permaneceram no Brasil de forma
clandestina, com o objetivo de combater os militares e de avançar o processo
revolucionário, ou até mesmo de se protegerem da repressão. Esta era a orientação política
de muitas Organizações de esquerda. Em documento do PCdoB, intitulado: “União dos
brasileiros para livrar o país da crise, da ditadura e da ameaça neocolonialista”, datado de
junho de 1966, por exemplo, seus dirigentes, ainda que considerassem que a luta aberta
contra a ditadura era possível, não descartavam o uso da luta clandestina:
(...) Apesar do regime autoritário que impera
no país, ainda há condições de utilizar
comícios, greves, marchas contra a carestia,
assembleias sindicais, paralisações parciais
de trabalho têm sido usados pelos
estudantes, trabalhadores e donas-de-casa.
(...) É preciso utilizar também as formas de
luta clandestina, tais como distribuição de
volantes, pinturas murais, comícios-
relâmpagos.

Uma das formas utilizadas por esses


militantes era a pintura em muros, conhecida
como pichação. Isso, atacava muito mais do
que o patrimônio público ou privado, atacava
diretamente as diretrizes do governo de
censura e controle social. Tais ações deixavam
em evidência a resistência desses indivíduos à
ditadura. Ao longo do período militar, as
pichações foram consideradas atividades
ilegais e subversivas. A pichação é crime de
ação popular, definido no Código de
Urbanismo e Obras (Lei 7427/61).

48
A intenção desta postagem era a de mostrar que os descontentes com a ditadura
não ficaram calados, quietos, inertes e passivos frente à repressão. Utilizavam várias
formas de protesto, como jornais, legais e ilegais, distribuição de panfletos, músicas,
realização de passeatas e pichações em espaços públicos.

49
A MPB e a censura

A MPB – como estilo musical – se torna


uma das maiores expressões culturais de
resistência ao regime militar, na década de
1960 a 1970, no Brasil. Bem recebida pelo
público, principalmente pela classe média, ela
se torna alvo favorito da censura, justamente
por passar a expressar, em suas letras,
posicionamentos políticos engajados e críticos.
O estilo musical conquistou espaço
especialmente a partir dos Festivais da Canção
(1965 a 1985), que lançaram compositores que
enfrentaram o regime e até hoje fazem
sucesso. Muitos foram os compositores da
MPB atingidos pela censura da Divisão de Censura de Diversões Públicas (DCDP), como
Chico Buarque, Geraldo Vandré, Nara leão, Elias Regina, entre outros. A DCDP criada no
governo Vargas, em 1939, teve sua atuação intensificada a partir de 1964, atingindo seu
ápice na década de 1970.
Um caso visto como censura, por exemplo, dentro
do próprio Festival da Canção em 1968, é o famoso
episódio onde a música de Geraldo Vandré, Pra não dizer
que não falei de flores, que claramente fazia crítica ao
regime, incitando a população a sair às ruas e se manifestar,
conquistou o público do Festival, mas deixou de ganhar
para dar lugar à música de Chico Buarque e Antônio Carlos
Jobim, Sabiá, campeã pela votação dos jurados.

Queremos hoje compartilhar com vocês a reação do público que se indignou ao perceber
que a música vencedora não foi a de Geraldo Vandré. Confira abaixo. É fantástico!

50
É proibido proibir, diz a Tropicália no Festival da Canção!

Inovar, música popular brasileira, Guerra do Vietnã, romper, cabelos longos, rock-and-
roll, ditadura, transcender, Maio de 68, multicores, liberdade sexual, psicodelia, chocar,
guitarra elétrica... Quem são esses que subiam aos palcos dos festivais de música na
televisão com a coragem de ser o que nunca antes se havia sido no Brasil? Sim, são os
tropicalistas!

Movimento artístico-cultural de ruptura que sacudiu o ambiente da música


popular e da cultura brasileira entre 1967 e 1968, em plena ditadura no país, e que
aglutinou um grande grupo de músicos, cantores, compositores, maestros, letristas e
artistas plásticos, como Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa, Tom Zé, Rogério Duprat,
José Carlos Capinan e Torquato Neto, a Tropicália surgiu para romper com os padrões
vigentes, questionar o status quo e o regime, introduzir novos instrumentos e técnicas,
novas formas de compor, novos diálogos com a literatura e, em especial, com a poesia.
Por meio da guitarra elétrica e de elementos do rock misturados ao samba,
bolero, baião, entre outros, produziram músicas que impuseram ao público da época a
necessidade de reinventar suas formas de sentir a música. Com canções de difícil
assimilação naquele contexto, foram bastante criticados, vaiados, negados. Usando seus
corpos e sua arte para fazer fortes questionamentos estéticos, éticos, políticos,
comportamentais e morais, chocaram a muitos e foram, de certa forma, incompreendidos.
Inspirados nas lutas do Maio de 68 francês por liberdade, contra a guerra e a opressão, os
tropicalistas bradavam que “É proibido proibir”! Sendo, por isso perseguidos, censurados,
presos e exilados. Mas mesmo em um curto espaço de tempo, em um movimento de
pouco mais de um ano, conseguiram mudar o cenário cultural no Brasil. A música, a arte,
não seriam mais as mesmas depois dos tropicalistas!

51
Pesquisando a respeito do movimento, descobrimos o site Tropicália, um sítio
riquíssimo oriundo de pesquisa aprofundada, coleta de entrevistas, textos e imagens. Um dos
aspectos abordados no Tropicália é a participação desses artistas nos Festivais da Canção, que
marcaram os anos 1960. O movimento explorou o espaço desses festivais de música na
televisão, que se tornaram muito populares primeiramente a partir da TV Excelsior (que por
pressão da ditadura acabou fechando), depois, na TV Record e na TV Globo. Segundo o site,
em outubro de 1967, Caetano participou do III Festival da TV Record defendendo, entre vaias e
aplausos, a canção Alegria, Alegria, “uma marchinha pop cuja letra caleidoscópica retrata
fragmentos da realidade urbana – acompanhado pelo grupo argentino de rock Beat Boys. Uma
esperada vaia terminou abafada por aplausos de muitos. Gil também inovou apresentando a
música 'Domingo no parque' acompanhado pelos jovens roqueiros paulistas Os Mutantes. A
grande novidade dessa música era o arranjo de concepção cinematográfica criado por Gil e
Rogério Duprat”.
Em 1968, a TV Globo lança o III
Festival Internacional da Canção, em que Gil
apresentou “Questão de Ordem”, recebendo
forte vaia e sendo desclassificado. "As guitarras,
seu visual black power e seu modo de cantar
não agradaram a ninguém”. Caetano apresentou
a canção “É proibido proibir”, que era
“praticamente um pretexto para ele defender
uma postura de ruptura declarada ao 'bom
gosto' que as patrulhas de esquerda e de direita
impunham à cultura. Mais performático, junto
aos Mutantes, armou uma verdadeira zoeira
musical orquestrada por Rogério Duprat”. Logo
que começaram a tocar as guitarras elétricas de forma distorcida, as vaias foram se tornando
ensurdecedoras, mas Caetano não se resignou e um discurso muito forte contra o
conservadorismo na arte e na sociedade, acusando a plateia de ser igual aos repressores e de
“não entenderem nada”, como é possível ouvir aqui.
No final de 1968, o Tropicalismo no Brasil foi desmantelado pela repressão da
Ditadura, que impôs o exílio a seus artistas, ainda que as marcas do movimento tenham
seguido, dividindo opiniões. Muitos reconheceram rapidamente a qualidade artística, a
ousadia inovadora, a complexidade de sua produção cultural. Outros julgaram o trabalho como
vanguardista, muito distante do público, com uma pretensão que os tornaria arrogantes.
Independentemente da postura assumida na época em relação ao grupo, é consenso que o
impacto de sua estética e de sua crítica marcou de maneira substancial o cenário artístico do
país. Por tudo isso, sugerimos que leia mais sobre a Tropicália! Certamente você vai se
surpreender ao viajar por entrevistas, depoimentos, reportagens de época e outros conteúdos
que foram sistematizados pelo projeto Tropicália!

52
Os Reis Robertos, a Jovem Guarda e a Explosão da Bomba

Sobre o cenário da música brasileira no período da Ditadura Militar, tem-se


admitido certo consenso de que o palco se dividia em dois grupos: uma "jovem guarda"
alienada e passiva ao contexto político do país e uma MPB engajada. Neste texto,
propomo-nos a discutir e a relativizar essa afirmação, sem qualquer pretensão de
engrandecer ou de justificar o posicionamento político e artístico de qualquer nome da
nossa música. Durante a década de 1960, a cena artística
ficou cerceada pelas políticas de controle social.
Muitas coisas não podiam ser ditas, e muito do que se
queria dizer precisava de um formato velado que
protegesse as ideias do aparato da censura. É bem
plausível que os grandes desdobre nas letras de
músicas não tenham sido formulados pela Jovem
Guarda; no entanto, traremos para vocês um exemplo
no qual a divisão entre música de protesto e iê iê iê
não era tão estanque assim.
Nesse cenário musical, despontou na TV um programa chamado de Jovem Guarda,
que estreou em setembro de 1965, no canal Record. Comandado por Roberto Carlos,
Erasmo Carlos e Wanderléa, foi rapidamente marcado por uma grande audiência popular.
Nesse contexto, Roberto Carlos foi porta voz da Jovem Guarda e do iê iê iê - estilo musical
que se inspirou nas baladas de rock dos anos 1950, que falava de namoros juvenis e
romances aventurosos. A maioria das músicas da Jovem Guarda não tinha compromisso
com a crítica política ou social; todavia, também não se assumiu partidária da ditadura e
nessa posição de “não assumir lados”, foi tachada de apoiadora da Ditadura.
Outro cantor e compositor da Jovem Guarda, Roberto
Rei, bem menos conhecido que o “Rei Roberto”,
compôs algumas das músicas de grande sucesso na
época, como Onda do jacaré e História de um homem
mau interpretadas por Roberto Carlos.
Das músicas que ele interpretou, selecionamos
A bomba está para explodir na praça enquanto a
banda passa, pois mostra que o estilo musical da
Jovem Guarda também guardava seus resistentes.
Lançada em 1967, período no qual a ditadura passou
por um processo de endurecimento, ela fala de um
atentado terrorista que acontecerá enquanto uma
banda de música passa por uma praça. Como toda obra de arte, não cabe a nós interpretá-
la por vocês, mas fica por aqui, o convite para pensarmos nessa banda, nessa praça e nessa
bomba cantada por Roberto Rei em um contexto musical tomado de produções
descomprometidas, no qual exceções não deixam de surgir.

53
A bomba esta para explodir na praça enquanto a banda passa

A bomba está para explodir na praça enquanto a banda passa (Refrão)


A praça é este mundo alegre em que vivemos.
De gente tão risonha tão contente e tão feliz.
De gente que não pensa em ódio e vingança.
De gente que ainda pensa nesta vida com esperança.”
(Refrão)
A banda é o conjunto de gente que trabalha.
De gente que só pensa em produzir e construir.
De gente que não sabe que existem homens maus,
que pensam diferente, pois vão tudo destruir, porque…
(Refrão)
A bomba é a guerra o fim destruição.
De tudo que existe do amor da ilusão.
A guerra é enfim a última desgraça,
pois tão pouca gente vai dar fim a uma raça, porque…
(Refrão)

Você sabia que a ideia de uma banda passando pela praça faz referência a uma música
lançada um ano antes, A banda, de Chico Buarque de Holanda?

Você sabia também que pode ver, por meio de um documento militar da época,
“determinados artistas que se uniram à Revolução de 1964 no combate à subversão [...]
sempre dispostos a uma efetiva cooperação com o Governo”? Encontramos, entre eles,
Roberto Carlos, Agnaldo Timóteo e Wilson Simonal.
Clique para ver os Documentos Folha 1 e Folha 2.

54
Cinema Novo – Cinema do Povo

Nesta seção, falaremos de um movimento cultural que transformou a maneira de


fazer e de perceber o cinema no Brasil. O Cinema Novo foi um movimento que buscou no
Brasil as bases para se fazer uma cinematografia autenticamente tupiniquim, seus
sustentáculos são os aspectos culturais populares de nosso país.
Em 1950, jovens, artistas e pensadores passaram a discutir os rumos para o
cinema nacional. Em 1952 aconteceu o I Congresso Paulista de Cinema Brasileiro, onde se
discutiu o distanciamento do modelo ficcional do cinema norte-americano e a aproximação
com elementos realistas do cinema italiano e francês. O Filme Rio 40 Graus, de Nelson
Pereira do Santos, traz como personagens principais cinco meninos negros que vivem no
Morro do Cabuçu, Zona Norte do Rio, que vendem amendoim em pontos turísticos da
cidade, como Corcovado, Pão de Açúcar e Copacabana. O filme foi vetado pelo coronel
Geraldo de Menezes Cortes (1911-1962), que proibiu a exibição da obra em todo o país.
Nesta primeira etapa do Cinema Novo,
que vai de 1960 a 1964, podemos evidenciar
os trabalhos “Vidas Secas” (1963) de Nelson
Pereira dos Santos, “Os Fuzis” (1963) de Ruy
Guerra, e o prestigiado “Deus e o Diabo na
Terra do Sol” (1964) de Glauber Rocha.
A preocupação desta fase do cinema
era a de criticar e se distanciar do artificialismo
e da alienação atribuídos ao cinema norte-
americano. Para tanto, foram utilizados
cenários simples e naturais, imagens sem
muitos movimentos e mono corte, diálogos
extensos. O cinema queria se aproximar
do povo com o uso de linguagem própria e abordagem de questões ligadas à nossa
realidade social, fugindo da influência norte-americana e se voltando às raízes brasileiras.
Abordando a temática do subdesenvolvimento nacional, diretores e roteiristas inseriram
trabalhadores rurais, cidadãos comuns e locais populares como elenco e locação para as
filmagens.
Segundo Martins, “[...] Os cineastas considerados do Cinema Novo tinham em
comum a preocupação com problemas sociais expressa na tentativa de fazer uma reflexão
sobre a identidade nacional brasileira em seus filmes. Assim, temos um movimento
eminentemente político que, além de pensar as questões sociais, discutiu a questão
cinematográfica brasileira e, nesse sentido, procurou se contrapor à massificação dos filmes
estrangeiros no Brasil”.

55
Com a instalação da Ditadura no Brasil, com o golpe de 01 de Abril de 1964, o discurso
político engajado deixa de figurar nas entrelinhas do cinema para dar lugar ao ufanismo. Os
anseios desenvolvimentistas e a defesa da ordem social passaram a protagonizar o cinema
brasileiro. A censura buscava captar elementos que pudessem caracterizar críticas ao regime
militar ou ainda ao capitalismo. Em estudos realizados por historiadores, podemos perceber
uma tendência, por parte da Censura, à aceitação de filmes que, mesmo considerados
esteticamente pobres por parte da crítica especializada ou ainda contrários à moral, podiam
alavancar o desenvolvimento da indústria cinematográfica no Brasil. Ou seja, aquele filme
que poderia "vender bem" acaba sendo
aceito, como era o caso das
"pornochanchadas". Já no discurso
engajado, os diretores tiveram que
enfrentar vários processos para poder ver
suas películas rodando, seja na telinha ou
na telona, como é o caso de Macunaíma,
de Joaquim Pedro de Andrade, cujo roteiro
fala de um herói sem caráter para um Brasil
urbano e industrializado, pós-AI-5. O
roteiro retrata a história de um índio-
caboclo que nasce em uma aldeia no meio
da selva amazônica, um negro que se
transforma em branco e vai para a
cidade, retornando depois à selva de onde veio. Esse filme enfrentou 16 anos de censura, até
que, após cortes, vetos e proibições, em 06 de agosto de 1985, são emitidos certificados
pondo fim à proibição de sua exibição.
Terra em Transe, dirigido pelo cineasta Glauber Rocha, traz
várias formas de representação nacional. Ele mostra personagens
e figuras nacionais de nossa história, as músicas tradicionais da
cultura brasileira, como samba, candomblé e poemas de autores
brasileiros, além de recursos de estilo bem próprio do autor. Os
interesses políticos são abordados nesse filme, pois esta é a
intenção do Cinema Novo. Glauber Rocha, mais especificamente,
quer, por meio de seus filmes, fazer crítica a estas formas de
governo utilizando recursos inusitados e, ao mesmo tempo,
mostrar um Brasil real.
Um filme que pode caracterizar a retomada do Cinema
Novo pelas produções brasileiras é Pra frente, Brasil de
Roberto Farias. O filme aborda a
prisão arbitrária de Jofre, que é
detido por engano, no ano de
1970, ao ser confundido com um
“subversivo”. A partir daí, sua
esposa e seu irmão tentam
descobrir onde ele está,
encontrando uma série de
dificuldades nesta busca. Com
este plano de fundo, a ideia
central é discutir a tortura e a
participação da sociedade civil na
ditadura.

56
Muitos colaboradores desta veia cinematográfica brasileira foram perseguidos, exilados,
presos e passaram por investigações. Os que continuavam com seus ideais e com suas
propostas do Cinema Novo, a partir da década de 1970, começam a encabeçar uma outra
fase do cinema brasileiro, o chamado “Cinema Marginal”, que vai dar continuidade à postura
contestatória e à abordagem das questões político-sociais anteriormente defendidas pelo
Cinema Novo. Além das indicações já citadas, indicamos as obras de: Cacá Diegues,
Glauber Rocha, Joaquim Pedro de Andrade, Leon Hirszman, Nelson Pereira dos Santos,
Roberto Santos, Rogério Sganzerla, Ruy Guerra, Olney São Paulo, Paulo César Saraceni.

Referências:

●MARTINS, William de Souza Nunes. A censura cinematográfica aos filmes nacionais durante
a ditadura civil-militar brasileira: 1964-1988

●PINTO, Leonor Souza. Macunaíma : dezesseis anos de luta contra a censura.


Cinemateca Brasileira

Memória da Censura no Cinema


Brasileiro

57
Cinema Novo, por Gil e Caetano

Ainda sobre o Cinema Novo e o movimento estudantil, indicamos esta canção que
embalou estudantes, cineastas e tropicalistas nas décadas de 1970 e 1980. Canção que
talvez não seja tão conhecida quanto seus compositores, Caetano Veloso e Gilberto Gil, que
falam do Cinema Novo, e de suas percepções subjetivas deste movimento que mudou a
cultura filmográfica brasileira. Confira!

O filme quis dizer: "Eu sou o samba"


A voz do morro rasgou a tela do cinema
E começaram a se configurar
Visões das coisas grandes e pequenas
Que nos formaram e estão a nos formar
Todas e muitas: Deus e o Diabo
Vidas Secas, Os Fuzis
Os Cafajestes, O Padre e a Moça,/
A Grande Feira,
O Desafio
Outras conversas, outras conversas
Sobre os jeitos do Brasil
Outras conversas sobre os jeitos do Brasil

A bossa-nova passou na prova O samba quis dizer: "Eu sou cinema"


Nos salvou na dimensão da eternidade O samba quis dizer: "Eu sou cinema"
Porém, aqui embaixo "a vida"
Mera "metade de nada" Aí o anjo nasceu
Nem morria nem enfrentava o problema Veio o bandido meteorango
Pedia soluções e explicações Hitler Terceiro Mundo
E foi por isso que as imagens do país/ Sem Essa, Aranha, Fome de Amor
desse cinema E o filme disse: "Eu quero ser poema"
Entraram nas palavras das canções Ou mais: "Quero ser filme, e filme-
Entraram nas palavras das canções filme"
Acossado no limite da garganta do
Primeiro, foram aquelas que explicavam diabo
E a música parava pra pensar Voltar à Atlântida e ultrapassar o
Mas era tão bonito que parasse eclipse
Que a gente nem queria reclamar Matar o ovo e ver a Vera Cruz
Depois, foram as imagens que assombravam E o samba agora diz: "Eu sou a luz"
E outras palavras já queriam se cantar Da lira do delírio, da alforria de Xica
De ordem, de desordem, de loucura De toda a nudez de Índia
De alma à meia-noite e de indústria De flor de Macabéia, de Asa Branca
E a terra entrou em transe, ê Meu nome é Stelinha, é Inocência
No sertão de Ipanema Meu nome é Orson Antônio Vieira/
Em transe, ê Conselheiro de Pixote Super Outro
No mar de Monte Santo Quero ser velho, de novo eterno
E a luz do nosso canto Quero ser novo de novo
E as vozes do poema Quero ser Ganga Bruta e clara gema
Necessitaram transformar-se tanto Eu sou o samba, viva o cinema
Que o samba quis dizer Viva o Cinema Novo

58
A Ditadura Civil-militar:
os anos de chumbo
Ufanismo e Milagre Econômico em tempos de Chumbo

A década de 1960 chegou ao fim em meio a forte acirramento da repressão e da


censura por parte da ditadura no Brasil. Os anos de chumbo são lembrados pelo rigor do AI-
5, pela forte violência utilizada contra as organizações de resistência ao regime e pelo
aniquilamento da maior parte dos militantes da luta armada. O mesmo período, por outro
lado, marcou muitos por ter sido o tempo do “Milagre Econômico”, ou pelo tricampeonato
da seleção de futebol na Copa do Mundo do México, em uma época de forte apelo cívico, de
demonstrações de amor pelo Brasil, em meio a slogans como “Brasil, ame-o ou deixe-o”, ou
“Ninguém mais segura esse país”. Como explicar essa contradição? Como entender que, em
um mesmo país, pessoas morriam nas salas de tortura ou em luta aberta contra a ditadura
ao mesmo tempo que muitas outras louvavam as “glórias” da nação?
O governo do ditador Emílio
Garrastazu Médici, entre 1969 e 1974, é
reconhecido como um governo feroz
contra seus opositores, um período de
torturas brutais, mortes e
desaparecimentos. Não há dúvidas a
respeito disso. Os crimes e as
arbitrariedades, comprovados por
relatos de muitos sobreviventes e por
pesquisas historiográficas, são hoje
debatidos em diversas instituições de
ensino e eventos da área. Nesse
cenário, além do uso da força e da
coerção, a ditadura tinha forte
necessidade de legitimação, de
justificar a permanência dos militares
no poder e de convencer a população
de que o país estava no caminho certo ao estar nas mãos das Forças Armadas. O governo
Médici foi também um período de grandes mudanças na política econômica, de incentivo à
industrialização, de grandes obras de infraestrutura e de muitas campanhas ufanistas, que
colocavam o Brasil como um “gigante” em fase se crescimento e expansão, que já não era o
país do futuro, mas o “país do presente”, que prosperava já naquele momento e com o qual
todos os cidadãos poderiam prosperar, se colaborassem com seu trabalho e devoção à
pátria.
Efetivamente, foi um período de crescimento econômico real, em que os índices
alcançados pelo Produto Interno Bruto (PIB) chegaram a patamares até hoje não superados,
crescendo em média 11% ao ano. Para termos ideia do que isso significa, desde a
implantação do Plano Real, em 1994, até hoje, anos em que se considera que a economia
brasileira estabilizou e vem crescendo, o maior índice do PIB foi medido em 2007, chegando
a 7,5%. Aqueles foram seis anos em que a ditadura conseguiu conciliar crescimento do PIB
com inflação controlada – alta, porém estável e bem menor do que em toda a década
anterior – e com equilíbrio externo na relação entre importações e exportações, sem

60
que houvesse um aumento desenfreado das importações. Nos marcos do sistema econômico
em que vivemos, esses elementos são realmente difíceis de conciliar, e por isso o período é
chamado por muitos de “período do milagre”. Tais anos de crescimento contribuíram para
aumentar a popularidade do governo e para alimentar as campanhas ufanistas, que tiveram
grande impulso com a vitória da seleção brasileira na Copa de 197, cujo amor à pátria foi
cantado em verso e prosa!
Entretanto, esse cenário apresentado requer diversas problematizações… Pelo
espaço de que dispomos, vamos apontar somente duas: sobre quais pilares foi construído o
crescimento econômico do período e quem ganhou com isso? Qual foi o real apoio do povo à
ditadura, em vista de ele estar imerso em um momento de euforia, ainda que em um contexto
de forte repressão e violência por parte do Estado?
Sobre a primeira questão, muitos já escreveram e observaram que o crescimento
impulsionado pelos militares foi calcado no endividamento do país, ou seja, foram feitos
diversos investimentos na indústria e em grandes obras públicas com recursos oriundos de
empréstimos internacionais a juros altos, que fizeram com que o país entrasse em um ciclo de
endividamento externo do qual até hoje é refém. Além disso, boa parte desses recursos foi
utilizada em obras “faraônicas”, como a Rodovia Transamazônica, utilizada como propaganda
de um “Brasil gigante”. Além do endividamento, também é importantíssimo salientar que o
crescimento do PIB não significa um desenvolvimento socioeconômico planejado e igual. Ao
contrário, o desenvolvimento no período agravou muito a desigualdade social em nosso país,
ampliando profundamente o fosso que separa os mais ricos dos mais pobres. Um dos
principais fatores que contribuíram para isto foi o arrocho salarial (contenção do aumento dos
salários imposta pelo governo), que prejudicou diretamente a classe trabalhadora. Segundo
dados publicados em reportagem pela Superinteressante, “A concentração de renda disparou
durante o milagre. No índice de Gini, que vai de 0 a 1, ela saltou de 0,50 em 1960 para 0,62 em
1977 – o pior nível da história”, assim como o “valor real do salário mínimo despencou. No
final dos anos 70, eram necessárias 153 horas de trabalho para ganhá-lo, contra 65 horas em
1959”. Obviamente, o crescimento da produção e da economia, de modo geral, repercutiu em
algumas melhorias para a sociedade, conforme dados trazidos na mesma reportagem, por
exemplo: “A expectativa de vida da população brasileira aumentou 9 anos nessa mesma
década – o maior crescimento já registrado na história do País” e a taxa de mortalidade infantil
também caiu, de 131 mortes a cada 1.000 nascimentos, em 1965, para 113, em 1975. São
dados importantes, mas com certeza podemos nos perguntar: que Brasil teríamos hoje se as
prioridades da política econômica girassem em torno da igualdade social, e não do
crescimento para o grande capital, com estímulo à educação e à liberdade de expressão?
Em relação à segunda questão: até que ponto a sociedade brasileira, em sua maioria,
compreendia o que estava acontecendo com os que lutavam contra o regime de exceção e
tinha chances de se posicionar? Em mãos de quem e repercutindo quais ideias estavam a
mídia e as instituições de ensino? Ou, até que ponto uma explicação, que tenta justificar o
caminho de que “foram todos manipulados pela ditadura”, ajuda a compreender realmente o
caráter das opções políticas e ideológicas feitas pela maioria dessa população?
No artigo intitulado Milagre, comemorações e consenso ditatorial no Brasil, 1972,
que indicamos como leitura, a pesquisadora Janaina Martins Cordeiro traz boas reflexões a
respeito dos mecanismos de busca de consenso utilizados pela ditadura, demonstrando que
seria muito mais complicado para os militares se manterem no poder por tanto tempo sem
buscar o apoio do povo através do convencimento, para além do uso da força. Além disso,
Janaína demonstra o quanto os ditadores foram perspicazes ao construir políticas e
propagandas que buscavam dialogar com tradições arraigadas entre os brasileiros,
estimulando valores e sentimentos já presentes entre a população, como o patriotismo, a

61
valorização da família e da religião. Para tanto, a autora toma como referência principal a
“análise sobre a natureza do consenso social durante os anos Médici as comemorações dos
150 anos da Independência do Brasil, realizadas com pompa ao longo de todo o ano de 1972”.
Ela afirma que este foi um “momento privilegiado para observar as relações entre sociedade e
regime em sua complexidade, buscando ultrapassar a lógica, por vezes simplificadora –
dominante, sobretudo nos discursos de determinada memória – e que coloca de um lado um
Estado opressor e de outro, uma sociedade vitimizada. Desse ponto de vista, conformam
importante espaço para se observar os mecanismos de formação de um consenso no seio da
sociedade, fundamental para a sustentação da ditadura naquele momento”.
Atualmente discute-se nos meios acadêmicos e militantes o uso do conceito de
ditadura “civil militar”, e não apenas “militar”, como forma de explicitar o apoio de setores da
sociedade civil ao golpe de Estado e ao regime ditatorial implantado a partir dele. Em nossa
perspectiva, acreditamos, sim, que houve apoio civil, mas que estava relacionado de maneira
direta à elite brasileira, que apoiou institucional e financeiramente a ditadura para defender
seus interesses de classe. Porém, admitimos e compreendemos a importância de aprofundar
as pesquisas e discussões em torno do apoio de outros segmentos civis, que fazem parte das
classes populares, especialmente como forma de minimizar explicações que vitimizam e
menosprezam a participação social e a capacidade de compreensão e atuação político-social
do povo. E a análise do contexto do chamado “milagre econômico” com certeza é importante
para tais problematizações. Teria o povo cantado seu amor ao Brasil por puro medo, ignorância
ou inércia, ou em determinado momento fez a opção de apoiar os governos militares
ditadores? Essa pergunta, por mais incômoda que possa soar, precisa ser encarada, sob pena
de não superarmos compreensões e valores conservadores. Para que possamos prosseguir na
construção de uma sociedade realmente democrática, participativa e igualitária, precisamos
encarar de frente nossa história, fazendo as críticas necessárias não somente aos ditadores
militares, com aliás temos feito e denunciado, mas também aos segmentos abastados entre
civis que apoiaram e incentivaram que os militares tomassem e se mantivessem no poder, e
aos demais segmentos da sociedade que podem ter apoiado um regime discricionário
baseado no Terrorismo de Estado em nome de ideologias reacionárias.

62
Combate nas Trevas de Jacob Gorender –
Indicação de Leitura sobre a Resistência Armada à Ditadura

Publicado pela primeira vez em 1987, Combate nas Trevas – A Esquerda Brasileira:
das ilusões perdidas à luta armada, escrito por Jacob Gorender, é um dos livros mais lidos e
mais conhecidos sobre a temática da Luta Armada no período da Ditadura no Brasil.
Gorender, que é historiador, também foi militante do Partido Comunista Brasileiro e
fundador do Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (organização de luta armada).
Nesse sentido, além de uma análise histórica, o autor escreve memórias daqueles anos, da
atuação do PCBR e de várias outras organizações, como a ALN e a VPR, que optaram pela
luta armada como forma de resistência.
No capítulo intitulado Imersão na Luta Armada, ele discute
as possibilidades de resistência a partir do Ato Institucional
número cinco (AI-5). Segundo o autor, nesse momento, as lutas
de massa estavam encerradas e a única resposta possível que
restou, da clandestinidade dos militantes de esquerda, foi o
combate pelas armas. Para ele, as vanguardas revolucionárias
não poderiam se constituir em partidos políticos com braços
armados, visto que toda possibilidade de lutas institucionais
estava esgotada, mas deveriam ser organizações de corpo inteiro,
militarizadas e voltadas para as tarefas de luta armada.
Nesse momento de virada de muitas organizações para a
ação armada, também houve uma virada do Estado, no sentido
de profissionalizar ainda mais a repressão. Segundo Jacob, o
súbito aumento da escalada da luta armada pôs à mostra a incapacidade do aparelho
policial no enfrentamento desse novo tipo de organização.

Foi desse recrudescimento das instituições que surgiu a OBAN (Operação


Bandeirantes) que, mais tarde, foi incorporada institucionalmente pelo Exército, recebendo
o nome de DOI/CODI (Destacamento de Operações de Informação/Centro de Operações de
Defesa Interna do II Exército), instituição que se transformou em um dos maiores e mais

63
sangrentos centros de tortura do país. Desde Gorender, quando o major do Exército Carlos
Alberto Brilhantes Ustra assumiu o comando do DOI/CODI, as operações de investigação,
captura, interrogatório, análise de interrogatórios, fichário e cruzamento de informação foram
organizadas de forma meticulosa: “sob suas ordens, a tortura deixou de ser arbitrária e caótica
e se tornou uma prática orientada e metódica, friamente executada”. Além de São Paulo, os
DOI/CODI passaram a ser instituições oficiais no Rio, Recife, Brasília, Salvador, Belo Horizonte,
Porto Alegre, Fortaleza e Belém.
Já os militantes, além de se empenharem na luta armada, passaram a ter que se
defender de uma repressão mais coordenada, equipada e informada. Além disso, conforme o
autor, enfrentavam dois outros grandes problemas além da repressão policial. O primeiro
deles dizia respeito ao sustento de um número cada vez maior de militantes que tiveram de
passar para a clandestinidade para conseguir continuar atuando na luta. Gorender afirma que
as quantias arrecadadas nos assaltos a bancos (também chamado de expropriações ou ações
confiscatórias) decrescia, devido aos cuidados que a agências passaram a tomar, não deixando
muito dinheiro a disposição nos caixas e nos cofres das agências. O segundo, dizia respeito à
imagem que as organizações estavam tomando diante da população. Segundo o autor, durante
as ações, “repetiam-se os episódios em que humildes vigilantes de bancos e soldados, que
resistiam à tomada suas armas, saíam feridos ou mortos no choques com guerrilheiros”. Esses
fatos ocupavam os noticiários e fomentavam a ideia de terrorismo vendida pela ditadura à
população.
Parece que Gorender, ao mesmo tempo que justifica a decisão de pegar em armas
devido ao fechamento total da ditadura, também realiza uma autocrítica, ao perceber, em
retrospectiva, que os dirigentes revolucionários se afundaram “no engano fatal de que a
justeza de sua causa, a audácia dos seus feitos e a difusão de suas proclamações lhes
garantiam o apoio das massas oprimidas”.
E porque sabemos do desfecho da história, das mortes, dos desaparecimentos, da
imensa repressão despendida pelo Estado sobre os grupos armados até a sua total dizimação,
percebemos o quanto a população esteve alheia a essas ações, de um modo geral. E é nessa
direção que o autor encerra o capítulo: “as organizações sectárias e vanguardistas da esquerda
radical já atuavam quase sem base social. Sua proposta de luta armada não se amplificava pela
ressonância. A ditadura militar começou a apresentar o êxito econômico como credencial de
legitimação política, o que, se não chegava a ser convincente, ao menos desorientava e
neutralizava setores consideráveis da opinião pública, ao mesmo tempo, a ditadura militar
aplicava aos diferentes tipos de oposicionistas diversificados instrumentos de repressão, desde
as pressões informais, as cassações de direitos políticos e as demissões compulsórias às
prisões arbitrárias seguidas de tortura e assassinato.
No entanto, se por um lado a resistência armada não conseguiu derrubar com suas
armas a Ditadura, por outro, explicitou algumas das contradições do regime e, com certeza,
pelas trágicas consequências advindas das mortes, torturas e desaparecimentos, pressionou a
opinião pública a mobilizar-se, um pouco mais tarde, pela abertura política.

Quer mais informação sobre a luta armada?

Sequestro do Embaixador dos Estados Unidos


Além das expropriações bancárias, uma das ações levadas a cabo pelas organizações de
luta armada eram sequestros a diplomatas estrangeiros que estavam a trabalho por seu país
no Brasil. Em geral, esses sequestros serviam como moeda de troca entre as organizações e a
Estado, uma estratégia para libertarem das prisões e das instituições de torturas, militantes
que haviam caído nas mãos da repressão. Nesse caso, após os sequestros dos diplomatas, as
organizações lançavam uma carta-manifesto cujo conteúdo, além de explicações à população
sobre o propósito de tais ações, continha os nomes dos presos políticos que deveriam ser
soltos e liberados em troca dos diplomatas sequestrados.

64
No final dos anos 1960 e
início dos anos 1970, existiram
alguns sequestros e algumas
tentativas fracassadas levadas a
cabo pelas organizações de luta
armada. Um deles, que ficou
bastante conhecido, foi o
sequestro do embaixador
norte-americano Charles Burke
Elbrick. Para mais informações,
leia o texto de autoria de
Gorender, que compõe a obra
Combate nas Trevas.

Além do texto de Jacob, também recomendamos o filme documentário Hércules 56.

Sinopse: Dirigido por Sílvio Da-Rin, esse filme


documentário brasileiro, de 2006, recebeu o nome de
Hércules 56 devido à matrícula do avião militar da FAB
que transportou para o exílio os presos políticos
trocados pelo embaixador norte-americano Charles
Burke Elbrick, sequestrado por organizações armadas
em 1969, durante a ditadura. Além dos 15 presos
políticos, que foram banidos do território nacional e
levados ao México, foi exigida a divulgação de um
manifesto revolucionário pelas principais mídias do país.
Para relembrar o episódio, o documentário reúne alguns
dos sobreviventes da ação para discutir a luta armada,
suas causas e consequências.

Para saber mais, também indicamos alguns livros de memória:

O Riso dos Torturados, de Jorge Fischer Nunes


Guerra é guerra, dizia o torturador, de Índio Vargas
Verás que um filho teu não foge à luta, de Júlio Posenato e J. C. Bona
Garcia
A Guerrilha Brancaleone, de Cláudio Gutiérrez

65
Resistência Armada à Ditadura - Caparaó

Neste texto, abordaremos a temática da resistência armada à ditadura. Vamos


indicar dois documentários que tratam dos focos de resistência organizada à ditadura.
Caparaó, lançado em 2007, conta com depoimentos dos participantes da
Guerrilha do Caparól. Eles nos permitem explorar, por meio da memória dos guerrilheiros,
as estratégias da resistência. O filme mostra ainda continuidades e rupturas causadas pelo
golpe de 1964, importantes para relembrarmos juntos nestes 50 anos.

O movimento Araguaia, de 1966 até 1974, foi mais do que uma resistência
armada, porque que além do enfrentamento armado, os militantes muitas vezes eram
professores e médicos que procuravam interagir com a população, levando educação e
saúde. A Ditadura Militar descobre o movimento guerrilheiro em 1972 e, durante três
campanhas militares, a maior parte dos membros da guerrilha é massacrada. A população
local ficou dividida entre a propaganda da ditadura, que tratou os militantes como
terroristas, e as investidas violentas do exército que prendeu, matou e torturou. Esse filme
mostra o movimento pela ótica da população local, mostrando as marcas da ação dos
militantes e dos militares.

66
Anos de Chumbo – O Sequestro do Cônsul Norte-Americano

Durante o final da década de 1960 e início de 1970 houve uma série de ações
comandadas por diversas organizações de luta armada. Dentre estas podemos citar a
expropriação do Banco Brasul, onde membros da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR)
levaram malotes com dinheiro do grupo Ultragás. Neste mesmo contexto há uma onda de
sequestros de autoridades internacionais. O primeiro, em 1969, foi o do embaixador norte-
americano Charles Burke Elbrik e também o de maior repercussão nacional, pois em troca
de sua libertação foram soltos quinze presos políticos. No ano seguinte foram sequestrados
o Cônsul Japonês Nobuo Okushi, o embaixador alemão Ehrenfried Anton Theodor Ludwig
Von Holleben e o embaixador suíço Eurico Bucher.
Assim como no restante do
país, os militantes das organizações
de luta armada no Rio Grande do Sul
sistematizavam ações neste mesmo
sentido. Uma das ações mais
noticiadas naquele período foi a
tentativa de sequestro do Cônsul
norte-americano Curtis Carly Cutter,
em 04 de abril de 1970, elaborada por
Felix Silveira Rosa Neto, Fernando
Damata Pimentel, Irgeu João
Menegon e Gregório Mendonça,
todos membros da VPR. O Cônsul estava com sua esposa em um carro modelo Plymounth e,
ao ser abordado pelo grupo, lançou seu veículo contra o Fusca guiado por Irgeu. Neste
momento, atropelou Pimentel e conseguiu escapar. Felix atirou no Cônsul que mesmo
atingido no ombro, continuou dirigindo até chegar à residência oficial (também possível
encontrar informações sobre esse acontecimento e sobre seus protagonistas nos processos
administrativos que compõem o acervo da Comissão Especial de Indenização).
Fernando Damata Pimentel atuou na Vanguarda Armada Revolucionária Palmares
(VAR Palmares) e, posteriormente, na VPR. Ele confirma, em seu relato de prisão, que
participou de ações armadas, entre elas a tentativa do sequestro do norte-americano Cônsul
Curtis Carly Cutter. Por conta disso, Fernando foi preso no dia 12 de abril de 1970, por volta
das 13 horas, ao chegar no apartamento de familiares de Felix Silveira Rosa Neto. Em
seguida, foi conduzido para o DOPS onde foi algemado e teve os olhos vendados. Deste
momento até a madrugada do dia seguinte, foi vítima de maus-tratos cometidos por
diversos agentes do DOPS, comandados pelo então Delegado Pedro Seelig e por Nilo
Hervelha. Segundo Fernando, também participaram destas sessões o “Capitão Malhães” e o
“Tenente Cabral”. Na manhã do dia 13 de abril, viu Felix muito debilitado e insistiu para
aproximar-se do companheiro e, assim, puderam trocar algumas palavras. Até o mês de
agosto daquele ano permaneceu no DOPS, com algumas estadas na Ilha do Presídio. Foi
transferido para o antigo Regimento de Reconhecimento Mecanizado, no bairro Serraria, em
Porto Alegre, onde permaneceu praticamente incomunicável até março de 1971, quando foi
julgado, condenado e conduzido ao Presídio Central de Porto Alegre. Posteriormente, foi
transferido para a Penitenciária Estadual de Linhares, em Juiz de Fora, Minas Gerais, e teve
seus direitos políticos suspensos por 10 anos.

67
Outro processo administrativo que nos auxilia a compreender este fato é o de Felix
Silveira Rosa Neto. Ex-bancário, assim como Fernando, foi preso por sua participação na
tentativa de sequestro do Cônsul. Ficou detido por mais de sete anos: de 12 de abril a
agosto de 1970, no DOPS e na Ilha das Pedras Brancas; de agosto de 1970 a maio de 1971,
em Quartéis do Exército; e de maio de 1971 a 23 de novembro de 1977, no Presídio Central
de Porto Alegre e na Penitenciária do Jacuí. No DOPS, segundo declaração no processo, foi
vítima de maus-tratos cometidos pelo agente “Pablo”, mais tarde identificado como Capitão
do Exército Paulo Malhães, e pelo agente “Cabral”, que se auto identificavam como
integrantes do CIEx, mas que atuavam em dependências do DOPS.
No acervo da Comissão Especial de Indenização, encontramos também os processos
de outros integrantes da Vanguarda Popular Revolucionária, incluindo os de Irgeu João
Menegon e de Gregório Mendonça. Esta documentação nos dá um panorama de como as
organizações de luta armada se articulavam no Rio Grande do Sul e, se combinada com
outras fontes, podem ilustrar de forma mais clara e ampla este contexto.

68
Entrevista com o Cônsul que sofreu tentativa de sequestro

Durante um período da Ditadura Civil Militar no Brasil, a partir da década de 1960,


alguns grupos internalizaram a ideia de que apenas com manifestações não seria possível
derrotar o regime. Neste contexto, surgiram grupos guerrilheiros, sendo que alguns grupos
já estabelecidos optaram por pegar em armas. Tais grupos passaram a se chamar, e são
chamados até hoje, de organizações de luta armadas ou guerrilheiras. Aqui, no Brasil, foram
muitos os grupos que pegaram em armas, como a VPR (Vanguarda Popular Revolucionária),
VAR-Palmares (Vanguarda Armada Revolucionária), MR-8 (Movimento Revolucionário),
ORM-Polop (Organização Revolucionária Marxista – Política Operária), POC (Partido
Operário Comunista, M3G (Marx, Mao, Marighella e Guevarava), entre outros.
Essas organizações realizavam ações como
expropriações de bancos e/ou de armas nos
quartéis-generais e sequestro de autoridades
internacionais, como cônsules e embaixadores,
como tentativa de negociar a liberdade de militant
es já presos.
Em Porto Alegre, em meados da década de
1970 houve uma tentativa de sequestro do então
cônsul norte-americano Curtis Carly Cutter. Esta
ação foi sistematizada por membros da organização
VPR. A tentativa não deu certo, e os
envolvidos no caso foram presos. Leia a seguir, trechos da entrevista com Curtis Carly
concedida à revista Época.

O senhor sabia que seu apelido entre os militantes que tentaram sequestrá-lo era Mr. CCC,
referência ao Comando de Caça aos Comunistas?
Curtis Carly Cutter – Eu não tinha ideia. Era um apelido muito inapropriado, porque eu
vinha de uma cultura acadêmica muito liberal, e minha postura era tentar fazer contato
com todos os elementos da política em Porto Alegre. Ser anticomunista era ser como o
senador Joseph McCarthy e, naquela época, eu poderia ser descrito como um social-
democrata. Mas posso dizer que o comunismo era identificado com o stalinismo. E o
stalinismo não era um regime nada liberal.

Talvez a fama venha do fato de o senhor ter servido o Exército americano na Guerra da
Coreia…
Cutter – Sim, é verdade. Mas durante a guerra todo mundo teve de servir. Foi na Coreia
que decidi seguir a carreira diplomática. Quando se está numa guerra, é comum pensar:
“Esta não é a melhor forma de resolver um problema”.

Como o senhor vê a tentativa de sequestro que sofreu?


Cutter – Eu não queria ser sequestrado, mas entendo por que eles queriam me sequestrar.
Se eu estivesse no lugar deles, provavelmente faria o mesmo. Talvez não aos 40 anos, com
seis filhos, mas aos 20, em condições similares, tenderia a ser militante como eles. Quando
os vi na prisão, fiquei triste. Porque eu entendia que eles queriam trazer mudança a uma
sociedade que precisava mudar.

69
Futebol em tempos de Ditadura, Correio do Povo e a Copa de 1970

Foi na gestão de Garrastazu Médici que o Brasil sagrou-se campeão da Copa do


Mundo de 1970, realizada no México, trazendo consigo a taça Jules Rimet. A vitória no
México tornou-se quase uma questão de Estado e o uso político para isso era
inquestionável. No entendimento do governo, coube à mídia impressa e à televisão o
“incentivo” para que a população acompanhasse a trajetória do selecionado brasileiro no
mundial do México.
Para a pesquisa
histórica, fontes como os
jornais, disponíveis em
diversos acervos pelo Brasil,
são bastante importantes,
uma vez que a partir delas,
pode-se perceber como as
notícias chegavam na
sociedade. E a indicação de
leitura é, justamente, de um
trabalho que utilizou esse
tipo de fonte para
desenvolver uma pesquisa a
respeito da relação entre
futebol e ditadura.
O trabalho que sugerimos é resultado de uma pesquisa realizada no ano de 2013
pelo historiador Alexandre Ávila, e consiste em uma análise de como as notícias da copa do
mundo de 1970 chegaram ao Rio Grande do Sul. Para isso, foram utilizadas todas as
edições do Correio do Povo que datam de 31/05 até 21/06 de 1970. Por meio dessa
temática, pode-se perceber como o governo se utilizou do evento mundial para exaltar as
políticas implantadas pela ditadura e, ao mesmo tempo, encobrir as violações aos direitos
humanos que aconteciam no Brasil. A partir deste trabalho, é possível analisar o período
ditatorial através de uma perspectiva pouco diferente, os jornais. Clique aqui para acessar
o trabalho Futebol em tempos de Ditadura: Correio do Povo e a Copa da 1970.

70
Memórias do Chumbo – O Futebol nos Tempos do Condor

O documentário Memórias do Chumbo – O Futebol nos Tempos do Condor,


produzido pelo jornalista e historiador Lúcio de Castro, investiga as relações entre o futebol
e os braços armados das ditaduras militares em quatro países da América Latina: Brasil,
Argentina, Chile e Uruguai. Com um episódio destinado à história de cada país, Lúcio de
Castro remonta o período de instalação das ditaduras militares e as contextualizam,
principalmente, com as seleções nacionais de futebol, que foram utilizadas pelos militares
como instrumentos de propaganda do regime totalitário.

Confira também:

Memórias do Chumbo: Futebol nos Tempos do Condor – Argentina


Memórias do Chumbo: Futebol nos Tempos do Condor – Chile
Memórias do Chumbo: Futebol nos Tempos do Condor – Uruguai

71
Indicação de Filme: Pra Frente Brasil (1982)

Este filme trata de um inocente, Jofre, que é detido por engano, no ano de 1970, ao
ser confundido com um “subversivo”. A partir daí, sua esposa e seu irmão tentam descobrir
onde ele está, encontrando uma série de dificuldades nesta busca. Tendo este plano de
fundo, a ideia central é discutir a tortura e a participação da sociedade civil na ditadura. Um
primeiro aspecto a ser salientado, portanto, é o caráter da imprevisibilidade da tortura, que
poderia atingir a qualquer um, até mesmo inocentes. Ao ver este caso, ainda que fictício, é
impossível não se indagar quantos casos iguais a esse ocorreram. O preso, que é inocente,
torna-se culpado com provas, já que seu torturador o vê em fotos nas quais não é ele que
aparece. Todos se tornam suspeitos. Toda a trama ocorre em 1970, ano no qual o Brasil
venceu a Copa do Mundo.

PRA FRENTE BRASIL (1982) Roteiro de Roberto Farias. Argumento de Reginaldo Farias e
Paulo Mendonça. Dirigido por Roberto Farias. Estrelando: Reginaldo Faria, Natália do
Valle, Antônio Fagundes e Elizabeth Savalla.

Referência: ALMEIDA, Valesca de Souza. Memória e história – A ditadura que se vê em


“Pra Frente Brasil” e “O Bom Burguês”.

72
E a Revolução Meu Irmão?

A equipe responsável pelo projeto Resistência em Arquivo entrou em contato com


Nei Lisboa, cantor e compositor gaúcho, para que ele desse seu relato sobre a música “E a
revolução?”, que aborda a temática “Ditadura e Direitos Humanos”. Em uma agradável
conversa por telefone, Nei falou sobre o contexto de sua criação, a relação que tem com a
canção, o que ele canta em suas entrelinhas e as memórias que estão presentes em uma
música que faz ponte direta com a história do nosso país.
Nei Lisboa é o irmão mais jovem –
entre sete – de Luiz Eurico Tejera Lisbôa,
primeiro desaparecido político brasileiro, cujo
corpo pôde ser localizado, no final dos anos
70, depois de uma incansável busca de sua
companheira Suzana Lisboa, que segue até
hoje na luta por verdade e justiça à frente do
movimento dos familiares de mortos e
desaparecidos políticos.
E a revolução? é a oitava faixa do
álbum Cena Beatnik, lançado em 2001. Sua
discografia completa, uma coluna de textos escrita por Nei e outros materiais estão
disponíveis em seu site oficinal.

Segue abaixo o depoimento de Nei Lisboa sobre a música “E a revolução?”:

“A letra da música é explícita, ela é direta, tem um discurso direto. Uma poesia que mostra a minha
relação pessoal com esse assunto, com meu irmão que era guerrilheiro, minhas irmãs que eram de
movimento estudantil e dois primos que participaram da luta armada. Eu era o mais novo dos
irmãos. A música tem uma certa dose dessa motivação, dessa relação sentimental que tenho com o
tema. Mas também quis fazer uma relação aberta com a época, e como isso se aproxima do
presente.
Falar do meu amor pelo Eurico é falar das suas ideologias, falar da dor maior que é a perda de entes
queridos, dessa geração que padeceu na carne a ditadura. Um outro lado dessa geração percebeu
essa luta como inglória, mas é questão de momento e ponto de vista, um copo meio vazio, também
pode estar meio cheio. Eles lutaram para que hoje o mundo pudesse se encaminhar para um
caminho mais justo e igualitário.
A música tem uma longa letra sob uma levada roqueira sessentista que vem narrando a época, que é
a minha visão. Em 68 (ano que se passa a música) eu era um guri, tinha nove anos de idade. O
quadro não era só de militância política mas de cultura, de rebuliço, Tropicália, gente vendo e
fazendo a adolescência acontecer, as minissaias. Mas o que segue este rebuliço foi o AI-5 com
torturas, prisões indiscriminadas, violência. A música também fala do contexto do Cone Sul, fala do
Muro de Santiago onde gente foi encontrada enterrada, cimentados dentro de um muro, inclusive
isso aconteceu com a companheira de um amigo meu. Falo também do Rio da Prata, da prática de
jogar pessoas de helicóptero sob o rio que fica na Argentina. Quando falo que 68 foi barra, foi bala,
foi de verdade, duro mesmo. Na redemocratização, essa expressão se tornou uma espécie de
chacota, um clichê, uma frase.
A música tem trechos mais melódicos, mais emotivos, são quase uma mensagem direta ao meu
irmão. No final da letra, sucintamente, eu nomeio certas crônicas do Brasil que mesmo hoje, em
2014, continuam, de uma forma ou de outra: “Luxúria, Mentira, Autoridade sem moral.”

73
Burlando a Censura: Julinho de Adelaide na Obra de Chico Buarque

Durante o período da Ditadura Civil Militar brasileira,


não somente pessoas que se propuseram a registrar seu
descontentamento ao regime, indo às ruas ou se organizando em
grupos armados, foram reprimidas. Personalidades públicas,
principalmente ligadas à cultura, também sofreram censura, como
músicos e atores. Um bom exemplo disso é a censura sofrida por
Chico Buarque. Suas músicas foram censuradas, mesmo com sua
sagacidade em fazer trocadilhos, dando brecha para se projetar
outros olhares e interpretações sobre cada letra, que não só a
perspectiva da crítica política. Chico chegou a usar o pseudônimo
Julinho de Adelaide para “fugir” da repressão e da censura. A
partir desse pseudônimo, ele criou a composições como
Acorda Amor, Jorge Maravilha e Milagre Brasileiro, que retratavam justamente a conjuntura
do regime militar na época.
Veja abaixo, a letra e o vídeo de uma das músicas do “Julinho”, Acorda Amor, que
denunciava práticas de repressão. Na letra dessa música, Chico fala dos horrores da polícia
na vida do cidadão. Narra ainda a experiência do cárcere incomunicável, onde familiares e
amigos desconheciam o paradeiro um do outro, algo muito comum no período da ditadura.
O temor que certa parte da sociedade criou entorno da polícia é traduzido na frase “chame
o ladrão”, e que persiste até hoje. Acreditamos que a partir da problematização de músicas
como essa, é possível compreender melhor a história recente de nosso país. Confira!

74
Indicação de Filme: O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias (2006)

Ambientado nos anos 1970, o filme O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias nos
conta fragmentos de histórias vividas durante o período da Ditadura Militar, a partir do olhar
de um garoto de 12 anos, chamado Mauro. Apaixonado por futebol, o de botão e o de
várzea mesmo, Mauro não acompanhou as “férias” que seus pais viveram naqueles duros
anos de repressão. No entanto, acompanhou a Copo do Mundo de 70 sob os cuidados de
um vizinho (Shlomo) de seu avô que faleceu momentos antes de seus pais entrarem na
clandestinidade.
Com a ajuda de Shlomo, de novos amigos e de sua
paixão pelo futebol, Mauro enfrentou o drama da separação
da família e a necessidade de, apesar disso, ser criança.
Dentro e fora dele, passam-se as aventuras vividas em meio
às suas novas companhias, como a de Hanna, a ansiedade
pelo retorno dos pais, a Copa do Mundo, o combate à
Ditadura e à repressão, na figura de seu novo amigo
universitário Ítalo – que mais tarde conheceu a
clandestinidade também.
De forma muito sensível, o filme retrata as mudanças
vividas por muitas famílias durante o período que se seguiu
ao ano de 1964: o exílio, dentro e fora do país vivido por pais,
avós, filhos, irmãos, companheiros. E, como relatou o diretor,
é um filme sobre o exílio e a necessidade humana
de construir um lar apesar dele, onde quer que se esteja.
É claro que não vamos contar o final do filme…triste, lindo e emocionante possível
reencontro de Mauro com a família.

Curiosidades:

Você sabia que, inicialmente, Roberto


Carlos desautorizou o uso da música
Eu sou Terrível? Possivelmente, isso
ocorreu pela postura que Roberto
sempre manteve de não associar sua
trajetória musical a contextos da
política brasileira. Segundo o diretor, a
autorização somente foi possível após
o envio do longa para o cantor, que,
após assistir, não mais exitou em
liberar a canção, que embala uma de
suas cenas mais graciosas.

Leia também uma excelente crítica do Jornal A Folha de São Paulo.

75
Em 2014: 45 Anos do AI-5

Há 45 anos, em 13 de dezembro de 1968, numa sexta-feira, às 23h, o Ato Institucional


nº 5 – o AI-5 – era anunciado em rede nacional de televisão e rádio pelo Ministro da Justiça
Gama e Silva, e pelo locutor da Agência Nacional do Governo Federal Alberto Curi no salão
principal do Palácio Laranjeiras, no Rio de Janeiro.
Esse Ato foi responsável pela suspensão
do direito de habeas corpus, restrição dos
poderes do presidente, cassação de
mandatos políticos, pelo fim da
necessidade de investigação ou de
inquérito para punição. E de todos os
desmandos concebidos por ele, foi o
fechamento do Congresso Nacional, das
Assembleias Legislativas e das Câmaras de
Vereadores, as medidas que visibilizaram
.o encrudescimento do regime. Sem o direito de habeas corpus, os presos políticos se
viram reféns dos militares e dos apoios civis que a ditadura recebia. Com o fechamento das
instituições políticas, a vida democrática institucionalizada, bem como a dos movimentos
sociais, foi interrompida. Foi inviabilizado debates democráticos e interrompida, por uma
lei, a participação na vida política de toda uma geração.
Antes, por dentro ainda das instituições políticas, muitos foram os posicionamentos
contrários aos caminhos que estavam sendo trilhados pelos militares. Na Câmara de
Deputados, políticos ainda discursavam contra o regime.
Um exemplo de vida política interrompida é a do falecido deputado Marcio Moreira
Alves, que, três meses antes do AI-5, realizou um discurso contrário ao governo militar: “é
possível resolver esta farsa, esta democratura, este falso impedimento pelo boicote.
Enquanto não se pronunciarem os silenciosos, todo e qualquer contato entre os civis e
militares deve cessar, porque só assim conseguiremos fazer com que este país volte à
democracia” (trecho do discurso pronunciado em 2 de setembro de 1968). Por essa
postura, o parlamentar foi alvo de investigação e inquérito. Houve até mesmo o pedido de
cassação do seu mandato – fato não concretizado naquele momento, pois existiam muitos
parlamentares descontentes com o rumo tomado pelos militares.
Nesse sentido, que podemos dizer que o AI5 assegurou o despotismo de uma
ditadura que ainda sofria com a reação contrária de políticos, de personalidades e de
movimentos sociais. Era a chegada de um período de intolerância total a qualquer tipo de
resistência à Ditadura.
Saiba mais:
Os Atos Institucionais (AI’s) são normas elaboradas pelo governo militar, com apoio do Conselho de
Segurança Nacional, para implantação e estabelecimento da Ditadura Militar. Ao todo, foram 17
Atos Institucionais que regularam a vida social e política do Brasil, no período de 1964 a 1985. Saiba
mais acessando todo o conteúdo em AI’s no site do Planalto.
Confira ainda um site interativo montado pela Folha de São Paulo, onde é possível ver como foi
implantado o Ato Institucional nº 5. O site explora os personagens, o contexto e uma linha do
tempo que gira em torno do ato.

76
APERS? Presente, professor! –
Os anos de chumbo da Ditadura e a Luta Armada no Rio Grande do Sul

A partir desta unidade, traremos alguns recursos didáticos para professores e


educadores. Estas produções foram realizadas pelos integrantes do projeto APERS?
Presente, professor! – que traz propostas pedagógicas a partir do uso das fontes primárias
do Arquivo Público do RS. Nossas propostas para esta publicação estão inseridas no eixo
temático A Resistência à Ditadura Civil-militar – das fontes arquivísticas para a sala de aula,
50 anos depois, e recebeu o nome de Os anos de chumbo da Ditadura e a Luta Armada no
Rio Grande do Sul. Ela propõe uma problematização acerca das ações armadas e da
repressão estatal levada a cabo no Rio Grande do Sul. Para construí-la a equipe do projeto
utilizou como fonte o processo de indenização de um ex-preso político do período. Acesse
aqui o arquivo da proposta.

77
A Ditadura Civil-militar
do lado de lá da Fronteira:
o mundo dos exílios
Exílio e Ditaduras no Cone Sul

Podemos aprender muito sobre a história de nossa sociedade ao observar nosso


presente. Afinal, tudo que existe tem uma história, tudo passou por um processo de
transformação até se tornar o que é no presente. Observando nosso cotidiano, iremos
perceber que, muitas vezes, não vivemos como gostaríamos. Inúmeras limitações são
impostas às nossas potencialidades e vontades por determinadas estruturas sociais
(economia, política, cultura, etc.). Da mesma forma ocorreu com as pessoas que viveram
antes de nós. Assim, devemos tentar compreender a história como a relação entre os
indivíduos e as estruturas que os limitam.
Um dos objetivos deste texto é refletir sobre experiências de pessoas que viveram
intensamente as disputas existentes no Brasil, no início da década de 1960, que culminaram
com o Golpe Civil-Militar, de 1º de Abril de 1964. As vidas desses homens e mulheres foram
alteradas completamente pelo enfrentamento que apresentaram frente ao regime que se
instalava, de caráter profundamente repressivo e antidemocrático desde os seus primeiros
momentos. Praticamente todos que se dispuseram a combater essas arbitrariedades foram
atingidos pela violência, que ocorria sob diversas formas. Muitos se viram obrigados a fugir
do país, a exilar-se, para garantir sua sobrevivência física. É claro que nem todos que se
opuseram ao regime tiveram tempo ou condições financeiras para escapar da perseguição,
por isso tiveram de se esconder em seu próprio país, vivendo uma vida clandestina. Muitas
ainda caíram nas garras do terror implementado pelo Estado brasileiro. Nesse texto, iremos
nos focar nas experiências de exílio, utilizando alguns elementos apresentados por
Grunberg.
Comecemos com a história de um
gaúcho de Pelotas, que ainda jovem passou a
defender princípios democráticos, ao ajudar a
organizar uma associação de bairro ou ao ser
eleito presidente do grêmio estudantil de sua
escola. Jadir Schwans Bandeira foi taxado de
comunista por sua postura, o que significava
uma postura negativa, num contexto em que,
como já vimos, se criou uma aversão a essa
posição ideológica. Jadir defendeu a
legalidade e o governo Goulart contra o
Golpe, apesar de não ter participação
orgânica em qualquer organização política. Esteve preso duas vezes, acusado de ser um
agitador. Em 1966, fugiu para o Uruguai, onde já se encontravam Goulart e Brizola, além de
tantos outros militantes. Pode ser considerado parte de uma minoria que não tinha uma
organização que lhe auxiliasse, nem significativos recursos financeiros, o que aumentava
ainda mais suas dificuldades. A trajetória de Jadir no exílio é influenciada pelo avanço de
golpes militares nos países do Cone Sul. Assim, se viu obrigado a abandonar o Uruguai em
1973, quando lá se instalou uma ditadura militar. Seguiu para a Argentina, permanecendo
apenas até 1976, visto que lá também passou sob o tacão militar. A alternativa encontrada
foi a fugir para a Europa. Com a ajuda da embaixada sueca, conseguiu embarcar num avião
que o levou a aquele desconhecido e longínquo país europeu. Nunca mais retornaria à
América. Com seus atuais 70 anos, afirma que não pretende voltar ao brasil, pois “seria

79
como abrir uma ferida outra vez”, conforme declarou na reportagem para a BBC Brasil. Assim
como em Jair e em tantos outros brasileiros massacrados por defender o sonho de viver em
um país mais justo e igualitário, as feridas ainda existem. Essas são feridas que marcam toda
nossa sociedade, e permanecerão enquanto não forem devidamente saneadas. Crescemos
como indivíduos e como sociedade no enfrentamento dessas questões, que não podem ser e
não serão esquecidas.
Jair faz parte da primeira geração que foi atingida pelas perseguições da Ditadura
militar. Foram os primeiros a se sentirem obrigados a sair do país para garantir sua vida e
poder manter algum tipo de atuação política. Eram integrantes do governo, defensores de um
projeto reformista de transformação social, inúmeros militares contrários à ditadura, históricos
líderes da esquerda (sobretudo comunistas). Essa primeira etapa de perseguição política foi
nomeada de “Operação Limpeza”, por limpar o caminho para a construção do governo militar
e de seu projeto de sociedade.
Porém, boa parte da sociedade não assistiu
passiva a esses eventos, mantendo
permanentemente uma crescente crítica aos
militares, devido às constantes denúncias de
violência e uso de tortura. Em 1968, essa oposição
atinge maior expressão e capacidade de pressionar
os que estavam no poder, provocando uma resposta
ainda mais repressiva do Estado, corporificada no AI-
5. A partir de então, tem-se uma segunda leva de
exilados. Conhecidos artistas foram obrigados a sair
do país, por apresentarem um posicionamento crítico em suas produções. Muitos integrantes
de organizações clandestinas de resistência à ditadura fugiram, na medida em que suas
organizações eram desmanteladas pela repressão. Diversos presos políticos conseguiram
exílio a partir de ações armadas orquestradas por suas organizações.
Se a experiência do exílio afastou pessoas de seus entes queridos, desarticulou
organizações políticas e projetos de vida e deixou em suspenso sonhos de um país
transformado. Em contrapartida, possibilitou condições de que se denunciasse o regime em
nível internacional, ajudando a fragilizá-lo frente a opinião pública de diversos países, que
sobretudo na Europa, oportunizou a construção de redes de solidariedade, criação de novos
movimentos sociais e políticos e a rearticulação da resistência desde o exterior.
Aproximadamente 5.000 brasileiros foram exilados durante a “longa noite” iniciada
em abril de 64, que durou cerca de 21 anos. A luta pela anistia seguiu durante anos no Brasil,
sustentada por diversas organizações de direitos humanos e defensoras da retomada da
democracia. Em 1979, contudo, o governo militar implementou um projeto de Anistia que
desconsiderava as diferenças fundamentais existentes entre perseguidos e perseguidores,
buscando com isso criar condições para o lento processo de abertura política. Nessa anistia,
que segue em vigor até hoje, são os aqueles que utilizaram indiscriminadamente diversos
mecanismos de repressão e controle, sustentados pelo Estado, e os militantes, que com
organizações precárias buscaram resistir ao arbítrio. Enquanto a maioria dos exilados voltava
para casa, o regime ditatorial em distensão, e a elite política e econômica que ele
representava, buscou construir um discurso e uma prática de apagar o passado.
Hoje nós reiteramos: não esqueceremos! Lutamos contra o esquecimento,
questionamos a Lei de Anistia que segue nos impedindo de punir os torturadores e
reafirmamos a necessidade de memória, verdade e justiça, para que nunca mais aconteça.

80
Nômades, sedentários e metamorfoses:
trajetórias de vidas no exílio e ditaduras no Cone Sul

O exílio, durante os anos 1960 e 1970, foi uma das utilizadas a cabo pela ditadura
para afastar e eliminar, do cenário nacional, aqueles que formavam as fileiras da
resistência. Da mesma forma que a prisão política, que os assassinatos, que a
clandestinidade imposta a muitos, o exílio foi mais uma estratégia que visava destruir
projetos políticos não condizentes com o projeto da ditadura. Compreendido dentro da
temática do exílio, também abordaremos alguns conteúdos relativos às ditaduras que
sucederam à brasileira em outros países da América Latina, cujas histórias influenciaram
nas experiências do exílio para muitos brasileiros.

Para desenvolvermos melhor esse assunto, selecionamos o artigo Nômades,


sedentários e metamorfoses: trajetórias de vidas no exílio, escrito por Denise Rollemberg,
professora do Departamento de História da Universidade Federal Fluminense, que faz parte
de uma coletânea intitulada O Golpe e a ditadura militar quarenta anos depois (1964-
2004), organizada por Marcelo Ridenti e Rodrigo Patto Sá Motta. Nesse livro, os autores
reuniram trabalhos de diferentes pesquisadores a respeito do período, a partir de diversos
referenciais teórico metodológicos. Os artigos estão organizados em quatro grandes
partes: História e memória; Política, Economia e Sociedade; Cultura e Política; e Repressão,
Censura e Exílio. De certo modo, a obra foi uma tentativa de balanço sobre os
conhecimentos acerca do período, 40 anos após o início do período ditatorial, e
apresentou um amplo painel sobre múltiplos aspectos do país durante os anos da ditadura.
Do livro, escolhemos o texto da professora Denise como uma sugestão de leitura para
aqueles que se interessam pelo tema do exílio. Partindo de um trabalho com história oral,
a autora se propôs a “contar” a história do exílio brasileiro de 1964 a 1979.
Dentre seus maiores problemas no desenvolvimento desse trabalho, estavam
questões bastante caras aos pesquisadores de história, como o papel da subjetividade na
história e de quanto ela pode atuar nos eventos e processos históricos – isso porque
Rollemberg percebeu uma imensa diferença nas formas de como os exilados vivenciaram a
experiência de terem sido obrigados a viver fora do país, desde aqueles que relembram o
período como o pior momento de suas vidas até aqueles que rememoram o fato por meio
de uma valorização das possibilidades que se abriram a partir dessa experiência.

81
Dessa forma, Denise avalia que o exílio “foi uma experiência heterogênea, vivida em
função de uma série de variáveis”. Uma dessas variáveis diz respeito às gerações que o
vivenciaram. Segundo ela, são duas, a geração de 1964, identificada com “o projeto das
reformas de base, ligada a sindicatos e a partidos políticos legais, como o PTB, ou ilegais, como
o PCB”. Essas pessoas, quando foram para o exílio, já possuíam uma vida mais estruturada,
tanto familiar quanto profissional. Apesar de terem se exilado em diversos países, o Uruguai
foi o maior polo de concentração nessa primeira fase. A segunda geração, de 1968,
caracterizada por “militantes mais jovens, extremamente críticos às posições e práticas do PCB
e do PTB, muitos originários do movimento estudantil, de onde saíram para se integrarem à
luta armada em organizações que supervalorizavam a ação revolucionária”, era composta por
pessoas, em sua maioria, ainda não definidas profissionalmente. O Chile e a França foram os
países de destino da maior parte desses exilados.
A segunda variável remete a uma tentativa de
periodização vivida pelos exilados. A autora propõe uma
análise a partir de três fases caracterizadas por “tendências e
situações predominantes e/ou significativas”, que auxiliam na
compreensão do fenômeno exílio. A primeira teria iniciado em
1964 e se estendido até 1973, com o Golpe do Chile. Até esse
momento, muitos dos militantes permaneciam na América
Latina, próximos das lutas travadas no continente. Teriam
julgado que o período do exílio seria curto e que em breve
retornariam ao Brasil para darem prosseguimento à sua
militância em solo pátrio. A segunda fase teria iniciado com “a
chegada dos brasileiros a países com culturas bem diferentes,
em comparação com a dos países latino-americanos”. Teria
seguido a isso as dificuldades de adaptação e a constatação de
que a volta ao Brasil estava mais distante. Conforme a autora, esse foi o período da
“diáspora”, do exílio em vários países, sobretudo da Europa Ocidental, o que possibilitou a
experiência de vivências múltiplas e variadas que teriam reconstruído a identidade dos
exilados e suas referências políticas. Por fim, a terceira fase não teria sido marcada por um
evento, mas por um processo de desgaste da fase anterior que evidenciou as dificuldades de
adaptação, principalmente profissional. Nesse momento, a busca de outros países não
acontecia em decorrência de fugas e de constrangimentos, e sim como um “movimento de
deslocamento motivado por fatores econômicos e ideológicos”, fase chamada pela autora de
a migração no exílio.
Denise conclui seu texto defendendo a leitura de que o “exílio significou o
desenraizamento das referências que davam identidade política e pessoal às gerações 1964 e
1968. A derrota de um projeto. O constrangimento ao estranhamento. A perda do convívio
com a língua materna, o afastamento das famílias, as separações. A interrupção de carreiras,
o abandono de empregos. A ruptura física e psicológica. A desestruturação”. Desde
Rollemberg, muitos sentiram esse período como um luto cujas sequelas se tornaram
irreparáveis. No entanto, salienta a autora, na conclusão de seu texto, que a experiência
também foi vivida por muitos como uma possibilidade de ampliação dos horizontes devido à
“descoberta de países, continentes, sistemas e regimes políticos, culturas, povos, pessoas”,
que lhes proporcionaram o contato com “outras trajetórias históricas e com outras
referências”.
A volta clandestina dos exilados, conforme a autora, para enfrentar o regime,
ocorreu de forma consentida em um contexto de formulação da lei de anistia pela ditadura,
que até o final se sobrepôs à lei desejada pelos movimentos sociais. A militância teria
ganhado outro significado a partir da redefinição das gerações de 1964 e 1968. Para Denise,
“os conceitos tradicionais de revolução foram repensados e uma outra questão veio para o
centro do palco: a democracia”.

82
Esperamos que essa resenha contribua para atiçar a curiosidade acerca da temática
do exílio, experiência que julgamos não somente importante para aqueles que a vivenciaram
individualmente, tanto os exilados quanto suas famílias que permaneceram no Brasil, como
para a história de um país que em determinado contexto expulsou cidadãos de seu território
pátrio, na tentativa de afastar e de eliminar pessoas contrárias ao projeto político defendido
pela Ditadura Civil-miliar instaurada em 1964.

Bibliografia
CRUZ, Denise, Rollemberg. “Nômades, sedentários e metamorfoses: trajetórias de vidas no
exílio”. IN: Ridenti, Marcelo; Motta Sá, Rodrigo Patto (org). O golpe e a ditadura militar
quarenta anos depois (1964-2004). São Paulo: EDUSC, 2004. p. 277-296.

83
Ditadura no Paraguai: Doutrina de Segurança Nacional,
Terrorismo de Estado e participação na Operação Condor

Ao tratarmos das ditaduras na América Latina, em especial no Cone Sul, em geral


a historiografia brasileira aborda pouco o ocorrido no Paraguai. Porém, a análise de sua
história e de sua ditadura militar, que durou 35 anos, é muito importante para a
compreensão da realidade paraguaia atual – que segue tendo abalos na ordem
democrática, vide a recente deposição do presidente Fernando Lugo, em 2012 – da política
latino-americana em geral e de sua inserção na lógica do imperialismo capitalista global.
O Paraguai teve sua história, ao longo do
século XX, marcada por golpes e contragolpes, pela
força do Partido Colorado, conservador de direita, e
imersa em forte militarismo e violência exercida
pelas Forças Armadas, especialmente após a vitória
paraguaia na Guerra do Chaco, contra a Bolívia, a
partir da qual o Exército passou a ter forte prestígio
social e inserção nas questões políticas. Em 1954, o
General Alberto Stroessner chega ao poder por
meio de um golpe de Estado que abriu caminho
para eleições forjadas, com a candidatura única do
Partido Colorado, que o elegeu com 99% dos votos.
Desde então, de 1954 a 1989, o General se
manteve no poder tendo como sustentáculo o
Partido Colorado, a oligarquia agropecuária e os Estados Unidos, com quem assinou o pacto
de se comprometer a combater o comunismo. Impôs a hegemonia dos Colorados, perseguiu
e torturou opositores, criou redes de delação e serviu como laboratório para a aplicação da
Doutrina de Segurança Nacional na América Latina, em um regime baseado no Terrorismo
de Estado.
Para mais informações sobre o tema, indicamos a leitura da postagem A Ditadura
Paraguaia, publicada no blog Historiando, e do artigo “A ditadura de Stroessner no Paraguai
e o controle da oposição”, de Miguel dos Santos, publicado nos anais de nossa II Jornada de
Estudos sobre Ditaduras e Direitos Humanos, no qual o autor aborda mecanismos stronista
para mascarar o caráter autoritário do regime, cooptar e paralisar oposicionistas, e criar um
verniz de legitimidade para sua permanência no poder. Segundo Miguel, “o longo período
do regime militar stronista no Paraguai deixou marcas que dificilmente serão apagadas do
contexto social do país, haja vista as características autoritárias, exclusivistas e opressivas de
um Estado elitista mais preocupado com a manutenção do status quo de uma minoria de
indivíduos em detrimento da grande massa da população que vivia em condições
extremamente precárias. Essa longa sobrevivência da ditadura de Stroessner não se deu
pelo acaso, mas sim, devido a uma eficiente organização estatal repressiva e autoritária que
buscava, incessantemente, eliminar qualquer vestígio de oposição ao regime estabelecido”.
Conhecendo minimamente o regime perpetrado no país vizinho, e falando a partir da
perspectiva de uma instituição de memória que defende a abertura e a difusão de acervos
capazes de esclarecer os fatos ocorridos durante as ditaduras militares no Cone Sul,

84
não podemos deixar de destacar os chamados “Arquivos do Terror”, descobertos nos fundos
de uma delegacia nos arredores de Assunção, no Paraguai, em 1992 pelo advogado Martín
Almada. São cerca de 700 mil documentos, 03 toneladas de papéis, fotos, gravações em
áudio e vídeo, um acervo tornado público em 2009, no governo de Lugo, tombado pela
Unesco como patrimônio da memória mundial. Registra a atuação da polícia política
paraguaia, os crimes e as perseguições cometidos durante a ditadura Stroessner, trazendo à
tona muitas informações relativas à Operação Condor, coordenação repressiva secreta entre
as ditaduras nos países do Cone Sul, que partilhavam o uso de inteligência, perseguiam e
devolviam prisioneiros políticos a seus países de origem e assassinavam opositores. O resgate
desse acervo deu origem ao Centro de Documentación y Archivo para la defensa de los
derechos humanos (CDyA), vinculado à Corte Suprema de Justicia de Paraguay,
importantíssimo centro de pesquisa sobre nossa história recente e a violação dos direitos
humanos por parte das ditaduras no Cone Sul (saiba mais sobre o CDyA aqui).

Sobre os Arquivos do Terror, a atuação de Martín Almada e as descobertas sobre a Operação


Condor, leia mais em:

Documentos Revelados.
BBC Brasil – Memória: Arquivos do Terror revelam detalhes sobre a Operação Condor

85
O Golpe de 1966 na Argentina

Para entender o que foi o golpe militar tanto na Argentina como no Brasil, é
necessário olhar para os momentos que antecedeu tais acontecimentos. Nesta semana,
apresentamos o eixo temático: “Ditaduras no Cone Sul”. Buscaremos, então, explorar a
“configuração das alianças golpistas” na Argentina em comparação às alianças no Brasil.
Para isso, recorreremos ao artigo do historiador argentino Hernán Ramírez, disponível no
final desse texto.
Ramírez acredita que é no
varguismo e no peronismo, a partir da
década de 1930, que a relação política
entre diferentes segmentos (militares,
empresariais e burocráticos) vai se
consolidando em torno do
desenvolvimento de várias empresas
estatais.
No Brasil, os empresários e
tecnocratas tiveram maior participação
no golpe por meio das relações de
caserna (dentro do exército) e do
Instituto de Pesquisas Econômicas e
Sociais (IPES), que usava uma roupagem católica para promover suas atividades. Uma delas
era a de tentar chegar aos setores populares, como as donas de casa, os empresários, os
movimentos estudantil, operário e comunitário, para construir sua legitimidade. O Instituto
Brasileiro de Ação Democrática (IBADE) financiava campanhas políticas de candidatos que
fizessem oposição a João Goulart, fomentando forte propaganda contra as reformas de
base iniciadas pelo PTB.
Na Argentina, a Fundación de Investigaciones Económicas Latinoamericanas (FIEL),
fundada em 1964, era um instrumento ideológico da alta burguesia argentina, que
representava o empresariado. Ao contrário do IBAD do Brasil, que agia com apoio militar e
financiava seus membros para que ocupassem cargos políticos no governo, a FIEL ocupou
os principais cargos da área econômica.
Para Hernán, os golpes de estado anunciavam o fracasso de partidários mais
conservadores na conquista do governo pela via democrática, diferentemente do
Peronismo Argentino e do Trabalhismo Brasileiro, que obtiveram sucesso com apoio do
povo.
Nessa passagem, Hernán fala da dificuldade de aproximação, ou pressão, das
classes conservadoras com as populares – “tinham pouca penetração nos movimentos
sociais e inclusive, no caso argentino, várias das organizações industriais e agropecuárias se
encontravam divididas em frações com posições escassamente conciliáveis que as levavam
a enfrentamentos internos e a diluir seu potencial de pressão.”
Em 1963, Umberto Illia vence o pleito eleitoral. Setores golpistas começaram a
articular uma reação à sua vitória. Em seu artigo “Brasil e EUA durante o golpe de 1966 na
Argentina!, Carlos Fico atesta que a conspiração para a derrubada de Illia era feita
praticamente em público. Falava-se abertamente e com naturalidade do golpe.

86
Em dezembro de 1965, a revista Confirmado, fazendo previsões para o ano-novo,
profetizou que as Forças Armadas tomariam o poder em junho. Ele afirma ainda que Castelo
Branco e Onganía (general que liderou o movimento golpista da Argentina) compartilhavam a
ideia de que os Estados Unidos lideravam o “mundo livre” e, portanto, países como Argentina
e Brasil deveriam apoiar o combate ao comunismo dentro de suas fronteiras, enfrentando o
“inimigo interno”, no contexto das “fronteiras ideológicas”.
Se formos comparar o 1966 argentino com o 1964 brasileiro, encontraremos poucas
semelhanças. As questões que levaram o golpe de Estado à Argentina não diziam respeito
diretamente à candidatura do político Illia, mas ao longo e não resolvido problema do
peronismo. No Brasil, a agitada passagem de João Goulart pela presidência da República foi
muito mais determinante para a eclosão do golpe. Lá, o antiperonismo foi central; aqui, foi o
anticomunismo.

Indicação de Leitura:

RAMIREZ, Hernan Ramirez: A configuração das alianças golpistas nas ditaduras de Brasil e
Argentina: uma perspectiva a partir da imbricação cívico-militar.

87
11 de Setembro, um atentado à democracia

Neste texto, abordaremos o golpe de 1973, no Chile, sobre o governo do


presidente eleito democraticamente, Salvador Allende. Enfatizaremos também as relações
internacionais e o contexto mundial de bipolaridade capitalista/comunista como fator
determinante e de sustentáculo para as ditaduras do Cone Sul.
No Brasil de 1964, o golpe de Estado já era uma
realidade, a intervenção militar na política aconteceu com
apoio do governo norte-americano. Neste mesmo ano, o
advogado e político do partido centrista chielno
democrata-cristão, Eduardo Frei Moltalva, vencia as
eleições para presidente da República do Chile. No Brasil,
a intervenção/apoio dos Estados Unidos veio por meio da
diplomacia política e militar. No Chile, os EUA colocaram a
Agência Central de Inteligência (CIA) para gerenciar a
campanha publicitária do candidato Montalva. Hoje, a CIA
hoje reconhece sua influência exercida no golpe de
Estado do Chile, assumindo a ajuda e apoio a grupos de
militantes de direita ou contrários a Allende. Em 1962,
a CIA já apoiava grupos de ação cívica, que realizaram
várias atividades de propaganda, incluindo a distribuição de cartazes e folhetos
anticomunistas ou de direita. Em 1964 já contava com um extenso aparato de propaganda,
inclusive dentro da grande mídia, o que ajudou a eleger um opositor das ideias propostas
pela esquerda representada por Salvador Allende. Os relatórios que a CIA fornece mostram
claramente a intervenção americana na política do Chile, que buscava desestabilizar as
eleições com gigantescas doações em dinheiro para os partidos que fizessem oposição às
ideias de Allende. Em 1964, perdeu as eleições presidenciais para Eduardo Frei, o candidato
do Partido Democrata Cristão, graças a essa intervenção publicitária da CIA.
Salvador Allende foi o fundador do Partido Socialista Chileno, era médico,
funcionário público e político. Chegou à presidência do Senado em 1966, onde os políticos
de esquerda já tinham obtido um espaço de representação considerável. Além de ser o 45º
presidente no Chile, foi o primeiro marxista do mundo (democraticamente eleito) a
governar um país. Em 1970, Allende venceu as eleições, deixando os setores conservadores
e a CIA temerosos, pois isso provavelmente significaria uma reestruturação econômica e
social da sociedade chilena. Já no Senado, Salvador se mostrava bem posicionado em torno
de questões polêmicas, como a Reforma Agrária e as reformas nos ensinos público e
privado.
Os grupos organizados por Allende contavam com as classes populares, que até
então não participavam da política chilena. A Unidade Popular traduzia a vontade do povo
nas ruas e nas urnas. A reação ao governo Allende veio por parte da Marinha Chilena com
apoio da CIA, que encontrava dificuldades de fazer oposição pela via política, pela
publicidade, pelos meios econômicos e comerciais.

88
O golpe, planejado pela Marinha e com apoio
total do governo dos EUA, foi posto em prática sob a
direção do comandante chefe do Exército, o general
Augusto Pinochet, em 11 de setembro de 1973. Essa
ação militar foi comunicada por telefone a Allende
na primeiras horas da manhã, que, junto a seu
guarda-costas, dirigiu-se para o Palacio de La
Moneda, sede da presidência.
Allende e a Unidade Popular resistiram
transmitindo a todos cidadãos do Chile um discurso que marcaria a história da política
mundial. Seu discurso até hoje é uma referência de perseverança frente a luta por uma
sociedade mais justa e igualitária:

Seguramente, esta será a última oportunidade em que poderei dirigir-me a


vocês. A Força Aérea bombardeou as antenas da Rádio Magallanes.
Minhas palavras não têm amargura, mas decepção. Que sejam elas um
castigo moral para quem traiu seu juramento: soldados do Chile,
comandantes-em-chefe titulares, o almirante Merino, que se autodesignou
comandante da Armada, e o senhor Mendoza, general rastejante que ainda
ontem manifestara sua fidelidade e lealdade ao Governo, e que também se
autodenominou diretor geral dos carabineros. Diante destes fatos só me
cabe dizer aos trabalhadores: Não vou renunciar! Colocado numa
encruzilhada histórica, pagarei com minha vida a lealdade ao povo. E lhes
digo que tenho a certeza de que a semente que entregamos à consciência
digna de milhares e milhares de chilenos, não poderá ser ceifada
definitivamente. [Eles] têm a força, poderão nos avassalar, mas não se
detém os processos sociais nem com o crime nem com a força. A história é
nossa e a fazem os povos. Trabalhadores de minha Pátria: quero
agradecer-lhes a lealdade que sempre tiveram, a confiança que
depositaram em um homem que foi apenas intérprete de grandes anseios
de justiça, que empenhou sua palavra em que respeitaria a Constituição e a
lei, e assim o fez. (Salvador Allende, dia 11 de Setembro de 1973)

O Palacio de La Moneda, sede do


governo chileno, foi bombardeado por
canhões do Exército e por aviões da Força
Aérea chilenos durante três horas, quando
finalmente foi tomado. Esse episódio pode
ser assistindo no vídeo Sonidos Ineditos del
11 de Septiembre de 1973: Bombardeo de
la Moneda Allende, primeiro presidente
declaradamente marxista a assumir um
governo eleito de forma democratica, teve
um fim trágico. As circunstâncias de sua
morte ainda são alvo de uma forte disputa
política no Chile, assim como seu legado.

Fontes:

Atividades da CIA no Chile (Página em inglês)


Discurso Completo, últimas Palavras de Allende à Nação

89
Ditadura no Chile e Futebol

Em 21 de novembro de 1973, no Estadio Nacional do Chile, em Santiago, deveria


ter ocorrido uma partida de futebol entre as seleções do Chile e da URSS, pela disputa de
uma das últimas vagas da Copa do Mundo de 1974, a ser sediada na República Federal da
Alemanha, conhecida como Alemanha Ocidental. Seria a segunda partida da “repescagem”,
a primeira já havia acontecido em Moscou, e teve como resultado um empate sem gols.
A vaga seria decidida em território chileno, mas os adversários soviéticos
boicotaram a partida e não compareceram. Por isso, havia sido dado início à partida com
somente um time em campo, apenas por questões protocolares. Encontrava-se o futebol
dilacerado, expressado na tristeza de um Estádio Nacional praticamente vazio e no gol
efetuado melancolicamente por jogadores chilenos. O gol, momento esperado desse
esporte, foi efetuado pelos jogadores chilenos que chegaram à área, trocando passes em
um campo sem adversários.

A equipe soviética não compareceu, em protesto aos acontecimentos que abalavam o


Chile desde setembro de 1973, além de correrem grande perigo estando sob os ditames de
Pinochet, o ditador que havia assumido o poder.
O 11 de setembro, anterior a tal partida de futebol, marcou a trágica derrubada de uma
das experiências mais significativas de transformação social vivenciadas no mundo. O
governo de Salvador Allende, eleito democraticamente, apesar de grande apoio popular
comprovado em seguidas eleições, foi derrubado por um golpe militar. O Palácio de la
Moneda, sede presidencial, foi bombardeado durante a resistência liderada por Allende, que
não sairia de lá com vida. Para saber mais, indicamos o ótimo documentário A Batalha do
Chile, que dá um quadro geral sobre golpe.

90
O mesmo Estadio Nacional foi utilizado, pela ditadura recém instaurada, como
campo de concentração e de tortura, de setembro a novembro de 1973, atividades que,
aparentemente, haviam sido encerradas poucos dias antes do jogo. Foi lá que Victor Jara, um
dos principais músicos chilenos e defensor do governo Allende, foi torturado e assassinado.
Seu assassinato pode ser compreendido como uma ação que tinha o objetivo de calar ou
destruir qualquer pensamento engajado e crítico, por meio do terror e da violência.
Utilizados intensamente no Chile, que havia passado por importantes transformações
motivadas por envolvimentos políticos e sociais. Para melhor compreensão sobre a
importância de Jara indicamos o artigo A canção revolucionária de Victor Jara e o terrorismo
cultural do Golpe de Estado Chileno.
Isso refletiu no universo do futebolístico, que não passou alheio ao que ocorria.
Diversos jogadores chilenos desenvolveram significativo pensamento crítico. Carlos Caszely
era um destes e, por isso, sua mãe foi sequestrada e torturada pelo regime liderado por
Pinochet. Não havia qualquer acusação contra ela, contudo isso foi utilizado como forma de
constranger seu filho, que era um dos principais jogadores da seleção chilena. Quando
Caszely partiu com a seleção para disputar a Copa na Alemanha Ocidental, negou o aperto de
mão do ditador, apesar dos riscos que isso trazia para ele e para sua família.
Em seu discurso, Pinochet, assim como outros ditadores, procurou se apropriar do
esporte, sobretudo o futebol por ser o mais popular, com a intenção de legitimar seu governo
frente a opinião pública nacional e internacional.
Veja uma de suas declarações.
Por outro lado, algumas pessoas protestaram durante a Copa, utilizando-se da visibilidade do
Mundial para denunciar a Ditadura de Pinochet e toda a violência que se vivia no Chile.
Clique aqui para ver.

91
Indicação de Filme: Em teu Nome (2009)

Tangenciando a temática dos


textos anteriores, sugerimos o filme Em Teu
Nome, de Paulo Nascimento, que retrata a
realidade dos militantes de esquerda no
Brasil, na década de 1970 em plena Ditadura
Militar, justamente no período em que foi
instituído o AI-5, intensificando a repressão.
O filme mostra as angústias dos militantes, a
vida fora do país, a ansiedade em voltar para
casa. O filme faz um resgaste do que foi a
luta pela Anistia, uma pauta que mobilizou a
esquerda, dentro e fora do país, criando
uma rede de organização ao redor desta luta
pelo retorno dos exilados ao Brasil. Vale a
pena conferir!

92
Indicação de Filme: Estado de Sítio (1972)

O cineasta grego, naturalizado francês, Konstantinos Gavras, conhecido como


Costa-Gavras, notabilizou-se pela perspectiva crítica com a qual constrói seus filmes. Em
1972, grava o longa Estado de Sítio (État de siège) no Chile, pois foi proibido de o fazer no
país onde os acontecimentos retratados realmente se passaram: o Uruguai. Este país
progressivamente se aproximava do momento de ruptura de sua Constituição, sob o tacão
militar e os desmandos das elites nacionais e estrangeiras, o que ocorreu em junho de
1973. O filme retrata a trama que permeia o sequestro do embaixador brasileiro no
Uruguai e do agente estadunidense Dan Mitrione, pelo Movimento de Libertação Nacinoal
– Tupamaros.
Os sequestros ocorreram em 1970, como forma de pressionar o governo de Juan
Maria Bordaberry, que apresentava íntima ligação com as Forças Armadas e subserviência
aos interesses da elite uruguaia e estrangeira, o que tornava o sistema democrático muito
restrito, quase apenas como uma faixada. Assim reprimia violentamente a oposição ao seu
governo, que se encontrava, sobretudo, entre estudantes e sindicalistas. Os Tupamaros
tomaram a luta armada, por meio da guerrilha urbana, como forma de resistir ao arbítrio e
de denunciar os caminhos a que seguia o país. Os sequestros de figuras de destaque
ligadas ao governo podem ser compreendidos neste contexto. O embaixador brasileiro e
Dan Mitrione são personagens representativos da influência estrangeira na política interna
uruguaia, respectivamente do Brasil e dos Estados Unidos, que foram importantes
promotores dos golpes de Estado que ocorrem na América do Sul.

Indicamos este filme por sua qualidade em


expressar questões extremamente pertinentes para
compreendermos as relações golpistas e repressivas que
existiam entre os países. Porém, também, por trazer o drama
daqueles jovens tupamaros que (como tantos outros, de
diversas nacionalidades) doaram suas forças e seus mais
belos sonhos para a construção de uma sociedade mais
justa, mesmo que enfrentando uma impiedosa máquina de
repressão e controle, que se articulava além das fronteiras
(sob as asas do Condor ou não).

Vale a indicação de algumas leituras que podem


contribuir para a compreensão desse processo:

PADRÓS, Enrique. A ditadura civil-militar uruguaia:


doutrina e segurança nacional.
PADRÓS, E; FERNANDES, Ananda. A gestação do golpe
no Uruguai: o governo Bordaberry e o papel dos
militares (1972-1973) .

93
Ditaduras latinoamericanas:
conexões Repressivas e
Redes de Solidariedade
Conexão Repressiva – O Voo raso do Condor

Por conta de sua localização geográfica, o Rio Grande


do Sul foi um local chave para a atuação da repressão e para o
trânsito de militantes perseguidos. Neste texto, você poderá
conhecer a história de Claudio Gutierrez e um pouco mais
sobre as “Conexões Repressivas” que, com o golpe,
estabeleceram-se entre os países do Cone Sul.
O Governo que foi implantado na Ditadura estabeleceu
estreitas relações com setores conservadores dos Estados
Unidos. O interesse estadunidense na América Latina era o de
manter os governos alinhados com a proposta de “livre
mercado” e de economia de capital aberto, além de “limpar”
o país da ameaça comunista. Essa intervenção na economia,
na política, por meio de forças policiais ou da repressão
clandestina, ficou conhecida como “Operação Condor”. Os Estados Unidos têm evitado
tornar público os documentos sobre ações repressivas conjuntas entre a Casa Branca, o
Itamarati e outros grupos da América Latina.
O Centro de Informações do Exterior (CIEX) foi um dos principais órgãos ligados ao
Itamarati que operou entre 1966 e 1985, com o objetivo de monitorar os opositores do
regime militar, até mesmo fora do país. O criador deste órgão, Pio Correa, conhecido pelos
militantes exilados como “troglodita reacionário”, já atuava como chefe do Departamento
Político do Itamaraty desde 1959. Com o golpe de 1964, Pio Correa foi nomeado pelo
General (presidente) Castelo Branco como embaixador do Brasil em Montevidéu, capital do
Uruguai, garantindo assim o braço repressivo do Brasil naquele país. O diplomata,
juntamente ao aparelho de informações e repressão, passou a articular uma rede de
contatos que incluía políticos, militares, juízes, delegados de polícia, fazendeiros e até
comerciantes. Os contatos foram travados em seguidas viagens pelo país, e o Uruguai
acabou servindo de experiência piloto para a criação do Ciex.
Inicialmente, o Ciex atuava de forma clandestina ou informal, posteriormente, com
o fortalecimento de relações entre a política e a polícia, o centro de informações
da diplomacia passou a funcionar como um órgão
oficial do Estado. O Ciex ajudou a localizar,
identificar e capturar pessoas no estrangeiro e no
Brasil. O amplo registro das atividades políticas
desses asilados municiou as demais agências da
repressão, com dados para as sessões de
interrogatórios, reconhecidamente marcadas por
torturas. Dos 380 brasileiros mortos ou
desaparecidos durante o regime, descobriu-se 64
deles no arquivo secreto do Ciex.
Para concluir, trazemos a afirmação de Mónica González, uma jornalista chilena,
autora do livro La Conjura – Os Mil e Um Dias do Golpe, e por meio da análise de
documentos chilenos e brasileiros, e também com a ajuda da Comissão da Verdade do
Brasil, tornou evidente que a repressão agiu, perseguindo e executando as oposições dentro
de outros países. Segundo a autora: “O Brasil […] desempenhou um papel central

95
na gestação dos golpes militares na região, com […] financiamento externo para a
desestabilização e, em seguida, para o treinamento dos serviços secretos dos países do Plano
Condor, em solo brasileiro”.
A Operação Condor, que se oficializa, em uma reunião convocada por Augusto
Pinochet (arquiteto do golpe de Estado chileno) em parceria com o representante do
Itamaraty e da CIA Pio Correa, é realizada em Santiago, entre novembro e dezembro de 1975.
Nessa reunião, estavam presentes representantes dos governos da Bolívia, Paraguai, Chile,
Uruguai e Brasil. A partir dela, desencadeou-se a repressão conjunta, marcando
profundamente a América Latina que teve uma intensa e violenta intervenção na política.
“Não se sabe o que aconteceu exatamente com a estrutura da Operação Condor após
o fim dos regimes militares. Os brasileiros eram mestres em não deixar digitais. Sabe-se que o
aparato de informações da Operação Condor continua existindo; isto está numa ata de uma
das últimas reuniões dos exércitos americanos, ocorrida em Mar del Plata”, afirma o veterano
na luta contra o terrorismo de Estado na América do Sul, Jair Krischke, atual presidente do
Movimento de Justiça e Diretos Humanos (MJDH), sediado em Porto Alegre.

96
Operação Condor – A Repressão Unida

Sobre o golpe no presidente do


Chile, Salvador Allende, sabemos que os
Estados Unidos estavam presente
articulando reações contra os governos
populares da América Latina, em uma
sequência, derrubaram os governos do
Brasil, da Argentina, do Uruguai, do
Paraguai e do Chile. Todos foram
substituídas por Ditaduras Militarizadas
que procuravam caçar e perseguir
diversos movimentos políticos. Segundo o
repórter Pierre Abramovici, do Jornal Le Monde, é sabido que desde 1964 aconteciam as
Conferências dos exércitos americanos (CEA). Realizadas nos primeiros anos em Forte
Amador (Panamá) e, depois, em West Point. Eram nessas reuniões, um pouco obsessivas,
típicas da guerra fria e raramente abertas ao público, que se situava o coração do que se
tornaria um dia a operação Condor.
A CIA e outras agências do governo dos EUA estavam cientes da cooperação
bilateral entre os serviços de inteligência regionais para acompanhar e auxiliar na repressão
aos opositores das ditaduras latino-americanas. Nesses encontros, estava o precursor da
Operação Condor, um acordo de compartilhamento de inteligência entre Chile, Argentina,
Brasil, Paraguai e Uruguai, estabelecido em 1975.
Além de informações sobre as ameaças externas, a CIA procurou obter informações
junto a apoiadores, criando sistemas de informação regionais, organizando eventos que
reunissem setores destes países. O sistema de inteligência cooperativa no Cone Sul,
chamado de “Operação Condor”, foi uma construção formal sobre a cooperação informal no
rastreamento e execução de políticos adversários.

OPERAÇÃO CONDOR NUM CONTEXTO REGIONAL


O Rio Grande do Sul é um estado fronteiriço com Argentina e Uruguai, esta
particularidade deu algumas vantagens tanto para a fuga dos militantes quanto para a
atuação da repressão. Como as estradas que davam acesso eram de fácil e rápida
locomoção, transitavam militantes e militares aproveitando deste fácil acesso. O Uruguai
acabou virando um local preferencial do exílio brasileiro, entre 1964-1968, enquanto o Rio
Grande do Sul tornou-se uma área acessada por organizações perseguidas naquele país e
na Argentina, desde o final dos anos 1960 e durante a década de 1970.
No Uruguai, no final de 1967, Jorge Pacheco Areco assumiu o governo, condidato
que defendia interesses dos setores oligárquicos mais agressivos e os interesses financeiros
internacionais. Assim como a ditadura no Brasil, o governo de Jorge Pacheco apostou no
uso da força como meio de controle das organizações sociais, partidárias e armadas que
questionavam o sistema vigente.

97
A agitação que se instalou também nos países
vizinhos passou a preocupar a ditadura do Brasil, ou seja,
o “inimigo interno” dos governos do Uruguai, da
Argentina e do Paraguai (colaboradores, na lógica
doutrinária) eram, também, inimigos da ditadura
brasileira. O Brasil passou a interver no Uruguai de forma
muito significativa, dando apoio ao golpismo uruguaio.

“Por mi lado me preparé para ir al Beira-Rio a ver el


juego del Inter con Caxias do Sul. Alrededor de las 2 de la
tarde, em momentos que cerraba la puerta del
apartamento, mientras los niños jugaban en el jardín, fui
encañonado con un arma de fuego por un hombre
canoso, elegantemente vestido, con traje, chaleco y
corbata, que resultó ser el delegado Pedro Seelig del
temible DOPS “gaúcho” (Universindo Rodríguez Díaz foi
sequestrado em Porto Alegre pelo Delegado do DOPS, Pedro Seelig, que queria cooperar
com o combate a “subversivos” vindos de outro país. Universindo, licenciado em História
pela Universidad de la República, Uruguay, foi integrante do Departamento de
Investigaciones de la Biblioteca Nacional, Uruguay).

Saiba mais sobre operação Condor:

CIA admite ter invertido no Chile de Allende dando apoio a Pinochet (Página em inglês)
O pesadelo da “operação Condor”- LE MONDE – diplomatique Brasil.
A Ditadura de Segurança Nacional no Rio Grande do Sul- Conexão Repressiva e Operação
Condor

98
Documentário “(A.H.F) Condor”

A “Operação Condor” foi uma conexão repressiva articulada nos anos 1970 entre as
ditaduras do Cone Sul com apoio da CIA, apoio que poderia ser policial, militar, estratégico e
econômico.
No documentário Condor, Roberto Mader conta essa história por meio de depoimentos
de generais, ativistas políticos, torturadores, vítimas e parentes dos desaparecidos. Condor
foi filmado em quatro países e contém rico material de arquivo, acompanhado de belas
composições de Victor Biglione. Vencedor dos prêmios de Melhor Documentário, no Festival
do Rio, e Prêmio Especial do Júri do Festival de Gramado em 2007. Assista!

99
Resistência nas Fronteiras

As fronteiras do Rio Grande do Sul com Argentina e Uruguai foram alvo de especial atenção
dos órgãos da repressão. As cidades da fronteira eram consideradas “Área de Interesse da Segurança
Nacional”, o que implicava ainda maior redução da vida democrática, trocada pelo combate ao
"inimigo interno". A importância estratégica para os militares estava em ser uma fonte potencial e real
de "pressão interna", ou seja, de formas de resistência ao terrorismo de Estado imposto pela Ditadura.
Existiam diversos "esquemas de fronteiras" para retirar pessoas perseguidas do Brasil; organização e
mecanismos para comunicação com os exilados no Argentina e Uruguai; formas de denúncia aos
outros países da repressão imposta pelo Estado brasileiro aos seus cidadãos; assim como
planejamento de ações dentro da estratégia da luta armada.
A seguir iremos trazer um breve relato de um personagem que viveu esse período, atuando
na organização de redes de solidariedade. Apresentamos um trecho da entrevista de Jair Krischke, que
relatou um pouco da dinâmica dos "esquemas de fronteiras". É uma das tantas partes que poderíamos
trazer, que servem para a compreensão (inclusive emocional) do período. Além disso, buscamos
indicar o trabalho – sensível e fundamental – de entrevistas contidas na obra Memórias da
Resistência e da Solidariedade.

P: Jair, comentaste a pouco. Antes da existência do Movimento [de Justiça e Direitos Humanos], vocês já
estavam ajudando cidadãos dos países vizinhos. Como surge a ligação desse coletivo com os uruguaios,
argentinos, e outros países? Como se forma essa rede? Quais são os caminhos que levam a essa
possibilidade?

R: A vida, a vida. Não é muito de caso pensado, mas é a necessidade de se fazer. Com o relacionamento
com pessoas que vivem na fronteira... Geralmente, quem vive na fronteira conhece alguém do outro lado,
isto é fatal. Alguns, de repente, tiveram que viver do outro lado. Então essas amizades vão abrindo
caminhos. No caso uruguaio, caminhos que podem começar por Rivera, e se vão a Montevideo. O mesmo
acontece em relação à Argentina. Esses caminhos foram sendo construídos: - Me dá uma mão, me ajuda -.
E muito o Uruguai porque a primeira massa de refugiados foi para este país. Muitos velhos amigos para lá
se foram, e também abriram um espaço de trabalho, criando relações com partidos políticos. Naquele
momento, as organizações de vdireitos humanos não existiam, mas foram se criando relações com partidos
políticos.
No nosso caso, especialmente com o Partido Socialista, criando vínculos. Porque os brasileiros estavam e se
relacionavam lá, e nós nos relacionávamos com aqueles brasileiros que lá estavam. Esta coisa de fronteira,
também, porque era preciso se formar esse caminho. Então isto nasce de uma forma muito não pensada,
mas premidos pela necessidade. Havia necessidade de, vamos criando esses caminhos. Porque depois
passou a fluir fortemente. Quando as coisas começam a ficar complicadas no Uruguai, o caminho se
inverte. Novamente, aqueles companheiros que nos ajudaram em determinado momento, passam a
necessitar de ajuda. É muito interessante, porque nós vivemos, não nos detemos muito a pensar realmente
em como é que é isso que vamos fazer. Não. É a necessidade, a vida. Coloquei a importância de setores da
igreja brasileira na formação de nosso grupo, no apoio recebido, e o Uruguai é um país bem leigo,
classicamente leigo. A Igreja Católica uruguaia é muito pequena, e de pouca expressão política. Não é como
no Brasil: naquela época, costumávamos dizer que a CNBB era o maior partido de oposição que havia no
Brasil. Lá no Uruguai, não tinha nada que ver com isso. Mas alguns padres uruguaios foram aqueles que
estabeleceram um excelente caminho, que nós montamos para os uruguaios saírem do país. Com o Chile foi
algo parecido, os jesuítas do Chile. Quando foi necessário que os chilenos saíssem, foram eles que
azeitaram o caminho, que criaram a trilha. Foram os jesuítas, de novo, que fizeram esse trabalho. Também
havia um contato muito fluido com o Chile. Não é a toa que, quando do golpe do Chile, havia mais de cinco
mil brasileiros neste local. Inclusive um primo-irmão meu lá estava, que criou e dirigia a Associação dos
Refugiados Políticos do Brasil no Chile. Então, havia certa fluidez com o Chile. Mas tudo isso muito filho da
necessidade. Não uma coisa projetada, pensada: - Agora, temos que tirar pessoas, como vamos fazer? -.
Não, temos que tirar ontem, e temos que tirar. Então, vai se criando, a dor ensina a gemer.

100
A Igreja Católica na Resistência

A Igreja Católica é uma das mais poderosas e influentes instituições brasileiras, de


ontem e de hoje. Alguns segmentos da instituição atuaram como força fundamental para a
desestabilização do governo João Goulart, utilizando e fomentando a histeria anticomunista
existente em parte da sociedade civil. Não entraremos aqui em detalhes, mas alguns
acontecimentos falam por si (dentre tantos outros que poderíamos trazer): as Marchas da
Família com Deus pela Liberdade, que levaram multidões às ruas do país (Porto Alegre
sediaria uma, mas fora cancelada após vitória golpista); os sermões do padre estadunidense
Patrick Peyton, na Cruzada do Rosário em Família , que percorreu diversas capitais no ano de
1963 (inclusive Porto Alegre); os discursos semanais no rádio de Dom Vicente Scherer,
arcebisbo de Porto Alegre, no programa "A voz do pastor". Contudo, a Igreja não é
monolítica, pois em sua vasta organização não se consegue impor com facilidade uma forma
de pensar e agir. É uma instituição que se expande horizontalmente – acessando os rincões
mais distantes do Brasil, podendo ter contado com as mais humildes parcelas da população –
mas também se concentra verticalmente – acessando com isso os centros de poder
econômico e político. Por isso, podemos afirmar que a Igreja não estava totalmente unida na
implementação do Golpe, existindo desde o início setores da oposição, estando ligados aos
movimentos populares, que apresentavam uma postura progressista em sua atuação política.
Estes religiosos foram muito atuantes, por isso receberam grande atenção do aparato
repressivo do Estado brasileiro. Indicamos o filme de Helvécio Ratton, homônimo ao livro de
Frei Betto, Batismo de Sangue. Expressa parte da experiência de alguns frades dominicanos
no final da década de 1960, quando a violência e o controle espreitavam a cada esquina.
A ampla utilização da tortura passou a não ter mais
condições para ser negada, principalmente após a
implementação do Ato Institucional nº 5. A violência passou a
atingir toda a sociedade, não mais sendo exclusividade da
grande massa de pobres. Além disso, a louvação da "revolução
que salvava o Brasil do comunismo" deixou de ter tanto sentido,
na medida em que se implementou uma ditadura que estava
durando muito mais tempo do que haviam esperado. Assim,
mudaram de posicionamento antigos entusiastas do golpe ou
passaram a tomar um posicionamento crítico, assumindo um
lugar na oposição. A Igreja Católica, mesmo em sua alta
hierarquia, passou a questionar a ditadura, assim como outros
importantes órgãos da sociedade civil, como a Ordem dos
Advogados do Brasil (OAB) e a Associação Brasileira.
De Imprensa (ABI). O trabalho realizado por esses órgãos foi de grande importância
para o fim da ditadura. Tomemos como exemplo o projeto Brasil nunca Mais, organizado
pela Arquidiocese de São Paulo e pelo Conselho Mundial de Igrejas, no final dos anos 1980,
que a apresentava três objetivos fundamentais: "evitar que os processos judiciais por crimes
políticos fossem destruídos com o fim da ditadura militar, [...] obter informações sobre
torturas praticadas pela repressão política e que sua divulgação cumprisse um papel
educativo junto à sociedade brasileira". O livro publicado, com o mesmo nome do projeto,
foi recebido com grande repercussão no Brasil e fora dele, devido sua qualidade
investigativa e pelo reconhecimento da instituição que o produziu.

101
APERS? Presente, professor! –
Conexões Repressivas e redes de Solidariedade: repressão e resistência no Cone Sul

Proposta pedagógica, elaborada pelo projeto APERS? Presente, professor?,


denominada de Conexões Repressivas e redes de Solidariedade: repressão e resistência no
Cone Sul, tem como objetivo compreender a formação das redes de solidariedade, como
uma estratégia de resistência e de sobrevivência à repressão imposta pela ditadura, e
perceber as relações entre os aparatos repressivos dos países do Cone Sul. Para construí- la, a
equipe do projeto utilizou como fonte o processo de indenização de um ex-preso político do
período, Carlos Alberto Libânio Christo, mais conhecido como Frei Betto. Acesse aqui o
arquivo da proposta.

102
Esquemas Repressivos e Tortura
Marcas do Terror da Ditadura

Toda ditadura é marcada pela imposição dos interesses de uma minoria para a
maioria da sociedade. Fecham-se ou estreitam-se os espaços de participação na vida
política, que passa a ser ocupada quase exclusivamente por aqueles que detêm maior
poder, poder que é determinado, sobretudo, pela força econômica e militar. Dentre outras
estratégias para o controle e para a imposição de um projeto de sociedade, destacamos a
utilização da violência, numa escala inédita na violenta história brasileira. Durante todos os
anos da Ditadura Civil-Militar, a violência foi utilizada para eliminar fisicamente aqueles que
se colocavam em oposição ao regime, mas também tinha uma função de causar temor em
toda a sociedade. Isto fazia parte da guerra psicológica prevista na Doutrina de Segurança
Nacional e Desenvolvimento, contida nos mais importantes manuais militares da época.
Assim, buscava-se provocar o desestímulo à participação na vida pública nacional. Dentro
desta perspectiva, tinham especial importância os sequestros e os assassinatos
fomentados por interesses políticos, a tortura (mal) dissimulada, as prisões arbitrárias para
averiguações, os atentados, as falsas informações e a censura, a repressão a manifestações
e greves. Enfim, todos estavam ou sentiam estar próximos das baionetas caladas e do
tacão militar.

Todas as sociedades que passaram por regimes ditatoriais sofrem durante


décadas com as marcas deixadas pelos anos de autoritarismo. Cada um de nós deve
perceber que herdamos elementos desse período e que, de alguma forma, fazem parte
direta em nossas vidas. Além dessa percepção, devemos retomar a experiência de cada
pessoa que sentiu em sua pele e em seu coração todo a absurda violência praticada pelo
Estado. A seguir, indicaremos alguns materiais que nos possibilitam o contato com essas
histórias.

104
Indicamos o documentário 15 Filhos:

O livro Direito à Memória e à Verdade:


histórias de meninas e meninos marcados
pela ditadura contém depoimentos de
diversas vítimas, que eram crianças quando
tiveram que enfrentar situações
inimagináveis.
Aproveitamos para indicar a leitura do
livro K, de Bernardo Kucinski, que retrata o
que foi, e ainda é, enfrentado pelos parentes
de pessoas sequestradas e mortas no
período da Ditadura. Contudo, já que não
podemos disponibilizar o livro, indicamos
uma entrevista com o autor, que é, além de
escritor, jornalista e ex-professor da USP:

105
Tortura – Nunca Mais!

A criminalização da tortura em nosso país


é quase tão recente quanto a conquista de nossa
democracia. A tortura institucionalizou-se como
crime com a Lei 9.455, de 7 de abril de 1997. Antes
dela, a tortura era tratada como crime somente
quando fosse praticada contra crianças. Contudo,
não definia a tortura em termos específicos.
A violência por meio da tortura “é a
destruição da essência de alguém”. A tortura apaga
os traços definidores de um sujeito. A
desumanização dos participantes desse processo se
dá a medida que o torturador se coloca acima da
condição humana e força o torturado a se colocar
na situação abaixo da condição humana.
A tortura é usada como meio para obter
informações, mas também para destruir e abalar o
psicológico do torturado. Os casos de tortura
também gerou um medo coletivo, medo dos
porões, do envolvimento com a política, medo da
perseguição.
A tortura foi um instrumento de coerção amplamente utilizado pelo aparato militar
da ditadura. As sessões de tortura eram monitoradas por médicos e enfermeiros, cujas
intervenções atestavam se o torturado suportaria mais agressões ou não.
Como exemplificação, indicamos uma das cenas da novela do SBT, Amor e
Revolução, que aborda a tortura.

106
Indicação de Documentário: Relato de uma Tortura (1971)

Brasil: Um Relatório da Tortura


(Brazil: A Reporton on Torture, 1971), de
Haskell Wexler e Saul Landau, é um
documentário, rodado no Chile, que mostra o
Grupo dos 70 presos políticos brasileiros
trocados pelo do embaixador suiço Giovanni
Bucher. São os exilados que sobreviveram à
tortura cometida pelo Estado durante a
ditadura militar no Brasil, instituída em 1964.
O vídeo intercala depoimentos em
espanhol, portunhol e português, mostrando
o diálogo dos repórteres estrangeiros com os
brasileiros. Traz ainda relatos de situações
inusitadas, como a cena em que algumas pessoas foram imobilizadas nuas com um
jacaré caminhando por seus corpos. Há também relato de que pessoas que tinham
marido/esposa ou filhos pequenos, eram torturada na presença dos familiares para
que, fragilizadas e aterrorizadas, delatassem os seus companheiros.

107
Relato de Sobrevivência – Nilce Azevedo Cardoso

A seguir, o depoimento de Nilce Azevedo Cardoso, no qual ela relata sua vida, sua
juventude, sua história de militância política, uma história de perseguição do regime
militar, de dor, de tortura, mas também de resistência,superação e vitória! Seus
depoimentos, tanto na forma escrita quanto na gravação em vídeo, são impactantes, pois
nos dão um pouco a ideia do que foi a ditadura, a resistência a repressão.
No vídeo, Nilce dá seu depoimento no encontro da Comissão Nacional da
verdade do Rio Grande do Sul, em uma audiência pública que aconteceu no dia 08 de
março de 2013.

108
Sem Vestígios: Como se faz um torturador?

Seguindo com nossas sugestões de leitura,


indicamos o livro Sem Vestígios, um texto
mergulhado na forma jornalística de escrever
história. Escrito pela jornalista e pesquisadora Taís
Morais, a obra conta a história de um agente secreto
da ditadura militar brasileira.
O protagonista do livro se chama Carioca, um
homem que dedicou sua vida ao CIE – Centro de
Informações do Exército. Ele tem sua identidade
preservada na obra, o que, no entanto, não
compromete a proposta da história, preocupada
com a compreensão de questões, como a tortura, a
normalização da violência, a instrução militar e a
vida na caserna.
Dentro dessa impressionante narrativa de
Carioca, encontramos, por exemplo, a descrição de
uma cena absurda na qual relata que seus colegas
de trabalho almoçavam ao mesmo tempo em que
outros colegas torturavam militantes. O livro nos mostra o dia a dia de um espião da
Ditadura Militar, que aprende técnicas de espionagem e as aplica contra os militantes de
esquerda. Enfim, a partir de tantas cenas, podemos perceber a ótica explorada pelo livro,
aquela do lado da repressão política vista desde um agente direto da implantação da
Ditadura. Nessa perspectiva, a obra trabalha com um contexto no qual foi possível construir
tantos torturadores.
Recomendamos a leitura para aqueles que desejam conhecer um pouco do
universo militar na época do golpe e da ditadura.

Saiba mais!!!

O processo de elaboração do livro começou no ano de 2003, quando a editora Geração


Editoral recebeu pelo correio um pacote com uma série de documentos produzidos por um
militar. Segundo o editor do livro, “a pasta continha um conjunto de papéis manuscritos em
forma de diário e alguns capítulos do que pretendia ser um livro… havia também algumas
poucas fitas e recortes de jornal”. Esse material foi a base para que a jornalista montasse a
trajetória de um homem que ingressa na carreira militar, exercendo sua função em plenos
“anos de chumbo”. O ex-militar é tratado no livro como “Carioca”, autor de revelações
terríveis e impressionantes a respeito da formação, do trabalho e da vida de um militar na
Ditadura Brasileira.

109
Galeano e Os Filhos dos Dias

Como sugestão de leitura, queremos compartilhar trechos do livro de Eduardo


Galeano, Os Filhos dos Dias, publicado pela L&PM em 2012. Nele, existem muitas
histórias, uma história para cada dia do ano. Não reproduziremos por completo a obra,
mas escolheremos uma história por semana para divulgar aqui no Blog.
Para hoje, escolhemos a história do dia 7 de janeiro, intitulada A Neta.

A neta

Soledad, a neta de Rafael Barrett, costumava recordar uma frase do avô:


- Se o Bem não existe, é preciso inventá-lo.
Rafael, paraguaio por escolha própria, revolucionário por vocação, passou
mais tempo na cadeia que em casa, e morreu no exílio.
A neta foi crivada a balas no Brasil, no dia de hoje de 1973.
O cabo Anselmo, marinheiro insurgente, chefe revolucionário, foi quem a
entregou.
Cansado de ser perdedor, arrependido de tudo o que acreditava e gostava, ele
delatou um por um de seus companheiros de luta contra a ditadura
militar brasileira, e os despachou para o suplício ou o matadouro.
Soledad, que era sua mulher, ele deixou para o fim.
O cabo Anselmo apontou o lugar onde ela se escondia e foi-se embora.
Já estava no aeroporto quando ouviram-se os primeiros tiros.

110
Zuzu Angel – A arte significando e ressignificando histórias

Consideramos a história de
um país que ainda não consolidou
nem a ideia de uma necessária
justiça de transição e menos ainda a
sua aplicação. No entanto, não
podemos esquecer que muitos
casos ainda continuam sem solução,
que ainda há muitos desaparecidos,
suicidas e vítimas de trânsito no
Brasil e na América do Sul, histórias
a espera de seus devidos registros.
Aproveitando o momento,
queremos indicar um filme, baseado
em uma história real, de grande
repercussão nacional e
internacional. Trata-se do filme Zuzu
Angel, produzido em 2006, com
direção de Sérgio Rezende, que
conta a história de uma mãe da
classe média, que vai atrás da
verdade e da justiça em relação aos
fatos ocorridos com seu próprio
filho, um militante do Movimento
Estudantil que foi sequestrado,
torturado e que, até hoje, está
desaparecido.
Com certeza, as reflexões são suscitadas pela busca incessante pelo corpo do filho
marcada na vida e na luta de Zuzu; vida, luta e angústias que muitos familiares sofreram
e sofrem até hoje.

Para que nunca mais aconteça!

Um pouquinho mais...

Uma linda homenagem à vida e à luta de Zuzu encontramos na música Angélica,


composta por Chico Buarque de Holanda.

111
Retratos da Ausência

O trabalho de Gustavo Germano busca recriar uma cena vivenciada há décadas,


eternizada pelas lentes de máquinas fotográficas. Na comparação das imagens,
percebem-se ausências de alguns protagonistas. Além disso, pode-se perceber que as
pessoas presentes mudaram muito, não apenas pela passagem natural dos anos, mas
também pela necessidade de conviver diariamente com uma insolúvel dor. São marcas
causadas pela saudade do companheiro ou da companheira que não está presente; por
ter a certeza de nunca mais o ver; por imaginar diariamente quais foram os lugares e a
forma de seus últimos momentos, mas ter que conviver com a impossibilidade de ter
certezas, portanto, ter que imaginar diversas hipóteses; por ter parte de seus sonhos e
expectativas arrancados brutalmente por um regime que se utilizava da violência.

112
APERS? Presente, professor! – Esquemas Repressivos e Tortura

Denominada de Esquemas Repressivos e Tortura, esta proposta pedagógica tem


como objetivo auxiliar na compreensão da construção de um aparato repressivo que
sustentou a ditadura, e da utilização da tortura, como método sistemático aplicado por esse
esquema montado para varrer do território nacional qualquer tipo de oposição ao regime.
Para construí- la, a equipe do projeto utilizou como fonte o processo de indenização de um
ex-preso político do período, Antônio Pinheiro Salles.
Clique aqui para acessá-la.

113
O Fim da Ditadura e o
Processo de Redemocratização
O Fim da Ditadura e o Início do Processo de Redemocratização

Neste capítulo, traremos reflexões a respeito de uma série de acontecimentos que


forjaram o fim da Ditadura Civil-militar brasileira iniciada em 1964, e que, ao mesmo tempo,
abriram caminhos para a redemocratização do país.
O início do final da ditadura,
iniciado com Geisel, ficou conhecido como
período de Distensão; posteriormente, na
administração do ditador Figueiredo, passou
passou a ser o período de Abertura Política.
Esses processos tiveram início na primeira
metade da década de 1974 e “encerraram-
se” em 1988, com a promulgação de uma
nova constituição.
Por quais motivos os civis voltariam a
governar o país, por vias democráticas, após
20 anos de ocupação do poder por
Militares? Seria essa uma decisão dos militares? Seria consequência de mobilizações
populares?
Sabemos que os militares não foram derrubados do poder por conta de uma
convulsão social ou por uma revolução popular. Prepararam sua saída com uma série de
medidas que garantisse, ainda que em parte os ideais que os levaram ao poder: a
manutenção do status quo que organizava as relações sociais a partir das engrenagens do
capitalismo. No exército, não existia uma posição única sobre devolver o poder aos civis,
pois, posições da linha dura não aceitavam a redemocratização do país e acreditavam que
deveriam permanecer protegendo o Brasil de projetos políticos que colocassem em risco a
organização social. Por outro lado, militares menos radicais achavam que já haviam
cumprido seu papel e que haviam deixado para trás um contexto no qual o país se
encontrava em risco, chegando, então, a hora de abrir o regime.
Sabe-se, que, apesar do processo de
redemocratização ter sido planejado dentro
do círculo militar, ele também foi construído
por uma parte significativa da população, que
reivindicava o retorno da democracia.
Organizações políticas, sindicatos e
mobilizações sociais que denunciavam as
mazelas da ditadura também foram
responsáveis por expor as contradições do
projeto militar – sejam aquelas ligadas à
repressão e à censura, sejam aquelas de
ordem econômicas, como o arrocho salarial, a inflação e o desemprego, que não
escondiam a crise que o país enfrentava – e por exigir mudanças.
Nesse sentido, os anos de abertura foram marcados por avanços e retrocessos
caracterizados por medidas e por fatos que ora demonstravam a flexibilização da ditadura,
ora apontavam para um controle militar ainda muito estruturado. A partir de hoje,

115
portanto, vamos publicar conteúdos
que nos remetam a esses avanços e
retrocessos, como a Luta pela Anistia
e Promulgação da Lei que garantiu a
volta de boa parte dos exilados ao
Brasil, a continuidade nas ações do
aparato repressivo, a reorganização
dos movimentos sociais e dos
partidos políticos, a forte presença e
a vitória do MDB nas eleições
municipais, o controle das eleições
por meio da censura, as mobilizações
pelas Diretas Já, a eleição indireta via Colégio Eleitoral, que elegeram, em 1985, Tancredo
Neves, os embates travados na Constituinte e a promulgação da Constituição de 1988.
Tentaremos desenvolver cada um desses temas com indicação de leituras e outros
materiais que possam ser acessados e que lancem luz sobre os acontecimentos que
fundaram, a partir da ditadura, nossa tão recente democracia.

116
A Luta pela Anistia e os Novos Movimentos Sociais

A discussão sobre a natureza dos movimentos sociais é bastante extensa, mas,


apresentaremos alguns pontos que parecem ser importantes para nosso objetivo.
Compreendemos os movimentos sociais como grupos organizados sob determinadas causas
comuns, que normalmente são reivindicadas frente ao Estado. As causas comuns podem ser
muito complexas, por demandar um projeto de longo prazo, ou apresentar pontos bastantes
específicos. Também podem ser objetivos bem claros, ou um pouco mais difusos e confusos.
A variedade de formas e conteúdo é grande, mas normalmente representam bem as
disputas da época em que vem à tona.
O processo de abertura política, iniciada por Geisel em 1974, deveria ter ocorrido
de forma “lenta, gradual e restrita”. Não podemos dizer que não foi assim, entretanto, não
deve ter sido exatamente da forma como seus planejadores desejavam. A década que se
seguiu esteve marcada pela retomada de atividades de organizações da sociedade civil,
trazendo reivindicações novas e, também, outras já pleiteadas. Já não seria possível reprimir
a sociedade, ainda mais com os evidentes fracassos do governo: limites do “milagre
econômico” começaram a se tornar evidentes, a partir de 1973, assim como se tornou
evidente que a ditadura sempre esteve baseada na violência (que passou a atingir outros
setores além dos tradicionalmente marginalizados). Novos movimentos sociais surgiram
com a participação de diversos atores, como setores da Igreja, entidades profissionais e
partidos de esquerda, mas foi o “novo sindicalismo” o grande dínamo, devido à sua força e à
sua abrangência. Sindicatos e centrais sindicais lentamente voltaram a se reorganizar,
trazendo pautas dos trabalhadores para a ordem do dia. Depois de anos de repressão
política e redução dos salários, os trabalhadores voltaram à cena política com força cada vez
maior.
A seguir, indicamos um documentário que trata da campanha pela Anistia, que
congregou diversos atores sociais por uma causa comum.

117
A reorganização da sociedade civil não ocorria somente nos centros mais dinâmicos
do país (sobretudo no Rio e em São Paulo). No Rio Grande do Sul também houve
importantes eventos que marcaram o período, inclusive dentro do cenário nacional. São
eles: (1) a greve do magistério estadual de 1979, que garantiu aumento dos salários dos
professores, tendo sido marcada pelo apoio que recebeu de diversas organizações; (2) a
greve dos bancários de Porto Alegre, que foi reprimida com a prisão de lideranças e pela
intervenção no sindicato. Apesar disso, apresentaram os limites das intenções de abertura
do regime, além de provocar a solidariedade de outros setores; (3) a greve dos
trabalhadores da construção civil, que sofriam com o desaquecimento das construções, o
que tornava menos estável e mais fragilizado o trabalho. Duramente reprimida, foi uma das
greve que mais durou (de 13 a 27 de agosto de 1979) e que teve, no final, parte das
reivindicações dos trabalhadores atendidas; (4) a greve dos operários da indústria dos
vestuários, em 1979, que recebeu apoio de muitos trabalhadores, de diversas indústrias de
Porto Alegre e região metropolitana, na qual os grevistas conseguiram parte dos reajustes
que solicitaram, mas não sem grande tensão. Nesse contexto de greve, muitos empresários
solicitaram maior rigor no enfrentamento à greve, inclusive com intervenções das Forças
Armadas.

Referências

Ditadura de Segurança Nacional no Rio Grande do Sul (1964-1985): história e memória.


SOARES, Vânia Fonseca. A abertura política e os movimentos sociais em Porto Alegre
(1979-1985).
SOARES DO BEM, Arim. A centralidade dos movimentos sociais na articulação entre o
Estado e a Sociedade brasileira nos séculos XIX e XX

118
Assembleia Constituinte de 1987-88

A partir de 1985, o Brasil deixou de ter presidentes militares no comando da


máquina estatal, porém, esta máquina não deixou de ser a mesma que foi criada pela
ditadura. Questiona-se, ainda hoje, se superamos suas piores heranças. Na segunda metade
da década de 1980, a abertura ocorria, os militares voltavam à caserna, mas a reconstrução
do Estado estava apenas começava. Nosso primeiro presidente civil veio por meio de uma
eleição indireta, através de um Colégio Eleitoral. Esse modelo de eleições foi resultado da
vitória dos setores mais conservadores (ligados ou não ao regime militar) contra os anseios
de uma população que pressionava constantemente pela realização de eleição direta para
presidente. Tais eleições apenas ocorreram em 1989, sendo uma grande novidade, visto que
foi a primeira eleição direta para presidente em quase 30 anos. O debate foi intenso no
primeiro turno, sendo levados ao segundo turno dois candidatos que carregavam a
promessa de mudança do que havia, até então, na vida política. Passaram a se enfrentar
duas percepções políticas, divergentes em muitos aspectos: Lula se apresentava com um
projeto ligado aos setores populares e aos novos movimentos sociais; Collor acabou sendo
o candidato a receber o apoio dos setores mais conservadores do país, que temiam
transformações mais profundas. O projeto defendido por Collor acabou sendo eleito, apesar
da pouca representatividade de seu partido. Porém, talvez, o que mais importou para seus
apoiadores foi a derrota do projeto defendido por Lula.
Contudo, entre a eleição indireta
do primeiro presidente civil e a eleição do
primeiro eleito diretamente (que viria a ser
o primeiro a sofrer o impeachement, em
1992), temos a promulgação da
Constituição Brasileira. Ocorreu por meio
de uma Assembleia Nacional Constituinte,
instituída por determinação do Executivo
(comandado por Sarney, antigo membro da
ARENA), iniciada em fevereiro de 1987 e
encerrada em setembro de 1988. Foi
composta pelos 559 deputados federais
eleitos em 1986, portanto, a composição
seguiu as disputas políticas tradicionais. A Constituinte tornou-se um dos principais centros
de poder e decisão do período, sendo palco de difíceis disputas. A Constituinte era vista
com muita esperança, pois era tida como a porta de saída do período ditatorial e por ter
tido significativa participação popular em sua formulação. Foram instituídos alguns
mecanismos para participação popular, como a possibilidade de apresentação de emendas
populares. Além disso, foi importante a pressão exercida em muitos meios, inclusive
lotando as galerias da Câmara dos Deputados. Essa participação foi fundamental para
construir uma Carta Magna considerada bastante progressista, a ponto de ser apelidada de
"Constituição Cidadã". Contudo, apesar de apresentar diversos pontos positivos, não
mudaria de pronto a realidade social e econômica do país. Indicamos um documentário
produzido pela TV Senado, com depoimentos e imagens de época que transmitem um
pouco do fervilhar político e social que envolveu a sociedade brasileira no período.

119
Histórias inventadas e Histórias vividas –
Algumas sugestões de leituras de romances
ambientados no cenário e no contexto da Ditadura

Mais lugares das prateleiras da nossa biblioteca serão ocupados . Depois de


sugerir a leitura de dois autores que se inspiraram em contextos políticos autoritários para
produzirem poesias de protesto e de resistência, hoje escolhemos romances que nos
contam histórias, ora verídicas ora fictícias, de personagens que viveram nos anos da
Ditadura Civil-Militar aqui no Brasil.
Os livros são Feliz Ano Velho, de Marcelo Rubens Paiva,
e Verdes Anos, de Luiz Fernando Emediato. São duas obras que,
com certeza, marcaram as experiências literárias de muitos
jovens, pois acreditamos serem portadoras de características
que muito estimula o gosto pela leitura da gurizada.
De linguagem acessível e profundamente próxima à
vivência dos adolescentes, esses textos dialogam tanto com
questões inerentes à fase da vida pela qual passam os
estudantes do ensino médio quanto por discussões
contextualizadas e datadas pelos anos da Ditadura. São
histórias que, para além da veracidade e da verossimilhança,
por seus formatos próprios de escrita propiciados pela arte,
transportam-nos para outros tempos em uma espécie de
imersão em trajetórias de vida, que, embora distantes temporalmente das nossas,
guardam angústias, desejos, sonhos e contradições bastante comuns também aos nossos
tempos. Vamos conhecer?!

Feliz Ano Velho, de Marcelo Rubens Paiva


Feliz Ano Velho é um romance que foi publicado
inicialmente em 1982. Em uma espécie de memória e de
autobiografia, Marcelo Rubens Paiva relata parte de suas
vivências antes e depois do acidente que o deixou
tetraplégico, em 1979. São relatos ligados à sua
recuperação, aos medos e à forma de inserção na
sociedade após tal fato. São memórias da sua infância e da
sua juventude; dos casos amorosos, da carreira musical e
da sua participação no movimento estudantil, tudo em
tom bastante bem- humorado.
Filho do deputado Rubens Paiva, desaparecido e
assassinado no início da década de 1970, o autor
Relata também as vivências em família desse período tempestuoso vivido em nosso país
nos anos posteriores ao Golpe de 1964. Uma história sensível que entrelaça uma trajetória
de vida singular à história do nosso país. Vale muito a pena ler!!!!

E ainda tem mais...


O livro Feliz Ano Velho inspirou o filme de mesmo nome que foi estreado em 1987,
com a direção de Roberto Gervitz. Além de uma importante aceitação do grande público,
foi indicado à categoria de melhor filme no Festival de Gramado de 1988.

120
Verdes Anos, de Luiz Fernando Emediato

Autor de Geração Abandonada, Emediato reúne no


livro Verdes Anos (publicado em 1984) uma série de contos
escritos na década de 1970 caraterizados pela mescla entre
texto de ficção e texto autobiográfico de relações vividas por
jovens, filhos do “milagre econômico”.
Assim como em Feliz Ano Velho, também há nessa
obra uma simbiose entre vidas singulares e a história do
nosso país em tom bem-humorado, ainda que em muitos
momentos angustiados, que diz respeito à “letargia e
alienação” pela qual foi submetida toda uma geração,
conforme o próprio Luiz Fernando afirma no Prefácio. Enfim,
um excelente livro para romper com o que Emediato chamou
de as “particularidades de nossa sociedade, na qual
muitos nem ao menos adivinham o que aconteceu de
trágico e terrível naqueles anos 70”.

E tem mais...
Também a partir da história do livro Verdes Anos, com
direção de Carlos Gerbase e Giba Assis Brasil e roteiro de
Alvaro Luiz Teixeira, a Casa de Cinema de Porto Alegre lançou,
em 1984, o filme Verdes Anos, adaptado do conto de mesmo
nome presente dentro do livro.
Ambientado na época da ditadura militar (anos 70), Nando,
um rapaz do interior, se apaixona por uma moça da escola,
Cândida. Em meio aos conflitos políticos e sociais da época,
apresenta fotos comuns da vida de Nando e de seus colegas de
escola, onde o protagonista passa a viver o início da sua fase
adulta, assumindo a sua paixão. Tudo isso ao embalo da trilha
sonora de Nei Lisboa.

121
APERS? Presente, professor! –
O Fim da Ditadura: Anistia e Abertura Política

Denominada O Fim da Ditadura: Abertura Política e Anistia, essa é mais uma das
propostas pedagógicas do projeto APERS? Presente, professor!. Ela tem como objetivo
auxiliar na compreensão desse período da História do Brasil conhecido como Abertura
Política, em que lutas pela redemocratização do país, dentre elas a luta pela Anistia, foram
forjadas por diversos setores da sociedade. Para construí- la, a equipe do projeto utilizou
como fonte dois processos de indenização de ex-presas políticas do período, Ana Lúcia
Oliveira e Terezinha Burmeister. Acesse aqui o arquivo da proposta.

122
Redemocratização:
permanências, rupturas,
o antigo e o novo
Eleições Diretas

Os anos 1970 e 1980 no Brasil, foram marcados politicamente pela ascensão de


diferentes movimentos sociais, encabeçados por vários setores de luta por direitos civis,
políticos e trabalhistas. Devido ao caráter violento e opressor que a Ditadura Civil Militar
cultivou desde o golpe de 1964, estes movimentos encontraram na insatisfação contra o
inimigo (representado pela ditadura militar) os elementos necessários para a unificação
política, a auto identificação e, no ápice da experiência que trataremos neste texto – o
movimento popularizado como Diretas Já –, demonstraram sólida coesão de forças, com
uma campanha que já havia conformado, inclusive, boa parte dos meios de comunicação,
historicamente marcados pelo apoio à ditadura.
A contradição que se apresenta aqui,
quando analisamos a aderência de
diferentes setores ao movimento das Diretas
Já em 1983 e 1984, unindo diversas
demandas e pautas em torno de um único
movimento, talvez seja parte do processo
que constitui os próprios movimentos
sociais, possibilitando mudanças de
paradigmas. Contradições que podemos
constatar inclusive nos movimentos
recentes que foram às ruas do Brasil, em
2013, com a incoerência, ou ao menos a
“elasticidade”, que demonstraram os meios
de comunicação, modificando rapidamente
suas opiniões veiculadas, na tentativa de manter seu status determinante de opinião de
massas e de reprodução de discursos.
Sobre as demandas que fortaleceram a união do movimento das Diretas Já, temos as
que já existiam, desde o momento anterior ao golpe militar, e as novas demandas,
produzidas pela conjuntura política do momento. De qualquer forma, o contexto de
insatisfação política, com toda a efervescência social da população, possibilitou que as
demandas convergissem e fossem representadas pela mudança de sistema eleitoral, que
aumentaria a participação da população neste processo político. Nesta pauta, eram
depositadas todas as esperanças, e, a partir dela, construía-se a possibilidade de
transformação social, com maior participação dos brasileiros.
Na linha de frente do movimento estavam lideranças políticas do PMDB, do PDT e do
PT, que formavam a oposição partidária ao regime militar, já dentro de um sistema
pluripartidário, adotado novamente em 1980, após 12 anos de bipartidarismo imposto pelo
regime ditatorial.
Em 1982, a população participou das primeiras eleições diretas para governador e
senador desde 1960. Votaram também para deputados federais e estaduais, valendo o voto
vinculado, ou seja, todos os candidatos escolhidos pelo eleitor, para os diferentes cargos,
deveriam ser do mesmo partido, caso contrário, o voto seria anulado. Este ponto seria
crucial na formação do colégio eleitoral de oposição ao PDS, partido do regime. Foram

124
eleitos 9 governadores do PMDB e 1 do PDT (Leonel Brizola), 10 estados seriam governados
pela oposição e 12 estados pelo PDS, formando, então, um quadro equilibrado entre
oposição e PDS. Foram eleitos 235 deputados federais do PDS, 200 do PMDB, 23 do PDT, 13
do PTB e 08 do PT, totalizando uma maioria de deputados da oposição.
Eleições indiretas presidenciais estavam previstas para o ano de 1985, por meio de
colégio eleitoral. Em 1983, foi elaborada a emenda constitucional Dante de Oliveira,
propondo o voto direto e a extinção do colégio eleitoral. No mesmo ano, surgiu o
movimento popular pelas eleições presidenciais diretas. Em 1984, a emenda das Diretas Já,
proposta pelo deputado Dante de Oliveira, foi rejeitada pela câmara dos deputados, apesar
do enorme apoio da população. Em meio às articulações do colégio eleitoral para a eleição
do presidente ocorreram fatos políticos decisórios que resultariam na escolha do último
presidente por meio de eleições indiretas. Tal quadro de crises fez com que o PDS sofresse
uma ruptura interna, culminando na dissidência e articulação da Frente Liberal, que se
opunha à linha dura do PDS, organizando-se posteriormente como o Partido da Frente
Liberal. O PFL se uniu à coligação de oposição, e o colégio eleitoral elegeu o presidente da
oposição Tancredo Neves, do PMDB. Tancredo adoeceu no dia anterior à posse, vindo a
falecer dias depois, tendo assumido então o seu vice-presidente José Sarney. Este seria o
último mandato de um presidente eleito indiretamente, sendo sucedido por Fernando
Collor, eleito em 1989 pelas eleições diretas. Desta forma, a ditadura civil militar, iniciada em
1964, gradualmente deu espaço à chamada abertura política, que se estendeu pelos anos
1980.
No entanto, mesmo com a mudança gradual dos sistemas eleitorais de representação
por meio do voto, continuam presentes, ou se tornam ainda mais evidentes, problemas
relacionados às crises de representação política, que impossibilitam avanços na constituição
de uma democracia mais direta, com participação popular efetiva nas decisões de interesse
dos diversos grupos que formam a sociedade brasileira.

125
O Novo Movimento Sindical

Durante o período que antecedeu o Golpe, pelo menos desde a Revolução de 30, o
movimento sindical urbano (principalmente) cresceu em quantidade e importância no
âmbito político. Logo que se deu o Golpe, grande parte da estrutura sindical, nos seus
diferentes níveis, foi afetada por restrições e proibições impostas pela Ditadura. Após a
repressão inicial, retomou-se parte do movimento sindical crítico, desembocando nas greves
de Contagem e Osasco, em 1968, que foram pronta e violentamente reprimidas, assim
como todas as outras mobilizações que ocorreram após a imposição do Ato Institucional nº
5, em dezembro do mesmo ano. A repressão controlou a classe operária durante alguns
anos, contudo, as demandas dos trabalhadores somente cresciam, ainda mais com o
constante rebaixamento dos salários. O controle imposto pela Ditadura e a redução dos
salários foram elementos importantes para proporcionar o significativo crescimento
econômico, durante o chamando “Milagre Econômico”. Como já dito, a abertura política
trouxe à cena política os movimentos sociais de diversas áreas, porém, com especial
importância para o novo sindicalismo, que surgia sob a crosta autoritária.
Os trabalhadores sindicalizados passaram de menos de 1 milhão, em 1960, para mais
de 10 milhões, em 1978, sendo cerca de metade da zona rural. Cresceu o número de
sindicatos fundados durante a década de 1980, em relação à década anterior: de 2.260
passam para 4.376, segundo dados do IBGE.
Mudaram também as áreas de atuação da maioria dos sindicalizados. Os períodos
populistas (que consideramos ter iniciado com Vargas, em 1930) foram sobretudo de
empresas estatais, enquanto no novo sindicalismo se destacavam setores industriais de
ponta (automobilístico, metal-mecânico, petrolífera, etc.), profissionais assalariados da
classe média (professores, bancários, médicos, etc.) e trabalhadores do campo. Contudo, o
setor mais dinâmico e organizado se encontrava nos operários de São Paulo, que se
destacavam e se aproximam de outros setores pela defesa do fim dos limites impostos pela
ditadura aos sindicatos, para, assim, poder representar os reais anseios dos trabalhadores.
Além de outra forma de representação e de novas reivindicações, o movimento
compreendido como novo sindicalismo defendeu maior articulação entre diferentes setores,
o que garantiria maior peso político. A Central Única dos Trabalhadores, fundada em 1983,
representava esse objetivo, assim como a organização propriamente de uma partido
político.
Indicamos o documentário ABC em Greve, que, filmado entre 1979 e 1981, teve sua
reconstituição e finalização tempos depois, sendo lançado apenas em 1990, três anos após
a morte do diretor. Busca retratar a experiência dos operários de São Paulo durante as
greves do final da década de 1970. Ressaltamos a importância desse movimento devido ao
seu significado para a formação de um movimento sindicalista mais crítico e atuante na luta
pelos interesses da classe trabalhadora. O diretor do documentário, Leon Hirszman, em
entrevista, apresenta uma significativa compreensão de sua obra, como reflexo de um
momento histórico (presente em GRANADO, p. 212):

126
“mostra criticamente três rios simultâneos: o rio do movimento dos trabalhadores – a vida e
as condições sociais dos trabalhadores do ABC naquele momento. O rio do empresariado – as
multinacionais, as grandes montadoras, o grupo dos sete [sic, grupo dos 14, conforme o
próprio filme] da FIESP, que se não me engano, era ligado àqueles que estavam em greve, que
são os trabalhadores nas montadoras de Santo André, São Bernardo, São Caetano e Diadema
[região do ABCD]. E o terceiro rio, o regime – o Estado, aquilo que vinha como ordem:
Figueiredo, Murilo Macedo, as questões oficiais, as intervenções.”

Bibliografia:

ALMEIDA, Maria de. O sindicalismo brasileiro entre a conservação e a mudança.

MACIEL, Laura. O cinema na greve e a greve no cinema: memórias dos metalúrgicos do ABC
(1979-1991).

127
Novos Partidos Políticos

O processo de
redemocratização ocorreu pela
pressão constante exercida por
diversos setores da sociedade, de
formas distintas. Vários desses
grupos utilizaram a estrutura do
MDB (Movimento Democrático
Brasileiro), partido político
permitido durante a vigência do
bipartidarismo. Apesar dos limites
impostos pela Ditadura, por
meio dele que a possibilidade de
certa ação e organização da oposição. É possível compreender que a presença parlamentar
do MDB serviu de contraponto fundamental aos setores que apoiavam a Ditadura e a ação
que ela impunha. Maria Moreira Alves em seu clássico livro Estado e Oposição no Brasil
(1964-1985), afirma que toda a Ditadura se configurou pelo constante conflito entre o
projeto investido após o golpe e setores que resistiam a ele, mas destaca a importância da
atuação parlamentar, por meio do MDB. Independentemente dessa análise possível, o
bipartidarismo foi extinto em 1979, passando a vigorar o pluripartidarismo. Alguns autores
consideram que essa foi uma medida feita pelo regime para poder dividir a oposição, a fim
de estender um pouco mais o domínio dos setores ligados à Ditadura nas eleições estaduais
que iriam ocorrer. A Ditadura cumpriu sua promessa de realizar uma “abertura lenta, gradual
e segura”, não dando possibilidades para os novos partidos assumirem prontamente o
protagonismo das decisões políticas nacionais.
A sociedade progressivamente passou a se reorganizar em volta dos partidos
políticos que representavam distintos interesses e projetos do país (como o fazem os
partidos políticos). Do MDB partem muitos dos integrantes que irão formar o PMDB, PDT,
PTB e PT, no período final de 1979 e durante 1980. Também neste ano foi fundado o PDS,
partido herdeiro da ARENA, defensora dos interesses do regime militar. Obviamente, a
atuação dos partidos seguia de forma mais ou menos pragmática aos interesses de seus
integrantes, que muitas vezes não eram expostos publicamente. Porém, de qualquer forma,
buscavam apresentar um discurso à sociedade a fim de legitimar sua atuação.

128
Feminismo

Abordaremos a temática do feminismo,


enquanto movimento, no contexto político da
redemocratização.
Podemos afirmar que o movimento
feminista no Brasil consolidou-se como
movimento nacional no contexto de luta contra
a ditadura militar, que ocorria na América Latina
em meados dos anos 70. Neste momento
espalhavam-se ideias feministas em âmbito
global, caracterizando a chamada segunda onda
feminista, que se diferenciou da primeira onda
feminista por não representar reivindicações
políticas apenas das mulheres da alta
sociedade, como ocorrera no século XIX,
inclusive no Brasil. A segunda onda estaria mais
voltada a um pensamento crítico aos sistemas
vigentes, mais interessado em se popularizar
pela ideia da igualdade universal, não apenas
por direitos políticos iguais aos dos homens,
mas por mais igualdades entre os homens e as
mulheres.

129
A terceira onda feminista, ou feminismo da diferença, aparece em meados dos
anos 80 como resultado de um exercício intelectual pós-crítico, com olhos para as
diferenças. Apresenta críticas àquela igualdade idealizada, que é na realidade o discurso
dominante falando pelos subalternos invisibilizados (o termo “homem”, quando
representa todos os seres humanos a partir dos anseios do próprio homem dominante;
ou a mulher da elite que, em sua fala, pretende representar uma totalidade das
mulheres). Aqui surge o conceito de gênero como categoria de análise para trabalhar a
compreensão das diferenças, tanto entre homens e mulheres como entre diferentes
tipos de homens e diferentes tipos de mulheres - a questão de gênero, está para além
das identificações do sexo biológico do indivíduo, ela possibilita uma análise da
construção e reprodução das identidades relacionadas às orientações sexuais.

130
Movimentos Sociais Diversos em Não Calo, grito:
memória visual da ditadura civil-militar no Rio Grande do Sul

Nesta seção, tentamos contemplar conteúdos e discussões que problematizem o


período da Redemocratização no Brasil. Nesse caminho, escrevemos sobre a reorganização
partidária e a luta por eleições diretas para presidente no ano de 1980, que ficou conhecida
pelo movimento Diretas Já. Produzimos textos sobre a reorganização dos movimentos
sindicais e sobre o feminismo e, ainda, aventuramo-nos na complexa discussão acerca das
rupturas e permanências vividas nesse período de transição da ditadura civil-militar para a
democracia.
Neste contexto, lembramos de um dos Movimentos Sociais mais significativos na
história recente do nosso país, o Movimento dos Sem Terra (MST). Responsável por agregar
parcela significativa de trabalhadores do campo que reivindicam o direito à terra e o direito de
nela produzir, tal movimento se transformou em um importante agente da luta dos
trabalhadores rurais junto ao Estado, e as políticas agrárias por ele construídas.
E como forma de retomar muitos
desses elementos, vamos hoje sugerir uma
leitura e o manuseio de um material
riquíssimo que trabalha com muitas dessas
discussões. Trata-se da obra escrita pelos
historiadores Diesnstmann, Guazelli e
Rodeghero, Não Calo, grito: memória visual
da ditadura civil-militar no Rio Grande do Sul.
Nela, vamos encontrar, além de textos
bastante acessíveis e de muita qualidade,
excelentes e intrigantes imagens (fotos,
cartazes, charges...) que retratam tal contexto no Rio Grande do Sul. Segue um breve resumo a
partir de compilações de trechos da obra.
Movimento Estudantil
A segunda metade da década de 1970 foi
marcada pelo processo de retomada das ruas
pelas manifestações populares. Os protagonistas
dessa nova ou renovada forma de fazer política
foram os estudantes, por meio das entidades
estudantis, que acabaram servindo como exemplo,
seguido, logo depois, por outros setores ou
organizações da sociedade civil.
O movimento estudantil gaúcho também se envolveu em outras campanhas do período,
contribuindo significativamente para a luta pela anistia e dando apoio às demandas sindicais
de trabalhadores.

131
Movimento Sindical Urbano
Na segunda metade da década de 1970, o movimento
sindical, ao lado do movimento estudantil, passou a ter
grande importância na esfera nacional e se tornou um dos
principais protagonistas na luta pela redemocratização.
Diversas categorias de trabalhadores se mobilizaram e
promoveram ondas de greves, confrontando a política de
abertura e o arrocho salarial. Dentro dos sindicatos,
começaram a surgir novas lideranças e novas bandeiras de
luta, como a defesa do direito à autonomia e à organização
das entidades sem a interferência estatal. No ano de 1979,
mais de três milhões de trabalhadores entraram em greve em
todo o Brasil, com o Rio Grande do Sul entre os grandes
protagonistas dessas mobilizações. Nesse processo de
transformações no meio sindical, dois grupos diferentes se
fortaleceram e ascenderam às diretorias: a Unidade Sindical,
formada por setores da esquerda “tradicional”, como o PCB, o PCdoB e o MR-8, e o
autodenominado “sindicalismo combativo” ou “novo sindicalismo”, identificado com as
correntes que surgiram no contexto grevista do final dos anos 1970 e que, depois, veio a
desembocar no PT e na Central Única dos Trabalhadores (CUT).

Movimentos Sociais do Campo


A organização dos trabalhadores rurais sem terra
adquiriu grande importância no contexto de retomada
dos movimentos sociais no final da década de 1970. A
exclusão de um grande número de trabalhadores com
acesso à terra foi impulsionada pelo processo de
modernização e capitalização das atividades agrícolas
ocorridas ao longo da ditadura. No Rio Grande do Sul, a
modernização pelo acesso à terra passou a marcar a
vida política a partir de 1978 e pôs a região norte do
estado no centro de grandes lutas sociais. Em janeiro
de 1984, ocorreu o 1° Encontro Nacional dos
Trabalhadores Sem Terra, com o objetivo de promover
trocas de experiências que haviam ocorrido no Rio
Grande do Sul, Paraná, Mato Grosso e Santa Catarina.
Nesse encontro, foi fundado o MST que, aos poucos,
ganhou adesões em diversas regiões do país.
Merece relevo também a mobilização das mulheres trabalhadoras rurais gaúchas em
busca de direitos e cidadania, que ganhou força na década de 1980. Partindo dos sindicatos
de trabalhadores rurais, foi organizado ao longo dessa década o Movimento de Mulheres
Trabalhadoras Rurais (MMTR).

Os “novos” movimento sociais


Surgidos ao longo da década de 1970, especialmente nos seus últimos anos, diversos
movimentos sociais passaram a levantar novas demandas e propor novas formas de
participação política e social. Entre eles, destacamos as mobilizações contra o aumento do
custo de vida, a defesa do meio ambiente, a defesa dos direitos humanos, o feminismo e o
movimento negro.

132
Fizemos um pequeno recorte do conteúdo do livro e das dezenas de imagens que nele
constam. Indicamos sua leitura na íntegra. Também apontamos o potencial pedagógico que
reside nas imagens selecionadas para fazerem parte dessa obra. Inclusive, sua produção foi
pensada nesse sentido, tanto que acompanha o livro, um Caderno Pedagógico com sugestões
de atividades para serem realizadas em sala de aula. Com essa indicação, portanto,
encerramos as postagens de conteúdos referentes ao período da redemocratização.

Bibliografia
DIENSTMANN, Gabriel; GUAZELLI, Dante Guimarães; RODEGHERO, Carla Simone. Não calo,
grito: memória visual da ditadura civil-militar no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Tomo
Editorial, 2013.

133
O Movimento dos Trabalhadores Sem Terra

O MST foi fundado em 1984, em Cascavel, no


Paraná. Segundo Carter (2006), surgiu no sul do país
devido a alguns elementos que confluíram para isso:
experiência dos movimentos de agricultores sem terra nos
anos 1950 e 1960, com especial significado para o período
do governo Brizola, no Rio Grande do Sul; crescente
marginalização de pequenos agricultores, expulsos pela
expansão de grandes propriedades, de novas tecnologias e
pela construção de hidrelétricas; aproveitamento do
espaço proporcionado pela abertura política do fim da
ditadura; por fim, a participação de setores da Igreja
Católica, sobretudo às frações ligadas à Teologia da
Libertação. A partir dos anos 1990 o MST expandiu sua atuação para as demais regiões do
país, deixando de atuar somente na região Sul. Passou a ser uma das organizações rurais mais
importantes da América Latina, indispensável quando se discute a experiência de luta por
terra. O autor indica possíveis explicações para esse destaque: grande quantidade de pessoas
envolvidas, cerca de 1 milhão; atuação abrangente e criativa, como a criação de cooperativas
para agregar renda às famílias; organização nacional e regional coesas, porém, sem ser
inflexível; ênfase fundamental na educação, tendo atualmente cerca de 160 mil crianças
matriculadas nas escolas criadas pelo MST; forte apoio de diversas organizações da sociedade
civil, brasileiras e estrangeiras; razoável estrutura e condições administrativas; além de
grande envolvimento de seus apoiadores e membros.
A situação agrária brasileira
continua sendo uma grande
dificuldade para a implementação
de um desenvolvimento econômico
e social mais inclusivo e
democrático. Podemos ver isso pelo
crescimento dos conflitos violentos
em áreas rurais, mas também pelo
crescimento dos representantes dos
latifúndios no Legislativo. O MST
permanece sendo uma importante
organização que pressiona, de
forma incisiva, o Estado para que
implemente outra política rural.
Alguns autores afirmam, em diversos momentos, que o MST age de forma
antidemocrática, principalmente pela forma dura com que faz o enfrentamento a vários
interesses de setores poderosos e conservadores. Carter defende que essa atuação dura é
indispensável, visto que outros meios não atingiriam a mesma efetividade. Compreende que o
MST apresentou, na redemocratização e no presente, um fundamental papel na construção de
uma democracia mais efetiva, por ter dado condições de expressão e luta para um setor
Técnica em Assuntos Culturais APERS/

134
fundamental da sociedade brasileira. Concordamos com essa compreensão, que parece fazer
uma análise coerente com a realidade e com os desafios que devem ser enfrentados em nosso
país. A questão agrária não iniciou no período da Ditadura Civil-Militar, mas teve reforçado seu
caráter autoritário e violento, em favor dos interesses de determinado setor social.
Por fim, indicamos o documentário Terra para Rose, que retrata de perto os desafios e
os sonhos de alguns desses pequenos agricultores. O site do MST apresenta a seguinte
descrição: "Rose sonhou com a conquista da terra, com um futuro melhor para o seu
filho.Como todas as outras mulheres das mil famílias que invadiram a Fazenda Anoni, no Rio
Grande do Sul, em 1985, Rose aprendeu a compartilhar seu destino com a mesma força com
que sonhava. O desejo comum dos sem-terra era para ela mais do que apenas ser solidário na
mesma luta. Emoção de verdade é a tônica deste documentário que traz imagens fortes.
Imagens das 8 mil pessoas que enfrentaram o frio, a fome e as tropas militares enquanto
lutavam por um pedaço de terra para plantar. Um filme de Tetê Moraes”.

Referências:

Reportagem Portal Sul 21 – Violência no campo hoje.


Reportagem Brasil de Fato: Eldorado dos Carajás, Pará, onde são mortos 19 camponeses do
MST em 1996
Carter, Miguel. O movimento dos trabalhadores rurais sem-terra (MST) e a democracia no
Brasil
Retrato da Repressão Política no Campo - Brasil 1962 – 1985: camponeses mortos,
torturados e desaparecidos

135
APERS? Presente, professor! –
O Processo de Redemocratização: Rupturas e Permanências

Denominada O Processo de Redemocratização: Rupturas e Permanências, está


proposta pedagógica tem como objetivo auxiliar na compreensão do processo de
redemocratização vivido pelo Brasil na transição da ditadura para a democracia. Para
construí- la, a equipe do projeto utilizou como fonte dois processos de indenização de ex-
presos políticos do período, Inácio da Silva Mafra e Antônio Cunha Losada. Acesse aqui o
arquivo da proposta.

136
Justiça de Transição:
tardia e incompleta
Justiça de Transição

A justiça de transição é resumidamente entendida como uma série de medidas


tomada pelos Estados, durante a transição de períodos ditatoriais para regimes
democráticos, sendo responsável pela reorganização das relações entre as instituições e os
diversos setores da sociedade.
Dessa forma, nossas produções farão referências às legislações cujo objetivo era
confrontar o passado e às legislações aprovadas com a intenção de silenciá-lo. Vamos
abordar a constituição e o trabalho da Comissão dos Familiares dos Mortos e
Desaparecidos, da Comissão Nacional da Verdade e da Comissão Estadual da Verdade do RS.
Por fim, vamos ainda suscitar o debate sobre a construção de Centros de Memória, muitas
vezes erguidos sobre prédios de instituições que serviram a repressão do Estado e que
violaram inúmeros direitos humanos. Vamos nos aproximar de forma mais geral do que
é este momento de Justiça de Transição relacionado à Legislação Brasileira?
Desde o início do período ditatorial, foram elaborados Atos Institucionais, que
tiveram validade maior do que a própria constituição e serviram para legalizar e
institucionalizar agressões, perseguições, torturas e qualquer tipo de ação violenta praticada
pelos militares. Podemos analisar estes Atos Institucionais como parte de um grande
programa de diretrizes políticas que teve sua construção iniciada ainda na década anterior
ao Golpe. A partir do “Golpe de 64”, a ideia de combate ao inimigo interno, forjada pela
Doutrina de Segurança Nacional, produziu os elementos necessários para criminalizar
quaisquer organizações política e social. Dessa forma, a cultura do medo foi instaurada e foi
acompanhada pela repressão violenta do Estado sobre os agentes que se arriscaram em
qualquer tipo de organização e de mobilização. Caberia, nesse caso, ao período de transição
para a democracia, acertar as contas com esse passado e encerrar, por meio de legislações e
reformas institucionais, um período caracterizado pela arbitrariedade dos poderes e pelo
terrorismo de estado.
Abaixo, indicamos trechos de um texto, As reivindicações por memória e verdade e a
Comissão Nacional da Verdade – Construindo a memória social sobre o período militar no
Brasil, que nos ajudará a entender melhor o tema Justiça de Transição. Nas próximas
semanas, vamos abordar elementos específicos que fizeram, ou não, parte daquilo que se
pensou como justiça de transição no Brasil. Segue:

Busca da verdade, reparações, reformas institucionais e reconciliação são as


principais palavras que figuram nos conceitos apresentados pelos teóricos acerca da justiça
de transição, que, por sua vez, consiste em esforço para a construção da paz sustentável após
um período de conflito, violência em massa ou violação sistemática dos direitos humanos.
No entanto, é interessante notar que as primeiras ações, respaldadas por meio das leis de
anistia, promulgadas ao longo da América Latina, utilizaram-na com o sentido de anistia
vinculada a um esquecimento induzido.

138
Esse esquecimento induzido se deu, sobretudo, através de estratégias, como o
não acesso a documentos, impedindo que parte dessa memória fosse restaurada com
vistas a pedido de justiça de indenização.
Muitos foram os argumentos em prol da permanência dessa cultura do
silêncio, comumente chamado de “esquecimento oficial”, que nasce da necessidade de
promover uma reconciliação da nação, característica que desponta para uma legitimação
do sepultamento de partes dessa memória política. No entanto, o desejo de
esquecimento não é coletivo, e rompe a atuação de agentes que requerem e exigem a
presença dessas memórias, bem como outras visões sobre o passado.
Esse esquecimento planejado é visto nas leis de anistia dos países do Conesul.
Essas legislações primaram por cancelar as condutas tipificadas como crimes, anulando,
portanto, a possibilidade de serem realizados processos criminais e investigações.
Em países como Argentina e Uruguai, os movimentos para alteração das leis
de anistia tiveram seu início no final dos anos 1990. Na Argentina, a Suprema Corte
anulou duas leis de anistia existentes em 2005; no Uruguai, a lei recebeu uma anulação
tácita após recomendações da Comissão Interamericana de Direitos Humanos e por não
seguir o procedimento constitucional. No Chile, não houve derrogação da norma, mas a
qualificação de alguns delitos como continuados, que viabiliza a compreensão de que o
agente. (…) Outros países ainda persistem na mudança da norma, a exemplo do Brasil no
qual foi impugnado pelo Supremo Tribunal Federal o pedido de revisão de citada lei
(39/40).
A busca por alterações nas leis de anistia da-se, sobretudo, pela necessidade
de julgar as graves violações dos Direitos Humanos cometidos por agentes do Estado e
que permanecem, em muitos países sem esclarecimentos e devidas punições. As
entidades de Direitos Humanos reafirmam o perigo causado pela impunidade a estes
crimes, e os efeitos perniciosos à sociedade presente e futura. Nesse sentido, as
sociedades, apesar de disporem de um direito à memória, se deparam com um passado
de impunidade e negligência a seus direitos que permanecem.
Assim sendo, tem sido recorrente nas sociedades pós conflito e que estão em
processo de transição para regimes democráticos o estabelecimento de Comissões da
Verdade. Trata-se de órgãos de investigação criados para ajudar a sociedade que tem
enfrentado graves situações de violência política guerra interna, a confrontar
criticamente seu passado, a fim de superar as profundas crises e traumas gerados pela
violência e evitar que tais fatos se repitam em um futuro próximo. A ONU, em agosto de
2009, divulgou um estudo apresentando medidas a serem consideradas pelos países nas
ações de direitos à memória e à verdade. Destacando ainda que a atuação das chamadas
comissões da verdade, no interior de diferentes sociedades, tem sido uma das formas
mais popular e eficaz da busca de informações individuais sobre os desaparecimentos
ainda não plenamente esclarecidos.
As comissões da verdade passavam por três fases históricas. A primeira é
marcada pelo tribunal de Nuremberg, a partir da década de 1970 até meados de 1989,
com a queda do muro de Berlim. A segunda fase é marcada pela instituição da Comissão
da Verdade na África do Sul, em 1995, na qual vigorava a concepção de que o
arrependimento dos violadores dos direitos humanos seria considerado no processo de
reconciliação nacional. Assim, os processos penais e as punições eram evitados. A
terceira fase, no entanto, preocupava-se mais com a devolução dos restos mortais das
vítimas dos regimes militares às famílias, bem como a responsabilização penal dos
perpetradores.
As organizações de Direitos Humanos, grupos de familiares de vítimas das
ditaduras, clérigos, entre outros, compuseram parte fundamental ao estabelecimento
das comissões no sentido de reivindicá-las. Nesse sentido, cabe destacar a atuação

139
do Projeto Nunca Mais na América Latina. Os processos de transição para a democracia
na América Latina foram marcados por reivindicações de entidades como o Sistema
Internacional de Direitos Humanos, bem como da sociedade civil, que cobravam dos
Estados uma resposta frente aos crimes do passado.
Na transição política brasileira, a memória foi entendida como sinônimo de
esquecimento. Com a promulgação da Lei de Anistia, procurou-se deixar o passado de
violações aos direitos humanos intocados. Porém, essa ideia já se encontra ultrapassada.

Referência
BRITO, Ana Paula; FERREIRA, Maria Letícia. As reivindicações por memória e verdade e a
Comissão Nacional da Verdade – Construindo a memória social sobre o período militar
no Brasil. IN: MEYER, Emílio Peluso Neder; OLIVEIRA, Marcelo Andrade Cattoni. Justiça de
Transição nos 25 anos da Constituição de 1988. Belo Horizonte, Initia Via Editora, 2014.

140
Comissão Especial de Indenização:
o papel deste acervo junto às Comissões Nacional e Estadual da Verdade

O advento da Lei de Acesso à Informação e a criação da Comissão Nacional da


Verdade (CNV) são marcos importantes no processo de consolidação da democracia no
Brasil. De acordo com a primeira, os cidadãos brasileiros estão autorizados a consultar
documentos produzidos pelos poderes públicos, acabando com o eterno sigilo dos
documentos. A lei que institui a Comissão Nacional da Verdade determina que ela tem a
responsabilidade de esclarecer as graves violações aos direitos humanos praticadas,
sobretudo, durante a Ditadura Civil-Militar. Em paralelo, para auxiliar nos trabalhos da CNV,
instituiu-se no RS a Comissão Estadual da Verdade (CEV-RS).
Cabe à CEV-RS esclarecer os fatos e as circunstâncias dos casos de violação de direitos
humanos, como perseguição política, prisões arbitrárias, torturas, assassinatos e
desaparecimentos forçados ocorridos no Estado. Também é seu dever identificar locais e
instituições que estiveram relacionadas às práticas de tortura, assim como as circunstâncias
em que ocorreram, além de colaborar para a prestação de assistência às vítimas e a seus
familiares.
Considerando este contexto, a equipe do Arquivo Público do Estado do Rio Grande do
Sul (APERS) optou por descrever o acervo da Comissão Especial de Indenização formado
pelos 1704 processos administrativos de indenização. Tal documentação foi recolhida ao
APERS em 2008, oriunda da Secretaria de Segurança Pública.
Esta não foi uma escolha involuntária, pois a lei que
cria a CNV ressalta que, para melhor desempenho de suas
atividades, poderá requisitar informações, dados e
documentos de órgãos e entidades do poder público, ainda
que classificados em qualquer grau de sigilo. O decreto que
regulamenta a CEV-RS esclarece que esta poderá reunir a
documentação existente no âmbito da Administração Pública
Estadual que guarde relação com as graves violações de
direitos humanos, em especial os decorrentes dos trabalhos
desenvolvidos pela Comissão Especial de Indenização. Este foi
nosso ponto de partida, pois entendemos que é dever de uma
instituição arquivística promover a difusão dos seus acervos,
principalmente quando estes se tornam subsídio para
recuperação de fatos históricos de maior relevância.
A Comissão Nacional da Verdade e as respectivas Comissões Estaduais trabalham de
forma integrada com diversas instituições, dentre elas, os arquivos públicos. Mesmo que
estes tenham sido criados com uma única função, armazenar a documentação produzida
pelo Estado, hoje é possível vislumbrar outras possibilidades. Esta perspectiva mudou nas
últimas décadas quando as fontes arquivísticas tornaram-se subsídios para produção de
propostas pedagógicas, de pesquisas científicas e construção de conhecimento histórico.
Desde sua instituição até o presente momento, notamos uma alteração na função
de documentos que retratam o período ditatorial. O documento que foi criado, por
exemplo, com o propósito de registrar as prisões daqueles que o Estado considerou ameaça

141
para a segurança nacional, hoje cumpre um papel oposto ao de sua criação, tornando-se
dado comprobatório das violações aos direitos humanos cometidos por agentes públicos
a mando do Estado.
Reconhecer a importância da
preservação das fontes salvaguardadas
nos arquivos públicos, sejam municipais,
estaduais ou federais, é reconhecer que
estas instituições são responsáveis por
preservar uma documentação que
auxiliará, também, na construção da
cidadania, contribuindo, assim, para o
resgate da história, da verdade e da
memória brasileira.
Além de ressaltar sua importância para a preservação dos direitos civis, a
documentação que trata da temática da Ditadura Civil-Militar pode ser utilizada para
garantir às vítimas os direitos de anistia, indenização e pensão. Nesta mesma perspectiva,
a preservação de divulgação desta documentação possibilita conhecer a realidade da
repressão brasileira de 1964 a 1985, bem como a compreensão do nosso passado
recente.

142
Justiça de Transição e Direito à Memória –
Identificação e Ressignificação dos Espaços de Tortura e Resistência

Neste texto, compartilharemos reflexões acerca de um dos pontos específicos


que caracterizam uma Justiça de Transição. Vamos falar a respeito da identificação e da
ressignificação de espaços ocupados pela repressão e pela resistência durante o período
da Ditadura Civil-Militar. Para isso, vamos tomar como ponto de partida um texto escrito
por Christine Rondon Teixeira, coordenadora do Comitê Carlos de Ré da Verdade e da
Justiça.

Segundo Christine, Justiça de Transição, na compreensão da ONU, seria “um


conjunto de abordagens, mecanismos e estratégias, jurídicas e não jurídicas, destinadas a
enfrentar o legado de violência dos regimes autoritários”. Guiada pelas diretrizes direito à
memória, à verdade e à justiça, estruturar-se-ia em quatro pilares: a responsabilização dos
agentes públicos que cometeram crimes de lesa-humanidade, a reforma das instituições
que colaboraram com as violações de direitos no regime e a garantia do direito à memória
e à verdade.
Nesse caso, a identificação e a publicização de espaços onde houve tortura e
resistência responderiam estrategicamente ao direito à memória. Ela adverte que o
“exercício da memória auxilia na luta pela superação das violências que atravessaram o
marco democrático” na transição para a democracia e, por isso mesmo, também é tratado
como objeto de disputa social por diferentes setores da sociedade. Nesse caminho,
experiências levadas a cabo, demonstrariam que o georreferenciamento seria capaz de
“despertar a curiosidade e a consciência das pessoas para a concretude do nosso passado
autoritário e de seus efeitos presentes”, e que a construção de memoriais em locais nos

143
quais ocorreram violações dos Direitos Humanos auxiliariam na construção de uma
memória coletiva acerca do período, bem como de uma cultura política.
Cabe lembrar que também o Programa Nacional de Direitos Humanos 3
(PNDH3) definiu como objetivo, para aquilo que confere ao direito à memória, a
identificação e a publicização das estruturas utilizadas para a prática de violação de
Direitos Humanos, reconhecendo, com isso, uma intensa relação entre memória e
representações espaciais. Segundo Rondon, “nós, brasileiros, não temos ideia do exato
funcionamento ou mesmo da simples localização dos aparelhos repressores do Estado”
e, dessa forma, a identificação dos espaços físicos possui importante papel no resgate de
acontecimentos vividos naquele contexto ditatorial.
E apesar de ser responsabilidade da
Secretaria Especial dos Direitos Humanos da
presidência da República, da Casa Civil da
presidência da República, do Ministério da
Justiça e da Secretaria de relações
institucionais da República, em Porto Alegre,
a identificação de um dos espaços nos quais
ocorreu graves violações dos Direitos
Humanos no período da ditadura, foi
identificado, por meio da organização de
diversos atos públicos, pelo Comitê Carlos de Ré. Estamos nos referindo à antiga sede do
Dopinha, localizado na Rua Santo Antônio no Bairro Bonfim, onde funcionou uma
estrutura clandestina do DOPS.
Segundo Christine, local de memória por excelência, assim como tantos outros
espalhados pelo Brasil, esse foi um espaço comprovadamente de tortura e morte.
Conhecido como Casarão da Santo Antônio, e como local de tortura e da morte do
Sargento Raimundo Soares (o “Caso das Mãos Amarradas”), hoje faz parte de um
projeto, em parceria com a Prefeitura de Porto Alegre e com o Estado do Rio Grande do
Sul, de construção do Memorial Ico Lisboa. A ideia é a construção de um centro de
memória que ressignifique o espaço, que auxilie na construção da memória e da história
desse período e que preste, ao mesmo tempo, homenagem a Luiz Eurico Tejera Lisboa,
primeiro desaparecido político cujo corpo foi encontrado.
Coube à equipe do Blog, com esse
exemplo, levantar a pauta da identificação e
da ressignificação desses espaços em nosso
estado. Indicamos, por fim, a leitura
completa do artigo de Christine Rondon
Teixeira, que abordou, além dos aspectos
resenhados acima, tantos outros elementos
que nos auxiliam a entender o “potencial
benefício da utilização destes espaços para a
conscientização da sociedade”, na
permanente construção da democracia e no encerramento, por completo, daquele
período ditatorial.
Em tempo, ainda indicamos a leitura da entrevista que ela concedeu ao Portal
de Notícias Sul 21 - Memorial Ico Lisboa ajudará a eliminar restolho da ditadura, diz
Christine Rondon.

144
Espaços de Memória na América Latina

Compartilhamos, além de reflexões acerca do papel que a identificação e a


ressignificação de espaços nos quais ocorreram violações dos Direitos Humanos
desempenham na construção da democracia, o Projeto construído na cidade de Porto
Alegre que prevê a construção do Memorial Ico Lisboa. Por enquanto, esse lugar de
memória, além de residir em algumas memórias, encontra-se nas páginas de projeto que
aguarda ser executado – todos torcemos para que seja em breve!!!!
Achamos importante, no entanto, compartilhar projetos que já foram executados em
outros lugares, para que vocês visualizem aquilo que chamamos de ressignificação de
espaços. Para tanto, selecionamos três pequenos vídeos que apresentam três espaços
importantíssimos de memória por excelência, para utilizar uma expressão cunhada pelos
setores que se mobilizam em torno dessa pauta. O primeiro, é o Memorial da Resistência de
São Paulo, o segundo, é o Archivo Provincial de la Memoria de Cordoba e o terceiro, é o
Museo de la Memoria e de los Derechos Humanos, do Chile.
O Memorial da Resistência de São Paulo fica localizado no prédio da Pinacoteca na
cidade de São Paulo. Trata-se de um museu histórico instalado no prédio do antigo
DEOPS/SP, dedicado à pesquisa e à salvaguarda das memórias de repressão e resistência do
Brasil.

145
O Archivo Provincial de la Memoria de Cordoba fica localizado na cidade de
Córdoba, na Argentina, e ocupa o espaço onde funcionou o Departamento de Inteligência
da Polícia da Província de Córdoba e um centro clandestino de detenção durante a
ditadura-civil militar argentina.

O Museo de la Memoria e de los Derechos Humanos, localizado em Santiago,


capital do Chile, é um espaço destinado à visibilização das violações dos Direitos Humanos
cometidas pelo Estado do Chile, entre 1973 e 1990, e ao estímulo de reflexões e debates
acerca do período e da importância do respeito e da tolerância para que tais fatos nunca
mais aconteçam.

146
APERS? Presente, professor! – Democracia e Justiça de Transição

Denominada Democracia e Justiça de Transição, essa proposta pedagógica do


projeto APERS? Presente, professor? tem como objetivo auxiliar no reconhecimento da
importância de uma efetiva justiça de transição nos processos de (re)construção da
democracia. Para construí- la, a equipe do projeto utilizou como fonte o processo de
indenização do ex-preso político do período, Luiz Eurico Tejera Lisboa. Acesse aqui o arquivo
da proposta.

147
Memória, Verdade e Justiça
Há 50 anos do Golpe –
tempo de reflexões, produção intelectual e debates políticos

Tomando emprestada a categoria de Eric Hobsbawm, ainda que esta tenha


sido forjada para falar do século XX, podemos afirmar que o projeto Resistência em Arquivo
nasceu de “tempos interessantes”: ele foi fruto do contexto que marcou os 50 anos do
golpe civil militar de 1964 no Brasil, nasceu das inquietações que acompanharam
historiadores, arquivistas, cientistas sociais, políticos, estudantes e diversos setores da
sociedade que buscaram problematizar o evento histórico em seu tempo, assim como as
marcas por ele deixadas, e o necessário aprofundamento da investigação científica em torno
da questão.

Nosso blog, um dos eixos do Projeto Resistência em Arquivo, surgiu para difundir
o tema e contribuir com a discussão, ao lado da construção do catálogo seletivo e da oficina
que dão acesso e difundem o acervo da Comissão Especial de Indenização aos ex-presos
políticos no Rio Grande do Sul, salvaguardado pelo APERS. O blog é contemporâneo aos
trabalhos das Comissões Estadual e Nacional da Verdade, que já foram tema de postagens
aqui, assim como de múltiplos eventos organizados ao longo desse ano, com diversos
enfoques. Universidades, instituições de memória, escolas, comissões estatais, comitês da
sociedade civil, todos envolvidos em promover reflexões sobre o golpe de 1964 e seus
desdobramentos, sobre a atuação dos militares e a participação civil, sobre a Lei de Anistia,
sua atualidade, interpretações e os entraves que causa à justiça, sobre mortos,
desaparecidos e a luta de seus familiares por memória, verdade e justiça, sobre o ensino
acerca desse processo, sobre o uso de testemunhos, os impactos psicológicos do golpe, da

149
tortura e da política do medo instaurada pelo regime, que atingem tanto indivíduos quanto a
sociedade como um todo, sobre a resistência à ditadura e a luta por democracia e direitos
humanos, e sobre a história dos 21 anos de ditadura no Brasil. Ao longo do Projeto tentamos
refletir tudo isso aqui, ainda que de forma modesta.
E por que retomar isso agora? Bem, 2014 aproxima-se do fim marcado por embates
políticos, numa situação polarizada em que conceitos como ditadura e democracia estão na
ordem do dia. Essa polarização se expressa nas ruas com “cartazes” que pedem, por um lado,
punição aos torturadores da ditadura, justiça para o ontem e o hoje, mais direitos e
aprofundamento dos mecanismos de participação popular; por outro, a manutenção do status
quo e de uma organização social embasada em privilégios e na meritocracia, que se exacerba
com setores minoritários que chegam a pedir por “intervenção militar”.
Podemos afirmar que um dos fatores que contribuiu para que tais embates tenham
se evidenciado foi o enfrentamento feito em prol de memória e verdade no último período.
Acreditamos, entretanto, que em um contexto como esse se torna mais e mais necessário o
estudo e o amplo acesso a informações sobre os 21 anos de ditadura, para que a sociedade
possa negar o caminho autoritário e reacionário como uma via para dar respostas à pobreza, à
precariedade de alguns serviços públicos ou à corrupção. É preciso que debates, como os que
foram travados ao longo de todo o ano de 2014, em função dos 50 anos do golpe, prossigam e
alcancem setores mais amplos, contribuindo para desmontar argumentos como “no tempo da
ditadura não havia roubalheira”, ou “naquela época não havia insegurança nas ruas”. Será que
não havia corrupção, ou o sistema autoritário e censor garantia que os casos não fossem
descobertos? Até que ponto a sensação de segurança era real, ou estava diretamente
relacionada à ausência de liberdade e ao medo velado? Que preço nós ou a geração de nossos
pais pagou por essa “segurança”?
Nesse sentido,
divulgamos o dossiê 50
anos do golpe de 1964,
elaborado pelo historiador
Demian Bezerra de Melo e
disponibilizado pelo blog
marxismo21, em uma
tentativa de mostrar a
diversidade de produções
nessa área e de incentivar
para que as reflexões e os
debates sigam para muito
além desse ano que marcou
o 50º aniversário do golpe,
ano em que as Comissões
da Verdade entregarão seus relatórios finais. A compilação expressa no dossiê traz o link para
uma infinidade de “trabalhos acadêmicos, artigos, uma lista de filmes e vídeos, portais, dicas de
eventos acadêmicos, exposições e outros materiais importantes para um aprofundamento da
reflexão crítica sobre os 50 anos do golpe de 1964”. Abrindo espaço para polêmicas
historiográficas e registrando contribuições clássicas e recentes, certamente é um excelente
“pontapé inicial” para todas e todos que desejam entrar em contato com a efusiva produção do
último período acerca do golpe e da ditadura de 1964. Boa leitura!

150
APERS? Presente, professor! - A Luta por Memória, Verdade e Justiça

Denominada A Luta por Memória, Verdade e Justiça, essa proposta pedagógica


do projeto APERS? Presente, professor, tem como objetivo auxiliar na compreensão de que a
memória, a verdade e a justiça são direitos que devem ser reconhecidos e garantidos a
qualquer cidadão que vive em uma democracia. Para construí- la, a equipe do projeto
utilizou como fonte o processo de indenização do ex-preso político, Jorge Fischer Nunes.
Acesse aqui o arquivo da proposta.

151
Portal Memórias da Ditadura

O Projeto do Portal Memórias da Ditadura foi realizado pelo Instituto Vladimir


Herzog em resposta a uma demanda da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da
República. Um dos objetivos principais foi a criação de um instrumento que divulgasse a
História do Brasil, do período de 1964 a 1985, para o grande público e, sobretudo, para a
população mais jovem.

Segundo a apresentação disponibilizada no site, “a construção de um portal para


difundir em larga escala conteúdos sobre esse período é um compromisso para com as
novas gerações, reunindo informações de relevância para uma aproximação inicial, porém
abrangente e consistente, a partir de conteúdos apresentados em várias mídias, que
possam comunicar a complexidade e a intensidade dos fatos ocorridos durante a ditadura
militar no Brasil do ponto de vista político, social e cultural, na perspectiva dos direitos
humanos e da memória e verdade”.
Nele, os visitantes, público em geral, professores e alunos, encontrarão links diretos
para História da Ditadura, Repressão e Abertura, Contexto Internacional, Movimentos de
Resistência, Arte e Cultura, Memória e Verdade, Apoio ao Educador, Memorial dos Mortos
e Desaparecidos e Linha do Tempo e Mapas da Ditadura. O projeto cumpriu um de seus
objetivos que foi o de reunir conteúdos relevantes, organizado em diferentes mídias,
“numa linguagem acessível a quem não os conhece”. Dessa forma, foram elaboradas
ferramentas interativas de acesso aos conhecimentos existentes numa perspectiva
relacional com os dias atuais.
O portal pode ser acessado em qualquer computador, tablet ou celular. Além disso,
sua construção ateve-se às recomendações das normas internacionais da W3C, de modo a
assegurar a sua acessibilidade. Indicamos com toda a certeza várias visitas ao Portal!

152
Comissões da Verdade encerram seus trabalhos.
Quais serão os impactos? A história continua!

Nas últimas semanas, assistimos à entrega dos relatórios finais das Comissões
Estadual e Nacional da Verdade. A cerimônia oficial em que a CNV encerrou seus trabalhos,
ocorrida no dia 10/12/14, Dia Internacional dos Direitos Humanos, foi um momento
simbólico importante para o processo de consolidação da democracia em nosso país. Na
oportunidade, tornou-se pública a lista com mais de 300 nomes de agentes públicos
diretamente ligados à violação de Direitos Humanos durante a Ditadura, e abriu-se uma
série de novas questões. Sim, porque os trabalhos da Comissão se encerram, mas seus
desdobramentos seguem fazendo parte de nossas relações sociais e políticas.
O que a nossa geração
e as próximas farão com esse
legado? Será suficiente o
trabalho desenvolvido nos
últimos anos, ou será
necessário, a partir dele,
aprofundar as pesquisas, os
depoimentos, os debates e as
ações? O que será feito
daqueles que a história - e
ainda não a Justiça - vem
julgando como culpados por
crimes de lesa humanidade,
como a tortura? Certamente
esta discussão não se encerra
com a entrega do relatório, ele próprio torna-se instrumento de estudo, de reflexão, de
disputas políticas, de lutas futuras.
Nesse sentido, indicamos aqui o link para a notícia lançada pela CNV em seu site,
em que divulga a mencionada cerimônia e disponibiliza os três volumes do relatório. A
título ilustrativo dos possíveis desdobramentos desse trabalho que já estão ocorrendo e
que ainda poderão vir à tona, também indicamos uma série de notícias do jornal Sul21 que
aborda a polêmica em torno do busto do ditador Costa e Silva, que ficava na praça central
de sua cidade natal, Taquari/RS, e que foi derrubado pelo prefeito da cidade a partir da
relação direta apontada pela Comissão entre Costa e Silva e os crimes cometidos durante a
ditadura.

16/12/14 – Prefeitura de Taquari derruba estátua de Costa e Silva depois do relatório da


Comissão da Verdade
18/12/14 – Carta aos meus conterrâneos: O busto do ditador (por Adroaldo Mesquita
da Costa Neto)
19/12/14 – Busto de Costa e Silva: Prefeito de Taquari contesta base legal para ação do
MP

Tudo indica que a história não se encerrou no dia 10 de dezembro, e que a luta continua!

153
Considerações

O Brasil é um país marcado por regimes autoritários, assentado sobre bases muito
violentas. Num primeiro olhar, para muitos, essa afirmação pode parecer infundada, afinal, os
brasileiros são sempre lembrados como um povo afável, festivo e pacífico, habitantes de um país
que “recebe bem a todos” e que não está envolvido em guerras ou conflitos declarados. Como o
país do futebol, do samba, da hospitalidade e da alegria poderia ser construído sobre bases
violentas e autoritárias?
A verdade é que, com um exercício breve de reflexão histórica, podemos questionar
essa imagem: somos fruto de mais de 300 anos de colonização e de exploração, de quase 400
anos de escravização e de violência contra negros e negras, de massacre indígena de centenas de
etnias, de uma vida republicana muito recente – sabemos que, em perspectiva histórica, 125
anos é pouco tempo – e ainda assolada por coerção, clientelismo e corrupção. A Primeira
República (1889-1930) surgiu pelas mãos dos militares, consolidou o poder das oligarquias e a
exclusão dos negros após a abolição jurídica da escravidão. A “Revolução de 1930”, que marcou
o início da Segunda República, originou-se de um golpe que articulou civis e militares, dando
início à ditadura do Estado Novo, com Getúlio Vargas à frente do país por 15 anos. Com o final da
Segunda Guerra Mundial e a crise do Estado Novo, em 1945, tivemos a rearticulação dos
partidos políticos e as eleições, que abriram um breve período democrático, logo interrompido
pelo golpe civil militar de 1964.
A jovem república – já tão marcada pelo autoritarismo das elites políticas e econômicas
– quando experimentava a articulação de movimentos sociais, o início da participação de novos
setores na vida política do país, a luta por terra e direitos para trabalhadoras e trabalhadores, foi
novamente assolada por um Golpe de Estado. 21 anos de um regime autoritário baseado em
censura, tortura, intervenções e manipulações no campo da mídia, da cultura e da educação,
contensão dos trabalhadores, favorecimento ao grande capital, aprofundamento das
desigualdades sociais...
Para alguns, falar nisso tudo, hoje, pode parecer obsoleto: o que temos a ver, se já se
foram 51 anos do Golpe de 1964? Por que recapitular essa história de dor em mais uma ação
educativa promovida por uma instituição pública de memória, se podemos olhar para a frente
buscando harmonia? Bem, a resposta aos que desenvolvem essa linha de raciocínio deve ser
firme, sob pena de nunca superarmos as bases autoritárias dessa sociedade, e de não alcançar
memória, verdade e justiça. Precisamos debater e produzir conhecimento a respeito, sim,
porque apesar das mudanças e das conquistas nesses 30 anos de redemocratização, ainda é um
passado que não passa. A Ditadura no Brasil tinha lado, e não apenas contribuiu para aprofundar
as raízes antidemocráticas e violentas sobre as quais as elites do país vêm historicamente
mantendo seu poder, ela também foi responsável por matar – literalmente – uma geração que
lutava por transformações, e por calar, amedrontar e bitolar uma, duas, quem sabe três
gerações, vítimas da política do medo e da desmemória.
Hoje, estamos construindo oportunidades para olhar esse passado de forma
questionadora, buscando identificar e desconstruir as permanências por ele deixadas. Assim,
vamos fazendo conexões que nos permitem enxergar que a ditadura, e tudo o que ela significou
em um Brasil colonizado, racista e elitista, ainda se manifesta a cada noite maldormida de cada
um dos familiares dos mortos e desaparecidos políticos, que seguem sem respostas; a cada
morte
de um jovem negro na periferia pelas mãos do Estado; a cada resposta truculenta e
desumana dada pela polícia (em nome do Estado) para professores que se mobilizam
pacificamente nas ruas.
Acreditamos que as ações desenvolvidas pelo APERS no último período no intuito de
preservar, dar acesso e difundir tanto o acervo da Comissão Especial de Indenização quanto
os debates em torno do tema, foram uma importante contribuição nesse caminho de
superação das marcas da Ditadura em nosso país, e uma importante afirmação do papel
político e social dos arquivos públicos. Essa coletânea certamente ajuda a sistematizar o
conhecimento produzido ao longo desse trabalho, e a difundi-lo ainda mais.

Clarissa Sommer Alves


Historiadora, Arquivo Público do Estado do RS

155

Você também pode gostar