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MEMÓRIA
Cristiane Peixe *
de Araraquara/UNESP)
Endereço:
Araraquara - S.P.
C.E.P. - 14.801-360
Apresentação
“Resolvo-me a contar, depois de muita
hesitação, casos passados há dez
anos...”1.
1
RAMOS, Graciliano. Memórias do Cárcere 2.ed. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1954. (V.I,
p.5) ou (I,5).
2
Op. cit., (I,7).
3
BENJAMIN, Walter. “O narrador”. Magia e técnica, arte e política. 7. ed. (obras escolhidas) v.l, São Paulo:
Brasiliense, 1994.
4
Ibid., p.205.
Zenir Campos Reis nota a bela analogia que Graciliano estabelece em Linhas Tortas
(livro de crônicas) entre a atividade artesanal de trançar urupemas realizada pelo avô
paterno e de trançar palavras do neto escritor. “Texto e tecido, aliás, são a mesma palavra”5.
Aqui em referência ao trecho de Linhas Tortas, há mais
que uma prática: julgo ver aí o embrião de uma ética da produção
artística e artesanal fundada no trabalho6.
Conforme nos disse Benjamin, quem escuta está em companhia do narrador, mas o
leitor de romance é solitário, visto que na concepção de Benjamin a transmissão de
experiências está atrelada à tradição oral. Para esse mesmo pensador, o declínio da narrativa
se acentua com o surgimento do romance no início do período moderno, que bem ao estilo
burguês da época, vai privilegiar os feitos do indivíduo isolado.
Podemos atribuir à narrativa a função de assegurar que as experiências não se
percam:
Defini a questão que nos ocupa como a da importância da
narração para a constituição do sujeito. Essa importância sempre
foi reconhecida como a da rememoração, da retomada salvadora
pela palavra de um passado que, sem isso, desapareceria no
silêncio e no esquecimento7.
Benjamin era amigo de Brecht e admirador de seu teatro; cita o primeiro poema do
Manual para Habitantes das Cidades, uma crítica ao desejo do burguês de deixar um rastro
no mundo. É um poema profundamente político sobre a perseguição nazista: profetiza a
desumanização que os campos de concentração iam instaurar. Seus versos indicam que a
única experiência que pode ser ensinada é a de sua própria impossibilidade, da proibição da
memória e da partilha.
APAGUE AS PEGADAS
Separe-se de seus amigos na estação
De manhã vá à cidade com o casaco abotoado
Procure alojamento, e quando seu camarada bater:
Não, oh, não abra a porta
Mas sim
Apague as pegadas!
8
BRECHT, Bertold. “Aus einem Lesebuck fur stadtebewohner”, Ges. werke, Suhrkamp, vol 8. pp. 267-268
(“Verwisch die spuren); trad. bras. “Paulo Cesar Souza em Brecht, poemas, São Paulo: Brasiliense, 1986,
p.70. Apud GAGNEBIN, p.70.
9
Ramos, G. Memórias do Cárcere, (I.6).
10
BASTOS, Hermenegildo. Memórias do Cárcere, literatura e testemunho. (tese de doutoramento
apresentada à F.F.L.C.H. da Universidade de São Paulo, sob a orientação do Prof. Dr. João Luís Lafetá), 1996.
p.148.
11
RAMOS, G. Memórias do Cárcere, (I,9).
aceitava a arbitrariedade do governo (ou da “ditadura mal disfarçada” 12) em deslocar
indivíduos de prisão em prisão sem formar processos:
“O interrogatório, as testemunhas, as formalidades comuns em processos, não
apareciam. Nem uma palavra de acusação”13.
O escritor se indigna com a supressão da individualidade causada pela prisão e com
o fato de manterem pessoas à deriva, sob o comando de outrem.
“_ Viajar.” Para onde? Essa idéia de nos poderem levar
para um lado ou para outro, sem explicação, é extremamente
dolorosa, não conseguimos familiarizar-nos com ela. Deve haver
uma razão para que assim procedam, mas, ignorando-as, achamo-
nos cercados de incongruências. Temos a impressão de que apenas
desejam esmagar-nos, pulverizar-nos, suprimir o direito de nos
sentarmos ou dormir se estamos cansados. Será necessário essa
despersonalização? Depois de submeter-se a semelhante regime,
um indivíduo é absolvido e mandam-nos embora. Pouco lhe serve a
absolvição: habituado a mover-se como se o puxassem por cordéis,
dificilmente se libertará. Condenaram-no antes do julgamento, e
nada compensa o horrível dano14.
Graciliano chegou a supor que seria enxergado como um indivíduo, com certo
número de direitos, mas logo percebeu que era despersonalizado e que a perseguição
generalizada transformava-os em insignificâncias suprimidas pelo organismo social,
podendo ser arrastados para cima ou para baixo. Admite que foram raras as obras de arte
censuradas, mas acredita que as condições da época causou o rebaixamento da produção
literária.
“Se as nossas cabeças funcionavam, é bom que deixem de funcionar e nos
transformemos em autômatos”15.
Diante da despersonalização e uniformização dos seres humanos ocorridos
na prisão, Graciliano através da narrativa de Memórias do Cárcere repensa a trajetória do
eu envolvendo instâncias que atingem toda uma coletividade.
Introdução à Memória
Ao falarmos de memória nos remontamos aos trabalhos significativos de Maurice
Halbwachs, Paul Thompson e Ecléa Bosi.
O primeiro estabelece a existência da memória coletiva e da individual,
da sociologia francesa de Durkheim irá tratar a memória como fenômeno social, portanto
16
HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva, São Paulo, Editora Vértice, 1990. p.25.
17
Op. cit., p.54.
18
BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembranças de velhos. 3a. ed. São Paulo: Companhia das letras, 1994.
p.55.
19
Op. cit., p. 66.
“Será a memória individual mais fiel que a social?” 20. Bosi nos oferece uma resposta
bastante plausível:
“O único modo correto de sabê-lo é levar o sujeito a fazer sua autobiografia. A
narração da própria vida é o testemunho mais eloquente dos modos que a pessoa tem de
lembrar. É a sua memória.”21
A faculdade de relembrar exige a capacidade de não confundir a vida atual com o
que passou, de reconhecer as lembranças e opô-las às imagens de agora.
Para Ecléa Bosi, o dom do narrador é que seu talento lhe vem da experiência; sua
lição é extraída da própria dor. Somos testemunhas de nossas próprias recordações, e
fazemos apelo aos outros para que confirmem nossa visão. O exemplo lembrado pela autora
é justamente uma passagem de Infância, livro autobiográfico de Graciliano Ramos, onde o
romancista escreve que as suas primeiras lembranças, de quando tinha dois ou três anos de
idade, estão ligadas a um vaso de louça cheio de pitombas. Essa passagem se encontra no
início do primeiro capítulo, sugestivamente intitulado de “Nuvens”, visto que se tratam das
suas “mais antigas recordações”, e se não tivessem sido confirmadas por outras pessoas
ficaria a dúvida quanto a sua existência real.
O historiador Paul Thompson também contribui com o estudo da memória. Nos
fornece inúmeros exemplos de aplicação da história oral, assim como discorre sobre a
técnica da entrevista, armazenamento e catalogação. Defende a história oral da crítica dos
historiadores tradicionais que questionam a credibilidade dos depoimentos, tidos como
fontes subjetivas por nutrirem-se da memória individual.
... a subjetividade é um dado real em todas as fontes
históricas, sejam elas orais, escritas ou visuais. O que interessa em
história oral é saber porque o entrevistado foi seletivo ou omisso,
pois essa seletividade com certeza tem o seu significado 22.
A história oral propicia que sejam ouvidas uma diversidade de vozes sobre o mesmo
objeto, valoriza a multiplicidade dos pontos de vista.
A abordagem oral é muito mais abrangente no sentido de captar sujeitos depoentes,
porque baseia-se na fala, e não na habilidade da escrita, necessária à autobiografia muito
mais exigente e restritiva.
Conforme Thompson, reconhecidos escritores utilizaram-se das fontes orais: Jules
Michelet em sua História da Revolução Francesa (1847-53) contrabalançou documentos
oficiais com o julgamento político da tradição oral popular.
Voltaire, na elaboração de suas obras recolhia tanto evidências orais quanto
documentais, embora raramente citasse suas fontes. Em sua História de Carlos XII de 1731,
vangloriava-se de não haver “ousado apresentar um único fato sem consultar testemunhas
oculares de indubitável veracidade.”
O romance histórico de Walter Scott, considerado uma forma de texto histórico é
baseado em evidências orais. Scott considerava os velhos como verdadeiros documentos
históricos que contribuem para dar veracidade a escrita de seus romances. Homenageava
suas fontes usando em seus romances a seguinte epígrafe:
“Um jovem está entre vocês tomando notas
e creiam que ele vai publicar tudo”.
20
Op. cit., p.420.
21
Op. cit., p. 68.
22
THOMPSON, Paul. A voz do passado: história oral. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. p.18.
Scott foi grande tomador de notas e influenciou algumas das obras de imaginação
mais importantes do século XX: Dickens. Quando não lhe era possível rememorar o tempo
da infância, partia para o trabalho de campo.
“Na França, Émile Zola buscou material para Germinal em suas conversas com os
mineiros de Mons.”23
A biografia foi um tipo de obra histórica que se expandiu nos fins do XVII. Mais
surpreendente foi o florescimento, no século XIX, de grande variedade de autobiografias
individuais da classe operária: intelectuais, políticas ou pessoais.
O grande medievalista Marc Bloch mescla suas pesquisas nos arquivos com outras
fontes, inclusive o estudo do folclore do campo, viajando por toda a zona rural francesa e
conversando com os camponeses.
O filósofo alemão Wilhelm Dilthey nos fornece uma nova compreensão do valor
histórico das histórias de vida individuais.
Quem busca os fios de ligações na história de sua vida
(através da autobiografia) já terá criado, de diferentes pontos de
vista, uma coerência naquela vida que agora está pondo em
palavras(...). Em sua memória, já terá separado e salientado os
momentos que experimentou como significativos, outros, terá
deixado perderem-se no esquecimento.24
Fica evidente a importância atribuída à autobiografia e a percepção que Dilthey tem
da seletividade da memória.
No século XIX, quando o historiador assumiu uma posição profissional e social
mais definida, temos uma mudança em sua prática. Leopold von Ranke, por exemplo, evita
a invencionice e a ficção e apega-se rigorosamente aos fatos. Desde então, a história é
outra, com novos métodos. Aumentam-se a suspeita entre a ligação literatura e história.
23
Op. cit., p.58.
24
RICKMAN, H.P. (org.). Meaning in History, 1961, p. 85-6. Apud THOMPSON., p.78.
25
CANDIDO, Antonio. Ficção e confissão. Ensaios sobre Graciliano Ramos. Editora 34, 1992. P.72.
Com toda certeza o processo criativo de Graciliano Ramos sofreu uma passagem da
ficção à confissão, embora os seus romances também apresentem ligações com a realidade
vivida pelo escritor. As fronteiras que separam o gênero ficcional do autobiográfico não são
absolutas. A autobiografia não pode se confundir com a ficção nem com a história, não
tempo um caráter autônomo e instável com relação à história e ficção, tendendo ora mais
numa construção para a leitura. Nesse processo ocorre a atualização das posições do autor,
visto que há um recuo temporal entre o período da escrita com relação ao vivenciado.
porque uma autobiografia implica na identidade entre autor, narrador e personagem 26,
embora a construção dessa identidade não se faz sem ambigüidades na medida que há um
que embora ambos sejam a mesma pessoa o momento histórico se alterou e o presente dá o
tom à narrativa.
Dando início à análise de Memórias do Cárcere, devo esclarecer que além de ser
autobiografia devemos considerar a obra como um testemunho, visto que vai além do
indivíduo, abrangendo uma coletividade: os presos políticos que conviveram com o
escritor.
Memórias do Cárcere foi de difícil feitura, sendo que o longo período de escrita
evidencia os motivos de tanta hesitação. Graciliano alega não conservar as notas tomadas
na cadeia; abomina a idéia de fazer um romance, ao mesmo tempo não se vê no direito de
escrever história; redime o DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda) afirmando que
não houve censura prévia, sendo queimados apenas alguns livros.
26
Conforme definição de LEJEUNE, Philipe. Le pacte autobiographique. Paris, Seuil (Poétique). 1975.
... nos estreitos limites a que nos coagem a gramática e a
lei, ainda nos podemos mexer (...). Não caluniemos o nosso
pequenino fascismo tupinambá: se o fizermos, perderemos
qualquer vestígio de autoridade e, quando formos verazes, ninguém
nos dará crédito. De fato êle não nos impediu escrever. Apenas nos
suprimiu o desejo de entregar-nos a êsse exercício. 27
O autor concebe a sua obra como uma narrativa verídica sobre um momento
marcante em sua vida, daí se abster da liberdade imaginativa necessária ao romance. A
criação literária aparece principalmente na construção dos personagens e no seu modo de
narrar, mas os fatos não sofrem deturpações ou graves variações se comparados com a
história até então aceita e vigente.
Buscando compreender a escrita de Graciliano, dou destaque a sua afirmação de não
se agarrar a métodos. Não se vê entre os eruditos, “inteligências confinadas à escrupulosa
análise do pormenor”, nem entre os narradores de reportagem, “dessas em que é preciso
dizer tudo com rapidez”. Graciliano diz levar vantagem com relação ao segundo grupo.
Sem se deter a investigações em profundidade e tampouco estabelecer julgamentos
precipitados, o escritor procura um ponto de equilíbrio, onde a liberdade de escrita seja
possível:
Posso andar para a direita e para a esquerda, como um vagabundo,
(...). Omitirei acontecimentos essenciais ou mencioná-los-ei de relance,
como se os enxergasse pelos vidros pequenos de um binóculo; ampliarei
insignificâncias, repetí-las-ei até cansar, se isto me parecer conveniente. 28
O romancista se convence de que embora as notas façam falta, a perda não é
irreparável, visto que se elas ainda existissem ficaria preso às minúcias, talvez
desnecessárias.
Embora as notas tomadas na prisão não tenham sido guardadas com o escritor, a
possibilidade de lembrar a imensa quantidade de “personagens” verídicos se deu porque
Graciliano recolheu autógrafos nas páginas do livro Usina de José Lins do Rego, dedicado
ao amigo preso.
Perdidas as notas, essa letras me avivariam recordações
mais tarde. Sem dúvida muitos caracteres se diluiriam no tempo,
casos miúdos se esfumariam sem deixar vestígio, mas talvez
resistissem as personagens fortes, acções firmes, um diálogo, um
gesto inesperado. E iniciei a colheita por Walter Pompeu. (...) As
assinaturas vão até a folha 257.29
A partir do “jamegão” (assinatura) de cada preso será feita a reconstituição
da pessoa na memória do escritor, sendo que esses autógrafos puderam servir como uma
espécie de vestígio material do passado ou um suporte para a construção da memória.
Graciliano mantém o propósito de ser fiel às suas recordações, mas desconfia que
elas possam ser regulares e totalmente compatíveis com o ocorrido.
O acto que nos ocorre, nítido, irrecusável, terá sido
realmente praticado? (...) mas estaremos seguros de não nos havermos
enganado? Nessas oscilações dolorosas, às vezes necessitamos
confirmação, apelamos para reminiscências alheias, convencemo-nos de
que a minúcia discrepante não é ilusão.30
27
Op. cit., (I,6).
28
Op. cit., (I,9).
29
Op. cit, (IV,39)
30
Op. cit, (I,10-11).
O autor não absolutiza a sua reconstituição, admitindo que “ outros devem possuir
lembranças diversas”31. Além disso considera que formavam um grupo muito complexo,
que se desagregou após a saída da cadeia, sendo necessário recompô-lo.A engrenagem do
governo de Alagoas, com “vinte e oito mil quilômetros quadrados e um milhão de
habitantes”, era “tudo uma porcaria”, onde as incapacidades abundantes deveriam ser
perpetuadas juntamente com os “políticos safados e generais analfabetos”.
Na sua opinião, o integralismo era o diabo. Mas aos tenentes o julgamento não foi
muito diferente.:
Parecera-me então que a demagogia tenentista, aquêle palavrório
italiana.32
fazem uma aproximação da ditadura de Getúlio Vargas com os regimes totalitários. Desta
me abalanço a expor a coisa observada e sentida” 33 Essa constante preocupação em ser fiel
Conclusão
homenageava suas fontes, Graciliano Ramos na colônia correcional de Ilha Grande (RJ),
ironicamente agradece:
40
BOSI, Alfredo. A escrita do testemunho em Memórias do Cárcere. Revista de estudos avançados/USP,
n.23, vol.9, jan/abr, 1995. p.310.
_ Levo recordações excelentes, doutor. E hei-de pagar um dia a hospitalidade que os
senhores me deram.
_ Pagar como? exclamou o personagem.
_ Contando lá fora o que existe na Ilha Grande.
_ Contando?
_ Sim, doutor, escrevendo. Ponho tudo isso no papel.
O diretor suplente recuou, esbugalhou os olhos e inquiriu carrancudo:
_ O senhor é jornalista?
_ Não senhor. Faço livros. Vou fazer um sôbre a colônia correcional. Duzentas páginas, ou
mais. Os senhores me deram assunto magnífico. Uma história curiosa, sem dúvida.
O médico enterrou-me os olhos duros, o rosto cortante cheio de sombras. Deu-me as costas
e saiu resmungando:
_A culpa é desses cavalos que mandam para aqui gente que sabe escrever 41.
Graciliano tinha razão, escreveu o volume 3 intitulado Colônia correcional com 234
páginas. Memórias do Cárcere é testemunho imortal de uma época considerada transição,
mas que traz os componentes que vão predominar durante o período posterior, de ditadura.
O volume terceiro em específico conta sobre um lugar onde se vai para morrer, conforme
um dos guardas:
“_Aqui não vêm corrigir-se. Vêm morrer.”42
Só quem de lá conseguiu sair, pode nos contar.
Bibliografia