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COLÓQUIO/Letras

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[Recensão crítica a 'Quinto Livro de Crónicas', de António


Lobo Antunes]
Agripina Carriço Vieira

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Agripina Carriço Vieira, "[Recensão crítica a 'Quinto Livro de Crónicas', de António Lobo
Antunes]", Colóquio/Letras, n.º 186, Maio 2014, p. 249-252.

EDIÇÃO E PROPRIEDADE
Romance de memórias, Um Amigo para de modo crítico, as crónicas antunianas
o Inverno traz-nos histórias ponteadas de apresentam-se como um prolongamento
humor e ternura de outros tempos e de ou- do mundo ficcional presente nos roman-
tros locais, relembrando-nos a importân- ces, retomando não só os temas que ob-
cia do espaço e do tempo para a constru- sidiam o autor mas também a estrutura
ção da nossa identidade coletiva, porque, fragmentada e digressiva da sua escrita.
como explica o narrador, «tudo vem de Daí que se entreteçam entre as crónicas
trás. Tudo vem de um tempo que esculpiu e os romances relações intertextuais que
ou talhou a pedra, abriu o vale, ergueu um fazem destes textos espaços privilegiados
monte. Tudo vem dessa mistura de espaço do estudo da prática da reescrita (tão fe-
e tempo» (p. 105). cunda e polifacetada neste autor), que se
assume quer sob a forma de retoma dos
Agripina Carriço Vieira seus textos, quer de citação de outros au-
tores. É de modo humorístico, demons-
trando uma espantosa capacidade de
autoanálise, que o narrador da crónica
cró nica «Sem Título» se refere a essa prática,
afirmando: «Estou cheio de citações,
António Lobo Antunes que gaita. Pareço um cigano a mostrar o
Quinto Livro de Crónicas oiro falso dos anéis.»
Lisboa, Publicações Dom Quixote / 2013 Os textos agora reunidos podem ser
agrupados em grandes categorias tendo
O Quinto Livro de Crónicas, à semelhança em conta aquilo que o autor considera se-
dos quatro anteriores, constitui-se como rem as «matérias [de que são formados]
uma seleção das crónicas publicadas pelo os [s]eus livros», neste caso, as suas cró-
autor na imprensa, neste caso, na revista nicas. Temos, antes de mais, as crónicas
Visão. O leitor assíduo do referido perió- ficcionais, aquelas que, assemelhando-se
dico, folheando a coletânea agora publica- a pequenos contos, narram uma história.
da, não pode deixar de constatar a ausên- A efabulação gira sobretudo em torna de
cia de um ou outro texto que, por motivos relações frustradas, de vidas solitárias, de
nem sempre racionalmente explicáveis, separações de casais, como a da protago-
ficou na sua memória e que aqui não reen- nista da crónica «O Miúdo», que decide
contra. Fica, pois, por editar um livro que abandonar o marido, tranquilamente,
retome essas crónicas, algumas preciosas, depois de lhe servir o almoço. Os rela-
para que não desapareçam na fugacidade cionamentos entre homem e mulher são
das publicações jornalísticas. marcados ou pelo desinteresse e a indi-
De pendor ora mais intimista, ora mais ferença ou pela subjugação, sem grandes
humorístico, ora mais nostálgico, estes sobressaltos nem entusiasmos.
textos, que na sua grande maioria não A um outro grupo pertencem os tex-
ultrapassam as três páginas, revestem ca- tos que recuperam «farrapos de lem-
racterísticas peculiares que se prendem branças», pessoas, coisas, espaços ou
com a apropriação singular que o autor situações que preenchem a sua memória.
faz do género. Distanciando-se das cró- São a ocasião de o narrador (alter ego do
nicas convencionais cujo intuito é apre- escritor) recordar as pessoas que o acom-
sentarem flagrantes da atualidade, retra- panham ou acompanharam durante a sua
tando o quotidiano predominantemente existência: o nascimento da sua primei-

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ra filha («Zezinha»); o amor profundo somos?»), o senhor Mário que se alimen-
e silencioso dos irmãos («Crónica de ta de minis e passa fome para comprar
Muito Amor», «Crónica Inventada») e fiambre para o seu gato («Bom Dia»), o
da mãe («Crónica sei lá sobre quê», «Ó rapaz do computador que vê pela janela
pastorinha de vitral e bruma», «Carti- aberta («Crepúsculos») e tantos outros.
lha Maternal»), a morte do primo em Mais do que retratos ou descrições obje-
cujo atelier escreveu durante anos («O tivas, estas crónicas assumem-se como
vivo e puro amor de que sou feito»). Re- uma forma de autorreflexão. No e pelo
corda ainda amigos com quem partilha olhar do outro, o autor/narrador equa-
ou partilhou cumplicidades e emoções, ciona a sua existência, pondera as suas
alguns já falecidos e que deste modo, escolhas, medita acerca da contingência
através da escrita, resgata à morte, por- da vida.
que, como explica a voz narrativa da Nestes «farrapos de lembranças» sur-
crónica «Janeiro», só se morre comple- gem igualmente os locais que marcaram
ta e definitivamente quando já não se é a infância do autor e que se constituem
lembrado por ninguém. Particularmente como tema central de «Crónica Vaga-
pungente é a crónica escrita in memoriam bunda». Referindo-se à Praia das Maçãs,
de Tereza Coelho, sintomaticamente in- afirma: «Conhecia aquilo tudo a palmo
titulada «Descompostura ao meu amigo conforme conhecia Benfica a palmo,
lá de cima». A crónica constrói-se como conforme conhecia Nelas a palmo, os
um diálogo com Deus, que se abre com vértices do triângulo dos meus primeiros
uma declaração categórica acerca dos anos.» Também Angola e a guerra estão
seus sentimentos: «Deus, estou zangado presentes nestas evocações, surgindo, no
contigo.» Num tom coloquial, mas emo- entanto, de modo lateral e subsidiário ao
tivo e sofrido, recrimina Deus pela morte tema central de crónicas como «O Cabo
dos amigos que viu desaparecer de uma Ferrador», «Tomar», «Uma crónica
forma que lhe parece injusta. Deus surge ou lá o que é», «Zezinha», «Quem te
como alguém que mente e quer esquivar- deu licença de morrer?». O reencontro
-se ao confronto, por isso interpela-o com antigos camaradas, a recordação do
dizendo: «não franzas a testa a pensar, nascimento da sua primeira filha ou o re-
não Te escapes, é impossível não Te re- gresso a determinados locais, ou ainda a
cordares». morte de camaradas trazem-lhe, «num
Para além destas pessoas nomeadas e vómito instantâneo de imagens», as
identificadas, outras há que povoam as memórias da guerra mas sobretudo do
páginas dos seus textos a que o autor atri- sentimento de união e solidariedade que
bui a designação de «os meus famosos». o uniu aos homens que com ele partilha-
São indivíduos, anónimos e anódinos, ram os mesmos horrores.
com quem o autor se cruza no quotidia- Deste conjunto de crónicas de cariz
no e que surgem identificados pelo viés claramente autobiográfico destaca-se
do destaque dado a um elemento que os uma pela originalidade da construção
caracteriza. A essa galeria de personagens efabulativa; referimo-nos a «Crónica
pertencem o sem-abrigo de compridas Inventada». Num registo pouco usual
barbas que o trata por Amigo («As mãos em António Lobo Antunes, recorrendo
são as folhas dos gestos», «Bom Dia»), o à terceira pessoa gramatical, com um tí-
traficante de droga para quem ele é o pa- tulo não menos surpreendente, porque
drinho («Somos unha com carne ou não individualiza uma característica intrín-

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seca a qualquer texto ficcional (o de ser particularmente nas dificuldades «deste
inventado) e porque a característica de ofício esquisitíssimo», que se prendem
ser inventado se aplica a acontecimentos antes de mais com encontrar o modo
noutras ocasiões tidos como verídicos, o justo de dizer, de que a crónica «Morto
autor/narrador lança um olhar oblíquo Cobrido de Amor» dá conta: «E eu aqui
sobre si mesmo, como se de um jogo de amarrado em busca de infinito, palavra a
espelhos se tratasse. Designando-se a si palavra, lento como um boi, a emendar, a
próprio como «o primeiro», numa refe- voltar ao princípio, a emendar de novo,
rência à circunstância de ser o mais velho a voltar ao princípio de novo, a lograr
dos seis filhos da família, retrata-se com uma linha, duas linhas, uma página por
uma serena frieza ponteada de humor, fim. Trabalho de oficina.» Desse traba-
apontando os maus resultados escolares, lho perpassa a certeza de ter conseguido
a má educação, um indelével desinteres- a singularidade discursiva desde sempre
se por coisas práticas, preferindo passar perseguida e laboriosamente alcançada,
o seu tempo a contemplar o teto ou a de que dá conta em «Uma crónica ou lá
construir «nuvens de papel com coisas o que é»: «Tanto tempo até encontrar o
escritas ou desenhadas no meio». Nessa meu tom, o meu modo, uma forma que
família, assemelhada a uma tribo fecha- não devesse nada a ninguém, e em que as
da, imperava um amor incondicional que vozes alheias não entrassem na minha.»
se escondia por detrás de uma aparente Para além dessa «busca de infinito»,
indiferença. O jogo de espelhos, a que também nos fala do cansaço de passar
atrás nos referíamos, é levado ao paroxis- horas seguidas a escrever («Uma dor por
mo no final da crónica, quando, assumin- aí») e da solidão a que obriga («Orações
do a primeira pessoa nessa única ocasião, Subordinadas», «Crónica da Rapariga
alarga a distância entre autor, narrador à Chuva»), desvendando-nos os rituais
e personagem e afirma: «Isto foi escrito inerentes ao ato de escrever («A Minha
assim, ao correr da esferográfica: algu- Colecção de Momentos») e a sua infinita
mas notas acerca de criaturas que, por dor de deixar a obra incompleta, trunca-
acaso, conheço. Não vou dizer o nome, da pela doença, sentimento que expressa
é lógico. Uma família que não tem nome em vários passos, como este, na crónica
neste texto mas da qual não me desagra- «Deste profundo abismo, Senhor»:
daria completamente fazer parte.»
Um outro conjunto de crónicas centra- Queria deixar uma catedral de palavras e
-se no que poderíamos designar como o dou-me conta que a catedral não tem fim.
ofício da escrita. Nelas, o autor/narrador Queria arredondar o edifício, fechá-lo, e
reflete sobre a literatura e o trabalho do dou-me conta, desolado, da impossibilida-
escritor, quer a parte mais mundana que de desse fecho, dada a inevitável limitação
sente como uma obrigação (as entrevis- da vida.
tas, os encontros de divulgação da sua
obra, alguns no estrangeiro, as sessões de Os temas da doença e da morte ocu-
autógrafos), quer a parte oficinal da escri- pam, nesta coletânea, largos espaços de
ta. Num tom intimista, quase confessio- reflexão, quer nas crónicas de pendor
nal, o autor/narrador vai-nos revelando a autobiográfico, quer nas ficcionais, quer
sua perceção do que é ser escritor, consi- como tema central, quer como questão
derando que «quem não inventa uma lín- lateral. Uma delas importa destacar pela
gua junta linhas, não escreve». Detém-se poderosa e corajosa mensagem que nos

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transmite; trata-se de «Assuntos a tratar espanhol Vicente Aleixandre no ano se-
depois de ter morrido». Nela, o autor guinte viria a estar na origem de uma im-
descreve os horrores da doença (a algá- portante troca de correspondência entre
lia, os tubos, o desânimo, a dor, a morte a os dois. São as 21 cartas endereçadas por
rondar), considerando-a um monstro que Aleixandre ao seu correspondente por-
habita o seu corpo e lhe rói as vísceras e tuguês que o volume em epígrafe, agora,
do qual não se consegue libertar. reúne, acompanhadas de um completíssi-
À semelhança dos romances, também mo estudo introdutório de Blas Sánchez
nestes textos a efabulação se constrói por Dueñas e das notas que Albano Martins
meio de sucessivas digressões da narra- redigiu para cada uma das cartas. Em
ção. Raras são as crónicas que se centram 1994, o poeta português já tivera oportu-
numa só ideia, numa única história, num nidade de dar a público seis destas cartas
só acontecimento, numa única situação; no n.º 8 da revista andaluza Palimpsesto,
ao invés, pelo poder de uma palavra, que todas elas, esclareça-se, se situando no
se torna cruzamento de sentidos, o dis- período mais significativo do contacto
curso toma uma nova direção surpreen- epistolar dos dois poetas, compreendido
dente porque inesperada. É com humor entre 1951 e 1956.
que o autor se refere à fragmentação que Como razão para o pedido de oferta
caracteriza as suas crónicas, constatando: que, ao mesmo tempo, fazia de algum dos
«Que diabo de texto é este em que come- seus livros ao poeta espanhol, alegava Al-
cei em Dickens e já vou nas redondilhas? bano Martins — segundo refere na nota
A culpa é da esferográfica que vagabun- de que fazia anteceder a publicação das
deia sozinha.» E é a um agradável vaga- cartas em Palimpsesto — a dificuldade de
bundear pelo mundo ficcional de Antó- encontrar obras provenientes de Espa-
nio Lobo Antunes que estes textos nos nha nas livrarias de Lisboa. Aleixandre
convidam, viagens curtas mas nem por não deixou de satisfazer o pedido do seu
isso menos fascinantes. jovem correspondente, enviando-lhe o
último livro que dera a lume, Sombra del
Agripina Carriço Vieira paraíso, de 1944, um dos seus títulos mais
representativos na que é considerada por
alguma crítica do país vizinho a primei-
episto logra f i a ra etapa da sua produção poética. Seja
como for, o que importa acima de tudo
Vicente Aleixandre registar é o significado da decisão do au-
CARTAS A ALBANO MARTINS tor de Secura Verde de entrar em contac-
Estudo e edição de Blas Sánchez Dueñas to com um poeta espanhol, de quem, na
Notas de Albano Martins altura, decerto já conhecia alguns textos
Córdoba, Servicio de Publicaciones, Universidad que o haviam tocado profundamente.
de Córdoba / 2012 O seu conhecimento da poesia do autor
de Sombra del Paraíso foi-se alargando
Quando Albano Martins publicou, em com a continuação do intercâmbio epis-
1950, o seu primeiro livro de poemas, tolar entre os dois, favorecido pela sim-
Secura Verde, era ainda muito jovem. patia e cordialidade de Aleixandre, que,
Tinha vinte anos e era estudante de Fi- na relação com o seu jovem interlocutor,
lologia Clássica na Faculdade de Letras não dava mostras de qualquer tipo de
de Lisboa. O envio desse livro ao poeta paternalismo — pecha, como é sabido,

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