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AUGUSTO DOS ANJOS e a    decomposição orgânica como matéria de composição poética

Fernando César da Silva Ramos**

Sinopse

                  Este minúsculo trabalho é apenas uma primeira tentativa de compreensão da poética


de Augusto dos Anjos, partindo da leitura de alguns de seus poemas e que resumem, grosso
modo, sua opção em termos de linguagem como forma de representação de sua angústia
existencial.

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*
Mestrando em História Social da Linguagem pela Universidade Federal de Ouro Preto

I
AUGUSTO DOS ANJOS
E
A DECOMPOSIÇÃO ORGÂNICA COMO MATÉRIA DE
COMPOSIÇÃO POÉTICA

                  Para uma melhor compreensão da matéria de composição


poética de Augusto dos Anjos1, vamos iniciar a leitura de sua obra pelo
soneto MINHA FINALIDADE, pois nele se encontra, de maneira clara,
o que o poeta vê estabelecido como seu destino, como sua missão
última. Nada pode conter o violento impulso que o leva a    querer
apreender o inapreensível. Foi talhado, preparado, escolhido para cantar
o horrível, e nisso, considera-se superior a Dante:

                            Turbilhão teleológico incoercível


                            Que força alguma inibitória acalma,
                            Levou-me o crânio e pos-lhe dentro a palma
                            Dos que amam apreender o Inapreensível !

                            Predeterminação imprescritível
                            Oriunda da infra-astral Substância calma
                            Plasmou, aparelhou, talhou minha alma
                            Para cantar de preferência o Horrível!

                            Na canonização emocionante
                            Da dor humana, sou maior que Dante,
                            –A águia dos latifúndios florentinos!

                            Sistematizo, soluçando, o Inferno...


                            E trago em mim, num sincronismo eterno
                            A fórmula de todos os destinos!

                  Assim como uma sonda que penetra o solo e traz testemunhos


das diversas camadas do subsolo, dando conhecimento de sua
composição estratigráfica, também o poeta penetra em si mesmo e,
munido de uma linguagem peculiar às ciências naturais e do pessimismo
da filosofia de Schopenhauer, reproduz, em versos, imagens da
realidade nua e crua, única da qual temos certeza, a da morte, que nos
oferece em banquete ao:
1
A edição utilizada foi a 31ª, de 1971.

II
                                           
                                                                      Deus-Verme

                            Factor    universal do transformismo.


                            Filho da teleológica matéria
                            Na superabundância ou na miséria
                            Verme_ é o seu nome de batismo.

                            Jamais emprega o acérrimo exorcismo


                            Em sua diária ocupação funérea,
                            E vive em contubérnio com a bactéria
                            Livre das roupas do antropomorfismo

                            Almoça a podridão das drupas agras,


                            Janta hidrópicos, rói vísceras magras
                            E dos defuntos novos incha a mão...

                            Ah! Para ele é que a carne podre fica,


                            E no inventário da matéria rica
                            Cabe aos seus filhos a maior porção!

                  Mas, antes de servir de repasto a esse ínfimo ser    e seus


filhos, o poeta vai debater-se nos antagonismos irreconciliáveis de dois
monstros, como podemos ler    no último terceto de DANÇA DA
PSIQUE:

                            Arranco do meu crânio as nebulosas


                            e acho um feixe de forças prodigiosas
                            sustentando dois monstros: a alma e o instinto!

                             
                  Insatisfeito com essa dubiedade, com as mais opostas
idiossincrasias, tomado pela gula negra das antinomias, o poeta se julga,
desgraçadamente, uma VÍTIMA DO DUALISMO, soneto do qual lemos
apenas o último terceto:

                            Ceva-se em minha carne, como um corvo,               


                            A simultaneidade ultramonstruosa
                            De todos os contrastes famulentos!”

III
                  Dessa insatisfação, desse desconforto causado pelo estado
dicotômico de seu ser, é que o poeta passa a sonhar com uma
substância única, e é no monismo de Haekel, doutrina    segundo a qual
o conjunto das coisas pode ser reduzido à unidade, que ele se inspira
para iniciar o MONÓLOGO DE UMA SOMBRA:
                           

                            Sou uma Sombra! Venho de outra eras,


                            Do cosmopolitismo das moneras...
                            Polipo de recônditas reentrâncias,
                            Larva de caos telúrico, procedo
                            Da escuridão do cósmico segredo,
                            Da substância de todas as substâncias!

                            A simbiose das coisas me equilibra.


                            Em minha ignota mônada, ampla, vibra       
                            A alma dos movimentos rotatórios...
                            E é de mim que decorrem, simultâneas,
                            A saúde das forças subterrâneas
                            E a morbidez dos seres ilusórios!”

                  A obra poética de Augusto dos Anjos gira, portanto, em torno


de uma ânsia pela unidade, um desejo mórbido de devolver o corpo à
terra    e desintegrar-se na natureza, como propõe o panteísmo, uma
almejada regressão à eterna calma do Nada, única forma de escapar do
infortúnio de ser alma e não sofrer    os martírios do morcego da
consciência. De noite, no recolhimento do quarto, mesmo com todas as
portas e janelas trancadas, ele penetra a escuridão do quarto. Melhor é
transcrever    o soneto, pois suas imagens são mais fortes que qualquer
explicação:

                                                                O MORCEGO
                                        
                            Meia-noite. Ao meu quarto me recolho.
                            Meu Deus! E este morcego! E, agora, vede:
                            Na bruta ardência da orgânica sede,

IV
                            Morde-me a goela ígneo e escaldante molho.

                            <Vou mandar levantar outra parede...>


                            _ Digo. Ergo-me a tremer. Fecho o ferrolho
                            E olho o teto. E vejo-o ainda, igual a um olho,
                            Circularmente sobre a minha rede!
                                            
                            Pego de um pau. Esforços faço. Chego
                            A tocá-lo. Minha alma se concentra.
                            Que ventre produziu tão feio parto?!

                            A Consciência Humana é este morcego!


                            Por mais que a gente faça, à noite, ele entra
                            Imperceptivelmente em nosso quarto!           

                  Atormentado pelos fantasmas que o destino lhe reservou,


dividido entre o sonho e a realidade, o poeta passeia por entre sombrios
cemitérios, examinando restos de cadáveres e reconhecendo ali o seu
destino inexorável, revoltando-se contra a Natureza e desafiando-a
nestas estrofes do POEMA NEGRO:

                            Chegou a tua vez, oh! Natureza!


                            Eu desafio agora essa grandeza,
                            Perante a qual meus olhos se extasiam...
                            Eu desafio, desta cova escura,
                            No histerismo danado da tortura
                            Todos os monstros que os teus peitos criam.
                                      
                            Tu não és minha mãe, velha nefasta !   
                            Com o teu chicote frio de madrasta
                            Tu me açoitaste vinte    e duas vezes...
                            Por tua causa apodreci nas cruzes
                            Em que pregas os filhos que produzes
                            Durante os desgraçados nove meses !

                            Semeadora terrível de defuntos,


                            Contra a agressão dos teus contrastes juntos
                            A besta, que em mim dorme, acorda em berros;
                            Acorda, e após gritar a última injúria

V
                            Chocalha os dentes com medonha fúria
                            Como se fosse o atrito de dous ferros !
             

                  Vagando na incoerência quotidiana, enojado da natureza


humana, o poeta    não vê saída nem mesmo na arte, que só pode
abrandar, mas não extinguir a dureza do mundo, como ele escreve em
outra estrofe do MONÓLOGO DE UMA SOMBRA:

                            Somente a Arte, esculpindo a humana mágoa,


                            Abranda as rochas rígidas, torna água
                            Todo o fogo telúrico profundo
                            E reduz, sem que, entanto, a desintegre,
                            À condição de uma planície alegre,
                            A aspereza orográfica do mundo!

      
                  Mundo que o oprime com todas as suas desgraças e reveses.
Uma agourenta asa de corvo paira sobre seu destino, um urubu pousou
sobre sua sorte. O poeta considera-se uma aberração, a mais hedionda
generalização do desconforto, como podemos ler nos dois últimos
tercetos de O POETA DO HEDIONDO:

                                              
                                             
                            Quanto me dói no cérebro esta sonda!
                            Ah! Certamente eu sou a mais hedionda
                            Generalização do Desconforto...

                            Eu sou aquele que ficou sozinho


                            Cantando sobre os ossos do caminho
                            A poesia de tudo quanto é morto!”       
           

                  Gilberto Freyre, em    nota    sobre        o poeta , considera que


nunca    houve na    literatura brasileira, expressão mais viva do gosto de
introspecção pessimista que os poemas de Augusto dos Anjos. Para ele,
havia no poeta    um deleite mórbido, uma volúpia estranha, uma tensão

VI
quase sádica em analisar as impressões de corrupção física dos seres e
das coisas que o rodeavam. O mundo para ele não era alegria de
renovação, mas constante dissolução de vida apodrecendo diante de
seus olhos.2
                  Ao adotar a decomposição orgânica como matéria de
composição poética, Augusto dos Anjos atraiu as mais pesadas críticas,
sendo taxado de metrificador de reminiscências do naturalismo científico,
aproveitador dos últimos lampejos do evolucionismo de Haeckel, Darwin,
Buchner e Spencer, alinhavador de estrofes cheirando a salmoura de
cadáveres e outras coisas mais. Agripino Grieco vê uma influência de
Cesário Verde em Augusto dos Anjos "pela mescla sistemática de lirismo
e sarcasmo, ternura e brutalidade. Ambos versejavam em ângulos
agudos, em riscos incisivos, cortantes como lâminas, em frases cheias de
ácidos e gumes, atraídos pelos pratos avinagrados e pelos frutos verdes
ou podres, nunca em boa sazão."3
                  Muitos críticos já apontaram elementos na poesia de Augusto
dos Anjos, que antecipam a linguagem moderna da poesia brasileira.
Num certo sentido, podemos dizer que Augusto dos Anjos realiza, com
antecedência, a antropofagia proposta    por Oswald de Andrade, de se
comer, do que vem de fora, as partes boas, e jogar no lixo o restante . O
poeta se nutre, voluptuosamente, de ciência e filosofia, na busca de uma
catarse para seu sofrimento, mas, mesmo na paz de Buda, ainda sente o
cansaço e tenta, através do pensamento, desencarcerar-se da obscura
forma humana, para encontrar o nirvana na imortalidade das Idéias. É a
manumissão schopenhaueriana, isto é, libertação pela inteligência, pela
contemplação desinteressada, das idéias platônicas, colocada no soneto
O MEU NIRVANA:
                                       
                                   
                            No alheamento da obscura forma humana,
                            De que pensando me desencarcero,
                            Foi que eu, num grito de emoção, sincero
                            Encontrei, afinal, o meu Nirvana !

                            Nessa manumissão schopenhaueriana,


                            Onde a Vida do humano aspecto fero
                            Se desarraiga, eu, feito força, impero
                            Na imanência da Idéa Soberana!
2
Freyre, Gilberto. Nota sobre Augusto dos Anjos. In Obra, discussão e crítica num centenário.
Secretaria da Educação e Cultura do Estado da Paraíba, 1984
3
Grieco, Agripino. Augusto dos Anjos. In obra cit.

VII
.
                           Destruída a sensação que oriunda fôra
                           Do tacto – ínfima antena aferidora
                           Destas tegumentárias mãos plebéas-
                                                    
                           Gozo o prazer, que os anos não carcomem,
                           De haver trocado a minha forma de homem
                           Pela imortalidade das Idéas!”           
                                                

                  Na visão de Anatol Rosenfeld, 4 a influência de Schopenhauer


sobre Augusto dos Anjos é muito mais profunda do que a de Heckel e
Spencer, pois alguns dos seus maiores poemas, como NA FORJA e NA
FLORESTA, parecem inimagináveis sem a assimilação do pensamento
schopenhauriano5, que vê no sofrimento o sentido mais próximo e
imediato da vida. Nossa receptividade para a dor é quase infinita,
assegura ele, enquanto para o prazer há limites estreitos. Embora a
infelicidade individual apareça como exceção, a infelicidade, no geral,
constitui a regra. A seu ver, bem-estar e felicidade são valores
negativos, pois não são mais do que a supressão do desejo e a
eliminação do tormento.
                  A cada desejo satisfeito, novos aparecerão, porque todo querer
se origina da necessidade, isto é, da carência, do sofrimento. Esse é
positivo, pois, para Schopenhauer, se observarmos nossos semelhantes,
sempre descobriremos outros mais infelizes do que nós, o que pode
trazer um certo conforto; ao passo que, se olharmos apenas aqueles
privilegiados materialmente, despertaremos em nós a inveja e,
consequentemente, mais sofrimento por desejar, desesperadamente, o
conforto material acima de nossas possibilidades.
                  Provavelmente baseado nas proposições de Schopenhauer, é
que Augusto dos Anjos compôs seu HINO À DOR:

                            Dor, saúde dos seres que se fanam   


                            Riqueza da alma, psíquico tesouro,
                            Alegria das glândulas do choro
                            De onde todas as lágrimas emanam ...
                                     
4
Rosenfeld, Anatol. A costela de prata de Augusto dos Anjos. idem
5
Schopenhauer, Artur. O mundo como vontade e representação.

VIII
                            És suprema! Os meus átomos se ufanam
                            De pertencer-te, oh! Dor, ancoradouro
                            Dos desgraçados, sol do cérebro, ouro
                            De que as próprias desgraças se engalanam!
    
                            Sou teu amante! Ardo em teu corpo abstrato
                            Com os corpúsculos mágicos do tato     
                            Prendo a orquestra de chamas que executas..
                     
                            E, assim, sem convulsão que me alvorece,
                            Minha maior ventura é estar de posse
                            De tuas claridades absolutas!”
              
                           
                  Na concepção de Schopenhauer, à medida que o homem
amplia seu conhecimento, maior torna-se    sua dor, pois ela atinge,
unicamente, a vontade e resulta da obstrução desta. Do soneto acima,
depreende-se, portanto, que o poeta atingiu um grau elevadíssimo de
conhecimento de si mesmo, a ponto de transformar a dor em sua
própria amante, ou seja, é através dela, a dor, que advém o
conhecimento, pois ela é objetiva, deixando o poeta de posse das
claridades absolutas.
                  Segundo o psicoterapeuta    Rollo May, 6 a autoconsciência dá-
nos aptidão para nos afastarmos da rígida cadeia de estímulos e
reações, fazer    uma pausa e avaliar a situação. A seu ver, liberdade e
conhecimento caminham lado a lado. Quanto mais uma pessoa é
controlada por inibições, repressões, condicionamentos da infância,
conscientemente “esquecidos”, mas que ainda atuam incoscientemente,
tanto mais é impelida por forças que não consegue controlar. Assim,
quanto maior a percepção de si mesmo, tanto maior a capacidade de
orientar a própria vida. A essa capacidade é que o psicoterapeuta chama
de liberdade, que é acumulativa, isto é, uma opção feita com liberdade
possibilita um crescente na próxima opção, ampliando o âmbito da
personalidade.
                  Rollo May admite que nossas vidas sofrem um sem número de
influências deterministas, mas é preciso concordar que existe uma
margem na qual o ser humano pode ter consciência daquilo que o está
movendo, revelando-se a liberdade na maneira    pela qual nos
relacionamos com as realidades deterministas.
6
May, Rollo. O homem à procura de si mesmo. Trad. Áurea B. Weissemberg. Vozes, 7ª ed.,1979

IX
                  Dessas poucas linhas podemos inferir que Augusto dos Anjos
soube exercer sua liberdade, apesar    da “predeterminação
imprescritível” de ter de cantar    o horrível. Avançando pela contra-mão
da corrente literária    de sua época, o poeta mostra toda a sua lucidez,
apesar de ter sido recebido como louco. Para Eduardo Portella 7 as visões
reducionistas cercearam a leitura do EU, e a estética absolutista
promotora do "belo" ideal colocou e coloca todo o texto de Augusto dos
Anjos como uma questão de ''bom'' ou ''mau'' gosto. Ainda na visão de
Portella, a força modernizadora do poeta paraibano está na
desidealização do conceito de gosto e na dessacralização    da linguagem.
                  Se é de mau gosto, ou não, a poesia de Augusto dos Anjos,
fica a cargo de cada um que a ler, julgar. O que não se pode negar é
sua capacidade de nos levar a uma reflexão profunda sobre a
efemeridade do ser humano sobre a face da terra, perdendo grande
parte do pouco tempo de vida que dispõe, com tolas preocupações e
mesquinharias, esquecendo-se que a todos está reservado o mesmo fim,
pelo menos para o corpo material.         
                  Para a Prof. Lúcia Helena, há como que uma sedução em
identificar-se o EU, em letras vermelhas, com o eu autobiográfico do
autor. “A sua sombra magra”, diz a Professora, serve .de “nevoeiro
funéreo ao importante texto que nos legou o poeta, antecipando a
modernidade da poesia brasileira, ainda nos idos da primeira década do
século”. A seu ver, a crítica biográfica tem realizado aquilo, que de certo
modo, o poeta a induziu a fazer: agigantar, no texto poético, a dimensão
real de uma vida complexa e enigmática.8
                  Assim o descreve seu amigo e prefaciador, Orriz Soares:
  
                                 
                            Foi    magro, meu    desventurado amigo, de    magreza
esquálida,    faces
                            reentrantes,    olhos    fundos,    olheiras    violáceas      e
testa      descalvada.     
                            A boca fazia a catadura crescer de sofrimento, por
contraste do olhar
                            doente de tristura e nos lábios uma crispação    de
demônio      torturado.
                            Nos momentos de investigações suas vistas
transmudavam-se rápido,

7
Portella, Eduardo. Uma poética da confluência. Obra cit.
8
Helena, Lúcia. O poeta da ruína. idem

X
                            crescendo, interrogando, teimando. E quando as narinas
se lhe dilata-
                            vam ? Parecia-me ver o violento acordar do anjo bom,
indignado da
                            vitória do anjo mau, sempre de si contente na fecunda
terra    de Jeová.
                            Os cabelos pretos e lisos apertavam-lhe o sombrio    da
epiderme    tri -
                            gueira. A clavícula, arqueada. No omoplata, o corpo
estreito quebra -
                            va-se numa curva para adiante. Os braços    pendentes,
movimentados
                            pela dança dos dedos, semelhavam duas rabecas tocando
a    alegoria
                            dos seus versos. O andar    tergiversante, nada
aprumado, parecia    re -                         
                            produzir o esvoaçar das imagens que lhe agitavam o
cérebro.9

                  De acordo com a    Professora Lúcia Helena, sabermos ou não,


se o poeta tentou transcrever em suas páginas um real amargor e
morbidez, não vai trazer nenhum esclarecimento consistente para sua
obra. A seu ver, seguindo por este caminho, "a crítica está    renegando a
um estatuto de desimportância aquilo mesmo que caracteriza o ato de
poetizar: relacionar, profundamente, pela mediação do ficcional (e não é
ficção apenas a narrativa, mas todo discurso literário),a dupla instância
que a arte congrega, ou seja, o real e o imaginário." 10
                  É certo que, por mais que um escritor se exile em suas
fantasias, escreve sempre a partir de uma dimensão real, seja de sua
própria experiência ou da observação do mundo. A obra literária não é
apenas um depoimento ou um delírio, embora ambos participem dela,
sendo constituída por uma tematização complexa deste mundo
contraditório.
                  Ferreira Gullar 11 considerou necessário esboçar o contexto
literário em que a obra surgiu, para melhor apreendermos a contribuição
de Augusto dos Anjos, o que sua poesia traz de novo, o que significa
como avanço na formulação poética como expressão verbal. Gullar
9
Soares, Orris. Elogio de Augusto dos Anjos.
10
idem
11
Gullar, Ferreira. Toda a poesia de Augusto dos Anjos. In obra cit.

XI
conclui que na época em que Augusto dos Anjos forjava os instrumentos
de sua expressão poética, o parnasianismo e o simbolismo eram as duas
tendências atuantes na poesia brasileira (em 1900, Faróis, de Cruz e
Souza e Poesias, de Alberto de Oliveira; em 1902, Poesias de Olavo
Bilac e Kyriale, de Alphonsus de Guimarães, em prosa Canaã, de Graça
Aranha    e Os Sertões, de Euclides da Cunha; em 1905, Os Últimos
Sonetos, de Cruz e Souza; em 1906 as Poesias, de Raimundo Correia
e em 1908, Poemas e Canções, de Vicente de Carvalho). Apesar de
sofrer influência de ambas, não se filiou a nenhuma, o que segundo
Gullar, pode ser compreendido se observarmos a diferença radical entre
sua visão de mundo e a dos parnasianos e simbolistas.
                  Do parnasianismo, Gullar vê, em Augusto dos Anjos, o verso
conciso, o ritmo tenso e a tendência ao prosaico e ao filosofante; do
simbolismo, além do gosto por palavras-símbolo com maiúscula, o
recurso da aliteração e certos valores fonéticos e melódicos. A poesia de
Augusto dos Anjos nasce, portanto, não de uma assimilação crítica e de
uma superação das técnicas e valores poéticos, mas de uma conjunção
de fatores que o obrigam a romper com a linguagem poética em voga,
conclui    Gullar.
                    Rilke nos diz que    o verdadeiro artista traz    dentro de si o
potencial inestinguível de onde brota a obra de arte, como a forma
suprema da mais autêntica criação. A realidade cotidiana, com suas
insignificâncias, seus eventos passageiros, não altera a capacidade
criadora do artista, pois seus olhos vêm além da superficialidade formal
das coisas.    Augusto dos Anjos vai muito além, desce ao subterrâneo,
ali onde tudo se decompõe, onde os    organismos apodrecem, onde
tememos sequer um olhar de soslaio, e de forma surpreendente nos
lembra a terrível sentença divina: do pó vieste e ao pó voltarás.
                    
       

XII
BIBLIOGRAFIA

                  ANJOS, Augusto dos. EU, Outras Poesias, Poemas


esquecidos. Livraria São José.
                                    Rio de Janeiro. 31ª edição. 1971

                        ANJOS, Augusto dos. Obra, discussão e crítica num


Centenário. Secretaria    da
                                Educação e Cultura do Estado da Paraíba. 1984

                        SCHOPENHAUER, Arthur. Coleção Os Pensadores,


Editora Nova Cultural. São
                                    Paulo. 1977

                        MAY, Rollo. O Homem à procura de si mesmo. Trad.


Áurea B. Weissemberg.
                                      Editora Vozes Ltda. 7ª edição. 1979         

             

XIII

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