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FICHA DE TRABALHO

Prof. Dra. Irma González


Textos da Literatura (4 ano – semestre 2)

Heterónimos de Fernando Pessoa

ALBERTO CAEIRO

A poética de Alberto Caeiro é marcada pela objetividade e simplicidade. Fernando


Pessoa considerava-o como o maior dos seus heterónimos.

Entre os heterónimos de Fernando Pessoa, Alberto Caeiro é tido como o mestre. Homem
simples, despiu-se de toda a subjetividade e introspeção. Utilizava uma linguagem
simples e direta, negando questões metafísicas, a subjetividade e a introspeção, elementos
tão comuns para tantos poetas.

Alberto Caeiro é o poeta do campo, o singelo guardador de rebanhos. Nasceu em Lisboa,


mas viveu a vida no campo, aos cuidados de uma tia-avó idosa, a sua companheira desde
o falecimento precoce dos pais.
É importante salientar o interessante processo de construção da alteridade de cada um dos
heterónimos, cuidadosamente forjados por Pessoa: além de biografias próprias, também
apresentam grandes diferenças estilísticas, o que comprova a genialidade deste poeta
maior da língua portuguesa.

“(...) A vida de Caeiro não pode narrar-se pois que não há nela de que
narrar. Os seus poemas são o que houve nele de vida. Em tudo mais não
houve incidentes, nem há história. […] Ignorante da vida e quase
ignorante das letras, sem convívio nem cultura, fez Caeiro a sua obra um
progresso impercetível e profundo, como aquele que dirige, através das
consciências inconscientes dos homens, o desenvolvimento lógico das
civilizações. […] Por uma intuição sobre-humana, como aquelas que
fundam religiões, porém a que não assenta o título de religiosa, por isso
que repugna toda a religião e toda a metafísica, este homem descreveu o
mundo sem pensar nele, e criou um conceito do universo que não contém
uma interpretação (...)”.

Fernando Pessoa in “Páginas Íntimas e de Autointerpretação”

O Guardador de Rebanhos – de Alberto Caeiro - é um dos textos mais emblemáticos da


vasta obra de Pessoa.
Da Minha Aldeia

Da minha aldeia veio quanto da terra se pode ver no Universo...

Por isso a minha aldeia é tão grande como outra terra qualquer

Porque eu sou do tamanho do que vejo

E não, do tamanho da minha altura...

Nas cidades a vida é mais pequena

Que aqui na minha casa no cimo deste outeiro.

Na cidade as grandes casas fecham a vista à chave,

Escondem o horizonte, empurram o nosso olhar para longe

de todo o céu,

Tornam-nos pequenos porque nos tiram o que os nossos olhos

nos podem dar,

E tornam-nos pobres porque a nossa única riqueza é ver.


RICARDO REIS

Ricardo Reis foi um dos heterónimos mais importantes de Fernando Pessoa, tendo
assinado cerca de 250 odes, e a sua poesia apresenta características neoclássicas.

Criado em 1913, Ricardo Reis deu voz aos poemas de índole pagã inspirados na cultura
greco-latina. O estilo influenciado pela tradição greco-latina aproximou os escritos de
Ricardo Reis aos escritos do poeta latino Horácio. Nos seus poemas, podemos notar o uso
de gerúndios, imperativos e inversões de sintaxe.
Outros aspetos formais que também podem ser notados são o emprego de vocabulário
erudito e arcaico, formas estróficas e métricas de influência clássica (“ode”) e o diálogo
permanente com o “tu”, evidenciando assim uma certa coloquialidade.

Um facto curioso da sua biografia é a indefinição do ano de sua morte: embora tivesse
definido a data de falecimento dos seus outros heterónimos, Fernando Pessoa não o fez
com Ricardo Reis. Esta peculiaridade terá inspirado José Saramago a escrever O ano da
morte de Ricardo Reis, em que se aventurou a terminar a história de Ricardo Reis, o
protagonista do romance, situando a sua morte no ano de 1936.

Sê Rei de Ti Próprio
Não tenhas nada nas mãos
Nem uma memória na alma,
Que quando te puserem
Nas mãos o óbolo último,
Ao abrirem-te as mãos
Nada te cairá.
Que trono te querem dar
Que Átropos to não tire?
Que louros que não fanem
Nos arbítrios de Minos?
Que horas que te não tornem
Da estatura da sombra
Que serás quando fores
Na noite e ao fim da estrada.
Colhe as flores mas larga-as,
Das mãos mal as olhaste.
Senta-te ao sol. Abdica
E sê rei de ti próprio.
O espírito clássico greco-latino de Ricardo Reis definiu o tom da sua obra, sendo nela
predominantes temas como as boas formas de viver, o prazer, a serenidade e o equilíbrio.

Influenciado pelo epicurismo, sistema filosófico definido pelo filósofo Epicuro, que prega
a procura dos prazeres moderados para atingir um estado de tranquilidade e de libertação
do medo, Ricardo Reis defendia o preceito grego do “carpe diem” (viver o “aqui e
agora”). Além do epicurismo, o escritor foi influenciado também pelo estoicismo, escola
de filosofia helenística que rejeitava as emoções e os sentimentos exacerbados.
ÁLVARO DE CAMPOS

Não bastasse serem dotados de estilo próprio, os heterónimos de Pessoa ganharam do seu
criador biografias recheadas de acontecimentos que quase nos fazem acreditar que eles
de facto existiram fora do escritor. Álvaro de Campos está entre os principais excessos
do poeta; isto porque os versos a ele atribuídos ocorriam em momentos em que Pessoa
sentia um incontrolável impulso para escrever, daí a urgência e os versos tidos como
febris.
“(...) Como escrevo em nome desses três?...
Caeiro por pura e inesperada inspiração,
sem saber ou sequer calcular que iria
escrever. Ricardo Reis, depois de uma
deliberação abstracta, que subitamente
se concretiza numa ode. Campos, quando
sinto um súbito impulso para escrever e
não sei o quê.

(Fernando Pessoa – Carta a Adolfo Casais


Monteiro, 13 de janeiro de 1935)
Álvaro de Campos é um dos heterónimos de Fernando Pessoa tido pelo próprio Pessoa
como o seu alter ego. A obra poética de Álvaro de Campos pode ser analisada de acordo
com três fases diferentes.
Primeira fase – Decadentista

O decadentismo tem como principal característica a visão pessimista do mundo. Durante


esta fase, os poemas de Álvaro de Campos evidenciaram um certo tédio e uma
necessidade pungente de novas sensações. Essa necessidade de fuga à monotonia foi
marcada por símbolos e imagens, características que aproximaram os poemas de Álvaro
de Campos ao Romantismo e ao Simbolismo.

“(...) Esta vida de bordo há-de matar-me.


São dias só de febre na cabeça
E, por mais que procure até que adoeça,
já não encontro a mola pra adaptar-me.

Em paradoxo e incompetência astral


Eu vivo a vincos de ouro a minha vida,
Onda onde o pundonor é uma descida
E os próprios gozos gânglios do meu mal (...)”.

Excerto do poema “Opiário”

Segunda fase – Futurista/Sensacionista

Durante esta fase, os poemas de Álvaro de Campos foram influenciados pelo futurismo,
estética também encontrada na obra dos escritores Walt Whitman e Marinetti
(responsável pelo Manifesto Futurista).

É possível perceber o fascínio pelas máquinas e pelo progresso nos poemas futuristas de
Campos, fase que pode ser ilustrada a partir da leitura dos poemas Ode Triunfal e Ode
Marítima.

“À dolorosa luz das grandes lâmpadas


elétricas da fábrica
Tenho febre e escrevo.
Escrevo rangendo os dentes, fera para a
beleza disto,
Para a beleza disto totalmente
desconhecida dos antigos.

Ó rodas, ó engrenagens, r-r-r-r-r-r-r


eterno!
Forte espasmo retido dos maquinismos
em fúria!
Em fúria fora e dentro de mim,
Por todos os meus nervos dissecados
fora,
Por todas as papilas fora de tudo com
que eu sinto!
Tenho os lábios secos, ó grandes ruídos
modernos,
De vos ouvir demasiadamente de perto,
E arde-me a cabeça de vos querer cantar
com um excesso
De expressão de todas as minhas
sensações,
Com um excesso contemporâneo de vós,
ó máquinas!(...)”

Excerto do poema “Ode Triunfal”


Terceira fase – Intimista/Pessimista

Nesta fase encontramos um poeta ensimesmado, angustiado e incompreendido. Como


temas recorrentes, destacam-se a solidão interior, a nostalgia da infância, a frustração e a
incapacidade de amar. O poema Tabacaria, um dos mais importantes e representativos da
poética de Álvaro de Campos, ilustra bem esta etapa:

“Não sou nada.


Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

Janelas do meu quarto,


Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a pôr humidade nas paredes e cabelos brancos nos
homens,
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.(...)”.

Excerto do poema “Tabacaria”


BERNARDO SOARES

Considerado um semi-heterónimo, pois, “não sendo a personalidade a minha [de Pessoa],


é, não diferente da minha, mas uma simples mutilação dela”.|1| , Pessoa também afirmou
ter conhecido a sua criatura num restaurante.

Segundo Pessoa, “quando calhava jantar pelas sete horas, quase sempre encontrava um
indivíduo cujo aspeto, não me interessando a princípio, pouco a pouco passou a interessar-
me”. Ele referia-se a Bernardo Soares como “um homem que aparentava trinta anos,
magro, mais alto que baixo, curvado exageradamente quando sentado, mas menos quando
de pé”.

O escritor Bernardo Soares, órfão de mãe quando tinha um ano de idade, era solitário e
vestia-se com certo “desleixo não inteiramente desleixado”. No rosto pálido, havia um ar
de sofrimento. De acordo com Pessoa, esse “ar de sofrimento” parecia indicar
“privações, angústias, e aquele sofrimento que nasce da indiferença que provém de ter
sofrido muito”.|2|

Aparentava ser um homem inteligente e trabalhava num comércio de tecidos em Lisboa,


onde era ajudante de guarda-livros. Morava com simplicidade num quarto
alugado e escrevia durante a noite. Soares comia pouco e fumava tabaco de onça. Era
observador, tinha um interesse especial pelas pessoas. Ele também tinha uma voz “baça
e trêmula”, sem nenhuma esperança.
O Livro do desassossego é uma obra composta de fragmentos que revelam as reflexões
de Bernardo Soares. É uma espécie de diário fragmentado, mas sem a indicação de
datas. É, portanto, prosa. Às vezes, prosa poética. Apresenta também um aspeto caótico,
condizente com o fluxo de pensamento humano.

Assim, Soares fala da sua solidão, mas também da sua pertença:

Escrevo, triste, no meu quarto quieto, sozinho como sempre tenho sido,
sozinho como sempre serei. E penso se a minha voz, aparentemente tão
pouca coisa, não encarna a substância de milhares de vozes, a fome de
dizerem-se de milhares de vidas, a paciência de milhões de almas submissas
como a minha ao destino quotidiano, ao sonho inútil, à esperança sem
vestígios. Nestes momentos o meu coração pulsa mais alto pela minha
consciência dele. Vivo mais porque vivo maior.

Ele reflete sobre a sensação de ser menos do que humano ou ser tão pouco sendo humano:

Era a ocasião de estar alegre. Mas pesava-me qualquer coisa, uma ânsia
desconhecida, um desejo sem definição, nem até reles. Tardava-me, talvez, a
sensação de estar vivo. E quando me debrucei da janela altíssima, sobre a rua
para onde olhei sem vê-la, senti-me de repente um daqueles trapos húmidos
de limpar coisas sujas, que se levam para a janela para secar, mas se
esquecem, enrodilhados, no parapeito que mancham lentamente.

A sua solidão é mencionada várias vezes na obra, como neste trecho:

O isolamento talhou-me à sua imagem e semelhança. A presença de outra


pessoa — de uma só pessoa que seja — atrasa-me imediatamente o
pensamento, e, ao passo que no homem normal o contato com outrem é um
estímulo para a expressão e para o dito, em mim esse contato é um
contraestímulo.

Apesar disso, ele revela o seu interesse pelo outro, o seu desejo de ser outra pessoa:

Quantas vezes me punge o não ser o manobrante daquele carro, o cocheiro


daquele trem! Qualquer banal Outro suposto cuja vida, por não ser minha,
deliciosamente se me penetra de eu querê-la e se me penetra até de alheia!

Essa solidão acaba por se tornar em independência:

Não me submeto ao estado nem aos homens; resisto inertemente. O estado


só me pode querer para uma ação qualquer. Não agindo eu, ele nada de mim
consegue. Hoje já não se mata, e ele apenas me pode incomodar; se isso
acontecer, terei que blindar mais o meu espírito e viver mais longe adentro
dos meus sonhos. Mas isso não aconteceu nunca. Nunca me apoquentou o
estado. Creio que a sorte soube providenciar.

A saudade é um tema recorrente no diário do ajudante de guarda-livros. Saudade do


patrão Vasques, da mãe, “do outro que eu poderia ter sido”, “de não ser filho”, “dos
tanques das quintas alheias”, “do futuro”, “do que nunca houve”, “da infância de que não
tenho saudades”, “do exílio impossível”, “do normal que nunca fui” e, por fim:
Saudades! Tenho-as até do que me não foi nada, por uma angústia de fuga
do tempo e uma doença do mistério da vida. Caras que via habitualmente nas
minhas ruas habituais — se deixo de vê-las entristeço; e não me foram nada,
a não ser o símbolo de toda a vida.|3|

Frases de Bernardo Soares retiradas do Livro do desassossego:

● “O coração, se pudesse pensar, pararia.”

● “Considero a vida uma estalagem onde tenho que me demorar até que chegue
a diligência do abismo.”

● “Tudo me interessa e nada me prende.”

● “Se escrevo o que sinto é porque assim diminuo a febre de sentir.”

● “Uns governam o mundo, outros são o mundo.”

● “Há em olhos humanos, uma coisa terrível: o aviso inevitável da consciência,


o grito clandestino de haver alma.”

● “A humanidade tem medo da morte, mas incertamente.”

Notas

|1| PESSOA, Fernando. Escritos íntimos, cartas e páginas autobiográficas. Introdução, organização
e notas de António Quadros. Lisboa: Publicações Europa-América, 1986.

|2| PESSOA, Fernando. Livro do desassossego por Bernardo Soares. Lisboa: Ática, 1982.

|3| PESSOA, Fernando. Livro do desassossego: composto por Bernardo Soares, ajudante de
guarda-livros na cidade de Lisboa. Richard Zenith (Org.). 3. ed. São Paulo: Companhia das Letras,
2011.

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