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OPIÁRIO
É antes do ópio que a minh'alma é doente. (…)
Sentir a vida convalesce e estiola
E eu vou buscar ao ópio que consola Eu acho que não vale a pena ter
Um Oriente ao oriente do Oriente. Ido ao Oriente e visto a índia e a China.
A terra é semelhante e pequenina
Esta vida de bordo há-de matar-me. E há só uma maneira de viver. 3
São dias só de febre na cabeça
E, por mais que procure até que adoeça, Por isso eu tomo ópio. É um remédio
já não encontro a mola pra adaptar-me. Sou um convalescente do Momento.
Moro no rés-do-chão do pensamento
(…) E ver passar a Vida faz-me tédio.
Ando expiando um crime numa mala,
Que um avô meu cometeu por requinte. Fumo. Canso. Ah uma terra aonde, enfim,
Tenho os nervos na forca, vinte a vinte, Muito a leste não fosse o oeste já!
E caí no ópio como numa vala. Pra que fui visitar a Índia que há
Se não há Índia senão a alma em mim?
Ao toque adormecido da morfina
Perco-me em transparências latejantes (…)
E numa noite cheia de brilhantes, Volto à Europa descontente, e em sortes
Ergue-se a lua como a minha Sina. De vir a ser um poeta sonambólico.
Eu sou monárquico mas não católico
E gostava de ser as coisas fortes.
Perdi os dias que já aproveitara
. Trabalhei para ter só o cansaço Gostava de ter crenças e dinheiro,
Que é hoje em mim uma espécie de braço Ser vária gente insípida que vi.
Que ao meu pescoço me sufoca e ampara. Hoje, afinal, não sou senão, aqui,
Num navio qualquer um passageiro.
E fui criança como toda a gente.
Nasci numa província portuguesa (…)
E tenho conhecido gente inglesa E afinal o que quero é fé, é calma,
Que diz que eu sei inglês perfeitamente. E não ter estas sensações confusas.
Deus que acabe com isto! Abra as eclusas —
E basta de comédias na minh'alma!
Álvaro de Campos, Março de 1914, no Canal de Suez a bordo de um navio ( Orfeu, nº1, 1915)
PROPOSTA DE LEITURA:
No poema Opiário, Álvaro de Campos (heterónimo de Fernando Pessoa)
escreve quadras, estrofes de quatro versos, de teor
autobiográfico, apresentando-se amargurado e
insatisfeito.
Este é o único poema da primeira fase de
Campos, a fase da morbidez e do torpor
(Decadentismo). Exprime o tédio, o enfado, o
cansaço, a naúsea, o abatimento e a necessidade
de novas sensações. Traduz a falta de um sentido
para a vida e a necessidade de fuga à monotonia. É
marcado pelo romantismo e simbolismo
(rebuscamento, preciosismo, símbolos e imagens).
LINHAS DE LEITURA:
Tema;
Espaço/cenário;
Humanização das máquinas;
Exaltação de uma estética não aristotélica (apologia da força e
não do Belo)
Sacrifício Sado-masoquista do sujeito poético;
Erotização perversa e provocatória no desejo de fusão com as
máquinas;
Tentativa de unificação de todos os tempos
(passado/presente/futuro)
Marcas de futurismo;
Marcas do Sensacionismo;
Análise semântica
Excesso de sensações
Global:
- “Como eu vos amo de todas as maneiras,/Com os olhos e com os ouvidos e com
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o olfacto/E com o tacto (o que apalpar-vos representa para mim!)/E com a
inteligência como uma antena que fazeis vibrar!/Ah!, como todos os meus
sentidos têm cio de vós!” (vv.87-91)
Paixão
Erotismo e Sadomasoquismo
- “Possuo-vos como a uma mulher bela” (v.116)
Desvios sintácticos:
Acentuam a ideia de espontaneidade do discurso emotivo do sujeito poético.
“fera para a beleza de tudo isto”; “todos os nervos dissecados fora” (v.8)
O SENSACIONISMO
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“A Arte, na sua definição plena, é a expressão harmónica da nossa consciência
das sensações, ou seja, as nossas sensações devem ser expressas de tal modo
que “criam um objecto que seja sensação para os outros”.
“ O Sensacionismo prende-se à atitude energética, vibrante, cheia de
admiração pela Vida, pela Matéria e pela Força”. Fernando Pessoa
Quanto mais eu sinta, quanto mais eu sinta como várias pessoas, (…)
Quanto mais unificadamente diverso, dispersamente atento
Estiver, sentir, viver, for.
Mais possuirei a existência total do Universo,
Mais completo serei pelo Universo fora.”
…mas, tal como Walt Whitman, outro dos seus mestres, acrescenta-lhe
o sentir tudo em excesso, fora da “justa medida” que era defendida
pelos clássicos e pelo “mestre” Caeiro. Ele é “o filho indisciplinado da
sensação”. Nisto se mostra o precursor de todas as vanguardas do
século XX, introduzindo em Portugal o FUTURISMO…
FUTURISMO
O Futurismo foi um dos movimentos de vanguarda do século XX. Iniciou-se em
Paris, sob a égide do escritor italiano Marinetti, com a publicação do seu «1º
Manifesto do Futurismo» datado de 1909. ~
Do ponto de vista geral defendem a destruição do passado, em favor de arte
arremessada para o futuro; a apologia da velocidade, do patriotismo nacionalista,
do automóvel (“Um automóvel de corrida é mais belo do que a Vitória de
Samotrácia”), da modernidade das fébricas, dos aviões, dos caminhos de ferro.
- dissolução do “eu”
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- a dor de pensar
- conflito entre a realidade e o poeta
- cansaço, tédio, abulia
- angústia existencial
- solidão
- nostalgia da infância irremediavelmente
perdida (“Raiva de não ter trazido o passado
roubado na algibeira!”, Aniversário)
Aniversário
Ver questionário na página
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos, 61 do Manual
Eu era feliz e ninguém estava morto.
Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,
E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer.
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,
De ser inteligente para entre a família,
E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.
Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças.
Quando vim a olhar para a vida, perdera o sentido da vida.
Sim, o que fui de suposto a mim-mesmo,
O que fui de coração e parentesco.
O que fui de serões de meia-província,
O que fui de amarem-me e eu ser menino,
O que fui — ai, meu Deus!, o que só hoje sei que fui...
A que distância!...
(Nem o acho... )
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!
O que eu sou hoje é como a humidade no corredor do fim da casa,
Pondo grelado nas paredes...
O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das
minhas lágrimas),
O que eu sou hoje é terem vendido a casa,
É terem morrido todos,
É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio...
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos ...
Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo!
Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez,
Por uma viagem metafísica e carnal,
Com uma dualidade de eu para mim... 17
Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes!
Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que há aqui...
A mesa posta com mais lugares, com melhores desenhos na loiça, com
mais copos,
O aparador com muitas coisas — doces, frutas, o resto na sombra debaixo
do alçado,
As tias velhas, os primos diferentes, e tudo era por minha causa,
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos. . .
Pára, meu coração!
Não penses! Deixa o pensar na cabeça!
Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus!
Hoje já não faço anos.
Duro.
Somam-se-me dias.
Serei velho quando o for.
Mais nada.
Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira! ...
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!...
No poema Aniversário, Álvaro de Campos
contrapõe o tempo da infância ao tempo
presente. A época da infância é marcada pela
inocência, pois a criança não tem noção do
que se passa à sua volta: “Eu tinha a grande
saúde de não perceber coisa nenhuma”. A
passagem de criança para adulto é marcada
por uma perda, pois se percebe que a vida não
tem sentido. O poeta hoje “é terem vendido a
casa”, ou seja, é um vazio, que perdeu a
sensação de totalidade, de alegria, de
aconchego dada pela vida em família na
infância distante. Assim, a festa de
aniversário toma o aspecto simbólico de um
ritual familiar, dentro do qual a criança
Álvaro de Campos propõe mostrar todos os seus sentidos ao mundo e à vida, procurando
se torna o centro de um mundo que a
utilizar uma linguagem poética capaz de exprimir a sua intensa vontade sensacionista. Este
acolhe e protege carinhosamente. No
poeta das sensações, tumultuoso e impulsivo, acreditava que a arte era um indício da força ou
presente, não há mais aniversários nem
energia que se manifesta na vida. Pelo que os poemas que escreveu serem poemas fortes,
comemorações: resta ao poeta durar,
vigorosos, energeticamente construídos em versos livres, soltos como a flutuação emocional
porque o pensamento o impede de ter a
do poeta. Campos submete tudo à sua sensibilidade, fazendo converter tudo em sensações
inocência de outrora.
que forcem os outros, queiram eles ou não, a sentir o que ele sentiu, que os domine pela força
do inexplicável.
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