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Teus Olhos
Teus olhos são a pátria do relâmpago e da lágrima,
silêncio que fala,
tempestades sem vento, mar sem ondas,
pássaros presos, douradas feras adormecidas,
topázios ímpios como a verdade,
Outono numa clareira de bosque onde a luz canta no ombro
duma árvore e são pássaros todas as folhas,
praia que a manhã encontra constelada de olhos,
cesta de frutos de fogo,
mentira que alimenta,
espelhos deste mundo, portas do além,
pulsação tranquila do mar ao meio-dia,
universo que estremece,
paisagem solitária.
Octavio Paz, in Liberdade sob Palavra
Fernando Pessoa
Olhos
Olhos:
brilhantes da chuva que caiu
quando Deus me mandou beber.
George Underwood, Left Eye
Olhos:
ouro, que a noite me contou nas mãos,
quando colhi urtigas
e fiz arrepender as sombras dos Provérbios.
Olhos:
noite, que sobre mim resplandeceu, quando escancarei o portão
e atravessado pelo gelo invernoso das minhas fontes
Rafal Olbinski
saltei pelos lugares da eternidade.
Paul Celan, in Papoila e Memória
2009-2010
2009-2010
O músico procura
Fixar em cada verso
O cântico disperso
Na luz, na água e no vento.
Rafal Olbinski
Fui-o outrora agora.
Rafal Olbinski
2009-2010
Uma Gargalhada de Raparigas
DIÁLOGOS E ANALECTOS
Uma gargalhada de raparigas soa do ar da estrada.
Riu do que disse quem não vejo.
Lembro-me já que ouvi. Antelóquio
Mas se me falarem agora de uma gargalhada de rapariga da estrada,
Direi: não, os montes, as terras ao sol, o Sol, a casa aqui, Aprendiz – Como posso ouvir-te? Como posso entender-te?
E eu que só oiço o ruído calado do sangue que há na minha vida dos dois Como soa a tua voz quando me falas?
lados da cabeça. Jacek Yerka
Alberto Caeiro (heterónimo de Fernando Pessoa),
in Poemas Inconjuntos Silêncio – Soa tal como a tua quando me pronuncias.
E, se me pronuncias, como podes tu não me escutar?
Não há música ou palavra que não me contenha;
O Suporte da Música
Desenho contornos, preencho vazios
Dou tempo ao tempo para que o sentido flua.
o suporte da música pode ser a relação
entre um homem e uma mulher, a pauta
Aprendiz – Talvez seja por isso que o mundo me parece cheio de música
dos seus gestos tocando-se, ou dos seus
Sobretudo quando o encontro dentro de um livro
olhares encontrando-se, ou das suas
Ou penso estar a criá-lo quando escrevo.
Talvez seja por isso que as palavras parecem brotar
vogais adivinhando-se abertas e recíprocas,
De todas as coisas que existem ou penso.
ou dos seus obscuros sinais de entendimento,
Ora cantam, ora voam, ora se calam…
crescendo como trepadeiras entre eles.
E, no entanto, continuo sempre a ouvi-las…
o suporte da música pode ser uma apetência
Será apenas a ti que ouço?
dos seus ouvidos e do olfacto, de tudo o que se
Palavra – O que farás agora comigo?
ramifica entre os timbres, os perfumes,
Não te menosprezes.
mas é também um ritmo interior, uma parcela
O que seria o mundo sem os aprendizes?
do cosmos, e eles sabem-no, perpassando Rafal Olbinski Escuta todos os silêncios.
É na minúscula centelha do teu ser que eu sou eterna.
por uns frágeis momentos, concentrado
O que serias tu sem a minha eternidade
num ponto minúsculo, intensamente luminoso,
Para interrogar e criar permanentemente?
que a música, desvendando-se, desdobra,
entre conhecimento e cúmplice harmonia.
Silêncio – Por que insistes em chamar-me silêncio,
Se não paras de me escutar, de me falar, de me dizer.
Vasco Graça Moura, in Antologia dos Sessenta Anos
Bem sabes que não sou mais do que as palavras que nascem de ti.
2009-2010
Os nossos sentidos
Já tos vou distinguir
Com palavras excelentes,
- Escuta, amor, se queres ouvir.
O primeiro era ver
Tua boquinha a falar.
Que linda cara para beijos,
Se os quisesses aceitar.
Segundo era ouvir,
Gosto de ouvir novas tuas,
Trago-te no pensamento
Muito mais do que tu cuidas.
Terceiro era cheirar,
Tu cheiras mesmo a rosa
Oh que lindos olhos tens!
Oh que cara tão formosa!
O quarto era gostar,
Que gostos posso eu ter,
Ausente do teu amor
Mais me valia morrer.
Charles West Cope, 1811-1890, The Thorn, 1866
O quinto apertar
As tuas mãos com as minhas. AFORISMOS
Havemos de ir à igreja «A rosa tem espinhos que o olfacto ignora.»
Trocar nossas palavrinhas. Rui de Morais, in Do Riso das Insónias, 2007
Robert Mapplethorpe
«Aquilo a que a terminologia «De todos os sentidos, a vista é o mais
romântica chama génio ou superficial, o ouvido o mais orgulhoso, o olfacto
inspiração não é mais do que o mais voluptuoso, o gosto o mais supersticioso
2009-2010
2009-2010
Brandamente escrevem dos espasmos do sol.
Envelhecem do pulso ao cérebro, ao calor baço
de um revérbero no eixo dos ventos, usura
das máscaras que, sucessivamente, as transformam
de consciência em cal ou metal obscuro.
E já não é por si que a presença existe ou
subsiste o que separa. Destroem as sementes,
apodrecem como um sopro e não são remanso
na areia ou domadoras de chamas. Igualam-se
à água, para serem raiz do que se cala
e insinuam-se, para sempre, no pó da noite.
Um castelo de pele tomba. Deixam de ser
nomeadas ou nome. Escrevem, brandamente,
do termo da música o luto do silêncio.
Orlando Neves, in Decomposição - o Corpo
Rafal Olbinski
2009-2010
Robert Mapplethorpe
CACIDA DA MÃO IMPOSSÍVEL
2009-2010
Não quero mais que uma mão,
mão ferida, se possível.
Não quero mais que uma mão,
inda que passe noites mil sem cama.
Seria um lírio pálido de cal,
uma pomba atada ao meu coração,
o guarda que na noite do meu trânsito
de todo vetaria o acesso à lua.
Não quero mais que essa mão
para os diários óleos e a mortalha de minha agonia.
Não quero mais que essa mão
para de minha morte ter uma asa.
Tudo mais passa.
Rubor sem nome mais, astro perpétuo.
O demais é o outro; vento triste
enquanto as folhas fogem debandadas.
Federico García Lorca, in Divã do Tamarit
As Tuas Mãos Terminam em Segredo Tradução de Óscar Mendes
2009-2010
Um dia, num restaurante, fora do espaço e do tempo,
Serviram-me o amor como dobrada fria.
Disse delicadamente ao missionário da cozinha
Que a preferia quente,
Que a dobrada (e era à moda do Porto) nunca se come fria.
Impacientaram-se comigo.
Nunca se pode ter razão, nem num restaurante.
Não comi, não pedi outra coisa, paguei a conta,
E vim passear para toda a rua.
2009-2010
Os nossos sentidos
Já tos vou distinguir
Com palavras excelentes,
- Escuta, amor, se queres ouvir.
O primeiro era ver
Tua boquinha a falar.
Que linda cara para beijos,
Se os quisesses aceitar.
Segundo era ouvir,
Gosto de ouvir novas tuas,
Trago-te no pensamento
Muito mais do que tu cuidas.
Terceiro era cheirar,
Tu cheiras mesmo a rosa
Oh que lindos olhos tens!
Oh que cara tão formosa!
O quarto era gostar,
Que gostos posso eu ter,
Ausente do teu amor
Mais me valia morrer.
Charles West Cope, 1811-1890, The Thorn, 1866
O quinto apertar
As tuas mãos com as minhas. AFORISMOS