Você está na página 1de 16

Tempo Cura

__________________________________________________________________________________________________________

Renato Barrete
Epígrafe

Fonte da imagem: https://www.instagram.com/bienalsaopaulo/


Restam cinco folhas

Imagem: “Restam Cinco Folhas”, Renato Barrete, colagem analógica, 2022. Apresentada na primeira
aula, onde surgiu meu tempo.

“Então eu vou deixar aquilo que está me fazendo ser


O que eu realmente não quero ser
Deixar aquilo que está me fazendo amar
O que eu realmente não quero amar”
(Nick Drake – Time Has Told Me)

F ive Leaves Left (Restam Cinco Folhas), também nome do primeiro álbum do

cantor britânico Nick Drake, que fez a partida precocemente aos 26 anos, refere-se, nessa
composição visual (colagem analógica de folhas contendo o aviso que faltam 5 folhas
para acabarem meu papel para cigarro), sobre o vício em fumar que adquiri por volta dos
16 anos. Na época, ouvindo álbuns de Drake e alguns outros, também muito intimistas,
me era possível refletir poeticamente sobre assuntos que me tocavam e me contaminavam
como algo que jorrava das minhas mãos sem que sentisse qualquer controle. Na mesma
época cultivava o ato de colecionismo, carteiras de cigarro vazias de diferentes marcas,
objetos quebrados sem a menor importância, cadernos usados sem mais folhas em
brancos... Nessa composição utilizo da técnica de colagem em série para pensar atitudes
e comportamentos passados de geração para geração, como o ato de fumar
copiado/herdado de meu pai, que repetimos conscientes ou não, e pensar para além da
repetição na possibilidade de quebra de padrões.
Sobre a despedida

Quanto mais faço arrancado de um rio,


mais sinto que estou a morrer. que alguém prepara
Não existem essas coisas de renascer. pra comer no domingo.
Ser um novo dia
Você nunca disse que
um novo amanhecer.
me perdoava,
Eu sou uma pessoa real,
Você nunca apareceu
carisma é minha máscara diária.
na minha janela,
Às vezes sorrio,
Você nunca mais chorou
quase todo o mundo
pedindo pra ir embora.
sorri de volta.
Era meu sonho,
Solidão não é mais
foi meu delírio,
minha companhia.
que me fez levantar
Fiquei sozinho.
que te disse até logo.
Sou o signo da tua
Você toda de branco
ausência.
na sua carruagem
O seu silêncio me fascina,
guiada por criaturas
me ilumina.
celestiais.
Estou abafado
Fico aqui
por sete palmos.
esperando as horas
O seu rosto, invisível,
para te reencontrar,
na hora de partir.
nada que me permita
Disse obrigado, te amo,
dizer adeus
não me deixe
acharei aceitável.
mas era muito tarde.
A faca que sangrou
Rolei e arranquei
por último
todos os males de dentro
feriu primeiro
como um peixe
machucou aos poucos
fresco,
e matou instantaneamente.

Imagem: “Sobre a despedida”, poesia visual,


2022.
“A metáfora é uma falsa imagem já que não tem a virtude direta de uma imagem
produtora de expressão, formada no devaneio falado.”
(Gaston Bachelard – A poética do espaço)

Q uando, em 2020, o mundo enfrentava a pandemia de COVID-19, minha avó,

minha mãe, aquela que me criou e me deu a vida de presente todos os dias de minha
existência, Abadia Maria Marcelino, fez também sua passagem em decorrência da doença
que assola ainda pessoas no mundo todo. Nesse poema, sem título, relato após acordar de
um sonho onde a acompanhava de braços dados, a mesma forma que caminhávamos para
todos os lados no bairro de Campinas, até uma carruagem puxada por ‘criaturas celestiais’
com ela vestida toda de branco. Ainda hoje me é estranha a sensação de sua partida, me
é estranha chama-la de morte, sendo que a vi pela última vez em vida. Desde criança,
quando caminhávamos de braços dados, ela me apresentava como “meu companherinho,
meu anjo da guarda”. Apaixonada por fotografias, colecionava de todos os tipos (foto
pintura, monóculos, negativos, impressas), me passou essa paixão desde cedo, dizia “[...]
o tempo é uma pintura que vem vai.”, ou “fotografia é tão bom, um dia a pessoa não tá
mais lá e só sobra isso”. A foto que acompanha esse poema, uma fotografia de bolso que
se consegue ver o relevo da tinta, lembra uma xilogravura, e está guardada na minha
carteira desde sua passagem. Ela se foi, de nossa casa/bairro me mudei, de lembrança
carreguei apenas as nossas fotografias. Da despedida apenas a imagem mental de um
sonho que poetizei. Ela eu não perdi, dela eu ganhei, ensinamentos que não podem ser
contados em palavras. Contudo todos perdemos com ela e quase 700 mil outras... Do meu
luto pessoal não preciso me curar, do luto coletivo precisamos todos, é um sentimento
compartilhado que retiro da minha gaveta sempre que possível.
Caderno de poemas

Imagem: Fotografia digital do meu caderno de poemas, imagem produzida em sala com elementos
disponíveis.

Poema sem título

No meu quarto

a lâmpada é o sol

do meu planeta.

Na prateleira de livros

cultura e sociedade

morrem e são tendência.

Nos discos
contradição e violência suicidam

na overdose das estrelas do rock.

As roupas no meu guarda-roupas

abatidas apesar de novas aquisições

do shopping decadência center.

E os sapatos debaixo da cama

sujos da terra que gravitamos

evitando cuidado e respeito.

Eles não me levam a lugar nenhum.

Eles não assumem o caos criado.

Eles não assinam o manifesto.

Há uma pílula na primeira gaveta

na mesa de cabeceira ao lado da cama

feita na forma cética.

O colchão é um útero que te gesta

em posição fetal e efeitos calmantes

quando você anseia sair do quarto.

(21/01/2017).
P oema escrito em 2017, quando a imaginação poética era ainda nutrida pelo

ninho de minha avó, que coincidentemente dialogou com a aula onde discutimos a poética
do espaço de Gaston Bachelard. Recorri ao meu caderno pois lembrava que alguns
escritos refletiam sobre a casa, os móveis e o quarto que tanto me confinava. Lendo esses
textos encontrei conforto e uma pitada de cura, e ao abrir a gaveta, os cofres e os armários,
abri também minha intimidade para meus colegas de curso. A imagem do caderno aberto
dialoga com a ideia de abertura e compartilhamento da intimidade.
700 mil além da sua...

Imagem: poesia visual 1, papel manteiga sobreposto sobre o signo “Tempo Cura”.
Tempo Cura

Imagem: poesia visual 2, papel manteiga sobreposto sobre o signo “Tempo Cura”.
Poesia visual 1

700 mim além da sua

e ainda contado.

Não há cura

onde há um mercado.

Não há cura

sem uma fenda na escuridão.

Poesia visual 2

Tempo de cura

num país doente.

Sarar as feridas

estancar os sangramentos,

derramamento de dores.

Deixar coagular as moléculas

para nascer uma nova pele,

mais grossa.

Com marcas eternas

das dores que não são devidas

ao esquecimento.
“Cada um no seu castelo, cada um na sua função
Tudo junto, cada qual na sua solidão”
(Racionais MC’s – Da ponte pra cá)

O s dois poemas anteriores surgiram a partir de provocações, diálogos,

proposições e reflexões realizadas em sala, onde os tempos pessoais dos colegas


conversavam com a necessidade do meu tempo. Acompanhar os processos dos colegas,
construir com a ajuda um do outro no Laboratório de Produção Artística, me fez pensar
sobre como o individual pode ser coletivo e o coletivo deve ser pessoal, quando me dei
conta que minha cura não fora evocada pelas minhas próprias lutas e doenças, apesar de
possuí-las, mas por mazelas sociais que se arrastam em 500 anos de histórias não
contadas, de histórias apagadas e de histórias ditas oficiais que não dão conta de narrar o
que já existia antes do marco do “descobrimento”. Tempo-ancestral, tempo-cíclico,
tempo-mudança, tempo-prisão, tempo-imutável, tempo-amadurecimento, tempo-
esquecimento-resistência, tempo-diversão, tempo-outro, tempo-processo, tempo-agora...
tempos que surgem da necessidade de resgate de tempos perdidos, mais também da
possibilidade de projetar tempos possíveis. De várias maneiras estamos conectados com
todos esses tempos, de várias maneiras dialogamos com esses tempos, de minha parte
posso dizer com segurança, precisamos todos procurar a cura, para o passado, para o
presente e para o futuro.
Em cura

Imagem: “Em cura”, fotografia digital, 2022, gerada a partir do uso de retroprojetor em escada da FAV,
indica o local onde foi realizada intervenção dialogando sobre o tempo-cura
“Uma boa obra de arte sempre pretende mais do que sua mera presença no espaço: ela
se abre ao diálogo, à discussão, a essa forma de negociação inter-humana que Marcel
Duchamp chamava de "o coeficiente de arte" - e que é um processo temporal, que se dá
aqui e agora.”
(Nicolas Bourriaud – Estética Relacional)
“O sentido é o expresso.”
(Giles Deleuze – A lógica dos sentidos)

O local escolhido para receber intervenções sobre o tempo cura foi a

escadaria da FAV, lugar onde muitos passam apressadamente para chegar ao piso
superior, lugar onde o subir e descer constituem atividade mecânica e que não possui
pretensão a não ser a de chegar em cima ou embaixo. Seria esse um lugar possível para
trocas e câmbios? Ou passível de desobstruir caminhos? O próprio ato de caminhar degrau
por degrau pressupõe o processo envolvido para alcançar diferentes curas, passo a passo
você sobe, você desce, você avança, você regride. A possibilidade de cura que quero
propor deve ser interativa, convivial e relacional, como nos indica Bourriaud. Um
dispositivo utilizado para o bem comum, colocado num lugar de trânsito desconecto para
tentar conectar experiências. O próximo desdobramento dessa reflexão sobre meu tempo
pessoal, subjetivo por excelência, é tornar-se coletivo através da (rel)ação poética, do
estranhamento, da quebra da rotina. Quais proposições permitiram alcançar tais
expectativas ainda desenham-se a partir das minhas próprias subjetivações e
contaminações com processos e tempos compartilhados no nosso Laboratório de
Produção Artística 2. A proposição de uma reflexão poética por meio da construção de
imagens técnicas com uso de aparelhos obsoletos que foram resgatados de depósitos da
universidade foi o acontecimento, expresso por meio de possibilidades da própria
construção, com variadas e distintas relações. Tais relações constituem-se tanto a partir
do próprio acontecimento em si, quanto do compartilhamento dos seus registros.
Referências
BACHELARD, Gaston. A Poética do Espaço. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
BOURRIAUD, Nicolas. Estética relacional. São Paulo: Martins Fontes, 2009.
DELEUZE, Gilles. Lógica do sentido. São Paulo: Perspectiva, 2011.

Você também pode gostar