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Renato Barrete
Epígrafe
Imagem: “Restam Cinco Folhas”, Renato Barrete, colagem analógica, 2022. Apresentada na primeira
aula, onde surgiu meu tempo.
F ive Leaves Left (Restam Cinco Folhas), também nome do primeiro álbum do
cantor britânico Nick Drake, que fez a partida precocemente aos 26 anos, refere-se, nessa
composição visual (colagem analógica de folhas contendo o aviso que faltam 5 folhas
para acabarem meu papel para cigarro), sobre o vício em fumar que adquiri por volta dos
16 anos. Na época, ouvindo álbuns de Drake e alguns outros, também muito intimistas,
me era possível refletir poeticamente sobre assuntos que me tocavam e me contaminavam
como algo que jorrava das minhas mãos sem que sentisse qualquer controle. Na mesma
época cultivava o ato de colecionismo, carteiras de cigarro vazias de diferentes marcas,
objetos quebrados sem a menor importância, cadernos usados sem mais folhas em
brancos... Nessa composição utilizo da técnica de colagem em série para pensar atitudes
e comportamentos passados de geração para geração, como o ato de fumar
copiado/herdado de meu pai, que repetimos conscientes ou não, e pensar para além da
repetição na possibilidade de quebra de padrões.
Sobre a despedida
minha mãe, aquela que me criou e me deu a vida de presente todos os dias de minha
existência, Abadia Maria Marcelino, fez também sua passagem em decorrência da doença
que assola ainda pessoas no mundo todo. Nesse poema, sem título, relato após acordar de
um sonho onde a acompanhava de braços dados, a mesma forma que caminhávamos para
todos os lados no bairro de Campinas, até uma carruagem puxada por ‘criaturas celestiais’
com ela vestida toda de branco. Ainda hoje me é estranha a sensação de sua partida, me
é estranha chama-la de morte, sendo que a vi pela última vez em vida. Desde criança,
quando caminhávamos de braços dados, ela me apresentava como “meu companherinho,
meu anjo da guarda”. Apaixonada por fotografias, colecionava de todos os tipos (foto
pintura, monóculos, negativos, impressas), me passou essa paixão desde cedo, dizia “[...]
o tempo é uma pintura que vem vai.”, ou “fotografia é tão bom, um dia a pessoa não tá
mais lá e só sobra isso”. A foto que acompanha esse poema, uma fotografia de bolso que
se consegue ver o relevo da tinta, lembra uma xilogravura, e está guardada na minha
carteira desde sua passagem. Ela se foi, de nossa casa/bairro me mudei, de lembrança
carreguei apenas as nossas fotografias. Da despedida apenas a imagem mental de um
sonho que poetizei. Ela eu não perdi, dela eu ganhei, ensinamentos que não podem ser
contados em palavras. Contudo todos perdemos com ela e quase 700 mil outras... Do meu
luto pessoal não preciso me curar, do luto coletivo precisamos todos, é um sentimento
compartilhado que retiro da minha gaveta sempre que possível.
Caderno de poemas
Imagem: Fotografia digital do meu caderno de poemas, imagem produzida em sala com elementos
disponíveis.
No meu quarto
a lâmpada é o sol
do meu planeta.
Na prateleira de livros
cultura e sociedade
Nos discos
contradição e violência suicidam
(21/01/2017).
P oema escrito em 2017, quando a imaginação poética era ainda nutrida pelo
ninho de minha avó, que coincidentemente dialogou com a aula onde discutimos a poética
do espaço de Gaston Bachelard. Recorri ao meu caderno pois lembrava que alguns
escritos refletiam sobre a casa, os móveis e o quarto que tanto me confinava. Lendo esses
textos encontrei conforto e uma pitada de cura, e ao abrir a gaveta, os cofres e os armários,
abri também minha intimidade para meus colegas de curso. A imagem do caderno aberto
dialoga com a ideia de abertura e compartilhamento da intimidade.
700 mil além da sua...
Imagem: poesia visual 1, papel manteiga sobreposto sobre o signo “Tempo Cura”.
Tempo Cura
Imagem: poesia visual 2, papel manteiga sobreposto sobre o signo “Tempo Cura”.
Poesia visual 1
e ainda contado.
Não há cura
onde há um mercado.
Não há cura
Poesia visual 2
Tempo de cura
Sarar as feridas
estancar os sangramentos,
derramamento de dores.
mais grossa.
ao esquecimento.
“Cada um no seu castelo, cada um na sua função
Tudo junto, cada qual na sua solidão”
(Racionais MC’s – Da ponte pra cá)
Imagem: “Em cura”, fotografia digital, 2022, gerada a partir do uso de retroprojetor em escada da FAV,
indica o local onde foi realizada intervenção dialogando sobre o tempo-cura
“Uma boa obra de arte sempre pretende mais do que sua mera presença no espaço: ela
se abre ao diálogo, à discussão, a essa forma de negociação inter-humana que Marcel
Duchamp chamava de "o coeficiente de arte" - e que é um processo temporal, que se dá
aqui e agora.”
(Nicolas Bourriaud – Estética Relacional)
“O sentido é o expresso.”
(Giles Deleuze – A lógica dos sentidos)
escadaria da FAV, lugar onde muitos passam apressadamente para chegar ao piso
superior, lugar onde o subir e descer constituem atividade mecânica e que não possui
pretensão a não ser a de chegar em cima ou embaixo. Seria esse um lugar possível para
trocas e câmbios? Ou passível de desobstruir caminhos? O próprio ato de caminhar degrau
por degrau pressupõe o processo envolvido para alcançar diferentes curas, passo a passo
você sobe, você desce, você avança, você regride. A possibilidade de cura que quero
propor deve ser interativa, convivial e relacional, como nos indica Bourriaud. Um
dispositivo utilizado para o bem comum, colocado num lugar de trânsito desconecto para
tentar conectar experiências. O próximo desdobramento dessa reflexão sobre meu tempo
pessoal, subjetivo por excelência, é tornar-se coletivo através da (rel)ação poética, do
estranhamento, da quebra da rotina. Quais proposições permitiram alcançar tais
expectativas ainda desenham-se a partir das minhas próprias subjetivações e
contaminações com processos e tempos compartilhados no nosso Laboratório de
Produção Artística 2. A proposição de uma reflexão poética por meio da construção de
imagens técnicas com uso de aparelhos obsoletos que foram resgatados de depósitos da
universidade foi o acontecimento, expresso por meio de possibilidades da própria
construção, com variadas e distintas relações. Tais relações constituem-se tanto a partir
do próprio acontecimento em si, quanto do compartilhamento dos seus registros.
Referências
BACHELARD, Gaston. A Poética do Espaço. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
BOURRIAUD, Nicolas. Estética relacional. São Paulo: Martins Fontes, 2009.
DELEUZE, Gilles. Lógica do sentido. São Paulo: Perspectiva, 2011.