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ANA CRISTINA CÉSAR

1. Poesia fotográfica, ou poemas do desencanto

Simulacro de uma solidão


(Inéditos & Dispersos / 26 poetas hoje)

30 de agosto

Hoje roí́ cinco unhas até o sabugo e encontrei no cinema, vendo Charles Chaplin e rindo às gargalhadas, de chinelos
de couro, um menino claro. Usei a toalha alheia e fui ao ginecologista.

9 de setembro

Tornei a aparar os cachos. Lúcifer insiste em se dar mal comigo; não sei mais como manter a boa aparência. Minha
amiguinha me devolveu a luva. Já́ recebi o montante.

28 de agosto

Dia de festa e temporal. Aniversário da Tatiana. Abrimos os armários de par em par. Não sei por que mas sempre que
se comemora alguma coisa titio fica tão apoplético. Acho que secretamente ele quer que eu... (Não devia estar
escrevendo isto aqui. Podem apanhar o caderno e descobrir tudo.)

5 de agosto
Ainda não consegui fazer filosofia, versos, ou colar retratos aqui.

30 de janeiro

Que nostalgia no ar, meu Deus! Hoje fui à casa da Ana levar um presentinho. Às vezes tenho a impressão de que
esses presentinhos constantes são um embaraço. Eu se fosse dona da casa não permitiria certas coisas. Me dá um
ennui, eu fico enjoada de ver tanta ignorância. Como as pessoas se ignoram! Depois de todos esses meses Sérgio
resolveu dar o ar de sua graça.

8 de julho

Nós estamos em plena decadência. Eu e você estamos em plena decadência. A nossa relação está em plena
decadência. Quando duas pessoas chegam a se dizer isso tranqüilamente, é sinal de terra á vista. Nem tudo é um
naufrágio na vida. Mas um dia eu ainda me afogo no álcool.

30 de novembro

Rita marcou hora comigo e não apareceu. Há muito tempo que eu não me sinto tão deprimida. Acho que vou ligar
para a

9 de agosto

Primeira fotografia que deve entrar para o álbum: um entardecer primaveril no Parque da Cidade. Preciso comprar
cola. Soube de fofocas em relação ao beijo de ontem. Como a Tatiana está obcecada com as suas fantasias! Eu
também começo a me sentir envolvida. Queria voltar ao atelier, leiloar tudo se necessário. Mas sentir as mãos livres,
os passos soltos! Minha vida chega a um impasse.

10 de agosto

Estou lendo um manual de alemão prático. Tenho ido à praia. Vi o Joel de manhã, com a mulher dele.

8 de julho

Recomecei a ginástica. Hoje quase me matei antes do almoço. Fez um dia quente para a estação. Amanhã começo o
estudo com os gêmeos. Apesar de tudo eu tenho restrições. Mas o que se há de fazer?

Água virgem
(Inéditos & Dispersos)
Perdi-me no entrelaçar-se de malhas.
Entreguei-me no manchar-se de sonhos.
Marquei-me no soluçar-se de perdas.
 
Sob o peso deste som
um flautim
Sob o som deste peso
uma queda
 
rachou
a chave
calou
a chuva
barrou
a chama
 
(chuvisca no centro meu – nenhum grito)
 
Inconfissões – dezembro/68

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Cassiano Ricardo
(Um dia depois do outro, 1947)

Serenata sintética

Rua
torta.

Lua
morta.

Tua
porta.

2. Diário íntimo Arpejos


2.1 O erótico (Cenas de Abril, 1979)
1 Pergunto aqui se sou louca
Acordei com coceira no hímen. No bidê̂ Quem quer saberá dizer
com espelhinho examinei o local. Não Pergunto mais, se sou sã
E ainda mais, se sou eu
surpreendi indícios de moléstia. Meus olhos
leigos na certa não percebem que um rouge Que uso o viés pra amar
a mais tem significado a mais. Passei E finjo fingir que finjo
pomada branca até que a pele (rugosa e Adorar o fingimento
mur- cha) ficasse brilhante. Com essa Fingindo que sou fingida
murcharam igualmente meus projetos de ir
de bicicleta à ponta do Arpoador. O selim Pergunto aqui meus senhores
poderia reavivar a irritação. Em vez decidi quem é a loura donzela
me dedicar à leitura. que se chama Ana Cristina

E que se diz ser alguém


2 É um fenômeno mor
Ontem na recepção virei inadvertidamente a Ou é um lapso sutil?
cabeça contra o beijo de saudação de
Antônia. Senti na nuca o bafo seco do Inconfissões, 31-10-68
susto. Não havia como desfazer o engano.
Sorrimos o resto da noite. Falo o tempo ###
todo em mim. Não deixo Antônia abrir sua
boca de lagarta beijando para sempre o ar. 2.3 Diante do espelho
Na saída nos beijamos de acordo, dos dois
lados. Aguardo crise aguda de remorsos. Secção Visita à oficina

Por que sou uma pessoa, e uma só?


3
A crise parece controlada. Passo o dia a
Por quê? Por que sou isso e não aquilo?
recordar o gesto involuntário. Represento a
Por que (sou) este e não aquele, e aqui?
cena ao espelho. Viro o rosto à minha
Hoje, na terça? Em casa, não fora?
própria imagem sequiosa. Depois me volto,
Com pele, não pena? Com rosto, não folha?
procuro nos olhos dela signos de decepção.
E por que fui assim, e uma vez só?
Mas Antônia continuaria inexorável. Saio
Depois de tantos eras de não ser?
depois de tantos ensaios. O movimento das
Em vez de ser sempre e ser tudo?
rodas me desanuvia os tendões duros. Os
Em vez de ser mares e céus?
navios me iluminam. Pedalo de maneira
Por que na terra, perto da estrela?
insensata.
Por que em mim e comigo, e por que
Sendo aqui e não ali, ou milhas além,
### E olho para este canto escuro assim
Como olha, erguendo subitamente a cabeça,
2.2 O autobiográfico E rosnando, esta coisa chamada
cachorro
Soneto
(Inéditos & Dispersos)
ANOS 1980

3. Apagar as marcas do sofrer (na poesia)


Quando chegar
(Inéditos & Dispersos)

Quando eu morrer,
Anjos meus,
Fazei-me desaparecer, sumir, evaporar
Desta terra louca
Permiti que eu seja mais um desaparecido
Da lista de mortos de algum campo de batalha
Para que eu não fique exposto
Em algum necrotério branco
Para que não me cortem o ventre
Com propósitos autopsianos
Para que não jaza num caixão frio
Coberto de flores mornas
Para que não sinta mais os afagos
Desta gente tão longe
Para que não ouça reboando eternos
Os ecos de teus soluços
Para que perca-se no éter
O lixo desta memória
Para que apaguem-se bruscos
As marcas do meu sofrer
Para que a morte só seja
Um descanso calmo e doce
Um calmo e doce descanso

Julho/67

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Quartetos
(Inéditos & Dispersos)

Desdenho os teus passos


Retórica triste:
Sorrio e na alma
De ti nada existe

Eu morro e remorro
Na vida que passa
Eu ouço teus passos
Compasso infernal

Nasci para a vida


De morte vivi
Mas tudo se acaba
Silêncio. Morri.
1967

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4. Diluição (descontentamento, cisão)

Neste interlúnio
(Inéditos & Dispersos)

Neste interlúnio
Sou um dilúvio ou me afogo.
E entre espectros que comprimem,
Nada se cumpre,
O destino esfarela.
De querela e farinha se ergue um olho.
As vozes despetalam,
Os períodos se abrandam,
Orações inteiras lentas se consomem,
Em poços há sumiços de palavras moucas.
Neste interlúnio
Sou fagulha ou hulha inerte.
Enorme berne entra corpo adentro,
Entre os dentes, carne.
Arde o ente e cospe,
Cuspe inútil invadindo espaço.
Moléculas moles coleando,
Víboras vagas se rimando,
Poetas quietos entreolhando
Coisas coisas que falecem.
Neste interlúnio,
Sou coisa ou poeta.

Agosto/68.

5. Metalinguístico // Presenças (Clarice, Bandeira, Pessoa)

Estou atrás
(Inéditos & Dispersos)

do despojamento mais inteiro


da simplicidade mais erma
da palavra mais recém-nascida
do inteiro mais despojado
do ermo mais simples
do nascimento a mais da palavra.

28-5-69

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33.ª Poética
(Antigos e soltos – “Pasta rosa”, 2008)

estou farto da materialidade embrulhada do signo 


da metalinguagem narcísica dos poetas 
do texto de espelho em punho revirando os óculos 
modernos

estou farta dessa falta enxuta 


dessa ausência de objetos rotundos e contundentes 
do conluio entre cifras e cifrantes 
da feminil hora quieta da palavra 
da lista (política raquítica sifilítica) de supersignos cabais: “duro 
ofício”, “espaço em branco”, “vocábulo delirante”, “traço infinito".    

quero antes 
a página atravancada de abajures 
o zoológico inteiro caindo pelas tabelas 
a sedução os maxilares 
o plágio atroz 
ratas devorando ninhadas úmidas 
multidões mostrando as dentinas 
multidões desejantes 
diluvianas 
bandos ilícitos fartos excessivos pesados e bastardos 
a pecar e por cima

os cortinados do pudor 
vedando tudo 
com goma
de mascar.
Out. 75.

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(Inéditos & Dispersos)

A gente sempre acha que é


Fernando Pessoa

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