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FAGULHA

COM LICENÇA POÉTICA


Abri curiosa
o céu.
Assim, afastando de leve as cortinas. Quando nasci um anjo esbelto,
desses que tocam trombeta, anunciou:
Eu queria entrar,
coração ante coração, vai carregar bandeira.
inteiriça Cargo muito pesado pra mulher,
ou pelo menos mover-me um pouco,
com aquela parcimônia que caracterizava esta espécie ainda envergonhada.
as agitações me chamando Aceito os subterfúgios que me cabem,
sem precisar mentir.
Eu queria até mesmo
saber ver, Não sou feia que não possa casar,
e num movimento redondo acho o Rio de Janeiro uma beleza e
como as ondas
que me circundavam, invisíveis, ora sim, ora não, creio em parto sem dor.
abraçar com as retinas Mas o que sinto escrevo. Cumpro a sina.
cada pedacinho de matéria viva.
Inauguro linhagens, fundo reinos
Eu queria — dor não é amargura.
(só) Minha tristeza não tem pedigree,
perceber o invislumbrável
no levíssimo que sobrevoava. já a minha vontade de alegria,
sua raiz vai ao meu mil avô.
Eu queria Vai ser coxo na vida é maldição pra homem.
apanhar uma braçada
do infinito em luz que a mim se misturava. Mulher é desdobrável. Eu sou.

Eu queria
Adélia Prado, em “Bagagem”.
captar o impercebido
nos momentos mínimos do espaço
nu e cheio

Eu queria
ao menos manter descerradas as cortinas
na impossibilidade de tangê-las

Eu não sabia
que virar pelo avesso
era uma experiência mortal.

Ana Cristina César, em “A teus pés”.


CINCO ELEGIAS – QUARTA DA CALMA E DO SILÊNCIO

Não te espantes da vontade


Quando eu morder
Do poeta
a palavra,
Em transmudar-se:
por favor,
Quero e queria ser boi
não me apressem,
Ser flor
quero mascar,
Ser paisagem.
rasgar entre os dentes,
Sentir a brisa da tarde
a pele, os ossos, o tutano
Olhar os céus, ver às tardes
do verbo,
Meus irmãos, bezerros, hastes,
para assim versejar
Amar o verde, pascer,
o âmago das coisas.
Nascer
Junto à terra
Quando meu olhar
(À noite amar as estrelas)
se perder no nada,
Ter olhos claros, ausentes,
por favor,
Sem o saber ser contente
não me despertem,
De ser boi, ser flor, paisagem.
quero reter,
Não te espantes. E reserva
no adentro da íris,
Teu sorriso para ops homens
a menor sombra,
Que a todo custo hão de ser
do ínfimo movimento.
Oradores, eruditos,
Doutos doutores
Quando meus pés
Fronte e cerne endurecido.
abrandarem na marcha,
Quero e queria ser boi
por favor,
Antes de querer ser flor.
não me forcem.
E na planície, no monte,
Caminhar para quê?
Movendo com igual compasso
Deixem-me quedar,
A carcaça e os leves cascos
deixem-me quieta,
(Olhando além do horizonte)
na aparente inércia.
Um pensamento eu teria:
Nem todo viandante
Mais vale a mente vazia.
anda estradas,
há mundos submersos,
E sendo boi, sou ternura.
que só o silêncio
Aunque pueda parecer
da poesia penetra.
Que del poeta
Es locura.
Conceição Evaristo, em “Poemas da
recordação e outros movimentos”.
Hilda Hilst, em “Exercícios”
SE ME QUISERES CONHECER

Se me quiseres conhecer, E nada mais me perguntes,

estuda com olhos de bem ver se é que me queres conhecer...

esse pedaço de pau preto Que eu não sou mais que um búzio de carne

que um desconhecido irmão maconde* onde a revolta de África congelou

de mãos inspiradas seu grito inchado de esperança.

talhou e trabalhou

em terras distantes lá do Norte. Noémia de Sousa, In notícias, 07.03.1958,


Ah, essa sou eu: página “Moçambique 58”

órbitas vazias no desespero de possuir a vida.

boca rasgada em feridas de angústia,

mãos enormes espalmadas,

erguendo-se em jeito de quem implora e ameaça,

corpo tatuado de feridas visíveis e invisíveis

pelos chicotes da escravatura...

Torturada e magnífica.

Altiva e mística.

Africa da cabeça aos pés

— Ah, essa sou eu!

Se quiseres compreender-me

vem debruçar-te sobre minha alma de Africa,

nos gemidos dos negros no cais

nos batuques frenéticos dos muchopes

na rebeldia dos machanganas

na estranha melancolia se evolando...

duma canção nativa, noite dentro...


FRAGMENTOS POÉTICOS suspenso
entre os teus dedos e o teu sonho
Após o ardor da reconquista
não caíram manás sobre os nossos campos
II
Mas quem és sobre as horas caminhando?
E na dura travessia do deserto
Quem és lançando fúrias no deserto?
aprendemos que a terra prometida era aqui
Quem és sobre a morte morrendo?
Sobre a morte erguendo quem és?
Ainda aqui e sempre aqui.
Duas ilhas indómitas a desbravar.
III
O padrão a ser erguido
Pássaro de penas rotas e cintilantes
pela nudez insepulta dos nossos punhos.
libertando na noite o tempo cativo
revolves as horas os magros celeiros
Emergiremos do canto
fustigas tremente o rosto dos meses
como do chão emerge o milho jovem
a cólera é teu argumento
e nus, inteiros recuperaremos
o porvir teu fundamento.
a transparência do tempo inicial
À força de viver
Puros reabitaremos o poema e a claridade
na vida entraste
para que a palavra amanheça e o sonho não se perca.
à força de sonhar criaste o sonho
tu és a voz do próprio sonho
I
lavrador teimoso de um tempo sem pomar
Transitório é este tempo que te divide
(... ...)
sem o saberes
Moldar os dias dos frutos maduros
transitórias as águas, os tambores quebrados
este é teu projecto iniciado e longo
transitória a noite que à noite sucede
o barro da razão que te forjou
sem te veres
a substância pura que te ligou à vida

Transitória a pálida bruma a


quando aprendeste os segredos da noite
ocultar-te de ti
e penetraste as trevas como espada fulgurante
transitório o silêncio ocupando espaços
além da tua boca
Tuas mãos tingem já de púrpura a noite
o crepúsculo é o instante supremo a claridade
transitórias as pedras amargas desaguando
sem licença no litoral da aurora, transitória
Quem fará recuar o tempo anunciado
a angústia das palavras ensanguentadas em tuas mãos.
por tambores e águas
Obstinado peregrino quem te acompanha além de ti?
noite a noite sem cessar?
Emissário de rios esquecidos quem te ouve?
Conceição Lima
Oh, surdas são as ondas deste mar
que teu carinho deveria modelar,
MINHA VOZ tuas mãos milagrosas,
emprestariam expressões inéditas
Minha voz ao meu corpo maleável…
leva lampejos de lâminas Por que não vens?!…
aos teus silêncios.
Sou a suprema tentadora, Longe de mim,
em minha forma inatingível és a Beleza sem arte,
materializo o pensamento. a Poesia sem a palavra;
Passarei por tua vida longe de mim sei que te não encontras,
como a ideia por um cérebro: sei que procuras inutilmente
dando-me toda sem que me possuas. defrontar o teu eu
Guardo no cristal de outras almas,
os sentidos da tua formosura, porque te falta o fiel espelho
tenho-te em mim em radiosidades, da minha estranha sensibilidade.
amo-te porque me olhas, Por que não vens?!
das tuas sombras, – À tua vinda
com a fisionomia fechar-se-iam meus lábios,
dos meus sentimentos. meus braços
e minhas asas;
Talvez outros braços enlacem teu busto, ficarias em mim entimesmado,
talvez outros lábios murmurem no aconchego de meu ser
palavras líricas que é tua sombra;
aos teus ouvidos, ficarias em mim
talvez outros olhos se abismem nos teus… como a visualidade,
Agora e sempre, em minhas pálpebras cerradas para o sonho…
serás, apenas,
o mundo por mim descoberto, Gilka Machado, em “Meu Glorioso Pecado”
o tesouro por mim desvendado,
o homem
que meu amor acordou
na imobilidade da tua inconsciência.

Por que não vens


meu estatutário da volúpia,
– há em mim linhas imprecisas
de desejo

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