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«Ode triunfal», Álvaro de Campos

Estrutura interna: título

▪ Fundamentação do título e seu simbolismo

• «Ode» é um cântico grandioso, dedicado a alguém ou a algum acontecimento.

• O adjetivo «triunfal» amplifica o significado de «ode», remetendo simbolicamente para as ideias de


Força, Exuberância e Excesso.

• Assim, «ode» porque é uma composição poética destinada a cantar uma matéria elevada;
«triunfal», porque é a celebração da modernidade, do triunfo da civilização técnica e
industrializada.

• O título do poema confere um tom épico à exaltação do Moderno que percorrerá todo o poema.

Estrutura interna: introdução

▪ Localização espácio-temporal

• «À dolorosa luz das grandes lâmpadas elétricas da fábrica» (v. 1) – numa fábrica,
rodeado de máquinas, à noite e sob a luz forte das «grandes lâmpadas
elétricas».

▪ Estado de espírito do eu lírico

• «Tenho febre e escrevo.» (v. 2) – estado febril, doentio, delirante, que o compele ao “canto”. Este
estado vai-se desenrolando, mais adiante, em «Tenho os lábios secos» (v. 10); «E arde-me a
cabeça» (v. 12); «Em febre» (v. 15); … O delírio do sujeito poético é originado pelos "excessos" do
ambiente em que se encontra inserido. Os movimentos «em fúria» e os «ruídos» ouvidos
«demasiadamente perto» das máquinas da fábrica estão na base do seu estado febril.

Estrutura interna: desenvolvimento

▪ Traços futuristas

▪ Cântico da era moderna e do progresso

• «E arde-me a cabeça de vos querer cantar com um excesso / De expressão de todas as minhas
sensações, / Com um excesso contemporâneo de vós, ó máquinas!» (vv. 12-14); «Ó coisas todas
modernas, / Ó minhas contemporâneas, forma atual e próxima / Do sistema imediato do
Universo! / Nova Revelação metálica e dinâmica de Deus!» (vv. 109-112); … − Elogio, à maneira
futurista, da agitação e do movimento próprios da vida moderna; apologia da força, enquanto
critério primordial da beleza, que a obra escrita deve reproduzir. Cântico da civilização moderna,
dos avanços tecnológicos, em que tudo e todos têm lugar na poesia, pelo simples facto de
existirem. A Modernidade como nova “religião”, que merece ser enaltecida, através da poesia.

▪ Fusão de todas as eras no momento presente

• «Canto, e canto o presente, e também o passado e o futuro. / Porque o presente é todo o passado
e todo o futuro» (vv. 17-18); «Eia todo o passado dentro do presente! / Eia todo o futuro já dentro
de nós!» (vv. 223-224); … – o Instante presente é a congregação de todos os tempos: o presente é
o resultado de esforços científicos passados e catalisador dos feitos futuros.
▪ Fusão do eu com a máquina

• «Ah, poder exprimir-me todo como um motor se exprime! / Ser completo como uma máquina!»
(vv. 26-27); «Engatam-me em todos os comboios. / Içam-me em todos os cais. / Giro dentro das
hélices de todos os navios.» (vv. 229-231); «Amo-vos carnivoramente, / Pervertidamente e
enroscando a minha vista / Em vós, ó coisas grandes, banais, úteis, inúteis» (vv. 106-108); …
declara-se o desejo de identificação com as realidades tecnológicas contemporâneas;
concretizando a atitude provocatória dos futuristas, ao procurar associar o ser humano à revolução
técnica. Vontade de fazer parte da máquina, símbolo da era moderna; relação perversa e erótica
com os mecanismos.

▪ Fusão de todos os génios nos maquinismos

• «E há Platão e Virgílio dentro das máquinas e das luzes elétricas / Só porque houve outrora e foram
humanos Virgílio e Platão, / E pedaços do Alexandre Magno do século talvez cinquenta, / Átomos
que hão de ir ter febre para o cérebro do Ésquilo do século cem, / Andam por estas correias de
transmissão e por estes êmbolos e por estes volantes» (vv. 19-23); … − todos os génios e conquistas
do passado contribuíram, de alguma forma, para o avanço civilizacional, daí circularem nos
maquinismos atuais. O tempo é um contínuo: a civilização moderna é o resultado de uma
acumulação de saberes e experiências que o atravessaram como uma herança. O progresso atual é
consequência de sucessivas invenções no passado.

▪ Universalidade

● «E outra vez a fúria de estar indo ao mesmo tempo dentro de


todos os comboios / De todas as partes do mundo» (vv. 193-
194); … − o eu expande-se numa identificação com todos os
locais urbanos: a era moderna é cosmopolita e sem fronteiras
geográficas, daí a evocação de vários espaços das grandes
metrópoles.

▪ Valorização de uma nova forma de beleza «totalmente desconhecida dos antigos»

• «Escrevo rangendo os dentes, fera para a beleza disto, / Para a beleza disto totalmente
desconhecida dos antigos.» (vv. 3-4); «Em febre e olhando os motores como a uma Natureza
tropical» (v. 15); «Olá tudo com que hoje se constrói, com que hoje se é diferente de ontem! / Eh,
cimento armado, beton de cimento, novos processos! / Progressos dos armamentos gloriosamente
mortíferos! / Couraças, canhões, metralhadoras, submarinos, aeroplanos!» (vv. 101-104); … −
valoriza-se a «beleza» da civilização moderna, diferente da beleza aristotélica tradicional. O novo
conceito de Belo relaciona-se com as ideias de Força, Dinamismo, Excesso, Modernidade, …

▪ Traços sensacionistas

▪ Presença dos cinco sentidos

- visão: «e olhando os motores» (v. 15), «Desta flora estupenda, negra, artificial e insaciável!» (v. 32);

- paladar: «Por todas as papilas fora de tudo com que eu sinto!» (v. 9), «Tenho os lábios secos» (v. 10);

- audição: «r-r-r-r-r-r-r eterno» (v. 5), «ruídos modernos» (v. 10), «Rugindo, rangendo, ciciando» (v. 24);

- olfato: «perfumes de óleos» (v. 31);

- tato: «Fazendo-me um excesso de carícias ao corpo numa só carícia à alma.» (v. 25), «calores» (v. 31).
▪ Simultaneidade e exacerbação sensoriais

• «E arde-me a cabeça de vos querer cantar com um excesso / De expressão de todas as minhas
sensações» (vv. 12-13); «Poder ao menos penetrar-me fisicamente de tudo isto, / Rasgar-me todo,
abrir-me completamente, tornar-me passento / A todos os perfumes de óleos e calores e carvões»
(vv. 29-31); … – a pluralidade sensorial («Sentir tudo de todas as maneiras») enquanto método de
conhecimento da dinâmica da vida moderna. A intensidade e o sincronismo conferem maior
capacidade de captação sensitiva, já que esta se caracteriza pela sua fugacidade e fragmentação.

▪ Traços disfóricos

▪ Identificação de momentos disfóricos

• «(Na nora do quintal da minha casa / O burro anda à roda, anda à roda, / E o mistério do mundo é
do tamanho disto. / Limpa o suor com o braço, trabalhador descontente. / A luz do sol abafa o
silêncio das esferas / E havemos todos de morrer, / Ó pinheirais sombrios ao crepúsculo, /
Pinheirais onde a minha infância era outra coisa / Do que eu sou hoje...)» (vv. 182-190) − momento
de quebra disfórica no poema.

▪ Temas abordados

• Abordam-se os seguintes temas: a rotina diária e a dimensão do mistério do mundo; o


descontentamento da classe trabalhadora; a inevitabilidade da morte; a nostalgia da infância; …

Estrutura interna: conclusão

▪ Interpretação e simbolismo do último verso

• Relação de circularidade: o mal-estar final de frustração assemelha-se ao estado


desassossegado e febril da introdução. O reconhecimento da impossibilidade de
«ser […] toda a gente e toda a parte» leva o eu poético a denunciar a sua desilusão,
acabando por concluir o seu texto na mesma situação em que o iniciou: apenas
como observador e cantor épico de uma realidade que lhe é exterior.

• Relação com a introdução

• «Ah não ser eu toda a gente e toda a parte!» (v. 240) – desejo frustrado de abarcar por inteiro toda
a realidade e toda a humanidade, apesar de todo o esforço literário empregue no cântico. A
apetência para experimentar tudo de todas as maneiras leva-o a querer ser toda a gente ao mesmo
tempo. Esta (com)fusão de identidades é o resultado da vida moderna que assiste à compressão do
tempo e do espaço, com as consequências que se adivinham ao nível da personalidade.

√ Estrutura, linguagem e estilo

• Apóstrofe – «Ó coisas todas modernas, / Ó minhas contemporâneas, forma atual e próxima (vv.
109-110); …

• Aliteração – «de ferro e fogo e força» (v. 16); …

• Anáfora – «Olá grandes armazéns com várias secções! / Olá anúncios elétricos que vêm e estão e
desaparecem! / Olá tudo com que hoje se constrói, com que hoje se é diferente de ontem! (vv. 99-
101)»; …

• Metáfora – «flora estupenda, negra, artificial e insaciável!» (v. 32); «sou o calor mecânico e a
eletricidade!» (v. 233); …
• Enumeração – «Ó ferro, ó aço, ó alumínio, ó chapas de ferro ondulado! / Ó cais, ó portos, ó
comboios, ó guindastes, ó rebocadores!» (vv. 197-196); …

• Gradação – «Rasgar-me todo, abrir-me completamente, tornar-me passento» (v. 30); «Ruído,
injustiças, violências, e talvez para breve o fim» (v. 204).

• Onomatopeia – «r-r-r-r-r-r-r eterno» (v. 5); «Hup-lá, hup-lá, hup-lá-hô, hup-lá! / Hé-la! He-hô! H-o-
o-o-o! / Z-z-z-z-z-z-z-z-z-z-z-z!» (vv. 237-239)

• Interjeição – «Ó» (v. 5); «Ah» (v. 72); «Olá» (v. 100); «Eh» (v. 102), «Eia» (v. 215), …

• Empréstimo – «beton» (v. 102); «rails» (v. 234); …

• Neologismo – «submarinos» (v. 104); «aeroplanos» (v. 104); «árvore-fábrica» (v. 226); …

• Pontuação – Exclamativas e interrogativas: «Eia! sou o calor mecânico e a eletricidade!» / Eia! e os


rails e as casas de máquinas e a Europa!» (vv. 233-234); «Ao ruído cruel e delicioso da civilização de
hoje?» (v. 209); …

• Parênteses: «(e quem sabe o quê por dentro?)», (v. 66); «(Na nora do quintal da minha casa / O
burro anda à roda, anda à roda […] / E havemos todos de morrer)», (vv. 182-187). Os parênteses
funcionam como apartes, desabafos ou expressam reflexões do eu lírico;…

• Tempos verbais – predomínio do presente do indicativo (concatenação de todos os tempos) «Nem


sei que existo para dentro. Giro, rodeio, engenho-me. / Engatam-me em todos os comboios. /
Içam-me em todos os cais. / Giro dentro das hélices de todos os navios.» (vv. 228-231); …

Construções sintáticas:

- nominais: «Ó fazendas nas montras! ó manequins! ó últimos figurinos!» (v. 97); …

- gerundivas: «Rugindo, rangendo, ciciando, estrugindo, ferreando» (v. 24);…

- infinitivas: «Ah, poder exprimir-me todo como um motor se exprime! / Ser completo como uma
máquina!» (vv. 26-27); «Galgar com tudo por cima de tudo!» (v. 236); …

● O arrebatamento do canto é conseguido através de…

Além das temáticas que constituem a matéria épica (a exaltação e a celebração da civilização Moderna; a
universalidade dos antropónimos e topónimos; a compressão no Momento presente de todos os tempos, a
integração de todos os tipos sociais na arte poética), o arrebatamento do canto é conseguido através de
vários mecanismos linguísticos e estilísticos, nomeadamente: poema longo com versos livres e amplos;
grandiloquência (visível nas frases exclamativas e interjeições); ritmo esfuziante e torrencial; exaltação
épica do mundo mecânico e cosmopolita (visível nas apóstrofes e enumerações); abundância de recursos
expressivos; euforia épica (visível, por exemplo, nas onomatopeias); …

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