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Lacan, o
escrito, a imagem. Trad. Yolanda Vilela. 1ª Ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora,
2016.
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-“Há fortes razões para se dizer que o século XX terá sido o século do objeto, ou dos
objetos, plurais, múltiplos. Esse traço singulariza esse século com relação a todos os
outros” (p.55)
- “O próprio das obras de arte é, justamente, que elas pedem para serem tratadas no
singular, uma a uma, e não juntas, numa produção homogênea; a unidade que opera na
Arte é a obra, ao passo que a unidade da criação industrial é a série” (p.56)
- “Uma + uma + uma, as obras de Arte supõem e implicam uma lógica do não-todo, de
um conjunto jamais finito. A arte é não-toda, portanto, falar de arte em geral é invocar
um conjunto não consistente constituído de objetos que têm em comum apenas o fato de
ser, cada um deles, singularidades distinguíveis e distintas” (p.56)
[Ruína]
- “O problema é que ao lhe atribuir esse título, imediatamente após os termos dito que a
ruína define esse século, nesse mesmo movimento, precisamente, esse enunciado
historiciza o século, o generaliza, o compara e, na verdade, o dissolve na sequencia dos
séculos” (p.57)
- “Assim, não podemos sequer mais falar de forma consistente da ruína como sendo o
objeto do século porque facilmente se admitirá que a ruína é fabricada desde os tempos
mais remotos, e que, na verdade, ela existe desde que o homem é homem, exatamente
desde o momento em que a memória passou a existir” (p.57)
[A invenção]
- “Portanto, apesar da carnificina que foi a guerra de 1914, na qual o século foi batizado,
ou da bomba atômica, tecnologia verdadeiramente revolucionária, ou de Ruanda, ou de
Stálin, ou de Kosovo, ou da guerra Iran-Iraque, ou etc., não se pode dizer exatamente
que o massacre de massa enquanto tal marca o século XX” (p.59)
[Nomeação]
- “Convém estar atento ao fato de que se falo da shoah – como se diz geralmente hoje
em dia -, quando emprego a palavra “shoah” para designar o que aconteceu há
cinquenta anos, eu já implico um objeto, uma obra de arte, especificada, um filme, o
filme Shoah, de Claude Lanzmann” (p.59)
- “Esse filme realiza um ato. No lugar de uma interpretação que ele não dá e contra toda
a explicação que atenue o fato, esse filme, antes de qualquer coisa, realiza um ato, dá
um nome. Ele nomeia Shoah o que aconteceu na Europa há cinquenta anos” (p.60)
- “[...] o filme de Lazmann eleva ao mais alto grau a dimensão que define a obra de arte
para Walter Benjamin e que consiste, precisamente, em não estar inserida num tempo
que a encerra e lhe dá sentido, mas engendrar, ela própria, um presente, um passado e
um futuro. Abandonando a ideia rasa do artista como testemunha do seu tempo, trata-se
de pensar que a obra de arte instaura o seu Tempo” (p.61)
- “Isso inscreve, portanto, a orientação que pretendo seguir. Defendo que a questão da
shoah como singularidade do século implica imediatamente e fundamentalmente uma
obra de arte, tal como o filme de Lanzmann, e que a singularidade da shoah é aquela
mesma que se pode atribuir ao filme shoah” (p.61)
[Irrepresentável]
- “A shoah não poderia ser objeto de nenhuma transposição, nada pode representá-la em
si mesma porque não há nada para ser representado (sobre esse impossível, Spielberg
colocará justamente imagens)”
- “[...] olhar de frente o que nenhum vivo nunca viu e que é irrepresentável. Eis o que
orienta o filme” (p.62)
- “[...] esse filme parece realizar exatamente a função que Lacan destina à arte: ‘isso a
que o artista nos dá acesso, é o lugar do que não poderia ser visto’ –, o que atribui à arte
uma espécie de tarefa específica essencial, diversa quanto às formas que ela pode tomar
segundo a época, as doutrinas e os artistas, da qual nada nem ninguém, práticas ou
discursos, ciências ou filosofias, poderia realizar em nosso mundo humano além dela:
dar acesso ao que não poderia ser visto” (p.63)
[Imemorial]
- “A shoah é um acontecimento que não pode ser visto, que não pode ser visto como
outro acontecimento qualquer; tampouco pode ser dito como outro acontecimento
qualquer. Inicialmente, por causa da ausência efetiva de qualquer documento e imagem,
ausência de arquivos sobre os quais se funda normalmente o trabalho dos historiadores”
(p.63)
- “Mas é preciso estar atento ao fato de que essa ausência nada tem de furtuito e que ela
foi totalmente deliberada; assim como organizaram o crime, os nazistas se preocuparam
com a história e velaram, com extremo cuidado, para não deixar nada que pudesse
deixar rastro: nem documentos, nem fotografias, nem ruínas. Evidentemente, eles não
foram totalmente bem-sucedidos; porém, é preciso pensar que ordens foram dadas para
que se queimassem certos edifícios de Auschwitz algumas horas apenas antes da
chegada das tropas russas” (p.63)
- “É nesse ponto que Pierre Vidal-Naquet situa a diferença, não de grau, mas, “de
natureza”, entre os assassinatos coletivos, como aqueles cometidos pela URSS, e as
câmaras de gás: estas não foram apenas um instrumento industrial de morte em série, “o
essencial, escreve ele, é a negação do crime no interior do próprio crime”. Por isso, a
“solução final” foi um crime produzido como incomensurável e incomparável a
qualquer outro crime, não por sua enormidade, mas por ter sido concebido e realizado
como incomparável e incomensurável – era da natureza da “solução final” ser um crime
definitivo e absoluto, que visava definitivamente e absolutamente “a questão judaica” –
a “solução” foi dada a seis milhões de “questões”. “Negação do crime no interior do
próprio crime”: esse traço distingue absolutamente a shoah” (p.64-65)
[Causa]
- “A shoah é uma causa no século, ela é, de agora em diante, “um real que faz o
horizonte do sujeito contemporâneo” (p.66)
[Mostrar]
- “As câmaras de gás são ponto exato do inominável e do irrepresentável: este é o lugar
do shoah. Por outro lado, o que mostra o filme de Lanzmann é exatamente o inominável
e o irrepresentável das câmaras de gás” (p.67)
[Quadro]
- “Se a arte tem a tarefa de mostrar o que não se poderia vez, é possível, então,
considerar que, do coração do trágico da shoah, surge um problema que pode ser
qualificado ao mesmo tempo de estético e ético” (p.67)
- “Em primeiro lugar, isso coloca uma questão sobre a relação entre um fato histórico e
a história da representação [...] Penso particularmente nesse aspecto muito pouco
examinado que é a ideia renascentista, sobretudo albertiana, do quadro como janela”
(p.67)
- “A janela é a condição para que haja alguma coisa que possa ser contada e descrita.
Em outras palavras, o quadro albertiano, o quadro perspectivo que faz do mundo uma
cena, uma caixa perspectiva, procede à instauração do que pode ser narrado e descrito
quanto ao que se passa na cena do mundo, ele é a condição da história” (p.68)
- “A janela aberta sobre a história é uma janela que delimita o tempo, ela constitui
alguma coisa como “o episódio”, uma unidade elementar da história. Assim como
Lacan podia falar da janela da fantasia, haveria sentido em se falar da janela da história.
A história supõe a instauração de um enquadre são necessários para que haja história,
para que alguma coisa que acontece na cena do mundo possa ser representada, para que
o mundo seja o lugar de uma história” (p.68)
- “A história cristã, fundada na Paixão, supõe e traz consigo uma paixão pela imagem”
(p.68)
[Malevitch]
- “Paradoxo de uma pintura abstrata que faz quadro de um fora da história (aliás,
algumas pessoas pensarão justamente que não pode haver pintura senão figurativa), o
que não significa, de forma alguma, como querem fazer acreditar hoje em dia, que ao se
distanciar do visível, ela se afasta do real. Ao contrário, a pintura visa o rela em seu
cerne” (p.69)
- “Não é um quadro do qual estaria ausente qualquer objeto, mas um quadro em que a
própria ausência que é pintada” (p.71)
- “A pergunta seria esta: o que mostra de nosso mundo uma arte que passa seu tempo
implodindo a imagem” (p.73)
[Wittgenstein]
- “Segundo a teoria albertiana, seria preciso afirmar unicamente que, como a shoah não
faz história, ela não faz quadro” (p.73)
- “Podemos compreender que, na segunda metade do século XX, tempo em que todo
visível passa a se ordenar a partir de um referente irrepresentável, o quadro possa
revelar-se uma forma problemática” (p.73)
- “[...] a definição albertiana do quadro como janela aberta sobre a história enuncia uma
equação essencial, fundamental, que regula uma ordem possível da representação: tudo
o que pode ser dito pode ser visto, e reciprocamente. Nesse caso, visível e dizível
coincidem” (p.73-74)
- “[...] coube a Wittgenstein expressar a fórmula que equivale àquela de Alberti [...], ou
seja, a proposição 6.522 do tractatus, à qual já fiz alusão indiretamente: ‘Há,
certamente, o inexprimível. Isso se mostra’” (p.74)
- “Cruzamento do que pode ser dito com o que se vê e do impossível de ser dito com o
que se mostra, onde, termo a termo, vêm se opor o possível e o impossível de ser dito, o
que se vê e o que se mostra” (p.74)
- “Observo que, com base na proposição wittgensteiniana que enuncia, em suma, que o
que não pode ser dito reaparece em outro lugar, poder-se-ia propor diretamente uma
fórmula do tipo: o que não é absorvido pela linguagem retorna no visível, uma espécie
de apropriação da alucinação visual (o que não quer dizer visível)” (p.74)
[Olhar]
- “Nesse sentido, o problema colocado pelo fato de se fazer um filme, uma ficção sobre
Auschwitz, que mostra Auschwitz, não é esse de se cometer um ato profanatório; o
problema é inicialmente que isso “humaniza” o horror e que, na realidade, trabalha-se
assim, em perfeita inocência, para fazer Auschwitz entrar no patrimônio cultural da
humanidade” (p.76)
- “Shoah não é um filme sobre a shoah, ele é uma obra daqueles que foram empurrados
para as câmaras de gás, ele erige diante de nós o olhar daqueles que não sobreviveram.
Melville dizia em Moby Dick que o livro é o meio que têm os mortos de se endereçarem
aos vivos; Shoah é o meio que têm os mortos de se endereçarem aos vivos. Esse filme é
a obra dos mortos, dos homens, das crianças e das mulheres mortos pelo gás letal,
daqueles que, estando no centro do horror, nada viram. Para ver é preciso distância. E,
se digo que esse filme é o olhar dos mortos, não é para fazer estilo ou literatura, é
porque materialmente esse filme procura, obstinadamente, estar o mais próximo
possível e apreender os olhos dos mortos das câmaras de gás, o que os vivos não
puderam ver” (p.76)
- “[...] ao contrário do que pretende Godard e de seu amor cristão pelas imagens, o
filme de Lanzmann não defende uma interdição da representação. Ele é, ao contrário, a
obra que vai mais longe naquilo que é possível mostrar, ele se mantém o mais perto
daquilo que nenhum olhar soube sustentar. O que ele mostra é o próprio olhar” (p.77)
- “Shoah é, visualmente falando, a obra visual mais audaciosa sobre a shoah. Assim,
longe de fazer da rarefação um valor, esse filme chega o mais perto do visível, à borda,
essa borda, esse “o mais perto” oriundo do fato de que as testemunhas principais sçai is
sobreviventes dos Sonderkommandos, que se encarregavam de carregar e descarregar as
câmaras de gás, ou os oficiais nazistas que controlavam a administração diretas dos
crematórios. Shoah é um filme que filma as entranhas da shoah” (p.77)
- “[...] eu diria que as imagens desse filme são mais verdadeiras, mais reais, sobre as
câmaras de gás do que todas as cenas reconstituídas por Spielberg ou Benigni” (p.77)
- “Shoah é o filme que mostra as câmaras de gás. Verdadeiramente. Não se vê nada? Era
assim, precisamente, não se via nada. E quem teria podido ver isso? Não as vítimas que
estavam empilhadas ali dentro. Tampouco aqueles que estavam do lado de fora. De toda
maneira, isso se passava no escuro. Ninguém podia ver. Ninguém viu nada” (p.77-78)
- “Como mostrar isso que não tem imagens e que ninguém viu?” (p.78)
[o.p.a.]
- “Objeto perdido sem imagem: não se vê aí certa semelhança entre esse o.p.a.a.,
“objeto psico-atmosférico-anamórfico”, de Dali, e o o.p.a., “objeto pequeno a”, petit tas,
de Lacan? Examinando com atenção seus detalhes, estou certo de que vocês poderiam
reconhecer muitas semelhanças entre eles” (p.79)
- “[...] Lacan, ao inscrever o objeto a, inscreveu no discurso analítico aquilo que, graças
ao franqueamento do acesso ao que se pode chamar “o horror”, responde ao quebra-
cabeça de que falei e que deixou a filosofia do pós-guerra numa situação embaraçosa
quanto a saber, em termos próximos aos de São Bernardino, como fazer o impensável
entrar no pensamento, o irrepresentável entrar na representação, a ausência entrar na
presença, etc.” (p.79)
- “a é uma resposta sem Freud, que a data da sua morte, em setembro de 1939, deixa na
soleira do que é para nós, hoje, o século XX” (p.79)
- “a, uma pequena letra com a qual Lacan inscreveu, na psicanálise, que o
irrepresentável, que o impensável aconteceu nesse século. Portanto, que o século XX
aconteceu” (p.79)
- “a é objeto da arte do século XX e o lacanismo, que poderia se chamar a Psicanálise
do século XX, caminha ao lado da arte do século XX. Eis o que me guiou” (p.79)