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História

A arte de inventar o passado


Ensaios de teoria da História

Durval Muniz de Albuquerque Júnior

EDUSC
I

DA TERCEIRA MARGEM EU SO(U)RRIO:

com fre

. 1

estes campos do saber partilham, no momento, con a


pelas

ou enfatizar

afastando-os de qual -
que considerem ser

19
algum evento humano.
No campo da historiografia, este termo ganha destaque com o progressivo afastamento dos

trans-
a continuidade e pressu

anos 1930 e 1950.2 sando-o


sempre mento, progresso de um dado

ele

questiona- de do homem e da

dos historiadores com a

tanto quanto a re-

20
, ou seja, inventiva do

nuidade de pensar que a linguagem apenas espelha o


transparente a dizer as coisas como realmente
guagem, num

linguagens no centro das

coletivas, em conceitos macro


A chamada
a
historiografia influenciada pe -estruturalistas, entre eles, Michel Foucault,
coeur e Michel de
tas como culturais ou mais ligadas ao

Ob-
pensados como
-nos,
nomeiam-nos, classificam- -nos a ver e a dizer.

conc
Arno
Wehling3
Certeau, 4

em seu texto como "o ato de desco


tros

21
jeto como algo que preexiste ao
discurso, como algo que, estando oculto, seria revelado ou espelhado pelo discurso do historiador.
ria
, o ceticismo ou o construcionismo ou a

Bruno Latour e Michel Foucault5


mundo da
material e objetivo e o que seria sim
moderna e um dos seus

considerar que os pensadore -modernos eram atrasados justamente por


feras da natureza, da sociedade, da cultura e da
nhecimento, no ocidente, caminhou para separar radicalmente estas

sempre um misto de natureza, cultura e sociedade, o homem foi colocado do lado da cultura e
-
-la do plano do divino, tornando-a um todo imanente regido por
suas pr

transcendente da sociedade e da cultura, dessacralizando-as, mostrando-as c


humanas imanentes, para em se
truturas que
o aprisionavam. Latour e Callon6 ocesso de se
subjetividade/sociedade de processo de purifica Kant. 7 O procedimento

aceitar as misturas, as ga

22
hompson, o conceito e a
8

realizado com a ajuda da ex


faculdades humanas.

A busca deste cen tindo


, como propuseram os positivistas, os
marxistas, a fenomenologia, todos os considerados materialistas, objetivistas, realistas ou
racionalistas, como pode partir da representa

existencialis

exposta por Wehling no texto citado anteriormente, que aparece em texto de Ciro Flamarion
Cardoso9 como sendo os paradigmas rivais ou que se materi nhestra

Ponto de clivagem
e de encontro

<-------------------------------------------------------------------------- ------------------- >

Figura 1 - Retirada de LATOUR, Bruno. ensaio de antropologia si


34, 1994. p. 77.

23
de, a objetividade, a
-lo em sua totalidade ou
tal como ele foi. Mas o defeito es
cial,

atividades sociais produziram um dado evento. Os documentos his

de dado acon
vezes, como sugere Hobsbawm, 10

mente

e, mui

extradiscursiva, passa-
realidade entendida como materialidade extradiscursiva e aprisionada no passado, que vai ser
descoberta, decifrada, revelada, resgatada, retomada, explicada, interpretada pelo discurso do

deixou com as perguntas adequadas, munido dos concei


passado oculto revelar-

Como nos fala um dos mais respeitados historiadores sociais contem


Thompson:

conceito
sucessivas, de um lado, e a pes da

24
priedades determinadas. A

apenas algumas [seriam] adequadas.


falsas todas

-
que dirigiria o pro
- -la.

dade e de uma dizibilidade social e historicamente


localizada. 12

si mesma
um sentido a ser revela -

seu texto nada do que ficou arquivado do


passado o foi inocentemente. O arquivo, seja de tex

por puro acaso foi produzido no seu tempo obedecendo a intencionalidades, ou seja, as
-

25
rio do que nos faz parecer o texto de Thompson, as contradas nos arquivos,

eventos e, no mesmo ato, esquecemos ou jogamos para os bastidores outros tantos


acontecimentos.
rico, de qualquer objeto ou
iscursos que o

do do

cair no extremo de negar qualquer materialidade para o fato ou acontecimento. Os fatos seriam
vas, os sujeitos e os objetos existiriam apenas no e como texto, como

mitologias. 15
Talvez para sairmos deste impasse, desta dicotomia moderna, que

- redivivos, 16 que defendem a absoluta


impossibilidade de as palavras dizerem as coisas e de estas serem definidas por aquelas,
da do lado
do da realidade, da verdade e do fato. 17 Talvez
possamos sair desta necessidade de nos filiarmos de um lado ou de outro destes pretensos
paradigmas rivais se, inspirados nas
possibilidade de uma terceira margem,19 uma margem onde as duas anteriores, fruto das atividades

turar no fluxo, no turbilhonar das


-

26
mos este impasse com um acontecimento, e que
este se define, como faz Lacan, 20 por uma que de algo, pela ruptura com a lei e
com a seme banal que seja, mas
este acontecimento, que no in l, signo sem sentido,
desnorteam ncia viril, nar
relata

Lacan, 21 que um
dia toma a ca
-
ultural. A dor da partida do pai logo deve ser explicada, entendida,
justificada, deve tornar- sociedade e

como elemento de duto

manas, individuais e col


nunca podem ser reduzidas a um dado aspecto da r

represen o lucro devido. Todo evento his

sociedade, nem mesmo objeto ou sujeito.

27
Hipercomensurabilidade (pós-modernos)

Incomensurabilidade (Habermas)
Tensão insuperável (fenomenologia)

Contradição (Hegel)
Trabalho de
Separação (Kantismo) purificação

Distinção (Hobbes e Boyle)


Pólo natureza
Dimensão moderna Pólo sujeito/sociedade

Trabalho de
Quanto mais os quase-objetos mediação
Se multiplicam, mais cresce a
Distinção entre os dois pólos. Multiplicação dos
quase-objetos

Dimensão não moderna

Figura 2 - Retirada de LATOUR, Bruno. ensaio de antropologia


34, 1994. p. 58.

-la desta terceira margem? significa primeiro pensar que a

narrativa, mas se passa

formas estabelecidas de objetos e


sujeitos, que mistura aspectos que aparecem separados, classificados e ordena

cristalizados, definidos, tidos como materiais e se, de outro lado, na outra margem, temos as formas de sujeito
belecidas, subjetividades
t

22 arrasta estas formas estabilizadas para o fluxo,

28
para o redemoinho do tempo, tornando-
e diferenciada,
que sempre visualizamos apenas parcialmente e pomos em evi mentos que o

figu
turam, remoinham-se, enovelam-se, hibridizam- samos, se as
zem o rio, mas

engano costumamos
tanto quando colocamos os objetos, a realidade, a materialidade como
sendo seu ponto de partida, como quan

possui objetos e sujeitos porque os fabrica, inventa-os, assim como o rio inventa o seu curso e suas margens
mesma forma que as margens
constituem parte insep
faz crer as dicotomias que atravessam nosso campo de estudo
ria da margem di
habitar a margem do objetivismo ou a margem do subjetivismo, a margem da natureza ou a margem da

acontecer articula e relaciona todos estes as -

historiografia, como nos diz Hartog, 23 o pode ser mais a barca de Ulis
lendas e viver as lend

in-ventando, ao mesmo tempo, o real, o grego e gem que conecta e mistura


que interpenetra coisas e repre

29
, como o pai da terceira margem, a
navegar indefinidamente, a nunca aportar em porto seguro -lo. Ancorar em uma
das margens, do objeto
mudadas de forma pela passagem do tempo. Como afirmava , "para os que entram nos mesmos rios,
24 25 pensar a possibilidade
do saber sem referentes fixos, sem fundamento, um
encantados e encantadores pelas e das sereias, do
estabelecimento de pontes passageiras es
estruturais que tanto se observam entre os objetos, como nas subjetividades, que tanto podem ser
observadas na natureza, como na cultura. Precisamos estar atentos para o fato de que no rio do tempo nem
sitos, assoreamentos, o aparecimento de ilhas de
onde se pode empreender uma arqueologia das camadas constitutivas da nossa 26 Os
eventos, como nos diz Veyne,27 es
28 em que
podemos estacionar nossa canoa provisoriamente para podermos divisar horizontes de expectativa e analisar
29,

que nos encontramos, dos fluxos que nos arrastam, dos abismos em que podemos naufragar, momento de
descanso onde podemos elaborar projetos e buscar alternativas de caminhos nes
historicidade. Mas, como nos lembra Ginzburg, 50

estrutura, processo ria, diferentemente do que pensavam os modernos, nem

em furos,
ar em nada ou em lugar nenhum. No rio, como

30
Guattari, 31

.
bitada pela semelha
re dade, pela descontinuidade,

lar um fato

realismo e o cons

enfatizou exageradamente o resultado fi


objetos e

antes que se chegasse a este estado de pureza e se de

m composta pela poeira


dos detalhes, da singularidade dos nomes e das coisas. 32 Quando ao final de nossa narrativa, se o evento
aparece em seu corpo inteir

aves tes cores, eventos de

31
Pensar assim seria pensar a possibilidade de o bordado fazer-
achar que se pode tecer
escrever
nem sem as ferramentas que a cultura historiog nos proporciona, inclusive os conceitos. Tecer, costurar,
bordar, escrever,

palavra. Qualquer produto, que aparece

Certeau, 33

ural, institucional; uma disciplina feita de

perguntar, portanto, se a bordadeira ou a historiadora ivista,


objetivista ou subjetivista -jam, elas

Trabalho de purifica

-
particular.

Figura 3 - Retirada de LATOUR, Bruno. ensaio de antropologia


34, 1994. p. 77.

32
sociedades e culturas de tempos distintos. Colo
presente, o historiador tem a tarefa de construir com sua narrativa uma canoa que possa mediar, fazer se
tocar as margens do passado e do futuro. Ao habitar o tempo, como passa a fazer o pai da terceira margem,

canoa daquela historiografia que era escrita em nome de um futuro, que desprezava o presente para viver

os lados. Desde os textos dos fundadores da Escola dos 34

deixados pelo

os tempos e diferenciar, como queria Kant, 35


idade de
horizontes outros , mas
dependendo

heterotopias. 36
trumento a
fundamental
-

33
ficado, pela sign
materialidade

linguagem, que possui espess

inguagem, pois todo dia esbarramos em coisas que nos


-
lhes xingar precisare -la. Ao
amos de fabricar a natureza, in
objetos tanto para a natureza, como para a cultura, somos fabricados por elas, somos seus produtos e
produtores. A lin
sempre como cultural e social
vocais.
talvez por ter sido
seu primeiro livro de contos, pequenas his
diferen evam os personagens a quererem domar este corte no tempo
37 em busca de realizar o luto ou nietzscheanamente38 em
busca de produzir o esqueci a coisa
bruta, da materialidade em estado puro, do dilaceramento da realidade sem justificativa. O homem narra e

-as, captura-as, agencia-as. Como nos diz

estabeleci
margens da inventividade, esta terceira margem em que se transporta sentido, veiculam-se diferentes formas
mo-las. Somos seres da terceira margem do rio, seres que, na con-

34
-barcos, que privilegiam um ou outro
acidente do percurso, um ou outro elemento que s dizer que nossa
finitiva, que ancoramos no porto final da verdade derradeira ou que retorna
omposto,
descobriremos o momento em
assim
caos, agroval, 39 onde todas as fo em. Se o
materiais
podem res
tro inesperado e acidental de elementos que jaziam separados. O momento
de
contornos definidos

,
sociedade e o discurso.
Como historiador, historiador de 40 habitante desta terceira margem, sei que sou rio, pois sei
sorrio, pois a
nica de meu tempo me faz praticar meu oficio como um lugar de

sei que n

oduzido

35
-las, a elas resistir, com elas me divertir e divergir, muitas vezes com um simples
sorriso de ironia. Sou discipli -
go, arrasto em meu caminho

eu sou rio e eu sorrio, eu, natural e humano, cursivo e discursivo, in

NOTAS
1 BANN, Stephen. Unesp, 1994; 0'GOR-MAN, Edmundo.
Paulo: Ed. da Unesp, 1992; STAR.O-BINSKI, Jean.
Rio de Janeiro: Editora 34, 1994; KATZ, Jonathan Ned.
Ediouro, 1996; HUNT, Lynn. a in
ed. Rio de Janeiro: Ed. da
FGV, 2005; GONDIM, Neide.
de. cife: Massangana, 2001; CIRNE, Moacy.
-DO, Leila
Bicalho. O
Rio de
Janeiro: Ed. da FGV, 2005; CASTRO, Celso. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992; STENGERS,
Isabelle. Rio de Janeiro: Editora 34, 2002; ALBUQUERQUE, Roberto Cavalcanti de.
Rio de Janeiro: J. Olympio, 2000; FAVARETTO, Celso.
Edusp, 2000; SCHNEEWIND, Jerome. cida. A

l. Rio de Janeiro: Mauad, 2001; HUSCHMANN, Micael;


PEREIRA, Carlos Lima.
Belo Horizonte: Ed. da UFMG, 1999; LESSA, Renato. A

36
NEIBURG, Frederico; PEREIRA, Vera.
pectiva, 1996; SACRISTAN, J. Gimeno. Rio de Janeiro: Artmed, 2005;
Campinas: Papirus, 1999; LAFON, Guy.
1998; SPANG, Rebecca. aulo: Record, 2003.

2
economia patriarcal. 21. ed. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1981; PRADO JR., Caio.

FURTADO, Celso.

3 WEHLING, Arno.

4 DETIENNE, Marcel. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1998; HOBSBAWM, Eric; RANGER, Terence.
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997 e CERTEAU, Michel de.

5 LATOUR, Bruno. Rio de Janeiro: Editora 34, 1994 e FOUCAULT, Michel.


Paulo: Martins Fontes, 2002.

6 CALLON, Michel; LATOUR, Bruno (Org.).

7 KANT, Emmanuel. Madrid: Alianza, 2003.

8 THOMPSON, E. P. Rio de Janeiro: Zahar, 1981. p. 49-50.

9
13. ed. Rio de Janeiro: Elsevier/Campus, 1997. p. 1-23.

10 HOBSBAWM, Eric; RANGER, Terence. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997.

11 THOMPSON, E. P. Rio de Janeiro: Zahar, 1981. p. 49.

12

13 DERRIDA, Jacques. - -13.

14 Sobre os tropos prevalecentes na narr

15

37
16
er cado a outrem". Ver CASSIN,
Editora 34, 2005 e BARNES, Jonathan.
2003.

17 Sobre o lugar da literatura na modernidade, ver: FOUCAULT, Michel. Rio de Janeiro: Forense-
e MACHADO, Roberto. a filosofia e a literatura. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000.

18 15. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.

19 Aqui nos referimos especificamente ao conto 15. ed. Rio de


Janeiro: Nova Fronteira, 2001. p. 79-85.

20 p. 116.

21 Ibid.

22 Referimo- entre 540 e 470 a.C, seus ensinamentos teriam sido reunidos numa obra chamada
em que em um dos mais conhecidos fragmentos afirmava: "Para os que entram nos mesmos rios, afluem sempre
- Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1980. p. 51.

23 Belo Horizonte: Ed. da UFMG, 1999.

24 Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1980. p. 51. Ver ainda: SCHULER, Donaldo.
Porto Alegre: L&PM, 2001.

25

26 Inspirado na genealogia nietzschiana, Michel Foucau


Ver: FOUCAULT, Michel.
______ . 4. ed. Rio de
Janeiro: Graal, 1984. p. 15-38.
27 VEYNE, Paul. -25.
28 SAHLINS, Marshall. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994.
29 KOSELLECK, Reinhart. Paris: EHESS, 1990. p. 308.

30 GINZBURG, Carlo.

31 - o liso e o estriado.
34,1997. v. 5, p. 179-214.

32 Ver a interessante resposta que Michel Foucaul


intitulada: A poeira e a

38
nuvem. In: FOUCAULT, Michel. Rio de Janeiro: Forense-Universi -334.

33 ________ .
ed. Rio de Janeiro: Forense- -119.

34 Ver BLOCH, Marc. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001 e FEBVRE, Lucien.

35 KANT, Emmanuel. Madrid: Alianza, 2004.

36 fruto
. Rio de Janeiro:
Forense- -422.

37 FREUD, Sigmund. Madrid: Alianza, 1999.

38 sobre a utilidade e os inconve


-178.

39 Agroval -

de favores que se estabelece; no mutualismo; no amparo que as es


completa entre os rascunhos de

de rapa-ca rer grudar nas coisas. Rudimentos rombudos de


mes das
o de um mussum sem estames, que renega ter asas.
A letas que procuram uma nesga de sol.

cios e cantos
redondas...

BARROS, Manoel de. Livro de p -coisas. In: _____ .


-234.

uma
-

39

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