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AVENTURAS DE ANTROPóLOGOS EM CAMPO OU

COMO ESCAPAR DAS ARMADILHAS DO MÉTODO

Ruth C. L. Cardoso

A reflexão metodológica no campo das c1encias soc1a1s vem


tomando um rumo bastante curioso. A discussão sobre o papel do
investigador, seu envolvimento e as conseqüências disto para a
pesquisa são enfatizadas, ao mesmo tempo que se diminui o espaço
do debate propriamente metodológico. Quase tacitamente estamos
aceitando o ecletismo como um bom caminho para o conhecimen-
to e qualquer pergunta sobre as limitações impostas por este ou
aquele método é impertinente. Um indisfarçado pragmatismo (mui-
tas vezes confundido com politização) dominou as ciências sociais
contemporâneas e desqualificou como ocioso o debate sobre os
compromissos teóricos que câda método supõe. Concentra-se o inte-
resse na relevância do tema estudado e na forma pela qual o inves-
tigador se engaja no estudo. Um pesquisador capaz de uma " boa"
interação com as minorias ou grupos populares será sempre um
porta-voz de seus anseios e carências, logo, da sua "verdade" . _Q__
c itéri at:a- a;v..al' s_p~e..s._q.uisa ' pr.incipalmen1! ua capacidade
de fotogtafaL.a realidade vivida. Sua fun cão é tornar visível aguel~s
situações . de vida 1J..e estão escondidas e que, só por virem à luz,
são elementos de denúncia do statu quo.- -~ - - - - - --
Não deixa deser interess; nte, para nós antropólogos, esta
valorização da observação participante, mesmo que, como escreveu
Eunice Durham, ela caminhe para a "participação observante". En-
tretanto, como tradicionalmente mantemos maiores compromissos
com estas técnicas âe trabalho, estamos também obrigados a refle-
tir sobre sua utilidade, sem , entretanto, esconder que estamos lison-
jeados pela legitimação que' recebem (e recebemos) atualmente.
Para tentar esta reflexão, convém pensar sobre o porquê desta
ênfase nas análises qualitativas que são vistas como substitutas dos
sofisticados métodos quantitativos. Certamente esta oposição q.u.ali-
ta ivo uantitativo não corres.p_onde-a-.mQ<ios onostos e inconciliá-
e ver a realidade. São modos diversos de resgatar a vida social
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iluminar aspectQs n-o par.entes_e não conscientes p~ra estruturais e as práticas sociaiS. Aníbal Quijano, depois de todos
s tores envohridos. Entretanto, grande parte da çomunidade cientí- os seus célebres trabalhos sobre a economia marginal e seus efeitos
fica esteve mobilizada em torno de uma polêmiça que supunha sobre o capitalismo dependente, publica um livro que se chama
irredutível esta opqsição, porque o modelo positivíst;;~ - dominava a Vidas Marginais, onde recolhendo histórias de vida pretende des-
cena e ditava regras. 1 vendar as teias que ligam os macroprocessos económicos e os com-
Na América Latina, o positivismo quantitativista não t€;!ve muito portamentos concretos. O mesmo movimento ocorreu no Brasil, no
sucesso. Ficou limitado a alguns grupos acadêmicos que, entretanto, início dos anos 60, quando renasceu o interesse pelo estudo de
tiveram papel importante como críticos das interpretações globali- favelas e bairros periféricos justamente porque se pretendia des-
zantes e nem sempre bem fundamentadas. Mas, ao lado destes cen- crever a metrópole e compreender por que o desenvolvimento pre-
tros que garantiam uma competência específica para quantificar, visto como excludente não produzia a revolta esperada entre os
sempre existiram os núcleos de inspiração histórico-estrutural (mar- marginais.
xistas ou não), que buscavam compreender as particularidades de No campo dos estudos sobre a classe operária também há
nosso continente e para tal elaboravam modelos de explicação glo- uma inflexão no mesmo sentido: diminui o número de estudos
balizantes. E, convém ressaltar, estes dois inodos de fazer ciência sobre sindicatos ou relações industriais e aumenta o daqueles que
produziram resultados importantes e inovadores. procuram reproduzir o cotidiano dos operários, e cujo objetivo é
Mas os anos 60 foram de crise intelectual e de crítica às formas desvendar o enigma de um suposto conformismo político. E o inte-
convencionais de conhecer e, quando estas posturas imigraram para resse principal da pesquisa engajada passa a ser mostrar os sinais
o Sul do Equador, produziram efeitos bastante particulares. velados de inconformismo e resistência que são delimitadores de um
Um bom exemplo destes efeitos é o desenvolvimento que espaço operário. 2
tiveram os estudos sobre mercado marginal de mão-de-obra e peri- Em quase todos os temas que despertaram interesse nos últimos
ferias urbanas. Eles dominaram a cena intelectual por muitos· anos , anos (movimentos sociâis, participação política, estudos de bairros
o que se deve ao fato inegável de que as colocações teóricas sobre periféricos, conjuntos habitacionais, etc.), os cientistas sociais estão
a marginalidade urbana foram extremamente importantes e criativas envolvidos em projetas que supõem a utilização de entrevistas lon- .
e, quando incorporaram o referencial marxista, forneceram uma
interpretação muito sugestiva das sociedades dependentes. Entretan- 2. Analisando maiS' profundamente estas leituras que procuram negar o con-
to, o desenvolvimento teórico da teoria da marginalidade contri- formismo operário pela descoberta de um inconformismo latente, seríamos
buiu cada vez menos para o conhecimento dos fenômenos concretos levados a discutir o modo como estão utilizando o conceito de classe. Convém
distinguir entre o conceito marxista, que supõe a luta de classes como um
e da verdadeira feição das metrópoles latino-americanas. As pre- processo de construção da posição de classe com um lugar político, e as
visões polí~icas, decorrentes das análises de inspiração marxist~ e interpretações mecanicistas e sincrónicas que, apesar de assumirem um ex-
que procuravam novos suportes para a transformação revolucioná- presso engajamento com a causa proletária, tomam a situação de classe como
ria, chegaram a um impasse por não conseguirem explicar os com- i.Jm estado a ser descrito. Por este caminho, eliminada a dialética entre as
portamentos concretos. t neste momento que as discussões sobre classes, qualquer traço cultural distintivo é visto como resistência e a cons-
ciência da posição de explorado se transforma na consciência de classe. Mui-
a função do exército industrial de reserva ou a superpopulação tas vezes, a coleta de material qualitativo se justificou como forma de detectar
relativa. das cidades com terciário inchado são substituídas por pes- esta identidade oculta dos trabalhadores, mas, operando com uma noção
quisas que buscam uma lente de aumento para os comportamentos estática e descritiva da classe, não se consegue ultrapassar as interpretações
banais, onde deveriam estar os elos que interligam os processos globais vigentes. O que era lido como alienação e conformismo (futebol,
festas, malandragens, submissão) passa a ser lido como resistência. O con-
vívio do pesquisador com os atares que para ele representam o proletariado
1. Mesmo no campo da antropologia as entrevistas e histórias de vida foram é, freqüentemente, uma tentativa de ouvir e tornar público um discurso oculto
vistas com desconfiança e muitos esforços foram feitos para demonstrar que que, ao ser revelado, manifesta uma identidade atemporal. A intenção destes
o método científico, baseado na concepção positivista de objetividade, podia pesquisadores é ler através das linhas tortas do discurso cotidiano os sinto-
ser aplicado ao estudo dos povos primitivos. mas que permitem manter intocável e inflexível o paradigma teórico.

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gas e ampla convlvencia com os informantes . É uma especte de para enriquecer as interpretações. Este modo de ver o trabalho
volta ao significado em seu estado puro, ao discurso "real", que científico está bem perto da clássica formulação do empiricismo
deve permitir descobrir novos sentidos não previstos pelas análises positivista: dados bem coletados devem falar por si mesmos.
macroestruturais. Considero muito saudável a volta ao trabalho de campo e ao
Porém, esta voga de novas técnicas de investigação e o inte- respeito pelo dado empírico, mas quero ressaltar o descompasso
resse pelos atores sociais de carne e osso não se fizeram acompanhar entre estas iniciativas e a assimilação da discussão sobre a natureza
de uma crítica teórico-metodológica consistente. Respondiam a um do conhecimento científico, o papel da subjetividade como instru-
mal-estar, a um desencanto com as generalizações apressadas e os mento de conhecimento, etc.
esquemas explicativos muito abstratos. Mas a volta ao concreto se Pelo menos em um ponto esta revisão era e é oportuna: é
deu · pelos mesmos caminhos já trilhados pela ciência positivista. preciso repensar a noção de determinação e de processos estru-
Os anos 70 se caracterizaram pelo aparecimento de várias turantes para reconhecer um espaço para os sujeitos sociais. A
releituras do marxismo que dialogavam com a dureza da ortodoxia redução do marxismo a um economicismo mecânico transforma os
que dominara este campo. Entretanto, na América Latina, as críticas atores sociais em objetos e o comportamento em ações automatiza-
ao marxismo tiveram pouca influência na prática política. Sem ter das . Sem uma revisão destas distorções teóricas, é difícil conseguir
chegado ao Estado de Bem-Estar Social e suportando um regime um bom rendimento das técnicas qualitativas de investigação .4
militar repressor, os intelectuais brasileiros estavam distantes da Mas o gosto pelo empírico tem suas conseqüências, e os pes-
efervescência crítica que atingia a Europa e os Estados Unidos. Os quisadores se deram conta deste descompasso, ainda que não o
pilares mais gerais da prática política marxista continuavam a ser enfrentassem de modo sistemático. Sintomas do mal-estar são as
úteis para interpretar nossa realidade, onde crescia a desigualdade longas introduções e os numerosos artigos sobre a relação pesquisa-
na distribuição de renda e aumentava a repressão. dor/ grupo pesquisado. Sentia-se a necessidade de elaborar inte-
Entretanto, outros temas nascidos deste movimento crítiCo fo- lectualmente esta relat;ão justamente porque a concepção tradicio-
ram assimilados aqui . Em primeiro lugar, incorporamos a discussão nal de neutralidade científica já não parecia útil. A defesa do enga-
sobre a politização da ciência e a necessidade de engajamento dos jamento político e a demonstração de que o conhecimento não pode
cientistas e, por outro lado, caminhamos facilmente no sentido da se libertar de uma certa dose de ideologia colocaram quase como
exploração das técnicas qualitativas de investigação, uma vez que uma exigência a definição do pesquisador como um aliado dos
nossa formação universitária sempre acentuou sua utilidade . Os grupos e minorias discriminadas, que também foram priorizados
núcleos quantitativistas no Brasil nunca foram muitos e se restrin- como objeto de estudo. Entretanto, esta intensificação da participa-
giram a algumas áreas do conhecimento. ção foi justificada por razões políticas e não pensada como instru-
Tudo isto criou uma situação onde não houve clima para um mento do conhecimento .
reexame dos instrumentos com que se constrói o conhecimento . Se, O positivismo continuou a imperar nos cursos de metodolo-
nos Estados Unidos, a valorização do dado qualitativo veio conju- gia e não se colocou em questão a natureza dos dados obtidos atra-
gada com o debate sobre as formas de conhecer, colocando em vés destas novas formas de coleta. Negamos a neutralidade do
discussão o princípio positivista da neutralidade e objetividade do pesquisador, apoiamos com entusiasmo seu conipromisso com o
pesquisador, aqui estas técnicas foram revalorizadas sem maior grupo estudado mas continuamos a conceber "os dados" como for-
inquietação. 3 A crítica à ciência vigente acentuou sua pobreza técni- mas objetivas com existência própria e independente dos atores.
ca e seu distanciamento do real, apontando para a necessidade de
renovar as formas de coleta de dados como um passo fundamental tropologia ; e Paul Feyraband, Against Method. 1.a ed., Londres, Verso Edi-
tion, 1978, que propõe uma nova visão do método científico.
4. Ê esta uina das razões pelas qu ais encontramos, freqüentemente, nos es-
3. A título de exemplo lembro os seguintes traba lhos: Deli Hymes (Org.) , tudos baseados em trabalho de campo, um desencontro entre as introduções
Reinventing Anthropology . 1.a ed ., Nova Iorque, Vintage Books, 1969, que teóricas e a apresentação do material de pesquisa. O quadro teórico é muito
especificamente busca uma postura metodológica dentro do campo da an- mais declaração de princípios que uma construção de referências analíticas.

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Também colaborou para minimizar o debate sobre esta questão já não podem ser enriquecidas pela investigação. É para quebrar
a forte presença do estruturalismo em nossa cena intelectual. Tanto esse círculo que Feyrabend reivindica, em seu livro Against
pela ótica de Lévi-Strauss como pela de Althusser, os sistemas sim- Method, 5 uma teoria do conhecimento anarquista. A capacidade
bólicos se impuseram como objetos privilegiados de análise. Estas de se surpreender, que deve ser inerente ao trabalho do cientista,
novas perspectivas ou distinguiam circuitos diversos de comunica- fica amortecida quando se propõe a fusão total do discurso do
ção, onde a troca de símbolos ganha autonomia, ou instâncias rela- investigador com o do grupo investigado. Enunciado a partir de \
tivamente autónomas que repõem a questão da determinação das uma posição social determina?a, este discurso expre~sa int~ress~s .
superestruturas. A instância ideológica ganhou espaço nas pesqui- contraditórios e é sempre parc1al e fragmentado. É a s1stemat1zaçao
sas e com ela as técnicas de análise do discurso também foram que a ciência propõe que~ara além destes frag- \'
privilegiadas. A contribuição da lingüística foi , neste últimos anos, mentos na busca de uma explicação mais global, porém, sempre
de fundamental importância para as ciências sociais, porém, as provisória.
técnicas mais difundidas de análise da narrativa não puseram em Não vou àprofundar agora esta discussão, que tem aspectos
causa os princípios positivistas. Pelo contrário, a delimitação de um controversos e complexos. Quero apenas recuperar o velho modelo
corpus discursivo como suporte primeiro da análise sociológica de observação participante (que supunha neutralidade do pesquisa-
reforça a evidência da externalidade do objeto e dificulta a inte- dor) para compreender por que, atualmente, ele se transformou em
'?'I)
gração entre o d~o d~-!9!es e seu c~nto. Os modos participação observante. Isto é, por que, de adjetiva, a participaç~o
tradicionais de exercitar a observação participante promoviam a passou a substantiva e, neste movimento, se reinventou a empatia
participação como forma de desvendar os significados simbólicos como forma de compreender o outro, sem que Weber seja citado.
de outras culturas. Uma espécie de mergulho no fundo do outro O problema não existe apenas porque a pesquisa engajada
que é condição para o conhecimento, mas que, entretanto, dev:e ganhou espaço, mas é Fesultado deste desinteresse pela discussão
sempre ser completado pela observação dos comportamentos e de metodológica, como já assinalei.
sua recorrência.
A interpretação que se constrói sobre análises qualitativas não \
O estruturalismo contribuiu para uma maior sofisticação da está isolada das cond.i.ções em que o entrevistador e o entrevistado
análise de discursos, que não foi acompanhada por uma renovação se encontraram. A coleta de material não é apenas um momento
no campo da observação das práticas sociais. Continuamos a fazer de ~cumuÍação de informações, mas se combina com a reformu-
entrevistas e histórias de vida sem aprofundar a discussão da rela- lação de hipóteses, corri a descoberta de pistas n_ovas que são ela-
: ção entre o discurso dos atares e os sistemas estruturados, fossem boradas em novas entrevistas. Nestas investigações, o pesquisador é
eles entendidos como sistemas simbólicos ou como a estrutura o mediador entre a análise e a produção da informação, não apenas
de classes. como transmissor, porque não são fases sucessivas, mas como elo
Por outro lado, a intensificação da participação dos investiga- necessário. E, no Brasil, não houve muito interesse por desvendar
dores foi justificada, menos como forma de aproximar para conhe- estes processos. Tal como nos manuais tradicionais, a subjetividade
cer e mais como identificação de propósitos políticos entre pesquisa- é abolida e os discursos são analisados como exteriores aos atares~
dor e pesquisado. Isto reduz a pesquisa à denúncia e transforma o
que os produziram. As técnicas de investigação transitaram sem
pesquisador em porta-voz do grupo. E, como conseqüência, elimina questionamento entre as pesquisas com ou sem observadores parti·
um dos passos importantes da pesquisa participante, que é o estra- cipantes. Entretanto, várias orientações teóricas não-positivistas for-
nhamento como forma de compreender o outro. Mais adiante volta-
mularam novos lugares para a subjetividade do observador . E não
rei a esta questão metodológica. Agora quero discutir os efeitos
se trata do subjetivismo descontrolado invadindo o campo da refle-
da pesquisa, que é também ação política.
xão racional, mas sim da natureza in:tersubjetiva da relação entre
As pesquisas participantes são, muitas vezes, apresentadas
\ como formas de levar ao grupo a consciência de sua situação, mas
partem de interpretações políticas que ficam reificadas e por isso 5. Paul Feyrabend, Against Meth od . Londres, Verso Edition, 1978.

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o pesquisador e seu informante. Uma entrevista , enquanto está sendo Este ponto é importante porque o resgate da subjetividade
realizada, é uma forma de comunicação entre duas pessoas que como instrumento de trabalho não deve ser justificativa para a
.::stão procurando entendimento. Ambos aprendem, se aborrecem, indefinição dos limites entre ciência e ideologia e, portanto, não
se divertem e o discurso é modulado por tudo isto. devem servir de desculpa para repor a velha oposição entre verdade
O artigo de Mintz , "Encontrando Taso, me descobrindo" ,G e mistificacão. A relacão intersubjetiva não é o encontro de indi-
como o título indica, descreve esta relação com grande respeito . víduos autÓnomos e ~uto-suficientes. É uma comunicação simbó-
Contra seus críticos positivistas, Mintz afirma a importância da lica que supõe e repõe processos básicos responsáveis pela criação )
amizade para a história de vida de Taso. E esta amizade não se de significados e de grupos. É neste encontro entre pessoas que se
interpôs entre eles como um véu que impede a visão da "verdade" estranham e que fazem um movimento de aproximação que se pode
ou da "realidade" . Pelo contrário, foi a convivência e a afetividade desvendar sentidos ocultos e explicitar relações desconhecidas .
que permitiu chegar mais perto e mais fundo nos significados des- A prática de pesquisa que procura este tipo de contato precisa
conhecidos para ambos. Nesta relação o pesquisador se envolve com- valorizar a observação tanto quanto a participação. Se a última é
pletamente e por isso seus valores ou sua visão de mundo deixam condicão necessária para um contato onde afeto e razão se com-
de ser obstáculos e passam a ser condição para compreender as · pleta~, a primeira fornece a_ n:edida das co.is~s. Observar ~ contar:-r
diferenças e superar o etnocentrismo. Em geral, apesar de que "as descrever e situar os fatos umcos e os cot!dtanos, construmdo ca_:\
técnicas de metodologia qualitativa marcam uma ruptura decisiva deias de significação. Este modo de observar supõe, como vimos, .
com as técnicas quantitativas, o modo pelo qual são utilizadas supõe um investimento do observador na análise de seu próprio modo ~
um compromisso secreto com o positivismo para manter o sujeito, de olhar . Para conseguir esta façanha, sem se perder entrando pela·
finalmente, com um objeto. Atrás de toda preocupação com as psicanálise amadorística, é precis? _ancora~ ~s relações p~ssoais e~l ~ 1
\ técnicas e com a confiabilidade dos dados, está a crenca ( ... ) de seus contextos e estudar as cond1çoes sociaiS de produçao dos dis-
que o objeto da pesquisa existe em um mundo externo". 7 cursos. Do entrevistador e do entrevistado.
É ainda Willis, o autor do texto. acima , quem continua esta Este esforço não pode ser feito se não se coloca entre parên-
discussão chamando a atenção para "a insistente e quase neurótica teses os grandes paradigmas interpretativos assim como os parâme-
preocupação técnica com a diferenciação entre a observação parti- tros usados pelos entrevistados para explicar o mundo . A te~i~
cipante, o relato jornalístico ou a Arte" . Diz ele: "o romance pode do conhecimento nos oferece um caminho para compreender a reali- _/
mergulhar na subjetividade - é assim que cria cor e atmosfera - , dade e não uma série de "verdades" a serem comprovadas. O
mas como teremos certeza de que o autor não inventou tudo? encontro com desconhecidos, com que se pode cultivar uma relação
Sem dúvida, de certa maneira ele inventou! Se podemos acreditar de alteridade, é que permite conhecer o modo de operar de siste-
na Arte é porque ela revela um aspecto da imaginação que também mas simbólicos diversos que são postos em movimento por esta
faz parte de muitas realidades sociais. Neste caso, nosso objetivo interlocução. O objeto do conhecimento é aquilo que nenhum dos
deve ser a busca de objetos unificados que podemos esperar que dois conhece e que, por isso mesmo, pode surpreender. Logo, a
se apresentem como o mesmo para muitas pessoas". 8 novidade está na descqberta de alguma coisa que não foi com ar-
tilhada e não - como quer a noção usua e empatia - na co-
6. ln revista Dados, vol. 27, 1984, n.O J, p. 45-58. t~hão. 9

7. Willis, P. E., "The man in the iron cage: not own méthod" in Working Está na hora de retomar a questão inicial deste trabalho: a
papers in cultural studies n. 0 9, Ce nte r for contemporary C ultural Studies,
ênfase no papel militante do pesquisador e o abandono da reflexão
University of Birmingham , Spring, 1976, p. 137.
8. Esta questão não é nova, apesar de ter sido pouco tratada. Já em 1953,
teórica sobre os caminhos da observação participante.
Redfield publicou um artigo onde discutia a especificidade do conhecimento
antropológico frente as outras ciências sociais, justamente por sua proximi-
dade com a arte. 9. Willis, op. ci1, p. 141.

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Não se pode dizer que os problemas relativos ao como fazer
Para iniciar o debate
X
pesquisa não interessaram aos pesquisadores. Durante os anos 70 Por isso não cabe concluir. É mais adequado apresentar
a. gran~e maioria dos trabalhos de campo reservou espaço para ; algumas questões que merecem uma reflexão mais profunda.
discussao da relação sujeito/ objeto de investigação. Seja sob a 1. O trabalho de campo contribuiu definitivamente para a crítica
forma de auto-análise do pesquisador, ou como relato das condições do economicismo e dos vários estruturalismos, mas deixou de ir
em que .s~ realizou a investigação, estes autores contribuíram para à raiz das questões metodológicas e por isso levou a uma postura
tornar VlSlvel um aspecto escondido do trabalho de campo. Roberto eclética. Talvez até possamos defender o ecletismo se soubermos
Da Matta, em seu excelente ensaio - "O ofício do etnólogo ou conjugá-lo com o anarquismo de que nos fala Feyrabend (1978) .
como .ter anthropological blues" 10 - mostra que a formação do
2. Uma contribuição inegável da volta ao trabalho de campo foi
pesqmsador propõe o planejamento de todas as fases de seu tra-
a presença de atores sociais, suportes dos discursos, que ganharam
balho, mas não o prepara para ver com olhos críticos seus humo-
carne e osso e deixaram de ser autômatos. Depois de fazê-los entrar
res, cansaços e infortúnios enquanto observador participante; e
em cena, é preciso definir com que autonomia podem atuar dentro
nem explicita o mecanismo pelo qual se chega a descobrir novi- do script. Se, ao criticar o mecanicismo, também abandonarmos
dades. a noção de estrutura, ou ficamos sem resposta para esta questão,
Depois deste ensaio, muito se tem escrito sobre as aventuras ou nos juntamos aos weberianos e parsonianos para estudá-la
do pesquisador. A perspectiva é freqüentemente limitada a uma melhor.
auto-análise, mas certamente traduz uma inquietação . Arrisco afir-
3. Também merece cuidado a questão da subjetividade como instru-
mar que a subjetividade que não fomos treinados para controlar mento de conhecimento. Aqui se beira tanto um irracionalismo
teima em se fazer presente e isto porque ninguém mais defende a muito em moda que nega a ciência (podemos lembrar o sucesso de
noção de "neutralidade" que os manuais positivistas propunham Castafieda) quanto a camisa-de-força da crença na realidade exte-
como condição da ciência. Nestas condições·; colocar o intelectual rior. O desafio está em encontrar um caminho intermediário.
no cenário da pesquisa passou a expressar a necessidade de dominar
a relação que leva ao conhecimento, mas, por outro l~do, esses
r~latos se limitam às aventuras do antropólogo sem colocá-las expli-
citamente como etapas do conhecimento. Descreve-se, por exemplo,
todo o folclore da entrada em uma favela para depois apresentar
uma análise "objetiva" de sistemas de parentesco. É fácil perceber,
entretanto, que estas descrições traduzem um mal-estar, causado
pe!a falta de segurança quanto aos limites da participação e as
exigências da objetividade.
Os c~nc.eitos de neutralidade e objetividade são freqüente-
n:-ent~ .esgnmidos como armas para garantir a legitimação do saber
cwnttfico. Por isso mesmo, é fácil abandoná-las, e seria produtivo
promover um debate sobre o estado del'ta questão. Este trabalho
pretendeu ser um convite para abrir esta discussão.

10. Roberto Da Matta, "O ofício do etnólogo ou como ter anthropological


blues", in Edison Nunes (Org .), A Aventura Sociológica . Rio de Janeiro,
Zahar, 1978.
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TEORIA E PRÁTICA DO TRABALHO DE CAMPO:
ALGUNS PROBLEMAS*

Alba Zaluar

Recentemente tivemos concretizado entre nós um projeto da


antropologia - o de transformar os antropólogos em "nativos" deles
mesmos- como a busca da matriz disciplinar , ou seja, da articula-
ção sistemática de um conjunto de paradigmas coexistentes e efica-
zes ao mesmo tempo. Nesta proposta, os paradigmas em tensão não
suplantariam um ao outro, mas seriam como categorias de um campo
semântico da antropologia. 1 Alerta o autor para o perigo de trans-
formar os paradigmas, que se oferecem como possibilidades criativas
de entrecruzamento, em meros ismos , sistemas fechados de explica-
ção e hábitos viciados. de repetir os mesmos procedimentos ad
nauseam e as mesmas respostas aos mesmos velhos problemas . No
entanto, a reflexão sobre as conseqüências das principais disputas
teóricas ~ e os estéreis ismos delas - no trabalho de campo etno-
gráfico ainda está por ser aprofundada. O que se segue é fruto
d<!s minhas primeiras tentativas em pensar, a partir da minha inquie-
tação e apreensão, os efeitos deste campo teórico marcado por pro-
fundas dissensões e vários ismos , sobre a pesquisa etnográfica.
·o primeiro ardil colocado ao antropólogo no seu caminho de
melhor conhecer o outro conhecendo-se a si mesmo é o menosprezo ,
embora düsf<lrçado num disl:urso sobre a importância do " nativo' '
nele, deste longo e penoso trabalho de recolher e entender o signi-
ficado (ou os signifícados) que têm para os " nativos" suas ações ,
I
'' A primeira versão deste trabalho foi apr"esentada na reunião da ANPOCS
em Ol!tubro de )984. Agr&deço a Hugo Lpvisolo un1 11 conversa rodoviária
a bordo de um "Comet&" que me confirmou as lu;z:es que via no céu das
nossas inq uietações e dúvid&s .
L Ver Roberto C9rdoso de O liveira , "Tempo e tradição: int~rpretando a
;lntropolpgia", in Série Antrvpvlógica , n, D 41, Fundação Universidade de
BraEília, 1984, idem, "Leitu ra e cu ltur a de l!rna perspeçtiva antropo lógica",
in Série A ntropolóJ?ioa, n.P 43 , Fundac;ãp Universidade de Brasília , .1984.

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idéias, rituais, conversas informais , instituições, etc. A armadilha
ou simbólícil imanehte. Outro ponto cego que Bourdíeu 2 procurou
é armada pela própria teoria que pensa a antropologia como um desfazer aô questionar a posição do observador: o código só existe
"encontro de subjetividades", mas como que garantido ou resolvido
enquanto tal para o observador que apreende a cultura (ou a língua)
pela estrutura inconsciente do simbolismo . . Segundo esta, a inter·
"cdfilél instrumento de decifração mais do que como meio de ação
subjetividade já estaria dada na própria constituição do espírito
e exfjtessão". Nesta pirueta, o observador termina de costas para
humano, na lógica contrastiva que caracteriza a formação da cadeia
o " tultivo" atuante, pensante, que adere, hesita, opta, confunde~se,
de significantes. Na tentativa de afirmar o primado do pensamento,
muctâ , recorre a estratégias para vencer ,
que levou à associação entre sociedade e cultura e entre cultura e
linguagem, acabou·se por pressupor uma nova teoria do consenso óutra conseqüência para uma teoria do sujeito começa, então ,
social ou do inconsciente social: as estruturas inconscientes do pen· a s~ delinear. Pois se é encontro de subjetividades , a pesquisa
samento (igual à linguagem) estariam por detrás de todas as culturas atltfopológíca, nesta linha teórica, não coloca um e outro sujeitos
(igual às sociedades) . O social assim homogeneizado reduziu·se a na mesma posição , ou seja, as duas subjetividades não têm o mesmo
um código cujo conhecimento (deciframento) , por sua vez , restrin- estatuto . Um ; o " nativo ' ', o observado, uma estranha subjetividade
giu-se ao movimento do implícito para o explícito, ou seja, do sem sujeito ,:i deixa-se pensar pela lógica simbólica de seus mitos
inconsciente, da forma , para o consciente, o substantivo. A pesquisa e de sua linguagem. B o espírito humano, por assim dizer, que
etnográfica, por isso mesmo , resumiu-se quase a completar o reper- pensa por ele. Sem história , sem reflexão, sem crítica , sem criação ,
tório das manifestações dessa lógica simbólica cujos · princípios já um homem cdnsehsual, conformista e tradicional , um prisioneiro
estariam decifrados previamente. Os universais do pensamento hu- da rigidez da língua , o "nativo" nao tem nada a vet com a nossa
mano ou a lógica contrastiva dos significantes, cuja cadeia começa teoria do sujeitG. Um homem nu , porque despido de toda a varie·
de um ponto zero da significação ou de um significante primeiro , dade da história , apenjls repete um único mito : o do logos, que
prescindiria do cuidadoso levantamento dos significados e de seus desconhece ; mas qUe o comanda de dentro , desde D seu inconscíen·
contextos, Apenas se buscariam os equivalentes do hau, do mana, te. 4 O outrà , observador absoluto que decifrou o enigma dos códi·
que levariam necessariamente ao símbolo zero, como na cadeia gos , um ser histórico, crítico, que acumula conhecimentos e que
numérica. A ativídade da pesquisa, da busca, da descoberta , teria os discute, analisa e supera. Desde um lugar onde lhe está garan·
o campo delimitado pela prévia solução do enigma ou do código tida a objetividade, este observador é um sujeito que domiha o
decifrado. Uma experiência semelhante a se ser analisada por um iogas e pode usâ-lo em suil estratégia de obter novos cohhecimentos
psicanalista lacaniano ortodoxo.
e decifrar mistérios . Estrilnhamente, porém, só o faz encontrando
O descaso deste antropólogo pela atividade de pesquisa, na
pàtés de opostos por toda a pilrte e cumprindo ele mesmo a profe·
qual poderia até encontrar dados que negassem essa teoria, mani-
tia que proferiu sobre o pensamehto humaho . Uma razão simbó-
festa-se no uso indiscriminado do i·ótulo " empirista" a todos que
lica que , córtscientemehte, repete o mesmõ jdgo dos cegos " nativos ''.
se neguem a adotar tais pressupostos ou a cair no que seus críticos
Efupresta à sua visão ao que não vê para repetir-lhe o gesto só
chamaram de subjetivismo sem sujeito, universalísmo abfltrato ou
por ele visto ad infinitum. Tudo isso é nomeado de a busca mais
mesmo objetivismo abstrato , Muitas vezes o rótulo de ' 'empiri:Jta"
vem acompanhado de outros: " substantivista" , ''não-rehltivi sta ou profunda e mais importante dos universais ou dos princípios incons-
etnocêntrico" , "prisioneiro do viés da razão prática" , O paradigma
teórico Se fecha e ameaça COrtar as linhf!S de comunicação entre 2. Pierre Bourdieu, Ésquisse d'un e Th eorie de la Pratique. Genebra, Librairie
. os pesquisadores. Os pontos cegos dessa teoria que pretende ter Droz, 1972.
decifrado de vez o inconsciente precisam ser retirados do impen sado 3. Paul Rlcoeur, lnierpretação e Ideologia. Rio de Janeiro, Francisco Alves,
(ou do seu inconsciente) e posta na mesa de nossas dl§cvssões, 1977.
4. bennis Tedlock, "The anaiogical tradition and the emergence of a dialo-
Apesar de não focalizá-la, esta teoria contém de modo implí-
glca1 anthropo lbgy'', in A nthropologica/ Research, vol. 35, n. 0 4, 1979,
cito uma teoria da prática que é subsumida numa razão c\.!ltural p. 395-7.

!p8 109
cient:s da cultura, único modo de escapar às trapaças do etno- vista, quem é a pessoa entrevistada e a sua adesão ao que diz não
centnsmo.
são problemas . Nem muito menos a sua representatividade como
Apesar de tudo: ou por causa mesmo dessa definição prévia, porta-voz do grupo: todos são suportes de um mesmo pensar con-
um encontro g~rantldo. Não há o que temer no campo ou na sensual (social) porque inconsciente.
poltrona do gabmete. O simbólico garante. Não há risco de entender Por outro lado, a posição do observador enquanto participante
mal ou ser mal entendido e o desencontro não é uma possibilidade do processo da pesquisa também não entra nas cogitações teóricas .
sem~re presente. Com a metalinguagem decifradora do simbólico De fato, tudo leva a crer que, desta perspectiva , não importa como
servi~do de chave de todos os códigos, não há tampouco perigo de o pesquisador é de fato recebido ou visto pelo grupo. O corpus é
s~ ~air no mal dos males da antropologia: o etnocentrismo. O coletado de um modo ou de outro . Apenas oscila-se entre a possibi-
co?Igo cultural "nativo" pronto, acabado, completo e fechado , insti- lidade de "virar nativo", igualmente garantida pelas subjetividades
tl1ldo desde logo, tal como na definição do código "não-erudito" "encontradas" na lógica simbólica , e a saída mais ou menos rápida
"prim!tivo" ou "selv.agem", apresenta"se diante do observador já da convivência com os "nativos". Uma história que, recontada por
transfigurado em ob]eto, sobre o qual aquele se debruca usando Lévi-Strauss , tornou-se piada na;, versão de um "empirista" ameri-
~lenamente a sua razão para encontrar a lógica (racionaÍ) contras- cano. Revisitando a tribo dos Zuni, Tedlock 6 ouviu a interpretação
tlva ou principal do nativo. Não é de admirar, portanto, que dessa de um informante sobre a famosa conversão de Cushing, feito
escola de pensamento não tenha saído nenhuma teoria sobre 0 sacerdote pelos Zuni. Sim, de fato, tinham transformado o "homem
trabalho de campo. Ê como se tudo já estivesse resolvido antes branco" em "Sacerdote do Arco" numa cerimônia em que todo o
mesmo de se começar a batalha do entendimento. A própria posicão corpo do homem branco foi pinta&:> de listras negras. Os Zuni
do observador enquanto tal não é posta em questão. > disseram suas preces de cor (do coração), enquanto o homem
. O ma~erial e~nográfico aqui é arranjadd como um corpus, u~ branco as leu num pedaço de papel. E para os Zuni, explicou
conJunto sistematizado, fixo, arranjado de forma tal que possa Tedlock, o papel escrito é chamado de "listrado" e o corpo listrado
ser transposto em escrita . Privilegia-se todos os atos, enunciados e é o corpo de um palhaço. A "conversão" se realizou, pois, num
gesto.s, em .geral os oficiais e os mais formalizados, que podem ritual marcado pela ironia e a brincadeira, filhas da distância, só
ser sistematizados dessa forma, e acaba-se por construir uma estru- desvendadas num diálogo e na busca cuidadosa dos significados
tura estruturada, um sistema de signos decifrados. Não entra em contextuais dos nativos. O menosprezo pelo contexto, pelas nuanças
paut~ o processo de decisões e estratégias tomadas em meio a de significado, pelas divergências e pela ambigüidade, nem media-
conflitos e acordos , vacilações e dúvidas, impulsos e racionalizacões das nem resolvidas, não teria melhor exemplo.
val?res e predisposições. Este Viés etnográfico, que consiste> e~ Ainda no tema de "virar nativo", mas no outro extremo da
regtstrar o que já está codificado ou predisposto à escrita leva 0 postura diante do encontro de subjetividade, armam-se os ardis da
a.ntropól?go a ~esconfiar e igüorar ~ que é ptlvaâo, pesso~l . ilegí- pesquisa participante. Esta tem o mérito, sem dúvida, de questio-
timo e Improvisado porque a tradição metodológica o ensina a nar a finalidade dos nossos trabalhos e os benefícios que eles tra-
despr~zar o que não tem forma, o que é contraditorio e ambíguo.5 riam para os que aturam a nossa infindável e nem sempre agradável
. Por causa deste viés, grande parte das pesquisas foram redu- curiosidade . Mas a observação, tal como pensada por Malinowski
Zidas ao re?istro dos d!scursos oficiais e das entrevistas, que podem na sua ainda insubstituível teoria do trabalho de campo, é posta
ser, ~ranscnta~ . e analisadas com as mesmas téc.nicás usadas üas entre parênteses para que toda a atenção ·seja dada ao seu adjetivo
ana.llses de m1~os ~ de .textos. O contexto da açãd do que fói dito feito substantivo: a participação. De Malinowski, um "técnico"
muttas vezes nao e registrado. Como o antropólogo obteve a entre- cientificista, pouco resta no contraste com um Marx "político" que,
segundo os teóricos da pesquisa participante, veria na pesquisa uma
5. Pierre Bourdieu, op. cit. ; idem , Le Sens Pratique. Paris, Montotl,· 1982,
livro 2.
6. D. Tedlock, op. cit.

110
111
tomar decisões e estabelecer estratégias que levem em _co~ta ? lugar
intervenção na realidade. 7 Vários problemas permanecem não resol- que ocupa enquanto estranho, diferente , superior o~ dtstnbm~or de
vidos com respeito à posição do observador : seria ele um líder, recursos. Sua presença, como de qualquer pesqmsador, ena um
um educador, um dirigente, ou um mero catalisador? Em qualquer novo campo de relações ou um espaço público que devem ser, eles
um destes casos, como exerceria as atividades de pesquisador? mesmos , objeto de reflexão porque históricos, datados e marcados
Tudo parece indicar que , da observação, enquanto distancia- pela alteridade. · _ .
mento sempre retomado apesar da presença continuada e da con- Como prática ainda não enriquecida pela reflexao (dtstan-
vivência às vezes íntima, quase tudo desaparece na força centrífuga ciada) que merece, a pesquisa participante _rode te_r outros resu.lta-
do "projeto político" que une observador e observado, ambos com dos diretos na dinâmica política local, nao prevtstos no pro!eto
o estatuto de agentes deste projeto. Neste caso , o pesquisador, que político popular. Ao se negar o posto de ob~ervador e ao av~hzar
se identifica com o projeto político popula;, não o discutido em (participativamente) ações e pessoas, o p~squtsador pode estar mad-
várias instâncias e lugares da sociedade maior , mas o projeto espe- vertidamente legitimando lideranças locats, tanto de pessoa~ quanto
cífico desenvolvido no local por um pequeno grupo de pessoas, de grupos, ao mesmo tempo que ajuda a institu_ir_ o ~rópno. modo
avaliza e participa da ação coletiva do grupo , mas não avalia a de comunicação entre líderes e liderados . Ao prlVllegta~ ? d~scu~so
sua própria presença enquanto estrangeiro num grupo que não é o sobre a carência e um certo modo de encaminhar as retvmdu;aço~s
seu. A própria tensão sujeito/objeto é negada pela afirmação de que locais, 0 pesquisador já definiu previamente o camp? de sua atençao
todos são sujeitos críticos e autônomos numa mesma ,ação política, e seus informantes-agentes principais. Ao fazer. 1sso, pode esta~
ou seja, a distinção e o conseqüente distanciamento entre observa- rdorcando um tipo de retórica e um tipo de hderança qu~ e7ta
dor e observado deixaria de ter cabimento, dissolvidos que ficam long; -de ser a única a mobilizar e a organ,izar Q esp_aço publico
pelo engajamento num mesmo projeto político . Esta dialéticà da local.s Mesmo que, na aua ética de respeito a autono~ma dos agen-
aproximação-distanciamento , que faz a festa da antropologia , sóme tes exima-se do papel de educador que outros se tmputam, sua
na luta pela construção de uma creche no bairro popular . mera' presença junto · a uma assoctaçao· - ou a um grupo . . de
. pessoas
No entanto, o pequisador não some do mesmo jeito. Ele não pode vir a aumentar o prestígio e a força delas em detnment?. de
deixa de ter seu próprio projeto intelectual, sua própria linguagem outras organizações, neste campo polítiGo altamente omnpetlttvo
e sua forma própria de se comunicar com seus pares, tudo isso de que fazem parte as organizações populares.
manifestado sem disfarces na obra final de sua autorià. Como autor, A imagem q1,1e a pesquisa registra das classe~ popuhue~ é . a
pelo menos, o pesquisador se diferencia . Além disso , qual o seu de grupos locais que se identificam peh1 falta de 1 ~~la carenc~~ ·
impacto e a sua aceitaçãb enquanto membro de uma classe social Estas existem de fato e §ãO o móvel çle projetas pohttcos os .mms
superior, uma raça idendHcada com o dominador, com uma lingua- variados, não neoessarianwnte aquele que Q pesqui~ado~ cgns~~era
gem, hábitos , vestimenta, gestos e gostos eruditos num grupà de como o m0derno , adequado , eficaz ou ju§to: O peng~. e a:~ha-l~s
subalternos, dominados tJU carentes? Sua função de coordenadêf, e encª mpá-los segundg um modelo ester~ottpado d~ partl~l~açao
sua competência em faiar bem, seu capital social (a rede de relações democnÜica", Além dis§o , ao focalizar ~ tom~r. como dect~tvo e
ou contatos com políticos, partidos e, não menos importante, agên- decidido Q disq.tr~p sgbre é!~ carências matenals, .o pesqt.nsador
cias de financiamento tie pesquisas desconhecidas pelos agentes dà é!p~na~ ª juda a fixar ou cristªlizar a identiçlª~e negatlY!l (pela f<llt~)
grupo pesquisàdo) rtãô reporiam a distinção negada ou dela como des!ms cla§ses. Aq1,1i, é! razão prátiça, ~ntendtda ~u~se que !;!Xc;l~sl­
resolvida pelo objetivô pàlítico comum? De líder a mero catalisa' vam~nte em seu sentido utilit~rio e tornada o objettvo. ga ,r~sqmsa,
dor, o pesquisador participante atravessa muitas passagens , encruzi- torna conta d~ todo g plllço d~üxandg é! culturª (pu o snnbohço) nos
lhadas e armàdilhas. Tem, como todos os outros peséjüisadóres, que

8. Alba Zaluar, A Máquina e a R fJ VQlta: As Organizqçõçs Pupulares e u


7. Juli a Ezpéleta; "Notas sobre pesquisa participante e construção teórica': Sirsnifi~(ldo da Pobreza. Si\p P~ulp, Brasiliense, t985.
in Em Aberto, fi .0 20, Brasília.
113
112
bastidores. Raramente esta prima-dona da antropologia é chamada à e dificuldades de qualquer pesquisa . Como tal , tem que merecer o
cena. O "pesquisador-agente político" acaba por abandonar a busca rigor crítico só garantidos pelo distanciamente do observador.
pelas marcas positivas dessas identidades, os significados próprios, Alternativamente, a pesquisa pode e deve ser o momento em
os valores distintivos ou a autonomia cultural que também, por que se reflete sobre essas variadas possibilidades de relacionamento
certo, conformariam as relações do grupo local com suas lideranças , entre pesquisador e· pesquisado, sobre os diferentes impactos que
o modo de conduzir a comunicação entre eles, bem como o próprio qualquer pesquisa sempre provoca no grupo pesquisado, tomando-se
como pano de fundo , uma alteridade nunca resolvida nem dissolvida
relacio~amento do. "pesquisador" com o grupo. Deste modo , pela
nos encontros e desencontros que a pesquisa traz. Neste caso, a alte-
sua açao,. o ~esqmsador pode vir a reforçar relações de poder no
local, ao mves de pensar sobre elas. Seus informantes privilegiados ridade não seria dissolvida nem pela função simbólica única ~a.s
subjetividades em encontro, nem pelo projeto político popula~ umft-
passam a ser aqueles que se mostram mais aptos na verbalização
cado . Ao contrário, aqui ela independe da vontade do pesqmsador:
dos problemas locais, num certo tipo de oratória tido na cultura
está nos gestos, na posse de objetos (tais como o gravador , o ~apel,
do pesquisador como a mais politizada. Estes informantes são tam-
a caneta, a máquina fotográfica ou até mesmo o aparel?o de vtdeo e
bém privilegiados porque "sabem" mais a respeito da realidade
a filmadora), nos hábitos diários de comer, andar, vestlr, falar e nos
das condições de vida ou da situação de carência do grupo local,
sutis rituais da dominação a que o pesquisador não consegue esca-
na verdade os que melhor articulam o que sabem num certo
par. Mesmo que não sejam montados em tabus de contato ou e~
discurso familiar ao pesquisador que o registra e reforca. Mesmo
proibições alimentares, como na hierarquia de castas, estas desi-
que o venha a fazer no seu gabinete, a partir do materi~l entregue
gualdades sempre ressurgem de suas cinzas quando menos o pes-
pelos agentes transfo.rmados. em auxiliares de pesquisa, o viés pode
quisador já aceito espera. A relação social com ~e.mbros de classe
ser o mesmo . O prOJeto matar da Antropologia de oferecer as vias
e raça superiores na qual 9s pesquisados se soctahza~am ~~ longo
cultu_rais alternativas de se lutar por '' melhÚes condições de ~ida"
de suas vidas sempre reconduz o pesquisador, por ma1s cnttco que
ou simplesmente se manter o estilo de vida, e suas identidades
ele seja desta estrutura e por mais amigo e ínti.mo que e~e. tenha
soçiai~ adjacentes, do grupo sofre uma redução homogen~izadora,
se tornado, aos imperativos de uma relação soc~al des~q~ütbrada,
_Além do mais , sem que o pesquisador muitas vezes o perceba, desigual e hierarquizada. Muitas vezes o pesqms~d?r e mstad? a
el~ ~ o me;o registro de um discurso para fora , dirigido a um assumir, sutil ou claramente, o papel de educador, JUIZ, conselhet~o,
pubhco mats amplo (como acontece em qualquer pesquisa) was conscientizador, patrono, etc. A pesquisa é a história de um ~elaclO­
que busca os seus verdadeiros interlocutore~ no caso: o Estado ou namento pessoal em que o pesquisador procura desfazer as impres-
as ~gências de financiamento . O antropólogo é sempre uma espécie sões negativas da imagem do "dominador" a fim de tornar a c~mu­
de mtermediário ~ntre o grupo que estuda e o resto do mundo, mas nicação ou o encontro possíveis,9 bem como escapar das arm~d~lhas
deve. pens.ar continuamente sobre essa sua partk1,1lar intermediação montadas pela hierarquia ou desigualdades que transcendem a situa-
q~e mclu1 o seu texto sobre as outras cultura§ ou sociedade§ num ção de pesquisa. Estas podem vir travestidas pela roupagem moderna
ctrcuito assim ampliado de comunicacão entre os homens. Mas neste e sedutora do paternalismo e do populismo disfarçados de compro-
post? restrito de intermediário impen;ado , o pesqyisador co~re todos missos com a libertação popular . ,
os nscos ?e cair n?~ ardis do clientelismo, . mesmo que disfarçado A alteridade e a desigualdade estão até mesmo nos obstaculos
?,ela ~oere~cia poht!c~ . d~. um discur~? .que o çritica em prol da microscópicos postos à comunicação a serem vencidos passo a pass~,
parttcipaçao demoçrattca . Ao ~e rptlmzar ou institucionalizar a nos desentendimentos e desencontros a serem contornados no coti-
P~e.quisa-ação pode se tran§formar em mais um!l das muit~& est~a· diano da pesquisa , na incomunicabilidade às vezes conscientemente
te~Ias l.!s!ldas pela população para canalizar reqmos possíveis manobrada pelos nativos. Aprend& a língua destes , mesmo quando
çlen~m do no~o ~uadro instj~ucional. Neste passam a figurar os
proJetas de agencias de pesqutsa e de fundações estrangeiras, além
P_?S polític.os de sempre .e do Estado. É claro que estas q~estões não 9. Gerald Berreman, "Por detrás: de muitas máscaras", in Desvendando Más-
caras Sociais. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1975.
sao exclustvas da pesqmsa-ação e são parte do processo de prazeres
115
114
falam a mesma língua nacional do pesquisador, mas em seu dialeto capacidade de reconstituir o social e escrever livros a respeito deles,
ou linguajar específico, é um processo contínuo na pesquisa antro- capacidade esta que ainda não adquiriram, é fundamental. Dizer
pológica. Talvez seja até mesmo infindável, pois que os "nativos isso não significa encampar a heteronomia nem ameaçar a autono-
sempre encontram termos desconhecidos quando querem excluir o mia cultural dos " nativos", mas admitir que elas existem, pensar
pesquisador da conversa. Conquistar sua participação neste encontro sobre elas e transmitir o que se conheceu na linguagem que não é
é o objetivo prático e a luta constante do pesquisador em campo. a dos "nativos", mas a dos nossos pares. Mesmo porque os "nativos"
A intersubjetividade é, por assim dizer, conquistada. percebem os limites desse saber, e não pensam em substituí-los
. A_ pes~uisa é pr~tica, é ação, leve este nome ou não. E é polí- pelo seu. De samba, malandragem, futebol e técnicas de trabalho
tica .nao so no senttdo amplo de que é datada e se, inclui nos manual, os pesquisadores dos bairros pobres nas grandes cidades
movtmentos políticos, nacionais e internacionais, nas discussões e brasileiras são meros curiosos, iniciantes que buscam pobres que
lutas. políticas mais amplas, sejam estas explicitadas num projeto lhes ensinem.
restnto que inclui a participação dos grupos locais a serem estuda- Embora existam sinais de que isto muda, em grande parte como
dos , sejam elas parte de projetos que,' embora presentes -e influentes resultado da intervenção dos pesquisadores participantes nas "co-
em muitos discursos feitos na sociedade, não chegam nunca a ser munidades locais", a pesquisa não precisa, para os pesquisados,
articulados de modo explícito no projeto de pesquisa propriamente trazer vantagens materiais imediatas. Não é essa a questão que
dito. Mas o texto final do antropólogo pode vir a' fornecer manan- decide a participação dos "nativos'' na pesquisa. No meu caso,
cial teórico e prático para as lutas específicas que os grupos estu- como em outros , foi a notícia que lhes dei sobre o futuro registro
dados travam na sociedade, sem que o antropólogo seja o porta-voz de sua história em livro que marcou a virada no meu relaciona-
ou o líder, muito menos o representante do grupo que estuda. mento com os trabalhadores pobres de Cidade de DeusY Mas é
Quando muito, um aliado. _ claro que isso também n~o resolve as questões abertas pela desi-
A pesquisa é política também no sentido restrito de que impõe gualdade nem tampouco propicia o encontro fusional das subjetivi-
ao pesquisador a necessidade de montar estratégias e táticas para dades . Ao contrário, esta saída para a realização da pesquisa tam-
conseguir a sua participação (ou presença) no grupo. Para isso, bém precisa passar pelo crivo da nossa reflexão . Os livros escritos
o pesquisador se engaja num circuito de trocas que não se limita sobre a cultura das minorias étnicas, dos grupos originalmente ágra-
às mensagens das conversas e entrevistas. Presentes, atenções; peque- fos ou das classes subalternas "incultas" têm, por diversas vezes,
nos favores, e, mais fortemente, atitudes definidas em situacões de servido como ponto de referência desses grupos que carecem de
impasse em que está em causa sua aliança com o grupo e;tudado arquivos ou -documentos escritos . Em alguns casos, esses livros são
ou com os seus "inimigos", às vezes identificados com a classe ou usados para decidir conflitos sobre o comportamento mais "puro",
a n~çã~ de que faz parte o pesquisador 10 é que vão permitir a "original" ou "autêntico" do grupo em questão, como aconteceu
contmutdade desta presença estranha . Processos ainda mais micros- no caso do livro de Roger Bastide sobre o candomblé baiano,l 2 ou
sociais é que conquistam afinal a vontade de algumas pessoas em no caso dos escritos de um certo padre Baudin, denunciado por
colaborar nos questionamentos ou conversas informais e nas entre- Pierre ·verger.1 3
vistas for~ais , mesmo que o pesquisador se prevaleça apenas do Os livros também podem, fora dos debates eclesiásticos, tornar-
constrangimento que a sua (dele) vontade de dialogar provoca nos se símbolos de sua importância histórica, marca solitária de um
"nativos". De certo modo, o objetivo último da pesquisa é muitas momento único de reconhecimento pelos outros no processo contí-
v.ezes decisivo neste processo. Numa recuperação positiva da alte- nuo do esquecimento do grupo. São guardados, festejados, lembra-
ndade e da desigualdade, o saber do pesquisador, vale dizer, a sua
11. Alba Zaluar, op. cit .
12. Juana E lbein dos Santos, "Pierre Verger e os resíduos coloniais: o outro
10. Cf. R. Cardoso de Oliveira, "Leitura e cultura de uma perspectiva antro-
fragmentado", in Religião e Sociedade, n. 0 8, ISER-CER, Rio de Janeiro, 1982.
pológica", op. cit.; Clifford Geertz, "A briga de Galos na Indonésia" in
A interpretação das culturas, Rio de Janeiro, Zahar, 1978. ' 13 . Pierre Verger, "Etnografia religiosa iorubá e probidade científica", in
R eligião e Sociedade, n. 0 8, ISER-CER, Rio de Janeiro, 1982.
116
117
A contraposição entre o social codificado ou estruturado e o pensa-
d~s por isso como ícones, símbolos concretos dessa identidade redi mento individual é ela também ideológica, isto é, surge quando o
roida (o~ I:e~gat:da) dos grupos marginalizados perante a nação. pensamento individual é destacado, privatizado , encapsulado na
~uma Sigmf1caçao menos simbólica e mais fatual ou técnica os
hvro.s são o registro escrito de sua memória predominantemente ~ra l. escrita. 15
O foco deslocado da língua para a fala ou o di scurso tem
Escntos para o público de nossos pares na linguagem que serve u também conseqüências importantes tanto para a teoria social como
nossa com~n~c:ção , os livros passam a ter enorme responsabilidad e para a teoria do trabalho de campo. Mencionarei apenas algumas
na reconstltmçao de seu passado e na própria construção simbólica
nunca acabada de suas identidades sociais. Não destinados a eles delas .
Se o discurso oficial é a fala que se vale de modelos pre-
ainda assim podem ser lidos, reinterpretados, usados ou até (pas~
existentes e tem apoio institucional que define quem pode e deve
me~!) criticados por eles. É isto o que ocorre no momento com
falar (e como deve falar) , sendo portanto mais afeito às análises
estruturais formais, a fala é ~minentemente situacional e não pode
a _n:mha tese A Máquina e a Revolta em Cidade de Deus. Sem
duvida, esses são problemas que devem passar a constar de nossa
ser divorciada do contexto da ação em que ocorreu. O sentido
pauta de discussões . Pouco sabemos do uso que fazem do nosso da fala depende, no entanto, do extralingüístico e não é in~ei~a­
texto sobre eles. mente livre e autônomo, ou seja, pura subjetividade . Constnçoes
Esse cuidado com a memória do grupo e com a reconstituicão e restricões ao que é dito e interpretado na própria ação advêm
d~ .s~a história e de sua cultura cambiante não pode ser, porta~to , das rel~cões sociais entre os que interagem - se é de autoridade,
dmgtda_ p_or uma _teoria de simbolismo que os vê, desde logo, presos poder, c~mpetição ou conflito.16 O processo de comuni~a~ão social
numa logica prefixada, rígida e consensual. Processos de mudanca que inclui a atividade de pesquisa não é uniforme , nem mmterrupto
q_~e ~ão ~oden: excluir sua capacidade de pensar sobre novas expe~ nem livre totalmente .. Ao contrário , é feito também de pausas,
nenct:s, I~clusive a cada vez mais comum participação em pesqui- interrupcões proibicões i~teriorizadas, constrangimentos, restrições
sas, nao sao bem compreendidos numa teoria que concebe a mente ao dizer~ O 'acesso do pesquisador à subjetividade dos "nativos" é
h_umana como ~m conjunto sistemático de categorias que se rela- mediado por este dizer ao outro que pode ser seus interlocutores
ClOnam _entre st. de forma determinada. A filosofia da linguagem habituais ou o próprio pesquisador. Daí a importância de entender
entre nos evolmu sem que a antropologia brasileira incorporasse como os " nativos" o percebem, para que não se caia no conto do
suas nov~s pr~p?stas_ ~s teorias de simbolismo que adota. O pensa- "nativo" que diz aquilo que ele acha que o pesquisador branco,,
mento nao esta Identlftcado à linguagem, nem o inconsciente estru- culto ou erudito deseja ouvir (no caso do "nativo" deferente e hu-
t~rado em linguagem, nem a linguagem focalizada na líng~a . A milde) ou, nestes tempos de revolta, aquilo que ele a~ha que o pes-
lm~u~gem é c~ncebida como processo de pensamento que, embora quisador branco, rico e dominador precisa ou deve ouvir (no caso
soctah~a~o, nao contrapõe em termos absolutos o social ao indivi-
do "nativo" ressentido ou revoltado).
dual. E Isso que permite a alguns autores falar de "consciência O material por excelência do antropólogo não é tampouco
prática" equaci_o~ada à ativi?ade e não à passividade na reprodução o fornecidÓ por líderes, informantes sábios ou detentores da "~u­
cultu_ral au_tomatlca. N~ teona antropológica, a mesma questão surge reza" da cultura do grupo. Esta versão culturalista da antropologia,
na d1scussao do conceito de consciência coletiva de Durkheim. Se- que não concebe a cultura como algo que se constitui nu~ ~r~cesso
gund? alguns autores, Durkheim confundiu a mente humana, que é contínuo de interacão social em que os símbolos e seus s1gmftcados
um_ sistema de processos cognitivos, com um conjunto de represen- são reinterpretado;, disputados, negociados continuamente, até mes-
t~ç~es.' to:na~do as categorias de pensamento como sendo de origem
socto-mstitucwnal, sem dar conta do processo de sua constituição.H
15. William Washbaugh, "The role of speech in the construction of reality",
in Semiótica, n. o 31 , 1980, p. 197-214; Jack Goody, The domestication of
14. R?dney Needham, "Introduction to Emile Durkheim & Marcel Mauss" savage mind, Londres, Claredon Press, 1977.
1n
TI f
Pnm11tv
d .
e classijication,
. ..
Londres, Cohen & West ' 1963·• C . R . Ha 11 p1·ke,' 16. Prieto, in Pierre Bourdieu, Esquisse . .. , op. cit.
1e oun atwns of prtnutl.ve tought, Nova Iorque, Clarendon Press, 1979.
119
118
mo no próprio processo da pesquisa, já forneceu inúmeros equívo·
mas o senso prático, do qual não se exclui o artístico, o lúdico,
cos engraçados. A própria fala "pura" e "autêntica" dos grupos
o estético, o ético, nem os ganhos materiais, nem os ganhos e re-
minoritários ou dominados pode se tornar ela mesma um sinal di a-
interpretações simbólicos.
crítico da pureza do grupo e da excelência do trabalho intelectual
do pesquisador, e como tal vir a constituir emblemas de ambos .11 A fala sociocentrada ou tradicional, em mais uma dualidade ,
O uso da língua africana que estes pesquisadores foram buscar no está no pólo oposto ao discurso dos sujeitos concebidos c.m_no móna-
Cafundó foi aos poucos, pela presença deles e de muitos outros das completas, inteiramente independentes e auto-suficientes ~o
atores neste drama da busca da autenticidade, "adquirindo valor de social: o discurso do Senhor na concepção de Hegel. Uma concepç.ao
troca, sobretudo nas relações com os pesquisadores e com represen- que parece ser a ilusão própria das sociedades ?~m es:ri~a e dos m-
tantes dos meios de comunicação" .18 telectuais ·que se definem como os pensadores cntl~o.s (~mcos) de seu
Tampouco se reduz o material etnográfico às falas ritualizadas, meio. A sociedade moderna não cria um novo SUJeito mde~enden~e
formais e tradicionais. Estas não são necessariamente exclusivas e crítico mas um outro sociocentrismo, mediatizado pela Ideologia
das sociedades primitivas ou dos grupos dominados nas sociedades individu~lista, 23 ideologia essa que não tem sua eficácia assegurada
nem hegemonia completa. Por isso mesmo não podemos recusar a
de classe, quase sempre identificados a. priori com o tradicionalis-
mo. A fala que condiciona tal consciência tradicional, por ser mais "pretensão de todos os homens a serem homens~' ,24 isto é, de, serem
do que sociocentrada, ritualizada e fechada, propõe modelos de ação cápazes de criar novas idéias ou propostas de aça? .. Os .antropologos ,
a serem seguidos . Na mimesis criticada por Platão, a fala seria parte desta sociedade que sofre da ilusão do s~Jelto I?depende~te,
dirigida à comunidade de falantes e ouvintes e impossível de ser não são os únicos que, por abraçarem o umversahsmo, sena~
19
interpretada fora dela. Mas nesta concepção crítica da fala socio- capazes de romper com as amarras do so~iocent~ismo, com a rotl-
centrada, não se exclui a possibilidade de que a experiência int~­ nização e o ritualismo. Ao contrário, o socwcentnsmo, cor_n~ obser-
racional seja desestruturalizadora, que proponha novas idéias 2o ou, vou Dumont, também está !}OS paradigmas ou model~s teonc~s aos
ainda, que crie um espaço público de discussões e apresentação de quais aderem cientistas entre as chamadas rev~luçoes k~umana~.
dissensões no seio do grupo. 21 Por isso mesmo, a questão da regra Mas ao transformarmos os antropólogos em nativos tambem passi-
e da regularidade não pode ser suposta, mesmo em se tratando veis' do sociocentrismo de seus modelos teóricos, não estamos no
mesmo movimento rompendo com a dualidade absoluta que marca
de pequenos grupos e principalmente na atual situacão de crise
social no Brasil. · certa reflexão antropológica sobre o pensamento humano e o lugar
do sujeito nele?
Além do mais, como já observou muitas vezes Bourdieu, na
ação ou na lógica prática, os atores são levados a tomar decisões Artistas, poetas, humoristas, pensadores das rua~ e__ bares, t~m­ I
e estabelecer estratégias que não reproduzem apenas os hábitos ou bém sãci capazes de gerar novas práticas e nova~ ~dei~,s cn~Ic~,s !
I
padrões repetitivos. Como princípios geradores de novas práticas, acerca da sociedade em que vivem. Não é o seu cod1go re~tnto ,
exigem habilidade, arte, pensar. 22 Nessas estratégias não se captaria com suas limitações de léxico ou de gramática, que os destma a?
o senso comum, por oposição ao pensamento científico reflexivo, tradicional, ao local e ao paroquial. Talvez seja p~!o modo parti-
cular como suas descobertas ou propostas são comumcadas. qu~ ~ma
cultura se diferencia da outra. Não se trata, portanto, do mdividuo
17. Carlos Vogt & Peter Fry, "A descoberta do Cafundó : alianças e conflitos manipl!ladcir de Malinowski, mas de uma forma de interação entre
no cenário da cultura negra no Brasil", in Religião e Sociedade, n.o 8, ISER- ii 0 individual e o social que passa pela fala face a face, como nas
CER, Rio de Janeiro, 1982.
18. Idem, p. 50.
19. W. Washbaugh, op. cit.; p. 200-4.
20. Idem.
23. Louis Dumont, "La communauté anthropologique et l'idéologie", in
21. A. Zaluar, op. cit., p. 57.
Essais sur l'Individualisme. Paris, Seuil, 1983, p. 188-92.
22. P. Bourdieu, op. cit.
24. Idem.

120
121
Decerto nas conversas informais e nas entrevistas, o " na ti v "
sociedades de pequena escala , 25 mas que pode se expressar p lu ex lica a su; linguagem, justifica ou tenta entender as ~u as c ttS
canção, pela montagem do espetáculo do desfile carnavalesco, pel ~ dos outros " nativos" .ou mesmo revela segredos mantidos vela-
discurso formalizado em reuniões, pelas discussões acaloradas n a ~ açoes t hos Este também é um material precioso para o
ruas, bares, casas, esquinas e nos centros religiosos ou nas orga ni - dos a outros es ran · · "estran
zações populares. São estas formas de comunicação ou interação antropólogo que c~nseguiu romper ~s ~,a:~~:~:7. u~~~s~~oa~~bstitui ~
falante-ouvinte , das quais o diálogo entre o pesquisador e o pes-
quisado é apenas uma, que importa registrar, estudar, analisar e ~~i:r~s·~=d~~ ~~d~~:~:ól~m~:~~~~~~o~oe~~i:~:r:
não faz parte o grupo ' '
i~:;r~~~~~~f~c~~~
d b ancos
entender. E criticar. com o mundo dos poderosos , dos cultos , dos ric~s, os r 'd'
Uma vez desfeita a associação entre o social e o consensual, te mesmo que de forma sutil e matizada pela ~mt_zade constrUI a
entre a cultura e a língua, outros modelos que dão lugar para as ~o .,relacionamento diário. Esta necessária med~açao .te~ q~~ s~~
ambigüidades, tensões, inconsistências e conflitos entram em cena . constantemente avaliada e analisada para se, enten~er o stgF~ tc~ue
O social passa a ser pensado como drama, 26 como campo de forças ou si nificados) do que é dito ao antropologo. ~ ~ma a a
em luta ou como política do significado. 27 Com estes modelos, os ~ambé~ não pode ser divorciada do contexto propno. Umal f:Ia,
significantes em cadeia deixam de ser o foco da atenção e as ·dispu- . f o e amigo pode conter importantes reve açoes
tas, nuanças, contextos dos significados, é que exigem toda a perícia
e cuidado do atar-observador que é o antropólogo . Por isso mesmo,
pelo seu tom m tm · A

ou ainda expressar a pactencta


do " nativo" em educar ou ensinar
:

. , . . 1 Outra
ao antro ólogo as coisas do seu mundo stmbohco e ..s~cJa . '
,
aprender de fato a linguagem dos " nativos" é tarefa absolutamente p dos urbanos e xinguanos altamente pohttzados , pode
indispensável. Muitos dos equívocos e erros etnográficos decorreram nestes mun 'l hame se ele um
do fato de que o pesquisador não conhecia bem a linguagem do fazer do gra~~dor. 0~ do ~,aderno d~,::s~~Ja~~;,~ · ~m ve~culo para
grupo que estudou.
Mas não se trata tampouco de restringir a pesquisa ao diálogo ~~i~~~s~~~;éiad;:~~:::;~l:nq~::
neste campo
e:::~: ~:t~:~s:v~~~ :~~r:ss:e~~=~~~~:
" · 't , em pensa-
entre o antropólogo e o nativo ou de criar uma antropologia dialó- ingênuos, nem meras subjetividades, nem suJei os s
gica, como propõe Tedlock,28 que pensa a antropologia baseada mento crítico ou autónomo .
apenas na forma de comunicação específica que caracteriza o diálogo (.
entre o antropóligo e ,o "nativo" . Ora, como já vimos, para entender
a cultura do ponto de vista do sujeito que fala, atua e pensa, o I

II
antropólogo precisa se valer tanto da representação quanto da ação, i
esta também reprodutora e transformadora a um só tempo. Um "na- I•

tivo" também dialoga com outro "nativo" e é na interação entre eles I~


que o antropólogo pode observar a eficácia de certas idéias, a i'
recorrência de padrões ou mapas para a ação , bem como o processo
mesmo de contínua transformação da cultura. É esta fala na ação
III
. ~
~ I
que lhe permite captar o rg,tineiro, o decisivo e o conflitivo, o que
tem forma e o que não tem , o oficial e o espontâneo, o público I

e o privado. j

25. Goody, op. cit.; Washbaugh, op. cit.; Tedlock, op. cit. I•
26. Victor Turner, Schism and continuity in an Africa society, Manchester. ,t
j
University Press, 1957.
27. Clifford Geertz, op. cit.
28 . D . Tedlock, op. cit. , p. 387-98.
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