Você está na página 1de 14

A mutação da obra de arte

Trataremos aqui da mutação da obra de arte: não, porém, da mutação


ocorrida neste século das formas de arte, mas da que se refere ao sentido
da expressão"uma obra de arte". É uma mutação conceptual-- e talvez tão
profunda que possa estar dando à palavra "arte", sem o percebermos, um
sentido que já não tenha nada que ver com o corrente no século passado.
Essa mutação, devida a técnicas novas (disco, rádio) e artes no-
vas (fotografia, cinema, televisão), ninguém pressentiu melhor do que
Walter Benjamin, em seu ensaio sobre "A obra de arte na era da sua
reprodutibilidade técnica".' Partindo de uma indicação de Paul Valéry.
Benjamin procura ver, com base em alguns exemplos, como as técnicas
novas podem chegar a transformar "a própria noção da arte". E todos os
exemplos que analisa convergem para o que ele designa como o dec/ú;a
da 'bzzra" da obrade arfa. O que devemos entender por isso? Uma frase de
Valéry nos encaminha para esta noção:

Reconhecemos a obra de clTtcpelo fato de que nenhuma ideia que eLa suscitct
zm nós, nenhum ato que eLanos sugerepode esgota-ta ou concluí-ta \..l\ e nào
há LembrcLnÇa,
pensamento ou anão quepossa anular-Late o efeito ou libeítaí-
.losinteiramente do seupoder:

A azzradesigna o fato de que a coisa se dá como enigmática o bastante


para que nenhuma contemplação possa esgotar sua signi6lcação.Segundo

* Extraído de.érre e.P/oi($a.Rio de Janeiro: Funarte/iNAP, ig83. Não há mençãodo tradutor


r. Walter Benjamin, "A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica", in IHa/rer
Benyamlrzet a/. São Paulo: Abril Cultural, tg8o Os pensadores
z. Paul Valéry, Piêcessur /'arr, apud W. Benjamin, op. cit., p. 3

3z7
r

M m monume/zfo grega ou cristão, orlgí/za/mente rzzdofílzÀa liga ficafãa, e

IZ i: H: Hj
enttmentofundamental de uma realid(de sublime e inquietante,comagíada
pela presençadivina e pela magia: cl beleza quando multo temperada o.humor
mm este horror sempre estava pressuposto' -- Em que con.slstepata rlõs, agora,
a beleza de um monumento? No que é um belo rosto de mulher sem espír'to:
numa espéciede máscara.

depraÍer que mede o valor da obra.


O que Walter Benjamín acrescenta,e com profundidade,.é que o

3. Friedrich Nietzsche, AdemcÀJfcÀ-.4//{umemcÁ/icÀes,


n? n 8led. bus.; /fumam, deram;ada
Áümano, trad. Pauta Casar de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, zooo].

3z8 .4 mutação da obra de arte


dá muito a pensar,sem que nenhum pensamentodeterminado, isto é,
nenhum conceízo,possa ser-lhe adequado, e que portanto nenhuma lín-
gua pode completamente exprimir e tornar inteligível".' Enquanto for
animada por uma Idéia estética, a representação nunca será dominada
conceitualmente: é portanto impossível que um comentário ou uma ex-
plicação técnica dêem conta do impacto que a obra produz em mim...
E, na medida em que a obra reza e'caracterizada por este desafio de
toda compreensão conceptual exaustiva, pode-se perguntar se a repre-
sentação "estética" não substitui o ânimo religioso. Sem dúvida, seria
possível escrever a história do Belo, no século xix, como sendo um
substituto do sentimento religioso: o estetismo, o culto da genialidade
são formas de religiosidadel..
Contudo, essasobrevivência religiosa não bastariapara definir a
párareza no sentido kantiano. Esta é. simultaneamente. um tema de en-
cantamento e um tema de "simples prazer" e não é seguro que essas
duas componentesnão sejam, a longo termo, divergentes. Na ideologia
da Beleza, observa Walter Benjamin, opunham-se dois fatores: por um
lado, o valor que se continuava atribuindo à obra enquanto objeto de
fascínio, mediação do Absoluto por outro, a idéia de que a obra é uma
realidade a exzó/r, e depois, graças ao progresso técnico, a dzvzz/gar e
a divulgar para um público cada vez mais amplo. Habermas mostrou
bem, no seu livro a Mudanf.z e.ffrzzfzzra/
da exÓera
pzíó//ca,scomo os con-
certos abertos a um público pagante, os museus, as exposições (coisas
que, hoje, nos parecem tão óbvias) foram, no século xvln, conquistas
políticas da burguesia. E esta observação vai muito além da sociologia
da arte: diz respeito à própria essênciada obra de arte. Não se pinta
para o mercadocomo se pintava para um mecenas.Não se concebeo
centro Beaubourg' como se concebia um castelo de recreação do rei.
As palavras "pintura", "arquitetura", "decoração" podem permanecer,
masnão se trata mais do mesmo tipo de produção.
Ora, é evidente que tal preocupação(tantas vezesde origem co-
mercial) de exzó;r e dzvzzZgaré incompatível com a conservação do halo
religioso, com a manutenção da azzra.Como, por exemplo, o valor de

4. Immanuel Kant, i(nr;É der arie/6Éra#r]Crítica do ]uízo], S49.


5.J. Habermas, SrruÉ üma/zde/ der (2fBEnl/zcÃÁezfled.bus. .4/udanfa eifmrzzra/ da e-t/érapzí
ó/ica, trad. F. R. Kothe. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, ig84]. [N.E.]
6. Centro Georges Pompidou, em Paria.[N.K.]

3z9
r
autenticidade que se prende a uma obra poderia resistir por muito
tempo (excetuadoo casodos colecionadores)às reproduções fotográ-
ficas aperfeiçoadas? Por que fazer uma peregrinação ao Louvre ou ao
Rijksmuseum, quando as edições.Skiranos permitem admirar quasetão
bem e analisar melhor ainda a Gíocondaou a Ronda nolzzrna?-- Por que,
dizia-me recentemente uma senhora sensata,ser esmagadapela multi-
dão e correr o risco de me roubarem a bolsa, quando possover melhor
o papa pela televisão? Mesmo levando em conta que Jogo Paulo n não
é uma obra de arte, essareflexãodiz tudo sobrea perdado valor de
autenticidade na era da difusão da imagem. A obra não é mais um À;c
et /zun(que se deve visitar no seu antro, experimentar no seu ambiente.
O modelo do objeto único oferecido num único lugar ("Ame o que
nunca será visto duas vezes") é substituído pelo da partitura musical,
que pode ser executada por uma infinidade de orquestras. O modelo do
;monstro sagrado" que era preciso ver, pelo menos uma vez, "em carne
e osso", no palco, é substituído pelo da imagem fílmica, espalhadaem
mil cópias. Como, nessascondições, poderia continuar funcionando o
}. critério da autenticidade? Mas com isso, acrescentaWalter Benjamin,
"toda a função da arte é subvertida". A arte, por principio, não e mais
uma forma da cultura que nos convoca à contemplação e ao recolhi-
r' mento. Isso é sinal da sua degenerescência?Isso quer dizer que nossa
época, "materialista" e "tecnicista", só poderia deixar eclodir uma arte
de diversão, completada por algumas elucubrações de estetas?
Um dos grandes méritos de Walter Benjamin foi preveni'-nos
contra um diagnósticotão apressado-- já por citar essetexto, tao im
pressionante, de Brecht=

Desde que a obra de arte se torna mercadoria, essa noção Çdeobra de arteàjá
não pode mais ser-Lhe aplicada; assim sendo, devemos, com prudência e p'e'
:Unção mas sem receio -- íertunciar à noção de obra de arte, caso desejemos
preservar sua fu%ão dentro da própria coisa como tcLIdesignada. Trata-se de
uma fase que é preciso atravessar sem dissimulações; essavirada não é gra
guita, eLaconduza uma tramformação fundamental do objeto e que apaga
seu pensadoa talão'tto quecwo a nova noçãodeva reencontrarseu mo -- e
por quenão?-- não evocará mais quaisquer da Lembrançasvincutadm à sua
7
antiga stgnz#caçdo

7. Bertolt Brecht, apud W Benjamin, in op. cit., p-

\'bo .4mutação da obra de arte


Em suma, a arte, como era compreendida por nossos ancestrais, é coisa
que não existe mais. Está sendo substituída por outra coisa, que pode
continuar com o mesmo nome, mas não tem mais nada em comum
com ela quanto ao referente. Essa observação pode parecer extremista,
'terrorista". Parecerá um pouco menos, se a aproximarmos de outro
texto que, na década de i8zo, profetizava a morre da arie.

Efato quea artenãogarantemaisestasatisfaçãodu necessidades


espiritual
que outros tempos buscaram rECta, e que outros povos só emontraram neta \..l\
Os belosdiu da arte grega e CL
Idade de Ouro dcl Baila IdcLdeMédia selaram.
lJoje, a cultura rePexwa da nossavida e tal \..À quesão asformas unlversaK,
u Leis, os deveres, os direitos, u máxima que valem como motivos e têm
preponderónc;a.[...] .4 erre á/ara /zós gzzan/oâ desrznaçãoSuprema,coú'z
do pesado. \.. À Tudo o que eLatinha de autertticamertte verdadeiro e vivo se
perdeu pctra nós e, em vel. de a$rmar CLsua necessidade no rente ocupar neste o
Lugar mais alto, agora é apeou algo relegado à nossa le ptesentaÇãa $

Entre o texto de Brechae essede Hegel há, pelo menos,uma diferença.


Enquanto Brecht admite que uma "arte" inteiramente nova pode suce
der àquilo que o século xix chamava de "belas-artes", Hegel não mos
tra a mesmaamplidão de espírito. Para ele, a "arte" é uma formação tão
bem determinada de uma vez por todas que, se perecer, nada poderá
substituí-la. Nem por um segundo Hegel pensaque estápressentindo
o fim de certo ciclo semântico da palavra "arte"; nem sequer imagina
que o termo "obra de arte" poderia designar, no futuro, conteúdos in
teiramente distintos.
Já o nosso século xx é mais relativista. Hoje se tornou trivial re.
cordar que o nosso conceito de "obra de arte" é de formação recente
que a distinção entre ar/üla e arresto seimpôs apenasno fim do século
xvm e que um grego do século iv a.C. diante do Doríforo de Policleto
ou um monge do século xni diante de uma Virgem gótica seguramente
não tinham a sensaçãode contemplarem uma coisa destinada a propor-
cionar-lhes um prazer estético. E isso pela simples razão de que a noção
de "prazer estético" também é uma descoberta recente assim como a

8. G. W. Hegel, i rÁerz't(Introdução), in Sàm /i cÁe}Her4e,/uóz'/ãu«ziazuXaóe, ed. H. Glock-


ner. Stuttgart, Frommann, i949>v. xn, p. 3zled. bus.: CurToS de esiáfzca,trad. M. A. Werle
São Paulo: Edusp, i999, p. 35.

33i
Y'

própria "estética", enquanto estudo da belezana arte. E Kant que, em


i79o, determina o caráter "estético" de um objeto pelo fato de ser este
capaz de dar-me, quando o percebo, um praÍerpzzro, isto é, um prazer
independente de qualquer motivação interessada (ideológica, utilitá-
ria. erótica etc.). A partir dessemomento, a obra de arie enquanto tal
ganha um estatuto. A palavra designa um produto que é destinado agerar,
no receptor,um prazerpuro, ou ainda:a ier conremp/ado.
Poisasduas
coisasdão no mesmo."Enquanto o desejo", escreveSchiller, "apr"nde
imediatamente o seu objeto, a contemplação afasta o seu e faz dele a sua
propriedade autêntica e irrevogável por tão-somente subtrai-lo à pai-
xão." E acrescenta que a contemplação é "dm ers e /íóeraZe Her,bd/[/zú"
[a primeira atitude ]iberal] do homem para com o mundo.' A questão
e saber se o que hoje entendemospor "obra de arte" continua essen-
cialmente ligado a essaatitude de con e/np/Grão,como pensavam Kant,
Schiller ou Hegel. . .
Se não mais estiver, isso não deverá surpreender ou escandalizar,
pois o conceito de obra de arte constituído naquela épocaestavamar-
cado por muitas valorizações implícitas, e até mesmo por vamosp'zrrn
P,iç Não é qualquer espécie de obra que suscita essa atração mesclada
de respeito que se chama co/ze/np/afâo.Acontece tratar-se, por.excelên-
cia. de uma obra içzza/:era a partir da escultura e pintura antigas que
Winckelmann definia o cânoneda beleza-- e sabe-seque, para Hegel, a
escultura grega representao momento em que a art.eatinge melhor
uilíbrio e realiza melhor o seu conceito. Passadoesseapogeu, a
arte só poderá declinar. Pois a Esrét/ca de Hegel é tanto a história da evo-
lução da arte como a do seu declínio inevitável: a arte se dirige para o
ponto em que a sua missão espiritual será consumada em que as suas
obras não serão mais que obletos oferecidos à curiosidade histórica.
Por que, segundo Hegel, deve ser assim?
E que Hegel só faz justiça à arte dentro dos limites, afinal de contas
tão estreitos, do seuracionalismo. A tarefa da "bela aparência" artística,
segundoele, é libertar-nos da aparênciasensorial,impura e grosseira.
No quadro de um mestre holandês, não é a exata reprodução dos.obje
tos que nos agrada: é que "a magia da cor e da iluminação" transfigura

9. F. Schiller, Zeffrei iur /'édizfafzonei Àéflguede /'Ãanzme(Carta 25).Paras:Aubier, i976


edição bilíngüeled. bus.: Carro iaóre a educaçãoesféfzcado comem,trad. R. Schwarz e M.
Suzuki. São Pau]o: l]uminuras, l995].

b3Z ''l mutação da obra de arte


as pobres coisas naturais que são representadas; é que as cenas prosai-
cas de quermesses e bebedeiras são metamorfoseadas num "domingo
da vida"; é que a "bela aparência" torna fascinante o que, na vida, nos
deixava indiferentes. Assim, a representação artística é, à sua maneira,
uma negação sorrateira do sensível: ante nossos olhos, o sensível torna-
se aquilo que ele não é. Mas, é claro, é sempre a/zfenoiioi o/Zo.çque
se efetua essatransmutação; é sempre no iemzbe/ que a arte critica o
sensível e, porque a obra de arte se apresenta necessariamente numa
matéria sensível, ela não pode ser "o modo de eiipressão mais elevado
da verdade". O fato de a obra de arte se dirigir à aúzÃeiü constitui, para
Hegel, tanto a sua essênciacomo a sua limitação.
Esseparadoxo só me interessa aqui na medida em que governa a
análiseque Hegel faz do necessáriodeclínio da "arte". O signo desse
declínio é o estreitamento progressivo do suporte sensível da obra de
arte. A arte moderna continua, sem dúvida, a ser uma figuração sen-
sível, mas essafiguração precisa cada vez menos de matéria; torna-se
mais e mais ascética. Essa ascese,observa Hegel, vai crescendo em cada
uma das grandes formas de arte características da modernidade: a p;rz-
fzzra,que se liberta da "matéria espacial de três dimensões" e se contenta
com "a aparência criada pelas cores"; a múzca, que se liberta de todo
suporte material permanente e se contenta com uma "matéria vibrante"
e efémera;a poe.fza,finalmente, que reduz a sonoridade à palavra arti-
culada. Com ela, diz Hegel, alcançámos o limite da arte o ponto além
do qual a obra já não sedirige aos sentidos, mas ao espírito.
Essa análise, que acabo de resumir, está eivada de preconceitos
intelectualistas. Não deixa, porém, de ser sugestiva, se admitirmos que
Hegel está falando, sem o saber, do declínio de certa concepção da arte
e não, como acredita, do declínio da Arte em geral. Hegel não concebe
outro tipo de arte que não aquela cujas obras se propõem como coisas
independentes e que nos confrontam uma arte que transforma os seus
receptores em expecadorei. Desde que essacondição não seja mais preen-
chida inteiramente, a obra de arte, segundoele, começaa faltar à sua
missão. Nesse sentido, um texto de Hegel, a propósito da diferença entre
a visão pictórica e a audição musical, é altamente significativo:

Por mab quemergu11Lemos


na situação, lhoscaracteres,nm formas de uma
estátuctou de um quadro, queadmiremos a obra, que eLanos tramporte ou
enleve, isso não adianta nada (es hilft nichts).' esim oófm ião e cona/nz'am

333
Y'

sendo objetos que têm a sua comistência para si' e nossa relação. com elm é
../npre uma reZafãode espetáculo(Anschauen). Ora, 'zamú;ca, exma
db
''-'r' ' -'''- ' ' zr-se, essa não se torna uma objetividade
unção desaparece \-l\ '4o ncterion .

perna/ze/zze/zo espaço[..-] á [zma comunicação gue, em ve{ de er um apoio


próprio, sóé conde;ÍHap'Lo interior e pelo subjetivo.'

dagam "o que isso JzgneFca,e não mais o que isso e

Disso tudo, o que decorre? Quanta mab o olho e o ouvido se prestam ao pen
lamento, mais se aproximam do Limite em que termina a sua sen.suaLidade=

:=ll;l;l:'l::ll. ..;. .'~ó« [...]. .'«ó.' ''"' «'' «: "'* ' f";'=!
coisa. \Mas Nietlsche acrescenta, imediatamente (mostrando que está mau
peTtO da estética clássica do que acreditavahÀ e, por. esta via, chegamos à
barbárie, tão seguramente quanto por quahuer outra.

a sua m-
Walter Benjamin, em certa medida, retomou essestemas.Mas J . .l í. :.

denunciar o cinema como o novo ópio do povo, Benjamin reconhece que


o cinema, contrariamente à pintura, "não convida mais à contemplação",
mas evita cuidadosamente ver uma marca de inferioridade nessetraço es-
pecifico da nova arte. É verdade que o filme não se deixa olhar.? vontade
e que peneira no público, em vez de oferecer-se a ele. Mas por que esse
tipo de recepção seria inestético? Em nome de que estética se conferiu até
agora esseprivilégio desmesurado à cozzremp/afãs?
' Contemplar é deixar a coisa impor-se, mantê-la na sua estranheza
Walter Benjamin nega que toda relação com a obra de arte deva con

io. G. W. Hegel, OP.cit.) v. xiv, PP' :Z9'3o'


ii. F. Nietzsche, op. cit., n: u7-

334 '4 ":ufafão da pára de ar e


formar-se a essemodelo. Por que só haveria salvaçãoestética graças
à contemplação? Vocês notarão que basta propor esta questão para ir de
encontro a preconceitos antiqüíssimos. Basta pensar nessasqueixas perpé-
tuas, contra a rapidez da vida moderna, ou a nocividade dessesanestésicos
barulhentos que seriam -- ao que parece -- os meios de informação; contra
todas essascoisas que impediriam o espírito de recoZZer-ie.
Que esquisito ideal monástico (ou rousseauniano) é esse,em nome
do qual tantos espíritos biliosos se dispõem a lançar o opróbrio sobre
as nossastécnicas?E, principalmente, por que fazer da contemplação o
vivido cultural por excelência?JáAristóteles zombavadessesplatóni-
cos que acreditam que o artesão produz a sua obra com os olhos postos
nasldéias.
E, seperguntarem: o que é então a obra de arte, se não é um objeto
de contemplação?, eu responderei; por que não seria um oOe/o de mo? É
verdade que uma longa tradição apresenta o objeto de arte como o con-
trário de um objeto útil mas não se deve confundir oé/ezozír;/e o0ero
ur/alado. Quando utilizamos um instrumento, não o visamos como um
objeto zít//: simplesmente nos servimos dele, sem pensar muito execu-
tando os gestos que ele exige de nós, fazendo-o dar o desempenho que
esperamosdele. Igualmente, quando leio um livro, não tenho consciên-
cia de estar di.znfe de um objeto, assim como não tenho consciência clara,
quando escrevo, de estar dza/zreda máquina, assim como o pianista expe-
riente não tem consciência clara de "estar ao piano". Essesinstrumentos
(no caso: esses sistemas de signos) apaga«':-ie /za süa zz;# afãs e só
readquirem sua independênciaquando deixam de funcionar.
Ora, a presença específica de uma obra de arte (tema de tantas medi-
taçõesfilosóficas) não viria do fato de que essaobra, antesde mais nada,
se dá como um guia que se oferece ao usuário? E a sua originalidade on-
tológica não se deve ao fato de nós apraz;carmoabem depressa, como um
instrumento que nos é familiar? A obra de arte não seria, antes de mais
nada, algo a z'r/Z;Íar? Tome-se o caso (tão negligenciado) da arquitetura.
E justamente para serem utilizados e não apenas, não basicamente para
serem vistos que foram construídos os templos, as catedrais, os palá-
cios. Na relação do público com a arquitetura, observa Walter Benjamin,
não é a acolhida visual que predomina (excetuando-seos turistas que
visitam um monumento), mas a acolhida tátil e essa"faz-se menos pela
atenção do que pelo hábito [...]. No âmbito tátil, nada existe, deveras,
que corresponda ao que é a contemplaçãono âmbito visual"
l
Podemosir mais adiante e perguntar se aspróprias artes do visível
stinam-se exatamente a c!merecer
;mago à contemplação. É justo. di-
zer que vamos ao cinema ou.sentamos à frente da tele=são p.ra olhar
imagens? Mal tenho tempo de ver pass;r a imagem. . De modo que o
cinema e a televisão só constituem verdadeiramente espetáculos para
. filmólogo, que faz projetar várias vezes o mesmo filme e o estuda en-
te um oó/efo. Mas, para o usuário, as imagens não aparecem engtz'zero

;mexe/zs(anão ser que o filme seja enfadonho): ele as vive como veículos
de informação. E é por isso que a pallte essencial do trabalho fiHmico é a
/montagem,que regula o ritmo segundo o qual ê passadaa informação
Trata-se de um novo tratamento da imagem? Mas a noção clássica

-'-"vn'' ''"-
-' ' i,talvez, quando me apaixonopelapassa'
umparenteouamigomorto;o . . : --

51h'i:Ü ;: 3 1rl
circunstâncias são excepcionais. A maior parte do tempo,.uma imagem
nos interessa porque indica alguma coisa que não está na imagem: pelo
que nos deixa adivinhar, ou pelo que continua a ocultar. Somosmuito
l-'s os detetives do sensívelque os seus voyeürx,Platão dizia que a
contemplação das imagens nos distrai da contemplação das Ideias. Mas,
dessa maneira, estabelecia uma homogeneidade enganosa entre a ope'
mção perceptiva e o ímÜÃt intelectual. Admitamos que secontemplem
as Idéias'.que outra coisa fazer com elas, ]á que, por J?rincípiolelas s:lo
' diante do nosso entendimento? Mas, por
exibidas,eternaseimutáveis, . . . .
meio das imagens, limitamo-nos a nos informar e orientar. Contempla-
mos asIdéias; interpretamos as imagens, e é por isso que asolhamos tão
pouco- E também por isso que nada me parece mais conteslavel do que
opor a civilização da imagem" à do intelecto. Seria melhor dizer que a
-r''" ' ' ráficasoutelevisionadas)nosforçaaum
práticadasimagens(cinemato. . ; .. :.- .
exercício intelectual de outro tipo, a uma compreensão mais concisa, a
uma leitura mais rápida e, talvez, a um melhor domínio do alusivo.
"A Arte", dizia Hegel, "não pode servir-se de s;mp/es s;Frios; deve
dar às significações arrasa/zfa será'e/ que lhes corresponde."'' Mas, a

iz. Hor/enz/zge/züóer dfe i fÀer;X [Pre]eções sobre estéticas in }HerÉe.Frankfurt am Main=


Suhrkamp,i97q v xiv, P-Z7Z'

b'56 '4 mutação cla obra cle arte


partir do momento em que o sensívelé tratado como um sistemasigni-
ficante, percebemosuma vez mais que Hegel, ao dizer o que "a Arte
não pode ser, permite-nos entrever a essência de uma arte que era incon-
cebível para o pensamento clássico. Quando Hegel vê como um defeito
da música o fato de ela dirigir-se a um receptor e não a um espectador,
leva-nos, hoje, a perguntar se não há uma pintura que se aproximaria
da música,'' e sea pintura moderna, desdeo impressionismo,não é um
exemplo notável de mzzfafãoda obra de arte.
O impressionismo, como se sabe,efetuou uma nova análise do ato
de pintar. Os impressionistas começaram a tomar consciência de que a
reprodução ilusionista era apenas uma mensagem de extensão muito res-
trita, que estava longe de esgotar os recursos da pintura. Schopenhauer
define muito bem o trabalho do pintor clássico ao dizer que ele parte de
uma dissociação entre ü«- eÓe;ro(a afecção sobre a retina) e a izza cam':
("os objetos exteriores cuja simples sensação faz nascer a percepção no
espírito"). Portanto, o pintor, diz ele, é quem busca produzir o meigo
e#e/fono olho pela instauração de uma cama z/zlezramenre
d/versa, a saber,
pela "aplicaçãode manchascoloridas",'' e dessamaneira proporciona
ao espectador a ilusão de que ei á reproduÍúzdoa realidade.
Mas por que tal dispositivo deveria servir apenm para reprodzzÍ;r?
Por que as manchas coloridas não seriam também capazesde sugerir?
Ê esta,dizia Pierre Francastel,'sa grande descobertade que a pintura
vai tirar partido, depois dos impressionistas. Em vez de dispor na tela o
duplo dos signos formados na retina, dispõe-se nela uma configuração
diferente da registrada pelo olho humano, "mas que a experiênciare-
vela izzgesr;vapor an.z/og/a". Assim, o artista "inventa uma composição
que, no plano intelectual, suscitano espírito sensações i;m//á eú às
experimentadasem presençado mundo". Assimiláveis, e não maisieme-
ZÃ.z/frei:
o que supõeuma atitude muito diferente do público. Eis uma

i3- É interessante notar que essacomparação, que Hege] teria julgado absurda, vai-se for-
mando espontaneamentenos escritos de Delacroix e Baudelaire(.çaZonz#46);em Gauguin,
que fala do "significado musical da cor" em Kandinsky. Mais do que uma metáfora, isso é
o sinal de uma guinada na concepçãoque o pintor formou da "obra de arte" e, simultanea-
mente, do imaginário.
i4- Arthur Schopenhauer,
Z)íe Me/fa& Wz'/Ze
zzndHor=fe//zzng,
suplementoaoLivro m, cap 36
[ed. bus.: O mzzndocomo o/zadeergresenfafâo,trad. M. F. SáCorreia. Rio de Janeiro: Contra-
ponto>zooiJ.
i5. Pierre Francastel, ,4ri ei laca ;güe. Paras:Editions de Minuit, 1956. pp. zzz-z3.

337
'7'

H -

i" T:lÍ=::.=1::=::'=;" ":: ; ..«-:.


. ,,"": !:.=:::
Ê !üÜl:::i:::t: ';:=={: ::n
b38 Arnutqãodaobrade arte
de Rousseau, mas no sentido dos laboratórios de psicofisiologia) for
educadapela civilização técnica, mais se imporá a evidência de que essa
arte, longe de ser irrealista, é a expressão do nosso novo mundo vivido.
o registro dos seussinais. Isso não se torna patente à medida que os
homens se habituam, desde a infância, a um meio ambiente que ]á não
tem muito que ver com o mundo serenoda "representação"?Pierre
Francastel recorda-nos que, "durante muito tempo, leram-se os textos
em voz alta, mesmo a sós. Pode-sepretender que uma sociedadeem
que todas as crianças aprendem a ler com os olhos conserve o mesmo
sistemanlgurativo da Idade Média e dos Tempos Modernos?" Essare-
flexão é rica de prolongamentos. O que dizer então de uma sociedade
em que as crianças,.para dar só um exemplo, ienrem a velocidade a partir
experiência dos bólidos e dos latos? '
E por isso que, aos que incriminam ou exaltam a pretensa "abstra-
ção" da arte moderna, devemos responder que a expressão arie aószr'zra,
tomada literalmente, é um conzr emo. Não há arte que não ressoefor-
mas determinadas de recepção sensorial, de motricidade, de controle
sobre as coisas. Foi a mutação excessivamente brutal dessas formas nas
últimas gerações que criou para uso dos filisteus e dos estejas. esses
eternos cúmplices -- a ilusão de uma arte que seria desvinculada de toda
referência mundana. A arte só é visada como "abstrata" quando ainda
não encontrou o seu público, a saber, aqueles que serão capazes de en-
contrar nela os seus próprios acontecimentos sensoriais. O esoterismo
arte declinara rapidamente para aquelescuJO"mundo sensível«é
cada vez mais constituído por sinais e menos por imagens -- para aqueles
cujo sistema perceptivo é modelado pela velocidade numa rodovia ex-
pressa,pelo turbilhonamento das luzes numa discoteca,pela rajada das
agens televisadas. O que pressentia a arte chamada "abstrata'; é que a
mutação de nosso mundo circundante seria acompanhada por uma mu
raçãodo imaginário. Quando Mondrian dizia que pretendia excluir tudo
quepudessesugerir uma forma particular, estaprofissão de ü podia ser
julgada esdrúxula. Ela não pode mais sê-lo para sistemassensoriaisque
são acostumadosa ritmos que destroem as formas particulares.
A obra de arte perdeu a sua "aura". Está a ponto de não se ofere-
cer mais como um aerólito prestigioso e irredutivelmente estranho. Mas
essenão é o preço pago pelo fato de que, semo percebermos, ela conse-
gue investir cada vez mais a nossa vida, afundar-nos no âmago do perce-
bido ou do subpercebido, em vez de aparentar abrir-nos outro mundo?

339
Y'

34o '4 mu'afâo da obra de arfa

Você também pode gostar