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1- Introdução:

A Gaia Ciência é um título que marca o período de transição da obra de


Nietzsche em vários sentidos. Aqui o autor de “O nascimento de tragédia” se
torna por vezes irreconhecível, algo que o próprio Nietzsche deixa evidenciar
em alguns aforismos. No primeiro prólogo, por exemplo, ao construir uma
metáfora para a obra ele se refere ao livro como “escrito na linguagem do vento
que dissolve a neve: nele há petulância, inquietude, contradição...” O vento
aqui pode ser entendido como uma renovação pronta para dissolver aquilo que
é solido, tal como a neve, uma renovação carregada de contradição de visões
superadas, inquietude da percepção da modernidade e petulância dos valores
arraigados em uma certa tradição.

Para entender melhor a cerca dessa fase transitória da obra de Nietzsche, é


fundamental ter em vista aspectos de sua biografia, tal como sua relação com
Wagner. Isso porque durante anos Nietzsche sempre teve muito apreço pela
figura e pela obra de Wagner, chegando a categoriza-lo enquanto o maior
expoente da música dionisíaca da modernidade. O rompimento entre os dois
possibilitou uma mudança de paradigma nos seus conceitos, o que então nos
leva A Gaia Ciência. Pois, aqui já não temos mais um Wagner enquanto
expoente do trágico, mas um Wagner decadente tal como a modernidade
enxergada por Nietzsche. Resquícios dessa relação pode ser encontrado no
aforismo 279 “Amizade estelar” dedicado à Wagner, nesse relato Nietzsche
entende sua relação com o musico como “dois barcos que possuem, cada qual,
seu objetivo e seu caminho”. Esses caminhos diversos é uma das referências
centrais para a compreensão da Gaia Ciência.

O fato é que aqui temos um Nietzsche um pouco mais amadurecido, livre do


wagnerismo e do pessimismo de Shopenhauer.Tendo isso em vista, pretendo
tentar compreender como essas rupturas influenciaram na sua filosofia, em sua
compreensão do real e da modernidade decadente. Para isso, terei como base
algumas discussões centrais trazidas em sala, sobretudo acerca da temática
do romantismo enquanto empobrecedor de vitalidade, e quais alternativas a
obra nos possibilita. Ao fim, pretendo realçar essa perspectiva romântica em
contraposição ao neorrealismo brasileiro presente no filme “Vidas Secas” de
1963 dirigido pelo cineasta paulista Nelson Pereira dos Santos.
2- O Romântico para Nietzsche:

No aforismo 370 Nietzsche, ao tentar responder à pergunta título “O que é


romantismo? ” Visa romper com o que ele chama de pessimismo romântico,
personificado por Shopenhauer e Wagner, anunciando com isso um outro tipo
de pessimismo, o pessimismo “clássico”, o pessimismo dionisíaco. A ideia de
clássico, no entanto, não faz alusão a um sentido literal da palavra, e sim a um
aspecto psicológico, que por sua vez contrapõe a própria ideia do romantismo,
que também não está sendo empregado em seu uso habitual. Para Nietzsche,
românticos seriam aqueles que sofrem por empobrecimento de vida, que
buscam silêncio, quietude e redenção de si nas artes e nos conhecimentos. Ao
mesmo modo em que a ideia de clássico é empregada a aqueles que sofrem
por abundância de vitalidade, que buscam antes de mais nada uma
compreensão trágica da vida, esses, segundo o autor, seriam capazes de
transformarem “todo um deserto em um exuberante pomar”. (No aforismo 340,
Nietzsche personifica esse último sofredor a figura de Sócrates, que segundo
ele “sofreu da vida”)

O fato é que tanto o pessimismo romântico, quanto o pessimismo dionisíaco,


são antes de tudo expressão do sentimento de náusea presente na Europa
durante o séc. XIX, um período no qual a promessa da técnica e da razão, (tida
até então enquanto responsáveis pela emancipação do humano), na verdade
resultou na radicalização do niilismo, um sentimento do qual a busca de
fundamentos nos levaram ao vazio da existência. No aforismo 125 “O homem
louco” Nietzsche constrói uma metáfora para evidenciar esse processo. A
morte de Deus anunciada é antes de mais nada a morte da salvação, da vida
eterna, e sobretudo da esperança no redentor. No entanto, a falta de uma
divindade não resultou no processo de afirmação da vida, mas na sua
negação, isso fez com que o homem buscasse suprir a luz ausente da
divindade nas artes e na filosofia, como forma de se suspender do real vazio e
sem fundamentos. Assim surgi o romantismo entendido por Nietzsche
enquanto caminho para negação da vida o que resulta no seu
empobrecimento, quando na verdade seria justamente a afirmação da vida
capaz de superar o niilismo trazido pela modernidade, gerando assim
abundância de vitalidade.
2.1- A Ferne e a Distanz:

Aprofundando mais nessa questão, o aforismo 15 “De longe” o problema do


romantismo é retomado tendo como pressuposto básico o ver. Para entender
melhor Nietzsche estabelece uma distinção sobre o conceito de distância, ora
entendido como Ferne ora como Distanz, o primeiro possui uma forte relação
com a ideia romântica de sublime, nesse sentido o indivíduo arrebatado com a
paisagem exuberante do monte (em clara alusão a tela “Der Wanderer über
den” de Caspar David Friedrich) se decepciona ao chegar no topo. Essa
percepção faz com que ele perceba que “algumas grandezas como algumas
bondades, pedem para ser vistas a uma certa distância”, e nesse sentido a
ideia de distância está sendo empregada ao conceito de Distanz, que no trecho
claramente se diferencia da carga romântica, a medida em que não eleva mais
o indivíduo ao topo do monte, mas ao contrário, pois só pela visão de baixo que
o conceito terá seu efeito. Ao fim do aforismo, fica mais evidente a perspectiva
da qual Nietzsche atribui ao romantismo, pois segundo ele, indivíduos que
tomam como princípio a Ferne” não lhes é aconselhável o autoconhecimento”.

Se no aforismo 140 o foco estava no ver, no aforismo 60 “As mulheres e o


efeito a distância” a problemática central está no ouvir, aqui Nietzsche irá
retornar a esse jogo conceitual entre Ferne e Distanz, tal como anteriormente.
Para isso, ele toma como referência a opera “O Navio Fantasma” de Richard
Wagner. A música enxergada por Nietzsche (sobretudo a música wagneriana)
seria nada mais do que uma válvula para a Ferne, ou seja, o sublime, o
romântico, arrebentando o sujeito ao silêncio perante ao caos da realidade pois
“Todo grande ruído nos leva a pôr a felicidade na quietude e na distância”, mas
no fim “Mesmo no mais belo veleiro há muito ruído e alarido” sendo necessário,
portanto a Distanz.

A ideia de ferne, porém, recebe outra carga no aforismo 107 intitulado “Nossa
derradeira gratidão para com a arte” Ao contrário do que visto até aqui,
Nietzsche entende que a arte enquanto culto do não verdadeiro é o que ainda
faz a existência tolerável. Assim seria necessário transformar a própria vida em
um fenômeno estético, se elevar ao monte não mais buscando o sublime mas
para atingirmos uma ferne artística que nos possibilite “descansar de nós
mesmos” descobrir o herói e o tolo que existe em nossa busca pelo
conhecimento. Fazer da vida enquanto fenômeno estético instrumento para
flutuar perante a moral. Nesse sentido, compreendo a ferne utilizada nesse
aforismo não mais enquanto instrumento de negação da existência, mas como
uma ferne artística que nos possibilite que através de uma visão de cima olhar
para si e zombarmos de nossa própria estupidez, para que possamos continuar
nos alegrando com nossa sabedoria.
Com isso, a construção da crítica nietzschiana ao romantismo é realizada
justamente através da distinção entre ferne e distanz como visto nesse três
últimos aforismos. Para superar essa visão Nietzsche apresenta o terceiro
conceito de ferne artística como princípio para compressão da vida enquanto
fenômeno estético, de tal forma que possa anular o empobrecimento de
vitalidade ocasionado pela ferne romântica.

3- Vidas secas enquanto representação estética Niilista

Tendo em vista a percepção romântica trazidas pelo olhar Nietzsche na Gaia


Ciência, pretendo agora contrapor os elementos estéticos atribuídos ao
romantismo com o filme “Vidas Secas” de 1963 dirigido por Nelson Pereira dos
Santos considerando sobretudo os seus aspectos niilistas.

De início o que mais chama atenção na obra é a ausência de uma trilha


musical. A única sonoridade característica do filme é o ruído das rodas de um
carro boi. Esse ruído se apresenta muitas vezes de forma a realçar o tédio e a
penúria dos retirantes no sertão. Evidencio esse ponto para retomar as
reflexões trazidas no aforismo 60 trabalhadas no tópico anterior, isso porque
não existe no filme nada que destoe ou que negue a realidade dos retirantes,
de tal forma a tirar do espectador a expectativa de se arrebatar pelo sublime
como em uma opera wagneriana. Essa percepção fica evidente no trecho em
que Fabiano vai buscar seus ganhos na casa do arrendador da terra. Nesse
momento, o ruído incomodo do carro de boi dá lugar a sonoridade de um
violino presente no cenário que representa a casa do proprietário, um contraste
abismático que evidencia quase que um mundo paralelo no plano físico do
sertão, um elemento que nega a totalidade da realidade retratada dos
sertanejos.

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