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Eduardo de Faria Carniel

Universidade de São Paulo

Disputas do visível
The Shining de Kubrick e os sentidos de Overlook

Literatura e Cinema nos Estados Unidos pós-1968


Prof. Marcos César Soares

São Paulo
2022
The Shining: disputas do visível no filme de Stanley Kubrick

Eduardo de Faria Carniel


Orientador: Prof. Dr. Marcos César de Paula Soares

O filme The Shining, peça importante da filmografia de Stanley Kubrick, se diferencia


de boa parte dos filmes de horror do seu período ao privilegiar, como seu elemento
aterrorizante, menos a construção de um Mal sobrenatural e absoluto em favor da
deterioração das relações de uma família aos moldes do núcleo tradicional americano. Entre
tantas ambiguidades constitutivas do longa, o duplo significado do nome do hotel em que se
passa o enredo (“Overlook”: supervisionar/passar despercebido) aponta, simultaneamente,
para a disputa de poder que estrutura conflitos formais e temáticos na obra, e para o seu
processo de criação de sentido característico, baseado na associação de elementos que se
apresentam ocultos do foco central. Esse tratamento dado ao material permite examinar o
filme como uma tentativa de representar um sentimento de mal-estar próprio do fim dos anos
70, em que a disputa de projetos de estabilização social nos EUA após um período de revoltas
abriu um período generalizado de crise de confiança nas instituições - crise essa que foi mais
tarde capitalizada como ferramenta para estruturação do projeto ideológico de Reagan.
Palavras-chave: The Shining; Stanley Kubrick; terror; Estados Unidos; anos 70
Na sua adaptação de 1980 para o cinema do romance de Stephen King, The Shining,
Stanley Kubrick famosamente tomou um grande número de liberdades artísticas. O texto
original apresentava a família nuclear protagonista (o pai Jack, a esposa Wendy e o filho
único Danny), representantes do ideal a ser preservado da família americana, ameaçadas por
uma entidade sobrenatural na figura do Hotel Overlook, na veia de outros romances do
mesmo autor. O título do livro, referência ao poder telepático e premonitório da criança,
ressalta esse caráter da ordem do oculto, e coloca especialmente Jack como uma figura
trágica, psicologicamente ameaçada, dividida entre seu amor paterno e a irresistível
deformação que é imposta a ele por um terror puramente externo. As suas últimas palavras ao
filho antes da morte, consumido por um incêndio que também afeta o hotel, são uma
reafirmação desse amor mesmo em meio a tal tragédia.
Um dos mais vocais detratores das escolhas adaptativas de Kubrick foi o próprio
King. O centro da sua insatisfação foi colocado na maneira como o cineasta não teria
conseguido conceber um mundo sobrenatural, nem o mal desumano que permeava o
Overlook, tendo se restringido ao mal-estar demasiado corriqueiro da vida dos próprios
personagens.1 Se por um lado a decisão de Kubrick de alterar substancialmente o tom e o eixo
fundamental do seu material-fonte não é nem de perto exclusividade de The Shining, por
outro é de se questionar o que motivou o diretor a buscar um enfoque tão íntimo dentro da
estrutura do horror, um gênero audiovisual que, na década de 70, viveu um ciclo de
reinvestimento pela indústria que consolidou uma gramática própria, tanto a nível de
produção como de recepção. Filmes como The Exorcist (1973), The Texas Chainsaw
Massacre (1974) e The Omen (1976) construíram um repertório de convenções muito mais
alinhado aos objetivos colocados por Stephen King em sua prática artística e posicionamentos
críticos - a dizer, a exploração do Mal, o crucialmente monstruoso que ganha forma narrativa
a partir daquilo que não é possível na realidade material, implicando que esta seria natural
demais aos olhos do espectador, e o trabalho artístico sobre ela não teria capacidade de trazer
à tona o efeito aterrorizante desejado.
Este trabalho vai se ocupar da hipótese de que, assim como o fez em outros gêneros
na sua filmografia, a escolha de Kubrick de realizar um filme de horror tem menos a ver com
a vontade de adicionar mais um capítulo a uma tradição consolidada, e mais com a

1 Em entrevista a revista Playboy, King conclui que Kubrick “looked for evil in the characters and
made the film into a domestic tragedy with only a few supernatural overtones”.
VON KEITZ, Ursula, “The Shining - Frozen Material: Stanley Kubrick's Adaptation of Stephen King's
Novel”, in REICHMANN, Hans-Peter e FLAGGE, Ingeborg (eds.), Stanley Kubrick, Kinematograph
no. 20 (Frankfurt am Main: Deutsches Filmmuseum, 2004), p. 187.
exploração das ferramentas permitidas pela sua linguagem específica para trazer à tona um
mal-estar mais generalizado, que não é da natureza do externo, mas das movimentações
internas de um período dos EUA, em que a disputa pela estabilização de uma série de
irrupções sociais e políticas vinha caminhando para um arranjo específico das forças
históricas, incorporando as contradições expostas em uma hegemonia de novo tipo. Se existe
uma possibilidade do filme de horror ser produtivo como lente de aumento para a
investigação de um etapa histórica marcada por ambiguidades, é concebível que haja um
ganho cognitivo na construção de uma forma artística mais preocupada com o tratamento
dessas ambiguidades - em oposição ao estabelecimento de categorias puras como Bem e Mal,
como era de praxe nos filmes mencionados do mesmo gênero. De muitos pontos de vista
possíveis para analisar essa possibilidade, queremos propor a análise de uma ambiguidade
linguística, que se desdobra em algumas questões organizadoras da matéria do filme. Se o
mais perto de uma entidade diabólica do filme é o próprio hotel, vale refletir sobre os
significados do nome Overlook.

Overlook: a disputa do comando narrativo

A cena de abertura de The Shining traz tomadas aéreas sobre um relevo natural, que
combina lagos, vales e montanhas que fazem as vezes do interior do Colorado. Apesar de um
tom de espontaneidade dado pelo movimento muito ágil e dinâmico da câmera, os
enquadramentos são muito precisos, sendo o primeiro de todos quase perfeitamente
simétrico, tanto horizontal quanto verticalmente, e com uma ilha que marca o centro exato da
tela.
As tomadas vão continuar ao avistarmos o carro que transita por uma estrada
serpenteante por entre as florestas, que mais tarde descobriremos ser o veículo do nosso
protagonista. Mesmo seguindo o movimento do mesmo, a câmera mantém independência em
relação a ele, ascendendo e descendendo em diferentes momentos, e inclusive perdendo-o de
vista em diferentes momentos, implicando assim uma autonomia dessa instância narrativa ao
que supostamente seria o centro das nossas atenções em uma linha de enredo tradicional.
Logo somos tratados ao primeiro dado dos créditos de abertura, antes mesmo do título do
filme: “A Stanley Kubrick Film”. O cineasta, já com uma vasta obra, carregava uma
reputação que ganhava contornos quase mistificados acerca do seu controle sobre a produção
e o set de filmagem, reconhecida por um nível de atenção à composição e ao detalhe que já
foi chamada de perfeccionista2. Exageros à parte, a combinação entre créditos,
enquadramento e movimento de câmera dialoga com essa lógica a ponto de criar uma
impressão de autorreferencialidade, como se a instância que controla os elementos
apresentados fosse consciente desse fato, e disposta a mostrá-lo ao espectador. Alguns outros
dados do filme confirmam essa impressão: o longa é conhecido pelos travellings muito
frequentes dentro dos corredores do hotel, que sugerem também uma presença narrativa que
segue ou antecipa o destino dos personagens. Quase como uma gag pela sua explicitude, o

2 GELMIS, Joseph “The Film Director as Superstar: Stanley Kubrick”, in PHILLIPS, Gene D. (ed.),
Stanley Kubrick Interviews (Jackson: University Press of Mississippi, 2001), p. 102.
ponto de vista do filme faz questão de deixar claro a sua consciência da execução dessas
tomadas, enquadrando em algumas cenas um cartaz que diz “Camera Walk”.

A possibilidade de que esta instância seja o diretor empírico é improvável, o que


levanta a questão se haveria um foco narrativo dentro da diegese responsável por esse ponto
de vista. O aparente primeiro candidato é Jack, mas o fato da câmera constatar o seu processo
de autonomia em oposição ao mesmo já no início do filme coloca uma dúvida sobre essa
perspectiva. Isso não quer dizer que ele não busque se colocar como uma figura que organiza
os elementos da narrativa, ao transmitir ao seu pretenso futuro chefe Sr. Ullman que sua
família ficará muito animada com a perspectiva de morar no hotel (contradito pela cena
imediatamente anterior, em que Danny se queixa à mãe dessa ideia) e de que sua esposa não
se importará com a trágica história do hotel por ser uma fanática de filmes de terror (dado que
nunca vemos se confirmar em nenhum momento).
Independente dessas insuficiências - mais uma vez, atestadas pelo ponto de vista do
filme - Jack consegue o emprego como zelador do hotel durante o inverno, trazendo à tona o
primeiro significado do nome Overlook: o sentido de “supervisionar” ou “gerenciar”, que se
relaciona com a ideia mais literal de “ver de cima”. Não é difícil ver como esse sentido já
apresenta uma contradição em relação ao que foi apresentado até agora, já que, embora Jack
seja apontado como o responsável por supervisionar o hotel, a “visão de cima” não é
privilégio seu, e inclusive se define contra ele.
Como veremos, essa contradição se desdobrará em diferentes momentos do filme,
mas vale refletirmos sobre nosso questionamento inicial sobre as ferramentas da linguagem
do horror à luz dessa descoberta. Uma parcela razoável, possivelmente majoritária, das
narrativas do gênero (incluindo aí o romance The Shining) trata de um personagem feito de
vítima por uma força inescapável que ameaça a sua existência. Frequentemente da ordem do
sobrenatural, mas não restrito a ela, mesmo assim essa força é simbolizada como o Mal
descrito por Stephen King na sua acepção do Overlook. A busca desse personagem por se
libertar dessa força, com ou sem sucesso, costuma envolver uma necessidade de domesticá-la
a partir do seu deslocamento do absurdo para o terreno do definido e familiar - em outras
palavras, de afirmar uma posição de superioridade em relação ao Mal, mostrando que ele
pode ser vencido. Assim, em The Exorcist, o demônio que traz à luz impulsos pornográficos e
sacrílegos é confrontado pelos padres, que conseguem fazer valer uma ordem divina e o
poder de Deus sobre o Mal. Em um exemplo mais mediado em relação a essa oposição
binária, mas que mantém o mesmo encaminhamento de enredo, o assassino de Psycho (1960)
é capturado pelos agentes da lei, e na última cena tem suas motivações explicadas por um
psiquiatra com a ajuda de um vocabulário clínico.
Nesses exemplos e também em outros, os personagens que assumem esse papel de
superioridade são próceres de uma instituição, e as consequências ideológicas disso se
estendem para além do conflito apresentado. Não é coincidência que, em The Exorcist, os
padres não só banem a assombração demoníaca, mas também incutem sobre a possuída
Regan e sua mãe, que tinha sido apresentada como uma mulher solteira e independente, a
necessidade moral de retornarem aos seus papéis domésticos socialmente necessários. É
possível interpretar que grande parte do cinema de horror americano da década de 70, por
meio da elaboração do Mal como uma categoria em que se podia depositar todo tipo de valor
considerado abjeto, absorveu muito das respostas conservadoras aos novos movimentos
sociais que se afirmaram como agentes políticos dos anos 60, colocando jovens, mulheres e
pessoas negras no alvo das violências sofridas e apresentando-os, de maneira mais ou menos
explícita, também como parcialmente responsáveis por abrir espaço para esse tipo de força
considerada danosa e destrutiva.
The Shining, contudo, foi produzido em um momento mais tardio, em que a
relevância política desses movimentos estava viva no imaginário, mas tinha diminuído de
maneira categórica, seja pela sua incorporação institucional e política pelas forças políticas da
ordem, seja pelo seu combate físico pelo Estado. É por conta dos questionamentos à estrutura
social americana que resultaram desse período, especialmente em relação aos papéis de
gênero, que não existe espaço para que a instituição que toma o lugar de centro na narrativa -
a família nuclear - seja vista como um espaço de segurança e estabilidade. Se a primeira
referência de Jack em relação à sua família já é baseada na imposição de uma falsa aceitação
sobre a estadia no hotel, a conversa de Wendy com a pediatra que examina Danny após o seu
colapso no apartamento de Boulder apresenta o lado violento e abusivo do pai - e a
subjugação da mãe à ordem familiar ao colocar panos quentes sobre o ataque de Jack ao
filho. Esses são padrões que se intensificarão durante a convivência no hotel, em que Wendy
sempre será mostrada como a personagem que reproduz a vida doméstica (inclusive fazendo
o trabalho de manutenção das caldeiras, que seria responsabilidade do marido) e Jack cederá
mais profundamente aos seus impulsos violentos, se utilizando de um ideário patriarcal como
justificativa - como na referência de sua mulher como um “banco de esperma” e na adesão ao
discurso de Grady, o antigo zelador assassino, de que ela precisa ser “corrigida”.
À luz dos imperativos que são colocados pela gramática do filme de horror, a
fragilidade da instituição da qual Jack poderia se colocar como representante não o permite a
constituição subjetiva que o permitiria se sobrepor aos impulsos sobrenaturais, cabendo a ele
o papel duplo de personagem-vítima (já que é quem é possuído pelas forças do Overlook) e
de força ameaçadora. Portanto, retornamos à questão: qual personagem poderia ser
favorecido pelo ponto de vista do filme como aquele que tem a capacidade de “overlook”?
Danny parece ser um candidato, já que é a partir da sua perspectiva que o filme constrói, por
meio da montagem, cenas que interpõem elementos que vão expor a natureza do hotel ainda
no início do filme. Outros momentos mais sutis corroboram o favorecimento ao seu ponto de
vista: após o colapso no apartamento subsequente à visão do Overlook, a cena com Wendy e
a pediatra no quarto é enquadrada de um foco atrás da cama, onde estaria uma parede, e
portanto impossível de ser assumida por um personagem empírico. Porém, a presença, no
mesmo plano, dos brinquedos, das mulheres e do banheiro onde a visão aconteceu
incorporam elementos que só fazem sentido a Danny, indicando que a câmera adere ao seu
ponto de vista organizador dos dados da cena.

Porém, outros personagens assumem a mesma função de organizador da cena em


outros momentos, inclusive alguns que não são membros da família. A entrada de Jack no
quarto 237, por exemplo, aparenta se dar do ponto de vista do pai, a quem inclusive a câmera
subjetiva parece se emprestar. Porém, imediatamente antes da mesma, nós vemos Dick
Hallorann, o cozinheiro do hotel com quem Danny compartilha o dom do brilho, em um
quarto sob o quadro de uma mulher nua. Com o aparecimento da mulher na banheira
momentos depois, esses são os únicos dois momentos onde vemos personagens nus. Essa
construção nos dá a impressão de que Dick está construindo a visão do quarto 237 a partir
dos elementos nas suas próprias imediações, sendo ele, portanto, o ponto de vista de um dos
principais momentos do filme. Vale dizer também que a cena de Hallorann deitado na cama
sob o quadro da mulher é o momento da metade temporal exata do longa, o que é
significativo em um filme com muitas cenas de enquadramento central dos elementos-chave.
O mais provável, portanto, é que não existe um personagem-foco narrativo único na
obra, mas que o dado fundamental é o vácuo criado pela fragilidade de uma instância
unificadora, dada a instabilidade da figura que deveria, nas expectativas das estruturas sociais
presentes durante a cena, assumir esse papel, bem como da instituição que a sustentaria. A
esse vácuo sucede uma disputa pelo ponto de vista privilegiado, que se dá não só na forma
mas também na diegese - como na cena seguinte à visita de Jack ao quarto 237, em que o
mesmo insiste na versão de que Danny foi o responsável pelo seu próprio ferimento. Ao usar
as palavras “once you rule out [Danny’s] version of what happened, there is no other
explanation”, o pai materializa que a disputa sobre os eventos do hotel é fundamentalmente
uma disputa de narrativa, e de qual explicação tem mais autoridade.
Essa configuração específica do conflito - uma base ideológica que dá sinais da sua
exaustão, e provoca questionamentos a si mesma, buscando assim se defender, mesmo que
esses questionamentos não tenham a capacidade de se afirmar por completo sobre ela - pode
ser um sintoma da crise que decorre da turbulência dos anos 60. Porém, sem tirar o peso
duradouro que esses processos trouxeram para o debate americano, deve-se lembrar que eles
já estavam em descenso à época da realização de The Shining. A referência a outra crise,
desta vez imbricada na história da construção do hotel, nos dá pistas de que esses
questionamentos possam ser de outra natureza. Mas antes de contextualizá-la, buscaremos
nos debruçar sobre o outro lado da ambiguidade proposta no início deste trabalho.

Overlook: o velado e a produção de significado

A cena de abertura de The Shining acompanha as tomadas aéreas que apresentamos


com uma trilha sonora de tom ominoso, retirado da cena final da Sinfonia Fantástica de
Hector Berlioz. Em contraste com os belos visuais minimamente compostos, a música
imponente e tensa aparece quase para nos lembrar de que o que veremos será um filme de
horror, mesmo que as imagens não o indiquem. A escolha de uma peça romântica também
vai ganhar uma carga de ironia ao ser contrastada com o próprio Jack, que busca, no seu
isolamento, aspirar ao ideal do Artista como contraposição ao seu histórico de trabalho braçal
e alienado. A sua falência de se realizar também nesse âmbito pode também indicar um traço
de autoconsciência da instância narrativa na escolha de uma trilha que confronta o material
narrativo de maneira crítica, reforçando a sua autonomia como já dito anteriormente.
Enquanto a câmera segue o carro, contudo, a trilha vai sofrer interrupções que
destoam da imponência tonal de Berlioz, na forma de grunhidos atonais que se assemelham a
vozes estridentes balbuciando. Além de um choque em termos de estrutura musical, essas
vozes representam um deslocamento temporal, tanto para o passado quanto para o futuro dos
românticos. Elas são um arranjo eletrônico do Dies Irae, um hino sacro latino do século XII,
que versa sobre o Juízo Final e no qual o compositor do século XIX se inspirou para a
progressão de acordes do final da sua peça. A intrusão de vozes sobre a bem-acabada sinfonia
parece ser uma indicação do autor implícito para a atenção ao que existe sob a estrutura
precisa do visível e do esperado - uma trilha sonora sinistra para um filme de horror -, que
mesmo sendo incômodo, pode apontar para associações inesperadas, como a construção de
semelhanças entre música medieval e música contemporânea.
Na cena seguinte, na entrada de Jack no Overlook, a aparente cena cotidiana que
cumpre perfeitamente o roteiro de uma entrevista de emprego, incluindo o tom de âncora
televisivo com que o Sr. Ullman articula suas palavras, um conjunto de elementos insólitos
passam despercebidos. Quando conversa com a recepcionista, um casal jovem passa por Jack
segurando uma rede de bolas de tênis, apesar da tomada aérea anterior não ter mostrado
nenhuma quadra no hotel. Nessa mesma tomada, um casal com rostos irreconhecíveis olha
para Jack de dentro das portas de vidro do hotel, trajando roupas que não aparentam ser
contemporâneas às dos demais personagens.

E num exemplo que irá se repetir centenas de vezes durante o filme, a arquitetura
interna do corredor que leva à sala de Sr. Ullman parece impossível, com uma janela externa
apontando para onde, anteriormente, acreditávamos estarem os elevadores.
Todos esses elementos apontam para o segundo sentido da palavra “overlook”, o de
“passar despercebido” ou “fazer vista grossa”. Parte da fortuna crítica de Kubrick ressalta a
qualidade geométrica das suas composições, de modo a criar um efeito de uma superfície
rígida onde tudo tem o seu lugar.3 Mas essa composição precisa existe menos por si própria, e
mais pela contradição que ela cria com os processos vivos e violentos que ocorrem apesar, e
até por causa, do choque dos sujeitos com as necessidades dessa estrutura. Em The Shining, o
que é “overlooked” vai para além do meramente sobrenatural: também a violência de Wendy
3 “...several features of Kubrick's style (...) could be said to create an impression of coolness, or at
least an air of perfectionism and aesthetic detachment.”
NAREMORE, James. On Kubrick (London: British Film Institute, 2007), p. 25
e Danny nas mãos de Jack é colocado para baixo do tapete, e justificada como apenas mais
um dia na vida de uma família tradicional americana, enquanto a cinza do cigarro na sua mão
vai ficando cada vez maior, simulando o pavio de uma bomba cada vez mais próxima de
estourar.

Resgatando a linguagem do cinema de horror, a tradição do uso do velado e do


reprimido como o locus do terrível, do insólito e do assustador é talvez uma das suas pedras
mais fundamentais desde, no mínimo, Das Cabinet des Dr. Caligari (1920), portanto era de
se esperar que Kubrick, já afeito a investigações a essa categoria, traria-a ao centro. Porém, o
velado aqui não é o lugar do inefável, ou mesmo do exclusivamente abjeto, mas um espaço
que permite a realização de associações que escapam à observação do puramente manifesto,
pelo menos aos personagens do filme. Um exemplo ocorre com Danny no seu primeiro
encontro com Hallorann. Quando o cozinheiro leva Wendy e seu filho à dispensa, ele e o
garoto fazem a sua primeira conexão através do brilho, e o que é comunicado entre eles vai
para além da frase dita por Hallorann. No enquadramento, da perspectiva de Danny, o perfil
do cozinheiro é contraposto à figura de um indígena na lata de fermento atrás dele (que não
está mais lá quando a perspectiva muda para um plano mais aberto). O nome da marca de
fermento é Calumet, nome dado aos cachimbos cerimoniais dos povos Illinois. Além do
indígena estar aqui associado não a um monumento ou retrato, mas a uma marca, dando
indícios do apagamento étnico promovido pelo Estado americano, a parede da dispensa lê em
letras garrafais vermelhas: “No Smoking”.
Danny aqui recebe a conclusão do que foi apresentado para Jack e Wendy momentos
antes: apesar dos muitos motivos nativo-americanos que decoram o hotel, ele foi construído
sobre um cemitério indígena, implicando um processo bastante objetivo de brutalidade contra
uma população nativa. O peso desse passado sangra por através da arquitetura e decoração,
fazendo a história de barbárie coagular sobre a construção do monumento, tornando-a ao
mesmo tempo velada, e impossível de ignorar. A associação entre a construção do hotel e a
violência não é feita pelos adultos, contudo, como é para Danny, que ainda nota o
envolvimento de Hallorann dentro do mesmo esquema, já que mais tarde também será
exterminado por Jack como foram exterminados os povos anteriores ao hotel. Esse
desvendamento apresentado ao garoto, que apresenta homologias com a história da própria
América, se dá no campo do que não é percebido, “overlooked” - não à toa, mesmo
incorporando linguagem, se dá no terreno do visual, e não do verbal.
Nem todas as associações feitas entre o que é velado se dão como momentos de
verdade, contudo - pelo menos, não para uma perspectiva de ganho de consciência como no
exemplo anterior. A associação entre Jack e Grady também é feita, aproximando-os em
termos de função (“you’ve always been the caretaker”) e de ideologia: Grady, ambientado
como um mordomo dos anos 20, se utiliza de um discurso profundamente historicizado como
a proposta de hostilizar a mulher e filho de Jack dizendo que eles precisam ser “corrigidos”,
um discurso mais do que corriqueiro para explicar a motivação para atos de violência
doméstica dentro de sociedades patriarcais; e a referência a Hallorann, o cozinheiro que ruma
ao hotel para resgatar as vítimas, é feita chamando-o de “an outside party”, até alcançar a sua
definição final como “a nigger cook”, combinando práticas de misoginia e racismo que foram
de plenamente visíveis nos anos 20 até veladas (mas ainda presentes) nos anos 70. A
fragilidade subjetiva de Jack somada ao ressentimento encontra nesse discurso a justificativa
de que necessita para avançar frontalmente rumo à barbárie.

“All work and no play…”

Essa abertura de possibilidades interpretativas a partir da associação dos elementos


velados permite também tentarmos explorar a semelhança entre os momentos históricos que
são tematizados no longa. A presença dos anos 20 já foi bastante trabalhada na fortuna
crítica, e Fredric Jameson interpreta essa representação como o anseio de coletividade de um
sujeito (Jack) reduzido a uma sociabilidade sem nenhuma comunidade cognoscível, e
fantasiando pelo último momento da História dos EUA em que a classe dominante se
projetava como si mesma.4 A leitura é muito funcional para enxergar o período
contemporâneo ao filme como um momento em que foram frontalmente combatidas as
possibilidades de emancipação coletiva vividas pelos novos movimentos sociais, apesar de

4 “The twenties were the last moment in which a genuine American leisure class led an aggressive
and ostentatious public existence, in which an American ruling class projected a class-conscious and
unapologetic image of itself and enjoyed its privileges without guilt, openly and armed with its
emblems of top-hat and champagne glass, on the social stage in full view of the other classes. The
nostalgia of The Shining, the longing for collectivity, takes the peculiar form of an obsession with the
last period in which class consciousness is out in the open…”
JAMESON, Fredric “Historicism in The Shining”, in Signatures of the Visible (Hoboken: Taylor and
Francis, 2013), p. 130
não ficar muito claro porque esse último momento de “anseio por coletividade” não possa ter
sido a própria década de 60.
Mas como propusemos, a instabilidade de dominação narrativa do personagem
supostamente central pode indicar uma instabilidade da instituição representada por ele,
evidenciando algum nível de crise de confiança como não havia nos Roaring Twenties, um
momento de pujança econômica garantido pelo investimento de Wall Street na Alemanha,
que se via forçada a pagar as reparações da Primeira Guerra Mundial. A data de construção
do hotel, contudo, não foi nos anos 20, mas, de acordo com Ullman, 1907 - data do Pânico de
1907.
No primeiro voo alto da financeirização nos EUA, os grandes magnatas viam a
oportunidade de multiplicar o seu patrimônio buscando assegurar o monopólio de
determinados ativos a fim de manipular o seu preço. As empresas fiduciárias (“trust
companies”) se tornaram uma ferramenta importante para esse tipo de especulação, por serem
menos reguladas e estruturadas que os bancos. O magnata de cobre F. Augustus Heinze, da
United Copper Company, foi responsável pela compra e venda irrestrita de centenas de ações
via múltiplas empresas fiduciárias, que viram seu valor de mercado despencar e tiveram que
fechar as portas, levando junto os vários outros investidores que tinham confiado a elas os
seus ativos. O Departamento do Tesouro dos EUA não conseguiu injetar dinheiro no mercado
o suficiente, e a economia só foi estabilizada quando o financista J.P. Morgan, dono da U.S.
Steel Corporation, organizou uma aquisição massiva de muitas das empresas que haviam
quebrado, em um movimento de concentração de renda aprovado pelo presidente Theodore
Roosevelt.
O episódio inspirou muita insegurança na população em relação à capacidade de
controle do Estado das finanças públicas, com a responsabilidade de magnatas como Morgan
sendo vista como secundária por conta do seu papel no resgate da estabilidade econômica -
mesmo esta tendo vindo a custo de um acúmulo maior de capital nas mãos dessa mesma
plutocracia, e com alguns analistas inclusive propondo que o pânico tivesse sido estimulado
pelos bancos para desacreditar e eliminar a concorrência das empresas fiduciárias. 5 Anos
mais tarde, a empresa J.P. Morgan liderou um grupo de empresários que, em conjunto com o
senador Republicano Nelson W. Aldrich, organizou e supervisionou (“overlooked”) a criação
do Federal Reserve System como o primeiro Banco Central dos EUA. É quase indispensável
marcar que a função social do Fed, pela sua própria origem, sempre foi garantir aos

5 CHERNOW, Ron. The house of Morgan: an American banking dynasty and the rise of modern
finance. (New York: Grove Press, 2010), pp. 122-123
investidores do sistema financeiro o estofo necessário para suas manobras, haja vista de
maneira bastante viva na memória na crise imobiliária de 2008.
A crise de confiança do momento em que o Overlook Hotel foi construído, portanto,
foi uma crise direcionada às instituições econômicas do Estado, que foi redirecionada pela
classe dominante como um meio de avançar na organização da sua acumulação, processo
esse fundamental para garantir o controle do nível de excedente que depois seria esbanjado
por essa classe nos anos 20, em festas como as do Gold Room. Nesse cenário de descrédito,
um grupo se retirou dos olhares públicos, mantendo uma fachada de preocupação com o bem
público, e operando o que era vantajoso de maneira velada.
1980, ano da estreia de The Shining, foi o último ano da presidência de Jimmy Carter.
Após a crise do petróleo de 1973, Carter assume com uma política de estímulo direto à
economia e programas de obras públicas, que onera o Fed e não permite o amparo necessário
para os empresários americanos, especialmente do ramo de energia, de prosseguir a guerra
comercial que vinha sendo instaurada pelos países da OPEP6, gerando uma retenção de
capital que resultou na crise energética de 1979. Em julho do mesmo ano, um discurso de
Carter acusava a “crise de confiança” do povo americano. 7 Meses depois, apoiado por
empresários interessados em uma mais profunda desregulação da economia, e por uma
população enraivecida pela piora do nível de vida e abalada pela falta de confiança nas
instituições, será eleito Ronald Reagan. Na mesa de Wendy no apartamento de Boulder, a
primeira página do jornal lê: “The Carter Collapse”.

6 BOURNE, Peter G. Jimmy Carter: A Comprehensive Biography From Plains to Post-Presidency.


(New York: Scribner, 1997), p. 447
7 “The threat is nearly invisible in ordinary ways. It is a crisis of confidence. It is a crisis that strikes at
the very heart and soul and spirit of our national will. We can see this crisis in the growing doubt about
the meaning of our own lives and in the loss of a unity of purpose for our Nation.”
CARTER, Jimmy, “The Crisis of Confidence”, proferido em 15 de julho de 1979.
Os dois episódios históricos mostram que o momento de crise das instituições (nos
exemplos, políticas, mas transfiguradas em uma crise generalizada de confiança) não é
automaticamente perigoso para os interesses econômicos das classes dominantes, mesmo
quando ela é iniciada pelos próprios. O benefício da atuação nos espaços velados, e a
possibilidade de supervisionar processos políticos complexos, garantem um nível de
flexibilidade a esse setor que outros representantes mais públicos da ideologia (a Igreja, a
escola, a família) não se podem dar ao luxo. No longa, a entrevista de Jack com o Sr. Ullman,
que é cheio de polidez e simpatia, revolve sempre em torno dos riscos e avaliações
econômicas: as estradas de neve são fechadas porque é muito custoso limpá-las, o trabalho de
Jack existe para apaziguar a depreciação causada pelo frio e reduzir custos econômicos,
garrafas de bebida não são mantidas no hotel porque isso aumenta o seguro… e mesmo não
aparecendo nos momentos de pesadelo e barbárie, a presença do contrato de trabalho é a
afirmação que Jack precisa para dizer à sua esposa que não vai voltar quando Danny é
atacado, porque ele não vai voltar para os trabalhos braçais que tinha antes da estadia.
Jack não consegue produzir e se realizar artisticamente, e se vê confrontado com as
suas precárias condições de trabalho, a sua falha de realização como artista e as ameaças que
ele interpreta que Wendy e Danny representam para si, e o ressentimento o motiva a uma
ação violenta. Mas após o ápice do seu pique de fúria (que no filme, ao contrário do romance,
faz uma vítima em Hallorann), ele também falha em executar sua família e é deixado para
trás para morrer. Também em oposição ao romance, nem o pai nem o Overlook queimam:
Jack é congelado, preservado para sempre, e o Overlook segue em pé, tendo incorporado a
violência do personagem como o fez com os outros que passaram por lá.
No seu artigo sobre os anos 60, Jameson constata, ao analisar o processo da
Revolução Verde nos países do Terceiro Mundo, como a antiga dominação colonial foi
derrotada, apenas para assumir uma forma mais sofisticada de exploração, baseada na
penetração econômica:

(...) neocolonialism is characterized by the radically new technology (the


so-called Green Revolution in agriculture: new machinery, new farming methods,
and new types of chemical fertilizer and genetic experiments with hybrid plants and
the like), with which capitalism transforms its relationship to its colonies from an
old-fashioned imperialist control to market penetration, destroying the older village
communities and creating a whole new wage-labor pool and lumpenproletariat. (...)
what is rightly perceived as a far more thoroughgoing form of penetration and
colonization than the older colonial armies.8

Se Jack poderia representar esse impulso de uma dominação baseada na afirmação da


instituição familiar, fundamentada em misoginia e violência, a verdade é que, mesmo tendo
sido muito mais explícita em momentos do passado, ela ainda se faz presente e viva, como o
personagem descobre no seu contato com Grady. Porém, a falta da capacidade de ação e de
afirmação subjetiva do personagem em qualquer direção mostra que, mesmo existindo, esse
impulso já não tem mais força de impor um projeto que organize a realidade em torno de si.
Já a estrutura econômica que justifica a existência do Overlook Hotel não precisa nem se
fazer visível para assegurar que seus interesses serão atendidos, e promove força de atração o
suficiente para incorporar impulsos como o de Jack na sua órbita (e em si mesma, ao final). A
futura eleição de Reagan veria uma camada ampla de cidadãos presos a antigas formas de
sociabilidade e trabalho se colocarem à disposição para defender o seu projeto econômico e
social. O mal-estar que se instala na vida dos personagens ganha o seu peso de aterrorizante
com uma demonstração potente da capacidade da vida social incorporar, de maneira
inconsútil após tempo o suficiente, os níveis de barbárie que em outro momento eram matéria
para um filme de horror.

À guisa de conclusão, não nos parece certo terminar este trabalho sem algumas
palavras sobre Danny. Tendo caracterizado Jack dentro das tensões históricas e dos debates
8 JAMESON, Fredric.”Periodizing the 60s” in The Ideologies of Theory (London: Verso, 2008), p. 512
apresentados pelo romance, Danny parece ser um contraponto simples, pelo menos ao nível
da forma do filme. Muitas cenas são apresentadas com o filho como um espelho do pai, como
nas cenas dos dois à porta do quarto 237.
Mas a ação de Danny também é restrita demais para ser considerada um contraponto
emergente à pathos residual do pai. Danny não traz com ele uma visão de mundo, uma ação
subjetiva que se contrapõe a do pai - e por ser uma criança, é esperado que assim seja, a fim
de evitar que o filme seja só mais uma produção ideológica onde o Bem vence o Mal. Danny
inclusive escapa do pai fugindo, mas pelo lado de dentro do labirinto, onde ele já tinha se
familiarizado com as entradas e saídas, passagens secretas e becos quando o explorou
brincando, coisa que Jack nunca fez.
De fato, se o que mantém Jack no hotel é a necessidade de trabalho, e a precariedade
desse determinante é o que favorece o seu descontrole, a ação básica de Danny é brincar.
Enquanto Jack é visto apenas com uma bolinha, que é mais usada para ventilar seus desejos
de destruição, Danny alterna entre uma série de brinquedos, muitos deles associados com
movimento (carros, triciclo, etc.). Essas associações ao movimento aparentam entrar em
contradição com o espaço onde brinca, restrito e circular, e apesar de amplo, claustrofóbico.
Walter Benjamin no seu texto sobre brinquedos e jogos deixa claro que não existe um
mundo puro de brincadeira, onde as crianças vivem sem influência da materialidade
sociohistórica do real:

The fact is that the perceptual world of the child is influenced at every
point by traces of the older generation, and has to take issue with them. The same
applies to the child’s play activities. It is impossible to construct them as dwelling
in a fantasy realm, a fairy-tale land of pure childhood or pure art. Even where they
are not simply imitations of the tools of adults, toys are a site of conflict, less of the
child with the adult than of the adult with the child. For who gives the child his toys
if not adults?9

Danny deve, naturalmente, confrontar o mundo que foi herdado por ele nas suas
brincadeiras. Porém, Benjamin distingue os jogos do conjunto de outros comportamentos
humanos pelo seu “fraco poder revolucionário”, que envolve o nível de teste e de poucas
amarras que a criança tem no começo do seu desenvolvimento, e do qual utiliza as
brincadeiras como mediação entre a intenção e o mundo. É por esse motivo que a repetição
tem cargas opostas quando aplicada ao jogo e ao hábito: enquanto o comportamento de hábito
ossifica o comportamento e os saberes de maneira a abandonar o espírito de teste (“I now
know how to walk; there is no more learning to walk”10), a repetição no jogo, além de
fortalecer a tentativa e erro, traz prazer genuíno:

[Repetition] is not only the way to master frightening fundamental


experiences—by deadening one’s own response, by arbitrarily conjuring up
experiences, or through parody; it also means enjoying one’s victories and triumphs
over and over again, with total intensity. An adult relieves his heart from its terrors
and doubles happiness by turning it into a story. A child creates the entire event
anew and starts again right from the beginning.11

Nisso, contrastamos o que significa a repetição para Jack, que escreve um livro inteiro
repetindo a mesma frase, parado geograficamente no mesmo lugar e atormentado por
sofrimento, raiva, pensamentos homicidas e pesadelos (“work”); e as corridas de triciclo
pelos corredores de Danny, que mesmo andando em círculos, é mostrado três vezes no filme,
em um andar diferente a cada vez, implicando em um retorno ao mesmo ponto, mas em outra
qualidade (“play”).

9 BENJAMIN, Walter, “Toys and Play” in BULLOCK, Marcus, EILAND, Howard e JENNINGS, Michael
W. (eds.) Selected Writings. vol. 2. (Cambridge, MA: Harvard UP, 1996–2003.), p. 118
10 BENJAMIN, Walter, “The Reading Box”, in BULLOCK, EILAND e JENNINGS, vol. 3, p.396
11 BENJAMIN, “Toys and Play”, p. 120
Chamar esses momentos de prazerosos não seria correto por conta do seu confronto
com as forças do hotel. Mas o fato de que Danny é visto em poucos momentos genuinamente
se divertindo pode ter relação com o seu nível de consciência do funcionamento de boa parte
do hotel, como quando encosta na maçaneta da porta do quarto 237 antes de abrir, e como
Tony o tranquiliza após a visão das mortes das gêmeas garantindo que elas são “just pictures
in a book”. Como coloca Benjamin, a disposição de Danny de se ver no mesmo lugar outra
vez e recomeçar o processo que aprendeu é o que vai, literalmente, salvar a sua vida.
Na frase “all work and no play makes Jack a dull boy”, Jack descobre uma verdade
importante sobre si: Danny tem acesso a uma dimensão da experiência que ele mesmo não
tem. “Dull” aqui pode ter o sentido de “chato”, mas também de “fosco” ou de “cego” (como
uma faca é cega). A falta de brincadeira torna Jack menos preparado, menos capaz, de
transitar e de intervir sobre a irresistível estrutura que o envolve até a sua tragédia final. Não
é possível dizer também que Danny é um agente pleno, ou que ele próprio consegue impor,
sobre a violência do pai e do hotel, uma dinâmica que neutraliza as suas energias. Mas dentro
do jogo entre a estrutura econômica que subsume os impulsos violentos e reacionários do pai,
Danny aparece como um ponto de instabilidade que reorienta o seu entorno. Ou, o restante de
brincadeira de que fala Benjamin:

Habit enters life as a game, and in habit, even in its most sclerotic forms, a
small remainder of play survives to the end.12

12 Idem.
Referências

BENJAMIN, Walter, “The Reading Box”, in BULLOCK, Marcus, EILAND, Howard e


JENNINGS, Michael W. (eds.) Selected Writings. vol. 3. (Cambridge, MA: Harvard UP,
1996–2003.)

BENJAMIN, Walter, “Toys and Play” in BULLOCK, Marcus, EILAND, Howard e


JENNINGS, Michael W. (eds.) Selected Writings. vol. 2. (Cambridge, MA: Harvard UP,
1996–2003.)

BOURNE, Peter G. Jimmy Carter: A Comprehensive Biography From Plains to Post-


Presidency. (New York: Scribner, 1997)

CHERNOW, Ron. The house of Morgan : an American banking dynasty and the rise of
modern finance. (New York: Grove Press, 2010)

GELMIS, Joseph “The Film Director as Superstar: Stanley Kubrick”, in PHILLIPS, Gene D.
(ed.), Stanley Kubrick Interviews (Jackson: University Press of Mississippi, 2001)

JAMESON, Fredric “Historicism in The Shining”, in Signatures of the Visible (Hoboken:


Taylor and Francis, 2013)

JAMESON, Fredric.”Periodizing the 60s” in The Ideologies of Theory (London: Verso, 2008)

NAREMORE, James. On Kubrick (London: British Film Institute, 2007)

VON KEITZ, Ursula, “The Shining - Frozen Material: Stanley Kubrick's Adaptation of
Stephen King's Novel”, in REICHMANN, Hans-Peter e FLAGGE, Ingeborg (eds.), Stanley
Kubrick, Kinematograph no. 20 (Frankfurt am Main: Deutsches Filmmuseum, 2004)

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