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Disputas do visível
The Shining de Kubrick e os sentidos de Overlook
São Paulo
2022
The Shining: disputas do visível no filme de Stanley Kubrick
1 Em entrevista a revista Playboy, King conclui que Kubrick “looked for evil in the characters and
made the film into a domestic tragedy with only a few supernatural overtones”.
VON KEITZ, Ursula, “The Shining - Frozen Material: Stanley Kubrick's Adaptation of Stephen King's
Novel”, in REICHMANN, Hans-Peter e FLAGGE, Ingeborg (eds.), Stanley Kubrick, Kinematograph
no. 20 (Frankfurt am Main: Deutsches Filmmuseum, 2004), p. 187.
exploração das ferramentas permitidas pela sua linguagem específica para trazer à tona um
mal-estar mais generalizado, que não é da natureza do externo, mas das movimentações
internas de um período dos EUA, em que a disputa pela estabilização de uma série de
irrupções sociais e políticas vinha caminhando para um arranjo específico das forças
históricas, incorporando as contradições expostas em uma hegemonia de novo tipo. Se existe
uma possibilidade do filme de horror ser produtivo como lente de aumento para a
investigação de um etapa histórica marcada por ambiguidades, é concebível que haja um
ganho cognitivo na construção de uma forma artística mais preocupada com o tratamento
dessas ambiguidades - em oposição ao estabelecimento de categorias puras como Bem e Mal,
como era de praxe nos filmes mencionados do mesmo gênero. De muitos pontos de vista
possíveis para analisar essa possibilidade, queremos propor a análise de uma ambiguidade
linguística, que se desdobra em algumas questões organizadoras da matéria do filme. Se o
mais perto de uma entidade diabólica do filme é o próprio hotel, vale refletir sobre os
significados do nome Overlook.
A cena de abertura de The Shining traz tomadas aéreas sobre um relevo natural, que
combina lagos, vales e montanhas que fazem as vezes do interior do Colorado. Apesar de um
tom de espontaneidade dado pelo movimento muito ágil e dinâmico da câmera, os
enquadramentos são muito precisos, sendo o primeiro de todos quase perfeitamente
simétrico, tanto horizontal quanto verticalmente, e com uma ilha que marca o centro exato da
tela.
As tomadas vão continuar ao avistarmos o carro que transita por uma estrada
serpenteante por entre as florestas, que mais tarde descobriremos ser o veículo do nosso
protagonista. Mesmo seguindo o movimento do mesmo, a câmera mantém independência em
relação a ele, ascendendo e descendendo em diferentes momentos, e inclusive perdendo-o de
vista em diferentes momentos, implicando assim uma autonomia dessa instância narrativa ao
que supostamente seria o centro das nossas atenções em uma linha de enredo tradicional.
Logo somos tratados ao primeiro dado dos créditos de abertura, antes mesmo do título do
filme: “A Stanley Kubrick Film”. O cineasta, já com uma vasta obra, carregava uma
reputação que ganhava contornos quase mistificados acerca do seu controle sobre a produção
e o set de filmagem, reconhecida por um nível de atenção à composição e ao detalhe que já
foi chamada de perfeccionista2. Exageros à parte, a combinação entre créditos,
enquadramento e movimento de câmera dialoga com essa lógica a ponto de criar uma
impressão de autorreferencialidade, como se a instância que controla os elementos
apresentados fosse consciente desse fato, e disposta a mostrá-lo ao espectador. Alguns outros
dados do filme confirmam essa impressão: o longa é conhecido pelos travellings muito
frequentes dentro dos corredores do hotel, que sugerem também uma presença narrativa que
segue ou antecipa o destino dos personagens. Quase como uma gag pela sua explicitude, o
2 GELMIS, Joseph “The Film Director as Superstar: Stanley Kubrick”, in PHILLIPS, Gene D. (ed.),
Stanley Kubrick Interviews (Jackson: University Press of Mississippi, 2001), p. 102.
ponto de vista do filme faz questão de deixar claro a sua consciência da execução dessas
tomadas, enquadrando em algumas cenas um cartaz que diz “Camera Walk”.
E num exemplo que irá se repetir centenas de vezes durante o filme, a arquitetura
interna do corredor que leva à sala de Sr. Ullman parece impossível, com uma janela externa
apontando para onde, anteriormente, acreditávamos estarem os elevadores.
Todos esses elementos apontam para o segundo sentido da palavra “overlook”, o de
“passar despercebido” ou “fazer vista grossa”. Parte da fortuna crítica de Kubrick ressalta a
qualidade geométrica das suas composições, de modo a criar um efeito de uma superfície
rígida onde tudo tem o seu lugar.3 Mas essa composição precisa existe menos por si própria, e
mais pela contradição que ela cria com os processos vivos e violentos que ocorrem apesar, e
até por causa, do choque dos sujeitos com as necessidades dessa estrutura. Em The Shining, o
que é “overlooked” vai para além do meramente sobrenatural: também a violência de Wendy
3 “...several features of Kubrick's style (...) could be said to create an impression of coolness, or at
least an air of perfectionism and aesthetic detachment.”
NAREMORE, James. On Kubrick (London: British Film Institute, 2007), p. 25
e Danny nas mãos de Jack é colocado para baixo do tapete, e justificada como apenas mais
um dia na vida de uma família tradicional americana, enquanto a cinza do cigarro na sua mão
vai ficando cada vez maior, simulando o pavio de uma bomba cada vez mais próxima de
estourar.
4 “The twenties were the last moment in which a genuine American leisure class led an aggressive
and ostentatious public existence, in which an American ruling class projected a class-conscious and
unapologetic image of itself and enjoyed its privileges without guilt, openly and armed with its
emblems of top-hat and champagne glass, on the social stage in full view of the other classes. The
nostalgia of The Shining, the longing for collectivity, takes the peculiar form of an obsession with the
last period in which class consciousness is out in the open…”
JAMESON, Fredric “Historicism in The Shining”, in Signatures of the Visible (Hoboken: Taylor and
Francis, 2013), p. 130
não ficar muito claro porque esse último momento de “anseio por coletividade” não possa ter
sido a própria década de 60.
Mas como propusemos, a instabilidade de dominação narrativa do personagem
supostamente central pode indicar uma instabilidade da instituição representada por ele,
evidenciando algum nível de crise de confiança como não havia nos Roaring Twenties, um
momento de pujança econômica garantido pelo investimento de Wall Street na Alemanha,
que se via forçada a pagar as reparações da Primeira Guerra Mundial. A data de construção
do hotel, contudo, não foi nos anos 20, mas, de acordo com Ullman, 1907 - data do Pânico de
1907.
No primeiro voo alto da financeirização nos EUA, os grandes magnatas viam a
oportunidade de multiplicar o seu patrimônio buscando assegurar o monopólio de
determinados ativos a fim de manipular o seu preço. As empresas fiduciárias (“trust
companies”) se tornaram uma ferramenta importante para esse tipo de especulação, por serem
menos reguladas e estruturadas que os bancos. O magnata de cobre F. Augustus Heinze, da
United Copper Company, foi responsável pela compra e venda irrestrita de centenas de ações
via múltiplas empresas fiduciárias, que viram seu valor de mercado despencar e tiveram que
fechar as portas, levando junto os vários outros investidores que tinham confiado a elas os
seus ativos. O Departamento do Tesouro dos EUA não conseguiu injetar dinheiro no mercado
o suficiente, e a economia só foi estabilizada quando o financista J.P. Morgan, dono da U.S.
Steel Corporation, organizou uma aquisição massiva de muitas das empresas que haviam
quebrado, em um movimento de concentração de renda aprovado pelo presidente Theodore
Roosevelt.
O episódio inspirou muita insegurança na população em relação à capacidade de
controle do Estado das finanças públicas, com a responsabilidade de magnatas como Morgan
sendo vista como secundária por conta do seu papel no resgate da estabilidade econômica -
mesmo esta tendo vindo a custo de um acúmulo maior de capital nas mãos dessa mesma
plutocracia, e com alguns analistas inclusive propondo que o pânico tivesse sido estimulado
pelos bancos para desacreditar e eliminar a concorrência das empresas fiduciárias. 5 Anos
mais tarde, a empresa J.P. Morgan liderou um grupo de empresários que, em conjunto com o
senador Republicano Nelson W. Aldrich, organizou e supervisionou (“overlooked”) a criação
do Federal Reserve System como o primeiro Banco Central dos EUA. É quase indispensável
marcar que a função social do Fed, pela sua própria origem, sempre foi garantir aos
5 CHERNOW, Ron. The house of Morgan: an American banking dynasty and the rise of modern
finance. (New York: Grove Press, 2010), pp. 122-123
investidores do sistema financeiro o estofo necessário para suas manobras, haja vista de
maneira bastante viva na memória na crise imobiliária de 2008.
A crise de confiança do momento em que o Overlook Hotel foi construído, portanto,
foi uma crise direcionada às instituições econômicas do Estado, que foi redirecionada pela
classe dominante como um meio de avançar na organização da sua acumulação, processo
esse fundamental para garantir o controle do nível de excedente que depois seria esbanjado
por essa classe nos anos 20, em festas como as do Gold Room. Nesse cenário de descrédito,
um grupo se retirou dos olhares públicos, mantendo uma fachada de preocupação com o bem
público, e operando o que era vantajoso de maneira velada.
1980, ano da estreia de The Shining, foi o último ano da presidência de Jimmy Carter.
Após a crise do petróleo de 1973, Carter assume com uma política de estímulo direto à
economia e programas de obras públicas, que onera o Fed e não permite o amparo necessário
para os empresários americanos, especialmente do ramo de energia, de prosseguir a guerra
comercial que vinha sendo instaurada pelos países da OPEP6, gerando uma retenção de
capital que resultou na crise energética de 1979. Em julho do mesmo ano, um discurso de
Carter acusava a “crise de confiança” do povo americano. 7 Meses depois, apoiado por
empresários interessados em uma mais profunda desregulação da economia, e por uma
população enraivecida pela piora do nível de vida e abalada pela falta de confiança nas
instituições, será eleito Ronald Reagan. Na mesa de Wendy no apartamento de Boulder, a
primeira página do jornal lê: “The Carter Collapse”.
À guisa de conclusão, não nos parece certo terminar este trabalho sem algumas
palavras sobre Danny. Tendo caracterizado Jack dentro das tensões históricas e dos debates
8 JAMESON, Fredric.”Periodizing the 60s” in The Ideologies of Theory (London: Verso, 2008), p. 512
apresentados pelo romance, Danny parece ser um contraponto simples, pelo menos ao nível
da forma do filme. Muitas cenas são apresentadas com o filho como um espelho do pai, como
nas cenas dos dois à porta do quarto 237.
Mas a ação de Danny também é restrita demais para ser considerada um contraponto
emergente à pathos residual do pai. Danny não traz com ele uma visão de mundo, uma ação
subjetiva que se contrapõe a do pai - e por ser uma criança, é esperado que assim seja, a fim
de evitar que o filme seja só mais uma produção ideológica onde o Bem vence o Mal. Danny
inclusive escapa do pai fugindo, mas pelo lado de dentro do labirinto, onde ele já tinha se
familiarizado com as entradas e saídas, passagens secretas e becos quando o explorou
brincando, coisa que Jack nunca fez.
De fato, se o que mantém Jack no hotel é a necessidade de trabalho, e a precariedade
desse determinante é o que favorece o seu descontrole, a ação básica de Danny é brincar.
Enquanto Jack é visto apenas com uma bolinha, que é mais usada para ventilar seus desejos
de destruição, Danny alterna entre uma série de brinquedos, muitos deles associados com
movimento (carros, triciclo, etc.). Essas associações ao movimento aparentam entrar em
contradição com o espaço onde brinca, restrito e circular, e apesar de amplo, claustrofóbico.
Walter Benjamin no seu texto sobre brinquedos e jogos deixa claro que não existe um
mundo puro de brincadeira, onde as crianças vivem sem influência da materialidade
sociohistórica do real:
The fact is that the perceptual world of the child is influenced at every
point by traces of the older generation, and has to take issue with them. The same
applies to the child’s play activities. It is impossible to construct them as dwelling
in a fantasy realm, a fairy-tale land of pure childhood or pure art. Even where they
are not simply imitations of the tools of adults, toys are a site of conflict, less of the
child with the adult than of the adult with the child. For who gives the child his toys
if not adults?9
Danny deve, naturalmente, confrontar o mundo que foi herdado por ele nas suas
brincadeiras. Porém, Benjamin distingue os jogos do conjunto de outros comportamentos
humanos pelo seu “fraco poder revolucionário”, que envolve o nível de teste e de poucas
amarras que a criança tem no começo do seu desenvolvimento, e do qual utiliza as
brincadeiras como mediação entre a intenção e o mundo. É por esse motivo que a repetição
tem cargas opostas quando aplicada ao jogo e ao hábito: enquanto o comportamento de hábito
ossifica o comportamento e os saberes de maneira a abandonar o espírito de teste (“I now
know how to walk; there is no more learning to walk”10), a repetição no jogo, além de
fortalecer a tentativa e erro, traz prazer genuíno:
Nisso, contrastamos o que significa a repetição para Jack, que escreve um livro inteiro
repetindo a mesma frase, parado geograficamente no mesmo lugar e atormentado por
sofrimento, raiva, pensamentos homicidas e pesadelos (“work”); e as corridas de triciclo
pelos corredores de Danny, que mesmo andando em círculos, é mostrado três vezes no filme,
em um andar diferente a cada vez, implicando em um retorno ao mesmo ponto, mas em outra
qualidade (“play”).
9 BENJAMIN, Walter, “Toys and Play” in BULLOCK, Marcus, EILAND, Howard e JENNINGS, Michael
W. (eds.) Selected Writings. vol. 2. (Cambridge, MA: Harvard UP, 1996–2003.), p. 118
10 BENJAMIN, Walter, “The Reading Box”, in BULLOCK, EILAND e JENNINGS, vol. 3, p.396
11 BENJAMIN, “Toys and Play”, p. 120
Chamar esses momentos de prazerosos não seria correto por conta do seu confronto
com as forças do hotel. Mas o fato de que Danny é visto em poucos momentos genuinamente
se divertindo pode ter relação com o seu nível de consciência do funcionamento de boa parte
do hotel, como quando encosta na maçaneta da porta do quarto 237 antes de abrir, e como
Tony o tranquiliza após a visão das mortes das gêmeas garantindo que elas são “just pictures
in a book”. Como coloca Benjamin, a disposição de Danny de se ver no mesmo lugar outra
vez e recomeçar o processo que aprendeu é o que vai, literalmente, salvar a sua vida.
Na frase “all work and no play makes Jack a dull boy”, Jack descobre uma verdade
importante sobre si: Danny tem acesso a uma dimensão da experiência que ele mesmo não
tem. “Dull” aqui pode ter o sentido de “chato”, mas também de “fosco” ou de “cego” (como
uma faca é cega). A falta de brincadeira torna Jack menos preparado, menos capaz, de
transitar e de intervir sobre a irresistível estrutura que o envolve até a sua tragédia final. Não
é possível dizer também que Danny é um agente pleno, ou que ele próprio consegue impor,
sobre a violência do pai e do hotel, uma dinâmica que neutraliza as suas energias. Mas dentro
do jogo entre a estrutura econômica que subsume os impulsos violentos e reacionários do pai,
Danny aparece como um ponto de instabilidade que reorienta o seu entorno. Ou, o restante de
brincadeira de que fala Benjamin:
Habit enters life as a game, and in habit, even in its most sclerotic forms, a
small remainder of play survives to the end.12
12 Idem.
Referências
CHERNOW, Ron. The house of Morgan : an American banking dynasty and the rise of
modern finance. (New York: Grove Press, 2010)
GELMIS, Joseph “The Film Director as Superstar: Stanley Kubrick”, in PHILLIPS, Gene D.
(ed.), Stanley Kubrick Interviews (Jackson: University Press of Mississippi, 2001)
JAMESON, Fredric.”Periodizing the 60s” in The Ideologies of Theory (London: Verso, 2008)
VON KEITZ, Ursula, “The Shining - Frozen Material: Stanley Kubrick's Adaptation of
Stephen King's Novel”, in REICHMANN, Hans-Peter e FLAGGE, Ingeborg (eds.), Stanley
Kubrick, Kinematograph no. 20 (Frankfurt am Main: Deutsches Filmmuseum, 2004)