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No ensaio anterior, discuto o modo como se faz a compreensão do filme pelo espectador, que
o consome em dois sentidos aparentemente opostos: prospectivamente (ou seja, tentando
adivinhar o que vem a seguir na estória) e retroativamente (confirmando ou negando o que já
foi mostrado). Na conclusão, chamo atenção para a complicação que decorre desse processo,
no caso de o filme assistido porventura inverter a ordem da linha da narrativa. Ora, tais
inversões nos conduzem a um tema muito mais genérico, que é o do tempo no cinema, um
tema que já mereceu inúmeros ensaios e livros dos mais renomados teóricos dessa arte.
Dentre estes, um dos mais sistemáticos e competentes é o estudo dos italianos Casetti e Di
Chio, constante em seu livro Analisi del film (Milão, Fabbri, 1990), até aqui tomo como ponto
de referência para uma discussão parcial do assunto. Uma abordagem mais ampla poderia
apresentar o conjunto da tipologia do tempo fílmico em Casetti e Di Chio, mas aqui me limito a
tratar do funcionamento estilístico dessas inversões a partir de um exemplo conhecido do
público cinéfilo. Comecemos com flashback, que a teoria geral da narrativa já cunhou
tecnicamente de analepse (veja, a esse respeito, a obra teórica de Gérard Genette). Por que a
narração fílmica se daria ao trabalho de mostrar antes o que só ocorreu depois? Com ou sem
justificativas psicológicas – como aquela de ser a “recordação” de um personagem, por
exemplo! - , o flashback tem papel fundamental no efeito geral que o filme provoca. Vejam
que, diferentemente do que se dá na literatura, todo o tempo do cinema tende a ser sentido
como presente, ao que se atribui normalmente a força da imagem. Presa ao esquema
linguístico, a ficção literária não consegue narrar o passado fazendo abstração das
modalidades verbais que o marcam, ao passo que o filme – que apenas mostra, sem enunciar
– faz isso muito bem. O resultado é que o valor dos processos analépticos nunca é o mesmo
nessas duas artes. Quem conseguiria imaginar filmes como A Malvada, Crepúsculo dos Deuses,
A Condessa Descalça ou Cidadão Kane sem a estrutura analépica que possuem? Muito mais
que exigência semiótica dos seus gêneros, ou historiográfica dos seus “estilos de época”, essa
estrutura temporalmente invertida contitui um componente do mais alto poder funcional.
Aqui tomo o exemplo mais clássico de Desencanto (David Lean, 1945), sempre mencionado
como um avatar do emprego do flashback no filme de ficção. A estória é simples: uma mulher
bem casada (Celia Johnson) e mãe de dois filhos leva uma vida tranquila na pequena cidade de
Ketchwoth. Uma vez por semana. Ela vai a Milford para fazer compras. Um dia conhece por
acidente, na estação, um jovem médico (Trevor Howard), com quem inicia uma amizade que,
aos poucos, vai se transformando em paixão avassaladora. Posto diante do impasse entre a
realização amorosa e a culpa, o casal apaixonado é forçado a dizer adeus: o médico decide
aceitar uma proposta de trabalho na África, e no mesmo local onde se conheceram – no hall
da estação – os dois se despedem para sempre. Acontece que o filme de Lean “começa” pela
cena da despedida, sem fornecer qualquer informação pregressa a respeito do casal. Como um
voyeur deslocado, o espectador se intromete na situação diegética sem sequer compreender
que está testemunhado uma dolorosa despedida de apaixonados. O papel desse espectador
deslocado coincide, aliás, com de uma personagem do filme genialmente concebida pelo
roteiro: a amiga tagarela que acidentalmente aparece na ocasião e, sem saber ou querer,
estraga a “dignidade” da despedida. Pois bem, toda essa sequência da despedida é assistida
pelo espectador – juntamente com a amiga tagarela – com uma “frieza” que não condiz com
aquelas regras da narrativa segundo as quais o clímax dramático deve envolver
emocionalmente o receptor in extremis. No filme de lean, para que o espectador venha a
sentir toda a tensão envolvida nessa “ despedida”, é preciso que a projeção decorra por
inteiro, como um longo flashback subjetivo da protagonista, que vai contando para si mesma
as várias etapas do seu romance proibido, desde o começo. Somente no final cronológico é
que a cena da estação é reconstituida (agora por outro ângulo: o da protagonista), e é aí, e
somente aí, que ao espectador é permitido retroagir a sua disposição recepcional para reler o
início do filme como um climax dramático. As razões para lean ter decidido começar o seu
filme pelo final da estória podem ser muitas, porém, seguramente, uma delas está no tom
realista que quis imprimir, fazendo com que Desencanto superasse as convenções do simples
melodrama. O espectador não deve ter esquecido todas aquelas minuciosas descrições da vida
diária dos empregados da estação, que discutem mediocridades enquanto o casal protagonista
se encontra, flerta ou se despede. Pensando bem, há até plot paralelo da dona da cantina,
quase sempre sendo vulgarmente abordada pelos guardas ou fregueses. Com toda certeza, a
descrição obsessiva desse “mundinho vulgar” não constitui apenas um contraponto à
sublimidade do caso amoroso narrado (como em Shakespeare, as banalidades da ama são um
contraponto do amor entre Romeu e Julieta!), mas funciona, em termos recepcionais, como
uma estratégia de distanciamento. Na mesma perspectiva, aqui vale notar o emprego
“inverossímil” do foco narrativo: todas essas cenas tão realistas na estação não passam de
“recordações" da protagonista e, como tais, não poderiam “logicamente” nos fazer ver coisas
que ela mesma não viu. Essa atitude, não de todo incomun no cinema de ficção, de quebrar as
regras do jogo e conceder onisciência a um ponto de vista narrativo que deveria ser limitado –
o de quem se lembra do passado! -, fazendo-nos aceitar como verdade uma mentira narrativa,
consiste num reforço considerável do sentido já mencionado de distanciamento. A astuciosa
utilização do flashback em filme que, no nível de roteiro, apenas relata um love affair está
entre as características que fazem de Desencanto uma obra-prima, colocada 17 lugar entre os
vinte melhores filmes do mundo pelo British Institute of Cinema. Para sentir na pele a sua
superioridade artística hoje em dia, basta confrontá-lo com o seu remake moderno, Amor à
Primeira Vista (Ulu Grosbard, 1985). Ao assunto do tempo fílmico retornaremos na próxima
“sessão”, tratando então do flashforward, essa curiosa “lembrança do futuro”.